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Belo Horizonte
2011
Ana Carolina Abreu
Bruno Dornelas
David Souza
Kassia Sena
Thainá Sesterhenn
Belo Horizonte
2011
1. INTRODUÇÃO
Com as convenções de Genebra (1863, 1906, 1929 e 1949 – sendo a última a que
regulamentava a proteção dos civis) e a definição dos direitos dos feridos em tempos de
conflito armado (daqui adiante somente conflito), a ajuda humanitária, representada pela Cruz
Vermelha (1863), teve sua atuação institucionalizada, bem como as regras de guerra. Esse foi
o nascimento do Direito Internacional Humanitário, que visa a diminuir o sofrimento humano em
tais ocasiões.
O fato é que, com o passar dos anos, muitas outras organizações, além da Cruz
Vermelha, se inseriram no contexto da ajuda humanitária. Além disso, o fim da Guerra Fria
alterou a dimensão da influência da ajuda humanitária no contexto bélico. De modo que, tanto
acadêmicos quanto profissionais da área levantaram debates acerca do papel da influência da
ajuda humanitária no contexto do conflito. Ou seja, até que ponto a assistência, que tem como
principal objetivo aliviar o sofrimento, pode fomentar os conflitos, de forma a anular os
benefícios que visa trazer.
No que tange ao princípio da neutralidade, este diz respeito a não tomar partido de
nenhuma das partes envolvidas no conflito. Todavia, esse princípio possui uma controvérsia
embutida. Afinal, em alguns casos, permanecer neutro pode representar uma colaboração com
alguma das partes. Sobre esse caso, é válido citar as diferentes posições que a Cruz Vermelha
(CV) e os Médicos Sem Fronteira (MSF) têm a respeito da neutralidade. Enquanto a primeira
organização segue estritamente esse principio, proibindo seus membros, inclusive, de prestar
testemunho sobre abusos, a segunda (que é uma dissidência da primeira), permite que seu
staff goze de sua liberdade de expressão, fazendo ressalvas, apenas, a declarações que
possam colocar o trabalho da organização em risco. De acordo com Terry (2002), a
neutralidade é ambígua, e pode ser perigosa, justamente porque quando um lado, em um
conflito, é muito mais forte que o outro, permanecer neutro pode ser percebido como colaborar
com o lado mais forte.
Outro conceito importante a ser esclarecido é o conceito de refugiado. Quando este foi
formulado, em 1951, a idéia de refugiado que se tinha referia-se, principalmente, aos europeus
que sofreram com as duas grandes guerras. Portanto, o estatuto do refugiado concede uma
série de vantagens a eles, que, na maioria das vezes, devem ser dadas pelo país que os
recebe. Entretanto, com a eclosão de conflitos em outros lugares além da Europa,
principalmente da África, o número de pessoas que necessitava de asilo aumentou. De forma
que o impasse foi resolvido com um manejo conceitual. Ou seja, se o Estatuto do Refugiado
(1951) diz que refugiado é aquele que foge de seu país por sentir-se em situação de risco,
aquele que se desloca dentro de seu próprio país não é um refugiado, mas sim um Deslocado
Interno (IDP)4, de acordo com Thomas Weiss, (2006) de modo que não goza das mesmas
prerrogativas daquele que atravessou as fronteiras.
O fato é que quando o termo foi cunhado, 1982, havia, no planeta, para cada dez
refugiados, um IDP. Atualmente, de acordo com a pesquisa mais recente, segundo Weiss
(2006), para cada um refugiado existem 2,5 IDP. A mudança drástica na proporção é um
reflexo da mudança na natureza dos conflitos. Isto é, com o fim da Guerra Fria, os conflitos
entre estados diminuíram, ao passo que as guerras civis aumentaram. Muitas pessoas nesses
países em conflito não conseguem refúgio em outro país, tornando-se IDPs. Se um refugiado
pode contar com a ACNUR para assessorá-lo, o mesmo não acontece com um IDP, uma vez
que, ainda que hoje eles sejam em maior número, não há nenhuma instituição internacional
exclusiva para lidar com eles. Dessa forma, os IDPs ficam a mercê de ONGs que possam
ajudá-los de forma difusa, e não de maneira coordenada, como no caso dos refugiados.
Todavia, é fato que o paradoxo da ação humanitária tem as mesmas facetas, seja entre
refugiados ou deslocados internos.
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Internal Displaced Person
3. Características dos Conflitos
No que tange à influência das mudanças nos conflitos na ação humanitária, pode-se
dizer que, segundo Terry (2002), durante a Guerra Fria, o escopo da ação humanitária era
dado de forma periférica, muitas vezes a uma segura distância dos conflitos. A mudança na
natureza dos conflitos, no entanto, fez com que a ajuda humanitária assumisse um papel mais
central no conflito. Um dos motivos que podem ser citados é o fato que a com fim do regime de
proteção das duas grandes potências que se tinha, Estados Unidos e União Soviética, os
estados perderam recurso e fomento para os seus conflitos. A mudança na balança de poder
mundial deu margem à instabilidade política em vários países, uma das razões para a eclosão
de guerras civis. Ora, estando com recursos limitados, as milícias geralmente (assim como
alguns países em conflitos inter-estatais) tem duas fontes de renda: apropriação de recursos
alheios e envolvimento com crime organizado. As ajuda humanitária se enquadra como será
discorrido adiante, na primeira das fontes, uma vez que as milícias podem se apropriar dos
recursos destinados ao alivio das vitimas.
É imprescindível, todavia, afirmar que o fim da ordem bipolar gerou uma sensação
próxima do desamparo, em vários países do terceiro mundo, gerando ruptura na distribuição de
poder e dando espaço para a emersão de facções que tentavam preencher o vácuo de poder
deixado. O problema, citado por Anderson (1999), é que ao buscarem o poder, esses grupos
não tinham princípios unitários para constituir os estados. Pelo contrário, buscaram, na história
dos países, fatores que separassem os grupos, a fim de criar um estado heterogêneo, sob a
ótica de dominantes e dominados, propagando, entre a população, a idéia de que era
impossível a coexistência e estimulando sentimentos de mágoa e ódio que foram
internalizados.
Em alguns casos, uma guerra começa por um motivo justo, mas com o decorrer do
conflito e o sentimento que gera, toma um rumo diferente do inicialmente proposto. O clima de
tensão da Guerra Fria deixou muitos grupos, que até então faziam parte de exércitos, sem
emprego, uma vez que, dado o longo tempo que viveram sob beligerância, não tinham outra
ocupação, portanto tinham incentivos em continuar guerreando, por isso não têm interesse no
fim dos conflitos.
Outra característica importante das guerras civis, que predominam atualmente, é que o
enfrentamento não se dá exclusivamente em campos de batalha, visto que não existem mais
dois exércitos se enfrentando, mas sim pessoas do mesmo país, que compartilham uma
história em comum, um idioma, entre outros fatores. Portanto, ônibus, cafés, mercados, podem
ser palco de confrontos. Além disso, a burocracia que norteia os exércitos da atualidade não se
repete no caso das guerras civis, de modo que crianças podem ser combatentes. Além do
fenômeno das crianças-soldados, Anderson (1999), também cita a atuação de gangues nos
conflitos. Essas são grupos armados com propósitos individuais que lutam de um dos lados,
mas de forma independente, de modo que não é possível exercer controle sobre elas.
Contudo, se de um lado tem-se sérias perdas na guerra, de outro lado tem-se ganhos
com a mesma. Uma guerra movimenta muitos recursos, de modo que além dos ganhos da
indústria bélica, tem-se ganhos dos governos que as hospedam, bem como de todos aqueles
que têm seu trabalho diretamente ligado a elas, ainda que seja este trabalho “bem-
intencionado”.
De acordo com Anderson (1999), a falta de lei que se vê em alguns estados, cria uma
idéia de que o poder não emana de instituições democráticas, mas sim de capacidades
militares.
Outro fator que pode contribuir para a retro-alimentação das guerras é o problema da
legitimidade de um grupo que chega ao poder pelo uso da força indiscriminada, ou seja,
dificilmente um grupo que assume o governo de um estado após um massacre, conseguirá
governar sem que haja tensões e tentativas de destituição do grupo por parte dos reprimidos.
Esses, por sua vez, se já tiverem participado de guerras, hesitariam menos a pegar em armas,
do que aqueles grupos de oposição que nunca viveram uma realidade bélica.
A cultura da violência também deve ser destacada. Alguns estados têm gerações
inteiras que nasceram e se criaram em um contexto belicoso e tendem a incentivá-lo. A
banalização da vida é recorrente, e valores como esse não mudam com o cessar-fogo.
Anderson (1999), define três estágios da guerra que um aid worker pode observar e
tentar direcionar seu trabalho. O primeiro deles é o questionamento, por parte do povo, a cerca
das causas do conflito: “por que fazemos isso se somos todos iguais?”. Com a escalada do
conflito, passa-se para o segundo estágio, no qual as pessoas estão convencidas de que não
podem coexistir. Com o passar do tempo e as grandes perdas trazidas pela guerra, as pessoas
voltam a se perguntar por que o conflito começou e as tendências a um cessar-fogo aumentam.
Os aid worker, seja em seus projetos, seja no contato diário com as vitimas, devem se
esforçar para incentivar a paz ainda no primeiro estágio do conflito, antes que as
conseqüências que o mesmo podem trazer sejam extremamente danosas.
Mary Anderson faz parte de um projeto que visa desenvolver as capacidades locais
para a paz (Local Capacities for Peace Project). Baseada nisso, ela lista os fatores que podem
ser incentivados para a promoção da paz e serem visto como conectores, ou, se não forem
bem administrados, podem fomentar a guerra, funcionando como divisores.
As atitudes e ações dos indivíduos também são citadas por Anderson (1999) como
uma possível fonte de identificação entre os lados inimigos, uma vez que alguns grupos
simplesmente não aceitam a segregação que tentam impor. A autora cita um exemplo ocorrido
na Somália, no qual um jovem relatou a ela que não via sentido na separação que era
incentivada pelos senhores da guerra, pois segundo ele, os clãs, por meio do casamento, já
tinham se misturado de tal maneira que uma pessoa poderia pertencer a vários grupos
diferentes, e muitas vezes inimigos. Da mesma forma, atitudes de preconceito, violência,
brutalidade e falta de lei podem criar um ambiente que favoreça a disseminação do conflito.
Por fim, os símbolos, podem unir lados em um conflito. Um feriado nacional, por
exemplo, pode evocar a memória conjunta do povo, fazendo-os refletir sobre a situação em que
vivem. Entretanto, os mesmos símbolos, quando são de subgrupos, podem incentivar a
separação e o ódio.
Cabe aos aid workers identificar esses conectores e agir de forma a destacá-los.
Segundo Anderson, essa é uma dificuldade real, e como agravante, os senhores da guerra têm
uma grande habilidade em identificar as capacidades para a guerra e incentivá-las. Isso se
mostra como um grande desafio para a ação humanitária, uma vez que, se as capacidades
para a paz se sobressaírem, a possibilidade de sucesso do estado, após o cessar-fogo, é
maior.
• As ONGs tendem a trabalhar onde o governo não alcança. Como foi dito, a
ajuda humanitária deve ser dada, em primeiro lugar, pelo governo local, de modo
que o trabalho internacional só ocorre na ausência do mesmo. Isso cria o
problema da substituição. Ou seja, a assistência internacional substitui a
autoridade local e pode fazer com que a mesma poupe seus recursos. Isto é, as
ONGs e agências estrangeiras encarregam-se de cuidar das questões civis, ao
passo que as autoridades locais concentram seus recursos na atividade militar,
fomentando, assim, o conflito. Esse dilema é bastante complexo de forma que
não há nenhuma solução efetiva para o mesmo. O que Anderson (1999) sugere
que seja feito, é o reforço das atividades que possam ser realizadas, também, em
tempos de paz, mas essa nem sempre são efetivas para o problema da
substituição;
• Outro fator importante a ser analisado é como as condições de trabalho dos aid
workers podem influenciar os receptores da ajuda. O fato é que quem trabalha
com ajuda humanitária vive em um ambiente de tensão, e, portanto, precisam de
momentos de fuga para preservar a saúde física e mental. Esses momentos são
proporcionados pelos recursos das agências e podem ser mal-interpretados pelos
receptores da ajuda, na medida em que eles passam a achar que os
administradores dos recursos têm direito de usá-los em seu beneficio individual.
Logo, os senhores da guerra se aproveitam dessa imagem para usar,
individualmente, recursos coletivos;
• Muitas vezes os aid workers podem passar aos receptores da ajuda uma idéia
de impotência em relação ao conflito. Essa idéia pode ser oriunda da frustração
pessoal com o andamento do trabalho, ou da própria burocracia da organização
que não delega a ele competência suficiente para determinada ação. O fato é que
em zonas de conflito, os locais vêem os aid workers como fonte de recursos.
Sendo assim, se eles se acham incapazes, os locais também internalizam a idéia
de impotência diante da guerra, facilitando, assim, que essa se perpetue;
• Muitas vezes, os aid workers se vêem em situações nas quais consideram que
precisam se valer de sua posição de agência para alcançar determinado objetivo.
Por exemplo, reiteram sua função para uma milícia local para se colocarem em
uma situação de poder, para terem acesso à determinada área. Ou então, tratam
representantes da milícia de maneira quase bárbara de modo que eles podem
interpretar isso como “estou sendo bárbaro como você”. Esse comportamento,
segundo Anderson (1999), contribui significativamente para as tensões;
Assim como a natureza dos conflitos mudou, a dinâmica da ação humanitária também
mudou. Ao analisar o trabalho que vêm sendo feito por parte das ONGs e agências
internacionais, vê-se que o conceito que o OCHA apresenta sobre ação humanitária não
abrange mais todo o escopo do trabalho desenvolvido em regiões de conflito. Parece que a
tendência que se vê emergindo nos trabalhos da ajuda internacional não se restringe, apenas,
ao conceito de “food and shelter”, uma vez que questões como educação vem sendo colocada
na agenda da ação humanitária.
Um exemplo que pode ser citado é a atuação da UNICEF (United Nations Children’s
Fund) em campos de refugiados. O órgão não foi desenvolvido necessariamente para
catástrofes. Entretanto, atuou no Líbano desenvolvendo projeto de educação entre as crianças,
para que além dessas não ficarem defasadas, por causa da guerra, pudessem ser incentivadas
a criar uma cultura da paz. O projeto SAWA/Education for peace, reafirma a preocupação da
ajuda humanitária com o desenvolvimento em longo prazo.
Já a Cruz Vermelha realizou no Burundi5, país com uma forte cultura da violência, um
projeto que tinha como principal objetivo disseminar entre a população local o os princípios do
Direito Internacional Humanitário, com o intuito de disseminar as capacidades para a paz
naquela região. Ainda que o programa já tenha sido finalizado, os resultados ainda não são
evidentes, uma vez que além de serem difíceis de medir, eles aparecerão no longo-prazo.
Ações como essa fazem parte daquilo que Gibbons (2005) chama de “novo
humanitarismo”. De acordo com o autor, esse novo tipo de humanitarismo é mais político e
busca ações de longo-prazo, uma vez que acredita que o alivio do sofrimento não é apenas
imediato, mas sim, baseado em estratégia para a solução dos conflitos.
5
País que assim como Ruanda também é dividido entre Tutsis e Hutus, sendo esses últimos a grande maioria.
6
Ver Ruggie, John. Embedded Liberalism, 1982.
6. Considerações Finais
Entretanto, justamente por esse impacto ser incomensurável, não é possível afirmar se
a ajuda vale apena, apesar do mal que causa, ou não. Até porque, essas organizações são
burocracias, e sofrem dos dilemas inerentes a mesma. Cabe aos acadêmicos e aos aid
workers pensarem em soluções que mitiguem a possível influência negativa.
Todos esses fatores mostram que a ação humanitária vem ficando cada vez mais
abrangente, e alcançando um escopo diferente trabalho inicial do socorro aos feridos, iniciado
no século XIX por Henry Dunant, fundador da Cruz Vermelha.
7. BIBLIOGRAFIA
ANDERSON, Mary B. Do no Harm: How Aid Can Support Peace - or War. Boulder,
CO. Lynne Rienner, 1999.