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Este ensaio faz parte de Gramsci e il Novecento, obra publicada em 1999 na Itália e
não traduzida entre nós. Trata-se da compilação dos anais do seminário de mesmo
nome realizado em Cagliari em 1997, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte
do pensador italiano. Para uma visão global dos ensaios apresentados naquele
seminário, recolhidos no livro mencionado e aqui traduzidos, o leitor deve partir da
introdução escrita por Renato Zangheri.
Aqueles dois princípios, por Gramsci extraídos do texto marxiano, são evocados no Caderno
15 para definir o conceito de “revolução passiva”:
O conceito de “revolução passiva” deve ser deduzido rigorosamente dos dois princípios
fundamentais de ciência política: 1) nenhuma formação social desaparece enquanto as forças
produtivas que nela se desenvolveram ainda encontrarem lugar para um novo movimento
progressista; 2) a sociedade não se põe tarefas para cuja solução ainda não tenham
germinado as condições necessárias, etc. Naturalmente, estes princípios devem ser,
primeiro, desdobrados criticamente em toda a sua dimensão e depurados de todo resíduo de
mecanicismo e fatalismo [2].
E, num outro lugar, comentando esta segunda proposição, Gramsci aperfeiçoa sua ideia,
escrevendo:
É o problema da formação de uma vontade coletiva que decorre imediatamente desta
proposição. Analisar criticamente o que significa a proposição implica indagar como se
formam as vontades coletivas permanentes e como tais vontades se propõem objetivos
imediatos e mediatos concretos, isto é, uma linha de ação coletiva. [...] Seria possível
estudar concretamente a formação de um movimento histórico coletivo, analisando-o em
todas as suas fases moleculares [...]. Depois da formação do regime dos partidos, fase
histórica ligada à estandardização de grandes massas da população (comunicações, jornais,
grandes cidades, etc.), os processos moleculares se manifestam com mais rapidez do que no
passado, etc. [3]
À parte a nova luz que a leitura gramsciana projeta sobre o texto de Marx, subtraindo-o a
qualquer possível interpretação determinista, fica evidente que Gramsci está refletindo sobre
as possibilidades que as velhas classes dirigentes têm de resolver a crise que se abre com a
Grande Guerra, salvaguardando as velhas relações de força. Ele se pergunta se novas
formas de vida podem se desenvolver dentro dos tradicionais ordenamentos sociais e
políticos, mas, ao mesmo tempo, reflete sobre o texto marxiano para compreender os modos
e as formas através das quais é possível chegar à constituição de uma nova vontade
coletiva, condição indispensável para a superação de uma “crise de sistema”. Ou seja,
Gramsci tenta definir uma gnosiologia da história como teoria da constituição dos sujeitos
políticos. Não quer separar história e política, mas pretende individualizar na história os
processos constitutivos dos sujeitos hegemônicos. De Marx extrai a lição de que uma nova
subjetividade histórica não pode se dizer constituída, enquanto a velha ordem souber
organizar e desenvolver as potências que se mostram vitais para a reprodução do sistema
social. Uma nova subjetividade histórica só pode se dizer realizada, quando não se limita a
interpretar a si mesma como expressão de paixões, desejos e interesses presentes num
determinado território, mas quando é capaz de redefinir as funções dirigentes e as tarefas
executivas do sistema social e quando sabe recompor tais funções e tarefas num
ordenamento ético-político mais democrático e unitário.
Mas o discurso gramsciano não se limita a registrar, num plano puramente metodológico, a
ideia de que a constituição de uma nova subjetividade só possa e deva se dar além do
econômico e através da identificação de um projeto, uma ideia de desenvolvimento e de
ordem social, que dê forma e unidade a paixões, desejos e interesses diferenciados. Gramsci
desenvolve esta sua concepção teórica diante do esgotamento da função progressista
historicamente desempenhada pelos Estados-nação. É esta figura histórica, que guiou o
desenvolvimento e o crescimento civil da Europa até a Grande Guerra, que não mais
consegue desenvolver novas “formas de vida”. O velho mundo organizado segundo os
Estados-nação morre, porque eles tendem a se encerrar numa autoidentidade política e
cultural e a projetar tal autoidentidade para fora de si, segundo lógicas imperialistas. O
nacionalismo e o militarismo — segundo as conhecidas expressões de Meinecke —
constituem o ponto de chegada da história dos modernos Estados-nação que esqueceram os
próprios princípios constitutivos: sua autodefinição como comunidades políticas através da
unificação de interesses e etnias diversas e também, frequentemente, através da invenção
de uma comum tradição cultural. No entanto, é precisamente o já recordado texto marxiano
que torna Gramsci consciente do fato de que não se poderá dar uma resposta progressista a
tal involução dos Estados nacionais, uma nova época não poderá se abrir, a não ser através
da constituição de uma nova subjetividade capaz de projetar uma rearticulação de interesses
econômicos e ordem política; de reunificar paixões e culturas diversas numa forma social
mais unitária e universal, de modo a ultrapassar a figura do Estado-nação e reafirmar os
princípios constitutivos do moderno, seu pluralismo originário e suas características mais
democráticas.
Antes de mais nada, nesta visão gramsciana da relação entre modernidade e crise do
Estado-nação existe uma ideia do tempo histórico não redutível a uma sucessão linear de
eventos, quer se veja em tal sucessão um contínuo progresso para o melhor, quer nela se
veja um ininterrupto processo de secularização. Para Gramsci, a história não é definida nem
pelo autodesenvolvimento do Espírito nem por uma fratura originária com o Ser, por sua vez
marcada por um “envio destinal” para o nada. Ao contrário, o tempo histórico é ritmado pelo
fazer-se e desfazer-se de sujeitos sociais e políticos, e é na constituição destes sujeitos que a
memória da origem e o projeto “destinal” (que não se pode resolver na desencantada, mas
também tranquilizadora, visão do “findar do finito”) se mantêm numa unidade conceitual. E é
tal unidade conceitual que dá forma a toda época histórica, constitui sua “filosofia” e impede
que o tempo aja como pura força dissipadora.
Portanto, não surpreende que, na análise da crise das funções progressistas dos Estados-
nação (o que, naturalmente, não impede que continuem a subsistir com todo o peso de um
passado secular), Gramsci entrelace o reconhecimento de uma história “de longa duração” e,
por assim dizer, das formas espirituais que sustentaram a modernidade com a investigação
do “breve período”, da fase política. Sua atitude não é vulgarmente historicista, como se o
ponto de chegada de um processo constituísse imediatamente a chave de leitura de toda
uma época histórica ou como se a sucessão puramente cronológica dos eventos pudesse nos
dar a estrutura significante de um mundo que se desfaz. Ao contrário, a “metodologia”
gramsciana pretende apreender exatamente aquele “conceito” (aquela unidade espiritual
europeia) que reunia a pura temporalidade événementielle e de cuja dissolução e ruptura
emerge um mundo privado de forma, uma poeira de acontecimentos privados de um centro
e de uma orientação. Além disso, se no declínio dos Estados-nação apreende a crise da
forma clássica do moderno (a unidade de soberania, administração, território e
desenvolvimento), não comete, no entanto, o erro de reduzir a esta única forma política os
princípios constitutivos do moderno (o industrialismo, o pluralismo e a ideia de res publica, o
racionalismo científico e a concepção imanentista da história).
É a Grande Guerra que abre uma ferida incurável entre esta ordem política e os sujeitos
(individuais e coletivos). A “experiência comum” de uma ordem que não mais garante as
vidas individuais, mas abandona-as na lama das trincheiras e as mantém em constante
perigo de morte, faz com que o “espiritual” se separe do “temporal”, a forma não contenha
mais a vida das massas. Que as massas exorbitem das Formas e fiquem “em movimento”,
este é o sinal mais evidente da crise do mundo moderno: a crise de uma “espiritualidade”,
de um Conceito, que não sabe mais garantir a Vida e vê os “mundos vitais”, a corpórea
materialidade dos indivíduos, soerguer-se contra as instituições como subjetividades
autônomas, magma ingovernável e incoercível.
Toda a filosofia política entre as duas guerras, não só Gramsci, reflete sobre esta ferida que
a Grande Guerra introduz na história do moderno. Já recordamos Meinecke. Sua Ideia da
razão de Estado, publicada em 1924, conclui com “olhar retrospectivo” que enfatiza o
encerramento de um ciclo histórico:
Corre o risco agora de também se arruinar a essência da moderna vida dos Estados
europeus, o equilíbrio até agora sempre restabelecido de Estados livres, independentes, que
se sentiam ao mesmo tempo como uma grande família. Com isso, enfim, se esgotaria
também a função histórica da velha Europa, e a cultura ocidental se votaria efetivamente à
ruína. [...] O mundo histórico está diante de nós mais obscuro e, quanto ao caráter do seu
curso ulterior, mais incerto e perigoso do que o viam ele (Ranke) e as gerações que
acreditavam na vitória da razão na história. Porque seu lado natural e obscuro se manifestou
mais poderoso diante do nosso pensamento e da nossa experiência [5].
Em alguns pontos da filosofia político-jurídica italiana, não falta, nesta fase, a consciência
dos limites que a forma política “estatal nacional” então evidencia. Basta recordar a
conferência de Santi Romano, “Além do Estado” (1917), que desenvolve e refina a
conferência de abertura do ano acadêmico de 1909-1910 sobre “O Estado moderno e sua
crise”. E não se devem esquecer As reflexões sobre a autoridade e sua crise (1921), de
Giuseppe Capograssi.
Todavia, não se pode dizer que são estas as orientações ideais que prevalecem na cultura
italiana. Não se pode dizer que, no seu todo, a filosofia político-jurídica italiana (nem a
europeia) consiga superar a concepção de um político restrito no quadro de um Estado-
aparelho. A Europa permanece ainda ancorada num passado que parece insuperável e, ao
mesmo tempo, mostra ter perdido sua visão originária de uma res publica laica e pluralista.
Entre as duas guerras mundiais, aquilo que é indicado como a “cultura da crise” (e
compreende figuras como Spengler, Zweig, Huizinga, Ortega y Gasset) [7] expressa esta
perda de princípios, mas também a consciência de que o “mundo do passado” terminou e
não pode ser repetido; de que a Europa dos Estados, que até 1914 ainda se reconhecia como
uma única família, não é mais capaz de desenvolver novas formas de vida. Esta cultura e as
velhas classes dirigentes europeias não se mostram capazes de renovar a própria visão da
política. Todavia, se não têm forças para restaurar a velha ordem, ainda têm a capacidade
de impedir que o novo nasça. “O velho morre, e o novo não pode nascer” — anota Gramsci
[8].
E, de todo modo, diante da configuração de uma realidade “sem Papa” e “sem território”, no
espaço vazio e privado de formas em que tudo se esfarinha e pulveriza, a grande cultura
europeia recua, fixando-se nas formas mais duras de estatalismo, e mostra-se incapaz de
produzir uma resposta positiva à crise do Estado-nação. A Kultur revela-se incapaz de
compreender as razões de um vulgo, que na Grande Guerra viu serem sacrificadas milhões
de vidas e, a partir do fim da guerra, esperou uma renovação radical das formas sociais. E,
se alguns dos representantes daquela tradição cultural (é o caso de Croce) formulam a
tímida ideia de que o vulgo é necessário ao “desenvolvimento civil” [9], outros não hesitarão
em afirmar uma continuidade linear entre o liberalismo oitocentista e os novos “regimes
reacionários de massa”. “Hoje — afirma Gentile — não se pode conceber outro liberalismo a
não ser aquele da liberdade que se organiza no Estado; assim como não se pode conceber
outra liberdade fora daquela que se efetiva no espírito universal [...]. O fascismo, na sua
polêmica antiliberal, nega a liberdade do velho individualismo; mas é a última e mais
madura forma do novo conceito da liberdade, filha do século XIX” [10].
Mas, se Gentile evoca a tradição liberal do século XIX (Mazzini e Cavour conjuntamente)
para legitimar o regime fascista e não hesita em reduzir tal tradição à ideia nacionalista de
Estado, ou seja, a uma visão do Estado como entidade transcendental que desde sempre
vive in interiore homine, único freio real à dissipação das energias materiais e culturais que a
democracia produziria, não diferente é a conclusão de quem, como Schmitt, na crise dos
anos vinte vê o ponto de chegada de um longo e ininterrupto processo de secularização
iniciado com a Reforma protestante. Nos anos entre as duas guerras mundiais, o foco da
reflexão schmittiana está na consciência de que a ordem e o desenvolvimento assegurados
pelos Estados nacionais estão irremediavelmente comprometidos. O Estado liberal europeu
do século XIX não tem mais nenhuma autoridade ética nem força material para neutralizar e
despolitizar os conflitos sociais. O fim da sua soberania delineia um “estado de exceção”
marcado pela constituição de alinhamentos contrapostos que não podem encontrar nenhuma
possibilidade de mediação política. A superação da política do Estado implica a formação de
sujeitos políticos irredutíveis a um sistema formal ordenado e vinculante para todos: o
choque só pode ser frontal. O princípio de uma guerra a ser combatida até a total
aniquilação do adversário domina a ação política, porque só da completa destruição do
adversário o vencedor pode extrair a legitimação e a força para impor a própria ordem.
Mas, nesta crise do “Estado neutro e agnóstico” do século XIX, é o próprio fracasso da
modernidade que Schmitt registra. Dir-se-ia que a analítica schmittiana do mundo moderno
é simetricamente oposta à de Gentile. Este vê no pluralismo político e social de um vulgo que
tenta subtrair-se à autoridade estatal uma ameaça para aquele mundo moderno que se
estruturou em Estados nacionais, em formas unitárias e compactas. Schmitt, ao contrário, na
crise desta forma política vê o próprio fracasso da modernidade, da sua pretensão de
conseguir criar uma ordem política ou, mais exatamente, um artifício político (uma machina
machinarum) capaz de se autolegitimar e autofundar. E nesta crise ele se esforça por
apreender a possibilidade de que os próprios princípios do moderno sejam suprimidos,
porque é o próprio moderno que se configura como aquele “estado de exceção” carente de
toda legitimação transcendente. Com o nascimento do moderno, desaparece qualquer
possibilidade de dar fundamento à soberania política: dissolve-se o jus publicum europaeum.
O Estado-nação perdeu toda e qualquer autoridade, porque é, ele mesmo, o resultado da
dissolução daquelas originárias formas jurídico-políticas baseadas na Sacralidade e na
transcendência; é o resultado de um processo de secularização dos conceitos teológicos, que
opera como uma constante atividade desconstrutiva de qualquer tentativa de dar unidade e
forma à vida social. “A ordem medieval da Europa — observa em Nomos da terra —, se
julgada com base nos cânones de um moderno aparelho administrativo em bom
funcionamento, era [...] seguramente muito anárquica, mas, apesar de todas as guerras e
faidas, não era niilista, na medida em que não havia perdido a própria unidade fundamental
de ordenamento e localização” [11]. A constituição de uma nova comunidade política, então,
só pode advir de um movimento capaz de erguer-se como um kat-echon diante de tal
derivação da modernidade. A única esperança consiste na afirmação de um movimento que
construa uma relação orgânica entre Estado e povo e faça com que a política volte a ser
lugar da representação do Invisível, do Transcendente.
Em todas estas leituras (que aqui nos limitamos a evocar brevemente) da crise do Estado-
nação fica evidente o entrincheiramento da grande cultura europeia diante de uma sociedade
de massas que põe em discussão não só os privilégios econômicos, mas também as formas
políticas de um liberalismo restrito, de um mecanismo ainda elitista de formação e seleção
das classes dirigentes. Ela mostra-se atemorizada por esta nova e ainda indefinida realidade.
E só algumas figuras isoladas do liberalismo, como Gobetti, tentam construir uma mediação
entre a tradição liberal e as “massas em movimento”, entre a Kultur e a Zivilisation, ou,
como Croce, mesmo percebendo o fim de uma fase histórica, reiteram as linhas de uma
visão “clássica” da política e aventam a hipótese de uma tranquila integração de tais massas
nas velhas formas. Ao contrário, na Europa prevaleceria o liberal-nacionalismo de um Gentile
ou a ideia schmittiana de um kat-echon a se levantar contra a derivação do moderno. “Uma
das contradições fundamentais é esta: que, enquanto a vida econômica tem como premissa
necessária o internacionalismo, ou melhor, o cosmopolitismo, a vida estatal se desenvolveu
cada vez mais no sentido [...] da ‘autossuficiência’, etc. Uma das características mais visíveis
da ‘crise atual’ é, apenas, a exasperação do elemento nacionalista (estatal-nacionalista) na
economia” [13].
Mas será preciso dar uma nova forma a estas novas potências. Se a pura e simples
manutenção dos velhos métodos de comando se tornou impossível; se a velha aristocracia
político-cultural não mais tem autoridade ética para comandar, no entanto, até mesmo só
para manter o velho quadro “nacional-estatal”, será preciso exercer uma coerção maior
sobre as forças sociais, até subtrair-lhes toda autonomia político-cultural. A Europa escolhe,
em definitivo, manter unidos os velhos grupos dirigentes; sacrificar as clásses frágeis e, em
algumas nações, sacrificar a própria democracia, para não pôr em discussão os equilíbrios
políticos internos do tradicional bloco dominante.
Para interpretar esta fase histórica da Europa (por um lado, atravessada por impulsos
desconstrutivos e movimentos contraditórios; por outro, fechada numa tradição estiolada e
reduzida ao “nacional estatal”), Gramsci utiliza a categoria do “cesarismo”, indicando com tal
expressão “uma situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças de
perspectiva catastrófica”. A situação europeia se apresenta — já o sublinhamos — como uma
situação em que nenhuma das principais forças contendoras mostra-se capaz de prevalecer.
E, no entanto, a ideia de um “equilíbrio orgânico” — acrescenta Gramsci — é só “uma
hipótese genérica, um esquema sociológico (cômodo para a arte política)”, porque, se as
forças progressistas não conseguem emergir, a perspectiva permanece catastrófica.
No mundo moderno, o equilíbrio com perspectivas catastróficas não se verifica entre forças
que, em última instância, poderiam fundir-se e unificar-se, ainda que depois de um processo
penoso e sangrento, mas entre forças cujo contraste é insolúvel historicamente e que, ao
contrário, aprofunda-se com o advento de formas cesaristas. Todavia, o cesarismo no mundo
moderno ainda encontra uma certa margem, maior ou menor, conforme os países e seu peso
relativo na estrutura mundial, já que uma forma social tem “sempre” possibilidades
marginais de desenvolvimento e de sistematização organizativa subsequente e, em especial,
pode contar com a fraqueza relativa da força progressista antagonista, em função da
natureza e do modo de vida peculiar dessa força, fraqueza que é preciso manter: foi por isso
que se afirmou que o cesarismo moderno, mais do que militar, é policial [14].
Mais uma vez, Gramsci faz ressoar o “Prefácio” marxiano da Contribuição para a crítica da
economia política. Mas, acrescentando uma nova e decisiva especificação, afirma que,
alcançada uma primeira fase de equilíbrio, se as forças progressistas não conseguem se
constituir como sujeitos políticos e se tornar hegemônicas, então pode ocorrer que o
tradicional sistema social tenha margem para se reafirmar sob formas policialescas. E é esta,
precisamente, a situação na qual a Itália veio a se encontrar e que toda a Europa mostra ter
como perspectiva. A defesa da perspectiva “nacional estatal” — na fase que se abre depois
da Grande Guerra — transforma-se inevitavelmente na necessidade de destruir as forças
progressistas, na formação de um regime reacionário, que — através da “mobilização total”
das massas — volta a propor a imagem do Estado-força e reduz a política à lógica do amigo-
inimigo.
Na cultura italiana dos anos vinte, tal concepção da política como exercício da força retorna,
sobretudo, no debate sobre Maquiavel. De tal debate, que Gramsci tem bem presente [15],
aqui interessa recordar não só as posições mais extremas (Mussolini, Ercole, o próprio
Gentile), que explicitamente manifestam uma conexão orgânica entre nacionalismo e
estatalismo, entre Estado-força e Estado-nação, e que a Maquiavel atribuem uma visão da
política como desencantada “imposição” da força. É preciso também recordar que até as
interpretações mais liberais (Croce, Russo) vêem Maquiavel, essencialmente, como o teórico
da autonomia da política, o teórico do realismo político, em contraposição à vaguidão e ao
“presumido dever ser” de um Savonarola. Seja como for, à ideia da política-força estes
intérpretes liberais permanecem fiéis, embora considerem dever (e poder) enquadrá-la no
devir das formas do Espírito.
O diplomata tem de se mover apenas na realidade efetiva, já que sua atividade específica
não é a de criar novos equilíbrios, mas a de conservar, dentro de determinados quadros
jurídicos, um equilíbrio já existente. Assim, também o cientista, enquanto mero cientista,
deve mover-se apenas na realidade efetiva. Mas Maquiavel não é um mero cientista; ele é
um homem de partido, de paixões poderosas, um político em ato, que pretende criar novas
relações de força e, por isso, não pode deixar de se ocupar com o “dever ser”, não entendido
evidentemente em sentido moralista. [...] ou seja, trata-se de ver se o “dever ser” é um ato
arbitrário ou necessário, é vontade concreta ou veleidade, desejo, miragem. O político em
ato é um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move na vazia
agitação de seus desejos e sonhos [16].
Nesta perspectiva teórica, é evidente que a ideia moderna da democracia não pode se
resolver unicamente na liberdade subjetiva. Se fosse assim, a própria democracia seria
mutilada. Limitar-se-ia à unilateral afirmação dos próprios direitos por parte de uma vontade
subjetiva que não reconhece o que é diferente de si e tende a se fazer absoluta. Certamente,
a democracia dos modernos não pode se afirmar sem a liberdade subjetiva, mas ela só se
pode dizer completa com o reconhecimento de uma origem plural da res publica (cidade e
campo, camadas urbanas e massas camponesas). Na origem do moderno há o
reconhecimento da pluralidade dos sujeitos, que formam a cidade terrena e “fazem a
história”; há a negação da ideia de que se possa dar um Sujeito único e totalizante; de que
seja único o Sujeito que dá forma ao mundo e à história.
É esta uma visão da política e da história que Gramsci podia encontrar na crítica hegeliana
do subjetivismo transcendental, que envolve não só Fichte, mas o próprio Kant. Toda a
filosofia kantiana — diz-nos Hegel — permanece fechada na subjetividade: é-lhe estranho o
conceito de relação (sujeito-objeto, sujeito-sujeito). Daí deriva que, em Kant, o sujeito moral
se constitui aquém de toda e qualquer determinação histórico-política: nunca está em
situação. Ao contrário, para Hegel, o sujeito se dá sempre em seu “estar em relação”, e é
desta relação (estabelecida na sua concretude histórico-política) que extrai o conteúdo do
seu comportamento. Esta perspectiva teórica hegeliana assinala o fim da ideia de que possa
existir um sujeito preconstituído com respeito à relação e, portanto, dotado de uma
arbitrariedade decisória absoluta, como se sua vontade e sua liberdade surgissem do nada.
Ele está sempre em plena história. A liberdade mesma não é redutível à escuta da própria
consciência e a uma práxis que de tal consciência seja imediata projeção. A liberdade é só a
forma que a ação do sujeito assume no seu estar em situação e na sua compreensão e
cuidado com a relação com os outros sujeitos (mesmo à custa de sacrificar a “consciência”).
Neste sentido, não pode haver só um direito subjetivo, porque o direito só existe no
momento em que se reconhece uma multiplicidade de sujeitos. O direito refere-se ao sujeito
e ao seu “outro”. Por isso, só existe como forma da relação, que reúne os múltiplos sujeitos
e lhes permite o recíproco reconhecimento. É neste mecanismo do reconhecimento que se
supera aquela liberdade subjetiva que ainda está marcada por uma relação senhorial, ou
seja, por aquela relação em que um determinado sujeito (o senhor) não reconhece o outro,
mas o reduz a “instrumento”, a medium para a apropriação da natureza. Por isso, sem uma
dialética do reconhecimento não se pode dar nenhuma moderna codificação do direito. Não
se pode dar nenhuma moderna democracia [18].
Mas, se tudo isso tem um fundamento próprio, é evidente que é possível imaginar um
desenvolvimento da ideia moderna de liberdade e de democracia para além daquela
determinada figura histórica constituída pelo Estado-nação. E é isso, exatamente, que
Gramsci encontra no modelo americano de desenvolvimento. O americanismo se apresenta
como a forma de governo do desenvolvimento que, mesmo permanecendo no âmbito do
racionalismo moderno e do industrialismo, sabe prescindir do estatalismo e ir além do
horizonte nacional [19]. Por certo, os Estados Unidos podem mais facilmente assumir a
perspectiva de uma Nação-não-Estado, porque já possuem uma composição demográfica
racional, ou seja, não sobrecarregada de parasitismos. Em vez disso, a Europa não pode
aumentar os salários, expandir o consumo e ampliar a cidadania, sem golpear privilégios e
rendas. E por esta razão a pretensão do regime fascista de modernizar o sistema produtivo
através da organização corporativa do trabalho fracassa: não é possível manter juntos
parasitismos e modernização; não existem as margens (políticas e econômicas) para inovar,
conservando os velhos privilégios. Por estas razões, a plena modernização das sociedades
europeias só poderá acontecer com base no antifascismo; com base num programa
democrático de eliminação de todo e qualquer tipo de parasitismo e atraso.
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Notas
[1] A. Gramsci. Quaderni del carcere [Q]. Org. Valentino Gerratana. Turim: Einaudi, 1975, p.
1.578-89.
[2] Q, p. 1.774.
[5] F. Meinecke. L’idea della ragion di Stato nella storia moderna. Trad. D. Scolari. Florença:
Sansoni, 1977, p. 434.
[6] Sobre as orientações ideais da cultura político-jurídica italiana entre os séculos XIX e XX,
cf. M. Fioravanti. “Costituzione, amministrazione e trasformazioni dello Stato”. In: A.
Schiavone (Org.). Stato e cultura giuridica in Italia dall’Unità alla Repubblica. Roma-Bari:
Laterza, 1990.
[7] Sobre a cultura da crise deve-se ver, naturalmente, M. Cacciari. Krisis. Milão: Feltrinelli,
1976. Mas sua interpretação por demais compreensiva deve ser equilibrada com a leitura de
D. Losurdo. La comunità, la morte, l’Occidente. Turim: Bollati Boringhieri, 1992.
[8] Q, p. 311.
[9] Cf. B. Croce. “Recensione a Th. Mann, Betrachtungen eines unpolitischen (Fischer, Berlin
1919”. La Critica, 20 maio 1920, XVIII, fasc. III, p. 182-3.
[11] C. Schmitt. Il Nomos della terra. Trad. E. Castrucci. Milão: Adelphi, 1991, p. 39.
[12] C. Galli, no seu volume Genealogia della politica (Bolonha: il Mulino, 1996), sublinhou
estes aspectos da reflexão schmittiana.
[13] Q, p. 1.756.
[15] Cf. L. Paggi. “Il problema Machiavelli”, em apêndice ao seu volume Le strategie del
potere in Gramsci. Roma: Riuniti, 1984; M. Ciliberto. Filosofia e politica nel Novecento
italiano. Bari: De Donato, 1982, p. 135-88; C. Donzelli. “Introduzione a Quaderno 13”. In: A.
Gramsci. Noterelle sulla politica del Machiavelli. Turim: Einaudi, 1981.
[16] Q, p. 1.577-8.
[17] Ib.
[18] Sobre estes aspectos da reflexão hegeliana, veja-se mais recentemente F. Siacca.
Imago libertatis. Diritto e Stato nella filosofia dello spirito di Hegel. Turim: Giappichelli, 1996.