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CRÔNICAS & ENSAIOS
Uma Crítica aos Costumes
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
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Publicações do Autor
Transtornos Mentais
Testes Psicológicos
Medicamentos
Galeria de Pinturas de Pacientes
Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga
Valores
9 Homem: Ator engraçado e ridículo
13 Dois modos de pensar que não combinam
16 Ser Humano: Anjo ou Demônio?
19 Responsabilidade moral: Fato ou ficção
22 Satisfação e sofrimento: Dois lados da mesma moeda
25 Viva feliz realizando coisas ruíns
32 O Sequestro da Camisa Listrada
38 Valores: Informações resumidas
Agressividade e Violência
42 O Assalto
48 Brigas de Casais: Agressão ou Excitação Sexual?
50 Marido Violento: Este Incompreendido
53 Conheça o Estuprador
55 Agressividade e Violência: Informações resumidas
Nosso povo
79 Entardecer de uma estrela: “BIG BROTHER”
84 Os maiorais
90 Amanhecer sem Futuro: Fortunato e Felicidade vão às Compras
95 Metamorfose
104 Fanfarra para um Homem Comum
107 A Fabricação do Homem Fora-de-série
Comportamento
188 Tenha Coragem de ter Medo
193 Como era Verde meu Vale
197 O Modelo da Lata de Lixo
200 AIDS: Você tem medo da Doença ou do Doente?
204 O Preço de uma Escolha: Adeus às Ilusões
212 Adivinhos: Esses Desadaptados
215 Comportamento: Informações resumidas
Sociedade e cultura
220 Os Donos do Poder
224 Nossas Origens Culturais: Chinesa e Grega
Não somos nem tão poderosos, nem tão inteligentes como tem sido
apregoado; somos mais pra burros-autômatos que pra gênios-livres.
Baseado no continuado delírio de grandeza, o homem sancionou sua
importância na Terra. Qual importância seria?
Você, leitor, deve ter percebido o desacordo entre esses dois princí-
pios básicos para a compreensão da conduta humana; ambos usados
por todos nós, dependendo do momento. Num instante esbravejamos
com nosso filho, afirmando que ele é um vagabundo, não faz os de-
veres e não estuda como devia, pressupondo que, se ele “quisesse”,
tivesse “força de vontade”, fosse um bom filho, poderia “escolher” ser,
também, um bom aluno e tirar boas notas. Em outro momento, no
trabalho ou laboratório, o pai que acreditava na “liberdade de escolha”
estuda a sequência de fatos para verificar as causas da pressão arterial,
da obesidade, da criminalidade, do desemprego, do câncer, dos aciden-
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tes de trânsito, da possibilidade ganhar na sena, ou, ainda, ao deixar
entornar o café na roupa da amiga querida, apressa-se em falar: “Per-
dão: foi sem querer”.
O sofrimento
O prazer
Horas ou dias após o indivíduo ter saboreado a carne, caso ela tenha
sido saborosa, ele tende a recordar o fato: “Aquele churrasco estava
uma delícia; vou ao restaurante outra vez”. O nosso amigo ficará pro-
penso a buscar novamente o mesmo estímulo positivo e prazeroso que
lhe excitou e lhe deu alegria: a carne tostada e cheirosa. A esperança
do seu organismo é obter, de novo, um prazer parecido ao sentido na
primeira experiência.
“Sofrer foi o prazer que Deus me deu/ Eu sei sofrer sem reclamar/
Quem sofreu mais do que eu; não nasceu/ Com certeza Deus já me
esqueceu?/É na dor que eu encontro o prazer/ Saber sofrer é uma arte
que pondo a modéstia à parte, eu posso dizer que sei sofrer.
Como ela acabou fazendo parte de minha vida e das minhas con
versas, muitas e muitas vezes, nos meus papos com amigos, me referia
a ela, contando seus modos, idiossincrasias, gostos e até mesmo julga
mentos. Quando me referia à camisa para outras pessoas, ou também
nas conversas solitárias comigo mesmo, batizei-a com uma frase, não
com um só vocábulo.
Sábado, como sempre acontecia nos fins de semana, fui à sua pro-
cura na gaveta onde ela me esperava limpa e cheirosa, pronta para o
abraço gostoso e singelo daquele dia especial. Tranquilo, imaginando o
encontro carinhoso das tardes de sábado, o momento de aconchegar-
-se em torno do meu corpo, abri a gaveta sorridente e alegre. Assustei-
- Sei, não, senhor. Não prestava pra mais nada…. não sei se pus no
lixo, ou se a rasguei para limpar a pia. Nem pra isso ela servia. O pano
era ruim.
Saí rápido, antes que perdesse a cabeça. Fui até o cesto de lixo, so-
nhando poder encontrá-la. Nada! Não estava lá. Desci as escadas cor-
rendo. Eram nove e cinco e o caminhão de lixo passava mais ou menos
nesse horário. Quem sabe? Não havia mais lixo, tudo estava vazio, não
havia mais a camisa branca de listras horizontais, mais nada! Solucei,
desolado.
Assim foi decretada a morte, o fim de minha querida camisa. Ela não
mais foi encontrada, nem para ser enterrada, cremada ou guardados
suas restos finais, como lembrança de nossas relações e história.
Uma camisa que fez parte de minha vida, simbolizando fatos que
presenciei e vivenciei. Para minha nova lavadeira, a amada camisa nada
significava, era apenas um pano velho e inútil, que merecia ser rasga-
do, um trapo sem valor, uma qualquer, uma porcaria que não provoca-
va lembranças de nenhuma espécie, nem boas nem más.
Coitada de minha camisa, seu fascínio foi ignorado por quem não a
conhecia. Percebida por um ângulo genérico – pano – e não por um
singular – uma camisa com uma história – ela foi desvalorizada. A lava-
deira a olhou sob um ponto de vista diferente do meu, a considerava
sob um aspecto imediato, prático e simples. Sob essa visão, a camisa
não possuía uma identidade própria, não tinha valor e significado. Por
tudo isso, para a lavadeira minha amada camisa merecia ir para o lixo,
pois não servia nem para lavar a pia.
Enquanto as leis da natureza são cada vez mais bem decifradas e do-
minadas pelo exercício da razão (método científico), o crescimento das
ciências não ajudou praticamente nada para a descoberta ou elabora-
ção de uma ética individual e social.
David Hume sintetizou essas idéias com a frase: ““A razão é escrava das
emoções”.”
— Bem… saí com Edina, minha prima. Tem uma mulher lá no Palmi-
tal, às vezes empresto-lhe dinheiro. Uma vez ou outra.
— É… ou mais. Deve ser uns mil, com a inflação. O senhor sabe como
é… Tudo subiu. Mas ela me paga, desgraçada!
— Ele é marido dela. Acho que ele ficou com ciúmes de mim. Eu
estava com Fred, que tem os olhos azuis. Agora eu só gosto de homem
de olhos azuis.
— Você não disse que estava no bar assentada? Que sua prima esta-
va lá fora? Você gostaria de…
— Não. Eu estava na porta da casa dele. Ele é mais velho, deve ter
uns cinquenta anos. Quem falou que gosto de velho?
— Eu sempre emprestei dinheiro para ela, gente boa. É para ela pa-
gar o barracão onde mora. Mas ela falou que fiz um abaixoassinado no
serviço dela.
— Ela está te devendo trinta reais? Você não falou que tinha sido
assaltada em mais de seiscentos reais?
— Já ouvi dizer que ele colocou até detetive para saber com quem
eu ando e aonde vou aos fins de semana. Eu já tinha notado. Lá na
rodoviária, onde passeio aos domingos, um homem sempre anda me
Estudos mostraram que um anti-social que teve seus pais ricos quan-
do criança, pode estar pobre ao chegar aos 40 anos, semelhante a uma
pessoa de nível socioeconômico baixo, devido a sua restrita capacidade
para aprender e compreender o complexo meio social, a pouca discipli-
na e baixa tolerância à frustração. Ele se torna um desviado da socieda-
de devido ao seu limitado repertório de alternativas para sobreviver.
Após todo o ritual médico, Dr. José, enquanto ainda olhava o traçado
do eletrocardiograma, pediu a Maria que se assentasse. Em determina-
do momento, ele voltou seu olhar calmo e alegre em direção à Maria e
lhe disse com uma voz firme e bem postada:
Maria Ingênua da Silva não só aceita a frase “Você não tem nada”,
emitida pelo Dr. José, como também acredita que ele é uma pessoa
bem intencionada, ou seja, não teve outras intenções não reveladas
além da expressa na frase. E mais, Maria talvez acredite que os médi-
cos são todos competentes, portanto, Dr. José é uma pessoa capaz de
conhecer seu organismo e transtornos deste. Desse modo, ela acredita
que o exame foi perfeito e que a conclusão final expressa observações
acertadas. Resumindo: Maria pensa que o Dr. José sabe o que está
dizendo e é convincente.
Coitada das Marias desse vasto mundo. Em primeiro lugar, ela não
imagina que a informação importante poderia ser outra, estar oculta e
não ter sido dita. Os médicos usam muito isso, afirmam que o cliente
não tem nada, sabendo que apresenta uma doença grave, às vezes,
mortal. Em segundo lugar, o Dr. José poderia ainda não ter feito um
diagnóstico correto como afirmou, poderia ser um profissional incom-
petente, estar distraído ou cansado no momento do exame, ter deixa-
do para trás um sinal ou sintoma fundamental para o diagnóstico mais
acertado, como se diz no jargão médico, pode ter “comido mosca”, ou
ainda, Maria pode ter uma doença difícil ou impossível de ser diagnos-
ticada.
Ao ouvir Dr. José dizer: “Você não tem nada”, Maria interpretou a
São essas estruturas que irão fornecer à pessoa grande parte do con-
teúdo necessário para interpretar, explicar, predizer e compreender a
conversa, o texto e os eventos que estão sendo enfrentados ou obser-
vados; em resumo, são estas estruturas que nos permitem compreen-
der, predizer e explicar as experiências particulares e vividas por cada
um de nós no meio ambiente experimentado.
Se alguém em quem você confia quer que você acredite em algo, há,
frequentemente, boas razões para que você acredite no falado. Essa
situação acontece nas relações usuais que temos com nossos pais e
educadores. Estes nos informaram, em épocas passadas, uma série de
dados e interpretações acerca das relações entre pessoas, da nossa
família, da constituição e formação do mundo etc., todas bem intencio-
nadas. Mais tarde, lamentavelmente, percebemos que muitas infor-
mações eram falsas. Nossos educadores e pais nos informaram tudo
isso com a boa e santa intenção de nos ajudar; de não nos fazer sofrer
diante da realidade dura e crua. Além disso, eles foram competentes
para pôr em prática suas intenções; nos informar erroneamente acerca
do mundo e das pessoas.
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Quando uma pessoa tem uma intenção fundamental, espera-se que
ela se esforce para que outras crenças ligadas à principal sejam aceitas
para que a intenção principal seja realizada. Uma condição necessária
para que ocorra isso é a de que o receptor, ou alvo da intenção, acredi-
te que a informação que o comunicador quer transmitir é importante
e, também, que é verdadeira. Em outros termos, todo ato de comuni-
cação e, em particular, toda afirmação, contém uma presunção de sua
própria relevância, do contrário ela não seria emitida.
O Dr. José transmitiu à Maria uma informação que pode, como vi-
mos, ser interpretada de diversos modos, indo do mais simples, acei-
tando as intenções dele e sua alta competência; que foi bem codificada
na frase “Você não tem nada” sem outras intenções ou objetivos. Pode
também ser examinada sob a ótica mais complicadas como a das duas
Marias; Cautelosa e Sofisticada, que colocaram em dúvida suas inten-
ções explicitadas ou sua competência. Essas Marias utilizaram diversos
comentários ou análises das informações exibidas pelo Dr. José: o que
ele disse, gestos, histórias particulares delas e outros conhecimentos
adquiridos. Diversos outros exemplos nos levam a imaginar o uso de
técnicas semelhantes para examinar informações usadas frequente-
mente por todos nós: “Vamos dar um tempo”; “Para mim está tudo
acabado”; “E agora José…”
— Será que alguém vai dormir juntinho essa noite? insinuou Marisa
imitando a cara de idiota da personagem Magda de “Sai de Baixo”.
Parece que, com o tempo, ele não se mostrou tão fanático quanto ao
sexo feminino, como afirmou inicialmente para o público.
Faço uma pergunta para mim mesmo: O que faz com que um deter-
minado indivíduo, aos poucos, deixe de ser homem e torna-se mito?
O que leva uma pessoa a receber uma categorização de tão alto ní-
vel? Não estou falando de uma habilidade comum como “ter um bom
ouvido”, uma “bela voz” ou uma boa memória. E muito mais: Por que o
processo de cristalização dessas honrarias ou acusações se deu em tor-
no daquele determinado indivíduo e não de outro qualquer? De modo
concreto: por que Santo Antônio tornou-se santo numa certa época e
não antes ou depois e, além disso, santo casamenteiro; S. Judas Tadeu
metamorfoseou-se em protetor das “causas perdidas”; Fernandinho
Beria-Mar, virou um perigosíssimo bandido?
Mas vamos um pouco além dessa idéia; pois já penso ser ela sim-
ples demais; até um pouco boba. Talvez ganhe mais sua atenção com
as novas suposições que acabei de ter. Na maioria das vezes, o rótulo
colocado é percebido pelo “rotulador” como tal, ou seja, como rótulo.
Nesse caso, o “rotulador” reconhece claramente que o rotulado não é
o personagem do mito. Exemplificando: a pessoa sabe que o símbolo
por ele usado ao chamar determinada mulher de “Gata Borralheira”
não representa a realidade; pois ela é, de fato, a lavadeira Teresa.
Vamos a outro exemplo: por mais que a pessoa demonstre que ela é
gente como a gente, como ocorreu com Maria da Silva que tem diar-
réia, menstruações dolorosas, alimenta e defeca, age, muitas vezes,
burramente, como todos nós, passamos a imaginá-la como santa, gênia
ou uma perigosa bandida, isso não importa; ela passa a ser classificada
como muito diferente de nós. Num grau semelhante e muito frequen-
te, não sei bem se pequeno ou grande, a rotulação inadequada ocorre
quando amamos ou odiamos alguém. Embevecido, arrebatado pelo
desejo e paixões avassaladoras, Amadeu visualiza e categoriza sua
amada não como ela é de fato: com sua perna fina e as coxas grossas,
um ombro mais alto do que outro, a testa cheia de rugas. Ele a enxerga
Tentava não fixar meus olhos no velho e conhecido espelho. Ele, até
aquela data, sempre fora calmo e honesto. Ali quieto, dependurado
na parede, ele observava-me de longe, pronto, e talvez até desejando
revelar-me a verdade.
Irritada com esse comportamento, pisei duro no chão e saí dali zan-
gada. Antes, fechei a cara e fiz caretas, as mais feias que conhecia. Ele,
por sua vez, demonstrando ódio, devido aos meus modos grosseiros,
Suando frio, com o coração apertado, fui lançada numa sala. Esta,
como tudo ali, também mudava de forma, tamanho e cor, à medida
que eu olhava. Num certo momento, surgiu do escuro uma cadeira
– parecia sorrir para mim – era a mesma onde assentei-me durante
o ano passado. Foi nela que gravei meu nome antigo, num cantinho,
bem escondido. Aos poucos, o nome, desenhado com tinta dourada,
foi aparecendo, letra por letra e tornou-se mais visível no encosto da
cadeira.
— Hum, hum.
Confusa com a cena, intranquila, descobri que ela fazia uso, para
encenar e representar a conquista, dos mesmos gestos, da mesma
técnica que eu empregava em situações semelhantes. Por outro lado,
estava claro como água: ela procurava atrair-me. Perguntou-me, com
voz adocicada, onde morava, onde estudei antes… Era o papo introdu-
tório para poder ir mais longe: marcar um encontro, fazer um elogio e
tudo mais. Diante de suas intenções cristalinas, sufocada, sem saber o
que fazer, comecei a gaguejar, às vezes fingia não entender o que dizia,
tentava ganhar tempo. Ela, insistente, sabia o que queria… Olhava-me
com ternura, como sempre fiz. Foi se aproximando, segura de suas pre-
tensões. Eu não visualizava nenhuma saída, seria um escândalo o que
estava prestes a acontecer. Que vergonha!
Num certo momento, quando ela girou o rosto para olhar-me mais
de perto, quase encostando o dela no meu, sua face foi iluminada por
um facho de luz, uma luminosidade ainda fria do sol da manhã que
entrara pela janela da sala. Fui tomada por uma terrível confusão,
assustada com o que deparei: vi, de maneira muito nítida, o próprio
fantasma ou alma, isso eu não sei.
— Acorda, Sônia! Acorda! O que foi, minha filha? O que está aconte-
cendo?
Eu sonhara… Nunca imaginei que fosse tão difícil virar outra pessoa,
adquirir uma outra identidade, pior ainda, ser uma pessoa de outro
sexo. Como é difícil. Ainda bem que tudo terminou!
Hoje seus pais estão muito longe, entretanto, seus rígidos princípios
e os sinais indeléveis continuam ordenando com precisão ao filho
obediente o modo de agir frente a outros adultos com poderes supos-
tamente semelhantes aos possuídos pelos seus antigos proprietários.
Obedecer, obedecer sem saber o porquê, esta foi a regra fixada. Sub-
misso, sai à procura de chefes, políticos, colegas, namoradas, sogras,
ídolos do futebol, amantes ocasionais, companheiros da condução,
padres e pastores, vizinhos e colegas de trabalho, analistas e cartoman-
tes: qualquer um serve de inspiração para lhe dar conselhos acerca do
que fazer, em qualquer área, em qualquer ocasião. Quando escapa des-
sas ligações, sobrando-lhe algum tempinho, esse indivíduo diverte-se
no salão de dança, na festinha familiar, no “shopping”, no casamento
do sobrinho, conforme determina a lei do cidadão bem comportado e
ordeiro. “Coitado: ele não sabe o que faz”.
Uma vez rotulado, forçado a agir como tal devido a pressões exter-
nas e internas, o antigo cidadão, Carlos ou Diva, desaparece. Assim vai
se formando o novo ator, o transformado no rótulo, passando a agir de
acordo com o novo conceito: “Aninha é bonita”, “Dirce é inteligente”,
“Pedro é um crápula”.
O que notamos sob forma de ações através dos nossos órgãos dos
sentidos e cognições, a conduta observável do homem ou da barata em
um contexto determinado é, digamos assim, a representação externa,
visível para o observador, o possível de ser percebido, das mudanças
estruturais que estão ocorrendo lá dentro, no organismo vivo. No caso
da auto-observação, o observador é o próprio agente das ações.
Os sinais que a criança possui ao nascer são poucos para indicar seus
desejos: ela olha, pega, chora, movimenta-se, engole, rejeita, excreta
etc. Meses após nascer, por não possuir ainda a linguagem simbólica
usada pelos adultos, ela não saberá explicar o que sente ou o que de-
seja através de palavras. Seu sofrimento é informado ao cuidador atra-
vés da linguagem corporal, concreta e no presente, desajeitadamente
e em bloco. A mãe, para entendê-la, precisa decodificar as informações
usando seu assimilador mental sem-palavras que pode ser ótimo ou
não.
Clara era jovem, solteira, talvez até bonita, aparentando ter trinta
anos. Ao terminar o curso superior, conseguiu um emprego razoável;
um trabalho que não gostava, a não ser quando recebia o salário que
sempre achava que era pouco. Seus cabelos loiros avermelhados,
grossos e cheios de pequenas tranças, combinavam com suas roupas
coloridas e extravagantes. Não tinha limites; geralmente falava mais
do que devia, fumava muito e, às vezes, bebia tanto que não mais se
lembrava do que havia feito.
Não demorou muito para que Clara, para alegria de muitos e espanto
de poucos, tirasse de uma só vez, a blusa e restos do “short” rasgado,
passando a dançar, em plena praça, apenas de calcinha e sutiãs verme-
lhos. A animação aumentava, contagiando todos os assistentes daquela
festa inesperada; não era sempre que surgia ali um acontecimento
— Tenho uma profissão. Ouviu! Não sou uma merda não! Solte-me!
— O que foi?
— Estou dizendo para esse imbecil, há muito tempo, quem sou eu…
ele não acreditou… Falei com ele que hoje era o dia do meu plantão
aqui no hospital. Ele não quis me ouvir! Tornou a repetir, irritada.
O estado do organismo, uma vez estimulado, fará com que ele res-
ponda a determinados estímulos sensoriais e não a outros, por estar
mais sensibilizado em virtude das alterações nos sensores capazes de
gerarem respostas específicas e apropriadas à nova situação vivida. Se
meu sistema receptor estiver estimulado internamente com respeito à
fome, meu organismo ficará mais atento à possível presença de alimen-
to no meio exterior (minha geladeira, a pastelaria); o mesmo acontece-
rá com respeito à irritação; nesse caso, em qualquer lugar e momento,
estarei pronto para xingar ou brigar; também, poderei estar superesti-
mulado com respeito ao sexo, ficando desperto e atento aos estímulos
relacionados a essa área.
Em resumo: Geraldo teve raiva e dor ao ser chutado, essas são emo-
ções não-cognitivas; mais tarde, apresentou vergonha, piedade e triste-
za e, novamente, felicidade pela comparação; todas essas emoções são
chamadas de cognitivas, ou seja, aprendidas e relacionadas à maneira
de pensar cultural. Durante toda a descrição dos fatos, aconteceram
diversos processos geradores de emoções: a disposição de Geraldo
“feliz” é função de um sistema neural geneticamente influenciado que
opera mais ou menos de forma continuada para gerar e manter esta
característica emocional; as transformações no sistema de emoção ao
ser chutado foram devidas às atividades neuroquímicas instigadas pelo
ambiente (temperatura), ao processo emoção/dor que o levou à raiva,
e aumento dessa pelas ações sensório/motoras/expressivas necessá-
rias ao uso do pensamento: “Vou agredir esse chato”.
Por todas as razões acima descritas, o estudo das emoções, cada vez
mais, tem demonstrado uma extraordinária importância. Mas ainda
não está claro se o que é chamado emoção em um nível, relaciona-se
ao que chamamos emoção em outro. Serão as emoções básicas como
a felicidade, tristeza, medo e raiva, relacionadas às emoções mais
primitivas como o impulso sexual, domínio ou poder? Quais seriam as
ligações das emoções básicas com os níveis mais elevados das emo-
ções como o orgulho, ciúme, vergonha ou remorso? Interesse, tédio e
curiosidade seriam emoções? O que se sabe da relação acerca dos for-
tes sentimentos associados aos julgamentos morais como admiração,
veneração, desprezo, meditação, contemplação e ponderação? Quais
são as bases da emocionalidade da simpatia, piedade ou compaixão e,
também, da crueldade e da ferocidade?
Tudo faz crer que as duas correntes estão equivocadas: não existe
raciocínio sem emoção. Nosso pensamento é guiado, na maior par-
te das vezes, pelas emoções sentidas e, além disso, é conveniente e
necessário constantemente dominarmos e não expressarmos nossas
emoções. Somos animais domesticados do ponto de vista sociocultural
e, domesticados significa não liberarmos nossas emoções em toda e
qualquer situação.
Mas o processo não termina aí, pois, nos seres humanos, há uma ou-
tra fase: podemos sentir a emoção existente em nosso organismo, isto
é, a sensação percebida associada ao objeto desencadeador. Assim,
temos consciência de que algo está sendo perigoso ou, ao contrário,
agradável, isto é, percebemos o estado emocional corporal provocado
por alguma coisa ou pessoa. Este conhecimento, que de fato é um co-
nhecimento sobre o conhecimento – chamado de meta-conhecimento
– indica que algo, acerca de algo, foi percebido e sentido.
Mas nem tudo são flores; com frequência, essa harmonia entre os
vários “eus” é quebrada, isto é, falha. Não é raro observarmos alguns
“eus” menores e semipartidos agirem isoladamente ou, também,
terem ações uns contra os outros, como tem sido descrito, de maneira
dramática, nos Transtornos de Dupla ou Tripla Personalidade.
Assim como ocorre com cada indivíduo que faz parte do grupo dos
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atleticanos, no caso de Pedro ou de Maria – uma pessoa particular
– algumas funções cognitivas isoladas e diferentes, produzidas por
estruturas específicas diversas, funcionam em paralelo umas com as
outras, interagindo entre elas, visando a produzir estruturas e funções
de ordem mais elevada, com novas propriedades, isto é, diferentes das
existentes em cada uma das funções isoladas. Exemplificando: sabe-
mos que existem atleticanos altos e baixos, gordos e magros, pobres
e ricos, mas todos são chamados de atleticanos por interagirem, num
certo momento, formando um grupo que torce pelo Atlético. De outro
modo: indivíduos, isolados, reúnem-se, num certo momento, para
exibir o que têm de comum: torcer e morrer pelo Atlético. Assim, a
influência mútua entre os indivíduos gordos e magros, velhos e novos,
como no caso dos atleticanos, conduz a emergência de fenômenos de
nível social tais como certas formas de comentar, comportar-se, agir
em certos dias, ou seja, certas “normas” de opinião pública, valores e
condutas.
— Nas minhas aulas eu ensinei como lidar com chefes chatos. Você
tem usado o aprendido?
— Claro que sim. Mas com ele não adianta. Tudo que faço, ele acha
ruim.
— Mas não foi despedido, como imaginava. Ainda bem, não acha?
— Certo. Mas vou ser transferido. Até que gostei. E você, como vai?
— Tudo bem. Estou com sorte. Estes dias uma antiga amiga me…
— É? Você se lembra daquela moça que lhe falei? Ela canta no con-
junto em que toco.
— Eu, agora, é que não sei se a quero de volta ao conjunto. Vou le-
vando. Paulo, estou azarado. Preciso tocar, mas estou com dor na mão
direita. Fui ao médico e, para ele, eu não devo trabalhar com os dedos.
Paulo não conseguiu falar nada do que desejava. Seu amigo, por
mais que ele tentasse, não quis escutar seu caso: a amiga, seu retorno,
sua conversa ao telefone. Tudo isso estava lhe atormentando. Tomou
um café requentado e pegou uma revista para ler, mas não conseguiu
prestar atenção em nada. Sua mente estava ocupada com Maria. Pen-
sou em ligar para ela. O telefone tocou novamente.
— Paulo, tudo bem? Aqui é Dario, seu sobrinho. Estou lhe tele
fonando para comunicar o nascimento do meu filho, Mário.
— Que bom! Você casou-se? Não sabia, hoje em dia há muito des-
ses casamentos modernos. Mário é um bonito nome, parece com o
nome…
— A vida a dois é até boa. Não me arrependi. Mas filho, ainda mais
recém-nascido, é um saco. Chora a noite inteira. Não durmo mais como
— Sim. Tenho, sim. A banheira está estragada, mas ainda pode ser
usada. Esta minha amiga contou uma história interessante e cômica do
seu primeiro filho e do primeiro banho que ela foi dar numa banheira
como…
— Acho que sim. Vou procurar a banheira. Por falar em despesa, esta
minha amiga gastou uma nota…
— Até logo.
— Sim, conheço. Participei com ele de uma mesa redonda. Ele é sa-
gaz. Parece-se com a minha amiga. Ela é inteligente e culta. Há…
— Haroldo tem muitos defeitos. Eu sei disso. Todos nós temos de-
feitos. Eu também não sou perfeita. Mas eu preferiria morar com ele,
a viver como estou. Não consigo dormir quando penso nele. E ele era
bom também para outras coisas, não era bom só de conversa, não.
— Boa noite. Telefone sempre que precisar. Seus problemas são mui-
to interessantes, lembram os meus…
— Até a próxima.
Ele tentou, o dia inteiro, passar para outras pessoas sua vivência e
alegria. Ninguém se interessou por seu caso. Ninguém o ouviu. Cada
um queria falar acerca de seus problemas particulares, dando impor-
tância às suas misérias e não às dos outros.
Aos poucos, foi relaxando. Tranquilo e feliz, Paulo pôde contar sua
longa história de amor. Uma história vivida por ele, que só interessava
a ele, talvez, quem sabe, também a Maria. Seu relato, carregado de
lembranças alegres, terminou às três horas da madrugada daquela
quinta-feira abafada. Após ter completado sua história, Paulo foi deitar-
-se e, naquela noite, conseguiu dormir aliviado.
A palavra medo tem sido usada num sentido muito geral, abran
gendo uma série de quadros que têm origens, significados, evoluções
e tratamentos diferentes. O uso do termo “medo” no sentido geral
produz confusões e discussões, pois muitas vezes os envolvidos nestas
falam de entidades diferentes.
Esses loucos utópicos – deve ser lembrado que todos nós já vivemos
nossa loucura numa certa idade – expressam de vários modos, con-
forme a época e a cultura, sua atração pelo paraíso: o uso de roupas
grosseiras, desbotadas e rasgadas de fábrica. Nudez diante dos outros,
principalmente de uma câmera de TV ou de uma máquina fotográfica.
Exibição de coxas ou de seios entre as mulheres, para mostrar o proibi-
do pelas regras dos ordeiros e conformados. Badernas, gritos, urros e
destruição durante jogos, formaturas, shows, missas, sermões e posse
de presidente da república. Colônias de nudistas para homenagear e
defender o “naturalismo”, numa praia ornamentada pela cultura de
massa. Ato sexual nos teatros, filmes e praças, para combater o mora-
lismo tolo e ineficaz dos gagás.
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Todas essas exibições teatrais, histéricas e misturadas a rituais reli-
giosos ou pagãos, provocam, em seus executores, uma excitação deli-
rante: orgasmos demorados e aplausos da grande massa entusiasmada
enquanto espera o retorno à Terra prometida. Os outros seres, surdos
aos berros dos jovens, observam, afastados e incrédulos, o extraordi-
nário entusiasmo enxertado à simplicidade hilariante. Para os jovens,
lá, muito longe, no alto, bem acima de nossas cabeças de homens e da
montanha, no céu azulado e estrelado, anjos decentemente enfeitados
da nudez divina e primitiva, de mãos dadas, cantam e bailam alegre-
mente, girando em volta do compenetrado, honrado e sempre vigilante
Deus.
Talvez o sonho máximo desse grupo fosse viajar para o paraíso. Caso
o combustível não desse, pelo menos até Marte, no novo ônibus es-
pacial a ser construído após o último acidente, ou, talvez, na nave dos
ETs. Para fazer essa viagem fantástica, “numa boa”, “de repente”, “com
certeza”, “né”, e junto com toda a patota, todos vestiriam um uniforme
superchique e moderninho. Bem, quando lá chegassem, prontamente
eles iriam se despir. Após cada um “ficar” rapidamente com os outros,
eles comeriam, abraçados, as frutinhas celestiais distribuídas por São
Pedro, dançando e cantando, diante do som “louco” produzido por
uma banda supermoderna e, evidentemente, tendo todos seus compo-
nentes drogados com cogumelos do céu.
Outros estudos relatam que tem sido difícil vender ou alugar casa
onde anteriormente morou um aidético. Também tem sido verificado
que os pais relutavam em matricular o filho numa escola frequentada
por um aluno com AIDS. Uma pesquisa mostrou que 32% dos entre
vistados acreditam que a AIDS pode ser transmitida pelo banho de
banheira e 35% que pode ser adquirida ao doar sangue.
Penso que essa avaliação ocorre porque vemos todos os dias nosso
rosto e corpo no espelho e não vemos o do nosso amigo sumido.
A partir de mais esse pequeno fato, a boa vida de Sócrates foi dece-
pada para sempre. Ele, que nunca havia trabalhado, passou a fazê-lo.
Ele, que sempre tinha algum dinheirinho sobrando no bolso para com-
prar um doce ou ir ao cinema, teve que economizar. Os fatos negativos,
como bolas de neve, se acumularam. Sem alternativas, diante de sérias
dificuldades financeiras, Sócrates mudou-se da pensão razoável onde
morava, para o fundo do barraco existente na casa do sogro. Era lá
onde funcionava um pequeno depósito de lenha. Era apenas um quar-
tinho apertado para dormir. O banheiro situava-se fora do quarto e não
havia cozinha, nem sala.
Não mais lhe sobrava tempo, nem mesmo capacidade, para pensar
acerca de si mesmo, do que fazer em seu próprio benefício. O mun-
do imaginado durante sua juventude ficava cada vez mais distante,
com menor importância para ele. Uma vez ou outra, ocasionalmente,
estimulado por uma notícia no jornal ou o encontro com um ex-com
panheiro, ele lembrava-se de algumas cenas do passado, longínquas,
antigas e envelhecidas como sua cabeça atual. Lá, muito longe, o jovem
alegre parecia tão feliz. Agora transformou-se noutro, um trabalhador
em tempo integral para manter-se naquela miserável prisão iniciada na
noite fatídica. Os sonhos viraram fumaça, dispersaram-se: Sócrates foi
levado para um outro mundo. O caminho, antes claro e perto, distan-
ciou-se, estreitou-se, ficou embaçado.
Nós nos despedimos friamente. Eu estava sem graça. Voltei para casa
pensativo. Sabia que estava livre de tudo aquilo que ouvira. Entretan-
to, estava confuso: retornava para meu lar, um lugar onde não havia
ninguém para me aborrecer, onde gozava de completa liberdade,
entretanto na minha casa não havia ninguém, ninguém, ninguém mes-
mo. Somente eu para me receber, conversar e apoiar.
O garfo, surgido no fim da idade média, era usado somente para reti-
rar os alimentos da travessa, não era usado para levar a comida à boca.
Não acreditam? Pois vejamos: ora é uma mosca que vem pousar no
meu nariz; ora um cão que me observa, mostrando seus belos e pon-
tiagudos dentes, prontos para atacar-me. Mas não fica só nisso, depois
é o convite de formatura que exige minha presença, o telefone que
toca e me obriga a correr; o interfone oferecendo gás; a conta a pagar,
o presente de Natal e de aniversário, o forno que não mais esquenta e,
também, isso e aquilo. Mas tem também a chuva, a enchente, o impos-
to de renda, o terremoto lá longe, o trombadinha bem perto. Na rua, o
carro disparado pronto para matar-me, obriga-me a correr desajeitado
e envergonhado pela falta de forma, o trânsito que não flui, a rua es-
buracada e sem saída, meu time perdendo, o assaltante roubando meu
sossego, às vezes, meu sonho de tranquilidade, o frio que me obriga a
vestir o agasalho feio e fedendo a mofo, o calor que me faz suar e dor-
mir mal, o café frio, fraco, fedorento e com formiga no fundo.
Para alegria dos responsáveis pelo caso, a sala foi ficando cheia de
alunos. Nas primeiras cadeiras do anfiteatro divisava-se senhores de
fisionomia séria, cabelos grisalhos, ligeiramente obesos, tendo o rosto
não só bem barbeado como também marcado pelas rugas. Alguns pa-
reciam cansados, outros conversavam animados esperando o início da
sessão. Na parte alta do anfiteatro, jovens robustos, de roupas soltas,
riam e brincavam, andando, de um lado ao outro, pelo salão.
— Para mim, disse um: — seria melhor tirar apenas o terço distal do
pênis; assim o restante poderia ser usado.
Agora estava livre para agir; desprezava todos e tudo; nada mais lhe
importava. Era preciso concretizar o que imaginara, acabar com tudo
aquilo, de uma vez por todas. Trêmulo, lembrou dos médicos que lu-
taram tanto para mantê-lo vivo; vacilou por instantes; sentia culpa por
decepcioná-los e desprezar o que eles tanto valorizam. Antes de partir
em direção à macabra e terrível ação, Antônio apalpou, pela última
vez, a cicatriz formada no seu corpo desfigurado. Nesse exato momen-
to, não teve mais dúvidas.
A história ocorrida nos USA, que está sendo reformulada, foi copiada
em Minas. Lá nos Estados Unidos constatou-se que a “caridade” para
com o paciente, de fato, foi sua desgraça. A lei foi modificada para a
Torna-se difícil fazer uma escolha entre viver num péssimo hospital
psiquiátrico ou morrer bêbado, drogado, doente e agredido numa rua
escura e sem saída.
Por outro lado, cada um de nós altera seu modo de falar conforme
atua diante de uma ou outra situação, na hora da briga ou do amor,
perante os filhos, pais, médicos, clientes, amigos, inimigos, torcedores,
amante. Em cada uma dessas ocasiões, fazemos uso de linguagens
diferentes, pulamos de uma para outra, automaticamente, sem esforço
e inconscientemente. Algumas vezes não entendemos a linguagem de
um grupo ou de outro.
Ele deve cantar suas modinhas caipiras numa forma poética e emo-
cional, reza a Deus numa linguagem apropriada à sua religião, fala de
um modo coloquial e espontâneo com seus familiares e amigos ínti-
mos, ou seja, numa terceira língua. Quando colher e vender seu feijão
e milho usará a linguagem comercial, quando casar, diante das au
toridades da cidade, ele usará uma outra língua: a oficial, do cartório.
— Ora, Maria, se reunirmos três dos pequenos, eles vão durar mais
ou menos o mesmo tempo de um grande.
— Eu não entendo de lógica, não. Mas sei, pois sou a cozinheira, que
o botijão pequeno dura muito pouco. A senhora não se lembra que,
antes de colocarmos os grandes, tinha todo dia de trocar o botijão?
A senhora é cabeleireira, sabe fazer penteados, mas não sabe quanto
tempo dura um botijão de gás. Todas as minhas colegas falam a mesma
coisa, nenhuma gosta de botijão pequeno. A gente começa a cozinhar
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e o gás acaba.
— Não sei, não! Gás é diferente, arroz não pega fogo, nem sobe no
ar, ele serve pra gente comer. Quem come gás ou planta gás? O botijão
de gás grande tem mais gás e é muito mais pesado. Um entregador de
gás carrega um pequeno com facilidade, mas o grande, nem pensar, é
carregado no carrinho.
Quando o homem veio colocar o botijão grande, ele estava tão pesa-
do que amassou o dedo dele, saiu muito sangue.
Ele ficou com ódio, o outro ainda riu dele. Se fosse um pequeno, ele
levantava com um dedo. Lá perto de casa tem um homem que carrega
o botijão de gás nos dentes, amarrado no arame.
Assim, como estamos presos aos nossos genes que nos impedem
de ser outro animal diferente do que somos, e de escapar das caracte-
rísticas específicas que herdamos, também, desde nosso nascimento,
fomos aprisionados nas normas de conduta, de relacionar e de pensar
ditadas pela cultura, ou seja, construídas antes de nascermos pelos que
nos antecederam. Amarrados pelo resto de nossa vida a essas duas
vertentes, colaboramos inocentemente para a conservação do modelo
encontrado e impresso em nossa mente, imaginando-o como certo e
melhor. Na maioria dos casos, sem consciência disto, não exercitamos
nossa criatividade para escaparmos ou, pelo menos, tentarmos esca-
par, ou ainda avaliar este padrão.
Creio que ninguém saberá com precisão o que significam. Para cada
um de nós, as palavras “amor”, “ódio”, “compreensão”, “social” e ou-
tras, terão significados diferentes. Além disso, uma situação altamente
complexa, como a qualidade de vida familiar, não poderia ser atribuída
apenas a dois fatores, onde as palavras mágicas “amor” e “compreen-
são” tornam-se explicações causais pelo bem-estar ou não da família.
É raro questionarmos o nosso interlocutor, ou nós mesmos, acerca do
sentido, dimensão e significado das palavras que estão sendo utiliza-
das.
O que pretende dizer alguém que usa as frases: “Tudo pelo social”,
“Defenderemos a nossa soberania”, “Fome zero” (seria no Palácio da
Alvorada ou na residência do presidente?). Todas são frases usadas
para se obter um efeito emocional, mágico ou hipnotizador, sem im-
portância para o real. Cada cidadão que as ouve, receberá e entenderá
uma comunicação diferente conforme a emoção que lhe foi inoculada.
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Atrás de uma palavra ou frase nem sempre está um objeto concreto.
Palavras não são coisas, são representações e ligações entre coisas.
Não resolveremos os nossos problemas de comunicação empregando
palavras mágicas, procurando sinônimos das mesmas, gritando-as dian-
te dos altofalantes. Muita gritaria, às vezes, acalma e deixa de lado as
ações possíveis para dar soluções para os problemas existentes. Antes
de acreditar ou não em uma palavra ou seguir a ideia que ela parece
traduzir, precisamos primeiramente descobrir seu significado, pois o
símbolo nem sempre traduz a coisa simbolizada.
— Assassino! Assassino!.
— Então, um açougueiro?
— Compreendo, um carrasco.
Ele dirigiu sua vida em ziguezagues, ora para um lado, ora para
outro. Rodopiou e capotou várias vezes, fez curvas e mais curvas,
algumas imensas, em certas ocasiões, andou em círculos, sempre obs
tinadamente, em busca do sonhado caminho orientador. Apesar dessa
procura teimosa, ele jamais encontrou uma saída nobre para escapar
e descansar desse labirinto onde se aprisionou. Acredito que vocês,
os simpáticos e ligados a ele como eu, o compreenderão. Talvez seus
amigos e colegas tivessem lutas semelhantes e batessem nos mesmos
obstáculos intransponíveis. Os inimigos, nem tanto. É possível que
alguns felizardos – ou seriam azarados? – tenham encontrado pronta
mente o caminho acolhedor e definitivo. Ele jamais desejou isso. Como
seu aluno e admirador, nesse instante seu portavoz, quero de público
agradecer a todos vocês, que conviveram e ajudaram a formar a men
te do meu tutor, exatamente no período mais crítico de sua vida. Ele e
vocês, estudantes desse tempo longínquo, assistiram, participaram e
viveram cenas e problemas semelhantes, sofreram e entristeceram-se,
regozijaram-se e consolaram-se juntos. O jovem narrador estruturou-se
ou, quem sabe, desestruturou-se, a partir dessa união grupal singu
lar, desse contato estreito, formado através da soma das esquisitices
existentes em cada um. Foi nessa boa, ainda que imatura mãe, que
ele e muitos de vocês, como crianças amedrontadas, se apoiaram e se
sentiram protegidos ao buscar o carinho e a compreensão. Este grupo
confortou e aliviou as “dores do mundo” que pesavam sobre sua cabe-
ça frágil de iniciante a adulto. Este jovem ligado profundamente a esse
grupo foi, e sempre será, o produto de cada um de vocês. Seus colegas
amigos, cada um a seu modo, imprimiram uma marca indestrutível.
Nenhum jamais escapará dessa cunhagem misteriosa.
Parece-me que para cada pulo dado para o crescimento, para cada
estágio alcançado, mais ele se sentia aprisionado. Passou a ser con-
trolado pelas normas da classe, pelos clientes, pela família, pelos
deveres e compromissos diversos e, terrivelmente, pior ainda, pela
sua consciência aumentada acerca de tudo isso. Pouco a pouco, ele foi
abandonando quase tudo que amava. Os antigos e inocentes hábitos e
prazeres, altamente atraentes numa época, foram trocados, com pesar,
por obrigações pesadas comandadas por pressões externas. Ele passa-
va a não mais mandar na sua vida. Confessou-me, abafado, que muitas
vezes sentiu saudades da vida anterior, passando a ter inveja, nos dias
de maior desespero, da vida do pássaro cantando na lavoura ou da
abelha pousando nas flores. “É terrível!”, confessou-me: “Gostaria de
poder, ainda que por instantes, responder diretamente ao meio, sem
ser incomodado pelos pensamentos”.
Mas ele, como vocês, tem que prosseguir sua caminhada em direção
ao fim, e assim, penosamente, aprendeu que a verdade é vivida, ela
pertence a cada um, num certo momento. Jamais poderá ser ensinada
nas escolas ou nos templos.
Toda e qualquer queixa contra suas ideias, bem como contra o ponto
de vista adotado, deve ser encaminhada a ele próprio. Farei tudo para
que receba as críticas que porventura vierem. O narrador atual, naque-
la época ainda um embrião, será um mero instrumento de suas recor-
dações.
Não descobria por que ele falara. Qual a importância? Por ter cora-
gem de tentar medicina? Por ser um nada? Mas não havia tempo para
pensar. O inquérito estava apenas começando. Ele devia estar queren-
Acredito, até hoje, que o nome que ouvi foi esse mesmo. Nunca quis
saber ao certo nada acerca desse maldito vegetal, se é que ele ainda
existe. Tonto, assustado, olhei para a planta… percebia que jamais en-
contraria uma saída. Olhei novamente para o vaso, fingia estar pensan-
do quando, na realidade, nada pensava. Sem saída, fixei meus olhos no
vaso uma vez mais e, sem outra coisa para fazer, respondi com uma voz
em falsete, lá do fundo, fazendo tudo para que ela não fosse ouvida:
A partir daí fui me arrastando no exame, já não era mais senhor dos
Como a Física era o meu forte, entrei resoluto e confiante para a pro-
va oral. Lá estava, como sempre, um velho careca, encurvado e magro,
cara fechada, que mais tarde fiquei sabendo que era professor, não de
física, mas de dermatologia. Coisas do passado. O exame, ou melhor, o
inquérito, começou. Não concordávamos. Ele não tinha estudado nos
livros de Física adotados no curso científico. Só mais tarde descobri que
seus conhecimentos de “física” foram obtidos através da leitura do al-
manaque da Saúde da Mulher que, lamentavelmente, naquele ano, por
falta absoluta de tempo, não pude ler. Ele, empertigado, com grande
orgulho e sabedoria, me fez duas perguntas:
— Como você sabe que uma água está fervendo na panela? O que é
balança doida?
Chegou a minha vez. Sem o desejar, fui empurrado pelos de trás, até
ter a lista sob meus olhos amedrontados. Agora teria que encarar e
clarear, querendo ou não, minhas dúvidas. Passei ou não? Ainda tentei
evitar fixar meus olhos na lista ameaçadora e perigosa. Não tinha mais
jeito. Fui lendo com o coração oprimido, a respiração ofegante, suando
e quase desmaiando de terror. Passei por vários nomes, o meu nada.
Continuava minha procura, não encontrava nada. Minhas esperanças
estavam desaparecendo… um nome, mais outro, esse é conhecido,
esse não, puxa, até fulano passou, só eu não? Absurdo! Por fim, lá
embaixo na lista, quase no fim, entre os últimos, o visualizei. Eu! Pas-
sei! Urra! Segurei rápido e envergonhado minha expressão emocional
repentina, que aliviava minha angústia mas, como bom itabirano e mi-
neiro, saí do porão orgulhoso e de cabeça baixa, andando lenta e pau-
sadamente, disfarçando meu encantamento com a mudança de status.
Estava sem ar, mas aliviado. Não precisava ter vergonha de encarar a
família, que me esperava em casa, e acreditou e investiu nesse jovem
atirado e confuso. Mas havia ainda um pesadelo. “E agora José? A festa
acabou…”, onde conseguir o dinheiro para o curso e os caros livros?
Olhei, agora mais calmo, para o quadro com a lista. Havia pou
cos candidatos à volta. Estava confirmado, de fato havia passado. Era
verdade, mas não como esperava. Saí do porão decidido e, de repente,
retornei ao que sempre havia sido, animado e corajoso. Já não era o
medroso estudante do científico. Agora sabia claramente onde queria
chegar. Subi rápido e confiante as escadas, pois sendo agora um pri-
meiranista de Medicina, e não mais um candidato a este curso, tinha
outros direitos: reclamar minhas notas. Liberto, convencido e encora-
jado por essas ideias com o novo posto alcançado, fui até o diretor da
Faculdade de Medicina, tentando uma audiência com ele. O velho e
cansado diretor recebeu-me pronta e gentilmente. Fui direto ao assun-
to:
Ele olhou-me com ternura, passou suas suaves mãos sobre meus
ombros, e imediatamente deu ordens à secretária para subir minhas
notas para examiná-las. De posse delas, olhou-as uma vez, mais outra
vez, fixou seus olhos complacentes nos meus e disse-me espantado:
—
Mas você foi aprovado! Não está feliz?
— Eu sei, mas vim aqui para reclamar das notas, fiz provas boas…
— Ora meu filho, vá para casa, comemore com seus amigos e família
seu sucesso…
Ainda ouvia o tom de voz exaltado e belo das frases do Reitor, quan-
do fui despertado pela estridente e nada melodiosa voz de um colega,
avisando-nos de nossa chegada à cidade onde iríamos almoçar.