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GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
www.galenoalvarenga.com.br
Publicações do Autor
Transtornos Mentais
Testes Psicológicos
Medicamentos
Galeria de Pinturas de Pacientes
Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
O Presente
e outros contos
Supervisão Gráfica
Sofia Lopes
Diagramação
Marcos de Oliveira Lara
Capa
Max Guedes (Estagiário)
Revisão
Maria Isabel da Silva Lopes
Impressão
Sografe
Contato c/ o Autor
galenoalvarenga@terra.com.br
www.galenoalvarenga.com.br
ISBN 978-85-907543-4-3
CDD: B869.85
CDU: 869.0(81)-82
Elaborado por:
Maria Aparecida Costa Duarte
CRB/6-1047
AgradecimentoS
Ao Toby,
cãozinho de Juliana e Jussara,
pela sua educação, simpatia, meiguice e doçura.
SUMÁRIO
O PRESENTE.......................................................................................................... 9
CONFIDÊNCIAS À MEIA-NOITE...................................................................... 15
AMANHECER SEM FUTURO:
FORTUNATO E FELICIDADE VÃO ÀS COMPRAS...................................... 23
O PACIENTE DO LEITO 33............................................................................... 29
METAMORFOSE.................................................................................................. 39
A DOENÇA DE RONALDO............................................................................... 47
UMA DIFÍCIL DECISÃO..................................................................................... 55
DESABAFO NA MESA DO BAR....................................................................... 61
A FELICIDADE MORA AO LADO..................................................................... 67
Num quarto do hospital......................................................................... 73
A HISTÓRIA TOMOU VIDA PRÓPRIA............................................................ 79
ESQUIZOFRENIA E ELEFANTE......................................................................... 89
PIEDADE: UMA HISTÓRIA SIMPLES............................................................. 95
MEUS CABELOS!.............................................................................................. 101
A INVESTIGAÇÃO DO ÍNDIO SURDO......................................................... 117
O JULGAMENTO FINAL DE CARÍCIO PENA.............................................. 121
O ASSASSINATO DO AMANTE DE REGINA............................................... 127
O ASSALTO......................................................................................................... 161
ÂNGELA............................................................................................................... 167
O DELÍRIO DE JÉSUS...................................................................................... 173
O FELIZ ENCONTRO INDESEJADO.............................................................. 181
DESESPERO DO EXECUTIVO J. S................................................................. 191
INALDA................................................................................................................ 195
A VINGANÇA DE OTÁVIO PARPANTE......................................................... 199
O PASTOR E O BANDIDO.............................................................................. 211
UM HOMEM ÀS AVESSAS............................................................................. 217
CENAS DE FIM DO NAMORO....................................................................... 223
A MORTE DA FUNCIONÁRIA......................................................................... 233
UMA CHEIRADA NO CANGOTE................................................................... 239
O PRESENTE
— Até logo.
Paulo continuava a pensar em sua amiga. Discutia consigo se
devia ou não lhe telefonar. Precisava falar com alguém a respeito
dela. Tinham sido amigos quando jovens. Maria, após estudar em
Belo Horizonte, foi para o Paraná, onde morava sua família. Mais
tarde, casou-se. Separou-se há cinco anos. Paulo a imaginava bo-
nita, alegre e espontânea, como era quando se conheceram. Ela
sempre gostou de ler, frequentar teatro e cinema. Talvez ainda
esteja capaz de aguentar e de manter, por horas, uma conversa
animada. A corrente de pensamentos de Paulo novamente foi in-
terrompida pelo telefone, que volta a tocar.
— Professor Paulo, aqui é sua ex-aluna Fátima. Desculpe-me
incomodá-lo às onze horas da noite. O senhor deve estar cansado...
mas acontece que preciso conversar com alguém como o senhor.
Como sabe, larguei meu marido há quase um ano. A princípio,
fiquei feliz por ficar livre do Haroldo. Entretanto, a cada dia mais,
sinto-me terrivelmente só. É muito ruim para uma mulher não ter
um homem para conversar, sair, jantar fora ou mesmo transar. Es-
tou desesperada. Ontem eu o vi. Ele caminhava junto com uma
mulher. Não sei quem é: sei que é mais feia e mais velha do que eu.
Mulher observa muito as outras. Além disso, é muito magra para
meu gosto. Se for uma namorada, ele escolheu mal. Mas diabo!
Mesmo assim fiquei com ciúmes. O que devo fazer para ficar livre
do fantasma do Haroldo?
— Isto acontece, Fátima. Toda separação é parecida. A pes-
soa, ao se separar, lembra-se das coisas ruins que aconteceram
e, portanto, fica alegre e eufórica. Após um certo tempo, as coi-
sas mudam. Começa a lembrar também dos bons momentos que
passaram juntos. Aí a pessoa fica triste. Eu, como você sabe, sou
separado há seis anos. Creio que já me acostumei um pouco com
a vida longe da ex-mulher e filhos. Mas, outro dia, recebi um tele-
fonema de uma antiga amiga. Ela contou-me...
— É! O senhor compreende mais do que minhas amigas esse tipo de
problema. Tem uma experiência pessoal, sabe como é difícil viver só.
Galeno Procópio M. Alvarenga - 19
Hoje não sei bem se ela existe, ou não. Converso muito co-
migo sobre ela. Não sei se vocês estão me entendendo. Ronaldo
sabia mais a seu respeito do que aquele médico novato. Ele já tinha
ouvido dezenas deles e não esperava mais nada de nenhum.
— Deve ter alguém - objetou o médico sem ouvir sua história
queixosa e desinteressante. — Não pode ficar sozinho, nem andar
sem auxílio, poderá morrer a qualquer hora. Os exames são obje-
tivos, reais, não falham. Hoje ainda faremos outros me certificar.
Entendeu? O já sabido... Acredita em Deus? Reze um pouco, lhe
fará bem... nada melhor nesses casos.
— Sim e não. O meu Deus é o antigo, morreu. Hoje, meu
Deus vive dentro de mim, só cuida dos meus problemas, não de
outras pessoas. Ele só compreende minha linguagem particular.
Nove horas da noite. Ronaldo está no apartamento, espera so-
litário talvez a morte. Chega o médico cansado e um pouco rouco,
ainda com cheiro de cigarro saindo de sua respiração.
— Tudo como imaginei. Amanhã cedo, no mais tardar, à tar-
de, cirurgia.
— Mas, doutor, preciso ir a casa. Não trouxe roupas. Nada!
Nem a escova de dentes. Além disso preciso trocar a água e a comi-
da do meu cão e do ratinho de estimação, eles moram comigo. Não
tem ninguém em casa para ajudá-los. Se não, eles morrem.
— Não. Não convém, seu caso é grave. Você vai salvar os
animais e poderá morrer...
— Mas, doutor... é... o pior é que... nem talão de cheque eu
trouxe, falou rápido.
— Certo, concordou o médico. Já que não tem ninguém, vá
com cuidado, não suba escada, não faça esforço, não fique preocu-
pado. A emoção poderá ser fatal. Você poderá morrer... já lhe disse,
pode ter outro enfarte. Teve sorte de ter escapado desse. A enfer-
meira vai levá-lo até a portaria no carrinho e chamará um táxi.
Ronaldo ora, usa suas palavras próprias só para Ele. Conversa
nos momentos difíceis com seu Deus particular, que não se comu-
nica com mais ninguém... O médico retorna à conversa:
52 - O Presente e Outros Contos
Primeiro:
Nesse instante, a dor violenta chegou mais forte do que nun-
ca. Ronaldo contraiu-se todo, tentou agarrar a maçaneta da porta
do banheiro, mas caiu no chão e começou a ter contrações em
todos seus músculos. Assim permaneceu por um a dois minutos.
Depois descansou, sem ter tido tempo de alimentar seu rato e cão,
que o esperavam ansiosos.
Segundo:
Pensativo, ainda sem se decidir, Ronaldo foi até seu pequeno
escritório procurar uma pequena lista de endereços necessários.
Decidiu fazer uma ligação para um antigo amigo cardiologista.
Galeno Procópio M. Alvarenga - 53
Por sua vez Carmen, ferida com a traição e talvez por vin-
gança, seduziu um mulato novo e bonito, entregador do armazém
onde fazia as compras. Animada pela raiva, sentindo-se mais corajo-
sa, trouxe-o para dentro de casa inúmeras vezes durante as ausên-
cias do marido.
A traição de ambos espalhou-se por toda Itazul, pois não havia
como esconder os encontros numa cidade tão pequena. Comentava-
se que Carmen agia daquele modo apenas como revanche. Ela dese-
java que todos da cidade soubessem de sua conduta, mais que um
desejo de conquista ou de amor pelo entregador de mercadorias do
supermercado.
Não faltaram telefonemas anônimos, conversas diretas para o
marido traído, terminando na descoberta feita pelo Dr. Sílvio dos
acontecimentos. Novas brigas e separação do casal. Ao mesmo
tempo ameaças de um e outro lado, mas felizmente sem agressões
e mortes. Não durou muito tempo o desacordo, houve, sim, um
retorno à paz, um armistício selado com cervejadas, adoradas por
ambos. Para comemorar a paz recente entrelaçada de juramentos,
os dois deram uma grande festa e como convidados especiais esta-
vam o entregador do armazém e também Sílvia. Houve ciúmes de
parte a parte, novas brigas e um novo juramento de paz eterna. A
filha, após participar da festa, ficou mais alguns dias morando com
o casal que estava num astral elevado e, em seguida, retornou à
capital.
Posteriormente, passados alguns meses, ocorreu um fato
novo e que teve consequências surpreendentes. Dr. Sílvio, uma vez
indignado e envergonhado devido à traição da esposa e também
amargurado e deprimido pelo afastamento de Sílvia, aumentou a
quantidade da bebida ingerida. Podemos afirmar que ele passava
grande parte do dia acamado. Assim sendo, pouco ia ao consultório
trabalhar, isto é, tratar de um ou outro cliente que o procurava. Por
sua vez, Carmen também não se sentia bem. Ela sempre sofria, mui-
to quando percebia seu marido triste ou adoentado. Assim, os dois
adoeceram depois dessa série de desencontros.
60 - O Presente e Outros Contos
SEMANAS DEPOIS
Eu não sabia bem como e o que iria inventar. Notei uma mu-
dança em sua fisionomia ao falar acerca de riqueza e poder, pois
são os pontos centrais para Haroldo. Assim foi nascendo e crescen-
do o fazendeiro rico e o bonito dentista de Itabira.
— Seu ex-marido ficou interessado por muito tempo, não foi?
— Claro. O interesse e desespero dele, vendo-me tomada
pelo dentista fazendeiro, foram crescendo. Animada, fui contando
outros fatos, pormenores que deram mais veracidade à mentira.
Primeiro tive que dar um corpo ao fazendeiro e, para isso, falei
que era um esportista, que havia sido atleta quando mais jovem.
Nessa ocasião ele disputou várias corridas e ganhou diversos prê-
mios. Ao largar o atletismo, continuou a praticar exercícios físicos
e, para isso, construiu uma pequena academia de ginástica em sua
fazenda. Todas as manhãs, após dirigir a retirada de leite, toda ela
feita com aparelhagem supermoderna, ele se dirige à academia e
lá fica malhando por mais de uma hora antes de ir para seu consul-
tório. Ele me contou que trabalha de dentista por lazer.
— Seu marido deve ter ficado inseguro com um grande concor-
rente, pois ele gosta de coisas modernas e de riqueza...
— Criei um forte adversário para ele. Inicialmente com um
belo físico. Meu marido não fica para trás, não. Depois inventei um
gênio para o dentista fantasma.
— Mais extrovertido?
— É... pois o desinibido é mais perigoso, avançado, impulsi-
vo. Não fica bem um tímido e quieto. Descrevi o dentista/fazendei-
ro como falante, galanteador, dançarino e tocador de violão. Além
disso, cantava em festas. Sua voz é forte e agradável de ouvir. Ao
mesmo tempo descrevi o dentista como discreto, capaz de ficar
calado quando necessário. Eu sabia o que meu marido valorizava
e baseada nos seus valores, criei a vida do fantasma, que, segundo
Haroldo, queria me namorar. Seguindo o valorizado por Haroldo,
criei quase um Deus.
— Você foi construindo um personagem que jamais imaginara.
— Construí um dentista fazendeiro rico, elegante, simpático
e bonito. Nós sempre temos em nossas mentes ideias de homens,
Galeno Procópio M. Alvarenga - 85
sar dos dias, ela ficou sem forças para lutar e sua vida perdeu o
brilho que tinha.
Quando ela perguntou para uma enfermeira o que fora feito
de seus cabelos, esta não lhe deu importância, pois tinha mais coi-
sas a fazer. De fato, os cabelos, à medida que foram caindo, foram
sendo jogados fora.
O dia da alta foi se aproximando. O Dr. Amin, bem como
toda a equipe, orgulhosos pelo belo resultado foram-se despedir
da paciente. Teresa, há alguns dias, mostrava um olhar vago e qua-
se nada falava. A equipe médica, eufórica com o sucesso, não per-
cebeu a expressão de desespero de Teresa.
Diante de todos, ela, antes de se aprontar para deixar o hos-
pital, ainda no leito pediu um espelho para se olhar. Prontamente
uma companheira de enfermaria lhe entregou um pedaço de espe-
lho, o suficiente para que ela não se reconhecesse como Teresa.
Seu maxilar contraiu-se diante de todos.
Duas lágrimas silenciosas desceram suavemente de seu rosto
comprido, abandonando seus pequenos olhos. Os médicos abai-
xaram a face, envergonhados com o que presenciavam. Ao ver sua
cabeça sem cabelos, sua fisionomia, que já estava séria, tornou-se
sombria. Havia pavor na sua face. Os médicos, sem saber o que
fazer, apressaram a despedida. Sorriram confusamente para ela e a
abraçaram. Lentamente foram caminhando para ver outro pacien-
te, na mesma enfermaria.
Teresa poderia sair ainda naquela manhã. Firme, apoiada no
seu ódio, levantou-se, a princípio vagarosamente. Desequilibrou-
se aos primeiros passos e apoiou-se na enfermeira que a auxiliava.
Ganhou forças, através de sua ira, ao passar novamente a mão pelo
crânio e sentir a ausência de cabelos. Firmou-se mais, pouco a
pouco. Agora, já conseguia caminhar sem o auxílio da enfermeira,
pelas suas próprias pernas.
Caminhou mais pela enfermaria. Foi de um canto ao outro,
como se estivesse medindo sua força futura. Suas feições foram
mudando. Foi ficando mais calma e segura quanto aos seus planos.
116 - O Presente e Outros Contos
não ocupar um lugar no Mundo Celestial. Como todos que por ali
passam, Carício estava trêmulo diante de tantas autoridades impor-
tantes e da grande plateia que assistiria ao julgamento.
Ele recuperava memórias acerca de sonhos ocorridos na Ter-
ra, sonhos esses que geralmente deram errado.
A leitura dos autos não demorou muito, sua vida fora muito
simples. Depois, o advogado de defesa, constantemente interpe-
lado pelo juiz que pedia maiores detalhes, foi contando a vida de
seu cliente, a sua paciência e resignação, sua bondade, seu sofri-
mento. A plateia começou a bocejar devido à falta de cenas emo-
cionantes nos relatos. Sua história era muito pobre... O advogado,
percebendo o desinteresse dos presentes e também dele próprio,
arrependido de ter aceito uma causa tão simples e sem atrativos, e
esforçando-se para ficar um pouco mais animado, relatou que, cer-
ta vez, o seu cliente salvou um senhor que fora atacado por um boi
bravo que era levado ao matadouro. O senhor, agradecido por esse
gesto de coragem e bondade, o convidou para um casamento em
sua fazenda e, durante a festa, arrumou-lhe um casamento com sua
lavadeira. Mas os fatos em que Carício participava geralmente da-
vam errado. Em outras palavras, Carício era um “pé frio”. O senhor
ficou devendo a um e outro e finalmente perdeu tudo que tinha e
também adoeceu e morreu. A mulher com quem Carício se casou,
após trai-lo com o boiadeiro da fazenda, abandonou-o, deixando
ainda um filho de dezoito anos para ele criar, um filho que não era
dele. O filho, depois da saída da mãe e após arrumar uma amante,
expulsou-o de casa, quando então Carício foi morar no cômodo
imundo na Vila. Entretanto, nunca reclamou nada de ninguém e
nem de sua má sorte. O advogado continuou seus relatos:
— Há dois anos ele foi atropelado por uma carroça, mas, como
sempre, não acusou ninguém, ao contrário, ficou envergonhado
de ter sido atropelado e desculpou o cocheiro por seus erros.
Nesse instante, o poderoso e temível promotor esboçou uma
acusação, pigarreou, tossiu e desistiu de continuar. Calou-se. O ad-
vogado de acusação, por indolência ou pessimismo, faltou à sessão.
126 - O Presente e Outros Contos
Preso por uns dias, até que fosse assinado o habeas corpus,
por ser réu primário e ter bons antecedentes e residência fixa, o
comerciante Afonso Elias estava transtornado com o acontecido.
Uma vez detido, foi aprisionado na cadeia comum de Lunó-
polis, uma prisão quase sempre vazia, abrigando apenas, no má-
ximo por um a dois dias, homens detidos devido ao excesso de
bebida, briga no bar ou na rua, roubo de galinha durante a noite ou
de laranjas no supermercado e quintais.
O crime de Afonso Elias foi mais sério e teve mais repercus-
são. Quando praticou seu crime, tinha completado 48 anos, era ca-
sado, tinha três filhos, todos homens. Afonso Elias era comerciante
de roupas prontas, vendia também calçados e arreios. Passava gran-
de parte do dia na sua loja, com muito pouco movimento. À noite,
junto aos amigos, jogava “Marimbo”, um jogo simples de baralho,
preferido pelos homens da cidade. As reuniões seguiam um horá-
rio pré-determinado: começavam às 6:30 horas e terminavam às
9:30, todas as noites. As apostas, nesse jogo semifamiliar, eram pe-
quenas. Jamais se teve notícia acerca de um ou outro companheiro
de Afonso Elias ter ganho ou perdido suas economias no jogo.
Durante o jogo, mais que apostar para ganhar dinheiro, ele e
seus costumeiros companheiros discutiam e comentavam os fatos
da cidade, as brigas, os adoentados, os falecidos, quem comprou o
quê e de quem, as mulheres fáceis de serem conquistadas e as que
tinham amantes escondidos, os candidatos a vereadores ou prefei-
to, ou seja, os mexericos da cidade.
128 - O Presente e Outros Contos
com suas duas mãos finas e delicadas os dois lados da cabeça do ra-
paz, aproximou seus lábios aos dele, apertando-o contra seus seios
e abraçando-o com todo o calor e vigor possível. Nesse instante,
ela pôde perceber dentro de si uma reação física que nunca tinha
experimentado e então beijou-o demoradamente.
Nesse instante, mais animado e excitado, mas ainda amedron-
tado, Pedro, procurou, após beijá-la, escapar dos abraços de Regina
o mais rápido possível e sair pela porta da cozinha que dava para
o terreiro.
— Não gostou? Então peço mais uma vez perdão. Acho que
fui uma tonta. Não devia ter feito isso.
— Não! Ao contrário. Gostei! É que estou assim, sujo, fico
sujando a senhora. A senhora parece que tomou um banho agora,
está cheirando um cheiro gostoso...
— Verdade? Não está achando ruim? Nesse momento ela
aproximou-se novamente de Pedro, chegando o rosto dela muito
perto do nariz dele, encostando-o em seguida.
— Tá cheirando, a senhora é muito bonita - gaguejou o rapaz.
— Obrigada! Fala a verdade? Que bom! Há anos que ninguém
me fala isso. Mas pare de falar “a senhora”, me chama de Regina.
— É que já me acostumei. Vou tentar. Dava a impressão que
Pedro queria sair dali logo, iniciar seu trabalho, escapar de algum
perigo sério.
Regina deixou-o sair, mas antes pediu-lhe:
— Dê-me mais um beijo antes de ir trabalhar, senão não dei-
xarei você sair...
Pedro, sorrindo e sem graça, a abraçou e lhe deu um grande
beijo que durou alguns minutos. Em seguida, transpirando e res-
pirando fundo, o coração disparado, abriu a porta e saiu camba-
leando pelo terreiro da casa. Regina, encostada na porta, quieta,
olhava para ele, feliz com tudo que havia feito. Estava, sem dúvida,
apaixonada por aquele homem pelo qual ela se transformou, logo
no primeiro dia que o viu. Seus olhos encheram-se de lágrimas à
medida que ele se distanciava de seu olhar.
144 - O Presente e Outros Contos
car a dívida que ela tem comigo, que é de trinta reais, por um che-
que de oitenta reais. Este cheque é de outra pessoa e vai vencer
em janeiro. Eu ficaria com o cheque e daria mais cinquenta reais
para ela. Ela pensa que sou boba. Acha que eu não sei o que é
cheque pré-datado. Todo o dia a televisão fala sobre isso. Que as
pessoas não devem fazer compras a prazo, que os juros estão altos
e que é melhor dar cheques pré-datados para pagar as compras.
Ela quer é me tapear, dando-me um cheque. Ela não me passa a
perna nunca.
— Ela está te devendo trinta reais? Você não falou que tinha
sido assaltada em mais de seiscentos reais?
— Mas, e os juros? Eu lhe emprestei em cruzeiros, reais, não
sei mais, durante a inflação... foi muito dinheiro. Uns cinquenta
reais ou muito mais, até uns mil, não sei bem não. Eu sei é que ela
me deve e tem que me pagar.
— Talvez isto sirva para você aprender, Flor. A gente só
aprende, errando.
— Mas ela é amiga antiga. Ela trabalhava, o marido também.
Ele é paquerador, mas ela também tem um amante que dá dinheiro
para ela. Para isso ela não é boba não.
— Afinal, você os conhece há muito tempo. Gosta dela e em-
presta dinheiro quando ela precisa. Estava na casa deles e ele se
enfureceu. Por quê?
— Já ouvi dizer que ele colocou até detetive para saber com
quem eu ando e aonde vou aos fins de semana. Eu já tinha notado.
Lá na rodoviária, onde passeio aos domingos, um homem sempre
anda me vigiando. Quando fui tomar uma coca-cola, ele conversou
comigo. Até pediu-me um pouco do refrigerante e eu, boba, lhe
dei o resto da lata. Ele disse que a coca-cola estava com gosto de
meus lábios. Acho que o marido de minha amiga é apaixonado por
mim. Ontem fui lá no bairro. Depois fui até a casa dele junto com o
amigo dos olhos azuis. Foi este amigo que chamou o táxi para mim.
Tinha muito tempo que não andava de táxi. O motorista até que
tentou me cantar. Foi muito simpático comigo. No caminho...
Galeno Procópio M. Alvarenga - 165
Ali ficamos, deitados por algum tempo, não sei quanto, nós
dois respirando o mesmo ar. Sentia o meu ser fundido no dela, for-
mando uma só unidade, conduzindo-me ao Nirvana. Era só prazer.
Havia um profundo silêncio no ar. A lua continuava seu tra-
jeto pelo chão do quarto indiferente à nossa “morte passageira”.
Penso que assim adormeci.
No dia seguinte acordei tarde, suando muito, confuso com o
que acontecera na véspera. Preparei-me para deixar a pensão. Fiz
rapidamente minha mochila e sentia-me absolutamente só. Não vi
nenhum vestígio de vivalma.
Assustei-me quando, ao sair, percebi em cima de um velho
caixote improvisado de criado mudo, ao lado da cama, uma garrafa
cheia de água morna. Despejei um pouco da água de mau gosto
pelo gargalo da garrafa, mitigando minha sede de ressaca da noite
anterior. Foi minha noite de prazer. Lembrei-me de Ângela e tive
saudades.
O DELÍRIO DE JÉSUS
Não estava mal. Fechou a casa com cuidado, foi até a garagem
e deu partida, após verificar que tudo estava bem. Dirigiu-se ao su-
permercado que não ficava longe do seu apartamento.
O trânsito já estava tranquilo, sem engarrafamentos. Laura sen-
tiu na rua um vento agradável, diferente do calor abafado existente
dentro de seu apartamento após a chuva de verão que caíra naquela
tarde. Sentia-se satisfeita de ter saído, pois desfrutava daquele início
de noite, suave e tranquilo: “Talvez fossem as férias que diminuíram
o movimento”, ia pensando Laura, enquanto dirigia. Nuvens bran-
cas e muito claras recebiam os últimos raios do sol, desenhando
figuras alegres e mutantes no céu. Laura pensava que deveria sair
mais. Estava vivendo em prisão domiciliar e no trabalho. Sua raiva
da rua e dos seus habitantes se transformava em amor.
Observava os tomadores de cerveja dos botecos assentados
em mesas postas nas calçadas, discutindo tudo de importante para
a humanidade, resolvendo, com facilidade, os problemas, que antes
da bebida subir à cabeça, eram insolúveis. Era interessante esse gru-
po e ela sentiu desejo de estar ali entre eles, explicando suas ideias,
que eram interessantes para serem discutidas, acerca do casamen-
to, da criação dos filhos e de Deus. Provavelmente eles a achariam
inteligente e culta. Lembrou-se, numa mistura de alegria, saudade
e desejo, de suas poucas saídas à noite, sem rumo, e sem responsa-
bilidade. Como começou a namorar muito cedo, ficou controlada
pelos desejos e programas do namorado, seu ex-marido. Tirou de
sua mente essas recordações. Vivia, diante dela, percepções mais
agradáveis do que suas lembranças do passado cruel. Estava só, mas
se sentia ligada aos habitantes do fim do dia. Sentia-se presa àquele
povo, mesmo sem o conhecer. Sabia que sua alma misturava-se com
a humanidade. Precisava mudar de vida, sair daquela vida maldita,
escritório, casa, filhos. Lembrou-se, sem querer, dos filhos e assus-
tou-se. “E os filhos?” Sentiu culpa de tê-los esquecido. Tinha filhos e
estes eram tudo para ela. Lutou contra a ideia de que eles a atrapa-
lhavam. Pensava agora firmemente em mudar de vida. Fazia planos,
percebia que não fizera nada do que imaginara antes de separar-se.
184 - O Presente e Outros Contos
pigarreou, limpou, mais uma vez o suor que escorria pela sua tes-
ta e prosseguiu com sua confissão:
— Agora... essa está me enlouquecendo. Sugeriram-me que
deixe minha mulher - não é a amante, não - é minha esposa, a mãe
dos meus filhos, transar com outro homem. Argumentam que isso
é avançado e moderno, que só os machistas vão contra isso, por
desejarem ser donos das mulheres.
J. S., nesse momento, abaixou a cabeça, seus olhos brilhan-
tes fixaram um ponto do chão e assim permaneceu por um longo
tempo. Eu, sem saber o que falar, permanecia quieto no meu can-
to, identificando-me com seu desespero e suas dúvidas, que são
as de todos nós. Controlava-me, como podia, para não dar mais
um palpite em sua vida já tão cheia de opiniões.
Ele estava aprisionado num mundo de valores desencontra-
dos, introduzidos sutil e lentamente. J. S. não conseguia conciliar
na sua mente valores tão diversos, alguns oriundos do interior de
Minas e outros adquiridos das novelas e dos intelectuais de van-
guarda. Eles não se misturavam.
J. S. fitava-me, implorando mais um conselho:
— O que eu vou fazer? Estou sem saída!
Ele olha para mim triste e envergonhado por ter falado tan-
to, mais do que seu normal, de ter sido fraco conforme seu siste-
ma de crenças. Suspirando fundo, desabafou, despedindo-se:
— Tenho pensado até no suicídio. Sinto que não sou mais o
mesmo. Não me reconheço. Deixei de ser o J. S. que conhecia e
não sou mais ninguém. Penso, às vezes, em reconstruir tudo, mas
faltam-me forças e liberdade para isso, pois os amigos, sempre
vigilantes, não deixam. Gostaria de voltar a ser o que era, largar
tudo que criei após minha mocidade, pôr fogo no dinheiro maldi-
to, abandonar os clubes e as associações, bem como os políticos,
igrejas e amigos.
Assim, teria mais tempo de conversar comigo mesmo, como
antigamente, livre de toda essa gente maldita, com seus palpites
sobre tudo! Até logo...
INALDA
Quando lhe foi ensinado a dar a outra face, caso levasse um tapa
no rosto, ele partia para a agressão ao receber um golpe na cabeça
ou no braço, isto é, se não fosse na face, como fora ensinado sim-
bolicamente.
Horácio, diante dos fracassos do aluno, decidiu ensiná-lo de
forma diferente, transmitindo-lhe as ideias gerais e só posterior-
mente as ações específicas.
— Não te oponhas ao mal: essa é uma lei importante, disse o
psicólogo um pouco desanimado com o aluno.
O marginal ficou assustado com o ensinado nas conversas
posteriores. Mas, teimoso, afastou-se do pastor para iniciar suas ati-
vidades concretas e no campo. Dois meses depois, Fernando retor-
nou à igreja para conversar com o pastor. Estava mais magro e cada
vez mais desiludido. Com pesar, contou ao pastor que, passando
por uma rua, viu uma mulher ser assaltada e morta. Quem a matou,
para assaltá-la, era um ex-conhecido seu, fraco e medroso. Ele teve
grande desejo de impedir o que o bandido estava fazendo. Não se-
ria difícil. Achou tudo terrível. Entretanto, para seguir o ensinado,
ele nada fez, pois lhe fora dito para “não ir contra o mal”.
Horácio, já tendo perdido a fé nos seus ensinamentos, deu
uma outra lição para Fernando.
— Fique quieto a partir de agora, de olhos fechados e ou-
vidos tampados. Dias depois, Fernando voltou todo marcado de
picadas de mosquitos, contou que ele ficou quieto, pois, segundo
as instruções, ele não deveria fazer nada.
Por momentos o pastor quase entrou em desespero, quase
perdeu a paciência. Pediu a Fernando que nada mais fizesse. Teria
umas férias por alguns dias. Enquanto isso, ele iria pensar que es-
tratégia tomaria para salvar sua ovelha desgarrada. Filosofando, o
velho pastor disse-lhe em tom de sermão:
— O bem possui tantas formas! Há inúmeras verdades que se
cruzam, entrechocam-se, batem-se umas contra outras. Parece que
se contradizem, mas na realidade não é assim. Qual é a verdade ver-
dadeira? Ou, se todas são verdade, como distingui-las e encontrar a
que possa servir melhor?
216 - O Presente e Outros Contos
— Ela pensa que eu não sei, mas não tem certeza. Assim fico
livre para fazer o mesmo, sem ter o maldito sentimento de culpa
que sempre me perseguiu. Além do mais, ela, tendo outro, não me
amolará com tanta insistência quando eu não quiser encontrá-la,
pois terá um substituto para os momentos de minhas folgas. Sendo
assim, poderei fazer outras coisas em qualquer dia, sem preocupar-
me com ela. Sabendo que ela anda com outro, sei que ela estará fe-
liz, assim se encontrará comigo de bom humor e me tratará melhor
por causa de sua culpa e por ter dó de mim por ser bobo.
Procurei me inteirar acerca de sua morte, pois sua vida sem-
pre me interessou. Fiquei sabendo que havia se suicidado no pró-
prio barracão onde morava. Fui por várias vezes lá, procurando
alguém ou documentos, para compreender o seu “tresloucado ges-
to”. Depois de várias vezes sem encontrar ninguém, numa manhã
avistei seu primo, que viera retirar seus pertences para doá-los e
entregar o barracão, que era alugado. Este era de pouca conversa
e só com muito custo contou-me o que ocorrera. Mostrou-me um
bilhete escrito antes do seu suicídio. Fiquei sabendo então que Je-
rônimo havia ganhado na loto 35.000 reais e isto o perturbou sen-
sivelmente. Passou a ter medo de sair e ser assaltado. Imaginou que
todas as suas paqueras queriam morar com ele para se aproveitar
do dinheiro ganho. Começou a ter insônia, não comprava mais co-
mida pronta como antes, pois imaginava que seria envenenado nos
restaurantes. Pouco a pouco, não recebia mais ninguém. Imaginou
até que seu coração havia parado de bater e que seus intestinos
estavam podres e cheios de vermes e já começavam a comê-lo. Nos
últimos tempos - contou seu primo - ninguém mais entrava em sua
casa que ficava fechada com fortes correntes..
Após alguns dias de completo silêncio, os vizinhos, após o terem
chamado por diversas vezes e não obtendo resposta, chamaram a po-
lícia. Esta, após arrombar a porta, encontrou seu corpo, já podre, de-
pendurado no cano da privada. Num canto do banheiro, havia cinzas e
pedaços de notas mal queimadas, que sobraram da incineração do seu
prêmio da loto e que serviu para matá-lo.
222 - O Presente e Outros Contos
contar sua vida de casado, sua separação, seus filhos que nunca nas-
ceram pois sua ex-mulher desistiu de tentar após ter três abortos.
A partir desse dia os encontros se tornaram frequentes e, a
princípio, como sempre acontece, com muito entusiasmo. Os dois
tinham conversas animadas, planos diversos para viagens juntas,
festas, cinema, jantares e tudo o mais, que foi realizado logo nos
primeiros encontros. Financeiramente não havia problemas, ela
ganhava razoavelmente, ele, como funcionário da Receita Federal,
também tinha, além do salário bom, recebido um pequena soma
após a morte do pai que era viúvo. Também não tinha que dar pen-
são à ex-mulher, pois esta também era funcionária da mesma seção
onde ele ainda trabalhava.
Inicialmente, como sempre, os encontros eram quase diários,
alegres e animados. As conversas duravam horas, havia entre eles
uma concordância quase total. Tinham a mesma postura política,
isso é, contra o governo. Criticavam todas as religiões, apesar de
praticarem, sem consciência, os preceitos delas todas, pois ambos
tinham postura social e ética rígida e de acordo com os preceitos
da maioria ou de todas as religiões. Os dois tiveram uma educação
semelhante, pertenciam à mesma classe média, eram livres para
pensar e criticar tudo, sem grandes emoções e devoção aos ideais
defendidos, ou estavam talvez aprisionados à mesma ideologia po-
lítica de não seguir nada.
Por tudo isso, no começo tudo era encantamento. Não havia
imposições, não havia ciúmes de nenhuma parte, nada precisava
ser negociado, pois tudo era aceito como uma escolha de cada um,
na maior parte das vezes até havia uma concordância de valores.
Mas o tempo foi passando e estragando, como sempre, a
maioria das concordâncias. Pouco a pouco, tudo foi sendo destru-
ído. Primeiro foi o desinteresse, e talvez a irritação de Pedro, pelas
conversas de Maria acerca de como o filho dela crescia e ela acha-
va uma beleza. Muito bem educado, conquistaria inúmeras garotas
inteligentes e bonitas. Por outro lado, José notava que o rapazinho
não era muito dado a conquistas amorosas femininas, era mais para
gay e sua mãe fingia que não via ou não notava.
Galeno Procópio M. Alvarenga - 225
Por outro lado, José notou que Maria jamais gastava um ní-
quel com as despesas que os dois faziam. Ela sempre esquecia o
talão de cheques, fazia de conta que estava distraída ou mesmo
pedia para que ele pagasse, pois, com mais calma, ela lhe paga-
ria depois e ele não via nunca a cor do dinheiro. Em seguida ele
começou a achar Maria suja e desleixada, porca mesmo, pois não
só custava a tomar banho, como vestia a mesma blusa, suja e fe-
dorenta, por várias vezes. Para encobrir o mau cheiro, usava um
perfume que provocava espirros em Pedro, e que, naturalmente
devido ao cheiro forte, ofuscava o mau odor que exalava de seu
corpo sem banho.
Aos poucos, José ia descobrindo outros aspectos negativos
em Maria. Notou que ela jamais tomava iniciativa em qualquer coi-
sa como para uma saída, decidir a hora de ir se deitar, de levantar-
se da mesa para preparar a refeição, lavar uma vasilha ou qualquer
outra coisa. Era sempre ele que tomava a iniciativa, enquanto ela
permanecia assentada e conversando calmamente. Tudo que de-
veria ou precisava ser feito partia dele, até trocar de canal quando
os dois estavam vendo TV.
José foi perdendo as ilusões iniciais diante da realidade dos
fatos concretos e não de suas expectativas, frutos de seus desejos
idealizados.
Depois de esperá-la por vários minutos na cozinha, onde iam
preparar o almoço, foi até o quarto onde ela dormia.
Como de costume, lá estava ela, deitada na cama, às 4 horas
da tarde, com sua revista preferida na mão. Tinha se levantado às
11 horas e ainda não havia trocado a camisola. No quarto, havia
diversas calcinhas, sutiãs, meias, blusas e saias, espalhadas em cima
da cama e no chão do quarto onde havia dormido.
Maria engordava a cada dia. As discussões, antes ausentes,
começaram e foram aumentando.
— Você viu as horas? Já são quatro horas. Você podia fazer o
arroz, enquanto faço a omelete e frito uns bifes.
— Certo, vou lavar o arroz.
— Não! Esse arroz não precisar ser lavado.
226 - O Presente e Outros Contos
fator inicial para isso é entender quem é a pessoa que eu amo, para,
só assim, ajudá-la, ou facilitar o que ela deseja alcançar.
— É o que eu faço. Estou sempre preocupada com você, que-
rendo ajudá-lo.
— Oh... eu quero ficar sozinho e ler, você se aproxima e per-
gunta: “Benzinho, está calado hoje. Está triste?
— Mas eu penso que, se uma pessoa está numa casa com a
outra, elas deviam estar juntas.
— Se possível, abraçadas, o dia inteiro?
— Não precisa de tanto. Mas juntas, conversando.
— Não devíamos então dormir, pois nessa hora estamos sós.
Nem ir ao banheiro, a não ser acompanhados do nosso grande
amor.
— Não precisa ir tão longe. Você sabe que não estou falando
isso.
— Você não admite eu fazer sozinho uma coisa que gosto,
como assistir a um jogo de futebol ou ler um jornal, o que você
detesta.
— Eu gosto também, não tanto como você.
— Então, por que fica fazendo perguntas o tempo todo: “O
repórter hoje veio com uma roupa mais bonita”, ou “aquele joga-
dor tem uma perna forte, mais que aquele outro”.
— Mas fica chato assistir sem falar nada.
— Mas será possível que eu não posso gostar de assistir sem
fazer comentários?
— É muito esquisito isso. Pelo menos para mim.
— Mas para mim esquisito é não aceitar um modo de vida do
outro, não cooperar com ele, ou, no mínimo, deixar que a outra
pessoa faça alguma coisa que ela goste.
— Mas nunca fui contra nada que você faz. Nunca fui contra
você ser dentista, ter um consultório na Savassi.
— Mas é contra eu trabalhar sábado pela manhã, ficar até
mais tarde um dia ou outro, atender um telefonema de um cliente
mais necessitado ou até mais chato.
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O último encontro