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ISSN 1982 - 1913

2007, Vol. I, nº 1, 1-10


www.fafich.ufmg.br/mosaico

Narcisismo e subjetividade

Narcissism and subjectivity

Gabriel Almeida Assumpção*


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte – MG, Brasil

Resumo
O conceito de narcisismo é de essencial valor no curso da metapsicologia
freudiana, dadas suas implicações que conduziram a mudanças no modelo
de psiquismo apresentado por Freud na Primeira Tópica, no capítulo VII da
Interpretação de Sonhos (1900). No presente trabalho buscamos expor,
primeiramente, a noção freudiana do eu em dois momentos distintos de sua
obra, a saber: o Projeto de uma Psicologia de 1895 e A Interpretação de
Sonhos. Em seguida, tencionamos demonstrar – com ênfase nos artigos
metapsicológicos (1915-1917) – como o conceito de narcisismo subverte as
duas concepções anteriores do eu, a partir da sua articulação com a teoria
das pulsões, devido às investigações trazidas pela psicanálise no campo da
psicopatologia. Finalmente, pretendemos refletir acerca das implicações
da nova noção de eu trazida pelo narcisismo para se observar como se
entrelaçam psicanálise e subjetividade.

Palavras-chave: Eu; narcisismo; pulsões; subjetividade.

Abstract
The concept of narcissism is of essential value in the course of the Freudian
metapsychology given its implications in the changes of the model of
psychism presented by Freud in the First Topic, in chapter VII of The
Interpretation of Dreams (1900). In the present paper, we attempt to expose,
first, the Freudian conception of Ego in two different moments of his work:
the Project of a Psychology of 1895 and The Intepretation of Dreams. Then,
we intent to demonstrate – by emphasizing the metapsychological writings
(1915-1917) – how the concept of narcissism subverts the former
conceptions of Ego due to its articulation with the theory of drives and to
the investigations brought about by psychoanalysis in the field of
psychopathology. Finally, we intend to make a reflection regarding the
implications of the new notion of Ego brought by narcissism in order to
observe how psychoanalysis and subjectivity intertwine.

Key-words: Drives; Ego; narcissism; subjectivity.

* Dedico este trabalho à minha querida Cláudia e ao meu amigo Wasney


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Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 1-10
Gabriel Almeida Assumpção

Introdução narcisismo, que promove uma erotização


do eu e lhe confere o estatuto de objeto.
Sigmund Freud é um autor que Pensaremos sobre o narcisismo a partir de
desperta a curiosidade mesmo de quem uma breve exposição acerca do modo
não o lê – e mais ainda de quem o faz – pelo qual este se articula à teoria das
devido, possivelmente, aos temas pulsões, promovendo mudanças na ma-
instigantes que discute: amor, morte, neira como Freud concebe o psiquismo.
sexualidade, sonhos, atos falhos. Além de Finalmente, faremos breves considera-
tocar em assuntos que evocam interesse, a ções acerca da subjetividade a partir da
obra de Freud se destaca pela profusão idéia de um eu constituído, em parte, de
de conceitos originais e fecundos, entre os modo narcísico, buscando apontar
quais a pulsão, o trabalho do sonho e – implicações dessa constituição do eu no
sem dúvida – o narcisismo. O exame desta que diz respeito à alteridade. Por se tratar
concepção nos mostra sua relevância na de um levantamento histórico e por não
teoria psicanalítica, posto que a sua constituir estudo muito aprofundado,
investigação no campo da psicopatologia nosso trabalho será circunscrito ao
e a forma como o narcisismo se articula período que se estende desde 1895 a
com as noções freudianas de pulsão e de 1917, de modo a expor, adequadamente e
eu permitiram a Freud uma profunda sem vistas a esgotar o tema, o impacto do
revisão de sua teoria, culminando na narcisismo na metapsicologia freudiana.
segunda tópica do aparelho psíquico.
Conforme nos diz Garcia-Roza,
A concepção de eu em dois momentos
“Com a introdução do conceito de
narcisismo, em 1914, a oposição entre as É relevante, para uma com-
pulsões sexuais e as pulsões do eu sofre o
primeiro abalo. O que o conceito de preensão mais profunda do narcisismo,
narcisismo tornou claro foi o fato de que as entendermos – pelo menos em linhas
pulsões sexuais podiam retirar a libido gerais – as diferentes concepções de eu
investida nos objetos e fazê-la voltar sobre que surgiram ao longo da obra de Freud.
o próprio eu, constituindo-se em libido
narcísica” (Garcia-Roza,1995/2004b, p.36).
Nosso interesse, no presente trabalho,
compreende três grandes momentos, dois
Desse modo, o conceito de dos quais são examinados nesta seção: o
narcisismo se mostra de suma importância eu do Projeto de uma Psicologia e o eu da
no texto freudiano, merecendo ampla Interpretação de Sonhos (o outro grande
abordagem para se ter melhor com- momento a ser examinado compreende os
preensão de sua obra. O que tem- Artigos de Metapsicologia e o texto
cionamos, com o presente artigo, é atentar metapsicológico sobre o narcisismo, os
para a fecundidade da noção de quais serão discutidos nas seções
narcisismo. Primeiramente, observaremos seguintes).
a concepção freudiana de eu no Projeto de No Projeto de uma Psicologia, Freud
uma Psicologia (1950[1895]) e a da pri- raciocina em linguagem influenciada pela
meira tópica com A Interpretação de física e pela neurologia. Sobre esta obra,
Sonhos (1900), mostrando algumas se- diz-nos Garcia-Roza que “Embora o texto
melhanças e diferenças entre elas. Em tenha sido recusado pelo autor, várias
seguida, procuramos mostrar as dispa- idéias nele contidas reaparecem (ou
ridades em relação às duas noções aparecem) em textos posteriores (...) isto
anteriores de eu as quais foram, em sem contar um esboço de sua teoria dos
grande parte, trazidas pelo conceito de sonhos” (Garcia-Roza, 1991/2004a, p. 70).

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Nesse escrito de Freud seguinte modo:  precisa de um sinal


(1950[1895])/1995), o sistema nervoso1 é capaz de alertá-lo contra uma imagem
composto, basicamente, de três classes de capaz de causar desprazer e este signo é
neurônios: , responsável pela percepção; oferecido por  – a consciência – a qual
ligado à memória – e , a quem indica a realidade a  O que possibilita
compete a consciência. O eu, aqui, tal processo é o eu, por intermédio do
associa-se com o sistema , a consciência, qual se distingue o percebido do repre-
e tem uma função peculiar: assegurar ao sentado, de forma que o reconhecimento
indivíduo a distinção entre realidade e da existência efetiva de algo e a renúncia
fantasia, a qual é movida pelo desejo – da alucinação constituem a consideração
cuja saciação deixa traços na memória, os mais adequada dos signos de realidade.
quais podem ser reproduzidos em Desse modo, onde o eu não intervém com
pensamento. Quando constante, tal os sinais de realidade, temos um processo
lembrança pode conduzir à frustração na primário, ao passo que a operação e
falta do objeto desejado e, para evitar a inibição da parte do eu modera estes em
decepção, uma forma de bloquear essa processos psíquicos secundários.
memória consiste no recalque e tanto este Dessa forma, conforme Freud
quanto a “atração de desejo primária” (a (1950[1895])/1995) nos aponta, o eu
busca do objeto de desejo original, possibilita – por meio da inibição – que o
supostamente perdido e que, na objeto do desejo possa ser reconhecido
realidade, nunca se teve) pressupõem que como irreal. Nas palavras de Freud, “Os
haja uma organização que neles atue, a assim chamados processos secundários
qual seria o eu, capaz de bloquear têm de ser explicados mecanicamente
processos psíquicos primários, exemplos através do efeito que uma massa neuronal
dos quais seriam, a partir da Interpretação de ocupação constante (o eu) exerce
de Sonhos, o deslocamento e a sobre outra com ocupações variáveis”
condensação do sonho. (Freud, 1950[1895]/1995, p. 75).
Conforme dito acima, o objeto de De maneira bem introdutória,
desejo gerado pela vivência de satisfação discutimos o que é o eu do Projeto. Agora,
só existe em representação de fantasia e seguimos nosso itinerário com o modelo
não de fato, sendo importante ressaltar de psiquismo da primeira tópica, no
que o objeto pode ser o próprio sujeito capítulo VII da Interpretação de Sonhos2.
(Garcia-Roza, 1991/2004a). Pensando a Nesse momento, Freud (1900/1978) não
partir do narcisismo, poderíamos pretende determinar o aparelho psíquico
relacionar essa questão com a maneira anatomicamente (temos aqui um distan-
como se pode ter dificuldades de ciamento do Projeto), mas concebê-lo
distinguir existência efetiva de ima- enquanto análogo a um microscópio ou a
ginação, posto que há excesso de uma câmera. Assim sendo, Freud (1900
investimentos no próprio corpo, super- /1978) postula que compreende o
estimando seu poder de intervir na aparelho psíquico como um instrumento
realidade (desconsiderando, assim, as composto de sistemas/instâncias psí-
diferenças entre o desejo e a possi- quicas com orientação constante em
bilidade – bem como a viabilidade – da relação um ao outro, não se tratando,
sua eventual execução). A representação necessariamente, de um arranjo espacial
de fantasia, segundo Freud (1950 verdadeiro, físico; trata-se de uma
[1895])/1995), difere da percepção pelo seqüência (ordem na qual se sucederiam

1 2
Reparem que, nesse texto, ainda não temos uma noção Restringimos nosso estudo ao item B, intitulado
clara de “aparelho psíquico”. “Regressão”.

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os eventos psíquicos; ou ainda, a ordem de inibição do eu, como no caso do sonho,


seguida pela excitação no sistema durante os processos psíquicos primários
um evento psíquico). prevalecem.
Nesse arranjo, Freud (1900/1978) Portanto, vemos que as concepções do eu
argumenta que a percepção (P) e a no Projeto e na Interpretação de Sonhos
memória são processos mutuamente apresentam disparidades e semelhanças.
excludentes, de modo a não haver invasão A linguagem em que são expressas é
de um pelo outro, confundindo-se o diferente e o aparato conceitual da
percebido e o recordado; o que ocorre é a Interpretação de Sonhos é mais sofisticado
impressão, pelas percepções, de traços e complexo, com uma tópica do psiquismo
em nosso aparato psíquico: são os traços bem definida. No que diz respeito às
mnésicos, cuja função é a memória (no semelhanças, tanto na Interpretação de
Projeto, seriam análogos aos neurônios ). Sonhos quanto no Projeto, o eu se
Surge, aqui, uma dificuldade: como a identifica com a consciência e possui um
faculdade de perceber preserva papel organizador, agindo como inibidor
mudanças nos traços mnésicos e ainda de processos psíquicos primários. Até a
permanece fresca para novas per- primeira tópica, Freud apresentava uma
cepções? Freud propõe que se atribuam concepção mais racionalista de eu. Com a
duas funções a dois sistemas distintos: postulação da pulsão de morte3 em Além
memória Ics (no Projeto, corresponderia do Princípio de Prazer (1920), Freud
ao sistema ) e percepção Cs adquiriu uma visão mais pessimista do eu,
correspondente, no Projeto, a  e a ). revelando-o enquanto mais limitado e
Esta instância recebe os estímulos mas não subjugado pelo inconsciente. O que
os retém; ou seja, a Cs não registra e é possibilitou profunda mudança de ponto
desprovida de memória, ao passo que Ics de vista em relação a estas idéias de eu foi
() transforma a excitação momentânea o narcisismo, conceito divisor de águas na
em traços duradouros. teoria psicanalítica.
Há, para Freud (1900/1978), uma ponte
entre Ics e Cs, que é o sistema Pcs (pré-
consciente), o qual proporciona Narcisismo e pulsão : a erotização do eu
mobilidade voluntária, constituindo via de
acesso para o Ics à consciência, A problemática do narcisismo
notavelmente durante o sono, quando o impôs uma subversão no significado do eu
enfraquecimento da censura facilita o a partir dos impasses proporcionados
contato Ics/Pcs. É curioso observar que, pelo seu estudo na clínica e que
no estado onírico, o sonho segue um culminaram no segundo dualismo
caminho retrógrado, sendo que uma pulsional e, finalmente, na postulação da
excitação chega à consciência. Trata-se da segunda tópica do aparelho psíquico, em
regressão, pela qual troca-se percepção O eu e o isso (1923). De modo a
por representação e vice-versa, havendo compreender os fundamentos meta-
falha do princípio de realidade. Isso se psicológicos dessa mudança, buscaremos
manifesta em outros importantes – em linhas bem gerais – expor uma visão
fenômenos, como a alucinação e o geral do conceito de narcisismo e, em
sintoma. A regressão consiste, desse seguida, apontar como o mesmo se
modo, na maneira pela qual os processos articula ao sentido metapsicológico
primários, não inibidos pelo eu, se
manifestam na consciência. Embora não
haja uso do termo regressão no Projeto, as 3
A qual não será desenvolvida neste trabalho, porque sua
idéias são bem semelhantes: na ausência postulação está situada em período posterior ao último
dos três momentos analisados neste trabalho.

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dinâmico, ou seja, associá-lo com a teoria (Pulsões e os destinos de pulsão), Freud


da libido e com a crise do primeiro (1915/1978) nos mostra que podemos
dualismo pulsional e, depois, ao aspecto conceber a fase inicial do
econômico, vinculando-o ao princípio de desenvolvimento do eu enquanto uma fase
prazer e à negação do princípio de de satisfação auto-erótica, o narcisismo
realidade. Segundo Garcia-Roza, primário, quando o corpo do próprio
sujeito é alvo do voyeurismo, uma
“É importante notar que, anteriormente ao formação narcísica. Assim, a volta sobre o
artigo de 1914, o narcisismo era assimilado sujeito e a reversão ativo/passivo, dois
à perversão – escolha do próprio corpo destinos de pulsão, dependem da
como objeto de investimento amoroso – e
organização narcísica do eu do sujeito,
que, a partir do texto sobre o narcisismo,
passa a ser apontado como forma havendo elo entre sexualidade, eu e
necessária de constituição da narcisismo.
subjetividade. O narcisismo é condição de Quando o narcisismo primário é
formação do eu, chegando mesmo a se
confundir com o próprio eu” (Garcia-Roza,
invadido pelo objeto, temos base para o
1995/2004b, p. 42). desenvolvimento do ódio, o qual repre-
senta a relação defensiva do eu ao mundo
exterior e sua protuberância de estímulos.
O narcisismo promove uma erotização
O mundo e os objetos de amor/ódio eram,
do eu na medida em que consiste em
originalmente, a mesma coisa. Ao trazer
um acréscimo do eu ao auto-erotismo.
prazer, um objeto é incorporado ao eu e,
Esta questão nos remete a uma
evocando desprazer, é projetado, como
importante idéia freudiana, acerca da
nos diz o autor (1915/1978). Assim, a
passagem do o auto-erotismo ao nar-
relação com a alteridade é marcada, em
cisismo. Como nos diz Freud em “On
termos psicossexuais, pela influência da
Narcissism” (Para introduzir o
constituição narcísica do indivíduo. Deste
narcisismo) (1914/1978), o eu não
modo, com a problemática do narcisismo,
existe desde que o individuo nasce,
surge uma nova concepção de eu. Sendo o
sendo necessário que se desenvolva.
eu sexualizado, ele pode ser tratado como
As pulsões auto eróticas, no entanto, já
objeto da libido, e isso nos possibilita
existem, sendo necessário um
pensar melhor na relação do narcisismo e
acréscimo de “uma nova ação
do eu – agora, possível de ser objeto –
psíquica” ao auto-erotismo para o
com um conceito que se articula com
narcisismo vir a ser: um eu constituído
investimentos objetais: as pulsões.
de modo narcísico. Laplanche e Pon-
talis comentam essa passagem do texto Ainda em “Instincts and their
freudiano: Vicissitudes” (Pulsões e os destinos de
pulsão), Freud (1915/1978) diz de que as
pulsões são apenas construções
“A introdução da noção de narcisismo vem
clarificar posteriormente a de auto- auxiliares, distintamente do aparato
erotismo: no narcisismo é o eu, como psíquico (um postulado), concebendo-as
imagem unificada do corpo, que é objeto em dois grupos centrais: as pulsões de
da libido narcísica, e o auto-erotismo autopreservação (pulsões do eu) e as
define-se, por oposição, como a fase
anárquica que precede essa convergência
pulsões sexuais. Concebe que nas
das pulsões parciais para um objeto neuroses de transferência (histeria e
comum (...)”(Laplanche & Pontalis, neurose obsessiva), há conflito entre as
1967/1986, p. 80). pulsões sexuais e as pulsões do eu. O
autor diz também (1915/1978) que as
Ainda sobre o auto-erotismo, no neuroses narcísicas podem levar a uma
texto “Instincts and their Vicissitudes”

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modificação da maneira como as pulsões superar o narcisismo, passando a investir


estão classificadas, o que nos aponta a em objetos exteriores ao eu? Possivel-
importância do narcisismo – em suas mente, quando o investimento do eu
relações com a psicopatologia – para o excede um grau, de modo que passamos a
desenvolvimento da teoria psicanalítica, amar para não adoecer e a nos aco-
baseado no fato de que as “neuroses metermos de enfermidade por não nos
narcísicas” (esquizofrenia, megalomania, enamorarmos em decorrência da frus-
melancolia e paranóia) conduziram a uma tração. O aparato psíquico dominaria as
modificação na teoria das pulsões devido excitações dolorosas e uma maneira que o
à teoria da libido. eu encontra para tal ação é pelo angariar
No texto “On Narcissism” (Para da libido.
introduzir o narcisismo), Freud Em seguida, Freud (1914/1978)
(1914/1978) nos traz um impasse à teoria aborda um tema bastante vinculado à
das pulsões, com sua discussão sobre a constituição subjetiva do indivíduo e seu
teoria da libido. Ele se questiona quanto ingresso na cultura: o eu ideal (Ideal Ich) e
ao que acontece à libido quando ela se o ideal do eu (Ich ideal). Quando os pais
retira de objetos externos, como no caso têm um filho, ele é tratado, enquanto
da esquizofrenia. Diz que algo pode ser bebê, com extrema admiração e su-
investigado com base na megalomania, a perestimação, de modo que ocorre uma
qual permite um olhar acerca de como revivescência do narcisismo dos pais por
essa libido é defletida dos objetos e se meio do filho, no qual são depositadas as
dirige ao eu, dando vez ao narcisismo. esperanças paternas e os sonhos não
Trata-se, na megalomania, de um exagero realizados – como no caso do pai que
de uma condição prévia – a saber, a deseja que o filho exerça determinada
sensação do bebê de satisfação imediata e profissão, ou da mãe que só aceita certo
de dedicação intensa dos pais. Os tipo de parceiro para a filha. Para
investimentos que são retirados dos Laplanche e Pontalis (1967/1986), o eu
objetos e se dirigem ao eu constituem, ideal nunca é abandonado e se relaciona à
deste modo, uma regressão ao narcisismo busca de um ideal de onipotência que
primário e a base para o narcisismo culmina na regressão ao narcisismo
secundário. infantil.
Freud (1914/1978) toma o corpo do A criança, dessa forma, passa a
pseudópode para fins de ilustração da acreditar ser capaz de tudo, até que, com
teoria da libido: a libido se dirige aos eventuais reprimendas paternas e com
objetos, mas está sempre atrelada ao eu e incessantes comprovações pela realidade
se lança aos objetos a partir do mesmo. O – como as doenças, os fracassos e as
eu, dessa forma, modifica sua “compo- perdas – de que o ser humano não é
sição”, da mesma forma que a ameba onipotente, assume um ideal de eu.
quando seu pseudópode se retrai Laplanche e Pontalis pontuam que o ideal
portando novas substâncias, havendo do eu também possui origem narcísica,
relação recíproca entre libido do eu (que sendo que o eu ideal cede espaço ao ideal
seria como o pseudópode que volta ao de eu, sendo “uma formação intrapsíquica
corpo da ameba) e libido objetal (a qual relativamente autônoma que serve de
seria como o pseudópode saindo do referência ao eu para apreciar suas
organismo em direção ao alimento), realizações efetivas”. (Laplanche &
sendo que é o investimento objetal que Pontalis, 1967/1986, p. 289). O ideal de eu
nos permite diferenciar esta daquela. consiste em uma abdicação parcial do
Uma questão importante surge da narcisismo infantil seguida de uma
parte do autor (1914/1978): o que nos faz projeção do ideal para o futuro,

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refletindo-se no que o indivíduo almeja prazer terreno para obter gozo celeste.
ser, de modo a se realizar. Esse ideal se Influenciado por Ludwig Feuerbach,
distancia do sujeito sempre que este tenta Freud diz que se trata de uma “projeção
alcançá-lo, o que resulta num constante mítica desta revolução da mente” (Freud,
desejo, da parte do sujeito, de ser algo 1911/1969, p. 283).
mais. Com os filhos, surge, novamente, a
Por sua vez, no texto “Instincts and
transmissão do ideal do eu dos adultos,
their Vicissitudes” (Pulsões e os destinos
agora, revivido pela criança na forma de
de pulsão), vemos um acréscimo de Freud
eu ideal, ao qual os pais tiveram de
(1915/1978), o qual acrescenta que o eu-
renunciar – ainda que não integralmente –
realidade, mais objetivo, diferencia-se do
para se inserirem na cultura e pelo
eu prazer, regido pelo processo primário.
reconhecimento de suas limitações. Freud
O eu-prazer incorpora a si o agradável e a
(1914/1978) aponta para a importância de
outra parte do mundo é o exterior a si.
se estudar o ideal de eu para se
Assim, uma parte do eu-prazer é separada
compreender a psicologia de grupos:
de si própria e projetada enquanto algo
família, classe e nações possuem um ideal
hostil. Notamos, aqui, que o eu-prazer
em comum, de modo que não buscá-lo
corresponde a uma vivência de regressão,
gera culpa. Além dessa importante dis-
ao passo que o eu-realidade estaria mais
tinção entre eu ideal e ideal do eu, temos
relacionado com a consciência. Vemos,
a diferenciação entre o eu-prazer e o eu-
ainda que de maneira bem tímida, uma
realidade.
cisão do eu, estando o eu-prazer mais
Em “Formulações sobre os dois associado aos processos primários, a que
princípios de funcionamento psíquico”, compete o eu inibir.
Freud (1911/1969) nos atenta para uma
Segundo o autor (1915/1978)
peculiaridade do desenvolvimento do eu:
surgem, em meio às relações do eu com o
há conversão do eu-prazer em eu-
prazer e com a realidade, duas pola-
realidade. O eu-prazer é consoante com o
ridades: Eu-sujeito versus Prazer e Objeto
princípio de prazer, busca fugir do
(mundo externo) versus Desprazer /
desprazer e visa à gratificação –
Neutralidade. O eu auto-erótico, em de-
mostrando-se mais compatível com o
corrência das pulsões, tende a encontrar
narcisismo, por desconsiderar as relações
objetos externamente e percebe pulsões
com a existência efetiva das coisas – ao
internas como desprazíveis. De acordo
passo que o eu-realidade, aderindo ao
com Freud, (1915/1978), o princípio de
princípio de realidade, busca o útil e a
prazer faz com que o eu absorva os
fuga de danos – por reconhecer que há
objetos prazerosos e expulse o que causa
danos e considerar que o útil nem sempre
dor. Convém pensarmos, a partir do
é o desejado, mostra um ligeiro
exposto, o seguinte: é possível o eu tratar
distanciamento de uma atitude exce-
a si próprio como algo exterior e hostil –
ssivamente narcísica. Não devemos per-
ou seja, há um efeito colateral da relação
der de vista, no entanto, que o próprio
objetal que o eu desenvolve consigo
princípio de realidade é, de certo modo,
próprio em decorrência do narcisismo? E,
sujeito ao princípio de prazer, já que
caso o seja, sob quais circunstâncias e por
existe em prol de um prazer posterior, ou
que razão? Respostas provisórias a estes
para se evitar um eventual desprazer. Isto
questionamentos se apresentam no caso
é exemplificado, por Freud (1911/1969),
da melancolia.
pelo mito da vida eterna: renuncia-se ao

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O eu cindido objeto se identificou, ataca o eu do sujeito


como um todo.
Freud (1917 [1915]/1992), em “Luto A partir do exposto no caso da
e Melancolia”, contrapõe o processo do melancolia, podemos retomar as com-
luto ao da melancolia em termos meta- cepções anteriores de eu, em que este era
psicológicos, de modo que na melancolia visto como mais organizado, e pensar: o
há, inicialmente, uma escolha objetal. que muda com as inovações aduzidas pelo
Com uma decepção, a relação objetal se narcisismo? Além da noção de uma parte
enfraquece, só que a libido retirada não do eu que se contrapõe a outra, criti-
se dirige para outro objeto, mas para o cando-a, outra resposta pode estar no
próprio eu. Produz-se, no eu, uma “Suplemento Metapsicológico à Doutrina
identificação com o objeto abandonado. A dos Sonhos” (Freud, 1992, p. 134). Freud
outra instância do eu toma aquela (1917 [1915]/1974) atribuía orientação
identificada como objeto e se lhe ataca. entre o interno e o externo da consciência,
Assim, a perda objetal se converte em a qual oferece resistência a certas
perda do eu e o conflito eu-objeto, em percepções, sendo o teste de realidade,
cisão entre a parcela crítica do eu e a em grande parte, decorrente do
parte do eu modificada por identificação e oferecimento de signos de realidade da
tornada em objeto. consciência ao eu. Um eu muito investido
Conforme o autor, (1917 [1915] – como no caso do narcisismo – não indica
/1992), para o melancólico, parece haver adequadamente a realidade, devido às
uma perda em seu eu. O eu do alucinações, falhando no oferecimento dos
melancólico proporciona uma visão signos da realidade e na inibição de
diferente da constituição do eu humano. processos psíquicos primários.
“Vemos nele como uma parte do eu se
contrapõe à outra, avalia-a criticamente,
como que tomando-a por objeto” (Freud, Conclusão: narcisimo, subjetividade e
1917[1915])/1992). Há, neste caso, uma alteridade
instância cindida do eu que o critica
enquanto objeto, marcando uma cisão O exame de textos estratégicos da
cujo fundamento está na consciência metapsicologia freudiana, tendo por
moral, na censura da consciência e na enfoque o narcisismo e suas relações com
prova de realidade. Isso se realça porque, o eu, permitiu-nos observar que o eu era,
na melancolia, a censura é predo- antes da primeira tópica, uma organização
minantemente moral. Freud discute (1917 neuronal capaz de mediar processos
[1915]/1992) que pode, neste caso, ter primários e ligada à consciência  e, na
existido fixação no objeto amado e primeira tópica, um mediador dos
pequena resistência de investimento processos primários que atuava em Pcs e
objetal. Ou seja, uma escolha de objeto Cs. Se o eu ou a consciência falharem, não
narcísica, sendo que o investimento pode se reconhece a realidade, como na
regredir facilmente ao narcisismo. psicose. Uma atitude narcísisca pode
O eu, tratando a si próprio como resultar em um alheamento da realidade,
objeto, torna-se passível de ser destruído já que a relação com o mundo externo
internamente – e não por ameaça externa depende da capacidade de distinção
– e é por esses moldes que Freud (1917 entre o percebido e o representado, a
[1915]/1992) articula narcisismo e qual cabe ao eu.
suicídio: quando o eu substitui o objeto, a Os impasses na teoria da libido
instância não-identificada do eu, tentando trazidos pelo narcisismo permitiram-nos
atacar o objeto original com que o eu- compreender a importância do narcisismo

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Narcisismo e subjetividade

para o desenrolar do segundo dualismo poder e do status. Ora, a constituição do


pulsional e refletir sobre as suas indivíduo enquanto sujeito é formada em
implicações subjetivas, culminando, no convívio com um meio social, sendo
estudo da melancolia, em um caso no qual imprescindível a alteridade para que nos
se percebe a relevância do narcisismo tomemos por sujeitos.
enquanto agente da cisão do eu. Tratando Em outros termos, é a partir do
a si como objeto, o eu cindido pode se convívio com os outros e da abdicação de
tornar autodestrutivo e não permitir nosso ideal onipotente que nos cons-
reconhecimento adequado da realidade. tituímos enquanto seres humanos capazes
Além dessas dificuldades da de viver em uma sociedade. Dessa
relação do eu com o narcisismo, temos maneira, é de grande importância que
uma grande implicação ética do busquemos uma atitude de mais re-
narcisismo: a constituição narcísica do eu conhecimento e menos afirmação sobre o
tem como ameaça a confusão entre a outro. Caso nos entregemos ao narci-
subjetividade e o eu, tomando-os por um sismo, nossa subjetividade expele o outro
só. Isso se reflete em uma postura de e retira-se nas cavernas de um eu
excessiva imposição sobre os outros, solipsista e dividido. ■
afirmando-se por meio do dinheiro, do

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Recebido em:13/08/2007
Revisado em: 23/10/2007
Aceito em: 31/10/2007

Sobre o autor:

Gabriel Almeida Assumpção é aluno do curso de graduação em psicologia pela Faculdade de


Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista em PROBIC pela
FAPEMIG, sob orientação do Prof. Dr.Carlos Roberto Drawin. E-mail: kalosthanatos@yahoo.com

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Mosaico: estudos em psicologia ♦ 2007 ♦ Vol. I ♦ nº 1 ♦ p. 1-10

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