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Erich Auerbach

MIMESIS

A representação da realidade
na literatura ocidental

-h"Mo Geot"3 .jerr.t#c:L spe..uaelt..

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~ ~ EDITORA PERSPECTIVA
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Título do original:
Mimesis ~ Dargestellte Wirklichkeit in der abendlaendischen Literatur

© Copyright 1946 A. Francke AG Verlag Berna

2~ edição-revisada

Direitos em língua portuguesa reservados à


EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025
01401 - São Paulo - SP - Brasil
Telefones: 885-8388/885-6878
1987
.,
PA"~")ê,

@Germinie La.certeux 5õj,>

I
:i',I' ,
'~ 1ti i
~No
I

r"- ano de (1864 1/ os irmãos Edmond e Jules de GoncOUIj: li


publicaram o rom~Germinie Lac~rteux, que descreve os enre-
dos eróticos e a gradual perdição de uma criadª. Antepuseram ao li,
livro o seguinte prefácio: ? I
i\,'
1"
li nous faut demander pardon au public de lui donner ce II
livre, et l'avertir de ce qu'il y trouvera. \1
Le public aime les romans faux: ce roman est un roman vrai. :1
'I
li aime les livres qui font semblant d'aller dans le monde: ce
livre vient de la rue.
li aime les petites oeuvres polissonnes, les mémoires de fiUes,
les confessions d'alcôves, les saletés érotiques, le scandale qui se
retrousse dans une image aux devantures des librairies: ce qu'il va
lire est sévere et pur. Qu' il ne s' attende point à la photographie
décoUetée du Plaisir: l'étude qui suit est la clinique de l'amour.
Le public aime encore les lectures anodines et consolantes,
les aventures qui finissent bien, les imaginations qui ne dérangent
ni sa digestion ni sa sérenité: ce livre, avec sa triste et violente
distraction, est fait pour contrarier ses habitudes et nuire à son
hygiene. ' ,
444 MIMESIS

Pourquoi clone l'avons-nous écrit? Est-ce simplement pour


choquei le public et scandaliser ses godts?
Non.
Vivant au XIXe siecle, dans un temps de 'suffrage universel,
de démocrabe, de libéralisme, nous nous sommes demandé si ce
qu'on appeIle "les basses classes" n'avait pas droit au Roman; si
ce monde sous un monde, le peuple, devait rester sous le coup de
l'interdit littéraire et des dédains d'auteurs, qui ont fait jusqu'ici
lé silence sur I' âme et le coeur qu' il peut avoir. Nous nous
sommes demandé s'il y avait encore pour l'écrivain et pour le
lecteur, en ces années d'égalité ou nous sommes, des classes
indignes, des malheurs trop bas, des dfames trop mal embouchés,
des catastrophes d'une terreur trop peu noble. n nous est venu la
curiosité de savoir si cette forme conventionneIle d'une littérature
oubliée et d'une société disparue, la Tragédie, était définitivement
morte; si dans un pays sans caste et sans aristocratie légale, les
miseres des petits et des pauvres parleraient à l'intérêt, à l'émo-
tion~ à la pitié,- aussi haut que les miseres des grands et dês riches;
"si, en un mot, les laimes qu'on pleure en bas, pourraient faire
pleurer comme ceIles qu'on pleure en haut.
Ces pensées nous avaient fait oser l'humble roman de Soeur
Philomene, em 1861; eIles nous font publier aujourd'hui Germinie
Lacerteux.
Maintenant, que ce livre soit catomnié: peu lui importe.
Aujourd'hui que le Roman s'élargit et grandit, qu'il commence à
être la grande forme sérieuse, passionnée, vivante de I'étude
littéraire et de I'enquête sociale, qu'il devient, par I'analyse et par
la recherche psychologique, I'Histoire morale contemporaine;
aujourd'hui que le Roman s'est imposé les études et les devoirs de
la science, il peut en revendiquer les libertés et les franchises. Et
qu'il cherche I' Art et la Vérité; qu'il montre des misereslbonnes à
ne pas laisser oublier aux heureux de Paris; qu'il fasse voir aux
gens du monde ce q~e les dames de charité ont le courage de voir,
ce que les Reines autrefois faisaient toucher de I' oeil à leurs enfants
dans les hospices; la souffrance humaine, présente et toute vive,
qui apprend la charité; que le Roman ait cette religion que le siécle
passé appelait de ce large et vaste nom: Humanité, - il lui suffit
de cette conscience: son droit est là.

É necessário que peçamos perdão ao público por dar-lhe este livro e


que o advirtamos do que nele encontrará.
O pÚbljco &,05ta de'romances falsos: este romance é um romance ver-
~. ,

Gosta dos livros que fingem pertencer à alta sociedade: este livro vem
da rua.
Gosta das pequenas obras licenciosas, das memórias de mocinhas, das
confissões de alcova, das sujeiras eróticas do escândalo que se arregaça numa
imagem nas frentes das livrarias~:rá é severo e puro. Que não espere a
fotografia decotada.do Prazer: o~ue segue é a clínica do amQ!'.
'" ~
GERMINIE LACERTEUX 445

o público gosta também das leituras anódinas e consoladoras, das)


aventuras que terminam bem, das imaginações que não periurbam nem sua
digestão nem sua· serenidade; es'te livro, com a sua triste e violenta d.istração,
é feito·para contrariar os seus hábitos e prejudicar sua higiene.
Por que então o escrevemQ§.? Simplesmente para chocar o público e
escandalizar seus gostos?
Não.
<::: Como vivemos no século XIX, num tempo de sufrá io unlver
democr . de I eralismo' er ntamo-nos se o ue e c amado de "as . /
c asses baixas" não teria dir . . este mundo sob um mundo, E.
o povo. eVlli Icar submisso à interdição literária e ao desprezo dos autores,
que gyardaram silêncio até aqui acerca da alma e do corpo que possa ter.
Perguntamo-nos se havia, ainda, para o escritor e para o leitor, nestes anos de
igualdade em que estamOs, classes indignas, desgraças baixas demais, dramas
demasiado desbocados, catástrofes de um horror demasiado pouco nobre.
Veio-nos a curiosidade de saber se esta forma convencional de uma literatura" '
esquecida e de uma sociedade desaparecida, a Tragédia, estava definitiva- í~~
mente morta; se num país sem casta e sem aristocracia legal, as misérias dos cUQ. ':
pequenos e. dos pobres falariam ao interesse,-à' emoção, à piedade, tão alto (u$o
quanto as misérias odos grandes e dos ricos; se,.em suma, as lagrimas choradas QI'CÍjI'I'1'o)
lá embaixo oderiam fazer chorar como as ue chor ' clm • >
I
. stas idéias !Zeram-nos ousar o umilde romance da irmã Fúomena,
em 1861; fazem-nos publicar hoje Germinie Lacerteux. o
Agora, caluniem este livro: pouco lhe importa. Hoje quando o IroYrlC"(~
romance 'se amplia e cresce, uando come a a ser a rande forma séria, a ai- -
xonada viva do es u o ler '0' . - - ela
~álise e pes!J!:iisa esicológica, a HistÓI.iã mgr.a! contemporânea: hoje flue .
( o romance se imp~. os •. e~!J:do~ e os deveres da ciência, pode reivindicar A.._.l_
. sUíis Jjberaades e '~1:ulat HOJe, que procura a Afie e a verdaae; que ~ e
I mostra misérias dignas e nao serem esquecidas pelos felizardos de Paris: que Vet'cWdc
I faz ver às pessoas da alta so~iedade aquilo que as damas de caridade têm a )
l coragem de ver, aquilo que as Rainhas outrora faziam ver aos filhos nos hos- t
". pitais: o sofrimento humano, presente e vivo, que ensina a caridade; que
t Romance tenha esta religião que o século passado chamou com este largo e
01 "*.11:
.. vasto nome: Humanidade; - basta-lhe esta consciência: ê aí que estã o : .!,.

\ seu ·direito. . J
"--~, roY\\~\>\(e i J,,? I\'-lef~(-,t) ~s~-:.~ S-o",~, (h..·~ e jl
e.lh. . -
. A respeito da violenta polêmica com o público, com a qual VJ?~".Ll.ill··
começa o prefácio, falaremos mais t~de; ocupamo-nos, em primei-I:
ro lug~, da~tenção artistiéa PCO,gramática)que é expressa nos""- .
parágrafos seguintes (que começam com as palavras Vivant au
Xlx.e siecle). Corresponde exatarhente àquilo que aqui entendemos .,jp ,
põr mistura de estilos, e amda mais, baseia-se em consideracões.de ,~/Wy .:
ordem Q2litico-sociol6gica. Vivemos, dizem os Goncourt, na época r '-'; ;'~.' .
do sufrágio universal, da democracia, do liberalismo (merece ser p..20";j)-
lembrado que eles, de maneira algumll, eram amigos incondicionais :;CG,'dô::;~ .
dessas instituições e fenômenos); portanto, é injusto excluir as .. ' I~'
assim chamadas classes mais baixas da população, o povo, do C-'/.;'
tJ;'atamento literário sério, tal como ainda acontece, assim como é
injusto conservar na literatura uma aristocratização dos objetos,
que não mais corresponde ao nosso quadro social; deve-se admitir
que não há nenhuma forma de desgraça que sejà. demasiado oaixa
para ser representada literariamente~ O fato de o romance ser a
forma mais-apropriada·pàra·uma tal representação é admitido como
, .'~ i r.. . _.'
J/
" .... 1"-'0 ·'(,'-'0
, ,;
c~KIV./n:::ç,
.
I . I L.

rI)feC1f"'rfla."í(.;"
\i >7-
"
446 MIMESIS

evidente, com as palavras avoir droit au Roman. Numa frase


posterior - il nous est venu la curiosité... - insinua-se que o
roW\ót>1.~ romance realista autêntico tem assumido a heranca da tragédia'
reéUsta clássica; e o último parágrafo contém um resumo retoricamente
v1r~iI~asmado da função desta forma de arte no mundo moderno,
, . 0,' um resumo que contém um motivo especial, o do cientificismo;
: 1'tt.d1 l , ~ um motivo que, embora ressoe já em Balzac. tomou-se aQui,
~'s~o muito mais enérgico e programático. O romance teria ganho em
amplitude e em importância, seria a forma séria, apaixonada, viva
do estudo literário e da pesquisa social (observem-se as palavras
étude e, especialmente, enquête); tornar-se-ia, pelas suas análises e
investigações psicológicas, uma Histoire morale contemporaine;
ter-se-ia imposto os métodos e os deveres da ciência e poderia
!!~ também, portanto, reivindicar os seus direitos e as suas liberdades.
+ i'u. <:" Fundamenta-se, aqui, o direito de tratar qualquer objeto, mesmo o

1
~,s; r"" mais baixo, de forma séria, isto é, a extrema mistura de estilos,
~(os. simultaneamente com argumentos político-sociais e científicos . .À
atividade do romancista é comparada com a atividade científica,
l\é~J sendo que, com isto, indubitavelmente se pensa em métpdos
)ic(ti~üoc.biológico-experimentais. Encontramo-nos sob a influência do entu-
~",~\siasmo científico dos primeiros decênios do Positivismo, durante os
Ii~. - quais todos os que exerciam atividades mentais, na medida em que
procuravam métodos novos e conformes com seu tempo, tentavam
apropriar-se dos sistemas e processos experimentais. Nisto, os
Goncourt estão em primeira linha; o seu ofício é, por assim dizer,
estar em primeira linha. O final do prefácio traz uma virada
lIor~,t~\evidentemente menos moderna, a virada para o moralista, o carita-·
.r,;~1i~tivo e humanitário. Com isto, ressoa uma série de motivos, muito
1I,.,c)K.i- diferentes segundo a sua origem; a alusãÇ> aos heureux de Paris e às
'~",'.:l !(ens du monde que devem lembrar-se da miséria do seu próximo,
. OVlaf/S- pertence ao socialismo sentimental do meio do século; as rainhas
~ de outrora, que dispensavam sua atenção aos enfermos e os mostra-
~1l'tM~ vam aos filhos, lembram a Idade Média cristã; e finalmente aparece
'.J,) - aç-eligião humanitária do Iluminismo)procede-se muito ecletica-
-lo , mente e um tanto arbitrariamente neste retórico finale.
UWla..u.~ Todavia, seja como for que se julguem os motivos isolados
.w.)~ deste prefácio e, em geral, a maneira dos Goncourt defenderem a
sua causa, eles tinham indubitavelmente razão, e faz tempo que o
processo foi julgado a seu favor. Nos primeiros grandes realistas do
século, em Stendhal, Balzac e ainda em Flaubert, as camadas mais
baixas do povq, o povo propriamente dito, mal aparece; e quando
aparece, não é visto a partir dos seus próprios pressupostos, na sua
própria vida, mas de cima. Ainda no caso de Flaubert (cujo Coeur
simple apareceu, aliás, só uma década após Germinie Lacerteux, de
maneira que, no tempo do prefácio, não havia quase nada disponí-
vel no gênero, afora a cena da entrega de prêmios durante os
comices a!(ricoles em Madame Bovary), trata-se em geral de
criados ou de figuras subalternas.<l\!as a irruocão da mistur.a

-1trOmAY\ce\,e::"tuJo U~e·r;:.;'r,.'[} e (:>{';;':tA~tS(" ;?,u"


• rn~ .-I·o .·..!;) ' 1;;,'0 L<J~L~;'",,)~ 'f'''''per ,'"",e,-,+-~ .
Pr1l"' ' ~ .. " .....
....
GERMINIE LACERTEUX 447

realista de estilos, que Stendhal e Balzac tinham imposto, não I I


PQdia deter-se diante do quarto estado; devia seguir a evolução·1 !.
PQlítica e social; o realismo devia abranger toda a realidade da
cultura contemoorânea, na Qual, embora predominasse a burgue-
siã":" as massas já começavam a pressionar ameaçadoramente, à
medida que se tornavam cada vez mais conscientes da sua própria
função e do seu ~e~ O povão, em todas suas partes, devia ser
incluído no realismo sério como tema: os· Goncourt tinham e
permaneceram com a razão; assim o demonstra a evolução da arte
> .
realista.
Os primeiros representantes dos direitos do quarto estado,
tanto políticos como literários, não pertenciam, quase todos, ao
estado que defendiam, mas à burguesia. Isto também é válido para
os Goncourt, que estavam, aliás, bastante afastados do socialismo
político. Eram grão-burgueses e semi-aristocratas, não somente
devido à sua estirpe, mas também nas atitudes e modo de vida,
opiniões, preocupações e instintos. Além do mais, estavam dotados
de nervos ultra-sensíveis; dedicaram sua vida à busca de 1m pressões
artístico-sensoriais;· foram, de forma mais integral e exclusiva do
que quaisquer outros, literatos estetas, ecléticos. Encontrá-los co-
mo paladinos do quarto estado, ainda que apenas como campo
temático literário, é supreendente. O que os unia aos homens do
quarto estado, o que sabiam da sua vida, dos seus problemas e
sensações? E foi realmente só um sentimento de justiça social e
estético o que os levou a tentar esta experiência? Não é difícil
formular uma resposta para estas perguntas; pode-se fazê-lo já a
partir da bibliografia dos Goncourt. Escreveram toda uma série de p."
romances que se fundamentavam, quase todos, na sua experiência 1"'~t I
e observação pessoais; neles, ao lado do meio povão, aparecem I '
ainda outros meios, a grande burguesia, o submundo da metrópole, \Vi
diversos tipos de círculos artísticos; trata-se sempre de temas ~Wfti\.\
singulares, extraordinários, freqüentemente de<temas patológicos~P~fOli
Ao lado destes, escreveram também livros que tratam de viagens, ., -
de artistas contemporâneos, das mulheres e da arte do século a'-~
XVIII, de arte japonesa; a isto junta-se ainda o espelho das suas
vidas, o Journal. Já da própria bibliografia resulta o princípio da
sua escolha de temas: eram colecionadores e apresentadores de
!
impressões sensoriais, a saber, daquelas que tivessem valor de VI
raridade ou de novidade; eram, jXJr ofício, descobridores ou redes- 0tf>.Ul~
cobridores d~~xperiências estéticas, especialmente de experiências \ -
mórbido-estética~ue pudessem satisfazer um gosto exigente, farto(,<.Mf..b '.lo
aas coisas habituais. A partir deste ponto de vista é que a gente 'MÓ Ilt,.'
çomum os seduzia como tema; o próprio Edmond de Goncourt est<." tAl
exprimiu este fato de forma excelente num registro do Journal,
datado de 3 de dezembro de 1871.

Mais pourquoi ... choisir ces milieux? Parce que c'est dans
les bas que dans l'effacement d'une civilisation se conserve le

---2i
'Y\d-Lrat.·:.~ =)" I'V\~@ do FII~VO\.4.(. a n~la~
d,-e de Atpl\~~AI~ "Pê FC:::WM~ stN~íV€(. -o Fe'o/ o '
448 "MIMESIS
CtCPI.JL~I·I/O} ê o ?Aíotoe;cot~

caractere des choses, des personnes, de la langue, de tout ...


Pourquoi encore? peut-être parce que je suis un littérateur bien né,
et que le peuple, la canaille, si vous voulez, a pour moi l'attrait de
populations inconnues, et non découvertes, quelque chose de
l'exotique que les voyageurs vont chercher ...
.t..
Mas por que ... escolher estes ambientes? Porque é em baixo que,

-
I / I.
€.XOn'U)
I
t
durante a decadência de uma civilização, se conserva o caráter das coisas, das
pessoas, da língua, de tudo ... E por que mais? Talvez porque sou um literato
bem· nascido, e porque o povo, a canalha, se preferirdes, tem para mim o

11 os viajantes· procuram ...


.
> .
Até O ponto em que este impulso os conduzia, podiam entender o
-
atrativo das populações desconhecidas e não descobertas, algo de exótico que

povo; não podiam ir além; com o que fica excluído de imediato


tudo o que é funcionalmente essencial, o seu trabalho, o seu lugar
dentro da sociedade moderna, os movimentos políticos, sociais e
morais que vicejam nele e que visam ao futuro. o próprio fato de o
romance Germinie LacerteuJIJ tratar novamente de uma ~, isto
é, de um pingente da burguesia; mostra que a tarefa da inclusão do
quarto estãão na representação artística séria não é entendida nem
? . r· atacada em seu cerne.(O que os cativava no tema era algo
t tl>(;A\'\Q totalmente diferente: era o fascínio sensorial pelo feio, repulsivo e
eVWYH'! doentio. E claro que nisto não são totalmente originais, não são
,-:J6:..<J r.ente os primeiros; pois as Fleurs du Mal de Baudelaire já
'peJ.". tinham aparecido em 1857. Contudo, devem ter sido os primeiros a
\ introduzir tais motivos no romance, e este era o atrativo que sobre
eles exerciam as singulares aventuras eróticas de uma velha çriaili!;
pois trata-se de uma história real que conheceram após a morte da
criada, e a partir da qual construíram o seu romance. De uma
forma inesperada coincidiram neles (e não somente neles) a inclu-
são do povão com a necessidade de4epresentar de forma sensIVero
feio, o repulslvo e o patológico;pma necessidade que ia muito além
do que seria objetivamente 6ecessário, típico e representativo .
. ut Havia pisso um protesto radical e encarniçado contra as formas do
~rrc" estilo elevado idealizador e aplainante, já decaídas, mas que ainda
çL,};,. : dominavam o gosto médio do público, tanto pelas de origem
ffOJw...e clássica como pelas de origem romântica; contra a conce~ão da
~t"f' literatura (e da arte em geral) mmo distração confortável e calman-
'\~; Bma mudança fundameptal na interpretacão daquele prodesse e
~ detectare que era a sua me~. COlD isto, chegamos à primeira pane
./ fi • d«
()Ie.~1Il f"
g. ore2C1Q ;,1. IemlCa contra o pu'bl'!Co.
~ A • >
1 Q ~ Ela é surpreendente. Talvez não o seja mais para nós, pois
~,tú4 ouvimos, desde então, muita coisa semelhante, ou pior, dita por
escritores; mas quando se pensa nas épocas anteriores, um vitupé-
rio tão desconsiderado contra aqueles aos quais a obra se dirige é
um fenômeno espantoso.4J escritor é um produtor; o público, o
seu cliente>Pode-se também formular esta relação de forma difê-
rente, quando é observada de outro prisma. Pode-se considerar o
,}

GERMINIE LACERTEUX 449

escritor como educador, como guia, como voz representativa e, por'


vezes, profética; mas ao la,do disto e, a bem dizer, em primeiro
lugar, o aspecto econômico dessa relação é perfeitamente justifica-
do, e os Goncourt não deixavam de reconhecê-lo. Embora não
dependessem totalmente de seus proventos ,literários, pois tinham
fortuna, não deixavam de ter o mais vivo interesse pelo êxito e pela
venda dos seuslivros. Como pode o produtor insultar tão desconsi-
deradamente o seu cliente! Nos séculos em que o escritor dependia
de um mecenas pnnClpesco ou de uma minoria aristocrática fecha-
da, um tom semelhante teria sido totalmente impossível. Na
década de sessenta do século passado, diante de um público anôni-
mo e não claramente delimitado, um escritor podia se arriscar a
tanto. É claro que com isto contava com a sensação que o prefácio
deveria despertar; pois o pior perigo que a obra corria não era a
resistência, a crítica malévola, nem sequer as medidas de opressão
das autoridades - todas estas coisas, embora pudessem ocasionar
desgosto, dilações, inconvenientes pessoais, não eram insuperáveis
e favoreciam muito freqüentemente a publicidade da obra atingida
- o pior dos perigos que ameaçavam uma obra de arte era a
indiferença.
Os Goncourt acusam o público de ssuir um gosto estraga-/
do e corrompi ID, e pre enr alsos valores, pseu o-re namen o,
o~cenidade, de ler como passatempo confortável ~~opo...!2fero livros
que acabam bem e não colocam ao leitor pro6Iemas sérios. Em
lugar diSSO, continuam, oferecem ao púbhco um romance verdadei-
ro, que procura o seu tema na rua, que, pelo conteúdo sério e
puro, representa a patologia do amor e que perturbará os hábitos do
público e demonstrará ser nocivo a sua higiene. O conjunto tem
um tom irritado. É evidente que os escritores há muito estão
conscientes da distância que separa seu gosto e o do público médio;
é claro, também, que estão convictos de ter razão; que tentam, por
todos os meios desaninhar o público da sua segurança e do seu
conforto; assim como é claro que, já um tanto amargurados, não
acreditam muito no êxito de seus esforços.
A polêmica deste prefácio é um sintoma; é característica do
relacionamento que, no decorrer do' século XIX., se estabeleceu
entre o público e quase todos os escritores e poetas, pintores,
escultores e compositores importantes; não somente na França,
mas lá mais cedo e com maior agudeza do que alhures. Pode-se
constatar, com poucas exceções, que os artistas importantes do
tardio século XIX esbarraram na incompreensão, na inimizade ou
na indiferença do público; s6 mediante lutas violentas e longas
atingiram o reconhecimento geral, alguns s6 após a sua morte,
muitos, em vida, s6 junto a uma comunidade muito restrita.
Inversamente, pode-se fazer também a observação, novament-e com
poucas exceções, de que aqueles artistas que, durante o século
XIX, sobretudo na segunda metade, e ainda no princípio do século
XX, ganharam rápida e facilmente o reconhecimento geral, não
450 MIMESIS

possuíam significação real e duradoura. Com base nesta experiên-
cia, muitos criticos e artistas convenceram-se de que deveria ser
necessariamente assim: justamente a originalidade da obra nova e
importante faria com que o público, ainda não acostumado a sua
forma de expressão, se sentisse primeiramente apenas confuso e
inquieto, e só pudesse acostumar-se à nova linguagem formal
gradualmente. Contudo, este fenômeno nunca fora, em tempos
anteriores, tão geral nem tão violento. É certo que, freqüentemen-
te, o reconhecimento exterior dos grandes artistas foi cerceado por
circunstâncias infelizes ou pela inveja; é verdade, também, que
foram postos freqüentemente à mesma altura de alguns rivais que
hoje nos parecem totalmente indignos de tal comparação. Mas o
fato de quê, dadas as condicões favoráveis para a técnica de diVtiigã-
t ção, o medíocre fosse quase sempre preferido, em detrimento do
realmente importante. o fato de que quase todos os artistas signifi-
cãtivos sentissem nelo público médjo. segundo o seu temperamen-
to, amargura ou desprezo. ou o tenham considerado simplesmente
como inexjstente, isto é uma especialidade do século passado. Esta
situação já começa a se delinear durante o Romantismo, e poste-
riormente foi se agravando cada vez mais; perto do fim do século
havia alguns grandes poetas cujos modos e atitudes davam a
entender que, de antemão, renunciavam a qualquer divulgação ou
reconhecimento mais amplos.

~
• ~ Como explicação, apresenta-se em primeiro lugar a expan~ão
:1.0 1.1 violenta e constantemente crescente dQ pljbljco leitor, desd<;, o
t.tol.:'7 começo do século, e o concomitante embrutecimento do gosto. O
r.t\bn..~ gênio, a elegância dos sentimentos, o cultivo das formas da vida e
eV~ da expressão, tudo isto decai. Já Stendhallamenta esta decadência,
=/o Jo ~ como mencionamos anteriormente. O re~aixamento do nível acele-
'1l> rou-se ainda mais pela exploração comercial da crescente necessi-
F dade de leitura por parte dos empresários editoriais ou jornalísticos,
) a maioria dos quais (não todos) preferiu o caminho do ganho mais
-b fácil e da menor resistência, fornecendo, portanto, ao público,
aquilo que este pedia, ou talvez coisa pior do que teria pedido.
i\ Mas, quem era o público leitor? Consistia, em sua maior parte, na
~ b.w:guesia urbana, que havia crescido de forma impressionante e se
tomara, graças à maior divulgação da educação, capaz e sequiosa
de ler. Era o bourgeois, aquele ser cuja estupidez, preguiça mentar,
enfatuação, mendacidade e covardia foram repetidamente motivo
das mais violentas diatribes por parte dos poetas, escritores, artistas
e críticos, desde o Romantismo. Podemos subscrever este juízo,
sem mais nem menos? Não se trata dos mesmos burgueses que
empreenderam a audaciosa aventura da cultura econômica, cientí-
fica e técnica do século XIX, a mesma de cujos círculos surgiram
também os dirigentes dos movimentos revolucionários que foram
os primeiros a réconhecer as crises, os perigos e os focos de
corrupção daquela cultura? Mesmo o burguês médio do século
XIX participa da tremenda atividade na vida e no trabalho caracte-
" ...
GERMINIE LACERTEUX 451

rística da época; leva diariamente uma vida muito mais movimen-'


tada e esforçada do que a das elites, dificilmente importunadas pela
sobrecarga ou pela premência do tempo, que constituíam o público
leitor durante o ancien régime. A sua segurança física e a sua.
propriedade estavam mais bem protegidas do que em tempos
passados, possuía possibilidades de ascensão incomparavelmente
maiores; mas a conquista e a conservação da propriedade, o'
aproveitamento das possibilidades de ascensão, a acomodação às
circunstâncias em rápida mudança, tudo isto em meio à acirrada
luta da concorrência, exigiam como jamais um dispêndio de
energia e de nervos intenso e incessante. Através das páginas
cheias de fantasia, mas também plenas da observação do real,
escritas por Balzac, no começo do romance Lafilleaux yeux d'or,
acerca dos homens de Paris, pode-se mensurar quãoesfalfante era a
vida nessa cidade, já nos primeiros tempos da monarquia burguesa.
Não nos devemos surpreender com o fato de essas pessoas espera-
rem e pedirem da literatura e das artes em geral, um recreio, uma
distensão ou, em último caso, um estado de embriaguez .facilmente
acessível; nem com o fato de se defenderem contra a tnste et
violente distraction (para empregar a expressiva frase dos
Goncourt) que a maioria dos escritores importantes lhes queria
impingir.
Outra coisa vem juntar-se a isto. A influência da religião fora
na França mais profundamente abalada do que em qualquer outra
parte; as instituições políticas estavam em constante mudança e
não ofereciam qualquer apoio interno; os grandes pensamentos do
lluminismo e da Revolução haviam sofrido um desgaste surpreen-
dentemente rápido, convertendo-se em chavões; como resultado,
desentranhou-se uma enérgica luta dos egoísmos, encarada como
vãlida, uma vez que o trabalho livre era considerado condição
natural e auto-reguladora do bem-estar e do progresso gerais. Mas
a auto-regulação não funcionava no sentido de satisfazer a necessi-
dade de justiça; o que decidia acerca do êxito ou do fracasso do
indivíduo ou de camadas sociais inteiras não era somente a'Íntéli-
gência e a aplicação, mas também as condições de partida, ,as.,
relações pessoais, os acasos da fortuna, e não raramente a robusta
falta de consciência. Embora no mundo as coisas nunca se tivessem
dado segundo a justiça, não se podia negar que já não era seriamen-
te possível interpretar a injustiça como provação divina, e aceitá-la
como tal. Surgiu desde logo um violento mal-estar morª,,; más o
ímpeto da movimentação econômica era demasiado forte para que
pudesse ser detido por tentativas de desaceleração puramente
1tI0rais.(O dese'o de ex ansão econômica e o mal-estar moral
existiam lado a lado.)Paulatinamente, começaram 'a se con gurar
os perigos reais que ameaçavam o desenvolvimento econômico e a
estrutura da sociedade burguesa, a luta das grandes potências pelos
mercados e a ameaça do quarto estado que se estava organizando.
Começava a se preparar a grande crise, cuja eclosão presenciamos,

--~.~
452 MIMESIS

e estamos ainda presenciando. No século XIX, muito poucos já


possuíam uma compreensão sintética, capaz de avaliar corretamen-
te as fontes de perigo decisivas; talvez os estadistas a possuíssem
em menor grau; na sua maioria, ainda estavam presos a idéias,
desejos e métodos que lhes impossibilitavam a compreensão da
situação econômica e fundamentalmente humana.
Descrevemos estas circunstâncias, claramente reconhecidas e
freqüentemente descritas em estudos mais recentes, da forma mais
resumida possivel, na intenção de estabelecer uma base para o·
julgamento da função que a arte literária criou para si dentro da
cultura burguesa, e em primeiro lugar, dentro da cultura francesa

*1 do"século XIX. Demonstrou interesse e compreensão por proble-


mas reconhecidos posteriormente como decisivos; sentiu alguma
responsabilidade frente a eles? No que respeita ainda aos mais
importarites JlOmens da geração romântica, Victor Hugo e Balzac,
estas perguntas devem ser respondidas afirmativamente; tinham
superado as tendências românticas de fuga da realidade, pois não
~ correspondiam aos seus poderosos temperamentos, e é admirávellJ
I.i~b.c;.nstinto de Balzac para diagnosticar sua %a. Mas já na geração
~ seguinte, cujas obras começaram a aparecer nos anos cinqüenta, a
é~ coisa muda totalmente. Surge o concejto e o ideal de uma arte
l~ária que não interfira, de forma alguma, nos acontecimentos
práticos do tempo' ue evite ualquer inclina ão a influir moral,
po ltica ou raticamente, como uer ue seja, sobre a vida os
(
omens e cu'a única tare a seja o desenvolvimento do estilo. Este
último exige que os objetos - enômenos exteriores ou da sensibi-
lidade ou da força de imaginação do escritor - se tomem manifes-
tos com força sensória, e, além disso, numa forma nova, ainda não
gasta, que revele a singularidade de es€ritor. Segundo esta ideolo-
gia, que negava,aliás, toda hierarquia dos objetos, o valor da arte,
isto é, da expressão perfeita e original, era considerado de forma
absoluta, e toda participação na luta das cosmovisões estava desa-
creditada, pois parecia levar necessariamente ao clichê e ao chavão.

'* Se se introduzir os dois conceitos, originários da tradição antiga,


prodesse et detectare, então a utilidade da poesia era totalmente
negada, Põrqiie'Se"Pensava de imediato em utilidade prática ou em
sombrio didatismo. Seria ridiculo, lê-se rio registro do Journa/ dos
Goncourt de 8 de fevereiro de 1866, de demander à une oeuvre,
d'art qu 'elle serve à que/que chose. Não se tratava, porém de
modo algum, da modéstia de Malherbe, que teria dito que um bom
poeta não é mais útil do que um bom jogador de boliche; pelo
contrário, atribuiu-se à poesia e à arte em geral o valor mais
absoluto que se tomaram objeto de um culto devoto como uma
religião; com isto, conferiu-se, imediatamente, ao deleite, embora
lel'8lT€fosse em primeiro lugar um gozo sensorial da expressão, um grau
-:::;::- hierárquico tão elevado, que a palavra deleite, tidectatja., não mais
') parecia corresponder-lhe; esta expressão parecia desacreditada, p'or-
-V que designava algo demasiado trivial e facilmente atingivel.
'i~

GERMINIE LACERTEUX 453

A mentalidade aqui descrita, a qual já começa a se esboçar


em alguns românticos trudios, domina a geração que nasceu ao
redor de 1820 - Leconte de Lisle, Baudelaire, Flaubert, os
Goncourt. Continuou a predominar, na segunda metade do século
embora, evidentemente, se apresentasse desde o início de forma
diferente em diferentes indivíduos, indo a gama de modificações da
coleta de impressões com propósitos de prazer estético até a
destrutiva autotortura numa completa devoção às impressões e sua
reformulação artística. As fontes desta ideologia devem ser procu-
radas na repulsa que justamente os mais eminentes escritores
sentiam diante da cultura e da sociedade contemporâneas, a qual os
obrigava a um afastamento de toda problemática do tempo, afasta-
mento este que era tanto maior quanto estava misturado com
perplexidade; pois eles próprios estavam indissoluvelmente ligados
à sociedade burguesa. Pertenciam a ela pela estirpe e pela forma-
ção; gozavam da segurança e da liberdade de expressão alcançadas;
não podiam senão achar no seu seio o grupo, talvez reduzido, dos
seus leitores e admiradores; encontravam também nela a vontade
quase ilimitada de empreendimento e de experimentação, que
qualquer mecenas e qualquer editor forneciam a qualquer tendência
literária, mesmo à mais singular ou extravagante. A diferença tão
amiúde 'salientada entre "artista" e "burguês" não deve levar a
que se admita que a literatura e arte do século XIX tivessem tido

I um solo nutriz diferente do da burguesia. Nem existia qualquer


outro. Pois o uarto estado ia atingindo Só muito aulat;inamente, 4~
dprante esse século, o esta o a autoconsciência político-econô- ~~.
tllica. Ainda lâitaya muito para que nele se fiZesse sentir gualguer
traço de uma autonOmia estética; as suas necessidades estéticas
d.c
er~ pequeno-burguesas. Em 'meio a este dilema entre a repulsa
iristintiva e o envolvimento, simultaneamente também, em meio a
uma liberdade quase anárquica de opiniões, de possibilidades de
escolha de temas, de desenvolvimento de idiossincrasias pessoais
com respeito a formas de vida e de expressão, os escritores que
eram demasiado orgulhosos ou especialmente dotadós para fornecer
a mercadoria de massas universalmente desejada e corrente, foram
impelidos para um isolamento quase convulsivo no campo do
puramente estético-estilístico e para uma aversão diante de qual-
quer possibilidade de intervenção prática por parte de suas obras
nos problemas do tempo. t
(Nessa corrente também veio dar o realismo misturador de
e,gilQ;;, e isto era mais nítido precisamente quando, como no caso
( de Germinie Lacerleux, pretendia ter intenções sociais e temporal-
mente problemáticas. Trata-se, como resulta imediatamente de
uma investigação exata do seu conteúdo, não de um impulso social,
mas de um impulso estético; e não de um tema que atinja o cerne
da estrutura social, mas da descrição de um fenômeno isolado e
singular, à margem dessa estrutura. Pata os Goncourt. trata-se da
atração estética do feio e do patológiço. Com isto não queremos
? t\~)~ tW'1it.c.,~~ cH. .~)?().~.
, ...vf-mr~ e-->fCh'tA, cio {e.;o e. d.o ~~ÍJ'.t..o-
454 MIMESIS

negar, de forma alguma, o valor da corajosa expeQ,ência que os


Goncourt empreenderam ao escrever e publicar Germinie
Lacerteux. (O seu exemplo contribuiu para inspirar e encorajar
outros que não ficaram presos no meramente estético. É surpreen-
dente, mas é também inegável, que a inclusão do quarto estado no
~ realismo sério foi decisivamente fomentada por aqueles que, à caça
de novas impressões estéticas, descobriram o atrativo do feio e do
\ patológico; no caso de Zola ou dos naturalistas alemães do fim do
éculo, esta relação é ainda inconfundivel>
Também Flaubert, que tinha, aliás, quase a mesma idade de
Édmond de Goncourt, era um dos que se isolaram totalmente no
campo do estético, ele até é talvez, dentre eles, o que levou mais
longe a renúncia ascética a uma vida própria, na medida em que
não servisse mediata ou imediatamente ao estilo. No capitulo
anterior tentamos descrever a sua ideologia artística, comparável a
uma teoria mistica de absorção, e também tentamos mostrar como
foi precisamente ele quem, pela coerência incoercivel e pela profun-
didade do seu esforço, penetrou na profundeza das coisas, de forma
a 'tomar visível a problemática do tempo, embora o autor não
assuma qualquer posição frente a ela. Conseguiu-o nos seus melho-
res tempos; mais tarde, não.(O isolamento no estético e a obser-
va ão da realidade como mero. objeto de reprodu ão liter .a, no
fim das contas, não obtIveram n e nem na maioria dos seus
contemporâneos que compartilhavam esta posição bons resultados)
Quando se compara o mundo de Stendhal ou ainda o de Balzac com
o de Flaúben ou com o dos dois 'Goncourt, este último parece,
apesar da pletora de impressões, estranhamente estreito e mesqui-
nho. O que é digno de admiração em documentos tais como a
correspondência de Flaubert ou o diário dos Goncourt é a pureza e
a insubornabilidade da moral artística, a riqueza das impressões
processadas, o refinamento da cultura sensOrial. Mas ao mesmo
tempo também sentimos, pois' hoje lemos com olhos diferentes
daqueles de vinte ou trinta anos atrás, que há nestes livros algo de
angustiante e de apertado. São cheios de realidade e de gênio, mas
pobres de humor e de calma interna. O puramente literário,
mesmo no grau mais elevado da compreensão artística e em meio à
maior riqueza das impressões, limita o juizo, empobrece a vida e
distorce, por vezes, a visão dos fenômenos. E enquanto os escrito-
res se afastam depreciativamente do burburinho do político e do
econômico, valorizando a vida sempre só como tema literário,
mantendo-se sempre longe dos grandes problemas práticos, cheios
de altivez e de amargura, para conquistar cada dia de novo, amiúde
com grande esforço, o isolamento artístico para o seu trabalho,
enquanto isso, o prático penetra, apesar de tudo, em mil formas
mesquinhas, até atingHos: surgem desgostos com editores e criti-
cos, nasce o ódio contra o público que se quer conquistar, enquan-
to escasseia uma base para um sentimento e um pensamento
comuns; por vezes há também problemas de dinheiro; e quase
~

GERMINIE LACERTEUX 455

ininterruptamente, superexcitação nervosa e preocupação com a


própria saúde. Todavia, como, em geral, levam a vida de burgueses
remediados, moram confortavelmente, comem do bom e do melhor
e se entregam ao goro de todos os deleites da sensibilidade mais
elevada, como a sua existência nunca se vê ameaçada por grandes
estremecimentos e perigos, o que surge é, não- obstante todo o
gênio e toda a insubornabilidade artistica, um quadro de conjunto
singularmente mesquinho, o do grão-burguês egocêntrico, preocu-
pado com conforto estético, nervoso, torturado pelos aborrecimen-
tos, maniaco enfim - só que a sua mania chama-se, no seu caso,
"literatura" . _ *"'
.( Emile Zola é vinte anos mais jovem do que a geração de -3D J~
Flaubert e dos Goncourt; está ligado a eles, sofre a sua influência, -
apóia-se neles e tem muito em comum com eles. Também parece
não ter sido isento de neurastenia, mas é de origem mais pobre em
dinheiro, em tradição familiar, em refinamento sensível. Destaca-
-se energicamente dentre o grupo dos realistas estéticos. Queremos
tomar novamente como exemplo um texto, para podermos traba-
lhar com a maior exatidão possível. Escolhemos uma passagem de
~rminaJ (1888), o romance que trata da vida numa comarca
carvoeira do Norte da França; trata-se do encerramento do segundo
câPitulo da terceira parte. E-uma quermesse. um entardecer de
domingo de julho; os trabalhadores da comarca passaram a tarde
inteira indo de uma taverna à outra beberam . aram boliche,
assistiram a toda espécie e espetáculos. O encerramento do dia é
constituido pelo '6ãile, o baJ du Bon-Joyeux, estaminet da viúva i '
Désir, gorda e cinqUentona, mas ainda muito cheia de alegria de
viver. O baile, para o qual chegaram finalmente também as mulhe-
res de mais idade com as suas crianças de colo, já se prolongou
durante várias horas:

Jusqu' à dix heures, on resta. Des femmes amvlUent


toujours, pour rejoindre et emmener leurs hommes; des bandes
d'enfants suivaient à la queue; et les meres ne se·gênaient plus,
sortaient des mamelles longues et blondes comme des sacs
d'avoine, barbouillaient de lait les poupons joufflus; tandis que les
petits qui marchaient déjà, gorgés de biere et à quatre patles sous
Ies tables, se soulageaient sans honte. C'était une mer montante de
biere, les tonnes de la veuve Désir éventrées, la bierearrondissant-
les panses, coulant de partout, du nez, des yeux et d'ailleurs. On
gonflait si fort, dans le tas, que chacun avait une épaule ou un
genou qui entrait chez le voisin, tous égayés, épanouis de se sentir
iÍfisi les coudes. Un rire continu tenait les bouches ouvertes,
fendues jusqu' aux oreilles. TI faisait une chaleur de four, on cuisait,
on se mettait à l' aise, la chair dehors, dorée dans l' épa~ fumée
des pipes; et le seul inconvénient était de se déranger, une fille se
levait de temps à autre, allait au fond, pres de la pompe, se
troussait, puis revenait,. Sous les guirlandes de papier peint, les
456 MIMESIS

danseurs, ne se voyaient plus, tellement ils suaient;ce qúi


encourageait les galibots à culbuter les herscheuses, au hasard des
coups de reins. Mais lorqu'une gaillarde tombait avec un homme
par dessus elle, le piston couvrait leur chute' de 58 sonnerie
enragée, le branle des pieds les roulait, comme si le bal se Ííit
éboulé sur eux.
Quelq'un, en passant, avertit Pierron, que sa fille Lydie
dormait à la porte, en travers dutrottoir. Elle avait bu sa part de la
bouteille volée, était sol1Ie, et il dut l'emporter à son cou, pendant
que Jeanlin et Bébert, plus solides, le suivaient de loin, trouvant ça
três farce. Ce fut le signal du départ, des familIes sortirent du
1
I
I

.' Bon'-Joyeux, les Maheu et les Levaque se décidêrent ã retourner au


·coron. A ce moment, le pére Bonnemort et le vieuX Mouque
quittaient aussi Montsou, du même pas de somnambules, entêtés
dans le silence de leurs souvenirs. Et l'on rentra tons ensemble, on
traversa une derniêre fois la ducasse, les poêles de friture qui se
figeaient, les estaminets d'ou les derniéres chopes coulaient en
ruisseaux, jusqu'au milieu de la route. Vorage menaçait toujours,
des rires montêrent, dês qu!on eut quitté les maisons éclairées,
pour seperdie dans la campagne noire. Un souffle ardent. sortait
de~ blés ml1ês, il dut sE:datrebeaucollp d'enfants, cette nuit-Iã. On
arriva débandé au coron. Ni ·les Levaque ni les Maheu ne sou-
pêrent avec appêtit, et ceux~ci dormaient en achevant leur bouilli
du matin.
Etienne avait emmené Chaval boire encore chez Rasseneur.
- "1'en suis!". dit Chaval, quand le camarade lui eut
expliqué l'affaire de la caisse de prévoyance. "Tape là-dedans, tu
es un bon!"
Un commencement d' ivresse faisait flamber les yeux
d'Etienne. llcria: - Oui, soyons d'accord ... Vois-tu, moi, pour la
justice je donnerais tout, la boisson et les filles. II n'y a qu'une
chose qui me chauffe le coeur, c'est l'idée que nous allons balayer
les bourgeois.
Ficou-se até as dez. Continuavam a chegar mulheres, para juntar-se e
para levar embora os seus homens; bandos de crianças seguiam-nos; e as mães
não faziam cerimônia, ~unham para' fora mamas longas e loiras como sacQs
de aveia, borravam de leite os seus bebês bochechudps; enquanto os pequen9s
que jã andavam, empanturrados de cerveja e de quatro sob as mesas, alivia-
vam-se sem vergonha, Era uma maré alta de cerveja, os tonéis da viúva Désir
estripados, a cerveja arredondando as panças, correndo em toda parte, do
nariz, dos olhos e de outras partes. Estavam tão inchados e enroscados que ca-
da um tinha um ombro ou um joelho que entrava no seu vizinho, todos ale-
gres, expansivos por se sentirem assim acotovelados. Um riso contínuo manti.
nha todas as bocas abertas, fendida$ até as orelhas, Fazia um calor de forno,
cozinhava-se, ficava-se à vontade, a carne de fora, dourada na espessa fumaça
dos cachimbos; e o único inconveniente era o de se incomodar, uma moça

* levantava-se de vez em quando, ia' até o fundo, perto da bomba, arregacaya..


-!!:.z depois yo)tu a. Sob as guirlandas de papel pintado os dançarinos não mais
se viam, de tanto que suavam; o que encorajava os rapazes serventes nas
minas a derrubar as rastilheiras ao acaso das nadegadas. Mas quando uma
~

GERMINffi LACERTEUX 457

rapariga caía com 'um rapaz por cima ~ela, o pistão cobria a sua queda com o
seu' ressoar irado, o movimento dos pés os rolava, como se a dança tivesse
desabado por cima deles.
Alguém de passagem, advertiu Pierron que sua filha Lydie dormia à
porta, atravessada nã calçada. Havia bebido sua parte da garrãfa roubada, esta-
e
va bêbada, e ele teve de carregã-Ia nos ombros, enquanto leanlin Bébert, mais
sólidos, seguiam-nos de longe, achando tudo muito engraçado. Foi b sinal da
partida, famílias saíram do Bon-Joyeux, os Maheu, e os Levaque decidiram-se
a voltar ao vilarejo. Nesse momento, o compadre Bonnemort e o velho Mou-
, que deixavam também Montsou, no mesmo passo de sonâmbulos, obstinados
no silêncio das sUaS lembranças. E voltaram todos juntos, e atravessou-se pela
última vez a quermesse, lfs frigideiras que se endureciam, as tavernas onde os
últimos chopes' escorriam como riachos, até o meio da estrada. A tempestade I
ameaçava sempre, risadas subiram, logo que se deixou para trás as últimas
casas iluminadas, para perder-se no campo escuro. Um sopro ardente subia dos
trigais madurôs; deve-se ter feito muitas crianças, nessa noite. Chegaram de-
bandados ao vilarejo'. Nem os Levaquenem os Maheu cearam com apetite, e
estes dormiam enquanto terminavam com o cozido da manhã.
Etienne tinha levado Chaval para beber ainda no Rasseneur.
- "Estou nessa!" disse Chaval, quando o camarada acabou de \he
explicar o caso da caixa de providência. "Toca aí, você é dos bons!"
Um começo de embriaguez f~zia chamejar os olhos de EtienIW. Gritou:
- Sim, de acordo ... Você vê, eu, deixaria tudo pela justiça, a bebida e as
moças. Só há uma coisa que me entusiasm'a, é a idéia de que vamos varreros
b,urgueses.

Este trecho pertence àqueles que, quando da primeira apari-


ção das obras de Zola, nos últimos trinta anos do século paSsado, .
") prOVOCaram repulsa, horror" mas tam~, junto a uma minoria tl4'pv.i.~.: I
l notável? grande admir ~; muitos dos seus romances âlcançaram,,: ~r. '
logo a a sua publicaç~o, grandes tiragens, ao ~es~o tempo que VVVI'!Y
começou um forte mov~ento pró ou contra a Justificação de tal /
arte. Quem, não sabendo nada acerca disso e não lesse nada da obra d:;i~t{/{c'
de Zola afora o primeiro parágrafo do texto que reproduzimos aqui, c:""
poderia acreditar, por um instante, que se tratasse de uma forma (.., _ ,
literária desse naturalismo grosseiro que já se conhece da pintura /MA ..J(>j. "
flamenga e, sobretudo, da píntura holandesa do século XVll; não
seria mais do que uma orgia de bebida e de dança nas cainadas màis
baixas da população, como podem ser encontradas ou imaginadas
na obra de Rubens ou Jordaens, de Brouwer ou Ostade, ~mbora ~e'
não sejam camponeses os que aqui bebem e dançan), mas operários ~
indpstriílis. Outrossim há também uma diferença no efeito, na
medida em que os pormenores particularmente grosseiros têm,
para a duração em: que são pronunciados ou lidos, um efeito mais
duro e penoso do que teriam em meio a um quadro; mas estas
diferenças não são fundamentais. I!oder-se-ia acrescentar, ainda,
que Zola conferiu ande valor evidentemente, ao ê1emento ura-
mente sensorial literária a a le
.
I
o 'seu talento revela neste trecho tr~ de inspiração decididamente '
pictórica, por exemplo. na pintgra da carne. (... les m~res ...
sorta;ent ,des mamelles longues, st blondes cOmme des sacs
d'avoine ... , e mais tarde ... Ia chair dehõrs, dorée dans I'épaisse
458
(1 •
J(iiHtJ100
fumée fies pipes); e também a cerveja que corre, a emanação do
I
y/
suor, as bocas grandemente arreganhadas tomam-se impressões
visuais; júnto a elas, são provocados efeitos acústicos e outros
efeitos sensoriais; em resumo, poder-se-ia achar, por um instante,
~'to que o que se desenrola à nossa frente não é mais do que um
~~(xoo .c::: processo particularmente vigoroso de estilo baixo) uma devassa
grosseira. Sobretudo o encerramento do parágrafo, o furioso soprar
------- do pistão e o selvagem dançar que encobre e engole a queda de um
~oh(';' casal, dá(nàta grotesca e orgiástica)que faz parte Ode tais quadr:0s
1f1e farsescos.
o o

Of< - 'e.; -,>Mas só por causa disto os contemporâneos de Zola não se


~~o,1 feriam irritado tanto. Entre os seus inimigos, que se encamiçavam
" contra o repugnante, o sujo, o obsceno da sua arte, havia certa-
\! mente muitos que aceitavam o realismo grotesco ou cômico de
1\ épocas anteriores, mesmo nas suas representações mais cruas ou
mais amorais, com indiferença ou até com deleite{O que os enchia
~~ de excitação era muito mais a circunstância de que Zola não.
O) a.Qresentava a sua arte. de forma alguma como sendo de "estikl.
, baixo" ou cômico; quase cada uma das suas linhas delatava que
tudo era considerado da forma mais séria e moralista possível;..ill!,e
o con unto não seria um divertimento ou um '0 o artístico, mas um
retrato verdadeiro da sociedade contem • ea tal c ,la,
a via; ta como também o público e nestas õbrãs,
a ve- a.

I
--- lficilmente poderíamos sentir isto a partir apenas do primei-
ro parágrafo do nosso texto; quando muito, poderíamos surpreen-
~, der-nos com a objetividade quase protocolar do relato, o qual, com
c1.oAo toda a sensibilidade da sua apresentação, contém algo de ~o, de
fll claro dem,ais, de quase cruel; nenhum autor que tencione apenas
~el(. um efeito cômico ou grotesco escreve desta forma. A primeira
~ frase: Jusqu 'à dix heures, on resta, s.eria inconcebível em meio de
, b
r:",
uma orgia grotesca da plebe. Para que é dado de amemão o fim da
r~ orgia? Isto tem um efeito demasiado despoetizante para fazer parte
de uma intenção meramente cômica ou grotesca. E por que tão
'IO'NI',JI. cedo? Que espécie de orgia é esta, que acaba tão cedo? A gente das
minas de carvão deve sair da cama cedo, na segunda-feira, alguns
deles, já às quatro ... E após a primeira surpresa, há outras coisas
que chamam a atenção. Para uma orgia, mesmo junto ao povaréu,
é necessária a superabundância. Certamente há fartura, mas é uma
fartura pobre e parca: nada além da cerveja. O conjunto mostra
como são desconsoladas e miseráveis as alegrias dessa gente.
Z, 1/ A verdadeira intenção do texto torna-se mais nítida .no
•, se.,gpndo parágrafo. que descreve a partida e a volta ao lar. A moa
-:1Y'·-do mineiro Pierron, Lydie, é encontrada dormindo, totalmente
la. bêbada, na rua, diante do local do baile. Lydie é uma menina de
doze anos, que esteve vadiando com dois meninos da mesma idade,
J, ., vizinhos seus: Jeanlin e Bébert. Os três já trabalharam na mina,
~~f..oPllxando os carrinhos; sã(l crianças prematuramente estragadas,
~olg', Lula. :f::. (ÍoV\{,oo-r!: &~-r",\{ifl SW:01(,.;; .....
6vl Itr( 'O c"'r"' ~ d-.O {e.:o

) 'VI c{Áh? tr \.,), t. a-


e ! &<)~ , GERMINIE LACERTEUX 459
ri) eu;. (, G\.
especialmente o astuto e malévolo Jeanlin. Desta vez incitou os
outros dois a roubar uma garrafa de genebra de uma das barracas
da quermesse; beberam-na juntos, mas para a menina a dose foi
grande demais; é carregada pelo pai para casa, e os dois meninos
seguem a certa distância, trouvant cela tres farce ... Entrementes
partem as famílias vizinhas, Maheu e Levaque, juntando-se ainda
dois mineiros que já foram cortadores de carvão, Bonnemort e
Mouque, que, como de costume, passaram o dia juntos. Embora
tenham apenas sessenta anos de idade, já são os últimos da sua
geração, consumidos e embotados; servem apenas para trabalhar,
na mina, junto aos cavalos. No seu tempo livre estão quase sempre
juntos, quase sem se falar. Assim, vão juntos, mais uma vez,
através do burburinho cada vez mais fraco da quermesse, dirigindo-
-se à vila onde todos moram. logo após deixarem atrás de si as
casas iluminadas, onde começa o campo aberto, chegam até eles as
risadas; da escuridão do trigo maduro, sobe uma exalação quente:
muitas crianças são geradas durante essa noite. Finalmente chegam
à sua casinhola onde, meio adormecidos, comem os restos requen-
tados do almoço, guardados para a noite.
Entrementes, dois homens mais jovens foram ainda a uma
outra taverna. Em geral os dois não se dão muito bem, por causa
de uma garota; mas hoje têm algo importante a tratar. Etienne
quer conquistar Chaval para o seu projeto de uma caixa de previ-
dência, para que o pessoal não fique sem recursos quando se chegar
à greve. Chaval está de acordo. Aquecidos pelas suas esperanças
revolucionárias e pelo álcool, esquecem a sua inimizade (é claro
que não por muito tempo) e se unem no ódio comum contra o
burguês.
~Alegrias pobres e rosseiras' Corru ão ematura e rá idO]
desgaste o material humano; embrutecimento da vida sexual e, I n
em relação às condições de vida, natalidade demasiado elevada, pois I . •
a cópula é o único deleite gratuito; por trás disto, no caso dos mais
enérgicos e inteljgentes, ódio revolucionário, que se apressa para a
eclosão: estes são os motivos do texto. Eles são postos em evidênêia
sem rebuços, sem medo diante das palavras mais claras, nem diante
dos acontecimentos mais feios.LA arte do estilo renunciou total- \
mente a procurar efeitos agradávéis, no sentido tradicional; serve à II I
verdade desagradável, opressiva, desconsolad . ~ esta verd;4e ' ' ,
s r te m
reforma social. Não mais se trata. como no caso dos Goncourt, do
a~tivo sen~rial do feio; trata-se, sem qualquer dÚvida. do cerne
do Qroblema social do tempo. da luta entre o capital industrial e..a
classe operária.<O princípio I'art our "art está li u' o> Pode-se
constatar que também la sentiu e aproveitou a sugestão sensorial
do feio e do repugnante; pode-se também censurá-lo de que a sua
fantasia, um tanto grosseira e violenta, levou-o a cometer exagêros,
brutais simplificaçoos e a empregar uma psicologia demasiado
materialista. Mas tudo isto não é decisivo(Zola levou a séri<:., a

~ld~)M,ta de ~T~ ~1vi.Jl


-4,.0 d.... ~ ()~~~______ ._
460 MIMESIS

mistura dos estiJo!!; foi além do realismo meramente estético da


geração que o precedeu; é um dos pouquissimos escrite'res do
século que fizeram a sua obra' a partir dos grandes problemàs da
-
li!
'época. Neste sentido, apenas Balzac é comparável a ele, mas
escreveu num tempo em que muito daquilo que Zola reçonbereu
.' não se tinha ainda desenvolvido ou não podia ainda ser reconhe-
~. Se Zola, exageroQ., ele o fez na direção que interessavá. e.se
tinha preailêÇão Pêlo feio. fez dele o 'uso mais frutifero oossivel.
Germinai é ainda hoje, após bem mais de meio século, cujas o

últimas décadas nos presentearam destinos com os quais Zola nem


sonhava, um livro terrivel; mas também hoje nada perdeu dá ,S),la
importância, quase nada da sua atualidade. Há nele trechos que
merecem ser considerados clássicos, antológicos, porque apresen-
tam com clareza e simplicidade modelares a situação do quarto
estado e o seu despertar, num estágio temporão da época de
transição em que ainda nos encontramos. Penso, por exemplo, na
conversação noturna em casa do mineiro Maheu, que está no
terceiro capítulo da terceira parte. A conversa gira, num primeiro
momento, em tomo do excessivo aperto nas casas demasiado
pequenas da vila, com as suas desvantagens para a saúde e para a
moral, e continua, depois, desta forma:

"Dame!" répondait Maheu, "si I' on avait plus d' argent,


on aurait plus d'aise ... Tout de même, c'est bien vrai que ça ne
vaut rien pour personne, de vivie les uns sur les autres. Ça tinit
toujours par des hommes sows et par des filles pleines".
Et la famille partait de là, chacun disait son mot, pendant
que le pétrole de la lampe viciait l'air de la salle, déjà empuantie
d'oignon frito Non, sUrement, la vie n'était pas drôle. On
travaillait en vraies brotes à un travailqui' était la punition des
galériens autrefois, on y laissait sa peau plus souvent qu' à son
tour, tout ça pour ne pas même avoir de la viande sur sa table, le
soir. Sans dóute, on avait sa pâtée quand même, on mangeait, mais
si peu, juste de quoi souffrir sans crever, écrasé de dettes, pour-
suivi comme si l'on volait son pain. Quand arrivait le dimanche,
on dormait de fatigue. Les seuls plaisirs, c'était de se sol1ler ou de
faire un enfant à sa femme; encore la biêre vous engraissait trop le
ventre, et l'enfant, plus tard, se foutait de vouS. Non, non, ça
n'avait rien de drôle ..
. Alors, la Maheu de s' en mêlait:
"L'embêtant, voyez-vous, c'est lorsqu'on se dit que ça ne
peut pas changer ... Quand on est jetme, on s'imagine que le
honheur viendra, on espere des choses; et puis, la misére recom-
mence toujours, on reste enfermé là-dedans ... Moi, je ne veux du
, mal ã personne, mais il y a des fois ou cette injustice me révolte."
Un silence se faisait, tous soufflaient un instant, dans le
malaise vague de cet horizon fermé. Seul, le pêre Bonnemort, s'il
était lã, ouvrai~ des yeux surprls, car de son temps on ne se
....
GERMINIE LACERTEUX 461

tracassait pas de la sorte: on naissait dans le charbon, on tapait à la


veine, sans en demander davantage; tandis que, maintenant, il
passait un air qui donnait de l' ambition aux charbonniers.
"Faut cracher sur rien, murmurait-il. Une bonne chope est
une bonne chope ... Les chefs, c'est souvent de la canaille; mais il y
aura toujours des chefs, pas vrai? Inutile de se casser la tête à
réflechir là-dessus.' ,
Du coup, Etienne s'animait. Comment! la rétlexion serait
défendue à l'ouvrier! Eh! justement, les choses changeraient
bientôt, parce que l'ouvrier réfléchissait à cette heure ...

"Diacho!" respondeu Maheu, "se a gente tivesse mais dinheiro, a gente


estaria mais folgado ... Me~mo assim, é bem verdade que isso não faz bem
a ninguém, isto de viver uns sobre os outros. Isso acaba sempre em homens
bêbados e moças grávidas." .
E a família saiu daí, cada um dizia alguma coisa, enquanto o querósene
da lâmpada viciava o ar da sala; já empesteado pelo cheiro de cebola frita.
Não, certamente, a vida não era divertida. Trabalhava-se como verdadeiras
bestas num trabalho que em outros tempos era o castigo dos galeotes,. mais
freqüentemente perdia-se lá a pele antes do tempo, tudo isso para não ter
nem carne à mesa, à noite. Sem dúvida, a gente tinha a sua bóia, a gente
comia, mas tão pouco, justinho o necessário para sofrer sem morrer, aplasta-
do pelas dívidas, perseguido como se a gente roubasse o próprio pão. Quando
chegava o domingo, dormia-se de cansaço. Os únicos prazeres eram o de se
embebedar ou o de· fazer um filho à sua mulher; e ainda, a cerveja engordava
demais o ventr~ e a criança, mais tarde, gozava sua cara. Não, não, isso não
tinha graça nenhuma. .
E~tão, a Maheu metia;se:
"O chato, vejam, é quando a gente pensa que isto não pode mudar ...
Quando a gente é jovem, a gente imagina que virá a felicidade, a gente
espera coisas; e depois, a miséria sempre recomeça de novo, a gente fica
preso lá dentro ... Eu não quero mal a ninguém, mas há vezes em que esta
injustiça me revolta."
Fazia-se um silêncio, todos respiraram pesadamente por um instante,
no vario mal-estar deste horizonte fechado. Só o compadre Bonnemort, quan-
do estava lá, abria olhos surpresos, pois no seu tempo a gente não se inquieta-
va desse jeito: nascia-se no carvão, marretava-se na mina, sem pedir nada, en-
quanto que agora, soprava um vento que dava ambição aos carvoeiros.
"Não se deve cuspir em ninguém, .murmurava. Um bom chope é um
bom chope... Os chefes, quase sempre são canalhas; mas haverá sempre
chefes, não é verdade? .t inútil quebrar a cabeça pensando nisso."
De reprente, Etienne se animava. Como! a reflexão estaria proibida
para o operário? Então, exatamente, as coisas mudariam logo, porque o
operário estava refletindo agora ...

Não se trata de uma conversação determinada, mllS apenas


de um exemplo, Uma das muitas conversas que toda noite ocorrem
na casa dos Maheu, sob a influência do seu inquilino, Etienne
Lantier - dai, também, o .imperfeito. A lenta transição da embo-
tada submissão à consciência da própria situação, o germinar de
esperanças e planos, as difererites posições das gerações e, junto a
isto, o lôbrego, miserável e enfumaçado do ambiente, os seres
humanos apinhados,· a simples praticidade das palavras que sur-

______ ==~-~J.'
462 MIMESIS

gem: tudo isto dá um quadro modelar da classe operária da


primeira época socialista, e hoje ninguém quererá ainda negar
seriamente a importância histórico-universal do tema. Qual é o
t.ut)htlnível estilístico que se deve atribuir a um texto como estê?
---- 19ta-se, sem qualquer dúvida, de uma grande tragédia histórica,
de uma mistura de humile com sublime, na qual, devido ao.
conteúdo, predomina o últiUlO. Frases como a de Maheu (si I :;;n
avait plus d'argent on aurait plus d'aise - ou Ça finit toujours par
. des hommes so12ls et par des filies pleines), para não falar nas da
sua mulher, tomaram-se frases de grande estilo; longo caminho foi
percorrido desde Boileau, que só podia imaginar o povo fazendo
momices grotescas na farsa mais baixa. Zola sabe como estes SeJ:eS
humanos pensaram e falaram. Conbece ta mhém todos os detalhes
da minera ão; conhece a sicolo ia de cada classe de o erários e a
a ministração; o funcionamento da erência central; a luta entre os
grupos capitalistas: a co aboracão dos jnteresses capitalistas com o
governo, com o exército. Mas não escreveu apenas romances sobre
operários industriais; tal como Balzac, porém de forma mais metó-
dica e exata, quis abranger toda a vida do seu tempo (o segundo
Império): o povo de Paris, os camponeses, o teatro, as grandes
lojas, a bolsa, e muitas coisas mais. Em todos os campos, Zola se
,., tprnou um especialista. em toda parté oenetrou..Q,a e~lrutura social
.."." e na técnica. Nos Rougon-Macquart há uma soma Immagmável de
inteligência e de trabalho. Hoje estamos saturados de tais impres-'
sões; Zola achou muitos seguidores; e cenas semelhantes à da casa
dos Maheu poderiam ser encontradas em qualquer reportagem
moderna. Mas Zola foi o primeiro, e a sua obra está repleta de
quadros de espécie e de hierarquia semelhantes. Será que alguém.
antes dele viu jamais um cortiço como ele o fez, no segundo
capítulo de L 'Assommoir? Dificilmente; aliás, ele não apresenta
um quadro visto por ele mesmo, mas as impressões de uma
lavadeira jovem, recém-chegada a Paris, que espera ao portão;
também estas páginas parecem-me clássicas. Os erros da concepção
antropológica de Zola e os limites do seu ênio são evidentes; não
erem, porém, a sua importância artística, o
histÓrica, e quero acredtfar que a sua tema êrescerá à medjda que
ganharmos distância do seu tempo e dos seus problemas' tanto
mais quanto ele foi o último dos grandes realistas franceses. Já
durante a últirria década da sua vida, a reação "antinaturalista"
tornou-se muito forte e, além do mais, não havia mais ninguém
que pudesse medir-se com ele quanto à força de trabalho, quanto ao
domínio da vida do. seu tempo, quanto a fôlego e a coragem.
L... A literatura francesa do século XIX está muito à frente das
, literaturas dos outros países europeus quanto à apreensão da reali-
~ Idade contemporânea)Acerca da Alemanha, ou melhor, do territó-
rio lingüístico alemao, já falamos rapidamente em páginas ante-
riores. Se considerarmos que Jeremias Gotthelf (nascido em 1797)
é apenas dois anos mais velho, Adalbert Stifter (1805), seis anos
GERMINIE LACERTEUX 463
-
mais jovem do que Balzac; que os coetâneos alemães de Flaubert
(1821) e de Edmond de Goncourt (1822) são, por exemplo, Freytag
(1816), Storm (1817), Fontane e Keller (ambos 1819); que, com-
parativamente, os narradores de maior renome nascidos mais ou
menos no tempo de Zolà, isto é, ao redor de 1840, se chamam
Anzengruber e Rosegger; então só estes nomes já mostram que, na
Alemanha, a própria vida era muito mais provinciana, mais anti-
quada, muito menos "contemporânea". As paisagens do espaço
lingüístico alemão viviam, cada uma delas, na sua peculiaridade, e
em nenhuma delas chegou a medrar a consciência da vida moderna
e das evoluções que se estavam preparando.{Mesmo após 1871,
esta consciência nasceu só muito lemrunente oy pelÕ menos,
aemC;;~~ito até que se document~_eE!!1~icamente na repre-
sentação literária da realidade contemporânea. Durante longo tem-
po a pró na v1da permaneceu enraizada no individual o sin ular,
no tradicional mais ortemente do que na França; não fornecia
temas para um realismo tão universal e nacional, tão materialmen-
te moderno, que anâ1isasse o destino em formacão .de toda a
sociedade euroQéia da forma como o realismo francês o fazia. E
entre os escritores alemães que, quase todos alimentados pelas
fontes da vida pública francesa, apareciam como críticos radicais
das situações da sua pátria, não surgiu nenhum talento realista
significativo. Os escritores alemães de nível, que se ocupavam da
representação da realidade contemporânea, tinham em comum o
enleamento nas tradições do recanto em que estavam enraizados.
Com isto, o poético, o romântico, o "à maneira de Jean-Paul", ou
também o antiquado, o solidamente burguês, ou as duas ordens de
coisas juntas, tornaram impossível por muito tempo um radicalis-
mo na mistura de estilos como tinha surgido muito cedo na França.
Somente no fim do século ela conseguiu se impor, após pesadas
lutas. Em compensação, reina, entre os melhores desses escritores,
uma tão íntima devoção vital e uma pureza na visão do ofício
humano como não podem ser encontradas na França em parte
alguma. Stifter ou Keller, por exemplo, podem prov.ocar no leitor
um enlevo muito mais puro e íntimo do que Balzac, Flaubert ou
até Zola; e nada é mais injusto do que uma declaração de Edmond
de Goncourt de 1871, que se encontra no quarto tomo de Journal
(aliás explicável, talvez, pela natural amargura de um francês
fortemente atingido pelos acontecimentos da guerra franco-prus-
siana): nega aos alemães todo humanismo; não teriam nem roman-
ce, nem drama! É claro que justamente as melhores obras alemãs
desta época não tinham qualquer validez universal e não podiam,
devido a toda a sua condição, ser acessíveis a um homem como
Edmond de Goncourt.
Algumas datas podem proporcionar uma visão geral da ~itua­
ção. Começaremos com os anOs quarenta. Em 1843 apareceu a
mais importante tragédia realista da época, Maria Magdalena de
Hebbel; aproximadamente ao mesmo tempo surge Stifter (primeiro
464 MIMESIS

volume dos Studien em 1844, Nachsommet em 1857); também os


mais conhecidos escritos narrativos de Gotthelf, que era um tanto
mais velho, são desse decênio. Na década seguinte aparece Storm
(Immensee, 1852), que, porém, só mais tarde chegou â maturi-
dade; Keller (primeira edição de Der Grüne Heinrich em 1855,
Leute von Seldwyla, primeiro tomo, 1856); Freytag (Soll und
Haben, 1855); Raabe (Chronik der Sperlingsgasse, 1856,' Der
Hungerpastor, 1864). Nas décadas anterior e posterior â criação do
império alemão, não se vê nada de propriamente novo no realismo
contemporâneo; contudo, formou-se algo assim como um moderno
romance de costumes, cujo representante mais apreciado, então, e
até a década de noventa, foi Friedrich Spielhagen; hoje totalmente
esquecido. A língua, o conteúdo e o osto decaem nestas décadas;
só alguns pÓucos representantes da geração mais ve a, sobretu o
Keller, escreviam uma prosa com cadência e peso. Só após 1880,
Fontane, que já estava com mais de sessenta anos, chegou a um
desenvolvimento pleno como narrador de temas contemporâneos;
parece-me de nivel muito mais baixo do que Gotthelf, Stifter ou
Keller, mas a sua arte inteligente e amável ainda nos dá o melhor
retrato da sociedade do seu tempo. Além disso ela pode ser
considerada, não obstante a sua limitação a Berlim e às terras a:
leste do Elba, como passagem para um realismo mais livre, menos
ensimesmado, mais espaçoso. Por volta de 1890, as influências'
estrangeiras penetram em toda parte; no que respeita â represen-
tação da realidade contemporânea, isto leva ao surgimento de uma
escola naturalista alemã, cuja figura mais importante é, de longe, a
do dramaturgo Hauptmann. Die Weber, Der Biberpelz, Fuhrmann
Henschel pertencem ainda ao século XIX. Já ao século XX
pertence o primeiro grande romance realista, que, embora muito _
peculiar na sua forma, corresponde no seu nivel estilistico às obras
dos realistas franceses do século XIX: Buddenbrooks, de Thomas
'Mann, apareceu em 1901. Observe-se que também Hauptmann e
até Thomas Mann estavam, nos seus começos, mais fortemente
ancorados no solo das suas regiões natais - as montanhas da baixa
Silésia e Lübeck, respectivamente - do que a maioria dos franceses
de que tratamos aqui.
Nenhum dos homens, entre 1840 e 1890, desde Jeremias
Gotthelf até Theodor Fontane, apresentou de forma totalmente
desenvolvida e unificada as caracteristiCas princwais do reaJjsmo

~
francê. s, istO. é, do realismo europeu em forma ão, ~r:<r re-
()lN!. sentação séria da re a u a co -
r~ menta a na constante moviment ão hi . s
PI~ . análises dos últimos capit o,. as figuras tão fundamentalmente
I diferentes como Gõtthe&, homem prático, vigoroso, que não retro-
cedia diante de n~nhuma realidade, segundo a melhor tradição dos
pastores de almas, e Hebbel, jovem, oprimido e sombrio, que
escreveu o drama pesado como chumbo do marceneiro Anton e sua
filha, têm em comum a característica de que o pano de fundo
\~

GERMINIE LACERTEUX 465

históríco dos acontecimentos por eles narrados parece totalmente


imóvel. As cas~ dos camponeses do Bernbiet parecem destinadas a
permanecer ainda durante séculos na mesma calma em que ficaram
desde há séculos, movimentada apenas pela mudança das estações e
das gerações. E também parece carecer totalmente de movimento
histórico a moral atrozmente antiquada e pequeno-burguesa que
asfixia as pessoas em Maria Magdalena. Aliás, Hebbel não deixa
suas personagens fàlarem uma linguagem tão popular como, por
exemplo, a que Schiller permite ao seu músico Miller, não as
localiza, pois o cenário é "uma cidade mediana", a linguagem, a
qual, como disse Fr. Th. Vischer, nenhuma burguesa, netilium
marceneiro falaria, contém, juntamente com fOrmas populares,
/... muito palhos convulsivamente poético, cujo efeito é r vezes,
tão antinatural. mas também t temvelriíente sugestivo como Q
. :eria ser um Sêneca transportado para uma limrua
-I}urguesa~s C01Sas se dão de maneifa muito semelhante, a part~
do ponto de vista do nosso problema no caso de um escritor
totalmente diferente, Adalbert Stifter: também ele estillia a fala das '
suas personagens, e o faz de uma maneira tão simples, pura e nobre
que não é possível encontrar em, sua obra qualquer palavra crua, e'
muito poucas palavras saborosamente populares. A sua linguagem
toca o ordinário e o quotidiano com distinção suave, inocente e um
tanto tímida; relaciona-se' estreitàffiente com isto o fato de' suas
personagens levarem também uma vida historicamente quase imó-
vel. Tudo,o que penetra na sua obra, oriundo das engrenagens da
história contemporânea, da mundanidade moderna, a política, os
negócios, o dinheiro, as atividades profissionais (a não ser as
agrícolas ou artesanais) - tudo isto ele circunscreve com palavras
simples e nobres, mas também extremamente generalizantes, insi-
miantes, precavidas, para que absolutamente nada daquela feia e
impura confusão chegue até ele ou até o seu leitor. Muito mais
político, certamente também mais moderno é Gottfcied Keller, mas
não vai além do peculiar e ~streito espaço da Suíça. O otimismo
democrático-liberal em que vive, onde a personalidàde pode ainda
procurar, livre e impoluta, o seu. próprio caminho, parece-nos,'
hoje, uma estória dos velhos tempos. Além do mais, ele se mantém
num nível médio de seriedade; aliás, sua grande magia consiste na
sua singular alegria, capaz de brincar amável e ironicamente até·
com as coisas mais erradas ou horrendas.
As guerras vitoriosas, coroadas pela formação do império
alemão, tiveram as piores conseQÜências morais e artísticas. A
nobre pureza das paisagens, isoladas do moderno burburinho uni-
versal, não mais se pôde sustentar na vida pública. ou literária; e o
elemento moderno, que se impunha na literatura, pareceu indigno
da tradição alemã, ilegítimo e cego diante da sua própria ilegitimi-
dade e dos problemas da época. Houve, certamente, alguns esérito-
res cujos olhos viam com maior agudeza;' talvez Vischer, que já era
velho então; também Jacob Burckhardt, ~as este era suiço; e
l
466 MIMESIS

sobretudo Nietzsche, com quem também se deu, pela primeira vez,


aquele conflito entre escritor e público na França observado muito
antes. Contudo, Nietzsche não representou realisticamente a reali-
dade contemporânea: entre os que o fizeram, entre os autores de
romances ou dramas, não parece haver entre 1870 e 1890 nenhu-
ma figura nova de peso e de nível, ninguém que tivesse sido capaz
de configurar seriamente algo da estrutura da vida contemporânea; .
somente no caso de Fontane, já idoso, e mesmo aqui, apenas nos
seus últimos romances surgidos após 1890, que são também os
mais belos, apresentam-se germes de um autêntico realismo tempo-
ral. Mas não chegam a se desenvolver totalmente, porque o seu
tom ainda não vai além da meia seriedade de uma tagarelice
. amável, em parte otimista, em parte resignada. Lançar isto em
rosto a Fontane seria injusto e desleal, pois ele nunca pretendeu ser
um realista fundamentalmente critico do seu tempo, como o foram,
por exemplo, Balzac e Zola. Pelo contrário, basta para sua fama o
fato de o seu· nome ser o único que se impõe, apesar de tudo,
quando se fala na sua geração no sentido do realismo sério.
f.. Nos restantes paises da Europa Ocidental e Meridional o
realismo tampouco atinge, durante a segunda metade do século, a
mesma força independente nem a mesma coerência do realismo
francês; nem sequer na Inglaterra, embora entre os romancistas
ingleses se contem importantes realistas. O calmo desenvolvimento
da vida pública na época vitoriana reflete-se no mais reduzido
movimento do pano de fundo contemporâneo, contra o qual se ~
desenrolam os acontecimentos da maioria dos romances. Os moti-
vos tradicionais, religiosos e morais fornecem um contrapeso, de
tal forma que o realismo não assume formas tão ásperas quanto na
França. É claro que, de tempos em tempos, especialmente perto do
fim do século, a influência francesa é significativa.
Por este tempo, isto é, a partir da década de oitenta, apresen-
tam-se à luz do público europeu os paises escandinavos e, sobre-
tudo, a Rússia, com obras realistas. Entre os escandinavos a
personalidade mais vigorosa é a do dramaturgo norueguês Henrik
Ibsen. Os seus dramas sociais são tendenciosos, levantam-se contra
o entorpecimento, a falta de liberdade e de veracidade da vida moral
das camadas mais elevadas da burguesia. Embora todos se desen-
volvam na Noruega e tratem de situações pronunciadamente
norueguesas, não deixaram de atingir· com os seus problemas a
burguesia da Europa Central em geral; a sua magistral técnica
dramática, a infalivel conduta da ação e a agudeza dos perfis das
personagens, sobretudo de algumas figuras femininas, arrastaram o
público. O efeito da sua obra foi muito grande, especialmente na
Alemanha, onde o movimento naturalista de 1890 o honrou, lado
a lado com Zola, como mestre. Os melhores palcos apresentaram
suas peças em ótimas montagens, onde a importante renovação do
teatro, que ali estava se realizando, está, em geral, ligada ao seu
nome. Devido à total modificação da situação social da burguesia,
...,
.

GERMINIE LACERTEUX 467

que se iniciou em 1914 e, em geral, devido às reviravoltas origi-


nadas pela grande crise nmndial, os seus problemas perderam em
atualidade e hoje se percebe com maior clareza até que ponto sua
arte era deliberada e artificiosa. Mas cabe-lhe o mérito histórico de
·ter conferido ao drama burguês sério um estilo; uma questão que já
se colocara a partir da comédie larmoyante do século xvm, e que
foi solucionada realmente só por ele. A sua desgraça, mas também,
possivelm~nte, parte de seu mérito, foi que desde então a burguesia
se modificou até se tomar irreconhecivel.
Mais persistente e importante é a influência dos russos:
. Gagol, na verdade, quase não teve influência na Europa, e
Turgueniev, que era amigo de Flaubert e de Edmond de Goncourt,
provavelmente recebeu mais, no fim das contas, do que deu.
Tolstói e Dostoiévski começam a se introduzir a partir da década de
oitenta; após 1887 encontram-se os seus nomes e discussões a seu
respeito no Journal dos Goncourt. Contudo, a compreensão das
suas obras, sobretudo a de Dostoiévsid, parece ter-se formado só
lentamente; as traduções alemãs da obra deste último já pertencem
ao século XX. Não podemos falar aqui dos escritores russos em
geral, nem das suas raízes e pressupostos, nem acerca da sua
importância individual dentro da própria literatura russa, mas
apenas da sua influência sobre o modo de ver e de representar a
realidade na Europa.
Parece que a capacidade de conceber o quotidiano de forma \
séria já coube aos russos de antemão' a es' . ist ue I
ex ui dament ente o tratamento sério uma cate oria literá- •
ria do baixo, nunca e o ter um solo rme na ' .a. Ao
mesmo tempo, ao óbservarmos o r .smo russo, que chegou ao
auge apenas no século XIX, e apenas na segur:t,da metade, impõe-se
a observação de que está fundamentado numa 'déia cristã e atriar~
cal da dignidade criatural de cada ser humano independentemente l' I
Ta sua classe sociãi ou da sua Situ e ue rtant stá t·.
aparen a o, nos seus fundamentos, muito mais com .
r~smo cnstão o que com o mOderno realismo europeu oci-
dentãi. A burgueSia eSclarea1(l"a,ativa, em ascensão para uma
posição de dominio econômico e espiritual, que estava em toda
parte na base da cultura moderna e, especialmente, do moderno
realismo, parece nem ter existido na Rússia. Pelo menos, não é'
possivel encontrá-la nos romances, nem mesmo nos de Tolstói ou
Dostoiévski. Nos romances realistas há membros da altà aristocra-
cia, proprietários aristocratas de diferentes niveis e fortunas, há
hierarquias de funcionários e de clérigos; outrossim, há pequeno-
.-burgueses e camponeses, isto é, há povo na mais vívida multiplici- .
dade. Mas o que fica no meio, a grande burguesia rica, os
comerciantes, tudo isto ainda está dividido nas corporações e é, de
qualquer forma, totalmente patriarcal na sua mentalidade e no seu
modo de vida. Pense-se, por exemplo, -no comerciante Samsonov.
dos Irm40s Karamasov de Dostoiévski, ou na casa e na familia de

11~~~' l'lA,.() t'W.Jfo ~ lr f~ i


1iI> t/LiçfS -e.- ?~-iYl';;'("...e
~ ch~",)'J.,lcle ~\&~'<Y( -k .~ <.i . !.VJ",.... (,.,,"'t'O··
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1
;
:';468 MIMESIS

Rogoshin, no Idiota. Isto não tem a minima relação com a burgue-


sia esclárecida da Europa Central e Ocidental. Os reformadores,
revolucionários e conspiradores que aparecem em grande número
são originários das mais diferentes classes, e o gênero da sua
rebeldia, por mais diferente que possa ser em cada caso, mostra
sempre, ainda, uma estreita adesão ao mundo cristão-patriarcal, do
qual não conseguem se libertar senão com torturada violência.
, Outra caracteristica que chama a atenção do leitor ocidental
da literatura russa é a uniformidade da população e da sua vida
neste pais tão extenso, uma unidade evidentemente espontânea ou,
pelo menos, existente há muito tempo, de tudo o que é russo, de'
tal forma que freqUentemente parece supérfluo indicar em que
região a ação se desenrola em cada caso. Mesmo a paisagem é
muito mais uniforme do que em qualquer outro país europeu.
Afora as duas capitais, Moscou e São Petersburgo, cujo caráter,
muito diferente entre si, é claramente reconhecivel a partir da
literatura, raramente as cidades, as vilas ou as provincias são
designadas com exatidão. Já as Almas morlas de Gogol ou a sua
famosa comédia O Inspetor Geral, indicam como cenário "uma
cidade governamental" e "uma cidade de provincia", respectiva-
mente, e coisa muito semelhante acontece com os DemtJnios de
Dostoiévski ou com os Irmãos Karamasov. Os proprietários de
terras, funcionários, comerciantes, clérigos, pequeno-burgueses, e
os camponeses parecem ser "russos" da mesma espécie em toda e
qualquer parte; só raramente é chamada a atenção sobre peculiari-
dades da fala, e quando isto acontece, não se trata de pormenores
dialetais, mas de detalhes ora 'individuais, ora sociais (como, por
exemplo, a pronúncia do, o usual entre as camadas mais baixas da
população), ou, finalmente, de variedades de fala que caracterizam
as minorias que moram no pais Gudeus, poloneses, alemães,
pequeno-russos). Todavia, no que diz respeito aos legitimos
russos, ortodoxos de nascença, todos eles parecem formar no país
todo, não obstante as diferenças de classe, uma única família
patriarcal; coisa semelhante pode ser observada, no século XIX,
também em algumas outras regiões, talvez em algumas regiões
alemãs, mas em parte alguma tão intensa e, sobretudo, tão extensa-
mente: Em todos os cantos desse gigantesco pais parece soprar o
mesmo vento da pátria russa.
Dentro desta grande e uniforme familía, que se diferencia da
sociedade européia contemporânea, sobretudo pelo fato de nela
quase não existir, ainda, a burguesia esclarecida, consciente de si
mesma, que trabalha planejadamente, reina durante o século XIX
o mais intenso movimento interno; isto pode ser reconhecido sem
sombra de dúvida a partir da literatura. Nas outras literaturas
européias da épocfl também reinava grande agitação, sobretudo na
francesa; mas de um caráter diferente. A caracteristica essencial da
agitação interna, tal como a documenta o realismo russo, é a falta
de pressupostos, a ilimitação e a apaixonada intensidade de expe-
~

GERMINIE LACERTEUX 469


-
riência dos seres humanos representados. Esta é a impressão mais
forte tida pelo leitor ocidental num primeiro instante e antes de
todas as outras, sobretudo nas obras de Dostoiévski, mas também
nas de Tolstói e outros. Parece que os russos conservaram para si
uma imediaticidade das vivências como já era dificil encontrar na
civilização ocidental no século XIX; um estremecimento forte,
vital, ou moral, ou espiritual, atiça-os imediatamente nas profun-
dezas dos seus instintos, e eles caem num instante de uma vida
calma e uniforme, por vezes quase vegetativa, para precipitar-se
nos mais terriveis excessos, tanto práticos como espirituais. A
amplitUde da oscilação pendular das suas essências, das suas ações,
pensamentos, impressões, parece muito mais ampla do que no
resto da Europa. Também isto lembra o realismo. cristão, tal como
tratamos de apresentá-lo nos primeiros capitulos deste livro. O que
é prodigioso, especialmente em Dostoiévski, mas também em
outros casos, é a alternância de amor e ódio, de entrega humilde e
de crueza animal, de amor apaixonado pela verdade e da mais
vulgar sensualidade, de simplicidade crente e de cinismo atroz. A
mudança apresenta-se muito freqüentemente no mesmo ser, quase
sem transição, em oscilações violentas e imprevisíveis; e ao mesmo
tempo, esses seres se entregam inteiramente em todos os casos, de
tal forma que nas suas palavras e ações se manifestam profundezas
instintivas caóticas que, émbora também fossem conhecidas em
países europeus, não eram expressas devido a um temor inspirado
pela frieza -científica, pelo senso da forma e pelo decoro. Quando os
grandes russos, especialmente Dostoiévski, tomaram-se conhecidos
na Europa Central e Ocidental, o imenso potencial espiritual e a
imediatez de expressão que seus maravilhados leitores encontraram
em suas obras pareceram uma revelação de como a mistura de
realismo e tragédia podia finalmente alcançar sua plena realização.
Junta-se a isto ainda uma última coisa. Ao peguntar-se o
que, propriamente, teria desencadeado nos seres humanos das
obras russas a violenta movimentação interna do século XIX a
e
resposta é: em primeiro lugar, a infiltração de formas de vida de
pensamento européias modernas, especialmente alemãs e francesas.
Estas chocaram-se na Rússia, com toda sua força, contra uma
sociedade que, embora estivesse corrompida em muitos aspectos,
era também muito independente e voluntariosa e, sobretudo,
estava muito pouco preparada para tanto. Por motivos morais e
práticos era inevitável esta confrontação com a cultura européia
moderna, enquanto que as épocas preparatórias, que levaram a
Europa ao ponto em que se encontrava, não haviam sido vividas
ainda na Rússia. O conflito tomou-se dramático e confuso; ao
observá-lo, na forma que se reflete em Tolstói ou Dostoiévski,
toma-se nitidamente visivel o que havia de selvagem, tempestuoso,
absoluto, na aceitação ou na recusa da essência européia.' Já a
escolha de pensamentos e sistemas com os quais se realiza a
confrontação é um tanto casual e arbitrária; imediatamente, deles
470 MIMESIS 1
I

se extr!Ú, por assim dizer, apenas o resultado, e este não é provado


em relação a outros sistemas ou pensamentos, como contribuição
mais ou menos valiosa em meio a uma produção espiritual rica e
variada, mas é julgado imediatamente, de forma absoluta, verda-
deiro ou falso, iluminação ou obra do demônio. Improvisam-se
monstruosos contra-sistemas teóricos; acerca de fenômenos muito
complexos, dificilmente formuláveis de forma sintética devido à sua
carga histórica - acerca da "cultura ocidental", liberalismo,
socialismo, Igreja Católica - julga-se com poucas palavras, a partir
de um ponto de vista determinado e, não raro, errôneo; e em toda
parte trata-se imediatamente dos problemas "últimos" de caráter
moral, religioso e social. É extremamente caracteristica a frase
pronunciada por Ivan Karamasov e que constitui o tema funda-
mental do grande romance, e que diz que sem Deus e sem
imortalidade não pode haver moral, e que inclusive o crime deve
ser reconhecido como escapatória ineludivel e razoável para a
situação de qualquer ateu; uma frase na qual a paixão radical do
"tudo ou nada" se mistura com o pensamento, de forma diletante'
e ao mesmo tempo desconcertantemente gradiosa. Mas a confron-
tação russa com a cultura européia durante o século XIX não foi
importante apenas para a Rússia. Por mais confusa e diletante que
apareça freqüentemente, por mais agravada que esteja de infor-
mação insuficiente, falsa perspectiva, preconceito e paixão, ela não
deixava· de possuir um instinto extremamente seguro para detetar
aquilo que, na Europa, estava quebradiço e sujeito a crises.
Também neste sentido, a influência de Tolstói e, ainda mais, a de
Dostoiévski, foram muito grandes na Europa, e se durante o
decênio que precedeu a Primeira Guerra Mundial se aguçou em
muitos dominios, inclusive no da literatura realista, a crise moral,
e se algo assim como um pressentimento da catástrofe iminente se
fez sentir, a influência dos realistas russos contribuiu essencial-
mente para tanto.

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