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Resumo: O trabalho o tem como objetivo analisar como são construídas as identidades das
personagens centrais da obra A Hora da Estrela. Segundo Bakhtin (1993), a linguagem utilizada no
romance é parte do contexto social, abrindo-se a outros discursos, ideologicamente situados.
Mesmo que não tome a forma do discurso direto, mas apareça integrado no discurso do narrador ou
de outra personagem, a posição ideológica dessa personagem sempre se fará sentir. É sob esta
perspectiva que se pretende realizar esta leitura do romance A Hora da Estrela de Clarice Lispector,
tentando verificar como se apresenta o discurso nas representações das personagens Macabéa e
Rodrigo. Nessa obra, seu último romance publicado em vida, nasce uma trama recheada de críticas
sociais, contrariando sua trajetória literária, até então criticada negativamente por não estar engajada
em nenhuma luta política e social. A visão da presença de elementos sociais na produção literária de
Clarice não minimiza seu valor estético, antes amplia o entendimento da luta permanente da
escritora com o signo lingüístico e com as estruturas narrativas na tradição literária brasileira.
1
Acadêmico de Letras. Bolsista do PET-Letras (UNICENTRO)
2
Pós-Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ). Tutora do Grupo PET-Letras.
INTRODUÇÃO
A Hora da Estrela é o último romance publicado em vida por Clarice Lispector, escrito
em 1977. O processo de escrita de Clarice é sempre original e com um estilo incomparável. A
linguagem da escritora, considerada introspectiva e intimista, despertou o interesse da crítica,
gerando uma imensa gama de interpretações e reflexões acerca de seu estilo narrativo; de questões
filosófico-existencialistas e da representação do universo feminino em suas obras.
Lispector inventa Rodrigo e cria a personagem Macabéa que será revelada aos poucos,
como uma mulher feia, raquítica, sem cultura, alienada , excluída do mundo e de si mesma, há,
dessa forma, a construção de uma identidade feminina altamente estereotipada. Transgredindo
novamente todo e qualquer modelo de narrativa presentes no cânone literário, a autora intimista e
psicológica, desloca seus leitores para a mais profunda investigação do abismo interior de seus
personagens. Essa personagem feminina em questão não terá conflitos interiores, ao contrário de
outras mulheres representadas em outros textos de Clarice. Não é como Laura do conto A Imitação
da Rosa; uma mulher comum, qualquer, sempre em casa, retida em si mesma ou nas malhas da
memória, tão pouco como Ana, personagem do conto Amor, que não consegue se libertar de sua
condição de mulher, cujo papel limita-se a cuidar dos afazeres da casa. Macabéa será representada
como um ser feminino vítima de uma repressão cultural recorrente de sua infância vivida no sertão
de Alagoas. Essa personagem pertence a classe dos marginalizados, que para a sociedade carioca da
década de 70 e inclusive para o narrador Rodrigo S.M vai ser o estranho, o outro. Assim, Macabéa é
descrita como uma mulher excluída do contexto social, ela não se reconhece na grande cidade
capitalista em que vive, não sabe quem é, e tão pouco se interroga sobre sua vida, como o próprio
narrador a define, “vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso
dispensável.”(LISPECTOR, 1977, p.29).
Dessa forma, Macabéa encontra-se sem uma identidade definida e unificada. É pela voz
do narrador Rodrigo que acontece uma busca pela identidade que vai sendo construída aos poucos,
uma identidade fragmentada que vai se moldando entre os questionamentos e as dúvidas do
narrador-escritor em relação a vida e a literatura, por meio de uma linguagem simples que contrapõe
seus hábitos é que a nordestina ganha forma. Um estereótipo de uma migrante nordestina que traz
no rosto um sentimento de perdição, uma personagem feminina descrita de maneira transgressora,
desestabilizando estereótipos de outras mulheres representadas nas obras do cânone literário, pois
Macabéa não apenas seguirá o código ideológico referente ao papel da mulher na sociedade , como
também representará tudo o que há de feio, desagradável, disforme, indecoroso e indecente na
sociedade. Assim, ela fará parte da classe dos marginalizados e excluídos.
Segundo Bakhtin, a compreensão de que a existência ocupa lugar na fronteira do “eu” com o
“outro” determina o caráter social da vida humana, que se realiza através da linguagem. Portanto, a
linguagem é um instrumento de interação social, visto que:
[...]a palavra penetra literalmente em todas relações entre indivíduos, nas relações de colaboração,
nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político,
etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a
todas as relações sociais em todos os domínios.(BAKHTIN, 1997, p. 41)
Dessa concepção de linguagem, que percebe a palavra permeando toda e qualquer atividade
humana, Bakhtin(1993) retira o seu conceito básico de dialogismo, isto é, a relação de sentido que
ocorre entre dois enunciados, cada um deles social e ideologicamente situado. Essa relação pode
verificar-se em enunciados de falantes diferentes, por meio do chamado diálogo composicional ou
dramático, ou principalmente no enunciado de um só falante, configurando o chamado dialogismo
interno. Isso se compreende melhor a partir da noção da língua como um elemento vivo, mutável,
em constante evolução. Para Bakhtin(1993) a língua só se realiza através do processo de
enunciação, que compreende não só a matéria lingüística, mas o contexto social em que o
enunciado se manifesta. Disso decorre que o “discurso é um fenômeno social em todas as esferas de
sua existência” (BAKHTIN, 1993, p.71), e traz para dentro de sua estrutura sintática e semântica
outras vozes, outros discursos, igualmente situados social e ideologicamente e que, além disso, ao
serem citados, não perdem, de todo, sua forma e conteúdo.
O discurso efetivo de alguém é, assim, o resultado da interação entre os processos
ideológicos e os fenômenos lingüísticos. O dialogismo bakhtiniano adquire novas e mais complexas
significações quando aplicado à literatura, notadamente na questão do discurso no romance.
Discorrendo sobre o assunto, Bakhtin declara que “o romance, tomado como conjunto, caracteriza-
se por ser um fenômeno pluriestilístico, porque, nele, diversas e heterogêneas unidades estilísticas
se encontram, não de forma estanque, mas harmoniosamente, submetidas ao estilo maior do
conjunto” (73). Noutras palavras, cada uma dessas unidades se individualiza e diferencia nos planos
vocabular, sintático e sobretudo semântico, mas se relaciona com as outras unidades estilísticas,
todas elas portadoras de visões de mundo, de modo a construir a visão conflituosa e crítica da
sociedade que o estilo do romance pretende representar.
O romance é também plurivocal, porque, nele, também se apresentam diferentes línguas e
vozes sociais (“dialetos sociais, maneirismos de grupo, jargões profissionais, linguagens de gêneros,
fala de gerações, das idades, etc.”), que possibilitam ao romance organizar e difundir seus temas,
abrindo-se à complexidade geralmente conflituosa das sociedades modernas, nomeadamente
burguesas em que este gênero literário costuma inspirar-se.
A idéia de que um enunciado está sempre voltado para outro repete-se e ganha maior grau de
complexidade quando Bakhtin se refere aos fenômenos específicos do discurso com suas variedades
de formas e graus de orientação dialógica. Na visão bakhtiniana, o discurso está sempre voltado
para seu objeto (tema) que já traz no bojo idéias de outros falantes. Em conseqüência, o discurso é
sempre levado dialogicamente ao discurso do outro, repleto de entonações, conotações e juízos
valorativos. Assimila o outro discurso, refuta-o, funde-se com ele, e, assim, acaba por constituir-se
enquanto discurso. Enfim, o discurso forma-se a partir das relações dialógicas com outros discursos,
que influenciam o seu aspecto estilístico. Bakhtin(1993) ressalva que o discurso é “diálogo vivo”;
por isso, está sempre voltado para a réplica, para a resposta que ainda não foi dita, mas que é
provocada e, conseqüentemente, passa a ser esperada. Todo falante espera ser compreendido, espera
a resposta, a objeção ou a aquiescência; por isso orienta seu discurso para o universo do ouvinte;
com isso acrescenta novos elementos ao seu discurso.
Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda atordoada. Olhou-
se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto
combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem
alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara
toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de papelão.
Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (LISPECTOR, 1977, P. 25)
Interessante notar que o fato de Macabéa ser datilógrafa atribui a ela um valor, uma posição
dentro da sociedade, a se ver sem o emprego de datilógrafa, a nordestina representa, mais uma vez,
no âmbito social, a classe dos excluídos. Percebe-se que o narrador procura, ainda que
implicitamente e de forma defensiva, identificar-se com sua personagem, estabelecendo assim uma
relação de alteridade ao abordar a dificuldade que um escritor, Rodrigo S. M., tem de se acercar do
outro, de conhecê-lo, de ter verdadeira empatia por ele. Essa experiência, no decorrer da narrativa
resulta em empatia, comunhão, solidariedade com o outro. Afinal, como um escritor, um intelectual,
é capaz de se apoderar de um objeto tão ralo como o sentimento de perdição de uma nordestina, e
desafiar-se a escrever da forma mais simples, o retrato mais fiel da “moça de rosto cariado?”
No início, o narrador sente um desconforto, pois ele precisa se desvencilhar de sua condição
social, e de seu mundo, - já que escritores não costumam ser proletários e nem migrantes - para se
por no nível da nordestina
[...] para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras e
dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me
com roupa velha e rasgada. Tudo isso para me por no nível da nordestina.
(LISPECTOR,1977,19)
Conclusão
Quando o narrador problematiza e questiona sobre o seu processo de escrita, que o livra de
ser um acaso na vida, há uma perda de uma identidade unificada que definia Rodrigo em relação
aos demais, aos outros. A parte do ser que está degradada, um escritor fatigado, em completa
exaustão procura uma resposta, uma busca solitária que faça com que sua imagem no espelho volte
a refletir aquilo que até então ele era, ou acreditava ser, o escritor de palavras que penetram no mais
profundo abismo daqueles que as lêem, um autor que só se livra de ser um acaso na vida pelo ato
de escrever. Por um lado, permanece a tentativa incansável de um falso empobrecimento da
linguagem que o narrador não é capaz de sustentar. Ao problematizar o processo de criação de sua
personagem, Rodrigo revela implicitamente seu uso introspectivo da linguagem usada em suas
obras de outrora. Por outro lado, há pois, uma posição extremamente crítica do autor, um
abandono e um esgotamento da linguagem, manisfestados na construção da personagem Macabéa ,
uma vez que esta personagem encontra-se presa a convenções de decadência. Esse narrador, escritor
e autor está fragmentado, confuso, dividido e faz ressoar no modo como conduz a narrativa,
discursos em que a posição ideológica sua e de seu personagem sempre estará presente e se fará
sentir. Isso faz com que os discursos se integrem no decorrer da narrativa unificando autor, narrador
e personagem. Estes estabelecem um contrato de mutualismo, cuja as condições de existência se
fazem interdependentes, um torna-se subordinado ao outro. Esse processo chega a tal ponto que em
A Hora da Estrela, o narrador ao matar a personagem, percebe que também o mata.
Dessa forma, é possível dizer que há uma integração de discursos em que três histórias se
confundem no decorrer da narrativa, pois nos discursos tanto de Macabéa como do narrador, parece
estar subjacente o discurso da autora Clarice Lispector, escritora de linguagem introspectiva e
intimista, que passou a infância no Nordeste e mudou-se para o Rio de Janeiro, escreveu o romance
A Hora da Estrela as vésperas de sua morte.
Referências bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec,
1993.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da linguagem. São Paulo. Hucitec,1997.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
WALDMAN, Berta. Armadilha para o real: (uma leitura de A Hora da Estrela, de Clarice
Lispector). In: Vários autores. Ficção em debate e outros temas. São Paulo: Duas Cidades;
Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1979.
SÁ, Lúcia. A Hora da estrela e o mal-estar das elites. In: Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea. n. 23, Brasília, 2004.