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JACQUES RANCIÈRE
ADNEN JDEY
 M
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication année 2020 Carlos
Drummond de Andrade de l’Ambassade de France au Brésil, béné cie du soutien du Ministère de
l’Europe et des A aires étrangères.
Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2020 Carlos Drummond de
Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério francês da Europa e
das Relações Exteriores.
Sumário
Préface
Prefácio à tradução brasileira
Apresentação
Apresentação da versão em português
A cena de dissenso como espaço do “aparecer” e como elemento central do método
da igualdade
O método da igualdade
Imagens e fabulação
Referências
1. Cenogra as teóricas
Reconstruir a cena
Não há fora de cena
2. Dramaturgias teatrais
Teatralidade platoniciana
Sobre os teatros populares
Um teatro contra o teatro
3. Procedimentos críticos
A pobre dramaturgia dos ns
Dois modelos de “dissenso”
Jogo de cenas, uma ligação sem conceito?
4. Cenários estéticos
As razões da arte
Responder à Hegel
De um paradigma a outro
5. Histórias do olhar
Uma lógica do intervalo
Entre a pintura e as artes da reprodução mecânica
A condição das imagens
6. Máquinas óticas
Historicidades e contextualidades
Uma modernidade inventada posteriormente
Retornos críticos
A política como método ou m da máquina explicativa do
mundo
A política como método
A poética como conhecimento
O m da máquina da explicação do mundo: uma posição metodológica
descolonizadora
Referências
Préface
Alegra-me que este livro possa hoje, graças ao trabalho de Ângela Marques,
encontrar os leitores de um país com o qual tenho, há mais de meio século,
tantas oportunidades felizes de partilhas e trocas. O método da cena é uma
conversa. Mas essa não é uma daquelas discussões desorganizadas em que
um entrevistador pede a um intelectual que descreva seu trabalho para
leitores supostamente pouco conhecedores de sua obra. É um diálogo em
que um lósofo questiona outro para aprofundar o que se con gura como o
objeto comum de seus estudos. E esse diálogo se estendeu por sete anos. Ele
teve início em 2011, sob a forma de uma conversação direta de dois dias
inteiros em que Adnen Jdey apresentou-me questões sobre as principais
articulações de meu trabalho. Nosso diálogo continuou à distância, com a
transcrição que ele havia feito e que eu retomei e transformei, levando a
novas perguntas da parte de Jdey, a reformulações minhas, seguidas de
reações dele e, portanto, dando origem a um trabalho comum, integrando
aos poucos os novos textos que publiquei ou recon gurando, a partir deles, o
signi cado dos anteriores. Seguindo os caminhos abertos por meu
interlocutor, o leitor poderá perceber os vínculos sendo tecidos entre A noite
dos proletários, publicado em 1981 como um inventário de minha longa
permanência entre os arquivos operários da Biblioteca Nacional em Paris, e
meus trabalhos dos anos 2010 sobre as transformações modernas da cção
ou a pluralidade de “tempos modernos”. O leitor verá também os vínculos
entre as proposições mais sintéticas sobre a partilha do sensível ou sobre o
dissenso e o olhar dirigido sobre determinado plano em um lme ou em
uma determinada instalação em uma exposição.
No centro da rede assim desenhada, para conceituar os vínculos tecidos
por meu trabalho entre a política e a estética, a história, a literatura ou o
cinema, uma noção se impôs cada vez mais fortemente: a noção de cena. No
ano em que nosso diálogo começou, eu havia acabado de publicar meu livro
Aisthesis: cenas do regime estético da arte. O livro consiste em quatorze cenas,
cada uma construída em torno de um acontecimento singular e que re etem
uma mudança na percepção do que é arte e do que ela signi ca. Uma cena
poderia ser uma performance de artistas acrobatas ingleses na Paris do
século XIX; uma encenação de Hamlet feita por Edward Gordon Craig em
Moscou ou o lançamento de um lme de Dziga Vertov em Moscou; ou
ainda uma exposição das fotogra as de Alfred Stieglitz em Nova York. Mas
também poderia ser uma performance da escrita: como algumas linhas de
Hegel acerca de dois pequenos quadros de Murillo, uma conferência sobre a
“arte social” dirigida a um público de operários ou um livreto de Rilke sobre
Rodin.
O livro Aisthesis – cuja versão brasileira, há muito adiada, deve ser
publicado em abril de 2021 – trouxe à luz a noção de cena. Mas também
destacou, em retrospecto, o lugar que ela ocupava há muito tempo em meu
trabalho. A Noite dos Proletários já pensava na emancipação dos
trabalhadores em torno de algumas cenas exemplares: a conversa losó ca
de três operários em uma hospedaria na área rural; a narrativa de um dia de
trabalho; uma celebração Saint-Simoniana; uma visita a um atelier de
alfaiates fraternos em uma época de revolução… As Palavras da História
foram construídas em torno de algumas cenas contadas ou imaginadas por
historiadores: a Festa Revolucionária da Federação transformada por
Michelet em seu próprio símbolo ou uma página de Fernand Braudel se
debruçando imaginariamente sobre a escrivaninha onde o rei Filipe II da
Espanha anotava sua correspondência2. O desentendimento, por sua vez,
entrelaçava à análise dos textos canônicos de Platão e Aristóteles o estranho
relato em que Ballanche, em 1829, reinventou a secessão dos plebeus
romanos no Aventino como uma cena de linguagem. Cenas como essas
podem ser encontradas em muitos outros dos meus livros. E, sem dúvida,
era hora de explorar sua natureza e sua função.
Enfatizar tais episódios foi, de fato, enfrentar as duas críticas mais
constantes ao meu trabalho. A primeira o acusa de sacri car o rigor do
conceito em nome da experiência empírica, ao abandonar a necessária
elaboração de uma teoria da ciência e do tema analisado para dedicar-se a
desenterrar, nos arquivos, as histórias dos operários ou suas elucubrações
losó cas autodidatas, contentando-se em acompanhá-los. Os lósofos
entenderam que esse gesto se confundia como o ato de fazer o trabalho dos
historiadores. Ao que os historiadores responderam que não, que não era
história, mas sim loso a, porque eu me interessava pelas palavras e não
pelos fatos acerca dos quais elas expressavam algo e pelas transformações
profundas testemunhadas por esses fatos. Ambos concordaram em
denunciar meu apego à superfície das coisas e ao grão das palavras em
detrimento do rigor de conceitos bem de nidos ou de encadeamentos
causais bem demonstrados. A isso se acrescentou a reprovação política de
valorizar a dimensão efêmera das revoltas e dos momentos de exceção,
ignorando o longo período de desenvolvimentos históricos que fundaram as
estratégias das organizações revolucionárias responsáveis. O diálogo
estabelecido com Adnen Jdey em torno dessa noção de cena permitiu-me
não de me justi car – o que não me interessa – mas de explorar de maneira
mais aprofundada a ideia de um pensamento subjacente a essas acusações,
confrontando-a com o pensamento que meu trabalho se esforça em elaborar
para se opor a tais questionamentos.
O que de fato sustentava essas críticas era uma ideia bem de nida da
divisão de tarefas, territórios e identidades: havia o território do historiador,
o método do sociólogo ou o método do lósofo; mas, acima de tudo, havia a
distância tomada com relação à superfície das coisas para vê-las de cima,
para revelar sua ordem profunda ou para mostrar a maquinaria oculta sob as
aparências. Mas esse desprezo da teoria em favor da empiria repousa ele
próprio em uma partilha simples entre dois tipos de humanos: aqueles que
vivem no mundo da necessidade onde repetimos, dia após dia, os mesmos
gestos e as mesmas palavras e aqueles que são capazes de explicar a
necessidade desses gestos e dessas palavras; aqueles que conhecem o
encadeamento de causas e aqueles que vivem no mundo dos efeitos; aqueles
que pensam e aqueles que não pensam.
A “teoria” não se preocupa em teorizar essa partilha simples, mas às vezes
a justi ca na candura ou no cinismo de uma história. Isso acontece em
Platão, no caso da “nobre mentira” – do mito dos três metais que separa as
almas de ferro dedicadas ao trabalho na o cina e as almas de ouro
destinadas ao trabalho do pensamento e do governo da cidade. Esse mito,
por si só, pode constituir a base de uma separação que, aliás, se refere à
evidência empírica de que o artesão não pode sair da o cina, porque o
trabalho não espera. O lósofo e seus pobres é um livro que mostrara como
essa cena losó ca original ainda governava o pensamento do sociólogo que
escreveu A Distinção, mesmo quando ele se a rmou como um anti lósofo ao
opor as ilusões da estética kantiana à realidade da distinção entre o gosto
popular e o gosto dos estetas.
As Palavras da História mostraram, paralelamente, como o historiador
teve que encenar a sua relação com aqueles que não sabem contar a história
que vivem: assim temos o exemplo de Michelet, tirando do armário dos
Arquivos em que estavam as palavras “gaguejantes” dos oradores
revolucionários da aldeia, ou de Fernand Braudel, imaginando entrar
sorrateiramente no escritório onde o rei Filipe II tinha em suas mãos a
“papelada” estéril dos pobres. E O Mestre Ignorante mostrou como o bom
método do pedagogo progressista, que prometia ao pobre e ao ignorante a
conquista do conhecimento e da própria igualdade, reproduzia
inde nidamente a partilha que separava aqueles que sabem daqueles que
ignoram.
Minhas cenas eram, portanto, bastante diferentes de descrições atenuadas
da experiência vivida. Elas eram pequenas máquinas teóricas construídas
para encenar e questionar as partilhas ingênuas sobre as quais normalmente
se fundam a dignidade do pensamento ou o rigor da ciência. A caminhada
pelo campo e a conversa losó ca entre três operários em uma hospedaria
na área rural contadas em A noite dos proletários não estavam lá para
descrever o domingo dos operários, mas para encenar a ruptura da ordem
platônica que separa os homens do atelier dos homens que se dedicam ao
pensamento. E o modo “empírico” com que minha palavra se entrelaçava
com a palavra dele, em vez de devolvê-la às suas condições, era parte dessa
ruptura que constituiu a cena como contra-cena, explicitando e subvertendo
a distribuição platônica de lugares e de competências, ou a partilha feita
pelo historiador entre as palavras do cientista e aquelas de seus “objetos”.
Colocar no mesmo plano esses dois modos de discurso, que toda a
tradição hierárquica separa, supõe um trabalho de reconstrução da paisagem
do pensável: um trabalho que extrai um episódio singular da cadeia
interminável de causas e efeitos para dar-lhe sua dupla potência de
condensação de toda uma trama de experiência, mas também de ruptura
com a ordem das coisas que a mantém nas redes do ordinário e do
insigni cante. É aqui que meu suposto viés de defesa da superfície se
conecta com um viés favorável com relação ao tempo. Mas essa defesa do
tempo não se confunde com uma paixão romântica pelo efêmero ou pelo
fragmentário. Ela parte da constatação de que efetivamente existem
momentos que dividem o tempo e tornam a ordem das coisas entregue à sua
contingência. A denúncia da preferência pelo efêmero ou pela
espontaneidade em detrimento da longa duração e das estratégias cientí cas
indica um desejo de se livrar desses momentos, e essa vontade simplesmente
oculta um consentimento à ordem das coisas e dos pensamentos.
Minhas cenas questionaram esse consentimento com relação à ordem do
tempo. Elas conferiram ao momento seu valor cognitivo, que é também um
valor de ruptura com a cadeia interminável de condições. Era uma forma de
seguir a lição emancipatória de Jacotot. Jacotot fazia uma oposição entre o
tempo interminável da pedagogia, de suas condições e de suas etapas, e o
princípio emancipatório segundo o qual “tudo está em tudo”: a partir de
cada ponto é possível construir outra aventura do conhecimento aprendendo
“alguma coisa” e relatando “todo o resto”. Este não é apenas um método
É
para ensinar os pobres e analfabetos a ler. É uma ideia de racionalidade que
permite repensar as noções aceitas da arte ou da política: um método que se
instala na imanência de um momento para apreender a sua dramaturgia
singular e, através dela, o trabalho de uma universalidade em ação.
De modo especí co, é isso que fazem as “cenas do regime estético da
arte” reunidas em Aisthesis. Não foi o gosto particular pelo acontecimento,
pelo descontínuo ou pelo pitoresco que me fez escolhê-las, mas sua potência
de condensação de suas próprias condições de possibilidade, sua aptidão
para revelar assim a lógica de um regime de arte. Em vez de partir de uma
de nição de arte para seguir suas transformações em uma época
supostamente moderna ou pós-moderna, o método da cena desemaranha os
os do pensamento por meio dos quais, em um momento singular, uma ou
outra performance de corpos, de mãos ou da palavra são percebidas e
pensadas como uma obra de arte.
Essas cenas não são apenas microcosmos através dos quais se revelariam
um estado ou uma ideia da arte em geral. Elas são mises en scène da própria
relação entre o que é arte ou não, entre o que é considerado “grande arte” e
o que é considerado arte menor ou popular. No curso do professor Hegel, os
pequenos mendigos de uma pintura de gênero feita por Murillo tornam-se
guras da serenidade, parecidos com os deuses do Olimpo; sob a pluma do
mais delicado dos poetas delicados, éodore de Banville, as travessuras dos
acrobatas Hanlon Lees tornam-se a própria ilustração do ideal poético; na
escritura de Mallarmé, são os redemoinhos do véu da dançarina Loïe Fuller,
em uma cena de music hall, que manifestam uma nova ideia de arte. Em
outros lugares, é a hierarquia entre a invenção pictórica e a reprodução
mecânica da fotogra a que se inverte.
A cena é a manifestação de um dissenso, isto é, não de um confronto de
opiniões, mas de uma redistribuição das coordenadas sensíveis.
Performances que não eram arte tornam-se arte assim como, durante uma
caminhada dominical, almas de ferro se descobriam como almas de ouro ou
que, diante do extravagante Jacotot, pessoas ignorantes aprenderam que já
sabiam muitas coisas. A racionalidade da cena é uma racionalidade
polêmica: ela encena a partilha do alto e do baixo, do nobre e do vil, que
sustenta o exercício normal dos julgamentos e dos saberes. Ela expõe
novamente essa partilha e, ao fazer isso, ela a desfaz.
Esse é o percurso retomado pelo Método da Cena. Mas, para Adnen Jdey
não foi su ciente me fazer mostrar que a “cena” é um conceito em ação e
não uma pequena história “empírica”. Ele ainda me questiona acerca da
escolha de um termo que não tem nada de inocente. Qualquer que seja a
racionalização que eu possa trazer a respeito, a cena pertence ao vocabulário
da cção teatral. Ela evoca uma ideia da racionalidade inerente ao próprio
teatro, do que é oferecido aos espectadores e do que os espectadores, por sua
vez, fazem com essa oferta. A cena remete a uma divisão do espaço e do
tempo, à relação entre palavras e movimentos dos corpos, entre um
espetáculo percebido e um ensinamento aprendido.
O questionamento se desenvolve então em um duplo nível: de que ideia
de performances teatrais, em particular, e de arte, em geral, a escolha de um
“método da cena” é derivada? Mas também, como esse tipo de racionalidade
altera nossa percepção dessas performances: nosso olhar sobre uma cena de
teatro, um plano cinematográ co ou um retrato fotográ co em grande
formato, exibido nas paredes antes dedicadas à pintura? Como isso muda
nosso olhar sobre o que essas performances dizem acerca de nosso mundo e
sobre a maneira através da qual elas pretendem mudá-lo? Mas isso não é
tudo. O próprio teatro e a cena sempre foram, ao mesmo tempo, metáforas
para a maneira como os humanos se unem, como se entendem ou como
discutem. Como o “método da cena” joga com esse poder metafórico? Com
a longa história da relação de pensamento entre o povo e o teatro – de
Platão a Brecht, passando por Rousseau ou Michelet – ou com o presente
de uma performance de um artista em uma praça ocupada por aqueles que
opõem uma cena democrática à cena representativa o cial? Ao fazer ouvir
todos os harmônicos de uma palavra, ao se fechar em seu núcleo rme ou
ampliando-se em direção às suas mais diversas ilustrações, as perguntas de
Adnen Jdey não contribuem apenas para a explicitação de um pensamento
individual, mas abrem um campo de re exão sobre a história e sobre o
presente que todos partilhamos. Acredito que os leitores brasileiros serão
gratos a ele, assim como eu.
Paris, outubro de 2020
Jacques Rancière
2 O papel desempenhado pela noção de cena em meu trabalho é explorado no seguinte livro de
André FabianoVoigt: Jacques Rancière e a história: palavras, regimes, cenas. Ed. Clube de Autores,
Uberlândia (MG), 2019.
Apresentação
Adnen Jdey
Na abordagem elaborada por Rancière, é nas cenas que se cria “um visível
no campo da experiência que modi ca o regime de visibilidade” (Calderón,
2018, p.148). A cena articularia uma forma polêmica de reenquadrar o
comum, subvertendo uma dada distribuição do sensível a partir da criação
de um lugar polêmico. A cção presente na arte e na literatura fabulam, de
acordo com Rancière, outras maneiras de identi car os acontecimentos e os
atores e outras formas de articulá-los para construir mundos comuns e
histórias comuns em cenas dissensuais. A racionalidade da cção deriva das
diferenças e rupturas que produz no seio de um continuum supostamente
homogêneo ensejado pela ordem causal e hierárquica de organizar e habitar
o tempo. A cção fabuladora age “segundo diferentes relações que são
sempre ‘entre-expressão’ e jamais consecução cronológica lógica ou de
in uência causal” (Rancière, 2018b, p.122).
É
É isso o que me interessa mais que a cronologia: uma contextualidade que não é uma inscrição em
um conjunto de condições contemporâneas, mas o tom próprio de um enunciado, o tipo de olhar
que uma descrição implica e as palavras pelas quais esse olhar se diz. Interessa-me o que faz com
que possamos imaginar uma ordem diferente. (Rancière, 2018b, p.120).
O método da igualdade
Ao explicar seu método igualitário, Rancière (2000b; 2009) esclarece
primeiramente que a igualdade dos seres falantes intervem na divisão
consensual do sensível como um suplemento, um excesso, uma ruptura com
as leis naturais que organizam e coordenam a gravitação dos corpos sociais.
Ao mesmo tempo, ele a rma que a igualdade se refere ao potencial de
paridade que existe nas práticas realizadas pelos sujeitos. Isso não equivale a
pensar a igualdade como “conjunto de direitos atribuídos a indivíduos e
populações, com instituições especializadas na redução da distância entre
fatos e normas” (2000b, p.6). Quando explica seu método a partir da obra A
noite dos proletários, Rancière insiste em mostrar que não leu os textos por
eles escritos como documentos que expressavam a condição ou cultura dos
trabalhadores (ou seja, não se tratava de recolher documentos que
detalhavam problemas expressos na linguagem do povo). Em vez disso,
procurou lê-los como textos literários e losó cos, marcas de uma luta por
cruzar as fronteiras entre linguagens e mundos.
Na Noite dos Proletários foi necessário que eu extraísse os textos dos trabalhadores do status que
a história social ou cultural atribuiu a eles: uma manifestação de uma condição cultural particular.
Eu olhei para esses textos com invenções de formas de linguagem similares a todas as outras. A
procura de sua valência política estava na sua reivindicação da e cácia da literalidade, nos poderes
igualitários da linguagem, indiferente com relação ao status do falante. (Rancière, 2000a, p.116).
Imagens e fabulação
Para desmontar a máquina de explicação do visível e do pensável é preciso
desacelerar e deslocar o olhar, vai nos dizer Rancière (2018b). E isso pode
ocorrer quando fabulamos junto com as imagens e a partir delas. De acordo
com Rancière (2019), a fabulação pode ser entendida como a produção de
novos enunciados a partir da ativação de um outro imaginário que desa a e
interpela um imaginário hegemônico, evidenciando as incoerências, os
excessos e as injustiças das representações hierarquizantes. A fabulação
precisa da cção para alterar o modo como temporalidades distintas são
articuladas, reverberando na maneira como formas de vida são apreendidas e
reconhecidas. Um dos gestos principais da fabulação é procurar interpelar as
imagens de maneira mais demorada, descon ando da maneira como
usualmente as representações tendem a apresentar, ao mesmo tempo, os
con itos e suas soluções paci cadas.
É assim que a arte, o cinema, a fotogra a e a literatura passam a ocupar
lugar importante na re exão de Rancière (2018a) acerca da desmontagem
das explicações previsíveis do mundo: a invenção que a arte promove, por
meio deslocamento das maneiras habituais de lermos e entendermos o
mundo, é semente da criação de outro imaginário, de outras chaves de
leitura e compreensão ativadas pela recusa da hierarquia e da desigualdades
entre tempos, espaços e existências. A narrativa ccional, segundo ele, ao se
desenvolver não como encadeamento de tempos, mas como relação e
coexistência entre lugares e suas múltiplas possibilidades de realização,
produz um trabalho dissensual que marca a criação de cenas de ruptura.
O exercício de fabulação contraria o encadeamento de causas e efeitos, a
previsibilidade, a relação entre o que estaria previsto e o que de fato
acontece, criando uma narrativa experimental e dissensual. Mas como abrir
espaço de fabulação a partir da visualidade de imagens fotojornalísticas tão
marcadas por uma condução interpretativa em direção a julgamentos morais
e à rea rmação de valores legitimados? Seria possível encontrar espaço ou
intervalo de fabulação em imagens que se aproximam mais de certo tipo de
registro documentado do real?
Uma imagem pode trabalhar “para abrir um hiato, uma fenda traçada no
presente, para intensi car a experiência de outra maneira de ser” (Rancière,
2017, p.32). A insurgência que se associa aos intervalos instaurados pela
fabulação se explica, de acordo com Rancière, por seu trabalho de
reelaboração do perceptível e do pensável. Um momento singular se ergue
contra o uxo normal do tempo hierárquico: forma uma barricada, uma
barreira; mas logo em seguida produz ondas e um novo movimento de idas e
vindas, avanços e recuos – “como se” diferentes camadas de temporalidades
justapostas recon gurassem o gesto político da resistência.
Acreditamos que no trabalho recente de Rancière (2018a e b, 2019), as
operações que constituem as imagens se dedicam a explorar uma tensão
entre a realidade e as “aparências”: lembrando que aparência não se restringe
à superfície, mas abrange os modos de tornar legível e tornar inteligível. É
na exploração desse processo que conseguimos distinguir brechas e
intervalos que permitem as recon gurações e deslocamentos necessários ao
olhar e à interpretação. Segundo Calderón (2020), essas recon gurações
estão associadas às intensidades sensíveis e polêmicas que permitem a
abertura de uma imagem ao dissenso, à descon ança, ao litígio.
O que signi ca olhar para uma imagem com descon ança? Olhar sem
aderir a um julgamento precipitado, permitindo a exploração dos elementos
que compõem o quadro, indagando sobre os sujeitos que ali estão expostos,
elencando elementos e detalhes antes de “classi car” seu conteúdo e rotular
seu enunciado. É sob esse viés que Rancière nos convida a reconhecer a
especi cidade do “aparecer” como capaz de produzir dissensos e rupturas.
Em O Espectador Emancipado, Rancière (2012) reconhece a existência de
um tipo de imagem cuja articulação com o real é mais direta, buscando
verossimilhança, uma vez que funcionam de acordo com o que o público
espera. Essas seriam imagens que antecipam efeitos e que se adequariam de
maneira muito próxima aos quadros de sentido legitimados. Contudo,
Rancière ressalta que existem imagens que contrariam o regime
representativo que conduz a interpretação: as imagens da arte operam a
partir de outro tipo de dispositivo, produzindo intervalos que interrompem
o uxo consensual de legibilidade, “criando um reagenciamento das imagens
circulantes, fazendo aparecer um poder disruptivo de comunidade, uma
capacidade de agregar nomes e personagens que multipliquem a realidade”
(Calderón, 2020, p.47). Assim, essa operação intervalar das imagens cria
modos de “aparências” que desa am o modo hierárquico de apresentação da
realidade, deslocando o olhar, rearranjando a legibilidade do enunciado das
imagens. É importante destacar que a tensão entre imagens representativas
e imagens estéticas não é uma relação polarizada, em que uma deve
“eliminar” a outra. Trata-se de produzir e manter uma distância da
compreensão dos acontecimentos como matéria inerte, à espera de algo
externo que os organizem.
A fabulação pode criar uma pequena “máquina de desmontagem do
olhar” e da inteligibilidade do que estava programando para poder ser visto.
Depois da expectativa não realizada, o desmedido momento se expande,
“alterando o estatuto do visível, da maneira como olhamos as coisas e de
como nos movemos entre elas” (Rancière, 2019, p.51). Ao conceber as
imagens enquanto operação intervalar e fabulativa de desierarquização,
Rancière estaria procurando uma maneira de anular um modo consensual e
hierárquico de pensamento e produção de inteligibilidade a partir do
trabalho político da arte.
Desde a publicação do livro “O destino das imagens”, em 2003, temos
encontrado nos trabalhos de Rancière uma re exão que cada vez mais se
aprofunda acerca do tema da natureza intervalar das imagens. Seja nas
análises fílmicas ou fotográ cas, Rancière (2007, 2008, 2012) dedica-se a
nos mostrar que as imagens são o resultado de um trabalho, da construção
de relações e articulações novas que inventam possibilidades outras de
aparecimento e transformação das formas, das vidas e do comum. Tais
“relações novas” derivam, segundo ele, da reconstituição da rede conceitual
que torna um enunciado pensável e que modi ca as condições de seu
aparecimento. O trabalho da imagem consiste, assim, em produzir um
arranjo, um reenquadre, uma reorganização de formas perceptivas dadas,
uma recomposição da ordem que sustenta uma dada narrativa, uma
montagem que evidencie um intervalo, um espaço que torna possível habitar
o “entre”.
Uma imagem introduz um intervalo, uma dimensão de fuga, um tipo de verticalidade em relação
ao continuum de formas visuais reunidas e de operações de sentido que estão associadas a elas.
Essa vertical não é a interpretação ou a verdade sobre a imagem, mas diz do fato de que uma
imagem chama outra que não está lá, um tempo chama uma temporalidade que não está lá. Isso é
o que me interessa: uma imagem não está simplesmente entre duas imagens como na visão
simplista de uma montagem como colagem de unidades independentes. A vertical intervalar
funciona a partir das relações indeterminadas entre as imagens que são dadas e o que elas pudem
suscitar em associação a outras imagens, palavrase temporalidades que vêem de outro lugar
(Rancière, 2019, p.69)
Referências
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RANCIÈRE, Jacques. e method of equality. Cambridge : Polity Press, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. Les bords de la ction. Paris : Éditions du Seuil, 2017.
RANCIÈRE, Jacques. “O desmedido momento”. Serrote, n.28, 2018a, p.77-97.
RANCIÈRE, Jacques. La Méthode de la scène. Paris: Éditions Lignes, 2018b.
RANCIÈRE, Jacques. Le temps modernes. Paris : La Fabrique, 2018c.
RANCIÈRE, Jacques. Le travail des images. Conversations avec Andrea Soto Calderón. Dijon : Les
Presses du Réel, 2019.
1. Cenogra as teóricas
Reconstruir a cena
ADNEN JDEY — No que diz respeito a essas distribuições, você
estabelece para as cenas uma dupla função: con itual, uma vez que elas
contróem uma diferença em um campo da experiência; e assertiva, na
medida em que elas traçam uma linha transversal nas fronteiras das
contextualizações históricas. Você estaria de acordo para indicar à cena uma
terceira função, que recusa a explicação e também os procedimentos de
interpretação, renunciando, consequentemente, ao domínio reservado do
sentido?
JACQUES RANCIÈRE — Sim, a cena é uma forma de interromper a
máquina da explicação sob essas duas formas: o reenvio daquilo que é
condicionado à série jamais nita de suas condições, ou o reenvio da
superfície ao que se esconde por baixo. A cena, sou eu que a constituo. Há
dez linhas que Hegel escreveu sobre algumas pinturas de Murilo7 que
transformo em uma espécie de cena, na qual ele está diante de alguns
quadros, mas tento mostrar o que está por trás dessa cena, o nascimento do
museu, a revolução, os novos modos de circulação das imagens, as
contradições de querer encontrar, apesar de tudo, uma função moralizante
do quadro. Da mesma forma, por trás de um lme de Vertov ou da
reportagem de James Agee, há toda uma sedimentação. Há sempre na cena,
se assim quisermos, um fora de cena. Mas esse fora de cena funciona para
constituir a espessura do tecido sensível e inteligível que confere ao quadro
sua potência sensível de condensação e não como desvelamento do que a
cena poderia estar escondendo.
ADNEN JDEY — Não seria interessante, talvez, pensar essa recusa de
elevar a cena ao patamar transcendental como uma maneira de recusar o
modelo de uma cena originária? Porque através da diversidade de cenas que
se orquestram ao longo de seus trabalhos tudo se passa como se não pudesse
haver uma cena primitiva, que mostra a origem da política, da arte, do
pensamento. Cada cena, muito pelo contrário, permite que vejamos as
coisas se distribuírem de certa maneira. Mais do que procurar a cena
primitiva, você parte geralmente de um exemplo, de um caso, para mostrar
os fatores responsáveis pela divisão, ao mesmo tempo em que revela também
os elementos que surgem para torná-la imprecisa, borrada.
JACQUES RANCIÈRE — Não formulei essa questão à mim mesmo,
mas tentei. Minha prática das cenas e dos casos está ligada também à minha
prática transdisciplinar ou interdisciplinar. Pude constituir cenas nas quais
se quebra essencialmente a partilha entre territórios diferentes, o alto e o
baixo, ou a verdade e a aparência. É isso o que é fundamental. O que
procuro a cada vez é encontrar casos singulares através dos quais podemos
experimentar certa articulação, certa consistência das noções, das relações
que nos permitem dizer que há política, que há literatura, ou então que
estamos em um tipo ou outro de regime da arte, ou tal ou tal gura do
poder, por exemplo. Em vez de partir de uma origem, de uma fórmula
primeira, de uma espécie de sentido do sentido, tentei trabalhar sobre
algumas cenas ou relações entre cenas nas quais podemos dizer que o maior
hiato é posto no menor espaço possível. É justamente isso que está em
questão através da aproximação entre as palavras de Platão e aquelas do
taqueador Gauny8. O lósofo diz: “O trabalho não espera”. O operário diz a
seu amigo intelectual (um padre à quem escreveu uma carta): “Não poderei
me encontrar com você amanhã, porque o tempo não me pertence, mas se
você estiver perto do prédio da bolsa de valores entre duas horas ou duas
horas e trinta, poderíamos nos ver como se fôssemos duas sombras
miseráveis nos portões do inferno”.9 Já temos aqui os elementos da cena,
mas é preciso, ao mesmo tempo, contruí-la. Do mesmo modo, em
Aisthesis10, há acontecimentos pontuais, mas é preciso articulá-los como cena
a partir do ponto no qual o poeta mais so sticado vai incluir as acrobacias
dos palhaços na esfera da poesia. É o mesmo princípio que atua para colocar
juntos Platão e Gauny sobre a questão da possessão ou não possessão do
tempo.
ADNEN JDEY — Você insiste, além disso, sobre o papel
desempenhado pela relação com o tempo e o espaço nessa concepção de
igualdade. A igualdade não é só se desfazer de sua própria condição, mas é
também poder se consagrar a outra coisa que à sua própria tarefa. Mas a
saída dessa designação, se ela é acompanhada de uma abertura do olhar, não
se faz sem a recon guração do espaço. É o que a gura de Gauny permite
mostrar, esse taqueador que “ao tomar o tempo de escrever que o tempo não
lhe pertence”, vai abrir outro tempo. Você descreve sua jornada como o
relato de uma dissociação do olhar, em que ele se esforça, no próprio local
de trabalho, em se apropriar da perspectiva de contemplar pela janela
enquanto suas mãos assentam o assoalho. Há nesse relato algo que, para
você, faria eco ao que diz Kant sobre o caráter desinteressado do julgamento
estético: o fato de que seja possível contemplar um palácio puramente por
sua forma, sem se questionar à quem ele seria destinado e pelo suor daquele
que o construiu. Essa dissociação do olhar é su ciente para converter o
espaço da dominação em cena de contemplação estética?
JACQUES RANCIÈRE — Aqui a função polêmica da cena ainda é
importante. Ao constituir como cena o relato de Gauny, eu tinha em mente
não só a passagem de Kant que você menciona, mas também a crítica de
Bourdieu que, em A Distinção, vê na análise kantiana a ilustração perfeita da
ilusão losó ca. Na cena, tal como eu a construo, é, em alguma medida,
Gauny que responde à Bourdieu, ao mostrar que a aquisição, pelo operário,
de um olhar de esteta desinteressado pela rica casa vizinha é a aquisição de
uma potência real de emancipação. O operário se a rma capaz de um modo
de olhar que sua condição social normalmente interdita e essa aquisição
coloca-o no caminho da emancipação. Ele escapa do modo de ser que a
dominação preparou para ele, reconstruindo a relação entre o espaço
material no qual trabalha e o espaço simbólico que lhe é negado como
operário. Nesse mesmo texto, Gauny faz a mesma coisa com o tempo. Posso
construir, a partir daí, uma cena, porque o “relato” de Gauny já é o que
chamei de um “contra-mito”, uma reconstituição da relação entre um lugar,
uma condição e uma capacidade, ou incapacidade.
ADNEN JDEY — Você confere muita importância a essas rupturas das
lógicas de dominação. Por exemplo, para compreender a história da
emancipação operária na França, é preciso levar em conta as rupturas
anteriores, constituídas pelas jornadas revolucionárias, sejam aquelas de
1789, ou aquelas de 1830, que quebram uma lógica de visibilidade geral. A
cena permite articular, apesar de tudo, uma ideia da descontinuidade
temporal?
JACQUES RANCIÈRE — É preciso ver o que entendemos como
descontínuo. Há vários níveis de descontinuidade. É claro que há certos
tipos de realidades que podemos de nir a partir de interrupções, como a
política. É a ocasião de explicar-me sobre o tema segundo o qual a política é
“rara”. Não se trata de dizer que a política é rara em si mesma, de maneira
abstrata. Trata-se de a rmar que a política, tal como a conhecemos, se
de ne a partir de cortes, a partir de certo número de acontecimentos
históricos que produziram algo que não estava, em nada, dado de antemão
nas condições existentes. Houve revoluções, certo número de
acontecimentos históricos que proporcionaram, como que de repente,
aparições de um povo, de um sujeito político. Lembro-me de ter escrito,
para um colóquio sobre os processos revolucionários, um texto que chocou
alguns historiadores. Meu texto começava assim: “Não há processo
revolucionário, há uma cena revolucionária”11. Uma revolução é, em
primeiro lugar, uma reconstrução global do visível e do pensável. A
descontinuidade não quer dizer, de maneira simplista, que há interrupções.
Ela aponta que há uma realidade própria que existe em função das
interrupções. Isso não quer dizer que não haja política, que não exista nada
quando não são feitas barricadas. O que nomeamos como “política”, mesmo
em suas formas mais uidas, é possível a partir de certo regime, que é o
regime da exceção que partiu o tempo uniforme para constituir a cena de
visibilidade da política como algo que é comum a todos. Há outro uso da
cena, por exemplo, aquele que empreguei em Aisthesis. Esse uso poderia
quase parecer um uso inverso, uma vez que, se a cena mostra a mudança, ela
mostra a transformação radical que cria um mundo novo. Mas há como que
pontos singulares através dos quais podemos pensar toda uma série de
mudanças que, em si mesmas, são transformações a longo prazo.
ADNEN JDEY — Há certamente uma dialética entre as mutações de
um espaço comum que fazem com que, de repente, as lógicas da dominação
entrem em colapso, e os gestos de transformações microscópicas do espaço
intervenham quando os sujeitos decidem escrever, reunir-se ou
constituírem-se em coletividade. Para puxar um pouco o o dessa dialética,
poderíamos dizer que as cenas de visibilidade da arte ou da política retiram
seu valor de corte de uma tensão entre duas escalas de grandeza: os grandes
acontecimentos e uma multitude de microacontecimentos sensíveis?
JACQUES RANCIÈRE — O relato “individual” da jornada de trabalho
é possível porque houve a cena de aparição política do povo na revolução de
1830 e, sem seguida, toda uma série de transformações nas maneiras de ser
individuais e coletivas dos operários. Essa narrativa aparece novamente no
contexto da primavera operária de 1848. A mesma tensão pode ser também
pensada nas cenas que concernem às perturbações na percepção do que é a
arte. Se tomarmos a cena que mostra Hegel diante dos pequenos mendigos
de Murillo, podemos dizer que há por trás de tudo isso uma série de
transformações turbulentas: a história do nascimento dos museus, a história
da revolução francesa e os saques dos exércitos revolucionários que
produziram uma visibilidade nova da arte e da questão de saber como a arte
pode representar um povo, etc. De certo modo, podemos ler toda essa
história através do olhar que Hegel dirige para os quadros. Isso não signi ca
que há uma revolução histórica que explica esse olhar. Somos nós que
construímos a evolução histórica: eu construo os elementos de uma história
das mutações do olhar e das mutações da inteligibilidade da pintura a partir
dos acontecimentos que seleciono. A cena produz cortes, quebras. Contudo,
não estamos lidando com a descontinuidade radical que faz com que o que
era impossível ontem seja possível amanhã. Não é uma época em que as
maneiras de pintar mudam radicalmente, mas é uma época em que vemos
que os novos modos de exposição da pintura estão de nindo uma mutação
do olhar.
ADNEN JDEY — Essas mutações possuem o efeito de criar o que você
chama de dissenso. Você mostra que o que constitui a política não é a
sublevação daqueles que são excluídos, o fato de que eles tematizem sua
própria condição. A separação resulta do fato de que esses sujeitos
constituem uma cena paradoxal, na qual demonstram sua capacidade de
universalizar o singular, ou seja, de impor uma parte dos sem-parte em
geral. A questão é saber se o dissenso se produz entre dois universos
simbólicos antagônicos ou na brecha entre diferentes níveis de partilha de
um mesmo campo de experiência?
JACQUES RANCIÈRE — O dissenso é o fato de criar um mundo
sensível diferente dentro do mundo sensível existente. Explorei inicialmente
essa noção no livro O desentendimento, em que revelo o modo como esse
desentendimento ocorre, ou seja, a partir de uma situação de palavra na qual
os interlocutores se entendem e não entendem o problema em questão. O
pano de fundo da palavra que constitui a política deriva desse fato a
constatação de que nos endereçamos a pessoas à quem supostamente não
deveríamos nos endereçar, e de um modo pelo qual não deveríamos
supostamente fazê-lo. Isso pode conduzir, de acordo com o modo de
guração mitológica, à secessão dos plebeus sobre o Aventino. No relato
feito por Ballanche sobre esse acontecimento, já mencionado anteriormente,
a questão consiste em saber se os plebeus falam ou não. Os plebeus devem
mostrar aos patrícios e aos senadores que falam, uma vez que para esses
atores poderosos, é impossível pensar que os plebeus falam. Impossível de
um ponto de vista efetivamente sensível, sensorial, de escutá-los falar. É a
situação que se reproduz a cada vez que acontece a manifestão de um sujeito
exterior às formas de consultas programadas pela instituição do Estado.
Pessoas se reunindo na rua criam um povo diferente daquele que o Estado
produz, aquele que é sondado pelas enquetes, representado pelos deputados,
etc. Essas pessoas criam um tipo de presença sensível, dissensual, no sentido
de que, necessariamente, tal presença não tem o mesmo sentido para aqueles
que a criam e para aqueles à quem ela se endereça. Não precisamos nem
falar do caso na Tunísia, basta falar do caso francês, as pessoas que se
manifestam sobre as aposentadorias ou sobre as condições de trabalho, o que
o governo diria sobre eles, senão que estão lá porque estão inquietos? O
governo vai, assim, diagnosticar uma doença que atinge uma parte do corpo
social. Enquanto que, contrariamente, os participantes não se declaram
como parte do corpo social, sofrente ou inquieto, mas como sujeito político
que a rma alguma coisa a respeito do justo e do injusto, a respeito da
distribuição das partes na comunidade, em vez de expressar simplesmente
um mal estar, o desgosto ou inquietude de tal parte ou outra da população.
O dissenso, fundamentalmente, é o hiato entre duas mises en scène sensíveis.
Nomeio esse hiato como “dissenso”, pois não se trata simplesmente de dizer
que temos ideias que enfrentam ideias, programas que afrontam programas,
interesses que enfrentam interesses, mas propriamente de mises en scène
diferentes da presença de sujeitos coletivos, antagônicas quanto ao sentido
mesmo dessa presença.
ADNEN JDEY — Poderíamos dizer, então, que a cena política é a
reconstituição de um espaço de equivalências entre situações locais que
podem ser vividas ou pensadas como heterogêneas? Em que condições a
diferença entre essas situações pode abrir os campos de subjetivação através
dos quais as cenas de visibilidade seriam, a exemplo das greves de 1830,
pensadas como dramaturgias da igualdade, lugares de demonstração
igualitária?
JACQUES RANCIÈRE — Precisamos de nir o que entendemos por
subjetivação. Nunca achei interessante construir uma teoria do sujeito em
geral. Quando pensei na noção de “subjetivação”, pensei essencialmente
sobre a cena política. Diante disso, não penso que a mise en scène de uma
veri cação da igualdade seja necessariamente uma forma de subjetivação.
Há subjetivação quando há efetivamente uma demonstração de igualdade,
uma forma re exiva de manifestação igualitária. Há uma multitude de
circunstâncias nas quais a igualdade se veri ca, sem ter que pensar e a rmar
sua própria veri cação. É o que digo sobre o fato de que uma in nidade de
relações sociais só pôde aparecer pela colocação em jogo de uma relação
igualitária. Nossas instituições administrativas e empresas cariam
extremamente doentes se fosse a hierarquia que as zessem funcionar! Isso
não quer dizer que essa relação é subjetivada. Podemos dizer que, de certo
modo, uma situação política começa justamente quando essa espécie de
igualdade implícita se encontra, de certo modo, explicitada. Há uma
multiplicidade de formas de veri cação da igualdade que, eventualmente
atuam à distância ou contrariamente a uma subjetivação política. É o que
tentei dizer com relação à literatura: como a literatura constrói planos de
igualdade que são, ao mesmo tempo, planos de dessubjetivação. É ao nos
dessubjetivarmos que alcançamos uma espécie de igualdade que pode ser a
igualdade da chuva de átomos em Virgínia Woolf12.
ADNEN JEDEY — As palavras da literatura tendem, justamente, a
inventar outro regime do sensível ao criar mais do que palavras. Mas a
distância entre um material da experiência e a voz desse material não é
su ciente para produzir heterogeneidade na homogeneidade da linguagem.
Você mostra que a partir desse hiato é possível encontrar na arte literária
uma espécie de cena original, ao mesmo tempo, simétrica e assimétrica
diante da cena da política. As duas frases de Faulkner sobre a reclamação do
idiota no livro As Margens da Ficção (Les Bords de la Fiction) constituem uma
cena que, sem se confundir com aquela da secessão plebéia, aproxima-se
contudo dela. Signi ca dizer que o animal político partilha com o animal
literário uma impropriedade fundamental: uma vez que ele deveria
supostamente fazer barulho com sua voz, ele se a rma como sujeito falante
quando ele é tomado por palavras dissociadas de sua situação. Se elas não se
baseiam na positividade de uma forma de vida, poderíamos dizer que a cena
de palavra, assim como a subjetivação ou dessubjetivação que ela torna
possíveis, são deduzidas da ausência de uma fundação natural?
JACQUES RANCIÈRE — Isso não se deduz jamais diretamente de
uma impropriedade fundamental. Podemos dizer que subjetivação
igualitária coloca em curso um tipo de impropriedade fundamental. Mas, ao
mesmo tempo, ela o faz de um modo que é sempre certa relação entre as
formas de vida. Eu não embaso a subjetivação política sobre o fato que o ser
humano é um ser em possessão da linguagem, mas sobre o fato de que essa
própria possessão é alguma coisa polêmica. Não me re ro a uma espécie de
constituição antropológica, mas ao fato de que toda constituição
antropológica desse tipo é, de saída, dividida. O momento forte da política é
quando aquele que, em princípio, se encontra na forma de vida do “ser
dedicado à reprodução” dá um salto para outra forma de vida. São pontos de
encontro ou de fratura entre os níveis. Não há uma linha reta. A igualdade
não assume proporções importantes com o tempo, ainda que existam formas
de veri cação da igualdade que recomponham uma paisagem do sensível.
Assim, apresentamos outras possibilidades de subjetivação, mas não há
fundamentalmente esse efeito de adensamento de sua importância, de
aumento de consistência um pouco endógeno. É sempre em torno de
encontros, de cruzamentos, de fraturas que não são tomadas em uma linha
de evolução natural, que se produzem subjetivações igualitárias, ou seja, no
momento em que os seres falantes começam a falar outramente,
diferentemente daquilo que se espera deles.
ADNEN JDEY — Seria, então, a partir de um abandono de si que os
sujeitos se constituem nas cenas igualitárias. Em seu trabalho sobre Jacotot,
O mestre ignorante, você foi conduzido por um pensamento acerca da
subjetivação em que um sujeito se constitui ao tomar a palavra de um outro,
quer dizer, ao se “desidenti car”: por exemplo, o operário – no sentido de
uma identidade de nida pela tarefa que lhe é conferida – só se transforma
em operário, enquanto sujeito político, quando deixa de falar como operário.
Esse desdobramento da cena é o único critério para que uma subjetivação
aconteça?
JACQUES RANCIÈRE — Sim, podemos dizer que é um elemento
essencial de uma subjetivação, na medida em que não há subjetivação sem
desidenti cação, mas a desidenti cação pode passar por vias diversas. Ela
ocorre com frequência tanto no nível individual quanto coletivo, pela
reapropriação de palavras que não estavam destinadas àquele que as toma
para si, que não estavam destinadas as pessoas que vivem como ele ou ela
vivem, que não estavam destinadas a traduzir sua própria experiência. Esse
processo funciona através de salto de um registro de possibilidades de
experiências a outro registro de possibilidades de experiências. É nesse
sentido que devemos pensar o empréstimo. Começamos a falar com as
palavras dos outros, fazemos política nos farrapos da política dos nossos
antecessores, os embustes da retórica, ancorando a tomada de palavra em
experiências e questões contemporâneas. É a lógica policial que demanda
que utilizemos a linguagem de nosso tempo, que demanda a adequação
entre as palavras e as coisas. O importante para mim é sempre pensar a
subjetivação sob um modo dialógico, não pensá-la como a forma de uma
emergência, uma experiência que deriva de sua própria apropriação ou
formulação direta, mas sempre uma experiência que se formula em uma
espécie de diálogo ou relação entre vários tipos de formulações possíveis,
correspondendo a vários regimes de experiências possíveis.
É
impossível de um ponto de vista sensível, sensorial, de escutá-los falar. É a situação que se reproduz a
cada vez que há a manifestação de um sujeito exterior ás formas de consulta programadas pelo
Estado. Essas pessoas criam uma forma de presença sensível, dissensual, no sentido de que ela não
tem o mesmo signi cado para aqueles que a criam e para áqueles à quem ela se endereça.
6 BALLANCHE, Pierre-Simon. Première sécession de la plèbe. Rennes : Pontcerq, 2017.
7 [N.T.] : Rancière comenta sobre as re exões que Hegel faz acerca das pinturas de Murilo que
retratam pequenos mendigos em Sevilha no livro O espectador emancipado, no capítulo que trata da
pensatividade das imagens.
8 RANCIÈRE, J. Louis-Gabriel Gauny. Le philosophe plébéin. Paris : La Découverte-
Maspero/Université de Vincennes, 1985 (rééd. La Fabrique, 2017).
9 [N.T.] No livro e method of equality (2016, p.67), Rancière a rma que essa carta escrita por Gauny
lhe permite identi car uma possível cena de dissenso, uma vez que “a descrição factual de uma
situação, tranforma-se em um processo de emblematização dessa situação. A cena se abre, assim, para
outras cenas: Dante é associado à bolsa de valores e com os pecados capitais; a fábrica nos remete ao
trabalho de Karl Marx; e ainda há a presença implícita de Platão. Tenho aqui uma cena sobre a
disctribuição de seres humanos em termos da tematização de ter ou não ter tempo.”
10 RANCIÈRE, J. Aisthesis, scènes du régime esthétique de l’art. Paris : Galilée, 2011. [N.T.] Nessa
obra, Rancière aborda a mudança de paradigma da arte do regime representativo ao regime estético,
entre o m do século XVIII e o começo do século XIX. O regime representativo de ne, de maneira
normativa, as coisas que poderiam ser representadas e as formas sob as quais deveriam ser
representadas, segundo sua maior ou menor grandeza. É um regime hierárquico, que se identi ca
com uma determinada hierarquia social. A revolução estética questiona e abala essa hierarquia, uma
vez que, segundo Rancière, qualquer sujeito, mesmo aquele mais prosaico, se torna digno do interesse
e a arte se interessa à todos e à qualquer um. Além disso, a arte não é mais de nida de uma maneira
técnica, como um conjunto de modos de fazer adequados para assegurar o sucesso das obras e sua
interpretação convencionada. Ela é de nida como um mundo sensível, um mundo comum partilhado:
uma obra de arte torna-se um olhar sobre o mundo oferecido aos outros, uma forma de experiência
sensível e não o resultado de uma ideia materializada de acordo com regras convencionadas.
11 J. Rancière. “La scène révolutionnaire et l’ouvrier émancipé ». In : « Révolution : entre tradition et
horizon », Tumultos, n.20, 2003, p.43-72.
12 [N.T.] Aqui Rancière faz menção à seguite re exão de Woolf: “Examine por um momento uma
mente comum em um dia comum. A mente recebe uma miríade de impressões – trivial, fantástica,
evanescente, ou gravado com a nitidez de aço. De todos os lados vêm uma chuva incessante de
inúmeros átomos, e à medida que eles caem, à medida que vão tomando a forma de uma segunda-
feira ou terça-feira, a ênfase recai de um modo sempre diferente, o momento com importância já não
é este mas aquele; fosse o escritor um homem livre e não um escravo, pudesse ele escrever sobre aquilo
por que optou e não sobre aquilo a que o obrigam, pudesse ele fundar a obra sobre o seu próprio
sentimento e não sobre a convenção, não haveria nem enredo, nem comédia, nem tragédia, nem
interesse amoroso, nem catástrofe segundo os cânones estabelecidos, porventura nem um só botão
pregado à moda dos alfaiates de Bond Street. A vida não é uma série de semáforos simetricamente
dispostos. A vida é um halo luminoso, um sobrescrito semitransparente que nos envolve do primeiro
ao último momento de consciência.” (WOOLF, Virginia. A Ficção Moderna. In O Momento Total.
Ensaios de Virginia Woolf. Lisboa, Ulmeiro, 1985, p. 41).
13 RANCIÈRE, J. « Althusser, Don Quichotte et la scène tu texte », La Chair des mots. Politiques
de l’écriture. Paris : Galilée, 1998, p.157-177.
2. Dramaturgias teatrais
Teatralidade platoniciana
ADNEN JDEY — A questão da cena assume uma in exão particular com
a crítica do teatro enquanto espaço de desdobramentos. Conhecemos os
principais argumentos de acusação que Platão endereçava a ele: lugar de
exibição de fantasmas, não equivalência sobre a cena entre o que o que
atuamos e o lugar que ocupamos, a deslegitimação das posições de palavra e
o desregramento das partilhas de espaços e tempos que de nem o próprio
corpo da democracia. Ainda que Platão con ra à cena uma partilha que será
reencenada por outros atores, o ponto de partida tomado por você não era
uma crítica da crítica platônica.
JACQUES RANCIÈRE — Efetivamente, não parti da crítica de Platão.
Eu comecei a ler e reler Platão de perto, depois de ter terminado A noite dos
proletários, no momento de fazer o balanço desse trabalho. Era para a defesa
de minha tese e disse à mim mesmo: vou tomar um pouco de distância
depois de tantos anos de imersão total no arquivo operário, através dos
textos de Platão sobre os artesãos. E foi a partir daí que iniciei a leitura dos
textos de Platão, que havia lido então como estudante, de maneira
acadêmica, com o sentimento de que essa re exão dizia de uma coisa que
era próxima ao que havia acabado de estudar através dos arquivos operários
durante anos. Assim, comecei a me aproximar desses textos não pela
questão do teatro, mas pela questão do artesão, do sapateiro, do comando de
não fazer outra coisa que não sua própria tarefa. Trabalhei a questão do
teatro em um segundo momento, porque me parecia que ela se aproximava
da questão do estatuto do artesão, o homem de teatro sendo aquele que faz,
por excelência, o que é proibido ao artesão, ou seja, saber duas coisas ao
mesmo tempo. O que era interessante para mim, era essa conjunção entre o
discurso que coloca o artesão em seu lugar e a crítica do teatro como
É
desdobramento. É isso que destaquei no livro Le Philosophe et ses pauvres.
Contudo, o livro fala pouco de teatro, e muito mais da relação à três ou
quatro, entre o lósofo, o artesão, o so sta e o poeta. Primeiramente,
construí minha relação com Platão sem passar pela questão do teatro e, no
Le Philosophe et ses pauvres, é através de Nietzsche que a questão aparece
como pano de fundo. Por meio de Wagner e Nietzsche. Há várias questões
envolvidas, mas o ponto de partida platônico não diz respeito à crítica do
teatro: ele se relaciona mais propriamente com o comando de não se fazer
duas coisas ao mesmo tempo. Sob esse aspecto, o teatro é, ao mesmo tempo,
um caso particular e a consagração desse comando às avessas. No livro Le
Philosophe et ses pauvres, a relação que é central é aquela que Platão
estabelece entre o operário e o so sta, o qual, por de nição, é um artista que
foi bem sucedido, um politécnico.
ADNEN JDEY — Claro, trata-se da relação que você tece entre duas
lógicas em oposição: uma lógica de distribuição que coloca cada um e cada
coisa em seu lugar, através do comando platônico que de ne uma ordem
simbólica da Cidade; e uma lógica de ruptura dessa distribuição, que
encontramos nos textos de Gauny e descreve o modo como esse comando
funciona empiricamente na experiência operária.
JACQUES RANCIÈRE — No início, o tema platônico de crítica do
desdobramento era, para mim, relativamente independente da questão do
teatro, e me interessei pelo teatro através da questão da relação entre
manifestações populares e formas teatrais. Interessei-me pela sala de teatro
como lugar de partilha entre as condições e como lugar de possíveis
subversões dessa partilha. Interessei-me pela teatralidade da ação operária,
dialógica ou operativa, no quadro da greve ou da insurreição. Em seguida,
estudei a problemática do teatro do povo, ou seja, a problemática dos
burgueses e intelectuais amigos do povo que, uma vez que havíamos
destruído os lugares de mistura nos quais o povo ia ao teatro, em um espaço
de mistura e mais ou menos partilhado com a burguesia, colocou-se a
questão de trazer a cultura a esse povo que havíamos retirado de seu espaço,
ao “modernizarmos” os teatros. São, então, três temas: aquele da relação
entre política e teatralidade; aquele da relação entre a obrigação de
permanecer no atelier e a interdição teatral; e, en m, aquele da relação entre
o lugar teatral e o público popular. Foi pouco a pouco que pude construir
uma problemática mais global do teatro, que também passou por muitas
coisas que não estão aparentes em meus textos. Em determinado período,
trabalhei muito sobre Wagner, acerca da questão do coro e de suas
zombarias com relação à maneira como o povo era colocado em cena nos
coros da ópera… Houve uma constituição da problemática do teatro e da
cena que foi sendo feita por partes. Isso não partiu de Platão. A questão dos
efeitos do teatro em Platão era secundária com relação à questão da
possibilidade ou impossibilidade de fazer as coisas ao mesmo tempo e com
relação à questão da aparência, que não tem a ver diretamente com o teatro
em O Filósofo e seus pobres.
ADNEN JDEY — Sobre essa questão da aparência, me parece que você
segue, em certa medida, a maneira pela qual Aristóteles corrige a mímese
platônica. Isso é correto?
JACQUES RANCIÈRE — Me interessei por Platão ou Aristóteles em
momentos diferentes e segundo ângulos diferentes. Por exemplo, me
interessei por Aristóteles durante um tempo, entendendo-o como aquele
que resolveria o con ito político por artifícios – o que ele chama de
sophismata. Ele é o pensador que rege e soluciona a seguinte questão por
meio de artifícios, incluindo também os artifícios institucionais: o que fazer
com a democracia ateniense? Platão havia pensado sobre essa questão sob o
modo da refundação radical da política sobre a verdade, e explicava a
democracia como um todo através das sombras da caverna. Já Aristóteles
nos apresenta a questão: como fazer para que, em uma cidade na qual o
povo em princípio governa (e sem negar seu poder), ainda sejam os
“melhores” que governem? O que me interessou primeiramente em
Aristóteles é essa correção das soluções platônicas para o problema
democrático, não mais sob a forma da ruptura, da oposição de mundos, mas
sob aquela do planejamento da cena de visibilidade da política, de tal
maneira que, como ele a rma, em um mesmo regime, os democratas vêem a
democracia e os oligarcas vêem a oligarquia. O que me interessou em
Aristóteles é que sua abordagem está ligada a uma problemática da cena
política, mas não necessariamente a uma problemática do teatro. No livro A
Poética, Aristóteles positiva a mimesis, contrariamente a Platão, mas isso não
passa pela questão da aparência, mas por aquela do lugar teatral. A mimesis
corrigida é um deslocamento das ilusões do visível em direção à
racionalidade da ação. Aristóteles se interessa não pela cena, mas pela
intriga. A questão da partilha das almas vai se apresentar na própria
de nição da cção como arranjo de ações, e não na relação da multidão com
a cena.
ADNEN JDEY — Vamos nos ater ainda a Platão. Sua leitura não volta
a indexar positivamente o que motiva negativamente sua condenação do
teatro? Sob esse aspecto, a cena teatral poderia funcionar outramente do que
como lugar de criação de obstáculos para as identidades e de espaços que
podem exercer uma função de subjetivação?
JACQUES RANCIÈRE — Há a idéia platônica de que o teatro é
subversão das identidades, mas podemos ver muito bem que o teatro pode
também funcionar como xação de identidades. Não li Platão à contrapelo,
a rmando que o teatro é o lugar da subversão das identidades e que ele vai,
portanto, produzir subjetivação. A cena clássica francesa funciona
justamente como uma xação das identidades, e quando Wagner caçoa dos
coros de Rossini ou de Auber, ele ironiza um teatro que é uma maneira de
xar as identidades.
ADNEN JDET — Nesse sentido, podemos igualmente refazer a questão
e nos perguntarmos se o paradigma teatral, pelos desengajamentos da
mimesis que ele opera, não funcionaria diferentemente segundo o caso, na
medida em que há também a ideia de que o teatro encarna um processo que
pode restituir sua unidade perdida à uma comunidade, ao transformar a
cena em um tipo de soerguimento do grande corpo coletivo?
È
JACQUES RANCIÈRE — O paradigma teatral funciona justamente de
maneiras diversas. Platão o faz funcionar como emblemático da democracia,
o que pôde alimentar, de modo contrário, todos os discursos modernos
sobre o teatro como assembléia do povo. Eu nunca concordei com esses
discursos românticos e pós-românticos que dizem que o teatro é o lugar no
qual o povo se constitui como identidade. Não acho tampouco que
poderíamos, de modo inverso, depreender do comediante uma teoria da
subjetivação política. O lugar teatral pode ser um lugar identitário, não
importa o que a rma Platão. O teatro grego era um teatro identitário. Claro
que Platão o vê à sua maneira, ele não se restringe ao espaço teatral, mas
enfatiza o poema e Homero, mais do que a cção. Ele critica o teatro
através de uma crítica da cção como desdobramento, enquanto o teatro
grego funciona, apesar de tudo, como lugar identitário, assim como o teatro
clássico. Há toda uma concepção romântica do teatro que funciona de
maneira semelhante. Se tomarmos a maior parte das utilizações
revolucionárias do teatro, veremos que são usos identitários. O teatro
desempenha aí um papel de uma grande manifestação popular unitária.
È
JACQUES RANCIÈRE — De fato. Rousseau denuncia a pretensão do
teatro de produzir a moral através de suas fábulas – em particular aquela de
produzir a virtude fazendo as pessoas rirem com o espetáculo do vício – e,
de maneira mais fundamental, a ideia de que a felicidade experimentada ao
ver as sombras do espetáculo possa transformar os espectadores em homens
capazes de agir pela felicidade efetiva dos homens. Schiller diz o seguinte:
certo, não há nada que possa ser esperado de um teatro edi cante que
desejaria produzir virtudes opostas ao vício mostrado em cena.
Contrariamente, o que podemos esperar desse teatro é a transformação da
sensibilidade dos espectadores. Se há uma humanidade transformada pelo
teatro, não é no sentido de que ela será purgada de seus vícios pela
dramaturgia teatral, mas no sentido em que ela alcançará um nível de
experiência sensível em que a questão que se apresenta não é mais de saber
se um espetáculo é moralizador ou não. Schiller opõe um enobrecimento da
sensibilidade a um efeito moral na produção de uma tendência determinada
do espírito como resultado do espetáculo. Ele acredita que essa
transformação da sensibilidade é uma potência de transformação efetiva.
ANDEN JDEY — Sob meu ponto de vista, a di culdade persiste, pois à
medida que essa transformação da sensibilidade não diz respeito a uma
demonstração, de onde ela pode tirar seu escopo se não for de certa
veri cação de seus efeitos?
JACQUES RANCIÈRE — A veri cação, em sua ocorrência, não é
jamais uma veri cação direta. Ela passa por transformações de capacidades
tanto do artista como do espectador, tanto do escritor como do leitor.
Finalmente, a veri cação de um efeito se faz pelos efeitos diferentes que ele
é capaz de produzir, o que quer dizer que ele é capaz de se inserir em formas
de sensibilidade e de consciência do mundo transformado, mas não sob um
modo pedagógico. Além disso, ele se veri ca pela capacidade dos artistas de
questionar seu dispositivo, de tentar inventar novos dispositivos de produção
de dissenso.
Dois modelos de “dissenso”
ADNEN JDEY — As transições que, na obra “O Espectador
Emancipado”, nos conduzem da arte crítica dos anos 1930-1950 – ou dos
trabalhos de Martha Rosler nos anos 1970 – para a arte atual, nos trazem
duas questões. Trata-se de colocar em xeque a posteridade dessa arte crítica
e, consequentemente, sua invalidade? Ou simplesmente de mostrar que, na
arte atual que continua a funcionar sob esse mesmo esquema representativo,
é um modelo de dissenso ultrapassado que é questionado?
JACQUES RANCIÈRE — Vamos considerar as coisas em ordem. É
preciso que vejamos com calma um primeiro ponto: a arte crítica já fazia um
tipo de inventário ou de luto das vontades de intervenção diretas da arte na
vida, ou de transformação direta das formas da vida pela arte. Quando
Brecht elabora sua teoria da distanciação no nal dos anos 1930, ele o faz
como uma crítica daquilo que havia sido a grande esperança de um teatro
que já seria diretamente uma forma de ativismo político. Ele faz o balanço
do teatro de Piscator, do teatro proletário, das ideias marxistas ligadas à
agitação e à propaganda, e de todas essas formas de ativismo artístico direto
nascidas no despertar da revolução russa. A arte crítica extrai algumas lições
desse momento no qual a arte pretendia criar diretamente novas formas da
vida. A época em que Brecht elabora essa teoria da distanciação é também
aquela na qual Greenberg escreve seu texto “Vanguarda e kitsch”22, a mesma
época na qual são elaboradas as críticas da Escola de Frankfurt, ainda que
elas partam de uma base muito diferente daquela de Brecht. É o momento
da elaboração de diversos questionamentos acerca desse modelo de arte que
se transforma diretamente em vida. Assim, Brecht elabora essa solução na
qual o teatro é pensado como uma propedêutica para a ação política, em vez
de ser confundido com essa ação.
ADNEN JDEY — Mas essa visão de Brecht é a de um exilado que não
tem mais o teatro e que, nalmente, só terá um teatro para colocar suas
teorias em prática bem mais tarde, na Alemanha Ocidental, no quadro de
um teatro de Estado. A questão é mais complexa ainda.
È
JACQUES RANCIÈRE — Sim, mas a resposta de Brecht implica um
retorno à lógica representativa: o teatro deve produzir, pela estranheza que
ele mostra sobre a cena, uma tomada de consciência do espectador. Não se
trata mais, como no modo antigo, da imitação do vício que é responsável
por produzir virtude, mas da imitação da ignorância que produz
conhecimento. É o que Barthes sistematiza nessa fórmula: o espectador que
vê “Mãe Coragem” (“Mère courage”) cega, torna-se lúcido ao ver que ela é
cega. A mise en scène da perplexidade e do erro deve supostamente produzir
lucidez. É o ponto central não veri cado do brechtismo, especialmente e
precisamente porque ele nos remete diretamente à questão de saber qual é o
bom público. O bom público para seu teatro, tal como Brecht o reelabora no
nal dos anos 1930, não está mais lá para o exilado, nem tampouco para
aquele que irá dirigir um teatro de Estado. Mas também não é o público
burguês intelectual que vai ver, em Paris, as peças de teatro da companhia de
Brecht, a Berliner Ensemble. Há essa tensão, essa contradição que se instala
no coração da arte crítica. Todas as formas de arte crítica tentam funcionar
sob esse modelo representativo do efeito político. Estamos sempre mais ou
menos atados à contradição que existe nesse modelo e que faz com que,
efetivamente, a demonstração funcione se estamos, por outro lado,
convencidos daquilo que o espetáculo demonstra. Esse também é o caso das
colagens de Martha Rosler, de quem falo no livro O Espectador Emancipado.
É preciso ter fé no combate anti-imperialista, é preciso crer que o povo
vietnamita é o futuro da revolução, a juventude do mundo, para aderir ao
tipo de colagem que ela elaborou nos anos 1970. Minha questão é a
seguinte: em que isso se transforma quando a fé acaba e não sustenta mais o
modelo? Ele vai, efetivamente, começar a se esvaziar e a produzir sua
própria derrisão. Podemos dizer, de maneira mais precisa, que aquilo que foi
perdido é a fé em sua e cácia, que sempre foi duvidosa. Isso não quer dizer
que estamos em uma espécie de período pós-ideológico, pós-utópico ou
pós-histórico. Há, de fato, ine cácia, invalidação do modelo, tal como ele
próprio se vê. Mas esse modelo não de ne todas as maneiras através das
É
quais as formas sensíveis podem produzir dissenso. É apenas certo modelo
de dissenso que é colocado em questão.
ADNEN JDEY — O que faltava, talvez, acrescentar a esse ponto, para
completar o quadro, seria o risco implicado pela pretensão crítica de propor
um novo “sensorium” que não se distingue daquele imposto pela polícia
consensual. O erro seria crer que o efeito é um acontecimento que promove
ruptura.
JACQUES RANCIÈRE — Há vários problemas. O ponto fundamental
é reconhecer que há um hiato entre a proposição artística e seu efeito diante
do qual nada podemos fazer. É o que chamo de “corte estético” (“coupure
esthétique”). Dito isso, há o fato que todo artista se dirige a um público
possível, a um espectador. Ele endereça sua atuação a si mesmo como
espectador ao qual se dirige seu espetáculo. O problema se apresenta no
nível da proposição que o artista faz ou não a si mesmo: uma proposição de
reconsideração do perceptível, do visível, do dizível, do pensável, que ele faz
a si mesmo e que se transforma, na realização de sua obra, em uma
proposição feita ao outro – ao leitor, ao espectador, ao visitante. Ela
funciona para ele sob a forma do ensaio: se ensaiamos uma forma de
deslocamento dos regimes de representações e de signi cações constituídas,
tal deslocamento funciona como crítica de toda antecipação constituída.
Não creio que seja uma questão de escolha sobre o efeito, é uma escolha
sobre a proposição, e não sobre o efeito que se pretende atingir. É claro que
toda escrita, toda produção de uma forma sensível pressupõe que tentemos
efetuar um deslocamento na maneira através da qual alguma coisa é
formulada, na maneira como o que é percebido pode ser organizado. É
sempre para mostrar “o que pensamos que não é visto” ou para “dar a ver
outramente o que é visto”. Produzimos por nós mesmos um hiato no seio
das formas segundo as quais as situações, as histórias são normalmente
percebidas, sentidas, formuladas. Produzimos um efeito que não é suspenso
de início por meio de uma veri cação externa. Reorganizamos as formas
segundo as quais o sensível é percebido: por exemplo, representamos
espetáculos que deveriam ser de horror, de dor, de uma forma que não está
mais no registro normal da dor e do horror, mas no registro do estranho, de
um escândalo que não é habitual, etc. Há vários tipos de registros a partir
dos quais tentamos reformular as histórias e os espetáculos do mundo. Não
produzimos algo para esperar um efeito, mas tentamos produzir diretamente
o efeito, ainda que esse efeito seja produzido por nós mesmos. Isso é
importante, há uma proposição: colocar em cena, por exemplo, um
imigrante infeliz, um desempregado, etc., que não será mais uma gura da
desolação ou da exploração, mas a gura de alguém que atravessou certa
história e tem uma palavra, uma memória, uma força de elocução, de síntese
de sua experiência. É o que faz Pedro Costa: ele representa os internos de
um asilo de alienados como pessoas cujos rituais maníacos são, eles mesmos,
ações. É o que faz Wang Bing. É preciso pensar sobre isso em termos de
risco, lançamos uma proposição em um espaço no qual ela não é esperada.
ADNEN JDEY — É um aspecto do problema, creio eu. O outro aspecto
é que, se toda proposição um pouco forte supõe que seu efeito não seja
esperado, nada exclui a possibilidade de que, paradoxalmente, ela possa
perder seu efeito.
JACQUES RANCIÈRE — Esse risco existe e é permanente. Mas eu
não penso sobre ele em termos de invalidação, nem de nulidade. Acredito
que lá onde há invalidação é justamente onde o efeito é tão pressuposto que
não há mais necessidade de veri cá-lo. O que acontece com certo número
de formas atuais da arte considerada crítica é que o efeito era antecipado
como algo produzido de antemão no espaço comum já dado. É o que eu
comentei acerca de certas exposições no livro O Espectador Emancipado. A
própria concepção da instalação faz com que a proposição artística faça sua
própria veri cação no espaço comum. Há vários níveis de veri cação, e toda
proposição visual ou toda palavra, que efetivamente traz mudanças, produz
um efeito de surpresa e acarreta um risco de serem deixadas de lado e de não
se endereçarem ao público ao qual a proposição é destinada. É o risco da
proposição que é diferente da demonstração que pressupõe seu efeito como
já realizado.
ADNEN JDEY — Quando você diz que trata-se de produzir um
intervalo por si mesmo, me pergunto: será que isso não levaria a um tipo de
con guração autotélica da proposta artística?
JACQUES RANCIÈRE — Produzir por si mesma esse efeito não
signi ca que a obra seja autotélica, que exista somente para si mesma. Há
um risco parecido com o risco de engajar-se em uma manifestação política,
com o risco de convocar os outros pela Internet para ir às ruas quando não
somos uma organização política constituída. É esse tipo de risco que aparece
quando nos engajamos em uma ação sobre a qual não sabemos até que
ponto ela será partilhada. É o que entendo quando digo que produzimos
nós mesmos um efeito que não existe. Produzimos uma proposição artística
que não existe de antemão, o que não quer dizer que somos criadores
onipotentes, porque justamente todas as proposições artísticas são
proposições que retrabalham um tecido do sensível, uma tessitura da palavra
que é um bem comum e não a invenção de um artista.
ADNEN JDEY — Isso signi ca duas coisas. Que o escopo de uma
proposição artística, seja ela forte ou fraca, depende muito de seu contexto.
Dito de outro modo, como você explica no livro “A partilha do sensível”, tal
escopo depende das coordenadas de um dado espaço, no qual entram em
acordo ou desacordo um modo de apresentação sensível e um regime de
interpretação de informações. Isso quer dizer também que não há interesse
em separar a arte de um lado, e a política de outro, abrigando nesse hiato os
efeitos da proposição em termos de tomada de consciência crítica. Não se
trata tampouco, evidentemente, de excluir a possibilidade de depreender
formas de politização do trabalho da arte que sejam perfeitamente
identi cáveis. Encontramos nas proposições que você comenta, como o
exemplo do trabalho de Khalil Joreige e Joana Hadjithomas, os gestos que
promovem reviravoltas nos termos da equação ao disporem o jogo a partir
de um duplo efeito paradoxal. E, nesse caso, não sabemos se é um efeito
sobre o qual a arte teria o domínio, ou se seria apenas um efeito derivado de
negociações aleatórias entre a legibilidade de uma mensagem política que
corre o risco de fagocitar o trabalho da arte, e a resistência dessa forma
sensível à legibilidade de toda signi cação política?
JACQUES RANCIÈRE — De fato eu comentei essas proposições
artísticas de artistas libaneses como Khalil Joreige e Joana Hadjithomas que
nos convidam a escapar dos horrores da guerra, do espetáculo das ruínas e
da dor para trabalhar sobre a ausência e suas indecisões, mais do que sobre o
horror manifesto. Eles saem da questão representativa “Que imagens
produzir sobre a guerra?”, para propor a seguinte questão estética: “O que a
guerra faz com as imagens?”. Eles trabalharam com cartões postais de hotéis
de Beirute que ainda estavam sendo vendidos, mesmo após sua destruição, e
zeram sobre essas fotos um trabalho de destruição, paralelo àquele que os
edifícios haviam sofrido. Eles trabalharam sobre o apagamento das imagens
dos mártires sobre a via pública, mas também sobre os lmes que não
puderam ser desenvolvidos na época, por causa da falta de material e de sua
precariedade, uma vez que não nos oferecem hoje nada além do que
imagens no limite da invisibilidade. No livro O Espectador Emancipado,
comentei o lme Je veux voir23 (Eu quero ver). Podemos dizer que o tema do
lme é o seguinte: como se comportar com as ruínas? Mais precisamente,
como se comportar com as ruínas quando se é um ator, quando se é a
encarnação do cinema francês com Catherine Deneuve ou da arte libanesa
da performance, como Rabih Mroué? Como fazer trabalhar o desejo de ver
do artista de boa vontade pela necessidade de ter que andar nas ruínas?
Como fazer trabalhar o humor do artista libanês, habituado a rir da situação
do país, pela incapacidade do olhar em reconhecer em um monte de pedras
o que antes havia sido uma casa de família? É a força singular do lme, mas
é também uma proposição artística que muitas pessoas da esquerda libanesa
consideraram inaceitável.
ADNEN JDEY — O que nos choca nesse tipo de proposições é que,
justamente, o efeito que elas produzem é um efeito dissociado. Você havia
salientado esse aspecto no livro Les Écarts du Cinéma (As distâncias do
cinema), quando comenta os lmes de Pedro Costa e o modo como ele
aborda o destino dos habitantes de uma favela da periferia de Lisboa,
sobretudo “Colossal Youth”, um lme centrado na gura do maçon cabo-
verdiano Ventura que, em certo sentido, é a gura do imigrante com todos
os estigmas atrelados a essa gura, exceto pelo fato de que ele inverte
completamente o jogo.
JACQUES RANCIÈRE — Isso se inscreve na obra de Pedro Costa
através de um esforço sistemático para quebrar os esquemas que a rmam
que não devemos estetizar a miséria, extraindo, justamente, tudo o que
existe como potência de beleza, de cor, de luminosidade de lugares os mais
sórdidos e tudo o que existe como potência de palavra e de pensamento nos
seres supostamente mais inferiores. Há uma força indiscutível no modo de
transformar completamente a visibilidade do imigrante, do operário infeliz e
desenraizado, vítima da exploração, acidentado no trabalho e desempregado,
que se transforma numa espécie de “senhor no exílio” que inverte
completamente as posições, as relações hierárquicas e os regimes de
expressão. Mas o fato é que o efeito dessa proposição é completamente
dilacerado: de um lado, as pessoas que moram no bairro caram felizes com
a maneira através da qual foram mostrados na tela de cinema, mas o público
que ama os lmes de esquerda ou os lmes críticos vai dizer que se trata de
estetismo, que as imagens foram feitas para os festivais e não para o grande
público. É a tensão da produção do novo nos contextos onde há uma
formatação extremamente forte dos tipos de dispositivos e dos tipos de
públicos aos quais eles se endereçam. O problema dos artistas hoje é de sair
do espaço delimitado no qual eles estão arranjados. A degenerescência da
arte crítica está também ligada ao fato de que ela é uma arte que pode
continuar a andar em círculos no espaço que lhe foi concedido.
ADNEN JDEY — Você articula duas componentes no “trabalho crítico”
das imagens: de um lado, o esforço de uma arte que forja sua capacidade
cética ao examinar, ao mesmo tempo, as latitudes e os limites próprios à sua
prática especí ca. De outro, um gesto de separação estética que impede que
o efeito da proposição seja predeterminado em função de uma dramaturgia
que seria capaz de reter o espectador em suas teias. A combinação desses
dois gestos não traria o risco de às vezes apagar suas diferenças?
JACQUES RANCIÈRE — Digamos, inicialmente, que não propus uma
teoria da crítica e essencialmente não tenho necessidade dessa noção. Eu
simplesmente tentei dizer: se desejamos fazer um uso positivo dessa noção,
eis aqui em que ela pode consistir. Na ideia de crítica, há primeiramente a
ideia de separação, de um trabalho sobre a separação. E esse trabalho pode
ser entendido em dois sentidos: como contestação de uma linha de partilha
ou como consideração de uma separação. Os dois podem perfeitamente ser
combinados. Veja o caso dessas obras cinematográ cas que questionam a
oposição entre documentário e cção. É evidente que elas de distanciam, ao
mesmo tempo, de tipos de e cácia preconstituídos, pensados de antemão,
que são especí cos de um e de outro; é claro que elas se interrogam mais
rapidamente sobre seus próprios limites. Não há oposição entre os dois,
ainda que não tenhamos os dois juntos de maneira simultânea, em um único
gesto.
ADNEN JDEY — Como certas práticas seriam conduzidas a examinar
seus próprios limites? A passagem de um questionamento das linhas de
partilha entre os regimes de expressão à consideração de uma separação
entre a proposição e seus efeitos é também evidente? Parece-me ainda que,
se há dissenso, seja num caso como no outro, nada impede que, por outro
lado, ele esbarre em certos limites derivados do fato que ele opera, todas as
vezes, a partir de um modo provisório e local.
JACQUES RANCIÈRE — Há dois problemas aqui. O primeiro diz
respeito ao próprio sentido que conferimos ao dissenso. O dissenso não é
simplesmente o hiato ou o escândalo que rompe um consenso, mas a
capacidade de inserir o hiato na construção de uma outra forma de senso
comum: por exemplo, um outro tempo na maneira de olhar e de tirar
conclusões sobre o que olhamos. Penso, por exemplo, na travessia da Algéria
atual, organizada por Tariq Teguia em Inland, ou na China de Bing Ga em
Kaili Blues. O segundo problema é que, de qualquer maneira, não
mensuramos atualmente os efeitos de nenhuma proposição artística, seja ela
consensual ou dissensual. Quem pode apontar o efeito produzido pelos
processos de Marie-Antoinette e de Louis XVI para Robert Hossein?
Ninguém sabe se isso vai produzir monarquistas, o ódio da revolução ou um
outro efeito. Qual o efeito produzido pelas instalações críticas ou
supostamente críticas sobre um espectador que poderíamos pressupor caído
do céu? Não temos a mínima ideia. Digamos, de maneira mais precisa, que
atualmente deveríamos tentar sair de um modelo de pressuposta e cácia,
uma vez que não sabemos nada sobre seus efeitos reais.
É
muito mais lenta e difusa das formas da sensibilidade. É isso que as pessoas
tem di culdade de mensurar de maneira adequada. Se o teatro de Brecht
não produziu muita consciência revolucionária, exceto naqueles que já a
tinham, ele produziu maneiras de jogar com os signi cantes da política e da
dominação. Essa re exão nos conduz a uma herança que pode produzir
efeitos mais difusos e diferenciados através da transformação das
sensibilidades e das capacidades. A distanciação opera de uma maneira
totalmente diferente daquela que estava prevista. Não há consciência
revolucionária formada. Contudo, há uma capacidade de distanciar as
categorias e os modos de percepção do consenso e de considerar outras
proposições de mundo comum e do agir comum. Trata-se de algo cujo
efeito é extremamente difícil de mensurar.
ADNEN JDEY — Como explicar essa di culdade? Ela estaria ligada a
certa conjuntura, aquela de uma involução do modelo crítico dos anos 1960-
1970? Se essa di culdade envolve um tipo de desligamento das formas de
arte atuais, com relação à maneira como elas recortam o campo da
experiência mais amplo no qual elas se inscrevem, ela não poderia traduzir,
de modo correlato, um dé cit de subjetivação política?
JACQUES RANCIÈRE — Há vários aspectos a serem destacados. Um
fato geral, que não é especí co de nossa época, é o perigo da efetiva
produção dos efeitos esperados. Há, talvez, efeitos que são mais especí cos
de nosso momento, que é o domínio do consenso, ou seja, o reino da
formatação, de uma produção que se apresenta como adaptada a tal ou tal
tipo de público, adaptada a tal ou tal tipo de reconhecimento por tal ou tal
tipo de público. Há um segundo aspecto que está ligado à ausência, hoje, de
explicações do mundo mais embasadas. Os efeitos artísticos não são mais
escorados pela ideia de que há uma explicação forte do mundo carregada por
um povo, uma massa, um sujeito histórico. Isso se explica também pelo fato
de que os efeitos veri cáveis estão ligados à ressonância de certas palavras,
mais do que à potência de uma explicação. “Não vivamos mais como
escravos”: essa palavra de ordem foi utilizada por ativistas gregos que se
serviram da peça teatral Les Bonnes (As domésticas), de Jean Genet. A peça
não oferece qualquer saber particular das relações sociais, nem qualquer
analogia entre a situação das domésticas e aquela do povo grego. A fórmula
diz simplesmente que não queremos mais viver de certa maneira, o que já
havia sido dito pelos plebeus sobre a cena do Aventino, e que vem sendo
dito pelos anônimos reunidos nas praças ocupadas.
ADNEN JDEY — Talvez nós só consigamos captar a dimensão dessa
di culdade se a considerarmos sob um outro aspecto, aquele de um
paradoxo mais geral. Você faz alusão à época na qual a explicação marxista
do mundo encarregava o corpo proletário de transformá-la em realidade, na
carne e no sangue da realidade. Nós admitimos essa imposição, sobretudo a
partir da perspectiva de que as interpretações produzem mudanças reais,
quando elas transformam as formas sensíveis da política ou os modos de
visibilidade de uma comunidade e, com eles, as capacidades que corpos
quaisquer possam exercer sobre tais formas sensíveis e tais modos de
visibilidade. Mas, o fato de que essa explicação esteja hoje completamente
em desuso, coloca em questão as relações possíveis entre as dramaturgias
artísticas – transformadas em um tipo de “refúgio” -, e o esvaziamento das
cenas políticas. O aspecto central do problema é que entre as duas
dramaturgias há poucas linhas de identi cação e muitas linhas de
adequação: há somente encontros possíveis, negociações parciais. Seria
preciso aceitar que essas mises en scène não se ajustam e que entre elas se
estabelece algo como a ligação sem conceito, da qual nos fala Kant, ainda
que elas apontem para um mesmo horizonte?
JACQUES RANCIÈRE — Podemos dizer que nos momentos de
democracia forte, de forças sociais coletivas, de revolução e de subversão,
conexões fortes são estabelecidas entre as dramaturgias artísticas e o que
podemos chamar de dramaturgias próprias à política, ou seja, a maneira
como a política enuncia, permite ver o que não era visto. Isso é o que falta
atualmente. É por causa da falta dessas conexões que temos, efetivamente,
uma série de dramaturgias-choques cujo efeito é auto-anulado. Os
espetáculos da Socìetas Rafaello Sanzio ou de Rodrigo Garcia desejam
produzir choques por meio de uma presença exacerbada de corpos, de
relações entre corpos na cena. É uma espécie de incarnação sobre a cena,
que retoma um pouco as grandes cerimônias dos acionistas vienenses. Há
certa exibição das relações entre corpos, uma exibição de violência na
posição dos corpos sobre a cena, mas que, no fundo, não possui interlocução
com uma dramaturgia política constituída. Havia uma equivalência enre as
dramaturgias brechtianas e certo número de manifestações políticas de
exibição do não-visto, de questionamento político da palavra e da
autoridade dos poderosos. Atualmente, as dramaturgias e cazes sobre a
cena não possuem correspondência legível com as dramaturgias políticas.
Finalmente, aqueles para quem o choque desses espetáculos é um choque
político e ideológico não são os Indignados, mas são os integristas que
enxergam a blasfêmia e a derisão de sua religião e de sua fé. E são as
dramaturgias que podemos chamar de mínimas que possuem efeitos para
além delas mesmas: a sobriedade da peça As Domésticas, mais do que a
exuberância sensual da peça O Balcão ou da peça Os Negros, todas de Jean
Genet.
ADNEN JDEY — Na ausência de um renascimento marxista com essas
palavras de ordem federadoras, será que não encontramos as mesmas
di culdades às quais uma determinada sociologia também conduz? Ainda
que as duas propostas sejam distintas, pois uma é descritiva enquanto a
outra é normativa, é verdade que a sociologia de Bourdieu endossa,
paradoxalmente, a tarefa de explicar a dominação em seus efeitos, enquanto
ela consagra o próprio axioma da dominação. Isso modi ca algo na maneira
por meio da qual as dramaturgias artísticas tentam hoje se conectar às
demonstrações políticas atuais?
JACQUES RANCIÈRE — Precisamente. O que me parece signi cativo
é a maneira por meio da qual o marxismo e a explicação sociológica baseada
em Bourdieu quase se fundiram em uma outra para elaborar uma explicação
da dominação e de seus efeitos que está desconectada das formas de
invenção políticas que existiram nas praças ocupadas. Há uma dupla
distância entre as lógicas de explicação e as formas de demonstração
políticas, e entre essas formas de demonstração políticas e as formas de
exibição dos corpos na cena artística e teatral. Há um intervalo entre essas
três coisas: a dramaturgia do estilo Primavera árabe, Indignados ou Ghezi
Park, sem uma forte relação com as explicações sociológicas, e também sem
um forte vínculo com os modos de presença dos corpos nas mises en scène
teatrais que hoje querem produzir choques: penso em um espetáculo recente
de Krystian Lupa, Salle d’attente (Sala de espera), com pessoas
desempregadas, drogadas, perdidas, que nalmente chegam no limite da
existência performada como reprodução de um estado de coisas, de violência
concreta sobre a cena. Pessoas que chegam a um estado de carência, mas
que, nalmente, produzem uma teatralização da miséria do mundo. Essa
tradução da miséria do mundo está muito distante das formas pelas quais as
pessoas vão às ruas, nesses últimos anos, para protestar contra os regimes
autoritários ou contra a lei econômica. Em vez disso, nesse caso temos
performances sóbrias, como aquela do performer Erdem Gündüz, que
permance imóvel durante horas na Praça Taksim, em Istambul, diante do
retrato de Ataturk, ou seja, performances que estão em sintonia com o
movimento. Não há relações entre essas dramaturgias. No questionamento
do modelo crítico, tudo se passa como se frequentemente cássemos presos
entre duas estratégias: há uma estratégia da distância, que não propõe saídas
diretamente, por meio das quais transformamos a gura do imigrante,
reintroduzimos a tragédia lá onde havia o documentário sobre o modo da
apropriação distante; e, em seguida, há as dramaturgias de exacerbação da
presença e da violência dos corpos que querem funcionar hoje como
denúncia da ordem existente, mas que não possuem vínculo real com as
dramaturgias políticas.
21 RANCIÈRE, J. « Le gai savoir », Bertolt Brecht, sob a direção de B. Dort e J.-F. Peyret, L’Herne,
1979 ; retomado em RANCIÈRE, J. Politique de la littérature. Paris : Galilée, 2004, p.113-143.
22 GREENBERG, C. « Avant-garde and kitsch », Partisan Review, v.6, n.5, p.34-49. Texto
retomado em GREENBERG, C. Art et Culture. Essais critiques. Trad. Ann Hindry. Paris : Macula,
2000, p.9-28.
23 Je veux voir. Filme realizado por Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, 2006.
24 RANCIÈRE, Jacques. Malaise dans l’Esthétique. Paris : Galilée, 2004, p.65-83.
4. Cenários estéticos
As razões da arte
ADNEN JDEY — Tratemos agora das razões da arte. Ainda que ela
remonte do nal do século XVIII, a emergência história da estética
enquanto disciplina aparece em uma con guração geral das formas de
experiências sensíveis, das condições de percepção e das formas de
inteligibillidade ou de julgamento, que a de nem como regime de
pensamento da arte. De fato, você nos lembra que, ao remetermos a
categoria de “arte” a regimes de emoção e às condições materiais de
produção, de exposição e de circulação das obras, essas formas de
inteligibilidade não de nem, contudo, critérios de pertencimento ou de não
pertencimento à arte. Você a rma sobretudo que a estética não pode ser
transcrita de uma ontologia, e que a questão de ser ou não ser só pode
distorcer a formulação do problema. Dessa forma, eu tomo a questão a
partir da pressuposição da qual você parte: por que essa recusa da ontologia?
JACQUES RANCIÈRE — Sim, eu parto do fato do que é o ser
enquanto ser e que não sei absolutamente nada. Nem tampouco sei se é
interessante de saber, porque, de qualquer forma, sempre estamos lidando
com certa montagem entre o que é percebido, compreendido, interpretado,
lido, pensado. Finalmente, é sempre a partir dessas montagens que vão se
de nir as formas de racionalidade. Uma ontologia serve à que, exatamente,
em relação a isso? Serve para dizer que haveria um tipo de fórmula geral do
ser que poderíamos encontrar através de diferentes níveis, de diferentes
domínios e de diferentes racionalidades. Para mim, é uma abertura que só
podemos fazer quando enfraquecemos, a cada vez, as racionalidades
singulares. Acredito que, para conseguirmos deduzir a política e a arte de
uma ontologia geral, é preciso passar por formulações entre as quais algumas
são extremamente amplas, extremamente frouxas, enquanto outras, ao
É
contrário, são realidades contingentes, no sentido histórico do termo. É o
que tentei mostrar através do caso de Alain Badiou: ele precisa pegar
emprestados os traços de uma ideologia historicamente datada sobre a arte –
a ideologia “modernista” – para chegar a sustentar um discurso sobre as
formas de inteligibilidade da arte que esteja conectado a uma ontologia
geral. Acredito que é sempre mais interessante entrar na complexidade das
montagens que fazem com que a política, a loso a, a arte e a literatura
existam, do que construir uma fórmula geral do ser para tentar fazer com
que formas de racionalidade sejam empurradas, de maneira forçada, nessas
montagens. E tais racionalidades chegaram até nós, apesar de tudo, através
de toda uma série de experiências históricas contingentes. Vivemos em um
mundo onde existe arte: é um pouco fútil querer deduzir essa constatação de
uma ontologia geral. É mais interessante estudar a maneira através da qual
essa forma de existência se constitui.
ADNEN JDEY — Em contrapartida a essa recusa da ontologia, você
confere um papel importante para a inscrição histórica na constituição de
cenas estéticas. Ao considerar a arte como uma noção contingente, você
“mata dois coelhos com uma cajadada só”25: você a retira de sua
determinação teleológica enquanto savoir-faire, para permitir que o
coe ciente de um universal singular possa encontrar nela alguma
ressonância. Poderíamos ver, nesse gesto, uma maneira de opor duas formas
de historicização, sem que a distinção de regimes da arte remeta cada um a
seu tempo?
JACQUES RANCIÈRE — Contra qualquer referência a um tipo de
essência transhistórica, trata-se de a rmar, ao contrário, que “arte” não é um
termo originário. Trata-se de pensar como essa palavra pode resumir um
regime de apresentação das coisas e um regime de experiência especí ca.
Originariamente, “arte” quer dizer simplesmente um savoir-faire técnico. A
Arte como modo do fazer e como modo de apresentação que ampli ca o
sucesso da técnica não é algo que deriva do fundo das eras, mas uma noção
que possui uma historicidade própria e repousa sobre uma reorganização da
repartição das esferas da experiência. Estamos em um mundo no qual a arte
existe como regime de experiência, não há interesse em negá-lo. O
importante é saber quais modos de apresentação, de circulação e de
percepção são agrupados sob esse signi cante global.
ADNEN JDEY — O que você chama de “arte” só começou a existir
como regime de experiência a partir do momento em que certo tipo de
divisão passou a não ter mais espaço entre artes mecânicas e artes liberais,
estas possuindo uma “dignidade” superior em relação às primeiras. Essa
divisão, que sustentou o regime representativo, repousa sobre um princípio
de ajuste entre entre a expressão e o tema da obra. O que acontece, então,
com o regime “estético”? A impossibilidade de distinguir o que pertence à
arte do que não pertence a ela. O que nos conduz, como visto em Aisthesis, à
promoção de toda uma série de estados de indistinção que vão abolir as
fronteiras da causalidade tradicional. Esse efeito, que se encontra no cerne
da questão da emancipação popular, irriga o regime estético da arte, de
Rousseau a Chaplin. Mas a custo de quais paradoxos?
JACQUES RANCIÈRE — Há efetivamente esse tema que atravessa o
livro Aisthesis, que é o pensamento do estado estético, seja ele a pulsão do
jogo em Schiller, do devaneio (rêverie) ou desse tipo de espetáculo que
propõe ao espectador que ele construa seu próprio poema. Há o
desenvolvimento da capacidade de partilhar estados de indistinção, nos
quais não buscamos mais propor ou retirar uma lição de formas de arte cuja
potência está ligada ao fato de não pretenderem impor nada. É também o
caso dos pequenos mendigos de Murillo, mas destaco que lá também há
con ito. Essas crianças convidam a um tipo de devaneio olimpiano em
Hegel, mas há Ruskin que diz: é a representação da realidade suja, com os
pés imundos do menino no primeiro plano. Ruskin articula essa sujeira do
“representado” com outra forma de crítica da representação: aquela que
denuncia a obra de arte como algo que deve ser olhado, enquanto a
verdadeira arte é aquela que desprezamos sob o nome de arte decorativa:
aquela que serve para abrigar e para simbolizar a vida. O regime estético da
arte está, então, em equilíbrio entre duas críticas do modelo representativo:
aquela que privilegia o olhar contra as hierarquias do fazer, e aquela que o
destitui em benefício de um fazer coletivo. Vemos bem aqui que estamos
sobre uma linha de partilha na qual o representativo e o estético estão em
equilíbio. O mesmo quadro, a mesma performance teatral vão poder ser
percebidas e recortadas segundo um modelo representativo ou estético.
Contudo, a relação entre os dois está sujeita a interpretações contraditórias.
O quadro ou a performance jamais estão sozinhos.
ADNEN JDEY — Há outro aspecto da arte que você tematiza acerca de
seu regime estético, que é a implementação de uma determinada igualdade.
Você formula essa igualdade a partir de Schiller, quando ele a rma, em suas
“Cartas sobre a educação estética do homem”, que um homem só pode ser
considerado como tal por meio do jogo. Se a universalidade do instinto de
jogo consiste em jogar com as aparências, ela confere também à igualdade
estética o sentido de uma igualdade partilhada com o outro, ainda que este
se recuse em reconhecê-la. É o que você comenta na obra Às margens da
política e também em O desentendimento, através das greves operárias do
século XIX na França, em que não se trata de opor o interesse de uma classe
a outra, mas o que está em questão são capacidades partilhadas de ver, de
sentir e de falar em oposição às capacidades distribuídas de acordo com as
posições ocupadas pelos sujeitos. Em que sentido essa igualdade estética
pode ultrapassar a igualdade política?
JACQUES RANCIÈRE — A igualdade estética implica a ruína de
todas as formas de correspomdência entre um gênero artístico nobre ou
comum e um tipo de objetos, de histórias, de ações. Isso quer dizer que háa
possibilidade de que qualquer objeto, e também qualquer experiência, de
qualquer categoria, de qualquer população possa estar à altura de um tema
da arte. De maneira mais adequada, isso é o que poderíamos chamar de
invasão do mundo da arte por tudo o que era considerado estrangeiro à arte.
De modo ainda mais especí co, podemos identi car nesse processo a
invasão do mundo da arte e seu enriquecimento pelas formas de
entretenimento popular, os novos paradigmas artísticos originados do
entretenimento popular e trazendo consigo a aboliação da separação entre
entretenimento popular e arte cultivada. Além disso, tal processo marca a
entrada, no mundo da arte e da cção, de todas as formas de experiências
sensíveis por meio das quais pessoas do povo, as mulheres e os homens de
classes desfavorecidas se apropriam de formas de experiências sensíveis, das
formas de vida que não eram consideradas como acessíveis a eles. Proletários
como Gauny se amparam nos “grandes autores”; os escritores condenados ao
culto único da arte, como Flaubert ou como os Goncourt se servem de
romances como Madame Bovary ou Germinie Lacerteux. É tudo isso que
vai constituir a igualdade estética como um mundo de igualdade que, ao
mesmo tempo, não consegue mais se de nir a não ser pelo recorte de um
plano que seria, mais precisamente, aquela da ação política, coletiva, da
subjetivação política. É como uma igualdade anárquica ou atômica que vai
ultrapassar o plano de uma subjetivação política.
Responder à Hegel
ADNEN JDEY — É impressionante esse jogo de uma partilha que engaja
a era estética sob uma vertente política, sem que haja aí uma adequação
entre igualdade sensível, igualdade política e igualdade estética. A menos
que se coloquem as diferenças em jogo, não haveria aí um con ito de
igualdades que joga, ele mesmo, em vários níveis? No livro Política da
literatura, a igualdade dos sujeitos e a disponibilidade dos meios de
expressão para narrar qualquer vida não se confunde com a democracia da
letra e nem com a igualdade imanente das coisas sem razão. Não haveria um
paradoxo em manter a relação entre a constituição de formas de subjetivação
política e as formas artísticas de constituição da grandeza de algo qualquer ?
JACQUES RANCIÈRE — Para mim, não há aqui um paradoxo,
porque cada termo é, ao mesmo tempo, condicionado e condicionante.
Retomemos a análise de Hegel acerca dos dois pequenos mendigos de
Murillo: o que acontece ali? Ocorre que, precisamente, um tema
representativo, ou seja, uma cena da vida pitoresca daquelas que os
aristocratas adoram colecionar, é transformado em um ícone da grandeza do
qualquer. Em sua análise, Hegel insiste sobre o fato de que eles não fazem
nada, ele retoma essa ideia de Schiller, do jogo como suspensão de relações
hierárquicas. Assim, nesse momento, a tematização de um tema popular a
partir de um olhar aristocrata é quebrado por essa instituição de uma
magni cência do qualquer, que se encontra retirado das ocupações e da
hierarquia das ocupações. Os pequenos mendigos, claramente, não são
transformados por essa operação em sujeitos políticos. Mas são distanciados
de sua atribuição normal, de uma forma que foi tornada possível pela
Revolução Francesa e pela maneira como ela transformou jovens do povo
em heróis como Joseph Bara, mas também em generais, juízes, experts, etc.
ADNEN JDEY — Então não é a arte que é decisiva aqui enquanto tal,
mas várias coisas ao mesmo tempo. O que é dado a ver nesse quadro de
Murillo não é somente a beleza do mundo que indicam essas pequenas
cenas da vida popular, escapando da mímesis pictórica ao suspender a ação.
É também a resistência do tecido sensível da obra ao sentido que
gostaríamos de atribuir a ela. Há, contudo, um momento no qual a cena
muda de sentido, em um contexto que é aquele de uma perturbação mais
ampla das condições da experiência. É o “conteúdo” dessas cenas de gênero
aos olhos de Hegel que expressa certa liberdade do povo.
JACQUES RANCIÈRE — É evidente que essa análise de Hegel sobre
os dois garotos que não estão fazendo nada, a não ser aproveitar sua
ociosidade, é possível em um contexto que é aquele posterior à Revolução
Francesa, com esses jovens heróicos como encontramos na lenda dessa
Revolução. A análise de Hegel é possível, de certa maneira, pela Revolução
Francesa. Os garotos de rua foram transformados em deuses do Olimpo, e
isso é o eco do quadro de Jacques-Louis David, que mostra Joseph Bara
morrendo; ou o quadro de Prud’on que mostra a morte de Viala. Ambos
representados desnudos, à maneira antiga. No nal de sua re exão, Hegel
diz que podemos esperar tudo desses garotos. Mas se podemos esperar
qualquer coisa deles, é porque sabemos de antemão o que eles produziram
sobre a cena histórica recente. A partir daí, vemos a constituição de uma
espécie de elevação da grandeza do qualquer um na reabilitação da pintura
de gênero, e através de tudo o que chamamos de realismo romântico. Essa
assunção é, ao mesmo tempo, independente e eventualmente distante, talvez
mesmo oposta, em relação à subjetivação política, mas que está, mesmo
assim, em relação, em tensão com ela. Tal tensionamento faz parte de uma
mesma transformação das formas da experiência. As invenções da arte
pertencem ao mesmo regime de experiência que as novas capacidades de
agir, de sentir ou de não fazer nada, que desvelam os seres que antes estavam
fechados no círculo da vida nua.
ADNEN JDEY — Vamos nos demorar um pouco mais sobre a re exão
de Hegel, cujo fantasma não podemos talvez exorcisar a um preço assim tão
baixo. No livro O destino das imagens, você não hesita em a rmar que todos
os modernismos do século XX reservaram a Hegel um destino
particularmente crítico, em razão da “separação das esferas de racionalidade”
que ela havia estabelecido, acarretando então “a perda de sua potência de
pensamento comum” e não a sonhada autonomia da arte26. Por outro lado,
você argumenta que tudo acontece como se os artistas da geração que
sucedeu aquela de Hegel, sem talvez ter tomado conhecimento, de certa
maneira responderam à sua demonstração ao testar o princípio de sua arte
na montagem imprópria das signi cações e das materialidades. O que
signi ca, para você, responder a Hegel?
JACQUES RANCIÈRE — Quando digo que os artistas devem
responder à sua demonstração, quero dizer que, ao mesmo tempo em que
há, no plano político, essa espécie de grande dramaturgia do que ocorreu
após a Revolução e da reconstituição do tecido social, há também, para o
mundo artístico e para o mundo da literatura, a obrigação de repensar a
relação entre as formas artísticas e o mundo que se de niu após a
Revolução. O que signi ca também repensar o mundo burguês, o mundo da
prosa, o mundo da mercadoria ou o mundo do acesso dos plebeus aos tipos
de experiências que não eram aqueles que eles tinham. Há essa obrigação de
pensar as formas de arte que não estão mais ligadas às formas de experiência
reservadas a uma população especí ca. Seria preciso pensar, de um lado, um
mundo que se estrutura segundo as formas de racionalidade econômicas e
administrativas que parecem separá-lo de todos os sonhos de uma
poeticidade natural da vida e ainda seria preciso pensar, ao mesmo tempo,
em formas de arte que seriam capazes de fazer sentir as maneiras novas,
inclusive poéticas, em que a beleza é imanente às formas do mundo
prosaico. Poucas pessoas leram a Estética, de Hegel, e elas foram levadas
pela problemática do mundo moderno racionalizado e prosaico que parece
assinalar a morte da arte e no qual, contudo, seria possível encontrar uma
nova beleza. Encontramos nessa época, de maneira generalizada, a questão
do que pode haver como arte no tempo da administração racional, da
dominação da economia, da produção de massa, dos transportes coletivos ou
dos tecidos vendidos a preços baixos. Essa re exão se realiza em duas partes:
de um lado, estamos em um mundo no qual os critérios da distinção
artística entraram em colapso, mas, ao mesmo tempo, vemos a a rmação do
tema elaborado por Schiller na ideia de uma poesia ingênua e desenvolvida
pelo romantismo, a ideia de uma poeticidade que não está ligada a um
universo separado, mas imanente às próprias formas da vida. Quando não
estamos mais em um universo em que há expressões artísticas, situações
artísticas ou objetos artísticos bem separados do resto, impõe-se a ideia de
que havia existido anteriormente essa poeticidade antiga, que estava ligada
às formas da vida coletiva e para a qual deveríamos reencontrar o
equivalente moderno. Aparece essa inspiração muito forte de dizer que
teremos que encontrar a poética agora em um ambiente qualquer, uma
silhueta que passa em um jardim público, as luzes do music hall, um des le
de feira, um entretenimento de pequeno burguês ao domingo às margens do
rio Sena. Há efetivamente a consciência muito ampla de um momento de
separação que impõe, ao mesmo tempo, um grande impulso para encontrar
a poesia que é imanente à vida contemporânea. Isso se impõe a todos, tanto
à Flaubert, que deseja produzir o equivalente de uma poesia de um mundo
épico em um mundo prosaico, quanto à Seurat, que deseja reinventar a arte
monumental. Esse gesto resulta em Madame Bovary e em Uma tarde de
domingo na ilha de Grande Jatte. Há uma in nidade de exemplos.
ADNEN JDEY — Se esse impulso, essa tarefa do século é percebida por
todos, responder ao diagnósticos hegaliano pressuporia,necessariamente,
certa visão partilhada do problema, mas que não excluiria uma distribuição
histórica particular?
JACQUES RANCIÈRE — Responder a Hegel é efetivamente
responder a seu diagnóstico sobre a modernidade, que pode ser entendido
como uma formulação particular de uma visão partilhada de maneira mais
ampla. Há a geração dita pós-revolucionária que está claramente nessa
problemática: estamos no mundo da prosa e como podemos criar poesia no
mundo da prosa? Há uma primeira grande solução do problema que vai da
Comédia Humana, aos Rougon-Macquart, passando pela obra O enterro em
Ornans, do pintor Gustave Courbet: criar uma epopéia ou uma
monumentalidade da vida moderna extraindo dela a poeticidade que é
imanente em sua própria prosa, no apagamento das fronteiras entre o nobre
e o vulgar. Além disso, há o momento de reação que rejeita essa poesia da
prosa que foi, de algum modo, absorvida pela prosa do mundo.
ADNEN JDEY — É o momento simbolista.
JACQUES RANCIÈRE — Sim. Se considerarmos a conjuntura
francesa, é a grande revolta anti-Zola ou anti-Courbet, o momento de outro
hegelianismo que reivindica a idealidade da arte e busca nos exemplos
tirados do passado – e eventualmente nas formas populares ou mesmo
primitivas – uma oportunidade para reencontrar certa abstração das linhas e
das formas. É o momento que podemos chamar de “sintetista” (synthétiste),
o momento de Mallarmé e de Gauguin. Há neles a vontade de oferecer à
arte suas virtudes de abstração. Mas essa vontade permanece fortemente
ligada à ideia de uma vocação comunitária da arte. Os admiradores de
Gauguin pensam que essa arte anti-impressionista e antirrealista é uma arte
que deve decorar os edifícios públicos em vez de car restrita à pintura de
cavalete. A mesma coisa acontece para o teatro simbolista, que considera
como parceira uma multidão que eventualmente ainda está por vir. Há
também um terceiro momento, aquele da grande poética, unanimista e
simultaneista dos anos 1910-1930, que vai promover novamente um tipo de
fusão da arte e da não arte de uma maneira que é efetivamente diferente,
pois são componentes formais, movimentos e dinamismos que vão se
constituir como a nova aliança entre as formas de arte e os movimentos da
comunidade em construção.
De um paradigma a outro
ADNEN JDEY — O que você descreve como deslocamento do trabalho
estético da arte não pode ser compreendido fora de um quadro mais geral,
que é aquele das subversões das coordenadas do campo de experiência
especí co. Nesse sentido, para surpreender o olhar de Hegel diante das
crianças pintadas por Murillo e compreender em que sentido havia nessa
obra uma subversão das hierarquias, seria preciso passar por um outro olhar,
aquele dos conservadores do Louvre, surpresos diante das Madonas, das
Vênus, sem saber o que fazer desses despojos de guerra relatados pelos
exércitos revolucionários. Entre o livro O destino das imagens e as cenas
descritas em Aisthesis não haveria algo em comum que se apresenta no nível
dessas transformações da natureza do olhar dirigido sobre as obras, sobre o
que é possível de ver nelas, de dizer sobre elas e sobre o que às vezes
podemos fazer a partir delas?
JACQUES RANCIÈRE — Dito isso, apesar de tudo, há efetivamente
algo que atravessa o livro Aisthesis: trata-se de colocar em questão o modelo
ativo-passivo e a relação do olhar do espectador diante de tudo isso. Tento
mostrar, por exemplo, que a questão da apreciação da pintura e de suas
transformações não tem nada a ver com a passagem da guração à
abstração, mas se inscreve em uma história mais fundamental de
transformações do olhar e passa por certo número de paradoxos. É esse o
caso quando os conservadores do Louvre, na França revolucionária, desejam
fazer um uso político e moralizador da pintura. Para isso, eles são obrigados
a desconsiderar o assunto, muito pouco revolucionário e muito pouco moral
das pinturas que expõem. Um olhar abstrato sobre a pintura nasce como
consequência de uma vontade de pintura educadora dos cidadãos. Essa
re exão está no livro O destino das imagens, que não retomei em Aisthesis,
mostrando como a crítica de arte no século XIX criou um olhar “abstrato”
sobre uma pintura que é perfeitamente gurativa, um olhar “abstrato” que
precede e torna possível a pintura abstrata. Se pensamos na história das
transformações da pintura sem considerar esse tema da transformação dos
olhares, não poderemos avançar muito sobre a questão da relação guração-
abstração, nem tampouco poderemos avançar na questão da transformação
dos modelos pictóricos nas artes do século XIX e do século XX, na questão
da estética e das histórias ou cções da arte. Por trás do que chamamos de
“representação”, há certo tipo de olhar ligado a certo tipo de apresentação
sensível que se relaciona, por sua vez, a certo modo de exposição. Se
mudamos o modo de exposição e de percepção, saímos da lógica
representativa, ainda que estejamos sempre lidando com cenas de cabaré,
com madonas ou com pessoas que produzem compotas de frutas.
ADNEN JDEY — Tenho a impressão de que aquilo que você associa à
lógica representativa é outra coisa, diferente do que alguns lósofos
entendem pelo conceito de “representação”. Ainda que esse conceito apareça
em sua re exão como um modo de funcionamento hierárquico dos gêneros,
ajustando certa forma de expressão a certo tipo de tema, ele não é um
conceito opositivo que serve para explicar, pelo viés negativo, as
transformações de paradigma ou os critérios da arte moderna.
JACQUES RANCIÈRE — O conceito de “representação” não aparece
em meus textos como um conceito metafísico global que designaria , como é
o caso de outros colegas, uma gura inferior do pensamento ou da arte. O
que tento fazer em meu trabalho acerca da estética é conferir à ideia de uma
arte “representativa” certo número de critérios que são critérios imanentes
de um regime de pensamento da arte. A noção de representação não é mais
de nida por mim em oposição às noções de presença, apresentação, essência
ou realidade. Ela é de nida com relação a certo número de modelos teóricos
e de critérios práticos próprios a esse regime da arte: por exemplo, o modelo
do corpo orgânico, do agenciamento de ações e da concepção aristotélica de
ação, das regras clássicas de divisão de gêneros, de conveniência entre o
sujeito, o gênero e a expressão. Representação, para mim, não é um conceito
chave em Aisthesis, mesmo de maneira negativa. Esse livro descreve um
regime da arte que opera a crítica pelo fato, a destruição do regime
representativo, mas não a partir de certo número de oposições metafísicas,
como a ideia que vai impregnar o sensível em Badiou, ou a presença contra a
representação sob a forma modernista, deleuziana ou merleau-pontiana.
Isso não tem relação alguma com a crítica da representação segundo um
modo derridiano. Eu me interessei apenas pelos critérios imanentes que
fazem funcionar um regime de experiência. Há, a cada momento, uma
forma singular de existência sensível que vem modi car a paisagem do
sensível: a diferença entre o prosaico e o artístico, o ativo e o inativo, o
movimento e o repouso, o mecânico e o vivente, etc. Isso signi ca que
Aisthesis, como o conjunto daquilo que pude escrever, opera a crítica das
mises en scène clássicas da questão da arte moderna. O esquema de uma
passagem da representação à presença me parece algo simplista, de uma
incomensurável ingenuidade.
ADNEN JDEY — O que encontramos em Aisthesis é também outro
esquema de passagem. Digamos que seja o deslizamento entre dois
paradigmas: de um paradigma da arte fundado sobre a fabricação, passamos
a um paradigma fundado sobre o olhar.
JACQUES RANCIÈRE — Sim. Por exemplo, considere o capítulo
sobre Rodin, à partir do texto de Rilke. Tal como o descreve Rilke, o
escultor se torna primeiramente alguém que observa atentamente e que
captura, de relance, a potência de um gesto. Se considerarmos o capítulo
sobre a fotogra a, eu também analiso esse deslocamento: ou seja, o
momento no qual a superioridade do artista (que cria algo com seu pincel)
sobre o fotógrafo (que aperta um botão) é derrubada. Assim, a virtuosidade
do gesto pictural ainda é um trabalho da mão; o fotógrafo é dispensado
desse trabalho manual. O que conta é seu olhar que capta o lugar e o
momento exatos. Ao longo de uma época, o fotógrafo desejou provar sua
qualidade de artista adulterando as impressões, arranhando negativos,
apagando o que o clichê tinha de mecânico. Depois há essa inversão: a foto
é reconhecida como arte não por meio desses artifícios, mas em nome do
primado do olhar sobre a mão.
ADNEN JDEY — Esse ponto me conduz a outro aspecto de Aisthesis, a
outro paradigma que seria fundado sobre o corpo cênico e sua fragmentação,
desde o Torso de Winekelmann até a questão da montagem cinematográ ca,
passando , entre outros, pelas acrobacias dos Hanlon-Lees e as comicidades
de Charles Chaplin, ou pela super marionete de Craig. Trata-se, a cada vez,
de mostrar como certa con guração, gestual ou não, desfaz os paradigmas
da ação dramática. Poderíamos pensar a história do regime estético da arte
como a história de todas as metamorfoses que afetaram esse corpo orgânico?
JACQUES RANCIÈRE — Em todos esses casos, o que está em questão
é a fragmentação do corpo da beleza clássica; é a crise do paradigma
representativo das artes sob esses dois aspectos fundamentais, a saber: o
modelo orgânico e o modelo causal. O modelo causal do arranjo de ações
necessário ou verossímel, e o modelo do corpo bem constituído com todos
os seus membros e a cabeça que os comandava, estavam sempre juntos
desde Platão e Aristóteles. Funadamentalmente, podemos dizer que as
cenas exploradas em Aisthesis são as várias maneiras de estudar a forma
como o corpo da beleza clássica se encontra fragmentado de diversas
maneiras, negado, desviado ou esvaziado. É a exaltação, por Winckelmann,
de uma estátua sem membros e sem cabeça, o elogio de Hegel aos pequenos
mendigos que estão à toa, ou ainda o privilégio, em Stendhal, do momento
no qual o herói deixa de desejar; é o teatro imóvel de Maeterlinck, o teatro
sem atores sonhado por Craig, a dançarina que constrói seu espaço em Loïe
Fuller vista por Mallarmé, a pantomima absurda como paradigma poético
em Banville; as ações fragmentadas de Rodin, o privilégio que o olhar
assume sobre a mão na fotogra a ou a sinfonia de movimentos em Vertov.
São várias maneiras através das quais o modelo de agenciamento de ações é
revogado ou deslocado.
ADNEN JDEY — Apesar de sua reticência com relação aos modelos
vitalistas do corpo, você considera certas formas da dança moderna do
século XX para colocar em cena a constituição de certa idealidade do
movimento que se opõe às idealidades clássicas do arranjo de um corpo
cênico completo e ativo. Você nos lembra que uma dimensão essencial dessa
idealidade vem da desfuncionalização dos gestos. Se a saída do regime da
expressão abre o corpo cênico sobre os momentos nos quais ele não faz
nada, nos quais não acontece nada, não estaríamos próximos da hipótese de
uma “ociosidade coreográ ca”?
JACQUES RANCIÈRE — Você faz alusão ao livro de Frédéric
Pouillaude27.
ADNEN JDEY — Exatamente.
JACQUES RANCIÈRE — O que ele chama de “ociosidade” parece-me
corresponder à lógica geral do regime estético da arte. De um lado, não
acredito que exista uma especi cidade radical da dança. Ela também passou
por transformações que afetaram outras artes. Se pensarmos no que
aconteceu no século XVIII, há um momento no qual a crítica do modelo
clássico passa por uma dança que se pretente hiperexpressiva, pela
restauração da pantomima. Há um momento em que a dança se a rma
contra certa ociosidade: ela deve fazer história; ela deve produzir-se como
obra e se a rmar como um drama. Isso é o que acontece na época de
Noverre, que corresponde ao que ocorre no teatro com Diderot. Ao longo
do século XIX, a dança é considerada dentro do modelo do ballet, que conta
uma história. Em seguida, o que acontece com a dança é um pouco parecido
ao que aconteceu com o teatro “imóvel”. O que parece importante naquele
momento é, como a rma Mallarmé, produzir um espaço, em vez de contar
uma história. Loïe Fuller não conta uma história, ela desenha formas
miméticas. Isadora Duncan inventa uma dança livre da história, mas é uma
dança que vai procurar seus modelos na dança antiga, a dança grega que
remete a uma espécie de modelo – platoniciano – do povo coreográ co. De
outro lado, é verdade que a dança, mais do que o teatro, possui essa
possibilidade de não contar uma história. É muito difícil que uma peça de
teatro ou um lme deixem de contar uma história, pois são, apesar de tudo,
artes da narração. A dança possui a possibilidade de ser apenas um conjunto
de movimentos, mas isso pode assumir várias guras. A noção de
“ociosidade” conceitua, na verdade, a maneira por meio da qual a dança
soube, com seus próprios meios, desfazer um paradigma do corpo orgânico
e ativo. Ela desfez o corpo atuante clássico, em particular no século XX,
abolindo, ao mesmo tempo, a narratividade dos movimentos e sua
funcionalidade, dissociando as partes do corpo e fazendo com que elas –
mãos, braços, pernas – pudessem, cada uma, funcionar de maneira diferente.
Mas nesse ponto estamos ainda em uma espécie de exploração dos possíveis,
mas que não é um destino ligado a essa arte em si mesma. Se pensarmos
nessa singularização das partes do corpo, ela já é, no século XIX,
característica do ensinamento de Delsarte, que a coloca a serviço de uma
expressividade de cada parte do corpo e, portanto, de um modelo
hiperexpressivo. De modo contrário, no século XX essa singularização vai
servir a dissociar as partes do corpo e a fazer com que gestos diferentes
possam emanar do mesmo corpo, sem serem coordenados por uma
signi cação. Há, se dúvida, um núcleo fundamental: a dança em si mesma
não conta uma história e, então, se dedica a produzir todos os tipos de
coisas. Isso pode se tornar um tipo de grande des le de ginástica, indo em
direção à performance, em direção a formas de exploração
desfuncionalizadas das possibilidades do corpo. Há uma multiplicidade de
possíveis que a ideia da ociosidade não é su ciente para resumir.
È
JACQUES RANCIÈRE — O trançado entre a palavra e as formas
permanece efetivamente essencial, porque o que “faz mundo” é sempre,
apesar de tudo, uma tessitura entre o que é percebido e a palavra. Mas
quando a teoria clássica – que construía a correspondência das artes a partir
da poesia – entra em colapso, o que aparece, ao mesmo tempo, é que o
efeito sensível da pintura, ou do cinema, passa pelo discurso sobre a pintura
ou sobre o cinema.
È
JACQUES RANCIÈRE — Há uma tensão extraordinariamente forte
entre o fato que a imagem estética se oferece à todos e uma vontade de
utilizar as imagens para mostrar isso ou aquilo. Há aí uma tensão não
resolvida. Para compreendê-la, se retomarmos o dissenso entre Vertov e
Eisenstein, o que era reprovável em Vertov, naquela época, era uma poética
panteísta, unanimista, whitmaniana. Era a ideia segundo a qual podemos
construir um imenso poema coletivo, ligando todas as imagens. O que
acarreta, de um só lance, que elas percam sua característica de imagem, de
representação. De outro lado, você tem as declarações provocadoras de
Eisenstein, segundo as quais o cinema é um trator que trabalha os cérebros
soviéticos e, como consequência, toda imagem deve ser construída em sua
relação a uma outra imagem para produzir tal ou tal tipo de signi cação.
Em um e outro caso, há uma tendência a suprimir as resistências da
imagem, seja ao fazer um movimento em direção à Vertov, seja acionando
um elemento linguístico em direção à Eisenstein.
ADNEN JDEY — Mas, acerca dessa relação entre uma imagem e outra,
estamos certos que de falamos aqui sobre a mesma coisa? O que chamamos
comumente de “imagem” não encerraria várias funções diferentes, e mesmo
opostas, e cujo entrelaçamento ou dissociação constitue o trabalho sensível
da arte? A qual nível seria conveniente de apresentar o problema: no nível
do valor de verdade da imagem, ou no nível se deu valor de uso? Os grandes
manifestos do cinema que, nos anos 1920, defendiam a identidade do olho e
da máquina, não teriam, de alguma maneira, conduzido àquilo que se
dispõe hoje nas artes visuais, com a chegada das novas tecnologias?
JACQUES RANCIÈRE — Sim, e estamos em uma espécie de tensão
sem m que encontramos hoje, sobretudo na arte das instalações. De um
lado, há uma multiplicidade de imagens que não revelam seu sentido e que,
consequentemente, podem adquirir uma multiplicidade de sentidos.
Certamente há práticas pedagógicas que, em cada imagem, querem dizer
quem a fez, ou como, por que, o que quer dizer tal imagem, para que serve o
que ela mostra, o que ela parece dizer, o que ela diz de fato, etc. E depois,
há práticas locais, práticas de artistas, que dizem que ao juntar tal e tal
imagem, podemos construir tal ou tal cena. São tensões que reencontramos
na arte contemporânea. De um lado, temos essas instalações com vários
monitores de vídeo, onde toda uma população se expressa. Penso aqui na
instalção Küba, de Kutlug Ataman, que fala de um bairro em Istambul: há
dezenas de monitores por leiras, cada monitor mostra um habitante
contando sua história e, de monitor em monitor, essa experiência se torna
ingovernável. Mas como nenhum espectador vai ver juntos os quarenta ou
cinquenta monitores, ele vai construir um sentido acerca do que viu, seu
próprio sentido. Além disso, na outra ponta do espectro, há as
videoinstalações ou os lmes de um artista como Harun Farocki, que diz
que ele vai se debruçar sobre tal ou tal imagem. Por exemplo, no lme A
Saída dos Operários da Fábrica (Les ouvriers sortent de l’usine, 1995), Farocki
vai examinar cenas oriundas de vários lmes para nos dizer o que elas
mostram e o que escondem, mas não a partir do modo policial de uma
imagem que confessa à que ela serve, mas sob um modo de investigação que
visa a boa interpretação acerca do papel da imagem. Ou no lme Imagens do
mundo e inscrições da guerra (Images du monde et inscriptions de la guerre,
1989), em que o intuito é re etir sobre essas imagens da aviação norte-
americana, que lmaram o campo de Auschwitz sem vê-lo. Há tantas
imagens, tantas coisas que elas podem dizer e, nalmente, há uma
proposição de interpretação que é feita a partir dessas imagens e das coisas
mostradas. De um lado, a proposição quer estabelecer uma tese: por
exemplo, a de que o cinema está ligado, desde o início, às saídas das usinas.
De outro lado, contudo, ela deixa em suspenso a questão de saber o que isso
quer dizer. Assim, há uma pedagogia do dispositivo que não é, ao mesmo
tempo, uma pedagogia da lição do dispositivo. É um exemplo entre uma
multiplicidade de exemplos possíveis. Em uma exposição, alguém pode ser
confrontado com várias proposições visuais a partir das quais o sujeito vai
construir o que ele quiser, ou, por outro lado, não vai construir nada, apenas
“zapear”. O artista propõe um dispositivo perceptivo, que é construído e, ao
mesmo tempo, é livre quanto às conclusões que podemos extrair dele. Mas
há também a posição do artista como pedagogo, como único pedagogo
autorizado, que vai martelar que essa imagem diz tal coisa e só pode dizer
isso. No fundo, não estamos mais em um regime de destinação das imagens.
Essa não destinação conduz, ela própria, seja ao dispositivo aberto a partir
do qual cada um é quali cado para elaborar enunciados à sua maneira, seja
ao dispositivo fechado que deseja instruir o espectador e instruí-lo
principalmente sobre os limites de sua capacidade de ver.
ADNEN JDEY — Acerca desse ponto, a questão de saber quem é
quali cado para ver e para dizer o que é dado pode se complicar com um
elemento a mais. Se a cena da capacidade espectatorial pode ser inventada
quando separamos o sensorium da arte e a regra do jogo que de ne
inicialmente o consenso, essa separação signi ca duas coisas. De um lado,
isso quer dizer que as fronteiras entre a legibilidade e a ilegibilidade das
imagens se tornam permeáveis ou menos embaçadas para os espectadores,
de modo que o mínimo que podemos dizer é que eles não sabem o que
foram buscar em uma exposição. De outro lado, isso signi ca que essas
imagens não são de fato imagens,mas tornam-se, em consequência, outra
coisa e não mais superfícies de inscrição onde são depositadas evidências
visuais. As imagens atuais se emudecem e fazem emudecer, se é que posso
dizer isso, a partir do momento em que os tangenciamentos entre a
superfície e o olhar, quando um desliza sobre o outro, retiram toda a
legitimidade de sua imediaticidade. Como esses tangenciamentos permitem,
para você, uma oportunidade de repensarmos as transformações
contemporâneas das imagens?
JACQUES RANCIÈRE — É assim que as imagens funcionam
atualmente. Não estamos mais em um regime de evidência visual.
Aprendemos a ler as imagens em referência à outra leitura possível. Aí está a
herança da fotogra a, do cinema, de todas as formas de vínculos entre as
imagens e suas interpretações. A evidência “imediata” não é mais imediata,
mas, de agora em diante, ela é mediada por um tipo de decisão de renúncia
à interpretação. E a pintura é, cada vez mais, pintura sobre a pintura,
paródia da pintura. Pensemos no sucesso de coisas que são, a meu ver, nulas,
nesses artistas de países ex-soviéticos que reciclam as técnicas e as formas de
guração aprendidas nas academias sob a forma de deboche, de derrisão, de
arte pós-pop – a derrisão do poder sendo reciclada em uma derrisão da
mercadoria. Pensemos em todas as pinturas e esculturas que nos mostram
Lênin com o Mickey Mouse, ou em formas de dramatização sobre o modo
realista dos pintores da Alemanha oriental, como o pintor Neo Rauch, toda
essa pintura gurativa próxima de um grande espetáculo, pintura reciclada
que se apresenta como pertencente à história das transformações da pintura,
à história das relações entre a guração pictórica e todos os modos de
guração dos regimes, das ditaduras. Há aí um empilhamento de
interpretações que desa a qualquer visão “presenteísta”. Considere a
exposição Voici, de ierry de Duve: ele precisava inserir no regime do
“voici” (aqui está) alguns tipos de instalação que só ganhavam sentido pela
distância assumida com relação à outra apresentação possível. Há, portanto,
creio eu, uma grande di culdade atual de estar na presença de algo que se
apresenta como pura presença. Essa é a razão pela qual a pintura que é
apresentada nas Bienais, nas exposições é, apesar de tudo, majoritariamente
gurativa e amplamente pós-política.
ADNEN JDEY — Pós-política? Você poderia explicar melhor em que
sentido?
JACQUES RANCIÈRE — Penso em dois tipos de pintura. A pintura
dos ex-países do leste, sobre a qual mencionamos antes, que transforma em
zombaria as imagens de propaganda da era soviética em disparição, ou as
transforma em uma contestação pop que também perdeu qualquer caráter
subversivo. Mas penso também em certas formas de pintura de artistas
africanos que queriam ser uma ressurreição dos mitos e dos deuses. Há uma
maneira muito arti cial de jogar com a cultura do país a partir de gurações
mitológicas e de cores exacerbadas. Estou muito impressionado com esse
tipo de neoprimitivismo que vem de artistas que circulam
internacionalmente nas Bienais, enquanto que a pintura autêntica dos
herdeiros dos ditos “primitivos” – penso aqui na pintura aborígene astraliana
– é abstrata! Mas não defendo uma tese com relação à história da arte. Digo
simplesmente qua há uma contradição nessa pintura que se pretende
primitiva reforçando fortemente a guração, a mitologia, as cores
extravagantes. Esse tipo de primitivismo associado aos mitos é ideológico e
não pictural. É apenas isso o que a rmo. O modo como a pintura ainda se
declara atualmente como existente é a partir de uma maneira
hiper gurativa, seja sob o registro mitológico, seja sob o modo posrealista
socialista, ou sob o modo pós pop, ou ainda sob o modo da pintura quase
próxima do tromp l’oeil na tentativa de imitar a fotogra a. É isso: não
apresento nenhuma tese geral sobre a história da pintura e o destino da
representação, mas simplesmente sobre o estatuto da pintura hoje, sobre o
fato de que ela deve nalmente, para adicionar algo à presença, adicionar
algo à representação.
ADNEN JDEY — Ainda que a história da arte não interesse a você
enquanto tal, é impressionante que você a considere como uma história dos
regimes de identi cação da arte. Aliás, você a rma que a história da arte
retoma, em parte e sob sua responsabilidade, os gestos da racionalidade
literária e, por isso, ela se prende (em sua versão iconológica) ao trabalho de
decifrar os signos mudos sobre a superfície pintada, opondo sua latência à
linguagem das signi cações explícitas. Como explicar que essa disciplina
entrelace, ao mesmo tempo, as premissas do regime representativo das
imagens e se associe, sob uma forma crítica, com as coordenadas do regime
estético?
JACQUES RANCIÈRE — A rmo que há essa tensão bastante
singular: a história da arte como iconologia se constitui como contrasenso
do movimento da pintura. No momento que a pintura se separa da
guração, Panofsky desenvolve um método que demanda, para
conseguirmos ver bem o que está sobre uma tela, que conheçamos não
somente as situações e as personagens representadas, mas também o
programa ao qual essa obra respondia, o contexto histórico e cultural, as
signi cações simbólicas, etc. Há também, claro, pensadores como Wöl in
que re etiam acerca das coisas segundo os mod