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FISICULTURISMO
Flávia Mestriner Botelho*
Cite este artigo: BOTELHO, Flávia Mestriner. Corpo, risco e consumo: uma etnografia das atletas
de fisiculturismo. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências
Sociais - IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 104-119, jul. 2009. Semestral. Disponível em:
<www.habitus.ifcs.ufrj.br>. Acesso em: 13 jul. 2009.
Resumo do artigo: o estudo aqui apresentado é resultado de uma pesquisa de Iniciação Científica,
e tem como objetivo compreender a relação existente entre a construção dos corpos das atletas de
fisiculturismo e o mercado de consumo voltado para o corpo. O objeto do estudo é a lógica do risco
na construção das práticas corporais entre as atletas desse esporte. Essas mulheres buscam, através
de seus corpos, elaborar projetos individuais, que se apóiam no desafio de limites físicos pessoais, e
construir marcas de diferenciação pessoal. A pesquisa foi realizada no ciberespaço, em páginas
pessoais das atletas e comunidades do Orkut que reúnem praticantes do fisiculturismo e discutem
treinos, dietas e o uso de esteróides anabolizantes. A discussão teórica se apóia na Antropologia do
Corpo, principalmente nos trabalhos de Le Breton.
1. Introdução
D
esde a Antigüidade clássica as sociedades ocidentais procuram por um padrão de
beleza ideal, entretanto, é no século XX que o corpo ganha lugar e valor centrais nas
sociedades modernas. É o chamado culto ao corpo, ideologia que tem como eixo
central a preocupação com o volume e as formas do corpo. Tal preocupação se reflete nos números
crescentes da indústria da beleza, expandindo o mercado de consumo voltado para a forma física. A
idéia de culto ao corpo vai ser aqui abordada, sob a perspectiva de Castro (2003, p.15), para quem o
culto ao corpo é:
um tipo de relação dos indivíduos com seus corpos que tem como preocupação básica o seu
modelamento, a fim de aproximá-lo o máximo possível do padrão de beleza estabelecido. De modo
geral, o culto ao corpo envolve não só a prática de atividade física, mas também as dietas, as cirurgias
plásticas, o uso de produtos cosméticos, enfim tudo que responda á preocupação de se ter um corpo
bonito saudável.
A história mostra que muitos padrões de beleza foram criados e modificados conforme os
costumes de cada época. Contudo, na década de 1980 o corpo ganhou uma valorização nunca antes
vista, tornando o culto ao corpo uma verdadeira obsessão sendo, no início do século XXI,
transformado em estilo de vida. Isso se deve ao fato de, nessa época, as práticas corporais terem se
tornado mais regulares, fazendo parte do cotidiano dos indivíduos, o que motivou a proliferação das
academias de ginástica por todos os centros urbanos (CASTRO, 2003, p.24). Nasce nesse período, a
chamada Geração Saúde, que tem como valor cultural a preocupação com o volume e as formas dos
corpos. Comportamento que reflete diretamente nos números crescentes da indústria da beleza
dessa época, marcando a expansão do mercado de consumo voltado para o corpo (2003, p.24).
Essa preocupação com o corpo é hoje, uma preocupação geral, perpassando todos os setores
da sociedade, independente de classe social ou faixa etária. Tal preocupação é facilitada pela mídia
que todos os dias nos bombardeia com notícias, programas de TV, reportagens em revistas e jornais
trazendo manchetes sobre como ter o “corpo perfeito”, qual a dieta da moda, os “milagrosos”
produtos que acabam com a sua “gordurinha” localizada em apenas alguns dias e mostrando
imagens de homens e mulheres com seus corpos esculpidos e bronzeados. Há ainda os especialistas
que nos dizem como é importante para nossa saúde ter o corpo “em forma”. Tal ideologia está,
segundo Castro, apoiada num discurso que ora lança mão da questão estética, ora da preocupação
com a saúde (2003, p. 28). O trabalho desenvolvido por Azize (2005) sobre o consumo de
medicamentos relacionados a “estilos de vida” aponta igualmente nessa direção de um alargamento
do conceito de saúde que ganha os sentidos de “qualidade de vida” e “estilo de vida saudável”, em
práticas de consumo que, incentivadas pela mídia, vão além de evitar e combater doenças.
Em meio a essa preocupação, na década de 1980, chega ao Brasil uma nova prática de culto
ao corpo, denominada de fisiculturismo. Nascida na Europa no século XIX e difundida nos Estados
Unidos a partir do início do século XX, o fisiculturismo, ou Bodybuilding é o “esporte que visa
desenvolver o tamanho muscular entre definição, proporção, simetria estética e harmonia ”. [1]
Os/as praticantes devem se apresentar em um palco, fazendo coreografias de dança ou exibindo
seus corpos dentro de micro biquínis, em poses também coreográficas, nas quais procuram o
melhor ângulo para exibir a definição muscular, sendo julgadas pela sua beleza e simetria corporal,
nesse caso relacionada à definição muscular.
Para que o ideal de beleza do fisiculturismo seja atingido, o mercado coloca à disposição um
conjunto de saberes e práticas que vão desde dietas, suplementos alimentares, uso de esteróides
anabolizantes e a prática excessiva de exercícios físicos. [2] O fisiculturismo aliado ao consumo
desse tipo de produto pode ser analisado como uma alternativa ao padrão estético do corpo
feminino de maior aceitação, ou seja, o da mulher magra, esbelta e com um corpo definido, mas sem
exageros quanto à musculatura. Melhor dizendo, a decisão de algumas mulheres por construir
corpos extremante fortes e definidos seria uma tentativa de construir identidade numa sociedade
que as homogeneíza, seria a procura por uma diferenciação. O Objeto dessa pesquisa é, pois, a
lógica do risco na construção das práticas corporais entre as mulheres fisiculturistas.
O presente estudo é resultado de uma pesquisa de Iniciação Científica e tem como objetivo
analisar como as mulheres praticantes de fisiculturismo significam esse padrão estético e,
principalmente, como elas o situam face ao padrão de beleza feminino mais corrente. Pode-se
pensar em um padrão alternativo que se contrapõe a um padrão hegemônico? E, além disso, como
elas percebem os riscos que envolvem tal prática? O que elas estariam expressando através de seus
corpos? São projetos individuais que se apóiam no desafio de limites físicos pessoais como
tentativas de atribuição de sentido à vida? Pode-se afirmar que são projetos que ressignificam
lógicas de risco, uma vez que os riscos desafiados nesse tipo de prática representam uma forma de
ganhar status dentro do grupo ao qual pertencem?
O Bodybuilding constitui, assim, uma das manifestações mais espetaculares de uma cultura da
aparência do corpo... mas ele não é simples espetáculo: ele é sustentado por uma indústria, um
mercado e um conjunto de práticas de massa.
São muitas as técnicas de mudança corporal que o mercado coloca à disposição de uma
parcela cada vez maior de consumidores, incluindo aí as técnicas praticadas entre as mulheres
adeptas do fisiculturismo. Estevão e Bagrichevsky (2004, p.18), expõem algumas dessas técnicas e
trazem a noção de fisiculturismo como a:
representação de uma prática corporal tanto masculina como feminina de características peculiares:
emprego de um regime de treinamento físico diário muito intenso, no qual predominam inúmeros
exercícios de força com pesos, concomitantemente à administração de elevadas doses de hormônios
anabólicos androgênicos (sintéticos), para a aquisição de exacerbada quantidade de massa muscular
corpórea e para significativa redução de tecido adiposo, com fins estritamente estéticos.
Essas substâncias utilizadas entre as fisiculturistas para aumentar a massa muscular são
derivadas de hormônios masculinos como a testosterona, que tem efeito androgênico e anabólico, o
que causa nas mulheres que fazem uso um efeito masculinizante na aparência.
Esse dualismo é expresso, segundo o autor, com radicalismo pelos bodybuilders. Ele
acredita que essa visão sobre o corpo seja uma forma de resistência simbólica na tentativa de
construir ou restaurar um sentimento de identidade ameaçada.
Sabino (2004, p. 23) também mostra essa mudança de posição do corpo, que “de meio para
atingir um ideal, tornou-se, para muitos, um projeto”.
Os questionamentos a respeito desse tema surgiram a partir do interesse em descobrir o
porquê de se arriscar em nome de um padrão corporal. A cultura da “corpolatria” (ESTEVÃO, 2004,
p.13) passou a ser fundamental na sociedade atual. Práticas como a musculação, consideradas
saudáveis, podem levar os indivíduos a conviverem com problemas de saúde crônicos ou até mesmo
levar á morte, quando associadas ao consumo de substâncias artificiais para aumentar a massa
muscular.
Outra justificativa para essa pesquisa é a necessidade de situar esse debate no âmbito da
Antropologia do Corpo, já que a maioria dos estudos feitos sobre a questão do corpo e da saúde
entre os fisiculturistas se encontra inserido em áreas como a Educação Física, o Esporte e a Saúde
Pública. Os que levam em consideração a teoria antropológica são normalmente relacionados ao
sexo masculino ou, então, quando fazem referências às mulheres são mencionados de forma
generalizada. Não encontrei, até agora, nenhum estudo que tratasse especificamente de
fisiculturismo entre as mulheres.
2. Metodologia
A pesquisa foi realizada no Ciberespaço, em sites que discutem e dão dicas de treinamento,
suplementação e de uso de esteróides anabolizantes. Nesses sites, são encontrados artigos,
reportagens, imagens relacionadas ao tema, além de muitas propagandas de produtos para ficar
com o “corpo perfeito”. Foram analisadas também comunidades do Orkut que têm como objetivo
reunir mulheres praticantes do fisiculturismo, além de comunidades que discutem o uso de
anabolizantes e treinamentos. [3] Devido ao grande número de comunidades, foram selecionas
inicialmente seis, que mostram uma parte do cotidiano dessas participantes, e ajudam na
formulação das questões para as entrevistas me direcionado aos perfis a serem analisados e ás
outras páginas sobre o tema, através de links. São elas: “Sou mulher e amo musculação”,
“Obcecados por hipertrofia”, “Musculação + Anabolismo”, “Fisiculturismo Feminino”, “Female
Muscle Show” e “Mulher musculosa, um colírio”.
Apesar de informações divergentes sobe o assunto, o fisiculturismo vai ser tratado aqui
como esporte, já que possui algumas federações e uma confederação no país, a Confederação
Brasileira de Musculação e Culturismo. Além disso, todas as informações que foram obtidas através
de informantes tratavam tal prática como esporte. O reconhecimento do fisiculturismo como
esporte tem sido uma luta a parte para esses atletas. São, portanto, são chamadas de atletas de
fisiculturismo nesse trabalho as mulheres com quem realizei entrevistas, já que participam de
campeonatos, disputando prêmios em uma dada modalidade. E as mulheres que participam e
debatem em comunidades são tratadas como participantes dessas comunidades, pois não obtive
dados para afirmar se participavam ou não de competições, sendo que o fisiculturismo é
referenciado por elas como uma opção pessoal com fins de produzir uma modificação corporal.
No Orkut foram analisados os perfis tanto das atletas entrevistas como algumas das
participantes das comunidades relacionadas. A análise desses perfis pode trazer dados importantes
do cotidiano dessas mulheres, bem como as fotos postadas ajudam a visualizar os efeitos dos
intensos treinamentos, da suplementação e do uso de hormônios artificiais. Algumas das atletas
pesquisadas também possuem sites pessoais, que contam sua trajetória de vida, no esporte e
expõem seu estilo de vida, estes sites também serão analisados. A partir da observação dessas
comunidades, foram identificadas algumas atletas, com as quais entrei em contato e pude realizar
entrevistas via email e via mensagem instantânea.
Para que essa compreensão fosse possível, foi utilizada no trabalho de campo a observação
participante, técnica através da qual a pesquisadora analisa e participa das listas de discussão
criadas em páginas e comunidades na Internet, pois como observa Rifiotis (2002, p. 13) “é a efetiva
participação nos diálogos e nos interesses dos interlocutores que marca a observação etnográfica”.
Além da participação observante, estão sendo realizadas entrevistas que acontecem através da troca
de emails ou em chats de conversas instantâneas, com os participantes. As mensagens dos chats de
conversa instantânea lembram uma conversação, pois acontecem “em tempo real”, enquanto que no
email ela acontece em assincronia, é enviada de um emissor a um receptor que vai tomar
conhecimento dela em algum momento oportuno (DORNELLES, 2004, p. 245). Dornelles (2004
p.245) explica como se dá a troca de informações através do chat e do email:
Ainda segundo Dornelles (2004, p.259), o chat propicia a chamada “sociabilidade virtual”,
por que há nessa convivência, uma sincronia das mensagens enviadas. O que não acontece no caso
do email e das listas de discussões, pois não há geração de simultaneidade. Por sociabilidade virtual
Dornelles (2004, p.259) explica que “é a interação social realizada pela comunicação sincrônica e
com contato interpessoal mediado pela tela do computador”.
A escolha das atletas a serem entrevistadas se deu devido à necessidade de um maior
contato e um maior aprofundamento em algumas questões, que não seriam possíveis apenas com a
leitura dos fóruns de discussão. Como afirma Goldenberg (2005, p.88), a entrevista permite uma
maior profundidade nas questões e é o instrumento mais adequado para a revelação de informações
sobre assuntos complexos, como as emoções. Além disso, estabelece uma relação de confiança entre
pesquisador e pesquisado, o que propicia o surgimento de outros dados. A entrevista também foi
necessária para verificar a autenticidade de algumas informações, já que a Internet possibilita uma
maior liberdade do participante para expressar o que pensa sem precisar ter sua identidade
revelada, o que pode favorecer dados que não coincidem com a realidade da conduta das atletas em
seu cotidiano.
A análise das listas de discussão entre os participantes dessas comunidades traz a riqueza
dos elementos da cultura da musculação e do fisiculturismo e, por usufruírem da facilidade da
postagem anônima, temas como o uso de anabolizantes surgem com maior naturalidade. Essa
naturalidade torna mais fácil a entrada do pesquisador no ambiente dessas mulheres, já que no
âmbito da academia existe uma dificuldade que é a de não conversarem sobre as práticas de risco
com pessoas que não são ligadas a seu cotidiano. Por essa razão, descrevi em meu perfil minhas
atividades de pesquisa na graduação e sempre que me identificava às participantes e informava meu
papel de pesquisadora. Em alguns momentos fui ignorada por algumas participantes, mas nunca
hostilizada.
Outro aspecto importante sobre o trabalho do pesquisador no campo virtual, como destaca
Rifiotis (2002, p.12) é que a maior parte das interações que se desenvolvem no ciberespaço são de
base textual. O que significa que o trabalho de campo terá um estilo particular, pois do que se pode
“ver” em campo a maior parte são textos. O mesmo autor expõe ainda (2002, p.12) que o trabalho
de campo no ciberespaço vai além da participação direta “face a face” e do “olhar”, tratando-se de
saber explorar a dimensão da fala e procurar as especificidades das conversas escritas, levando à
incorporação de mais uma nova dimensão a etnografia.
Além da observação participante e das entrevistas, foi utilizada outra técnica que é a
observação indireta. Essa observação é feita a partir da análise das listas de discussão nas
comunidades e páginas da Internet, já que as imagens e o conteúdo dessas comunidades são
disponíveis ao público.
Minha intenção inicial era entrevistar pelo menos uma atleta de cada uma dessas categorias
citadas. Entrei em contato com algumas mulheres primeiramente pelo Orkut e, após essa primeira
aproximação, elas me passaram seus e-mails e endereço de mensagem instantânea para entrevista-
las com maior profundidade. Porém, das atletas que efetivamente responderam meus e-mails, uma
era da categoria body fitness, uma do figure e uma do culturismo. A atleta de culturismo, ao invés de
uma entrevista formal, sugeriu que eu mandasse meu endereço via e-mail e ela me enviaria algumas
reportagens sobre sua vida. Essas três atletas concordaram em falar sobre suas experiências com o
fisiculturismo, no entanto vou me ater aqui às histórias de vida de duas entrevistadas, uma da
categoria body fitness e uma da figure já que até agora as entrevistas em profundidade só se
concretizaram com essas duas atletas. Devido à dificuldade em encontrar material teórico que
descreve essas categorias, apoiei-me nas categorias descritas pela Confederação Brasileira de
Musculação e Culturismo e nas informações recebidas das atletas nas entrevistas realizadas.
Entre as atletas contatadas para a pesquisa, escolhi contar aqui a trajetória de duas delas,
pois apenas com elas consegui realizar entrevistas com vários retornos, obtendo respostas a todas as
questões formuladas e sempre que solicitava alguma informação complementar. A elas vou me
referir, doravante, como F. e M. para resguardar suas identidades.
F. foi uma das primeiras atletas com quem troquei mensagens. Educada, atenciosa e
acessível, logo aceitou meu pedido para ser adicionada em seu Orkut. Quando me identifiquei como
pesquisadora, ela se prontificou em esclarecer qualquer dúvida sobre o esporte e sobre seu
cotidiano. Além de participar da pesquisa, ela me disse que seria uma forma de também contribuir
para a divulgação do esporte que ela ama, “mas que infelizmente ainda tem muito a crescer ainda
em nosso país”. Compete na categoria body fitness.
Mas, para que pudesse conquistar todos esses títulos, F. teve que sofrer durante anos com
exercícios intensos, uma suplementação especializada e uma dieta rigorosa. Le Breton (2007:41)
argumenta que a alimentação para o fisiculturista é “pura matéria para fabricar músculos, um
cálculo cientifico da soma de proteínas a serem absorvidos”. Isso fica claro em um dos depoimentos
da atleta:
Minha dieta e dividida em 7 refeições diárias, as principais refeições são equilibradas com tudo,
vegetais do grupo 1 e 2 , carnes , leguminosas e carboidrato,alem de frutas e suplementos como whey
protein (esse e fundamental pra todo atleta de fisiculturismo), os demais suplementos variam de
acordo com a fase de treinamento bem como toda a alimentação e treino.
é a fase que sofremos mesmo, ficamos mais fracas, mais debilitadas, de muito mau humor já que todo
dia comemos sempre a mesma coisa... o treino fica mais intenso e nós mais fracas...Nessa fase nosso
grande inimigo somos nos mesmos.
Outra coisa que pude notar analisando seu perfil no Orkut é o preconceito sofrido por
mulheres que praticam esse esporte. Em sua página tem um grande desabafo destinado às criticas
que ela recebe, seja com relação às dietas, à rotina de treinos, campeonatos e com relação ao seu
tamanho corporal: “pessoas que implicam dizendo que corpo assim é feio”. Ela se defende pedindo
que respeitem seu “estilo de vida”.
Para F. é necessário gostar muito do que faz porque o esporte não oferece qualquer apoio
financeiro às atletas e é muito caro devido à alimentação, sempre em grande quantidade e a toda
suplementação necessária que também não é barata. Não se tem retorno algum. A não ser que,
como ela, se tenha uma profissão ligada ao meio.
5. A trajetória de M.: “Eu tive que esculpir meu corpo, isso dói”
como as pessoas sempre me perguntavam se eu era atleta, sempre pensei quem sabe um dia não vou
mesmo ser atleta.
Depois de passar por várias academias da cidade, seu encontro com o fisiculturismo
aconteceu quando decidiu se matricular em uma academia perto de sua casa. A dona, também
professora, treinava alguns alunos para as competições de fisiculturismo e foi por incentivo da dela
que M. decidiu começar a treinar.
Hoje, aos trinta e sete anos, separada e mãe de dois filhos, ela também cursa a faculdade de
Educação Física, na tentativa de poder se manter nas competições. M., que compete na categoria
figure, na qual a simetria é julgada, diz que sua alimentação é normal, porém tenta se alimentar da
maneira mais correta possível, evitando “besteiras”, pois “quando você sabe que tal comida não é
legal, você fica com peso na consciência”. Ela se diz uma privilegiada com relação ao seu corpo
porque tem uma genética boa. Em quatro meses de treino, conseguiu o resultado esperado, mas
para que isso a acontecesse diz ter sofrido bastante:
Le Breton afirma que a dor na cultura desportiva é consentida. É o sacrifício feito pelo atleta
numa troca simbólica que vai levá-lo aos resultados esperados. De acordo com o autor, “através das
dores sentidas nos treinos, o atleta paga simbolicamente o preço da resistência quando chega o
grande dia” (LE BRETON, 2007: 13). É o ideal do “No Pain No Gain”. Isso fica muito claro em
alguns trechos da entrevista, quando a M. é perguntada sobre seu conceito de saúde:
Exercícios são feitos para a saúde, as pessoas têm que ser exercitar para a saúde. Exercícios são feitos
para a saúde. Agora quando o exercício é competitivo ele não e para a saúde e sim estético. Quem faz
exercício competitivo não faz para a saúde. Claro que a prática do fisiculturismo não é saudável,
primeiro por ser competitivo segundo os exercícios são muito repetitivos, conclusão acaba com seu
corpo, varias lesões, terceiro a dieta e muita severa salvo por ser por um tempo determinado. Mas as
lesões do corpo ficam!
Essas lesões são admitidas em favor do desejo de uma conquista, de ser bem sucedida no
esporte. Mas não é só a questão do prestigio profissional que move essas atletas, existe um prazer
em ver seu corpo modificado, como um projeto seu, como mostra M., quando perguntada qual sua
motivação para treinar, sabendo dos riscos a sua saúde e mostrando quais as lesões adquiridas por
ela nesse tempo de treinamento:
Tenho lesões no joelho, lombar, mas... Ninguém é perfeito. O que me motiva primeiro é meu sonho,
depois é quando você se vê no espelho e vê uma obra prima.
Hoje os treinos e as dietas são para manter a silhueta que já conseguiu esculpir. Em épocas
de competição, segundo M., os treinos são para deixar o corpo com a simetria perfeita. Para isso,
ela faz também uso de uma suplementação manipulada, mas apenas quando vai participar de
competições, para emagrecer e “segurar a massa”. Quando perguntada sobre o uso cotidiano de
esteróides anabolizantes pelas atletas de fisiculturismo, M. é direta:
Bom eu nunca fiz ciclo de anabolizantes e jamais quero fazer. Faria sim se fosse para ganhar dinheiro
e muito! Porque não quero ficar com corpo masculinizado gosto de músculo, mas quero ser feminina...
Uso suplementos só quanto vou participar de campeonatos faço ciclo de suplementos que são
importantíssimos. As pessoas tomam anabolizantes porque tem pressa de crescer não sabem esperar,
tem que ser aqui e agora entende?! A pressa é inimiga das pessoas. Tudo que eu tomo de artifício é
manipulado não compro em qualquer lugar, entende? O que acontece é que as pessoas exageram ao
tomar anabolizantes. Tomam sem ir ao médico, tomam porque o colega tomou e exageram e acabam
se dando mal!
Segundo afirma, M. se sente realizada e diz que o esporte mudou sua vida. Aumentou sua
auto-estima, conheceu lugares e pessoas que nunca imaginou conhecer. Só desanima quando diz
que não é possível viver só do esporte, pela falta de patrocínio. Quando perguntada sobre qual, seu
grande sonho, colocado por ela na entrevista, fica claro que é tanto uma relação profissional, de
prestigio e status, quanto à relação pessoal com seu corpo é levada em consideração na decisão
continuar treinando:
Ter dinheiro para poder participar de todas as competições . Queria me transformar em um ícone.
Queria ter um homem do meu lado, que me desse a maior força. Queria ter dinheiro também. Já
conquistei muita coisa, quem era eu, nada uma mulher simples e que hoje eu tenho quase mil fãs. Isso
pra mim e maravilhoso. Tenho homens que babam por mim, adoro... Que me adoram... Eu amo. Eu
sempre digo famosa já sou, agora só preciso de dinheiro. Gosto do que faço se um dia eu não puder
fazer com certeza eu vou morrer.
6. Conclusão
O que fica claro na pesquisa é a relação entre fisiculturismo, risco e mercado de consumo
voltado para o corpo, sendo impossível dissociar esses aspectos na análise. O risco é parte do
cotidiano dessas atletas e a disponibilidade de uma série de produtos no mercado, além do fácil
acesso a eles, compõem o quadro de riscos experimentados por essas mulheres no desejo de
transformarem seus corpos para fazerem parte do universo do fisiculturismo. Os riscos não são
percebidos como riscos ou são minimizados e consentidos frente a um objetivo a ser alcançado.
Nesse universo, ele tem uma lógica própria, é o meio de ascender na carreira, de ter sucesso.
Especialmente no caso das mulheres, esse sucesso é importante por não terem o devido
financiamento. Além disso, alcançar as metas para se ter o corpo almejado nesse meio, é requisito
para se conseguir alunos para treinar e, assim, garantir ou aumentar a renda para poder continuar
investindo no seu próprio corpo e obter maior sucesso no esporte. O sucesso financeiro no esporte é
baseado no status que se tem dentro dele.
Notei que, entre as atletas de fisiculturismo o padrão estético mais corrente na sociedade
hoje não é um projeto para elas. O que não significa que essas mulheres não seguem um padrão
também estabelecido pela sociedade, já que a busca por músculos salientes e uma hiper definição
corporal, parece ser mais ligado ao ódio que a sociedade vem cultivando pela gordura e a
necessidade de se controlar o corpo e molda-lo. Existe uma necessidade de se criar uma marca de
diferenciação, de se destacar como corpo dentro desse grupo, em busca de status e de diferenciação.
Sendo assim, pude perceber também que o preconceito com relação à construção de um
corpo forte e musculoso parte de fora do grupo. Em todas as comunidades e mesmo nas entrevistas,
o que fica visível é que no ponto de vista delas esse é um corpo admirável e valoroso, já que foi
esculpido e construído com muito empenho e dedicação, existindo da parte delas, uma preocupação
em se manter sempre com unhas pintadas, usando saias e blusas justas, salto alto, na tentativa de se
afirmar como mulher, feminina, se contrapondo a idéia de que para se ter um corpo forte e
musculoso é necessário ser homem. Entretanto, mesmo entre as mulheres que praticam existe um
certo discurso de preconceito entre as categorias, tendo sido isso exposto nas entrevistas, sendo o
fitness a mais feminina, no figure as mulheres são definidas, porém femininas e o culturismo a
categoria de maior masculinização da mulher, mostrando como a idéia de masculinidade toma
conta não só do discurso dos homens, como também das mulheres.
O corpo é visto por essas mulheres, não só como um instrumento de trabalho, o corpo é
percebido como o próprio capital, como um meio de ascender socialmente. Goldenberg (2007, p.13)
mostra que a associação “corpo e prestígio” se tornou elemento fundamental na cultura brasileira.
Mostra como existe um determinado modelo de corpo no Brasil hoje que é “um valor, um corpo
distintivo, aprisionado e domesticado para se atingir a ‘boa forma’, um corpo que distingue como
superior àquele que o possui, um corpo conquistado por meio de muito investimento financeiro,
trabalho e sacrifício” (2007, p.29). Esse modelo, adotado pelas fisiculturistas em seu mais alto grau,
torna-se através do sacrifício, da dor, da rotina de treinamento, das dietas, da alimentação rígida,
um meio de se obter sucesso e prestígio na carreira e na vida pessoal.
Outra questão a ser ressaltada é que a construção de um corpo musculoso e bem definido
parte de projetos individuais, pautados em uma necessidade de controle de si, de ultrapassar seus
limites e criar assim uma identidade. Essa identidade “é modelada nos músculos como uma
produção pessoal e dominável” (LE BRETON, 2007:41). Sabino (2004, p. 14) comunga da mesma
idéia, para ele “a preocupação não apenas com a aparência, mas com a forma física, - com o entalhe
muscular lapidado a ferro, suor, exercícios, dor, dietas e mesmo cirurgias-, apesar de ser produzida
coletivamente, torna-se carregada de investimento individual”. Pode se afirmar, assim, que tal
prática representa, para essas mulheres, uma realização pessoal e, nesse sentido, uma possibilidade
de atribuir sentido à vida. O fisiculturista pode ser considerado a hipérbole do ódio à gordura na
sociedade moderna e esse ódio o transforma em uma máquina de produzir músculos, a qualquer
custo, daí os riscos corridos.
NOTAS
[4] Ideologia norte-americana muito difundida entre praticantes de esportes de alto nível, nos quais
os atletas se sujeitam a treinos intensos, dietas rigorosas e, usualmente, ao uso de substâncias
químicas para alcançar os resultados esperados. Quer dizer que só através do sofrimento é possível
alcançar os objetivos. É um dos lemas dos fisiculturistas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS