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F ROL

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

V
publicação da prefeitura municipal de fortaleza #1 < outubro

MUCURIPE
FEITODELUZ
Regina Casé e a favela Um dia no Passeio Público o Campo do América
Nº1
EXPEDIENTE
Prefeitura Municipal
de Fortaleza
Fundação de Cultura, Esporte e Turismo
da Prefeitura Municipal de Fortaleza
Prefeita: Luizianne Lins
Presidente: Beatriz Furtado
Editora-geral: Ethel de Paula
Editoras adjuntas: Ana Cláudia Peres
e Silvia Bessa
Editor de fotografia e capa: Drawlio Joca
Edição de arte e editoração eletrônica:
Andrea Araujo
Projeto gráfico: Gil Dicelli
Colaboraram nesta edição: Ana Mary
C. Cavalcante, Cláudio Ribeiro, Clarisse
Furlani, Firmino Holanda, Maurício Lima
e Saul Ferreira.
Fotos: Celso Oliveira, Drawlio Joca
e Igor Câmara
Revisão: Ana Cláudia Peres
e Ethel de Paula
Jornalista responsável: Ethel de Paula
CE 01189-JP
Tiragem: 25 mil exemplares
Contatos: FUNCET
(Rua Pereira Filgueiras, 04 - Centro)
Telefone: (85) 3226.0838
E-mails: revistafarol@fortaleza.ce.gov.br
Distribuição gratuita na Funcet,
V
Secretarias Executivas Regionais,
equipamentos culturais, escolas públicas
municipais, terminais de ônibus,
associações de moradores, organizações
não governamentais, universidades
públicas e eventos da Prefeitura Municipal
de Fortaleza.
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editorial

de Janeiro”, levou até a atriz Regina Casé as

Rostos e
perguntas que a moçada da Central Única das
Favelas (Cufa-Ceará) fez sobre o programa
Central da Periferia, da Rede Globo. Ana Cláudia
Peres passou um dia inteiro no Passeio Público,

paisagens
a flanar. E eu fui ter com os moradores da
Quadra - “a mosca na sopa da burguesia” - e os
homens do mar que fazem a multiplicação dos
peixes no Mucuripe, um bairro simbólico para
nós. Simbólico não só porque habitamos essa
grande embarcação que é Fortaleza. Mas porque
foi ali, na enseada do Mucuripe, onde estão os
nossos faróis (o velho e o novo), que o navegador
espanhol Vicente Pinzón descobriu o Brasil antes
de Pedro Álvares Cabral, entre janeiro e fevereiro
de 1500. Coisas que a história oficial não conta,
mas a gente descobre.
De periodicidade bimestral e distribuição
gratuita, a revista Farol é uma afirmação de
nossas diferenças e também daquilo que nos
une e nos iguala. Quem faz a revista acredita,
assim como o escritor Ítalo Calvino, que as
O farol que ilumina mar adentro também Farol quer transitar entre as ruas e bairros da palavras têm que lutar sem descanso contra
chama para si, estreita distâncias, promove o periferia de Fortaleza, propõe o exercício de a dureza e impermeabilidade da paisagem
encontro entre diferentes origens e saberes. Não um jornalismo humanizador, voltado às formas urbana e que cabe a elas retirar peso do
à toa, portanto, ele é metáfora e inspiração para a alternativas de sociabilidade e invenção. O recorte mundo, construindo imagens de leveza. Daí
revista de mesmo nome que a Prefeitura Municipal é também para preencher uma lacuna visível no porque, na revista, imagem também é tratada
de Fortaleza lança através da Fundação de jornalismo brasileiro, que, em geral, optou pela como texto. Novamente, Brissac é quem nos
Cultura, Esporte e Turismo - Funcet. Farol é fruto superficialidade da notícia, por ser refém de uma aponta: “Um outro tipo de imagem é possível,
de uma decisão política afinada com a criação agenda cultural puramente mercadológica e pelo que faça surgir a coisa em si mesma, no seu
de instrumentos que possibilitem o encontro de texto telegráfico, “direto” e “objetivo”. Farol faz o excesso de horror e beleza. Uma iluminação”.
diferentes grupos sociais e territoriais. Projeta-se caminho contrário: quer contar histórias de vida Os fotógrafos Drawlio Joca, Celso Oliveira e
sobre a cidade polifônica, lugar da humanidade atemporais, operar com um conceito de Cultura Igor Câmara perseguiram essa iluminação,
plena, do cruzamento de distintos espaços e ligado à vida e não apenas às manifestações tentaram trazer à tona imagens da cidade
tempos, da troca de narrativas que dão sentido à artísticas consagradas, apostar na volta da que não sejam lugar-comum. E também, ou
vida e das inúmeras formas de reinventá-la. Em grande reportagem feita de narrativas. principalmente, aquilo que não é visível, o que
foco, alguns desafios: é preciso encarar a cidade “A rua é a mais igualitária, a mais socialista, nos passa despercebido ou não tem contornos
como o pintor encara a paisagem, dar conta do a mais niveladora das obras humanas. As ruas explícitos. Mas é preciso que se diga: nem a
aspecto sensível das coisas, enxergar o que há têm alma”, escreveu o cronista João do Rio. Por escrita nem a imagem dão conta da paisagem,
de eterno no transitório ou, como bem sintetiza o acreditar nele, fomos a elas, feito “caçadores de seja ela urbana ou humana. Muito nos escapa e
filósofo Nelson Brissac, “tornar a ver tudo o que borboletas”. Ana Mary C. Cavalcante conversou nos escapará. Porque as pessoas são mais <
foi soterrado pela civilização do clichê”. Exercício com seu Raimundo, um homem de alma e vestes
diário, intermitente, infindável, mas fundamental brancas que estende a mão no cruzamento das Ethel de Paula
quando a idéia é rastrear as muitas cidades que avenidas Rui Barbosa e Heráclito Graça. Cláudio Editora geral
existem numa só, para, enfim, redescobri-la. Ribeiro jogou nas onze no Campo do América.
Impossível compreender a cidade sem Maurício Lima caiu no samba entre o Pagode N.R. – O primeiro número da revista Farol é dedicado
entender a gênese e expansão dos espaços da Mocinha e o Bar do Zé Bezerra. Clarisse à memória da jornalista Christiane Viana, que, onde quer
populares. E aí está o nosso ponto de partida: Furlani, nossa “correspondente especial do Rio que esteja, ilumina nossas aventuras.

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ÍNDICE > 4 <
editorial

>8 <
no campo do américa

> 14
O HORÁRIO NOBRE
DO BRASIL REAL
<

> 18 <
PASSEIO AO AVESSO

> 22 <
RAIMUNDO DA CARMELINA
> 24 <
A PELEJA DOS HOMENS
NA CASA DOS PEIXES

> 36
JACARÉ DO MAR
E DAS TELAS
<

> 38
por dentro da
quadra
<

> 46 <
a favela pergunta,
a regina responde

50
> <
paisagem humana
A vida no campo do América segue por onde a bola for. A o campo mede 95x60m, quase medidas oficiais. Fala-se
arena é de areal. Onde a rede não proteger, a bola vai direto na que um dos moradores teria o tal documento de cessão.
cabeça ou porta adentro. Derruba um, assusta outro, bate num O órgão brigou judicialmente por muitos anos. Um dos
carro ou destelha a casa. O gradeado faz barreira para o bibelô coronéis governadores do Estado, Virgílio Távora, entrou na
da sala. De vez em quando, goooooool! Ao redor, quando o jogo história e intermediou a favor dos moradores, nos anos 70.
vale alguma coisa, lotação. Sempre lota. Há muitos anos. Houve querelas posteriores, mais interferências políticas e a
Seu Jurandir Martins, 65, mora em frente desde 1958. comunidade vai resistindo bravamente no seu lugar.
Chegou rapaz, quando fez uma casinha de taipa. Casou, Antes o campo se chamava Vargas Filho, segundo
melhorou a morada – “é minha mansão”. A saída da casa moradores mais antigos como seu Xudeca – que não sabe
Texto parece um túnel de estádio em direção ao gramado. Criou quem foi o homenageado. O nome América teria sido
Cláudio Ribeiro filhos e netos ali. A mulher o viu jogar a vida toda. Seu incorporado porque o América Futebol Clube, que disputava
genro apareceu por ali um dia pra jogar, namorou sua filha o Cearense, teve seu campo ali por perto até os anos 60. Era
e entrou pra família. Os filhos, já casados, ainda botam o estádio Américo Picanço, segundo o pesquisador Airton
Fotos
meião e chuteira. Os netos já dão seus dribles. Com quase Fontenele, que coleciona registros antigos do futebol estadual.
Drawlio Joca
todos do América é assim. Jurandir teve seu time, o Sporting O estádio era próximo de onde hoje está a torre da igreja do
(“King”), fundado em 14 de fevereiro de 1979, depois de uma Líbano (rua Tibúrcio Cavalcante), tinha arquibancadas de
brincadeira com amigos como José Armando. Dizem que era madeira e chegou a ser usado oficialmente para partidas do
muito bom meia-esquerda, assim como Zé Armando também Campeonato Cearense de 1945. Do tempo em que o ludopédio
tem fama de ter sido craque do meio-campo. (futebol) era disputado por “quipa” (keeper, goleiro), “centrefó”
A areia é fértil por lá. Já apareceram muitos bons de bola. (center forward, centroavante), midfield (meio-campista) e o
Para os gramados mais ilustres já saíram dali as chuteiras “referi” (referee, árbitro) dava o offside (impedimento).
de Marcos Durango, Moisés, Teté, Ribamar Buiú, Cacá, O time mais antigo era Os Bravos, fundado em 1958, que
Vaguinho... Se não foram grandes ídolos, na força da palavra, já não existe mais. Dos atuais, o Horizonte, de 1961, e o King,
mostraram muito valor por aí. Para os de casa, tiveram e têm de 1979. Uma curiosidade: Zé Armando conta que o King
reconhecimento até hoje. Jogavam antes pelo Horizonte do herdou as primeiras camisas d´Os Bravos, de listras verdes
seu Chico do Padre, pelo Francana do Assis Pimbinha, o e amarelas. No primeiro torneio que disputou, ganhou e, com
Vila Nova do Reginaldo, o King do seu Jurandir e do seu Zé o dinheiro da premiação, foi comprado o uniforme com listras
Armando, o The Gregs, do Gregório. Depois seguiram para amarelas e negras, cores que preserva até hoje.
tentar carreira no Fortaleza, Tiradentes, Baraúnas/RN, River/ Do meio para a linha de fundo, num dos escanteios, começa
PI, Maranhão Atlético Clube, Souza/PB... Voltaram, ainda um dos becos do América. Gente simples. Simpática, a mulher
estão tentando ou são só boleiros de sábados e domingos. dá o banho de fim de semana no cachorro debaixo da escadinha
Segundo seu Jurandir, a comunidade do América tem caracol. Pergunta pra que é a entrevista e ri da possibilidade de
hoje cerca de 600 famílias. Mais ou menos três mil pessoas. sair na matéria - “assim mesmo?”. “É”. Uma figuraça ao lado,
O quadrilátero considerado por eles como um bairro à parte já depois de uns goles desde cedo da manhã, almoça num
– encurralado entre prédios na divisa da Aldeota e Meireles prato raso e faz pose. Nem aí, enquanto os que vêem a cena
– fica entre as ruas Deputado Moreira da Rocha, José Vilar, riem do “novo ilustre”. Duas casas antes, outra simpatia, de
Costa Barros e Nunes Valente. São casas com o traço sorriso perfeito e invejável, estende a tira de meiões no varal
diferente em relação à vizinhança nobre. e imagina-se na capa – por que não? Muro sem portão, janela

NO CAMPO
A área total pertence ao INSS e tem o uso cedido – só aberta, vão dando boas vindas e deixando “a visita” entrar.

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DO AMÉRICA
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Naquele dia, o jogo valia alguma coisa. O ganhador levaria a
taça do torneio “Aniversário do Gama Futebol Clube, sob nova
diretoria” – como estava gravado – mais uma caixa de cerveja.
Seis times. O vice, outra caixa, pelo menos gelada.
Para a final, o Juventus da Varjota (que derrotara o anfitrião
na semifinal) trouxe boleiros como Samir, Eddie Murphy, Zé da
Silva, Muller, Onélio e o zagueiro Santos (ex-Ceará, Ferroviário,
Quixadá). O adversário seria o Mandacaru, outro time do Assis
Pimbinha, formado pelos “de casa” mesmo. Chegaram à finalíssima
por sorteio, porque um time não apareceu.
Quase no final do primeiro tempo, o zagueiro tenta um drible
e entrega o ouro: 1 a 0. Ô mancada. Já não bastava o Juventus

TINHA
ser muito melhor? Pois no segundo tempo os “barrigas” e crias de
casa do Mandacaru apertaram o jogo, bateram boca, xingaram,
dedo na cara, tanto fizeram que, no finalzinho, falta duríssima na
área e...pênalti? Nada. Confusão grande.

QUE TER
O árbitro, José Araújo dos Santos, porteiro de profissão,
não deu a penalidade máxima. “Como não tem área, mandaram
que contasse 11 passos até o meio do gol. Deu 14 passos, então

BATE-BOCA
não foi pênalti. É o regulamento do torneio”, explicou-se depois.
O bigode dele suou na discussão. Na batida da falta, a bola ainda
bateu no travessão. Ficou mesmo no 1 a 0. Festa para o Juventus,
cerveja de consolo para o Mandacaru.

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mandaram que contasse 11 passos até o meio do
gol. Deu 14 passos, então não foi pênalti >>>

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ELES SEGUIRAM
A FAMA
O meio-campo prometia: era ele, Netinho lembra o próprio
mais Erandir, Jônatas e Clodoaldo. Jônatas, que nunca jogou na 1ª
Era um miolo de time pra ninguém Divisão do Cearense. Porque
botar defeito. Ganharam tudo pelas preferiu pegar seu passe com o
categorias Sub-17 e Sub-18 do clube, à época, e ir jogar no União,
Fortaleza Esporte Clube dez anos um modesto time de suburbão
atrás. Era um quarteto tão bom da Vila Manoel Sátiro - onde um
que quase todos seguiram carreira olheiro o notou e o levou para o
no futebol. Erandir hoje está na Flamengo. Do quarteto, Netinho
série A do Brasileirão, no Atlético lembra que Clodoaldo sempre
Paranaense; Jônatas deixou o chamou atenção por seu futebol
Flamengo e agora joga no time do de adulto entre os juvenis. Alguns
Espanyol, enfrenta Barcelona e Real anos atrás, descobriu-se que a
Madrid no campeonato mais caro do impressão era talento e fraude:
Seu Xudeca, o morador mais antigo: casaria com a mesma mulher de novo mundo; e Clodoaldo, o incorrigível, o Capetinha era “gato” por três
mesmo na descendente, ainda anos. Gato é a gíria para o jogador

VIDA BOA DE inflama a torcida alvinegra. Os


três deslancharam, viraram ídolos,
que, por má-fé, diminui a idade
verdadeira para permanecer entre

SE OUVIR ganharam fama e reverência no


gramado... menos Netinho, que
voltou a ser peladeiro do campo
os mais novos.
Netinho não viu o próprio
sucesso, mas já torce, ao
O campo do América ainda novo”, fala apontando para a foto do América. lado da mãe, dona Irismar,
nem era campo, a Aldeota e o na estante. Declaração de amor. Ildefonso Venâncio Neto hoje tem pela glória do irmão Diego,
Meireles nem eram a vizinhança A vilinha de casas era terreno 25 anos, é casado, tem um filho de de 13 anos. O menino já é
mais r ica dependurada nos seu. Comprou por 300 mil réis. um ano e dois meses e trabalhava reconhecido no futsal da cidade.
prédios, quando seu Xudeca Os outros foram se chegando. até pouco atrás no setor de frios Joga pelo Círculo Militar, que
chegou por ali, antes de 1945. É Uma das filhas mora duas casas de um supermercado. Hoje está fica ali pertinho de casa. Na
o morador mais antigo. O Brasil depois. Xudeca passa o dia ali desempregado. “Deixei o futebol sala de dona Irismar, aliás, as
tinha ido à guerra mundial e ele do lado. Pisou muito na areia por causa de um problema de várias medalhas, fotos e troféus
ouvia falar do assunto por alto. frouxa do campo do América pela ligamento no meu joelho. Também confirmam. Para ela, o futebol
Era jovem, não tinha estudo, lateral direita, quando o nome por causa de oportunidade. Nesses de seus meninos, aprendido
nenhuma lembrança da mãe que ainda era o campinho do Vargas times, muitas vezes só jogam os no campinho de terra frouxa, é
perdeu quando tinha seis anos e o Filho. Jogou pelo Os Bravos, protegidos”, conta. antes de tudo um orgulho. <
pai o expulsara de casa porque a famoso entre os mais antigos da
madrasta não simpatizava. Viveu rua José Vilar. Na Cidade dos
com a tia que lhe deu abrigo. Funcionários, onde estão vários
Carregou peso trabalhando, de sua família, fundou em 1975
puxando enxada. Depois foi parar o Aurora, com um uniforme que
lá. Diz ter cortado muita vara e lembra o Grêmio gaúcho. O time
arrancado tocos e mais tocos é só de filhos, netos, genros e
onde hoje é o campo. agregados. A foto está na sala,
Aos 14, meninote, numa viagem um orgulho.
a Pacajus, conheceu dona Maria Só o repórter o chamou pelo
Augusta. Namorou dois anos, nome de batismo: Ildefonso
casou ainda menino. Tiveram Venâncio. O apelido é da infância,
20 filhos (seis morreram), “uns de casa mesmo. Aos 78 anos,
50 netos”, bisnetos. Ela se foi há seu Xudeca é um senhor forte,
apenas um ano e dois meses. Ele conversador, sabe suas histórias
hoje mora sozinho. “Se pudesse, de cor. Tem várias. “Você tem
me casaria com essa mulher de tempo pra me ouvir?”, adverte. O meio-campista Netinho, um quase ídolo

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O HORÁRIO NOBRE
DO BRASIL REAL
Sexta-feira, pouco depois das oito da noite. Texto Embaixo do pé de benjamim, que acolhe e
Enquanto o casal nacional William Bonner e Maurício Lima delimita o “palco” para a reunião de bambas, a
Fátima Bernardes “reina” nas TVs Brasil afora, mesa principal nem precisa de placa indicativa
entediando o país com as últimas notícias de Fotos de “reservado”. Ali vão tomando assento os
sempre, na fronteira da Praia de Iracema com Igor Câmara tocadores, cada qual com seu instrumento. Banjo,
a Aldeota, um botequim com pouco mais de 30 bandolim, tantan, tamborim, repique-de-mão e
metros quadrados, mesas espalhadas ao ar livre, pandeiros pulsam nas mãos de Gegê, Felipão,
atrai praticantes e simpatizantes do samba. Vai Chico, Fernando, Chaveirinho, Dona Irinéia...
começar o lendário pagode da Mocinha. - Espera aí, o que faz aquela senhora no meio
A história se repete há 28 anos. “Começamos da roda de samba?
em 4 de agosto de 1978”, conta Dona Mocinha, Aquela senhora é Dona Irinéia, que “bate ponto”
com o RG e o DNA do bar na cabeça. “Um três vezes por semana no pagode da Mocinha.
engradado de cerveja e três garrafas de cachaça”, O gosto pela música veio do berço. De família
era todo o estoque. A freguesia se resumia aos abastada, com três pianos em casa, tocados em
“meninos aqui de perto: Dílson, Gegê, Rogério, recitais, Irinéia se apegou ao pandeiro aos sete
Raulino, Marcos Negrão, Haroldo, Joel... Quem anos e, desde aquele tempo, já são mais de 70
estudava pela manhã vinha pra cá à tarde; quem tocando instrumentos de percussão.
estudava à tarde passava aqui antes de ir para Desde 1990 é titular do pandeiro no palco-
a escola. Quando era de noite, juntava todo benjamim. Aposentada depois de trabalhar 38 anos
mundo”, conta Mocinha, orgulhosa de ser uma em São Paulo, a maranguapense – “bote aí que
versão cearense de Tia Ciata. (N.R.- A casa de Tia não sou parente do Chico Anísio”- chegou na área
Ciata, baiana radicada no Rio de Janeiro, ganhou por meio do sobrinho médico que trabalhava com
fama no início do século passado graças a festas Mocinha no Posto de Saúde do Mucuripe. De lá para
que varavam dias e noites, atraindo músicos e cá, Dona Irinéia tem cumprido religiosamente sua
compositores, a maioria negros. Foi numa dessas missão. Meia-hora antes do início do samba – 21h,
farras regada à música e dança que surgiu “Pelo na sexta, e 19h, aos sábados e domingos – ela desce
Telefone”, o primeiro samba gravado). Dona Irinéia, uma pagodeira inveterada. do táxi já de pandeiro em punho. E haja samba...

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Iraci
“espilicute”
Entre um acorde e outro, Mocinha – que,
apesar de louca por samba, não canta nem
toca nada – explica que muitos dos seus
meninos viraram músicos profissionais e hoje
ganham a vida animando rodas de samba
pela cidade afora. Aqui, acolá voltam para
debaixo do benjamim para dar uma canja,
que ali ninguém ganha dinheiro para tocar.
Amante do samba, apaixonada por carnaval,
conta a história dos desfiles dos quais participou,
sempre na ala das baianas. Em Fortaleza, foi
uma das fundadoras da Escola de Samba
Girassol, desfilando nos carnavais do final dos
anos setenta, fazendo rifas e bingos para ajudar
a escola a sair. Desiludida com o carnaval
de Fortaleza – “aqui é tudo muito fraco” –, já
contabiliza mais de 20 participações no carnaval
carioca: União da Ilha, Caprichosos, Portela,
Império Serrano, Grande Rio... Os contatos
surgiram ali mesmo. Turistas vips – “gente da
Globo” – que vieram ver o samba da Mocinha
e a levaram para desfilar no sambódromo. “O
Neguinho da Beija-Flor veio aqui um domingo
desses e ficou horrorizado quando viu uma
roda com três violões de sete cordas”, conta
orgulhosa. Surpreso com a qualidade dos
músicos, o puxador campeão de inúmeros
carnavais do Rio, comentou: “pensei que aqui
só tocavam forró”.
- Dona Mocinha, anote mais duas aí na
mesa quatro, daqueles turistas, recomenda
o garçom.
Sem descuidar do ofício de dona de bar,
dona Iraci Batista de Sousa, que na próxima
véspera de Natal completa 71 anos, conta
que ganhou o apelido do pai aos dois anos,
por ser a mais “espilicute” de uma récua de 16
filhos. Aposentada como atendente de posto
de saúde do Estado, viúva há 45 anos, garante
que o pagode da Mocinha ainda vai ser ouvido
por muitos anos. “O samba aqui nunca parou.
E não vai parar nunca”.

serviço
> Pagode da Mocinha - Rua Padre Climério,
170 - Praia de Iracema.

Dona Mocinha, a rainha do pagode

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pa g o
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V
De batucada em batucada. Saindo da Praia
de Iracema, outro samba, no outro lado da cidade.
Este também não tem patricinhas de piercing no
umbigo tomando cerveja long neck de canudinho.
Também não tem coca-cola light. É o Bar do Zé
Bezerra, no Parque Araxá, outro dos templos
desta cidade que se descobre sambista.
No Zé Bezerra, o samba vem rolando há quase
trinta anos. No princípio era uma mercearia que
vendia cereais e bebidas, com uma mesa de
sinuca. Quem conta a história é Régio Guimarães,
um dos “fundadores” do local, juntamente com
Carlão, Miguel, Klebão, Marquinhos, Jânio, Baú,
Cheirinho, como faz questão de deixar claro, para
não cometer injustiça com os amigos.
“Na verdade, seu Zé somente aceitou a gente
porque a maioria dos sambistas era filho dos
amigos e vizinhos. Só com o tempo ele passou
a gostar do movimento”, explica Carlos Alberto
Vieira, radiologista do hospital da PM e um
dos primeiros a tocar violão naquelas plagas.
Hoje, é um dos organizadores do samba – toca
cavaquinho e é o dono das caixas amplificadoras.
Nesse tempo todo, gaba-se de nunca haver
inteirado um mês sem dar as caras.
Aliás, a informalidade da curriola é a característica
mais marcante do espaço. Não há quantidade de
músicos definida. Quem vai chegando, se tiver seu
próprio instrumento, puxa uma cadeira e se junta
à mesa principal. Se não tem, fica aperreando
- “deixa eu tocar um pedacinho”- ou espera que
alguém vá ao banheiro para dar o bote. O resultado
disso é que chegam a tocar até 30 pessoas em
cada tarde. No repertório, pérolas de Cartola,
Paulinho da Viola ou Bezerra da Silva, mas o
campo permanece aberto para experimentações.
Como fica, por exemplo, “Amada Amante”, de
Roberto Carlos, em ritmo de samba? Só indo no
Zé Bezerra para saber.
No entra-e-sai de músicos, vez por outra
aparece um saxofone, um baixo ou uma flauta
transversa. Sem problemas, é só encostar. De
repente, ao cair da noite, chega Seu Mazinho da
Sanfona. Desembainha o acordeon e saca uma

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A FAMÍLIA BEZ
V
enfiada de chorinhos, com direito às magistrais
“Escadaria e Espinho de Bacalhau”. Tudo muito
bem acompanhado, registre-se.
Seu Zé Bezerra, que até hoje dá nome ao HISTÓRIAS DE
MESA DE BAR
bar, morreu em abril de 1994. A partir de então,
quem assumiu o lugar foi a filha Regina, de
temperamento forte e sem papas na língua.
Tanto que foi apelidada de Dona Lunga, pela Anexo ao bar/mercearia, Zé Bezerra mantinha
semelhança em amabilidades com o famoso uma venda de frangos. Certa vez, um freguês
comerciante de Juazeiro do Norte. É Totonho chegou e perguntou, desdenhando da mercadoria
Montenegro quem revela esta parte, que não para reduzir o preço.
falta gente para contar mais detalhes a respeito - Zé, esse frango parece que está meio velho.
da história do local. De quando é?
O aspecto “família” é ressaltado por todos os - Sei lá. Eu vendo frango é pelo peso, não é
freqüentadores, a maioria com raízes no próprio bairro. pela idade, não!
E aí foram chegando os amigos, depois os amigos dos
amigos, e os conhecidos dos amigos... Tanto que até A um freguês que perguntou se a galinha era
hoje as festas tradicionais são comemoradas no bar. caipira, Seu Zé Bezerra tascou:
Nas paredes que não nos deixam mentir, fotografias - Caipira? É sim, mas com seis meses na
– umas já amareladas, outras não – registram capital, já tá cheia de frescura.
passagens de festas juninas, Dia das Mães, malhação
de Judas, Natal e Dia dos Pais. Com direito até a Um amigo da casa chamado Cicinho deu um
lembrancinhas. E haja cerveja... E haja samba... xêxo, deixando umas cervejas sem pagar. No
Zulene Coelho é mais uma das figuras outro sábado, ia passando em frente ao bar com
adotadas pelo bar. Chegou ainda criança, Mazinho da Sanfona: chorinhos
pressa, cumprimentou os amigos e já ia saindo
acompanhando o pai, que morava quase vizinho e quando foi abordado por Zé Bezerra.
não tinha filhos homens. “Ficava ouvindo o samba, - Olhe, moço, tem cinco cervejas suas aqui...
ia buscar tira-gosto em casa pros amigos do pai,

NA SOLA
- É? Beleza. Pois bote pra gelar que mais tarde
até que seu Zé dizia: ‘isso não é lugar de menina’. eu volto pra beber com os meninos.
E convencia meu pai a me mandar pra casa”.
Só passou a freqüentar por vontade no final da
adolescência, época que coincidiu com a posse E NO Um papudinho do bairro chega no balcão e
pede uma dose de cana. Zé Bezerra serve meio
da amiga Regina no bar. Umas das primeiras
providências da nova gestão foi fazer um
banheiro feminino, algo impensável nos tempos
TAMBORIM a contragosto. Em seguida, faz o pedido.
- Seu Zé, arranje aí um tira-gosto de galinha.
- Pois não, atendeu de pronto Zé Bezerra,
do conservador Zé Bezerra, para quem “bar não Do Francisco Pereira da Silva colocando um punhado de caroços de milho em
é lugar para andar mulher direita”. da certidão de nascimento faz cima do balcão.
Com o tempo, Zulene e Regina ficaram grandes tempo que não se ouve nem
amigas. É ela, com os olhos marejados, quem dá a falar. Para todos do samba do Zé Na porta de casa, Regina dá R$ 0,50 de esmola
notícia: quatro dias antes da visita da reportagem, Bezerra, ele é somente o Chico a um mendigo que passa. Minutos depois, ao
Regina havia falecido, depois de lutar bravamente Sapateiro. Aos 62 anos de idade e chegar na mercearia da esquina, dá de cara com
contra um câncer. Quem vai puxar o bar – que não há décadas morando e trabalhando o mesmo mendigo tomando cachaça. Enfurecida,
fechou nem no dia do velório – agora são Fátima e nas redondezas, garante que bate ela reclama:
Célia, irmãs de Regina, filhas de Zé Bezerra. Elas tão bem na sola quanto no tamborim - Tenha vergonha. Você me pediu dinheiro e
assumiram o lado de dentro do balcão. No lado ou na frigideira. Sócio-fundador e está tomando cachaça...
de fora, o sobrinho Marcos Paulo faz as vezes de voluntário com alma de militante, - Queria o quê? Que eu bebesse uísque com
garçom. O samba chega literalmente à terceira que além de não ganhar para tocar, os R$ 0,50 que a senhora me deu?
geração. Dos de sangue e dos agregados, que a ainda faz questão de pagar a cerveja
família Bezerra ali é grande. que consome, Chico garante que a Zulene, uma das muitas amigas de Regina,
“A gente segura o samba por aqui. Não vamos presença de “invasores” de outras certa feita ganhou na loteria. Correu para avisar à
deixar parar”, garantem Cristina, Vanda, Jarbas, áreas não preocupa nem um pouco. amiga e prepararam uma festa no bar. Regina abriu
Washington, Eduardo 7 cordas, Miguel, César... Ao “Nem quando eles tomam seu lugar uma exceção e fez o samba na segunda-feira, por
saberem da intenção da matéria, pedem para dar o na mesa?”, pergunto. “Não, que conta da ganhadora. A conta, obviamente, ficou
adeus pelas páginas da Farol. “Valeu, amiga”. aqui tem lugar pra todo mundo”, pendurada para quando recebesse o prêmio. No
No samba do Zé Bezerra, garantem todos, responde sorrindo antes de voltar dia seguinte, ao conferir novamente o cartão,
ninguém vai tocar a saideira. correndo para não deixar o samba ressaca em dobro. Ela não havia ganho nada. O
atravessar. resultado é que teve que ralar um bom tempo até

ERRA
conseguir quitar o débito.

Na porta de um freezer carregado de cervejas


serviço até a tampa, que ali a sede é muita, o providencial
> Bar do Zé Bezerra - Rua Dom Manoel aviso: Cerveja faz mal... Quando falta. Alguém
Medeiros, 171 - Parque Araxá. discorda? <

outubro F ROL 17
V
O dia tem 25 horas ali, no retângulo verde
de quase 11 mil metros quadrados, esquina
das ruas Dr. João Moreira com Barão do
Rio Branco. Vista para o mar. Onde Vera
Peixeirão, 27, conheceu Fulano – o atual
companheiro cujo nome ela não quer dizer

PASSEIO
– durante um programa que lhe rendeu
prováveis 15 contos há exatos quatro anos.
É assim no Passeio Público. A história
acontece quando você menos espera.
Devagar e sempre. O tempo todo.

AO
Dona Conceição, a “Tia”, que vende
merenda no local desde o começo da
década de 80, acha aquela “a praça mais
bonita de Fortaleza”. Sabe que o lugar tem

AVESSO
passado, mas não dá muito ouvidos para o
guia turístico que, terça-feira sim, terça não,
aparece por lá com o grupo da Terceira Idade
contando sobre a Confederação do Equador,
o Padre Mororó e o fuzilamento dos mártires.
Prefere o converseiro das moças ao seu
redor que pagam “a partir de R$ 2,00” por
um pratinho de galinha cozida ou frita, com
arroz, farofa de cuscuz e ovo. “Vendo fiado
também. Às vezes, é tudo fiado. A maioria é Texto
gente conhecida mesmo”, ela diz. Ana Cláudia Peres
Parece boa a comida da “Tia”. Naquela
tarde, ela alimentou os engenheiros da Fotos
companhia de luz que trocavam as luminárias Celso Oliveira
do lugar, o funcionário da loja do Centro, o
moço que encostou a bicicleta no banco e
nunca mais foi embora, o do carrinho de
frutas, o vendedor de escovão, três ou quatro
passantes que tomavam um atalho, as
garotas de programa quase todas. “Trabalho
aqui. Adivinha fazendo o quê?”, puxa
conversa Rejane, que há cinco anos pega
dois ônibus para ir do Conjunto Ceará até o
Passeio Público, onde faz programa. “Todo
dia tem um pinga-pinga. Dá pra fazer até três
por dia”, contabiliza, raspando o prato antes
de se preparar para o primeiro.
Outra, Cláudia, 34, acaba de chegar do
interior onde mora com o marido, depois
de duas semanas de folga, para cinco
dias de trabalho. Pretende ficar no Motel
Atlântico ou no 24 Horas, a alguns passos
do Passeio. De terça até sábado, vai fazer
tudo sempre igual. Levantar cedo, já com
cliente; atravessar a rua; merendar na “Tia”;
seduzir o segundo, o terceiro; merendar na
“Tia”; seduzir o quarto. Cobra R$ 20,00 por
cada. Mas não é porque gosta, confessa.
“Se fosse por gostar, eu tava era em casa,
amando só o maridão”. Diz que o ponto já
teve dias melhores: “É mulher demais! Em
todo canto tem mulher!” Pelas suas contas,
ali são cerca de 50.
É que o Passeio é público e democrático.
Do mesmo modo que a Cláudia disputa

18 F ROL outubro
V
os fregueses com as outras 49, a “Tia” vê seu
lanche enfrentar a concorrência da dona Valda
Fernandes, no extremo oposto da Praça, e da
Verinha Gomes, outra que oferece café e dengo
pras meninas. Também seu Eliseu Aguiar, 72,
que naquela tarde integrava o Grupo da Terceira
Idade, vai precisar deixar de ser reclamão e aceitar
dividir o espaço. Mesmo que ache, como ele acha,
que no tempo dele era mais tranqüilo. “Agora tem
muito vagabundo e essas mulheres levianas. Faz
até medo a gente freqüentar”, resmunga.
Antes, muito antes até do que a época do seu
Eliseu, o Passeio Público já foi Campo da Pólvora, Manhãzinha e fim de tarde, o Passeio é
Largo da Fortaleza, Largo do Paiol, Largo do verde-oliva. O cooper. É lá que os soldados da
Hospital da Caridade, Praça da Misericórdia e Praça 10ª Região Militar - vizinho mais imponente da
dos Mártires. Diz o guia que no meio da Praça praça - costumam fazer suas corridas. Chovia
estava localizada a prisão subterrânea. Era lá que fino em Fortaleza aquele dia de setembro.
ficavam os heróis da Confederação do Equador – Mesmo assim, a rotina do Passeio Público
João Andrade Pessoa Anta e Padre Mororó, entre seguia. Entre os soldados, metida num saco
eles – antes de serem fuzilados em 1824 também de lixo, feito um parangolé, dona Ana Lúcia,
ali onde hoje as meninas trocam dinheiro por amor. catadora, pedia R$ 1,00 para dar entrevista.
Naquela tarde, enquanto dona Ana Diana, 80, se Queria tomar café, mas andava desconfiada
divertia com a coincidência de seu nome batizar porque, na véspera, lhe passaram a perna. Dona
também a deusa grega em forma de estátua, Ana Lúcia ainda guarda o santinho da candidata
o guia continuava explicando que a construção que lhe prometeu uma dentadura. Mas estava
do Passeio Público foi iniciada em 1864; que ele injuriada: “Fui lá no endereço que ela me
era dividido em três níveis destinados às classes mandou. Perguntaram do meu título. Como eu
rica, média e pobre; que o local foi tombado como não tenho, eles não me deram a chapa”. E se
Patrimônio Histórico Nacional; que a caixa d´água tivesse título, em quem votaria? “Não sei. Só
imponente é da mesma época da reinauguração não ia votar no “Morongo”, que ele não gosta
do local, em 1992; que nessa data foram colocadas de muié igual essas não”.
grades e colunas, um coreto e um quiosque onde já A cabine da Polícia Militar já não existe mais.
funcionou café e restaurante, trazendo de volta as Policiais de moto fazem batida e a ronda da Guarda
antigas características do Passeio Público; que os Municipal de Fortaleza também inspeciona o local
vasos franceses que já nem existem mais são da algumas vezes noite-e-dia. É da Guarda que vem
Belle Époque; que o estilo do lugar é neoclássico; a informação de que o Passeio Público tem “uma
que o Baobá é uma árvore africana e que aquele gerente” – assim eles se referem à mulher que,
ali já tem 150 anos... segundo contam, é uma espécie de cafetina da
Ao redor da Verinha do lanche, M. C., de apenas área. Se o cargo existe mesmo, o código de ética
16 anos, perdeu a oportunidade de assistir a aula das meninas do Passeio não permite entregar.
de história que ela provavelmente abandonou no Todas negam. “Mãe que é mãe a gente deixa em
colégio para descolar algum. Conta que estuda e casa. Aqui é a Lei do Murici. Ganha quem é mais
que aquela é a primeira vez que vai ao Passeio forte. É na peia, é na chibata. Não tem isso aí não”,
Público. “Mas eu não quero falar mais nada diz Vera Peixeirão.
não”, encerra a conversa. OK. “Aqui, ninguém se O Passeio Público é como o mundo todo. Na
mistura. Elas ficam do lado delas e eu do meu”, mesma tarde cabem ainda o grupo de turistas
diz Verinha, viúva, moradora da Barra do Ceará, estudantes do Colégio Batista, o da Universidade
que faz questão de frisar que está ali só pra vender de Passao, na Alemanha, os dois mochileiros
merenda e que não tem nada em comum com de guia na mão; o casal de adolescentes que
as meninas. Talvez só mesmo a jóia de mentira chegou cedo demais para a sessão de Zuzu
que ela resolveu pôr em quase todos os dentes Angel, no Cine São Luiz, a três quarteirões dali, e
da boca, vários falsos-piercings, como fizeram aproveitou para namorar no banco que talvez um
as outras. Com cola comum mesmo. Comprou dia tenha sido de Dona Zezé e Moreira Campos
um pacotinho por R$ 10,00 - para desespero de - o escritor cearense de Dizem que os Cães
Lidiane Ramos, 21, essa de sorriso lindo e corpo Vêem Coisas uma vez revelou em entrevista
escultural, que acha absurdo o preço que a Verinha que tinha um banco só dele no Passeio Público;
gastou no “piercing dentário”. Jura que não pagaria o português leitor da Caros Amigos que escolheu
um centavo do seu ganha-pão por tal vaidade. o Passeio Público apenas “por querer ficar em
Lidiane chega a sair com R$ 120,00 no bolso em dia paz”... Mas aí já começa o terceiro turno. Mudam
bom. “Ontem, fui embora foi cedo porque não tava as regras. Poucas meninas ainda permanecem
prestando pra nada, mas hoje vamos ver se dá”, de botuca. Na calçada, Priscilla faz ponto. “Nessa
torce. Mora com o pai, mas agora vai se juntar com hora é perigoso, mas é melhor. É quando passam
o namorado. Ambos sabem de sua profissão. “E eu os clientes de carro”, diz ela. Ou ele. À noite,
já disse que se quiserem é do jeito que sou”. todos os gatos são pardos.

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V
queria era arrumar um emprego e não

O BÊ-A-BÁ DA SEDUÇÃO
- Vem pra cá macho, tá com medo, é? engraçar mesmo”, diz o moço, a essa altura
Pode começar assim a conquista. já se engraçando pela Cláudia. Só perde a
Mas pode ser mais sutil. Vestida numa graça mesmo quando ela revela que não
camiseta de lycra onde se lia: “Girlie tem perigo de se apaixonar por nenhum
woman: peace to the world”, Cláudia cliente. “Sou profissional. Enquanto o
conversava há horas com um bombeiro homem tiver dinheiro do bolso, a gente ama,
hidráulico que resolvera se dar folga por a gente adora. Depois, acabou”. Acabou
conta própria. “Já liguei pra empresa e para ele que, justo naquele dia, contava as
disse que tava doente. Hoje, tirei pra moedas para pagar o café da “Tia”.
curtir e quando tiro pra curtir é assim - “Vambora, Cláudia!”, passa a colega.
mesmo”, conta o rapaz que não quer ser Cláudia explica que, no jargão das meninas,
identificado, informando que aquela é “a isso é uma superstição. “É pra dar sor te.
primeira das mil vezes” que ele pisou no Quando uma vai, chama a outra”, diz.
Passeio Público. “Mas é muito difícil eu - E dá sorte?
ficar com as meninas daqui. Só se eu me - Eu já nasci com sorte!

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ver minha Jurunão ser explorada >>>

UMA TARDE
COM AS MENINAS
Vera Peixeirão tem um companheiro do lado de fora do
Passeio Público. Lá dentro, ela protege Juruna, a quem
chama de namorada. E tem aquela que namora aquela outra.
Todos respeitam e que ninguém se meta a esperto. Nem
a repórter queira saber sobre a intimidade dos casais. “Se
bater foto da minha mulher, vai ter que pagar 15 contos”,
avisa Vera para o fotógrafo. “Queria era arrumar um emprego
que não agüento mais ver minha Jurunão ser explorada.
Aqui, nós somos tudo uma família”. A outra queria mesmo
era fazer as pazes com a namorada, na base da moeda.
“Cara ou coroa?”, tentou brincar. Sem chance pelo menos
por enquanto. Juntas, elas cuidam da Princesa e do Paulista,
um casal de vira-latas que virou xodó das meninas.
De amigo homem, tem o Welinton Freitas, guardador de
carros, espécie de hóspede número 1 do Passeio Público.
“Morei 9 anos aqui. Tomando sol e chuva, alegria e tristeza.
Agora, me deram uma oportunidade e tá dando pra pagar
um motel. Mas quando não dá, eu volto pra dormir aqui
de novo”, conta. São mais dois os moradores do Passeio
Público. Todos riram quando souberam que, antigamente,
no local havia grandes quermesses para ajudar a Santa
Casa de Misericórdia e que o ponto alto das festas eram os
concursos “de beleza feminina e de fealdade masculina”.
No dia da reportagem, pode ser que os clientes tenham
ficado envergonhados. Diz Vera que não ganharam dinheiro
nenhum. “Mas nós achamos graça que só”, completa.

TRONCO
CASAMENTEIRO
O Baobá gigante, na entrada do Passeio Público, pode ser uma árvore originária
da África. Pode ser raríssimo. Pode ter sido plantada ali pelo Senador Pompeu. Pode
ter 150 anos e durar entre 3 e 6 mil, como informava o guia. Mas quando foi tocado
pelas senhoras da Terceira Idade em visita ao local, o significado era outro.
NA VIZINHANÇA
Junto com o Forte de Nossa Senhora da Assunção, o Passeio Público
“Dizem que quem pega no tronco do Baobá, casa de novo”, brincou o guia. Por deve ser o habitante mais ilustre do quarteirão. Nos arredores, tem o
via das dúvidas, dona Nazira Severiano, 84, dona Dolores de Moura, 75, e dona Motel 24 Horas e o Atlântico, uma agência de turismo, uma sorveteria,
Diana, 80, partiram para o abraço. Às outras mulheres que dia-e-noite tiram uma dois restaurantes, um estacionamento e uma clínica – isso sem contar
casquinha do Baobá restava o riso de ironia e desprezo. a Santa Casa de Misericórdia, a Associação Comercial do Ceará e
Feliz da vida, Dona Diana relembrava o tempo em que freqüentava o Passeio o prédio do Antigo Hotel do Norte, que está sendo restaurado para
Público. “As mães não queriam que a gente namorasse com os rapazes. Aí, a abrigar a Orquestra Filarmônica, o Memorial da Indústria e o Instituto
gente vinha escondido. Ligava pros rapazes, marcava com eles e deixava que eles dos Arquitetos do Brasil-Ce. No Hotel Passeio, com banho a R$ 1,50,
esperassem aqui. Só que às vezes a gente dizia que vinha com uma roupa e vinha a gerente Ana Paula informa que agora o hotel é familiar. “Antes elas
com outra. Pra enganar eles que ficavam pra lá e pra cá”, diverte-se. Talvez seja usavam para programa. Mas há seis meses mudou de dono e elas
dessa época a origem de tanto nome e coração rabiscado no tronco do Baobá. agora entenderam que não podem”, diz, na sua. <

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raimundo da carmelina

Texto
Ana Mary C. Cavalcante

Foto
Igor Câmara

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Porque nos acostumamos a encontrá-los já velhos e feito ladrilhos da A véia chegou e disse, ‘Raimundo, amanhã não tem nada’. Eu abaixei a cabeça,
paisagem urbana, é bom que se saiba: ele tem um nome, Raimundo. (E um doente. Aí, recebi a mensagem: ‘Quem não tem...’. Fui e compretei: ‘Vai pedir a
nome carrega uma vida inteira). “Nasci dentro do ter: meu pai, minha mãe quem tem’. Aí, de manhã, eu tinha uma cesta em casa, ‘Mulher, vou vender cajá’.
possuindo as coisa. Tinha sítio na Aratuba (parte do Maciço de Baturité, a 122 Peguei a cestinha, num tomei café porque não tinha, saí. Agora, pra essa mão
quilômetros de Fortaleza) e no município de Canindé (casa sertaneja do Santo de pedir, que nunca tinha feito isso, era pesada... ‘Ah, Senhor, tira o peso dessa mão’.
Assis, a 113 quilômetros da capital cearense). Filho de papaizim e mamãezinha Vim pelo Zé Walter. Quando cheguei na Serrinha, magro, disseram: ‘Olha o véim,
vai brincar... Era o meu caso. Brincava. Fiz a minha infância, graças a Deus”, tá fazendo o quê?’. ‘Pedindo uma coisinha, pra levar pra minha veinha’. Quando
apresenta-se, enquanto tira a identidade do bolso, o 3X4 que lhe remoça e o foi dez hora do dia, eu já tava pedindo a Deus pra me dar força pra carregar a
cura, a carteirinha da Clínica do Rim, o receituário. cesta! A cesta tava cheia: arroz, feijão, farinha, açúcar, um pedacim de carne, um
“Tenho 22 irmão. Meu pai casou três vezes. Eu fui da primeira família. A ovim, uma moedinha no bolso”.
minha mãe morreu, eu com nove meses. Aí a minha tia, exatamente essa que Nem sempre foi assim, severina. Antes da doença e dos (des)ajustes econômicos,
possuía as coisas, tomou conta de mim. Eu, na mão desses dois velhos, pintei o a vida “era beber cerveja e dar uma voltinha de noite”. Seu Raimundo, “nascido
molequinho! Brincadeira de menino, naquele tempo, era pegar calango, rebolar dentro do ter”, era dono de restaurante. Também foi garçom nos bailes do Náutico,
pedra, puxar carrim... Fui cruzada da religião católica, ia à missa, ao catecismo. do Massapeense, do Cirandinha, do Comercial, do Roda Gira, do Círculo Militar.
Estudei no melhor professor de Canindé, Evaldo Neto. Aprendi a ler e a escrever. “Possuí dois carros. Possuía 12 funcionários registrados. Aconteceu a doença e o
Minha mãe queria me formar, mas eu era um capetinha! Eu levava lagartixa prano governista. Com essa mudança de governo, me deu uma queda. O prano do
dentro do bolso, aí, ficava no birô da professora: ‘Tia?’. ‘O que é que tu quer, meu amigo Zé Sarney congelou (os preços). Vei o nosso amigo Collor de Melo.

o homem de branco
Raimundim?’. ‘Eu trouxe um presente pra senhora. Tira aqui!’”, recreia-se.
O homem de branco, barba e espírito daquele Profeta Gentileza, chapéu
de palha, destoa da noite sem estrelas da metrópole. É o incomum, a surpresa
Chico Altemar Franco. Aí, lá vem o tal do FC, levou o resto. Quando o Romcy
tava fechando as portas, eu também tava fechando as minhas”.
Desse passado farto, resta-lhe dona Rita, companheira de quatro
visual no cinza das esquinas da Rui Barbosa com a Heráclito Graça. É a pausa, décadas. Na alegria e na tristeza. “Casamo com 18 anos. Até hoje, quebro
na ligeireza do asfalto, na vastidão do dia. Nós, que passamos apressados a cabeça mais ela, brigo!”. “Mas não deixa ela...”. “Não, não! Minha véia?
pelas ruas da cidade*, merecemos ler suas palavras. “Se tenho fé em Deus? Que conversa é essa? Quando chego em casa, ‘Cadê a véia? Vem cá!’”.
Você, linda desse jeito, simpática, é um dom que você nasceu com ele. Na saúde e na doença. “Eu levava de brincadeira. Não acreditava naquele
Esse dom quem dá é Deus. Essa é a fé que a pessoa tem em Deus”. negócio de namoro. Era uma brincadeira conversar com a pessoa, dizer
E o seu dom, qual é? “O dom que Deus me deu foi esse d´eu tá uma prosa. Até que chegou uma e me agarrou! Até hoje. Eu doente de um
conversando com você. Uma moça formada, pára um carro novo aí de lado, ela doente do outro”. É dona Rita quem lhe requenta o viço, quem
frente, vai falar com um véi num poste desse aqui, né dom de Deus?! lubrifica o olho são. “Naquele tempo, eu, rapazim solteiro, em cima de uma
Quem foi que trouxe a senhora aqui? Foi o Esprito Santo, que tá entre nós. bicicreta nova, estalano, relógio novo, sapato novo, roupa nova, um perfume
Querendo fazer do nosso coração uma moradia. E a pessoa – é obrigado danado...”. Amor, palavra que liberta.
eu dizer – por causa da ignorança, falta de conhecimento, não dá o mínimo Um homem e suas sentimentalidades. “Casei católico e civil. Ainda lembro
de atenção. Aquela coisa positiva dentro de si, o que é? A humildade, a duma passagem: o padre lá, com aquelas perguntas... E eu, ‘Umbora, seu
simplicidade da senhora chegar se sentar num fi de pedra, conversar com vigário. O senhor tá demorando demais e eu aqui tô avexado. Tô em tempo
um véi desse aqui... Já vei doutor Mauro, doutor Cornelito, e outros”. de não agüentar mais!’. Eu tava apressado pra dar um beijo na nega! A
Na espera do “a qualquer momento pode chegar um”, seu Raimundo nega era bonita demais. Era não, é! O que acho de mais bonito nela é ela
(sobre)vive dos dez centavos, da sopa com pão, dos “comprimido de ser simpática. A simpatia é uma beleza, é uma presença, é uma coisa muito
pressão”, dos “remédio pros osso”. Está doente há 15 anos, desde os 36 importante... Pra mim, o que é o amor? (pausa) É uma benevolência, uma
de idade, os rins sem força, o olho direito vencido pelo glaucoma. Em casa, bondade que você tem dentro de si. Essa bondade é um negócio doce”.
no Conjunto José Walter (zona sul da cidade), dona Rita também padece; A noite avança com seus olhos de coruja. Não vem mais ninguém, além da
tem eczema na perna e diabetes. “É gorda, num pode ver um pedaço de doutora do carro vermelho, que abaixa o vidro, e do homem da ambulância com
doce”, o marido apieda-se. Tiveram quatro filhos, “já são casados, cada o caneco de sopa e o carioquinha. A avenida, silenciosa, parece ainda maior.
qual com sua responsabilidade. Ganham pouco, chegam lá em casa com Seu Raimundo a toma como cenário pra explicar o que os olhos não vêem:
um arrozinho”. Tarde sim, tarde não, quando está livre da hemodiálise, seu “Abraão era um homem riquíssimo... E Deus disse: ‘Abraão, deixa tudo o que
Raimundo busca o resto na Aldeota (zona leste). “Encontrei aqueles pauzim, tu tem pra trás e me segue’. Abraão ouviu a voz: ‘Levanta a vista. É o que a tua
pra levar (aponta para o amontoado no poste), pra fazer um sistema de vista alcançar, os quatro cantos do mundo faz parte da tua herança e dos teus
um banquim, pra Rita botar a perna. Um banquim, quem faz sou eu. Um descendentes’. Eu vim pra cá doente. Aqui, sinto a saúde chegando. Olha que
violãozim... Faço (música) só batendo as corda, não escuto nada. (ensaia coisa linda: receber uma jovem dessa aqui, pela primeira vez, conversando
o pout-pourrit dileto das noites) ‘O Senhor é meu pastor/ e nada me faltará/ comigo. Existe uma riqueza maior do que essa? Existe? E eu digo à senhora:
Jesus está chegando...’”. O mundo é uma escola. A vida é o circo. aquele que estirar a mão, olhar pra mim e dê ao meno um sorriso... E aquele que
O Raimundo da Carmelina reinventou-se e virou personagem da cidade fazer que não tá me vendo, tenho certeza que Deus vai abrandar o coração”.
grande. A roupa alva e a barba de sábio deviam ser a sua sina. “O branco... O chuvisco avia a conversa. Um aperto de mão, um sorriso, até qualquer
Será que a minha jovem vai acreditar? A pessoa, através de obediência, do dia. E o homem de branco fica ali, na imensidão do breu, com sua herança.
sofrimento, ou do conhecimento, fica recebendo um aviso positivo. Vem sobre “Feliz? Minha filha, eu levo uma topada, acho é graça! Uma quedinha dessa pra
a pessoa, ‘Faça isso!’. Você olha prum lado, pro outro, num vê ninguém. Mas espertar mais um pouquinho, né?! A felicidade, já falei. Eu tá aqui, conversando
se a pessoa tiver obediência e conhecer alguma coisa da história de Jesus... com a senhora, quer coisa mais feliz que essa? O que é isso? É herança do
Eu recebi: ‘Troca essas roupas, vista branco! Não tira a barba!’. Tentei cortar Senhor-Deus-Todo-Poderoso-criador-do-céu-e-da-terra”. Por isso eu pergunto/
essa barba três veiz. As três veiz me dei mal”, recria-se. a você no mundo/ se é mais inteligente/ o livro ou a sabedoria. <
Na precisão, fez-se o milagre. “Minha filha, acabou-se o que tinha em casa. * Os trechos em itálico são da música “Gentileza” (Marisa Monte).

outubro F ROL 23
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24 F ROL outubro
V
A PELEJA
DOS
HOMENS NA
CASA DOS
PEIXES Texto
Ethel de Paula

Fotos
drawlio joca

outubro F ROL 25
V
Irmão Francisco, Vestidos de sol, os pescadores vão
pescador, filho de surgindo, um a um. O dia ainda espreguiça
pescador e evangélico quando descem os morros do Mucuripe em
recém-convertido direção ao asfalto, cruzam o calçadão da
avenida Beira-Mar e, embaixo do sombreado
de castanholeiras, algodoeiros e juremas
que margeiam a praia, dão início ao ritual de
entrada na “casa dos peixes”. Para entrar no
mar, é preciso entrar em detalhes. “Vamos
dizer: chega-se cinco e meia. Se a jangada
está no seco, ela fica em riba dos rolo de
tronco. Aí vem rolando à força bruta, são sete
a dez homens empurrando pra baixo, até botar
na água rasa. Depois amarra e vai abastecer
a embarcação: compra as isca, as piaba, as
sardinha; reforça o aviamento, a chumbada,
os anzol e vai fazer o rancho lá na mercearia.
O que é? Comprar comida pra ficar quatro,
cinco noites no mar. Igual como numa casa:
farinha, óleo, sal, coloral, galinha, feijão,
arroz, rapadura, gás pro lampião, carvão, tudo
vendido aqui na beira da praia. Vem o catraeiro
e, de bote, embarca tudo isso na jangada,
junto com o pescador”, esmiuça Franscisco
José da Silva, o Irmão Francisco, 33 anos,
pescador, filho de pescador e evangélico
recém-convertido.
As velas do Mucuripe saem para pescar às
custas de, em média, cinco homens, número
necessário para empunhar o mastro, tora de 12
metros de comprimento, e “afundear” o tauaçu
ou toaçu, pedra “com mais de 100 quilos”,
lançada ao fundo do mar como uma âncora,
no exato local escolhido para a pescaria de
anzol. Peso descomunal, responsável pela
marra, mas também pelo aleijo de muitos
pescadores. “A primeira coisa que adoece é a
coluna; depois a vista, por causa do espelho
d’água, a claridade; e o pulmão, por causa
da frieza. A gente passa cinco dias molhado,
isso aí vai afetando, e de tarde é de costa pro
sol quente. Se você falar com pescador véi, é
todo tempo a tosse - tufo, tufo. Com 50 ano,
o pescador já não tá pescando nas água de
um homem de 40. Criança, a gente começa
com bote de remo, aí vai sumindo as terra e
aprofundando. Com 40, vem voltando pras
água seca. Comecei a pescar com 8 ano. Hoje
não posso mais puxar 10 quilo de chumbo
como puxava. Quero uma água mais maneira,
mais parada. Até voltar pro barco de remo
de novo”, sintetiza Edson Ferreira de Sousa,
40, um Darwin às avessas, descrevendo a
“involução” da espécie.
Viagem longa, muito para lá da “risca”.
“Tem jangada aí que afundeia em 34, 35 braça
de fundura, depois de correr não sei quantos
quilômetros pra dentro. Quem tem GPS, a
maquininha, sabe medir, marca a distância que
dá. Quem não tem, marca pelo costume, pela
serra, pela cor da água, pela fundura. Bota a

26 F ROL outubro
V
serra no correr do moinho, aí você já sabe qual o mar vento forte e perigoso. “A gente vai pro mar porque é
que você vai, aonde pode afundear, se é na Beirada o jeito, é a sobrevivência, mas tem medo. Com esse
das Pedras, no Fundo... Daqui pra risca dá três tipo de embarcação, é difícil não ter acidente fatal.
hora de viagem, pra dentro é cinco, seis hora mais, A navegação desaparece, morre pai de família.
depende da embarcação, porque umas corre mais As ondas sobem até 4 metros de altura. É mesmo
do que as outras”, acrescenta Francisco Carlos, o que tá pegando uma pipoca e jogando pro alto”,
Carlinhos, 42, hoje dono de jangada. O dia e hora da descreve Sebastião da Silva Ramos, 61, secretário
volta são determinadas pelo mestre. E também cabe da Colônia de Pescadores Z-8, no Mucuripe e
a ele, em terra, dividir o pescado. Metade é do dono pescador recém-aposentado, na lida desde os 12
da embarcação, quer ele esteja ou não embarcado. anos. Pescando há 46 anos, José César Santos,
E o restante rateado entre os cinco tripulantes que 53, se vale de Nossa Senhora da Saúde para
dividiram funções complementares em cima da enfrentar ventania. “Três vezes o barco já virou,
jangada de tábua, toda ela feita de louro e pitiá. a derradeira ia morrendo. Passei dois dias virado,
“O mestre é o comandante; o proeiro, segundo comendo farinha d’água. Uma lancha salvou nós.
comandante; o bico-de-proa fica no meio e tem Cheguei todo desmantelado, a garganta arranhando
a responsabilidade de fazer a comida; o ribique por muito tempo. Com dois dias fui de novo. Viver
amarra tudo na frente da embarcação e cuida de quê? De esmola, depois de velho? Nem o rabo
do leme; o pescador de cinco fica à esquerda, da arraia me tirou do mar. Cortou e ainda hoje não
é o quinto homem, e ajuda a matar e a controlar sinto o dedo, foram seis mês com a mão parada.
o peixe. Mas todos sabem governar, caso um Sorte não ter ficado aleijado. Passei necessidade
adoeça”, ressalta Francisco. Trabalho coletivo nesse tempo. A mulher fez uma promessa de que
com resultados individuais. Cada pescador tem enquanto vida nós tivesse não entrava arraia em
sua própria marca, espécie de assinatura para casa”, assegura.
identificar a produtividade. “Se são cinco pescador, A dor mais insuspeitada do homem do mar,
são cinco marca. O mestre deixa o rabo do peixe porém, é de fundo emocional, denuncia uma fina
inteiro, não corta; o proeiro corta o rabo da direita; sensibilidade por trás do trabalho árduo e dos modos
o ribique corta o rabo de baixo; o bico-de-proa corta rudes. “Pescador tem sangue quente, não sei se é por

criança, a gente começa com bote de remo, aí


vai sumindo as terra e aprofundando >>>
as duas pontas do rabo e o pescador de cinco faz que o pescador predatório não mata. A dificuldade causa do sol. Não anda matando os outros, mas é um
um corte na cabeça do peixe”, arremata Edson. agora é pegar o badejo, que é o sirigado, ou a bicho brabo. Porque veja: o cara tá lá no mar, com o
Embarcação também tem nome. E não se trata cioba, a carapitanga, o pargo, porque esses o destino de pegar um peixe, mas pra isso você tem que
de firula. “A Capitania dos Portos exige o título mergulhador de barco a motor mata de tiro e de matar, isso é o pior... Vamos supor que eu pegue um
de inscrição, é mesmo que tivesse nascido uma ruma. Se uma jangada pegar hoje dez sirigado Dourado. Dourado é um peixe grande, muito valente,
pessoa. E se a primeira que eu possuir botar o aqui na praia do Mucuripe é arriscado até sair no muito pulador. Aí você já tá com raiva dele, porque
nome de Ana, a segunda tem que ser Ana II”. Jornal Nacional”, avisa Edson, rindo-se. ele já deu muito trabalho pra chegar na sua linha.
Oitocentos quilos de peixe, fisgados no anzol Para o veterano José Pereira da Silva, 59, pai de Larga um bicheiro nele, que é aquela vara comprida,
de linha, em cima de uma jangada de tábua. Francisco, enfrentar os “piratas do mar” significa, um pedaço de pau com um gancho na ponta. Aquele
Edson garante que não é história de pescador. literalmente, não dormir no ponto. “Fico dia e noite peixe sente uma grande dor, não sente? Ele tem
Foi sua melhor pescaria, numa época remota acordado numa pescaria. Não durmo, é pescando que pular, aí você pega um pau e pega mais uma
em que o mar garantia fartura. Hoje, a peleja, direto. Por isso que chego na praia com mais peixe faca, pra furar debaixo das aba dele, pra sangrar e
desigual, já não compensa, não há motivos para do que os novo, que não aguentam e entram pra ele morrer ligeiro. É mesmo que ser um açougueiro,
comemorar a chegada em terra. “O mar é como dentro da jangada pra dormir”, ensina, vendendo matar um boi em pé, não é fácil. Vira rotina, porque é a
uma firma que quebrou, faliu. Tem vez que a gente disposição à véspera da aposentadoria, aos 60. Já sobrevivência, mas que dói, dói. Me lembro que meu
volta depois de quatro dia embarcado sem nada, Edson prefere qualidade à quantidade. “Só ando pai, quando eu era menino, criava porco, e um porco
com a barriga cheia d’água salgada”, queixa-se nas água profunda é atrás de pargo dos ói vridrado, nós gostava, tirava pra estimação. Eu e meu irmão,
Francisco. Daí porque tem sido morno o leilão de o ôi dele tem três cor e a carne é melhor e mais cara meninozim, botava num cabresto, aí nosso porco
peixes promovido entre pescadores e marchantes do que a do pargo comum. O sirigado é outro, um tomava banho de mar, andava acompanhando nós
- os “atravessadores” - ali mesmo nas areias, tão peixe que sai a 11 reais o quilo pro marchante e o que nem um cachorro. Quando o papai ia matar, nós
logo a jangada encoste. De dentro do samburá único que cobre nossas despesas. E pode chegar chorava demais, não queria comer a carne... Então,
saem, predominantemente, peixes miúdos, a 40 quilo. Então é mesmo que você ir atrás de um lhe digo de coração, hoje, que não gosto de matar
desvalorizados, como a mariquita, a piraúna, a pedaço de ouro na Serra Pelada”. peixe. Gosto de pegar o peixe e deixar ele morrer lá
biquara, a guaiúba. “O peixe de água comum é o A partir de julho, há outro complicador: “o leste”, no samburá, vivo”, poetiza Edson.

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Trabalho e
aventura
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O mar é o limite para o pescador do Mucuripe. A Marinha deu os mantimento. Mas nós só precisava da
saga da jangada São Pedro, que em 1941 deixou farinha, peixe a gente tinha no aquário, né?”, desdenha,
Fortaleza em direção ao Rio de Janeiro, levando a sem esforço para lembrar.
bordo quatro jangadeiros decididos a cobrar direitos Fumo no cachimbo até contabilizar: 101 dias de
trabalhistas junto ao então presidente da República, navegação, 12 tempestades de vento e chuva. “Só
Getúlio Vargas, causou frisson no Brasil e encantou, ia em terra quando faltava água doce”, garante. Em
particularmente, o cineasta norte-americano Orson Pernambuco, um primeiro obstáculo. “A obrigação de
Welles. Tanto assim que, no ano seguinte, ele já qualquer navegador, seje ele pescador ou de longo
estaria com os pés atolados nas areias da vila de curso, é chegar no porto e ir à Capitania. Me apresentei.
pescadores. Robusto e vermelho, veio ver com os E o capitão disse pra mim: “cadê a carta náutica, a
próprios olhos os protagonistas da aventura de caráter bússola?” Eu olhei assim pra ele... E respondi: “mal
político e apelo comunitário: Jacaré, Jerônimo, Tatá empregado a cadeira que o senhor se senta. Eu
e Mané Preto. A intenção era fazer um filme com não preciso de aparelho pra navegar, me confio nos
os quatro bravos jangadeiros que iriam reviver, na planeta, nas estrela”. Aí ele disse: “pois está preso,
frente das câmeras, passagens daquela viagem. Mas você e a embarcação”. E eu: “importante não é quem
um acidente fatal no decorrer das filmagens vitimou prende, é quem solta. Acima de você tem um almirante.
Jacaré e, por este e outros motivos, a obra sequer E ele vai me soltar”. Dito e feito. Intrépida, a jangada
pôde ser finalizada. Limaverde seguiu viagem.
No Mucuripe, a ousadia se espalhou com o vento. A chegada à Ilha Bela não foi menos festiva. Um
Assim, em 1951, mais cinco aventureiros enfrentaram mês de comemoração na praia de Santos, avião fretado
mares e tempestades, dessa vez até Porto Alegre. para levar os quatro heróis nordestinos até Brasília. Lá,
Também por melhores condições de vida - e o simples o mestre foi direto ao assunto. “Sua excelência, vim
pedido de um barco a motor passou a significar isso. aqui lhe pedir um benefício. O senhor se esqueceu de
De novo aconteceu em 1954, destino ainda mais longo: uma banda do Brasil. Pescador pobre e velho não tem
Buenos Aires. Jerônimo governou essas duas raids e, mais condição de trabalhar, precisa de um amparo,
juram os colegas pescadores, chegou a figurar alguns tem direito a comer um pão”, cita a si próprio. “E penso
dias como presidente da Argentina, tamanha simpatia que foi Deus quem abriu o coração daquele Dragão.
conquistada junto à opinião pública. Em 1967, Luís Ele disse: “se tá errado, vamos consertar. Quando
Garôpa também mestrou uma embarcação que chegou vocês chegarem de volta em Fortaleza o benefício
a Santos, chamando mais uma vez atenção para uma já está garantido”. O Médici era um homem assim da
classe historicamente desassistida, mas obstinada. minha estatura, ele podia ser ruim na política, mas
Especial destaque para a derradeira. Em julho com a gente foi ótima pessoa, bem educado, deu um
de 1972, um professor nas jangadas e coisas da carro pra conhecer Brasília, um hotel e até provou do
pescaria, duro no ofício e sabedor de tudo, fez a raid “uísque do Ceará”, uma cachaça da boa. Com pouco,
mais bem-sucedida da história do Mucuripe. Destino: embriagou-se. Ficou tonto e disse que tava passando
Ilha Bela, São Paulo. José Eremilson Severino Silva é mal. Eu respondi que lá no Ceará quando a gente sente
o único dos jangadeiros vivos que se fez aventureiro isso diz que tá é bêbo!”, diverte-se.
em nome do coletivo. Era um domingo quando desceu A aposentadoria, de fato, chegou na frente. Quando
o Morro do Teixeira em direção à praia com outros mestre Eremilson retornou ao seu Mucuripe, teve dupla
dois pescadores e três escoteiros do mar. Tinha recmpensa: seu pai, àquela altura com 100 anos, foi
36 anos e a coragem de pedir ao mais endurecido o primeiro a se aposentar. O que viveu está fresco
dos presidentes da ditadura militar brasileira, Emílio na memória, roteiro na ponta da língua. E faria tudo
Garrastazzu Médici, o benefício da aposentadoria para outra vez, não fosse a dificuldade de locomoção por
todos os pescadores do país. Hoje, beirando os 80, conta de problemas na coluna. Saberia inclusive o
sorrindo um sorriso sem dentes, mostra o certificado que pedir. “Pediria para o presidente fazer um colégio
de viagem devidamente emoldurado e abre as portas pra pescador dentro do Mucuripe. O meu colégio foi o
da casa modesta, no mesmo morro, para relatar mar, somente. E também pedia um cemitério, porque o
um épico inesquecível. “Com muito custo e depois primeiro e único foi feito em 1916, por Miguel Arcanjo,
de muito aperreio, o Governo do Ceará, na pessoa um leproso, pescador de tarrafa, que fez a Campanha
do César Cals, me deu dez contos de réis para eu do Vintém, pediu esmola até poder construir com a ajuda
comprar uma jangada e ir falar com o presidente da dos morador. Pescador já tem aposento, é pouco mas
República. Partimo da Praia do Náutico. Uma multidão pelo menos a gente pode comprar fiado na bodega. Mas
veio ver. Teve solenidade com as autoridade local e a pescador ainda não tem onde cair morto”, reclama.

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Nas construir esse cemitério, que ia buscar pedra
no Farol pra construir a igreja, tudo em mutirão,
como é que pode? Não contei pipoca: fui às
elas moravam e onde tinha a mercearia do papai.
Via ele namorando com elas, mas não tava nem
aí. Ganhava colo, cafuné, bombom e até roupa

paredes
rádios e botei a boca no trombone. Até que veio delas. De noite, morria de vontade de entrar com
a permissão e o bichinho tá lá, descansando”, elas no Canção do Mar, uma boate muito bonita,
conta, esfuziante. mas eu era criança. Mesmo assim, notava: quando
Aos pescadores, Verinha também dedicou elas gostavam de um cara era pra valer, amavam

da
conhecimento. Ensinou muitos a ler e escrever de verdade. É tanto que quando eram traídas, se
e quando ganhou o prêmio em dinheiro na suicidavam. Ateavam fogo às próprias vestes.
Loteria Estadual, por duas vezes, foi para eles Cheguei a ir pro velório de uma, chorei muito”,

memória
que comprou roupas novas. Ao lado da foto conta, emocionada. Também esteve junto, já
dos jangadeiros que viram de perto o papa adulta, nas horas difíceis. “Quando tiraram elas
João Paulo II, um retrato pintado de Zé da da Rua da Frente e trouxeram na marra pro Farol
Júlia, pescador de bico doce, que, em vida, a gente distribuía cesta de alimentos, o padre Zé
colecionava mulheres e lorotas. “Contava que Nilson ia até lá celebrar missa e na hora do ofertório
o Turco Cabeça de Vento foi pescar lá no elas não tinham que colocar nada no altar, nós era
Vera Lúcia Miranda, a Verinha, “enxerga Recife, aí deu um espirro que a jangada se que dava vestido, bujão de gás, sombrinha... E
antigamentes”. Ela é a memória viva do partiu no meio. Veio um pedaço pra Fortaleza tome presente bom!”, regozija-se.
Mucuripe. E cultua, em especial, o passado da e o outro ficou lá. Pode?”, reproduz, às Aos 56 anos, perdeu o poder mobilizador
vila de pescadores, o tempo em que a avenida gargalhadas. Também está com ela um dos no Grande Mucuripe que abraça morros e
Beira Mar era Rua da Frente e a Via Expressa mais belos registros da festa de São Pedro, arranha-céus. “É muito ruim morar no alto do
não havia chegado para tirá-la do sopé do Morro a imagem do santo no andor, marinheiros e morro quando não se tem carro. Tá certo que
Santa Teresinha, um dos que compõem o bairro. jangadeiros enfileirados, escoltando. O 29 de conseguimos as escadarias, mas são quase
A nova casa, na rua Jereré, próxima ao Mirante, junho na beira da praia já foi a principal festa do 300 degraus, não tenho mais a resistência
abraça recordações. Nas paredes, um roteiro Mucuripe. “Hoje não dão mais valor, mas era de antes. Era tão bom aquele apertadim
sentimental, fotografias e pinturas para dar conta lindo colocar aquela jangada toda enfeitada lá embaixo, na rua Boa Vista, pelo menos
do eterno e do transitório - ou do que há de eterno na praia, fazer o altar e seguir em procissão tava me movimentando, ajudando o povo
no transitório. Eternos e nobres, para ela, são os pelo mar com a imagem do santo, aquela do Mucuripe, que eu amo. Fui professora de
homens do mar. Por isso, eles têm lugar de honra ruma de jangada acompanhando... Coisas uma reca de menino no Morro do Teixeira,
no acervo iconográfico. Mestre Bráulio é um dos. que o tempo levou, mas fica impregnado na alfabetizava nos alpendres das casas.
“Chega me arrepio quando falo dele. Morreu em gente, né?”, suspira. Brincava no meio do areial com eles na hora
1994 e não tinha nem onde se enterrar, criatura! Verinha também amou quem cobria de do recreio, lá em casa era um entra e sai
Veja bem: um homem que trabalhou no filme afagos os pescadores e embarcadiços. “Amava danado. Hoje ninguém pode nem ficar de porta
do Orson Welles, o coveiro não queria sequer as meretrizes. Minha mãe não me dava carinho, aberta que o pessoal daqui rouba a gente. É
enterrar no cemitério daqui, dizia que tava lotado. não me queria, ela só queria os filhos homem. diferente o Mucuripe, perdeu a calma, a união,
Um pescador que carregou pedra na cabeça pra Então, criatura, eu ia lá pra Rua da Frente, onde mas continua lindo...”, derrama-se.

Verinha e as pinturas do
Mucuripe antigo

30 F ROL outubro
V
Faroleiro
partido
ao meio
A 22 metros de altura, no alto
da torre do Farol do Mucuripe,
Raimundo Juvenil Cardoso, 52,
lança luz sobre o mar. Cabe a ele,
como um dos últimos faroleiros em
atividade no Brasil, ligar e desligar
o equipamento náutico que orienta
os navegantes. Há seis anos, faz
isso duas vezes por dia: às cinco
e meia da manhã e às seis da
noite. Mas até hoje desconfia da
própria escolha. “Antes de vir pra
terra fui marinheiro, por mais de
dez anos. Então, muitas vezes,
vi o farol lá do mar. Agora, faço
o inverso. Gosto muito de viajar,
Luciano ensina com quantos paus se faz uma jangada e se equilibra sobre duas rodas chegar numa terra desconhecida
e fazer amizades. Na Marinha,
conheci muito lugares, muitas

Estaleiro Ao invés das águas, o enxuto. Há seis anos, Luciano


Pereira de Lima, 66, trocou a pescaria em alto-mar pelo
mulheres... (risos) O bom de
estar no mar, navegando, é que

a céu conserto e construção de jangadas à beira da praia. Trabalho


meticuloso, custoso, tarefa de atravessar o dia. “Desde
você tem sempre uma história
diferente pra contar. É uma vida de

aberto criança faço. Aprendi rápido. Poucas pessoas entendem


disso. É pra quem conhece o mar. Porque o vento transforma
o mar, ele fica valente, é que nem o cara quando bebe.
liberdade e ainda hoje sinto aquele
impulso de sair. Na terra, a gente
repete as histórias, fica sem ter
Então, toda embarcação que chega tem um conserto pra muito o que contar”, acredita.
fazer. É que nem um médico, você diz o que aconteceu e eu O motivo da procura por um
já digo qual é o problema”, vaticina. Em média, o carpinteiro porto-seguro tem nome: Maria
naval que em 1970 fez curso na Capitania dos Portos leva da Conceição. “Ela que me fez
45 dias para erguer uma embarcação. O segredo: “Tem que ser um homem da terra, me fez
ser bem pregada”. parar. Estamos casados há 24
No início, eram as de piúba. “Ainda tem três das que eu anos. Lá em cima, diante daquela
fiz, uma tá dentro da Emcetur e apareceu até numa novela e vista privilegiada da cidade, já
numa reportagem do Fantástico. Em 67, veio a jangada de comemoramos Natal, reveillon e
tábua, feita de louro e pitiá, que a gente chama de caixão de aniversário. É um lugar ótimo para
defunto, porque essas afunda, a de piúba não. Aí comecei namorar. E sonhar. Viajo muito
a fazer pra mim mesmo. Mas você sabe: o que é bom todo em pensamento, mesmo parado,
mundo quer. E hoje não passo um dia parado”, gaba-se. lá em cima do farol”, confessa.
Passo a passo: “primeiro faz a armação, depois vai colocando Daqui a três anos, o faroleiro se
as cavernas, que é um oco, onde o pescador dorme na aposenta. Quer morar perto do
jangada, aí cobre com tábua em cima e embaixo. No fim, é mar. E viajar.
pintar”. Na hora de batizar, não nega a superstição: “Gosto
mais de botar nome de planeta, Vênus... Já tive uma por nome
de O Astro, foi uma novela muito falada por aqui. Mas se botar
nome de pessoa, amaldiçoa a embarcação”.
O homem do mar também se equilibra em duas rodas.
Luciano é adepto, até hoje, do ciclismo. “Fui daqui pra São
Paulo de bicicleta em 1967. Tá com 61 anos que pedalo,
o meu transporte é bicicleta. Na inauguração da emissora
Dragão do Mar ganhei a corrida Fortaleza-Maranguape. Aí
fui sendo convidado: Recife, São Paulo, Natal... Tenho muita
medalha, faixa, taça em casa”, conta. Como atleta, nunca
fumou, bebeu ou virou noites em farras. “Não sei o que é
brincar em minha vida. Nem criança brinquei. Comecei a
pescar com oito anos. Sempre vivi no mar. Até quando casei,
fiz a mulher me acompanhar, costurando vela, remendando
rede, tratando os peixes. E ela ainda pesca siri no mangue”,
conta, compenetrado, sem interromper o trabalho.

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V
Segredos e
Quando começou a pescar, “brochotim”, aos 7 anos
mistérios
de idade, João Cardoso da Silva, hoje com 80, navegava
aos 18 anos já construía jangada de piúba. “Tá com um ano
que vendo esses paquetim. Veja: a de piúba não tem leme,
dentro do samburá, cesto de boca estreita onde o pescado é remo, a de tábua é que é leme. Uso a mesma madeira da
é recolhido. Na época, diz, jangadeiro pescava o peixe que embarcação”, aponta, as mãos tremendo. “Tem hora que a mão
queria. Não havia bússola nem GPS, aparelho marcador de treme, mas seguro com a outra e saio aguentando. Eu mesmo
distância. “A marcação dos pontos, o caminho e o assento pinto no final”, emenda. A tremedeira, acredita, é fraqueza, falta
se guardava era na memória. E era como um segredo de do pirão do peixe fresco, só com água e sal. “Pescador é tudo
família, passado de pai para filho. Quem sabia as boa forte por causa do caldo do peixe cozinhado, que a gente bebia
posição de pescar tinha fartura”, rememora o mestre que de lata. Ali estão todas as forças do peixe”, garante.
pescou tanto em jangada de piúba quanto de madeira, Nascido e criado no Mucuripe, João, que morava de aluguel
seja em “pescaria de dormida” ou “de ir e vir”. Experiente, com um neto, teve que deixar o bairro. “Era 80 real que tavam
ensina mais: os peixes não são os únicos moradores do pedindo, não deu pra mim”, lamenta, recordando a época em
mar. “Todo pescador sabe que a sereia existe. Eu mesmo que a Beira Mar era chamada de Rua da Frente e ele foi dono
já ouvi cantiga dentro do mar, grito, gemido. Na escuridão de três casas de palha e seis jangadas de piúba. A saudade do
do oceano, a gente vê muita coisa que não tem explicação: lugar é a mesma do ofício. “Governava jangada, fui mestre de
embarcação iluminada, que de repente apaga nas vistas da lancha, barco. Pesquei em banco lagosteiro. Às vez era 65 dias
gente, jangada correndo na nossa frente, e quando dá fé, no mar, sem tocar em terra. Trazia de dez tonelada. Agora, só
desaparece. Falo porque vi”, sustenta. se passar 4 ou 5 anos pra trazer sete. Nessa época, a produção
Octogenário e aposentado, ganhando um salário-mínimo, do peixe era nossa e ainda ganhava salário. Nunca aprendi a
João anda por todo o calçadão da avenida Beira-Mar vendendo fazer um “o”, mas sustentei nove filho do mar. Tá com quatro
jangadas em miniatura, réplicas fiéis esculpidas por quem ano que não aguentei mais”, diz.

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V
Dramas de
além-mar
As brincadeiras tradicionais do Mucuripe, sobretudo aquelas que envolvem
embarcações e embarcadiços, desaguam no número 65 da rua Terra e Mar, no
Morro Santa Teresinha. Aos 79 anos, Gertrudes Ferreira dos Santos, mãe de
15 filhos, organiza, dança e canta a caninha verde, além de trazer na memória
trechos do fandango, drama de origem espanhola que se perdeu no tempo
desde que seu guardião no bairro, João do Ouro, faleceu. “Cheguei a dançar
com João do Ouro. O fandango é em um navio. Tem a turma de marinheiros,
que costura a vela, tem luta de espada, espada vai, espada vem. E general,
capitão, gajeiro... Porque dentro da nau tem um rapaz, rico, um mouro, que
não é batizado. E ele não quer se batizar. Só no fim que ele se entrega para
virar cristão. O padrinho dele é São Francisco. Então acontece uma guerra
em alto-mar. E a gente canta: “o mouro morreu/ lancemos ao mar/ o dinheiro
dele/ é pra nós gastar”. E é briga aí. Porque um quer dinheiro, o outro também.
Tem uma hora que o navio se afunda. E só é salvo por um milagre de Nossa
Senhora da Conceição...”, conta, sem outros detalhes.
Da caninha verde, a mestre sabe mais. Isso porque viu o marido organizar
e brincar por toda a vida o drama. José dos Santos, vulgo Zé Boto, morto em
1981, aos 40 anos, organizava e dançava a brincadeira de origem lusitana desde
1943. “Zé aprendeu com o padrinho, Zeca Três Vez, que aprendeu com Chico
Manchico, um amigo dele da Praia de Iracema. Brincava sempre na época do
carnaval. E no começo era só home. Este Mucuripe era só areia, dançava nas
casa, numa sala mais ou menos ou debaixo da sombra. E ganhava uns trocado.
Ele vendia o peixe lá embaixo pra compar os pano. Tinha gosto. Aí, quando
morreu, fiquei eu. Na minha mão tá com 63 anos”, destaca Gertrudes.
A narração da caninha verde faz referência à Primeira Guerra. É nesse
período que um navio encalha em um trecho de praia que hoje Gertrudes
diz ser o Cumbuco. “Encaiou lá com seis pescador, uns mortos outros vivos.
Quando encostaram na praia vieram vários pescadores, que não entendiam o
que os portugueses falavam. Mas foram tarrafear pra trazer o de comer. Esses
portugueses que sobreviveram ficaram na mata, no canavial. E lá pegaram
a palha da cana para fazer uma calça, da flor da cana fizeram uma blusa
amarela e na cabeça um chapéu. Quando a cana tá se aproximando pra fazer
aguardente ela fica encarnada, e é a cor do laço que a gente traz. Peço licença
pra cantar: “e a minha caninha verde/ e a minha verde caninha/ salpicada de
amor/ de amor salpicadinha...”.
A brincadeira que também envolve reis e vassalos finda em casamento. Maria
Claudina é o nome da noiva. Gertrudes canta, um fiapo de voz à capela, sem
o acompanhamento original do violão, cavaquinho, pandeiro e surdo: “entre
os belos portugueses/ é tão belo festejar/ nosso rei já vai ao trono, vamos
todos festejar”. No quarto da brincante, uma parede inteira é para pendurar
os chapéus de palha recobertos de cetim verde e penas. Duas máquinas de
costura denunciam: toda a vestimenta dos 30 integrantes da caninha verde
sai dali. E muito do acabamento final é feito manualmente, ora pelas mãos da
mestre, ora pelas mãos da filha, também brincante, Maria José. Sob orientação
de ambas, netos, sobrinhos e até uma bisneta com dois anos de idade dão os
primeiros passos no drama. São o verde da cana.

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34 F ROL outubro
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O fantasma
de Morgan
“O jangadeiro é filho de jangadeiro”, escreveu o pesquisador Luís da
Câmara Cascudo, no século passado, em seu “Jangada - uma pesquisa
etnográfica”, reeditado em 2002 pela Global Editora. Quem tem mais idade
confirma a máxima. “Lá em casa todo mundo sabe o que é o mar, até um
que era padre pescou. Minha mãe foi pro mar. Meu pai pescou 60 anos,
mesmo sem nunca ter aprendido a nadar. A primeira vez que fui pro mar
foi dentro de um samburá, amarrado na jangada. Tenho cinco filho homem,
tudo ligado à pesca”, orgulha-se Luciano Pereira, 66, hoje carpinteiro
naval autônomo, diariamente às voltas com o conserto e manutenção de
embarcações à vela no porto de jangadas do Mucuripe. Mas para Sebastião
da Silva Ramos, 61, secretário da Colônia de Pescadores Z-8, no Mucuripe,
“a classe não está se renovando e isso é uma preocupação”.
Aos 33 anos, Francisco José da Silva confirma. E justifica: “Há 20 anos,
a pesca era só a gaiola, o manzuá e o anzol, era raro a rede. Hoje é a
rede caçoeira que vai até o fundo e arranca todo o alimento do peixe, as
plantas. E quando rasga a rede no coral, fica aquele pedaço lá, o peixe
preso, apodrecendo. Acaba com tudo lá em baixo. Também é predatória
e proibida por lei a pesca com compressor, feita por mergulhador, que
se tiver cem peixe alocado ele mata tudim. Passa quatro horas debaixo
d’água, pegando todo tipo de peixe, lagosta, tudo. Só são três meses que
a natureza pede pra parar, porque o peixe precisa de tempo pra engordar
e se reproduzir. Mas ele não respeita isso. Então, ou pesca como nós ou
o mar vai deixar de dar à gente. Já acabaram com a lagosta, agora tão
acabando com o peixe. Não dá mais gosto. Meu filho botei pra estudar.
Não vejo futuro pra ele no mar”.
Fundada em 1920, a Z-8 é pioneira no Ceará. Seus quatro mil
associados representam a tímida resistência de uma classe que tem
um sindicato sob intervenção justamente por faltar quem pague a
mensalidade. “O Sindicato trabalha com o pescador formal, aquele que
tem carteira assinada por empresa. Mas como o setor pesqueiro faliu,
nossos pescadores estão vivendo mais da pesca informal e aí o sindicato
se esvazia. A Colônia trabalha com os dois, o pescador formal e o artesanal
e é uma entidade sem fins lucrativos, que só recebe recursos do Governo
Federal: um seguro-desemprego para o pescador na época do defeso da
lagosta, INSS, no caso de doença e a aposentadoria, isso a partir dos 60
anos e se não tiver tido vínculo empregatício. É pouco”, diz Sebastião.
Luta também por um direito básico: educação. “Precisamos de uma
escola de formação, porque a maioria dos pescadores só sabe escrever
o nome, não pôde ir pra escola quando criança devido à pesca”. A licença
oficial para pescar lagosta - e não só peixe - também ainda não chegou.
Para Sebastião, é o fantasma do americano Morgan que ainda paira pela
praia do Mucuripe. “A pesca da lagosta aqui começou em 56, 57. Era só
o jangadeiro. A partir dos anos 60 foi quando um americano, por nome de
Morgan, se instalou aqui. Era um senhor alto, vermelho, que trouxe uma
embarcação de lá com a bandeira americana. A Capitania até prendeu,
porque dentro das águas brasileiras tinha que chegar com a bandeira
nacional por cima. Mas ele ficou e descobriu a lagosta no Ceará. Enquanto
foi vivo, toda exportação passava por ele, que era quem fazia a carta de
exportação. Depois chegaram outras empresas lagosteiras. O Ceará já
foi o maior exportador de lagosta. Hoje, são quatro ou cinco empresas
exportadoras de lagosta, mas a maioria faz porto fora de Fortaleza, em
Belém, na Bahia. Então, pouca coisa mudou”, lamenta, irônico. <

outubro F ROL 35
V
sin l

V
de luz
O cineasta Orson Welles,na primeira
metade de 1942, viveu no Brasil uma aventura
singular. Para os nascidos em um país tão
“auto-suficiente” quanto os Estados Unidos,
algo fora de suas fronteiras capaz de despertar
maior interesse talvez fosse somente a Europa
Ocidental. E com Welles, em princípio, isto não
foi diferente. Mas, era tempo de guerra e os
EUA, estrategicamente, queriam aprofundar
suas relações com países do nosso continente.
O cinema seria uma porta para estreitar relações
geopolíticas e de mercado junto às nações.
Atendendo a tal esforço, Welles faria um filme de
episódios no México e no Brasil: It´s all true (É
tudo verdade), um exemplo de arte pela “política
da boa vizinhança” emanada de Washington.
O cineasta, que despontara em Hollywood
com o filme Cidadão Kane (1941), chegou ao
Rio de Janeiro, então capital brasileira, em
pleno carnaval. Mas, numa entrevista, décadas
depois, diria: “Gostava de samba, mas não me
passava pela cabeça visitar ou viver na América
do Sul - que é a parte do mundo que menos me
interessa.” Tal confissão bem expressa o que
nós representamos para aquela “outra” parte do
mundo. E isto é frase proferida por um artista
progressista. Mas, o fato é que, no Brasil, Welles
se envolveu com colaboradores expressivos e
suas câmeras focaram a realidade popular, a
ponto de trazer incômodos a seus produtores
e aos órgãos de censura do ditador Getúlio
Vargas. No Rio de Janeiro, Welles rodou uma
história sobre carnaval e samba - temas que as
elites conservadoras preferiam ignorar ou omitir:
Texto
favelas, candomblé e negros. No Nordeste e
Firmino Holanda
no Ceará, particularmente, o cineasta filmou
outro episódio de It´s all True. Com foco nos
jangadeiros, ele retratava a miséria dessa gente, foto
ainda que sob a aura da “harmonia selvagem”. drawlio joca
Em conversas com amigos brasileiros, Welles

JACARÉ
imaginava: as favelas eram “monstros” em
potencial, que um dia se voltariam contra o estado
das coisas. Sem querermos generalizar, uma
vez que a criminalidade ultrapassa fronteiras de

DO MAR E
guetos e de classes sociais, ele estava certo. E não
era profecia, mas somente um olhar estrangeiro
demonstrando a um incrédulo Vinícius de Morais o

DAS TELAS
óbvio que este parecia não querer enxergar. Mas
aquela miséria crônica era cantada em verso e
prosa como algo belo e digno (“pois quem vive lá
no morro já vive pertinho do céu...”). Entretanto,
conhecendo de perto os jangadeiros cearenses,

36 F ROL outubro
V
o cineasta espantava-se com sua extrema miséria,
seus casebres de palha e seu esforço descomunal
ao sol, enfrentando diariamente o mar traiçoeiro. Era
essa uma realidade também pitoresca e idealizada
por poetas brasileiros (“é doce morrer no mar...”,
dizia outra canção).
Em 1941, quatro pescadores do Ceará -
Jacaré, Tatá, Manuel Preto e Jerônimo - saíram de
Fortaleza, numa jangada, para reivindicar direitos
trabalhistas no Rio de Janeiro. Para eles, a poesia
da classe média faria mais sentido se rimasse com
“pão” e “aposentadoria”. Aquela extraordinária
aventura foi noticiada em todo Brasil e chegou às
páginas da revista norte-americana “Time”. Lida
por Welles, a reportagem o estimulou a criar um
roteiro cinematográfico descrevendo o feito. O
filme teria os quatro jangadeiros como intérpretes
de si mesmos. Quando filmava cenas no Rio de
Janeiro, entretanto, o diretor viu Jacaré morrer em
acidente no mar. Isto é, desaparecer para sempre.
Correram lendárias versões a respeito da tragédia.
Uma delas negava o acidente e culpava a polícia
política de Vargas, pois Jacaré seria alguém
incômodo frente ao sistema ditatorial. A outra
interpretação, por sua vez, negava a própria morte
do herói. Sustentada por George Fanto, fotógrafo
de Welles nesse filme (quando de sua gravação
no Mucuripe), dizia que o líder jangadeiro teria
sido levado secretamente pelo cineasta para os
EUA, após a simulação do acidente. O motivo
seria o desejo de fugir de sua pobre vida sem
perspectivas. Pelas condições em que ocorreu o
acidente, tal versão mostra-se insustentável.
Mas, se buscássemos uma fundamentação
para o suposto plano de fuga, ela se acharia
involuntariamente no artigo de Austregésilo de
Athayde, escrito após a tragédia. Vale citarmos tal
exortação antipovo (por ser idealista, paternalista
e arrogante) assinada por esse intelectual, ao
tratar sobre os jangadeiros:
“Ficaram embriagados com a fama.
Atordoaram-nos os ricos presentes. Voltando Uma das últimas fotos de Jacaré, preservada pelo arquivo Nirez
ao Ceará, nenhuma graça acharam nos seus
trabalhos obscuros. [...] Ficassem todos nas suas
casas de palha de carnaúba sem nunca ver as condições de vida, aposentadoria digna etc. Hoje, primitiva. Depois, iriam eles se deparar com a
seduções da Babilônia, sem encontrar-se com os poucos são os pescadores que, ao menos, vivem à modernidade carioca. Dramaticamente faz sentido,
cineastas americanos. Ficassem lá longe, como beira-mar. Alguns moram em bairros bem distantes como se vê nas etapas progressivas da epopéia
jangadeiros na terra de Iracema. Sem conhecer dali. Antes, habitavam seus “pitorescos” casebres exposta na tela (onde também não se vê o apoio
Orson Welles”. de palha, à sombra do coqueiral e, em suas em cada porto). Mas a deliberada omissão da
Pouco antes de morrer, Jacaré fizera denúncias jangadas de piúba, pescavam o peixe que os mais cidade, espaço de trocas e confrontos, não ajuda
graves contra a associação representante dos afortunados comprariam na sua volta. Mas esses a entendermos a vida concreta. Os jangadeiros,
pescadores do Ceará. Isto foi suficiente para que, não se preocupavam em saber quem era o dono assim, não são postos em seu próprio meio, como
em setores locais, ele caísse em desgraça, acusado (que não ia ao mar) daquela jangada, ou quem era se dava naturalmente na semi-urbanizada praia
de ingratidão. Esse momento de ruptura em relação que ficava com a maior parte do pescado. Questões de Iracema (de onde, de fato, partiram). O filme
às regras do jogo social lhe custaria caro. Na sua econômicas maculariam tanta poesia praiana. inacabado de Orson Welles é de beleza inegável.
morte, a Federação de Pescadores negou-lhe até It´s all true, o filme cuja parte dos jangadeiros Contudo, a caminho de tornar-se “cult”, arrisca ser
um voto de pesar. Mas, com o tempo, o que resistiu montou-se postumamente, idealizou essas vidas. também uma segunda onda a tragar, dessa vez,
foi a imagem do herói do mar. E Jacaré virou nome Descontextualizadas, ou seja, retirado o foco aspectos históricos da realidade dos que, desde
de rua da orla marítima de Fortaleza, no metro de Fortaleza, cenário original, as personagens então, pelejam não só no mar, mas também na
quadrado mais caro da cidade. Enquanto isso, um empreenderam sozinhas e espontaneamente sua terra. São os riscos das idealizações, mesmo que
de seus filhos, vivendo no bairro da praia de Iracema, aventura. Mas a reide de 1941 teve apoio material bem intencionadas. <
se via ameaçado de despejo de sua pobre casa e logístico da sociedade local, da Marinha, de
pertencente ao INSS. políticos, padres e comerciantes. No filme, para >> Firmino Holanda
Em suma: o que motivou a luta e aventura dar maior impacto à viagem, sem dúvida heróica, Autor do livro Orson Welles no Ceará (Edições Demócrito
daqueles jangadeiros de 1941, bem como de foram os pescadores como que retirados de uma Rocha, Fortaleza-CE, 2001) e do documentário O
posteriores reides, continua atual: melhores redoma, onde viviam em sua nobre condição Cidadão Jacaré, vencedor do DOC TV em 2005.

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V
38 F ROL
POR DENTRO
outubro
V
Texto
Ethel de Paula

DA QU DRA
Fotos
Celso Oliveira
A

outubro F ROL 39
V
somos a mosca na sopa da burguesia
A Quadra de quem passa sem entrar é Aí, pra facilitar as correspondências, botaram:
uma. À primeira e apressada vista, os olhos quadra A, numero tal. E pegou”, justifica, a seu
não enxergam mais do que o inusitado de um modo, a veterana. E como hoje são inúmeras
conjunto habitacional popular espremido entre o as escadas em caracol que levam de um nível a
muro do colégio Santa Cecília, a poluente avenida outro, ninguém haveria de estranhar se no futuro
senador Virgílio Távora, as lombadas da Beni os moradores cunhassem os termos “Quadra de
de Carvalho e a asfaltada rua Vicente Leite. Um cima” e “Quadra de baixo”. “Já temos construções
“descompasso” no coração da Aldeota. Batida com três andares, onde moram, às vezes, dez
outra, imperfeita, que só é dado escutar a quem pessoas dentro, sabe Deus como. É que as
vem olhar de perto, por dentro. famílias vão crescendo e ninguém quer e nem
E diga-se de saída: a Quadra tem a coragem pode pagar aluguel em outro bairro, até porque
da cor, como bem atestaria o escritor Ariano morar aqui é um privilégio, né? Somos a mosca
Suassuna. Lá, em total desalinho, muros e varais na sopa da burguesia. A Quadra é o Brooklin de
de roupas imprimem texturas multicoloridas às Fortaleza. Aqui temos a sede local da Central
superfícies de concreto, produzindo um contraste Única das Favelas, Cufa; um anexo da Oboé
absoluto - e feliz - em relação à vizinhança cinza e Cultural, onde são ministradas oficinas de arte
opaca dos arranha-céus. São 444 casas de porta e gratuitas e permanentes para os moradores e a
janela invariavelmente entreabertas. Construções melhor quadrilha junina da cidade, promovida,
que não param de crescer para cima, coladas modéstia à parte, pela associação”, diverte-
umas às outras, no estreito de ruas de calçamento se o presidente da associação de moradores,
e becos sem saída. Normando Rodrigues, 35, nascido e criado na
No início era o chão de terra batida, casas Quadra, oito anos consecutivos de gestão.
de taipa e papelão. Nada de água encanada, A “melhor quadrilha junina da cidade”, gaba-
saneamento ou fiação de luz. Os mais antigos se, é o Arraiá das Divas, todo ele concebido e
calculam: a “invasão” teve início há 50 anos. E encenado por gays da comunidade e adjacências.
só na década de 1980 é que Governo e Igreja Puxador oficial, Normando é um dos criadores da
uniram forças para assentar os moradores em brincadeira, em voga há 14 anos. “Já fui noiva,
construções de alvenaria. Desde então, a posse padre, tudo. No começo era só homem e metade
que já lhes era de direito foi oficialmente repassada se vestia de mulher. Chamava-se Quadrilha do
e o conjunto ganhou nome oficial: São Vicente de Avesso. Mas aos poucos os gays foram tomando
Paula. “Na época das obras, ficou todo mundo num conta. O que a gente faz é um casamento teatral.
alojamento, esperando terminar. Não demorou Tudo dublado e gravado em estúdio profissional,
muito não, mas recebemos só no tijolo, nós que na sede da Cufa. Fechamos a rua e é um sucesso,
rebocamos e pintamos. O bom é que ficou sendo 20 dias de apresentação na Quadra e em outras
nosso”, destaca dona Rita de Melo, 68, ex-lavadeira comunidades”, detalha o também proprietário do
de roupas, hoje pensionista aposentada. bar Parada 868, único “point” da juventude da
Cores e nomes. A Quadra também pode ser Quadra nos demais dias do ano.
tratada no plural: Quadras. “Tanto faz. Quadra Autor do roteiro da quadrilha, Sandiney de Melo
é porque aqui, antes, as ruas não tinham nome. Barros, 26, o Sandy, cobriu a festa de mais glamour

40 F ROL outubro
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e o Brooklin de Fortaleza >>>
este ano. A começar pelo tema: As Divas em lábios carnudos dela”, exibe-se, esticando a língua cereal”, explica dona Teresa, um olho na cartela,
Hollywood. Em cena, As Panteras, Barbie, Richard para mostrar o piercing que, acredita, o distingue outro na caixinha onde o dinheiro vai sendo
Gere, Sandra Bulock, Angelina Jolie. Além de sua da maioria. “Pelo menos aqui na Quadra, ninguém recolhido. Dinheiro que, assim mesmo, às vezes
diva dileta. “Interpretei a Júlia Roberts, no filme Uma beija como eu”, faz piada. Vaidoso confesso, o falta. “Tem vez d´eu sair daqui devendo, mas tem
Linda Mulher. Eu mesmo fiz o figurino: peruca, rapaz de cabelo moicano - outra moda do pedaço que esperar até a sorte mudar de lado”, aconselha,
sobretudo, vestido vermelho colado, salto. E bolei - trabalha hoje como auxiliar de escritório na Oboé experiente. Olhos e orelhas em pé não bastam.
uma surpresa para o final: na hora do casamento, Financeira. Emprego que praticamente lhe bateu à Para meter o bedelho no jogo das mulheres é
a Juliana Roberts, sósia da Júlia, puxa alguém porta. “Além de oferecer cursos de dança, teatro, preciso ter familiaridade com o linguajar utilizado,
da platéia para se casar com a filha dela. É uma artes plásticas, kung-fu e outras modalidades, fruto de inusitadas associações. “Trinta e um”, ali, é
forma de envolver mais a comunidade”, justifica o a Oboé Cultural já empregou muita gente da Telemar. Se alguém grita “Cheio de Bala”, entenda-
cabeleireiro que usa piercing e tatuou o signo no Quadra. Acho importante ela ter vindo se instalar se 38. “Artigo”, só pode ser 57 e “Orelha de Rato”
braço. Envolver a comunidade é uma preocupação aqui, porque de outra forma a gente não iria é o mesmo que 3, enquanto “Pá de Meia” significa
antiga dos homossexuais da Quadra. “Por muitos procurar. É que apesar de morar na Aldeota, a marcar 66. Maria Zélia Pereira, 38, confessa: já
anos, organizamos a Festa do Ancião. O que era? maioria aqui não costuma sair da Quadra atrás viciou. “Ficamos até às seis da noite, mas só porque
Shows e desfiles para arrecadar alimentos. Nisso, de diversão ou conhecimento. Não dá pro nosso aí fica muito escuro e não dá pra ver as pedras.
fomos ganhando respeito e confiança”, garante o orçamento”, observa. Também porque é a hora de fazer a janta do marido
profissional que já conquistou clientela “até nos E porque o orçamento é curto, há ainda quem que volta do trabalho e dos filhos. Venho porque
prédios chiques da Aldeota”. una o útil ao agradável. Na rua da Felicidade, lado preciso e gosto, melhor do que ficar em casa vendo
O respeito mútuo é tanto que Fernando da sombra, a partir de três da tarde, é hora de televisão, gastando energia”, vaticina, econômica,
Amorim, 24, a Sandra Bulock do Arraiá das tentar a sorte. As mulheres “boleiras” chegam aos a dona-de-casa profissional.
Divas, também assume a direção do Arraiá dos montes, estirando-se lado-a-lado ou frente-a-frente Aos 64 anos, a ex-doméstica Maria da
Matutinhos, a quadrilha infantil das Quadras. nas calçadas. Quase não há tempo para conversa. Conceição espia de longe o desfazer da roda
“Coloco essa quadrilha sozinho, sem ajuda de Teresa Alves da Costa, 57, traz as cartelas de mulheres. Não joga porque não tem dinheiro.
ninguém, a não ser das mães que alugam os consigo, distribuindo-as individualmente. As pedras Para ela, um real é muito. São 11 bocas dentro
figurinos. Elas deixam os filhos nas minhas mãos, numeradas que saem de um saco plástico são de casa e uma só aposentadoria. “É do meu
eu alugo um ônibus e nós percorremos vários “cantadas” em alto e bom som, até que a primeira véim. Ele é doente dos nervo”, anuncia. Moradora
bairros. Faço isso porque adoro São João, é o jogadora faça o terno, a quadra ou a quina. Assim da Quadra desde 1968, conta que ali “era tudo
dia do meu aniversário e me realizo duplamente”, acontece diariamente, quer chova ou faça sol. O pregado, ninguém sabia onde começava o quintal
bate no peito. Figurinista e coreógrafo oficial das jogo-do-bicho informal e peculiar, que atrai tanto de um e terminava o do outro”. Banheiro quase
festas comunitárias, entre amigos da Quadra pacatas donas-de-casa em idade avançada quanto ninguém tinha. “Cavava um buraco, botava
atende pelo apelido de infância: Fusca. “Foi meu moçoilas desempregadas, tornou-se ganha-pão uma lata, aí fazia aquele serviço que a gente
pai quem botou. Porque eu era bem gordinho. ou complemento orçamentário para muitas das tem precisão”, lembra. Em sua casa, ainda no
Mas da Quadra para fora, quando dá sexta-feira à famílias da Quadra. Nove cartões por um real. tijolo, sem rebocar, muito pouco mudou de lá
noite, é Fernando”, avisa o também transformista “O jogo é meu. Sempre gostei de brincar, minha para cá. “Todo dia saio oito horas da manhã e
e cozinheiro de forno e fogão que um dia sonha diversão aqui é essa. Boto também Loteria do vou lá no mercantil catar fruta e legume. Nunca
em ser o primeiro estilista saído do conjunto. Sonho, Corujão e dia de domingo é a Cumbuca. gostei de pedir, sempre gostei de batalhar. Sou
Consenso: o melhor ator do Arraiá das Divas Você bota de 1 a 25 pedras na cumbuca, a última batalhadora até hoje”, gaba-se, convidando para
é Ednilberto da Silva, 21, o Dinil, que esse ano que fica é o bicho que dá. Faz tempo que vivo um café coado na hora. “Vamos entrando, a casa
transformou-se em Angelina Jolie. “Só eu tenho os disso. Antes, ao invés da pedra, nós usava os é pobre, mas é nobre”.

outubro F ROL 41
V
O SAL
bem por causa da novela da Globo, Malhação.
Minha filha me ajuda, mas só à noite, que ela
estuda. Eu vou até duas da manhã. Só assim dá

DA VIDA
pra sonhar em terminar a casa daqui a uns anos.
Por enquanto, eu e ela dormimos em cima. Tem
que ser devagar. É que só tem eu por nós duas,
pelo menos enquanto meu mais velho estiver no
quartel”, imagina.
Há seis anos, porque o dinheiro ficou curto, Trabalho sem intervalo, televisão no conserto,
Maria Lúcia Barbosa, 45, foi forçada a interromper um gato como única companhia. Lúcia não
a reforma de casa. A Quadra, como um todo, reclama. Seu lenitivo vem aos domingos, dia de
também é um pouco assim, conformação nunca jogo de futebol nas proximidades da Quadra. “Se
acabada. Mas cada um, a seu modo, reinventa o eu pudesse só vivia dentro dos campos. Adoro!”,
lar. Lúcia fez do andar térreo, ainda precário, local surpreende. Ela é torcedora e colaboradora do
de trabalho. Todo o vão sem reboco ou divisórias time São Vicente de Paula, reforçando a equipe
está tomado de sacos e sacos de retalhos que ela responsável pelo atendimento médico. “Minha
vai trançando até que virem almofadas, colchas, irmã é enfermeira e meu sobrinho é bombeiro.
cortinas e pesos para porta. Em forma de coração Eles me ensinaram os primeiros socorros”,
ou com a bandeira do Brasil estampada. “Comecei credencia. Paixão sem limites. Tanto assim que
com cortinado, fui para rede, mas sempre tem uma quase teve a filha no meio de uma pelada de
hora que enfraquece a venda. Aí experimentei o bairro. “Da Quadra são quatro times. E temos
amarradinho e o fuxico, que até agora tão saindo craques, viu? Por isso a gente é tão convidado pra
jogar em outros bairros”, garante. Mas para pegar
os ônibus que levam os tais craques para bairros
distantes todos os domingos há de se pagar por
isso. E Lúcia dá seu jeito. “Ah, pego uma almofada
e um tapete dos meus e boto na rifa. Só não posso
é ficar sem essa”, diverte-se.
A sobrevivência também vem das mãos de
Cristina Ferreira, 30, e seu ajudante, Leo. Cena
curiosa numa manhã de trabalho na sala de casa,
portas abertas para quem quiser ver: ambos estão
vestidos com roupas femininas, ela enrolando e
recheando os salgadinhos que há um ano bota na
rua para vender, ele botando força sobre o rolo
de madeira para preparar a massa. “Precisava de
um homem para esse trabalho braçal, mas tinha
medo de perder a privacidade. Dei sorte, porque
o Leo é um homem que se sente mulher, então
nos damos muito bem”, comemora a confeiteira.
Leonardo Moraes da Silva é conhecido na Quadra
como Gaivota. Nasceu e cresceu assim. “Uso
saia desde os 12 anos. E nunca tive problema
em arranjar emprego. Ao contrário. Já trabalhei
em casa de família, de garçonete e em buffet. Na
época da campanha para a prefeitura, me vesti
de Luizianne e ganhei muito voto pra ela, viu?
Tiramos até foto juntas”, gargalha.

42 F ROL outubro
V
NANICO, TEIMOSO
E BEM-QUISTO
Do grupo de jovens para a equipe de redação quantidade de analfabetos. Meire gostou
do jornal comunitário. Catarina Érica Morais de saber que a juventude em geral está
Lima, 18, atendeu ao chamado da estudante envolvida em projetos de caráter cultural,
de jornalismo da Universidade Federal do Ceará na Cufa ou na Oboé Cultural. Rachel
(UFC), Milena de Castro. Trabalho voluntário na surpreendeu-se com a diversidade de mão
Quadra, extensão da disciplina de Jornalismo de obra da Quadra. “Aqui temos pedreiros,
Comunitário. “Me interessei de cara porque pintores, marceneiros, cozinheiras, músicos,
sempre fui comunicativa. No começo tivemos costureiras, borracheiros, eletricistas, é
só oficinas para entender como se faz um jornal. muita profissão concentrada num só lugar”,
Depois, fomos pensando juntas as pautas e informa. Já Érica passou a se preocupar
aí começamos a fazer as primeiras matérias. com o problema da densidade populacional
Ainda lembro: foi a coroação de Nossa Senhora, da Quadra. “São 14 pessoas dentro de
o Racha do Lobisomem, que é um futebol que uma casa dessas, às vezes. É todo mundo
tem à noite, próximo ao Hospital Militar, e as amontoado. A gente tem que começar a
eleições para a associação de moradores, que pensar em como garantir moradias melhores
tivemos que cobrir, inclusive fazendo o perfil de nos pequenos espaços”, opina.
todos os candidatos. Tudo sugestão nossa”, Nanico, o Voz da Quadra sai de teimoso.
regozija-se a estudante que se prepara para o O computador para escrever as matérias
vestibular. Opção número um? Jornalismo. é emprestado, a Cufa quebrando o galho
Como Érica, Rachel de Sousa, 16; sempre que possível. Para xerocar, valem os
Alexandrina Fernandes, 18, e Meire Araújo, apoios da Assembléia Legislativa e de quem
18, também reforçaram o time de aprendizes mais quiser e puder financiar. Distribuição
de repórter do jornal mensal A Voz da Quadra se faz de porta em porta. E, por fim, esforço
- nome escolhido pelo grupo, que reúne cinco compensado. “As pessoas gostam muito do
garotas e três rapazes. Para Rachel, a pauta jornal, mesmo quem não sabe ler. Porque
mais instigante e reveladora em um ano de pede para que um outro da família leia
jornal é também o maior desafio que o grupo para ele. Nessas andanças, os moradores
enfrenta. “Estamos fazendo o censo da também sugeriram muitas pautas. Se fazem
Quadra, isso vai virar uma matéria de fim de isso é porque acham que o jornal serve
ano. Batemos em todas as portas para saber para alguma coisa, né?”, acredita Érica.
quantas famílias moram em cada uma, em que Jornalismo para quê? “Continuo acreditando
as pessoas trabalham, quantas são solteiras que o jornalista tem papel fundamental na
ou casadas, quem tem filho ou não... É uma transformação da sociedade. A informação
pesquisa qualitativa, então perguntamos é um bem precioso e perigoso. Todos têm
também sobre religião, grau de instrução e até direito a ela, está na Constituição. Então, é
sexualidade. Tem sido maravilhoso, porque preciso ter ética e responsabilidade na hora de
a gente pensava que conhecia a Quadra, escrever e senso crítico para ler as notícias.
mas não conhecia. Quer dizer, não conhecia Tentamos desenvolver essas duas faculdades
a fundo. Acho que a gente era muito besta! com a galera do jornal”, arremata Milena,
Não queria se misturar”, ri-se. anunciando em primeira mão um novo projeto
Os encontros trouxeram boas e más de comunicação para a Quadra, prestes a se
notícias. Alexandrina se chocou com a viabilizar - a reativação da rádio comunitária.

outubro F ROL 43
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FAVELA POR
CONTA PRÓPRIA
A rua da Alegria é também a da juventude
organizada. Que tomou para si o desafio de
descobrir, legitimar e incentivar o potencial
criativo e as demandas sócio-culturais das
comunidades periféricas. O tempo não
pára na sede da Central Única das Favelas
(Cufa-Ceará), entidade sem fins lucrativos
que vem atuando na Quadra e fora dela,
articulada em âmbito nacional. E se um dia
o movimento hip hop foi primeira e única
porta-de-entrada para envolver as camadas
mais pobres numa rede coletiva cidadã, hoje
os representantes da sigla dominam mais
e mais códigos. “O hip hop fez a gente se
descobrir negro, se indignar com a violência
da polícia e com preconceitos de classe e de
cor. Ajudou a nos articular, unir forças. Só
que ele não precisa mais ser o centro, digo
o tripé rap-grafite-break. Passamos a discutir
cultura, qualidade de vida, economia, política,
gênero, a questão da água... o movimento
virou uma coisa viva. Hoje, cantamos rap,
que é uma forma de fazer crítica social,
mas também queremos montar computador, Zezé, nascido e criado na Quadra: “o crime de Estado pra nós tem sido pior do que o crime organizado”
produzir vídeo, escrever livro, fazer programa
de rádio, ser militante social... tudo sem sair
da comunidade”, enfatiza Preto Zezé, o líder Tanto quanto as cenas, a parceria deu o que e falamos de igual para igual”, dispara Zezé, com
da Cufa local. falar entre militantes sociais. “A relação da Cufa a moral de quem hoje cursa jornalismo numa
Nascido e criado na Quadra, Francisco com a mídia é de interesse. A mídia tem os dela, universidade particular.
José Pereira de Lima, 30, passou de lavador nós temos os nossos. Negociamos durante um Autônoma em si, a Cufa-Ceará faz barulho para
de carros e marceneiro a articulador nacional ano com a Globo até chegar a um formato. Eles além da matriz. Em parceria com o Movimento
da Cufa, mano de confiança de MV Bill e tinham interesse em pegar 36 pontos de audiência Cultura de Rua, também liderado por Zezé, deu
Celso Athayde, os criadores da entidade que e nós em veicular na emissora, porque só lá teria asas à MCR Fonográfica, gravadora independente
nasceu no Rio de Janeiro, há seis anos, e o impacto desejado. Procuramos ter cuidado para em formato de cooperativa, que viabiliza a
hoje se espalha por 18 estados, em parte não virar caso de polícia ou sensacionalismo. produção musical alternativa e aposta na
graças à força da base local. Não à toa, Zezé Foram 58 minutos no ar e ainda hoje o Brasil formação de novos valores. Pelo selo, já saíram
e companhia foram escolhidos por Bill, que debate o assunto. Depois disso, o presidente as coletâneas Favela por Conta Própria e A Poesia
já havia feito dois shows na Quadra, para Lula teve que ouvir a Cufa em Brasília. E mandou Negra dos Intelectuais do Povo, além do CD
produzir o videoclipe de uma de suas músicas, seus ministros apoiarem os projetos e ações que Raízes, do grupo de rap Comunidade da Rima.
“O Bagulho é Doido”, rodado na própria há muito queríamos implantar nas comunidades. São crias geradas em um pequeno estúdio de som
comunidade. Paralelamente, a Cufa-Ceará Ou seja, significou política, poder, visibilidade e, montado na Quadra com o apoio da Fundação
também somou esforços para a difusão do claro, dinheiro. Mas o importante foi ter falado Cepema. Estúdio do qual a comunidade se vale
documentário Falcão, os meninos do Tráfico, por nossa conta, não ser coadjuvante da nossa para os mais diversos e prosaicos usos. “Aqui
dirigido por Bill e Celso, e veiculado pela Rede própria história. Não é mais aquele papo de “faz vem da freira que quer mixar músicas religiosas
Globo de Televisão há quatro meses. aí um rap falando do meu candidato!”. Há respeito com a batida do rap ao cara que faz voz e violão

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em barzinho e precisa ter um mostruário”, resume Conjunto Ceará e Bom Jardim. “A idéia não antigamente, em matérias de jornais e programas
Cristiano Silva, 29, o Dj Doido. é exatamente formar jogadores profissionais, policiais, era a favela da Quadra. A visão
No estúdio de som, Doido é o cara. Nas mas desenvolver a capacidade de agir, reagir externa ainda é um pouco essa, mas melhorou
picapes, idem. Mas foi duro o aprendizado. e interagir dessa galera. E tô vendo a mudança e a mudança tem a ver com a gente, que tenta
“Pivete, conheci droga, cheirei esmalte, tomei nos pivetes. Antes era todo mundo em cima do afirmar outro pensamento aqui dentro e lá fora.
comprimido e fui de gangue de pichador, os muro, jogando pedra um no outro. Ora, eles não O cara precisa assumir as condições em que
Abandonados do Bairro. Passava o tempo na tinham ninguém pra conversar, muitos não têm mora e os valores que tem, não é só calça larga
rua, caía na gandaia mermo. Até que minha em casa a figura do pai. Então, eles mesmos e boné pra trás. A favela tem problema, mas tem
mãe, que era cozinheira do Internato São vêm me chamar, carregam os cones, pegam a uma porrada de coisa boa também. São vários
Miguel, a Febemce, começou a me levar pra bola e, depois que botamos as tabelas novas mundos num mundo só, tá ligado?”, defende o
lá, fiquei interno sem ser, sabe? Aí os caras na quadra, ficam por lá até duas e meia da eletrotécnico que “pegou o beco” das empresas
presos começaram a me aconselhar: “Rapá, por manhã. Nessa, a Cufa classificou três times e montou negócio próprio, depois que o rap lhe
enquanto tu não tá preso, mas se continuar assim para a Liga Brasileira de Basquete de Rua, um abriu a cabeça.
vai acabar fudido que nem nós e tal”. Me toquei campeonato nacional que rola no Rio. Ficamos De cabeça e peito abertos, eles também vêem
e fui fazer um curso de eletrônica para trabalhar. entre os seis melhores. E isso me anima mais por outro ângulo a questão do crime organizado,
Minha mãe tanto fez que acabei no pelotão da do que qualquer som”, afirma. creditado à favela. “De onde vem a cocaína que
polícia. Já pensou? Saí da rua e da droga pra Em parceria com a Fundação Cepema e é feita em laboratório? Não tem laboratório na
polícia, passei bem três ano de farda azul. Mas aí MCR, a Cufa-Ceará ainda desenvolve o Fala favela. Por onde passa, quem vende o éter? E
também fiquei montando som pra banda, fazendo Favela, programa de comunicação popular que esse volume de dinheiro que o crime organizado
festa e vi que dava pra ganhar mais ali. Larguei leva oficinas de break, capoeira, Dj, audiovisual, movimenta, aonde tá? Em um banco. Aqui não
a polícia e nessas fui bater no Conjunto Ceará, o música, grafite e gênero para jovens da periferia. tem quem compre mil conto de pó. E as armas
point do hip hop em Fortaleza. Lá que eu conheci “É mais do que um instrumento de capacitação. que chegam, americanas, suíças? Aqui não tem
o Zezé e o MCR. Eles me chamaram para montar A gente discute ética, autogestão, mercado fábrica de armas. Se isso chega por um lado
o som deles e com um mês tava aprendendo globalizado, meio-ambiente e propõe espaços oficial, então não se trata de poder paralelo, é
na marra a ser Dj. Não sabia nem mexer num alternativos de expressão para os movimentos uma extensão do poder. Se apertar o Marcola
toca-disco. Mas sou sangue no olho e depois sociais. Mas não foi fácil chegar a isso. Quando a e o Beira Mar vai terminar em Brasília. Tá um
de quatro ano de sofrimento aprendi a fazer uns polícia avistava aquela Blazer chegando cheia de campo de guerra? Tá. Mas o crime de Estado
efeito maluco de vinil”, relata, esfuziante. negão, equipamento de som e câmera de vídeo pra nós tem sido pior do que o crime organizado.
De caminhoneiro e motorista de ônibus a parava logo o carro e queria ver a documentação. O crime causado pela impunidade da Justiça,
professor-educador de basquete de rua da Cufa- É uma luta nossa também essa: transformar o pela ausência do posto de saúde, da escola, do
Ceará. Luís Henrique, o Preto Lu, 35, conheceu estigma da favela em carisma. O rap fez isso espaço de lazer. Isso matou e comprometeu mais
o rap e a moçada do MCR através do rádio. em relação à cor. Transformou o negro em uma o futuro da nossa geração do que qualquer outra
“Eu dirigia o Grande Circular e sintonizava na coisa carismática, mas o preconceito ainda coisa”, avisa Zezé.
Universitária FM, que é onde o Zezé até hoje existe”, acredita José Weverton, o W-Man, 30, Armada de pensamento crítico e atitude, a
comanda o programa Se Liga: o Som do Hip Hop, também do MCR. Cufa-Ceará fez-se Ponto de Cultura via Ministério
domingo, a partir das seis da noite. O cobrador, A Quadra é exceção à regra. Para José da Cultura e já comprou sede nova, na própria
que era meu amigo, conhecia ele e foi quem me Adriano Oliveira, o MC Ligado, 29, o lugar Quadra, é claro. A grana para isso veio da
trouxe até a Quadra”, lembra. Há um ano, o MC onde mora foi aos poucos migrando da página bilheteria do último show do Racionais MCs em
topou o desafio de ensinar basquete a crianças policial para os cadernos de cultura, cotidiano e Fortaleza, produzido pela entidade. Porque mano
e adolescentes na comunidade da Quadra, política. “Mesmo estando no coração da Aldeota, ajuda mano. Na moral. <

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Texto nas rodovias que margeiam as comunidades Farol - Vamos começar com as perguntas
Clarisse Furlani da periferia. E como se teme aquilo que se do Preto Zezé, o líder da Cufa em Fortaleza. Ele
desconhece, periferia passa a ser sinônimo de quer saber como surgiu a idéia do programa
A favela é uma planta sertaneja. Na banditismo, violência. Pelo menos nas páginas e questiona: O programa Central da Periferia
descrição de Euclides da Cunha: “as favelas, de jornal, na tela da TV. Com uma experiência representa uma abertura da Rede Globo
anônimas ainda na ciência – ignoradas dos de quase três décadas na maior - e mais à produção cultural mais popular ou uma
sábios, conhecidas demais dos tabaréus questionada - das mídias brasileiras, a Rede estratégia de ampliar mercados?
– talvez um futuro gênero cauterium das Globo, Regina Casé mudou o foco da câmera, Regina Casé - Com certeza não, porque esse
leguminosas, têm, nas folhas de células para mostrar como vive, se emociona e se diverte programa foi todo idealizado por nós e a gente
alongadas em vilosidades, notáveis aprestos a maior parte do Brasil, o povo da periferia. Numa apresentou a eles, como, aliás, todos os projetos
de condensação, absorção e defesa”. A planta parceria duradoura com o antropólogo Hermano que eu já fiz até hoje - a não ser novela, que eu só
batizou o Morro da Favela, em Canudos, Vianna e com o diretor de televisão Guel Arraes, a fiz duas na vida inteira (Cambalacho e As Filhas da
Bahia; de lá, o nome veio e se popularizou. atriz levou ao ar o Programa Legal, a partir do qual Mãe). Qualquer outra coisa que eu fiz foi proposta
Uma vez, Regina Casé - atriz, apresentadora, nasceram o Brasil Legal, Brasil Total e outros que nossa. Não há um convite ou uma conversa
roteirista - subiu o Morro da Providência, no Rio acabaram por resultar nos atuais Minha Periferia anterior em que a Globo fale: “olha, nós estamos
de Janeiro, para contar esta história. Foi ainda e Central da Periferia. precisando ampliar mercados e tarará...”. Não tem
na década de 1990, para o Programa Legal. Se a favela agora está na tela, está também uma conversa assim. A gente é quase compelido a
Mas poderia ter sido na semana passada, do outro lado: o da audiência. A periferia se fazer o programa, pelo cotidiano da gente, o que a
no Um Pé de Quê?, programa educativo reconhece no que vê? De Fortaleza, integrantes gente já estava fazendo antes. O programa quase
sobre botânica exibido no Canal Futura. da Central Única das Favelas (Cufa-Ceará) põem que registra ou formaliza uma coisa que já estava
Ou nos globais Minha Periferia e Central da na berlinda o trabalho da atriz e do antropólogo acontecendo informalmente. Por exemplo: os
Periferia, exibidos em horário nobre.  É que, no Hermano Vianna, questionando os interesses quadros de cidadania que a gente já vinha fazendo
trabalho de Regina, “é tudo junto e misturado”:  comerciais da emissora, a espetacularização da no Fantástico. Eram adolescentes, crianças,
Divulgação/tv globo

botânica e periferia; educação e comunicação pobreza, o papel da televisão no Brasil. A atriz, que velhos. Eu não ia só para a periferia, mas sempre
de massa; Vidigal e Leblon; Brasil e África; sempre prefere o olho-no-olho, topou responder ia também para a periferia, porque eu achava que
responsabilidade social e televisão; humor e às perguntas ao vivo e em cores, a repórter eu não ia falar de adolescente e ficar em Ipanema,
papo sério.    fazendo a interface entre ela e os entrevistadores no Leblon, porque aquele não é o adolescente
Como a favela, a planta, as favelas brasileiras da Cufa-Ceará. O bate-papo exclusivo com a absoluto, ao contrário, ali é a minoria absoluta de
talvez sejam ignoradas pelos “sábios” - que Revista Farol foi em sua produtora, Pindorama, no adolescentes. E sempre percebi, apesar de estar
enterram o pé no acelerador ao passar bairro da Gávea, Zona Sul carioca. dentro da mídia, e da mídia mais oficial como é a TV

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A favela pergunta,
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Globo, que o que era considerado pelos jornais, nenhuma árvore”... E galinha que a gente não
pelas revistas, pela televisão, como o absoluto, sabe o nome vai pra panela! Quando você sabe o
como o todo, não era a realidade. Você abre nome, e conhece, e sabe o que aquilo representa
o caderno de cultura e lá diz: “a última moda na tua vida, é a mesma coisa da periferia... Tem
agora é levar crianças pra tomar café na livraria; um monte de árvore aqui, você olha pra lá e não
todo mundo agora toma café na livraria”. Todo sabe o que é nada daquilo, é um borrão, você
mundo quem? Primeiro quantas pessoas fica míope, você tá olhando pra lá sem óculos.
compram aquele jornal? Depois, daquelas A partir do momento que você reconhece, sabe
que compram, quantos vão numa livraria, já o nome, você passa a ter outra relação com
foram uma vez na vida? E aquilo é sempre aquilo. Na favela, o que as pessoas acham que
colocado como um dado cultural absoluto. Isso têm? Bandido, que vai me dar medo. Se você
sempre me incomodou, sempre achei isso uma sabe que tem a Dona Quininha, Seu Agenor, que
patologia social. Não que você não devesse tem o José, que tem a Maria, e você vê no meu
cobrir as artes plásticas, o teatro ou o cinema, programa a vida daquelas pessoas, as casas
mas parece que aquilo dali está acessível e daquelas pessoas, você vê que tá reclamando que
aberto para toda a população.  Só que a gente enfrenta a violência para ir para o seu trabalho,
sabe que a maioria avassaladora nunca foi ao mas aquela pessoa enfrenta isso toda hora... E
teatro, nunca foi ao cinema e vê televisão o dia o que é mais bonito: sabe por que eu tenho um
inteiro. Então, se a televisão é boa ou não, se eu tentar trazer pra esse veículo, que todo mundo programa no Futura? Porque eles fizeram uma
ver televisão tanto assim é bom ou não, é uma no Brasil tem acesso e vê, alguma coisa de legal? pesquisa pra ver qual era o programa educativo
outra discussão. Eu nasci e vivi até hoje num Eu acho que o programa é quase como que “o que as pessoas mais gostavam. E a geral falou
país em que o tamanho que a televisão ocupa rei está nu”, a gente tá há muito tempo circulando que era o Brasil Legal! Era um programa da TV
na vida das pessoas é gigantesco, mas você entre os dois mundos e vendo como não dá para Globo, no horário nobre, e foi considerado em
vai na livraria e tem estantes e estantes sobre ignorar a televisão, assim como não dá para ignorar todas as pesquisas como um programa educativo
teatro, sobre cinema, filosofia e uns quatro a periferia, a periferia é maioria. E esses lugares ... E aí a gente foi pro Futura e o que aconteceu?
livrinhos sobre televisão, três são a biografia “não existem” porque todo mundo tem medo do que O programa da Futura, o Pé de Quê, passa na
do Daniel Filho... Aquilo ocupa a vida de todas não conhece, e se você não conhece nada daquilo, Globo, de manhãzinha mas passa, porque a
as crianças, jovens, ocupa um espaço enorme, aquilo te mete tanto medo que a coisa que você Globo teve interesse, e todos os programas que
e ninguém pensa sobre isso. E também tem o mais quer é sumir com aquilo, você quer que aquilo eu fiz na Globo passaram no Futura. O que mostra
outro lado... Eu acho que tem duas relações de fato não exista. E se você coloca isso dentro da que o conteúdo e o formato que eu trabalho na
com a televisão, e as duas equivocadas, e televisão - e daí o Central da Periferia -, se você TV aberta poderia estar na TV educativa e o que
eu acho que o nascimento deste programa botar isso na mídia, mesmo que você não botasse eu trabalho na TV educativa poderia estar na TV
é para isso. A relação com a televisão é: da melhor maneira, só em você iluminar aquilo de aberta. Foi legal você ter feito essa pergunta pra
ou adesão absoluta, que é quem ama, quer alguma maneira, por si só já é um grande passo. eu poder falar isso, porque eu acho que o mal no
trabalhar, o sonho é estar no Big Brother, vai a Depois o telespectador faz o julgamento dele. Brasil é a pessoa achar que a educação é o fel,
qualquer programa, vê televisão o dia inteiro,   é o gosto ruim, é o difícil, você tem que dar uma
recorta a fotografia do Cauã e cola na parede Farol - Você tem hoje duas linhas de trabalho colher de mel para tomar o remédio ruim, então
e tarararará, e o outro lado, que a televisão é dentro da televisão, na TV Globo (que exibe os você vai enrolar o jovem, a criança, como se
o mal do mundo, que é o diabo em pessoa, programas Minha Periferia, no Fantástico, ele fosse trouxa, com alguma coisa doce, para
que as coisas estão como estão por causa e Central da Periferia) e no canal educativo ele engolir o que é educação. E eu acho que a
da televisão... O problema é que a televisão Futura (que exibe o programa Um Pé de Quê). educação é o mel. Você ter uma informação nova,
existe, ocupa papéis que nem eram pra ser São públicos diferentes, objetivos diferentes. você aprender alguma coisa que você não sabe,
dela, é babá, professora, é o cinema, o teatro, Qual é o papel de cada um? tem que ser bom, tem que ser prazeroso.
a literatura, ela é tudo isso na vida de milhões Regina - Acho que está tudo junto e misturado.  
de brasileiros. E eu acho que melhor do que eu Acho que o fato de o Pé de Quê? estar na Futura, Farol - Eu vou retomar as perguntas da Cufa.
ficar criticando num debate com 50 pessoas, é só porque a Futura pediu pra gente um programa Preto Lu pergunta: O programa se propõe a dar
ou num jornal que pouquíssima gente vai ler, que eu não tinha interesse de fazer na época, um visibilidade à produção cultural da periferia
falar mal daquilo e não tentar mudar essa debate com jovens, tipo Serginho Groisman, eu em sua forma mais autêntica. Mas o programa
realidade, melhor é fazer outra coisa. Então, falei: “ah, esse programa eu não tô com vontade, tem pretensões de forjar mercado para novos
é melhor o cara nunca ir ao cinema e não ver mas eu tenho há um tempão vontade de fazer produtos derivados dessa produção que é
aquele filme genial que eu fizer ou é melhor um programa assim, acho que ninguém conhece incorporada pela Central da Periferia?

a Regina responde outubro F ROL 47


V
não dá para ignorar a perife
Regina - A relação com a Globo sempre foi patrimônio, é igual você construir um castelo. Regina - Primeiro, não é um critério geográfico. É
totalmente tranquila. O que eu acho que acontece Hoje em dia eu tenho um castelo de que eu me um critério ideológico. Por exemplo: se você pensa
é o seguinte: se a gente tivesse chegado do nada, orgulho muito, porque não é de um dia para o outro o Brasil todo, dentro do Brasil tem vários centros e
um grupo qualquer - a gente não pode mais nem que a pessoa vai abrir a porta para você entrar várias periferias. Agora, se você pensa o Brasil em
dizer isso da Cufa, porque a Cufa, depois do na casa dela e ter confiança em você, que você relação aos Estados Unidos e à Europa, o Brasil
Bill e do Celso, da relação deles com TV Globo não vai sacanear ela, que você vai tratá-la com todo é uma periferia. Se você pensa Recife, tem um
também mudou muito - mas mesmo a Cufa, há respeito. Isso demora muito tempo, são 30 anos, bairro chiquérrimo, com prédios altos, todo mundo
um tempo, se chegasse e falasse que quer fazer tanto dum lado como do outro. Hoje em dia eu até com carro importado e um monte de favela. Agora
um programa que é todo gravado na favela, que peço ajuda, consulto a Globo, porque eu não tenho se você pensa Recife inteira, mesmo com esses
todos os artistas são de lá da periferia... Não é interesse em fazer um programa chocante, em que prédios altos, caros e esses carros importados,
que a Globo ia ficar com o pé atrás, mas talvez todo mundo da periferia - que já conhece todos em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo, Recife
ela falasse: “será que isso é viável?”. Primeiro, aqueles assuntos e que sabe daquilo tudo - vá me inteira é uma periferia. Então, é um critério político,
dá pra fazer isso? Como é? Você vai entrar na achar muito legal, e o pessoal que não conhece ideológico, não geográfico. Basta ver que no Rio
favela? Outra parte seria: “mas alguém quer ver rejeite simplesmente e não veja. Tenho que achar de Janeiro o Vidigal é do lado do Leblon, que é o
isso?”. A TV Globo é uma concessão, então tem um lugar que ao mesmo tempo eu não esteja metro quadrado mais caro do Brasil, e o Vidigal é
responsabilidade social, e a gente cobra isso. fazendo uma coisa que não tenha nada a ver, só periferia. Esse nome também foi difícil pra eu usar,
Agora, não é tranquilo chegar lá e dizer “vamos para agradar o público. Mas isso não é concessão, porque sempre falei favela, nunca periferia. Mas
fazer o Central da Periferia. “Ah, vamos!”. Mas isso é intencionalidade. Eu podia relaxar e botar tinha que ser uma coisa que todas as pessoas
também não tem uma coisa maquiavélica, uma só as pessoas daquela comunidade tocando, se entendessem, porque aqui no Rio a gente fala
estratégia: “estamos precisando desta fatia eu fizer isso ninguém vai ver o programa, tem que favela, em Minas fala aglomerado, no Sul fala
do mercado”. Isso é uma coisa que vai sendo ter algo mais.  Mas eu não vou botar como atrativo vila. Lá em Moçambique, tudo eles chamam de
construída há muitos anos, tanto de um lado como uma coisa que eu acho caída, só para agradar os subúrbio, só. Eles até já começam a chamar de
do outro. Eu acho que, se eu chegasse hoje, eu outros. Isso é um trabalho constante. favela porque vêem na televisão, as cenas aqui do
sou de uma ONG X, vou lá e mostro um projeto,   Rio, e morrem de medo! Para você ver: eles são
não sei se esse projeto ia ser aceito. Agora, a Farol - Mais uma do Zezé: “Durante muito africanos, pretos, favelados, moram numa favela
gente faz isso há mais de 30 anos. O primeiro tempo as manifestações do povo ficaram muito mais favela do que qualquer uma daqui,
programa que eu fiz do Programa Legal, em silenciadas, pelo mercado e pelo preconceito e quando você fala de uma favela do Rio, eles
91, foi todo sobre baile funk. Me lembro que eu da classe média. A ponto de a própria classe morrem de medo. E perguntam: “como que você
mostrava para qualquer pessoa que não era da média, agora, estar reproduzindo em seus teve coragem de ir?” Qualquer espaço da periferia
Globo e falavam: “você acha que isso vai passar espaços as manifestações das comunidades é criminalizado, só que tem aquilo que em inglês se
na Globo? Só tem preto, favelado!”, Isso em como sendo suas. Quem realmente é centro chama “gun culture”, a cultura das armas, da droga,
91! E realmente o programa não passou logo de e periferia?” da favela, uma glamourização... Não tô falando
cara, mas a gente fez um outro, eles entenderam que não é perigoso. É, mas o jeito que aparece
o formato... Entenderam, acharam legal, mas na mídia faz com que essas pessoas tenham uma
talvez tenham achado muito radical, falava de
arma, de droga, de tudo, e com humor. Aí a gente
do jeito que impressão equivocada do que é a vida das pessoas
que moram na periferia. Vira um monstro.
gravou um segundo, no mesmo formato. Depois
que esses dois passaram e que foi tudo bem é aparece na mídia, Farol - Dentro deste tema, vou puxar um
que o terceiro programa, o do funk, que já tava questionamento do Déo, também da Cufa-Ceará:
gravado, foi levado ao ar. Quer dizer, demorou as pessoas têm “Por um lado, o Programa “Central da Periferia”
dois programas pra Globo ter segurança... E não mostra os aspectos positivos de nossas
é só a Globo, o telespectador também rejeita pra
caramba. Mesmo o telespectador negro, e da
uma impressão periferias e do nosso povo, mostra um outro
ponto de vista. Por outro, acaba celebrando
favela, se ele liga a televisão e tá passando uma
coisa estranha, que ele não tá acostumado a ver,
equivocada de a condição de sermos favelados. Você acha
que só existem mesmo dois caminhos para
automaticamente o cara muda. o povo dos subúrbios: o crime ou o estrelato
quem mora na passageiro, ao invés de sermos vistos como
Farol - E como foi a aceitação do público agentes de transformação social?”
quando você chegou a primeira vez para
fazer um programa com uma veia mais bem
periferia. Vira um Regina - Claro que não existem só esses
dois caminhos. O programa não mostra isso.
humorada num baile funk? Teve algum tipo
de resistência?
monstro Eu acho que existem outros caminhos. Aliás,
se você escrevesse um “release” do programa,
Regina - Eu vinha da TV Pirata. A recepção seria bem esse: “quantas soluções criativas ou
sempre foi muito boa. Você vai construindo um diferentes a periferia está apontando” ou “quantos

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ria. A periferia é maioria >>>
fenômenos estão acontecendo na periferia que
nunca aconteceram antes, que são novos”. Por
exemplo, a popularização do celular, da Internet,
agora está lá a lan house atrás da oficina, da
farmácia... Isso faz com que um determinado
tipo de tecnologia tenha chegado às mãos da
periferia, e a gente vê a resposta que a periferia
deu a isso: como um estúdio que tem em qualquer
favela, como qualquer pessoa poder gravar o seu
CD... Isso deu um resultado, uma resposta, uma
expressão totalmente nova. Porque antes você
podia ter milhões de coisas que queria fazer,
músicas que você queria cantar, coisas que
você queria dizer, mas tinha que ter alguém que
saísse do centro, que fosse lá, que apadrinhasse
aquilo, que pescasse aquilo e trouxesse pra uma porque milhões de vezes eu tô numa situação
gravadora, para aquilo acontecer. Eu gostaria totalmente nova. Por mais que eu já tenha ido a
que a periferia tivesse mais acesso à tecnologia baile, tenha ido na favela, não sei o quê, tem vezes
e mais possibilidades de tudo. Vou fazer um puta que eu tô fazendo uma matéria sobre a coisa mais
parêntese, mas eu faço questão de dizer: tem legal, mais animada, com um monte de crianças...
ONG pra tudo, audiovisual, circo... Mas pra mim, Isso aconteceu comigo agora em Porto Alegre.
sabe qual seria a primeira coisa que qualquer Eles estavam contando um negócio engraçado
ONG que fosse pra qualquer periferia devia fazer? do nome daquela favela, “Maria Degolada”, e eles
Aula de português. Porque se o cara não sabe disseram que era por causa de uma árvore que outra coisa; eu ia lá no Vidigal, eles falavam: “mas
falar português, não sabe escrever português, caiu por cima da mulher. Aí eu perguntei: na época vem cá, por que você não vem aqui pra ver a
ele não sabe apresentar um  projeto, ele não do seu pai, da sua mãe, ainda tinha esse nome? gente dançando de “Rebelde”, meu irmão tem um
consegue narrar o audiovisual, ele não consegue O menino falou “não sei”. E eu falei: “por que você grupo de pagode e quer te mostrar, por que não
escrever o livro que ele tava querendo escrever não pergunta, então, pra sua mãe ou pro seu pai? tem um show aqui?”... Então é uma cobrança, as
sobre aquele lugar. A não ser um expoente, vai Ele falou:  “a minha mãe já morreu”. “E por que não pessoas querem me mostrar o que tem de bom
ter um Paulo Lins, um Ferrez, mas uma coisa aqui pergunta pro seu pai?”. “Meu pai tá na cadeia”. Aí na favela. Mas às vezes eu fico no fio da navalha,
outra lá. Não adianta você fazer inclusão digital, eu falei: “Mas então você pergunta pro pai dele?”. porque  conversar com oito crianças em que seis
aula de audiovisual, nada disso, se as pessoas O outro falou: “meu pai tá na cadeia”. Eu estava dos seus pais estão no sistema, e eu não tocar no
não sabem se expressar na sua língua. conversando, acho que com umas oito crianças, assunto, passar batido, ou vai parecer que eu sou
alegríssimas, rindo, elas tinham passado o dia uma insensível, ou que eu sou uma alienada, ou
Farol - Deixa eu colocar a segunda pergunta cantando, rindo, me mostrando coisas incríveis... que eu estou querendo só o carnaval... Ao mesmo
do Déo, que está no mesmo tema: “A boa Dos oito, acho que seis dos pais estavam no tempo, se eu entrar ali, é um poço sem fundo, e aí
aceitação do programa se deve ao fato de que sistema! E mais adiante, a gente conversando, ele a coisa envereda totalmente pro outro lado. Então
ele nos joga na eterna condição de “exóticos”, pegou uma cápsula de uma bala, e daqui a pouco é muito difícil pra eu entrar um pouco e ficar um
só somos interessantes enquanto somos pegou outra, e por mais que você não queira... Eu determinado tempo naquele assunto, pra mostrar
“exóticos” para a classe dominante? cuido de não entrar nesses assuntos, porque claro, que aquilo existe mas que apesar disso aquelas
Regina - Não é exótico. Por exemplo, a gente isso é molinho, você entrar na favela para falar que crianças são alegres, animadas, e que tem o resto
foi agora pra Porto Alegre. Eu fiquei oito dias na ali tem bandido, que tem traficante, que tem bala da vida delas. Essa medida é muito difícil, eu
Restinga antes de ter o show, para não cair de perdida... Eu tomo cuidado pra não ir pro lado de sofro pra caramba com isso. Às vezes eu fico tão
pára-quedas. Se não, é igual você sair na escola criminalizar, porque eu acho que o programa tem chapada vendo como é que uma pessoa que tem
de samba, vai no barracão, pega a fantasia  e sai. uma intenção clara, que é descriminalizar o espaço tão pouco, que sofreu tanta injustiça, que é vítima
Mas no programa não é exótico, eu acho que a da periferia. Então, se só aparece um lado, eu de tanto ódio, tanta discriminação, de tanta falta
periferia me conhece há muito tempo, eu conheço tenho que contrabalançar pro outro, eu tenho que de oportunidade, ainda assim ela tá conseguindo
a periferia há muito tempo. Acho que nem ela me procurar o que é que tem ali de afirmativo. Mas me mostrar tantas coisas incríveis, coisas que eu
vê como a Xuxa, nem eu a vejo como exótica. Isso mesmo assim, eu não tô procurando, forçando a nunca vi, ou uma música que é tão legal, a casa
aí tá tranquilo, tá limpo há muito tempo, não é barra, todo mundo morrendo do meu lado e eu dela que é arrumada de um jeito tão legal... Eu
agora fazendo esse programa que a gente vai criar pulando os cadáveres e falando de pagode, não é sei que às vezes eu devo parecer uma idiota,
uma encrenca onde não tem; não tem mesmo. assim. As próprias pessoas que estão ali querem mas realmente eu não posso fingir que aquilo não
Agora que a TV possa ver, ou que as mídias tá me impactando, porque é muito impactante.
possam ver como exótica, é um perigo. Pode até parecer que eu estou glamourizando,
ou que eu tô alienada, mas é meu jeito, eu sou
Farol - E existe uma linha de conduta tua e da essa pessoa, eu tô fazendo o melhor que posso,
tua equipe para evitar um formato que favoreça não tento esconder isso, entendeu? <
essa visão?
Regina - Sim, há um cuidado, e também é o
seguinte: eu posso incorrer em milhões de erros,

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paisagem
human V
drawlio
joca

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