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Contos Reunidos
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Neste volume o leitor se deparará com textos que
vão de uma sutil investigação psicológica à crítica
social e política. Os autores são jovens estudan-
tes que, ao procurar a própria voz, identificaram
na literatura um espaço em que podem exprimir
as multidões que cada um guarda dentro de si.

Daniel José Gonçalves

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Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

Nosso tempo, Carlos Drummond de Andrade

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Uma História de Primavera
Ricardo Nesello Künzel

J á fazia algum tempo que o Capitão da 34ª divisão de infantaria merecia voltar para sua
humilde fazenda nas Highlands escocesas, mas infelizmente para ele e para os outros
300.000 soldados que batiam à porta da Normandia, porta guardada por nazistas, nazistas e suas
armas.
A maresia, junto com o fétido suor dos soldados, invadia seu nariz, e atiçava o seu estômago a
devolver a rala refeição que havia recebido algum tempo atrás. No entanto, ele já havia participado
de combates antes, e ele sabia que o fedor de verdade começaria em breve, sangue, pólvora, cadá-
veres, esses sim tinham alguma chance de provocar uma ânsia de verdade.
Ele se perguntava quem estava numa situação pior, ele e seus homens, que teriam que escalar
uma parede rochosa, atravessar um campo aberto para ir de encontro a ninhos de metralhadora
recheados de munição, ou os para-quedistas que estavam fazendo o trabalho sujo atrás das linhas
inimigas para aumentar as chances de um desembarque bem sucedido. ―Bem, isso não importa
nesse momento, estamos todos indo em direção à morte mesmo.‖
Ele mudou de idéia na metade da escalada ―Sorte deles, essa barreira alemã não tem telhado...‖.
As balas que partiam das metralhadoras MG-42, dentro dos bunkers, não paravam de voar em dire-
ção ao abismo escalado pelas tropas aliadas, então o Capitão não tinha nenhuma pressa de termi-
nar a sua escalada. Quando o soldado inimigo que defendia a posição à qual a 34ª avançava, o líder
dela terminou de subir. Os poucos segundos que ele tinha foram suficientes para se esconder atrás
de uma pilha de corpos, que cheiravam muito mal por sinal, e começar a mirar com seu Springfield
um projétil, almejando a cabeça do operador da MG-42, é claro.
A pequena abertura, de alguns centímetros de altura, não facilitava o tiro do Capitão, e ainda as-
sim seria muito mais fácil atingir o inimigo através daquela abertura do que através da parede, com
no mínimo 25 centímetros de espessura. Sem pressa para matar, ou para morrer, ele mirou e dispa-
rou, somente para ver outro soldado nazista assumir o posto do companheiro que acabara de ser
eliminado. ―Vai ser uma tarde bem longa‖ pensou o atirador.
Disparo após disparo, a isso se resumiu as atividades dele na tarde, correr em direção ao arma-
mento pesado inimigo não ganharia aquela batalha. Bem, os japoneses tentaram diversas vezes na
frente de batalha no Pacífico, e não conseguiram. Observando dezenas de americanos, principal-
mente, morrerem, muitos dos soldados ingleses se desesperaram, mas o veterano sabia, não há
lugar para desespero naquele campo de morte. Após gastar a sua munição, e a de outro soldado
morto, ele precisava de algo para atirar em direção àqueles ninhos. A sua movimentação para pegar
mais suprimentos dos corpos próximos revelou, finalmente, aos alemães, que já estavam ficando
preocupados com tantas baixas dentro de uma casamata, a sua posição. Àquela altura, o flanco es-
querdo já avançava e a contribuição do Capitão já havia mostrado o seu valor, e o alemão que ope-
rava a metralhadora naquele momento não teve oportunidade para vingar seus companheiros que
jaziam sem vida ao seu redor.
Não se sabe o que aconteceu com o Capitão durante àquela guerra, porém, sabe-se que seus
aliados venceram, os alemães começaram a perder batalhas na França, na Rússia e no norte da
África, e terminaram perdendo a guerra em Berlim. Quanto à munição, bem, ela nunca distinguiu
vidas alemãs das vidas inglesas, e nunca vai fazer esta distinção.

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Reportagem Licsa
Félix Yowtang Liu

O lhei para a minha mesa e dei um suspiro. Aquela enorme pilha de anotações já estava
se acumulando ali havia dias e, apesar dela ter crescido assustadoramente desde que
eu começara a coletar informações para a nova matéria, eu ainda não havia encontrado o que eu
queria.
Estava exausto. Havia passado a maior parte das últimas semanas entrevistando várias pessoas
sobre o assunto. O resultado – insatisfatório – estava espalhado por ali, no meio daquela montanha
desorganizada de papéis, entre artigos e reportagens que eu havia recortado de diversos periódicos.
Infelizmente, só era possível encontrar uma informação relevante naquela desordem: descoberto
recentemente, Anáclis era um pequeno arquipélago a sudeste do continente cateriano. E isso, sendo
ao mesmo tempo tudo o que eu tinha e tudo o que todos já sabiam, estava me deixando frustrado.
O meu prazo de entrega estava marcado para daqui a alguns dias e eu realmente detestaria en-
tregar apenas mais uma reportagem como as que eu havia recortado – curtas e com poucas infor-
mações, porque não havia praticamente nada a se falar.
O mais simples seria perguntar aos habitantes do próprio arquipélago, que deviam saber muito
mais do que qualquer um de nós porque, oras, eles mesmos eram o assunto. Mas isso definitiva-
mente não era uma opção.
A maioria das reportagens sobre o assunto – quase todas – apontavam para cada um dos inúme-
ros fracassos do ministro licso das relações exteriores, Haprício von Caserdort, em contatar os nos-
sos novos vizinhos. A própria nomo Nicéria II tentara contatá-los pessoalmente. Seu pedido foi igual-
mente recusado.
Sem dúvida nenhuma, eles estavam negando completamente qualquer contato conosco e prova-
velmente continuariam negando os contatos futuros. O que estava deixando muita gente profunda-
mente irritada.
A maior parte das pessoas, claro, não estava lá muito interessada no assunto. Preferiam passar
os seus dias trabalhando para ganhar algumas tërias e levar a vida numa boa. Vez ou outra alguém
comentava sobre o assunto:
— Então, ontem eu ouvi que o Haprício tentou falar com os Anáclisos de novo. – diria alguém.
— Ah, legal. – seria a resposta desinteressada do outro.
E a conversa geralmente acabava aí; todos já sabiam o fim da história. Claro que sempre corria
um boato ou outro, permitindo que o tópico sobrevivesse por mais algum tempo. No geral, isso fa-
lhava miseravelmente.
Enquanto eu dava um jeito de enfiar toda aquela papelada dentro de uma caixa, pensava no últi-
mo boato que eu ouvira. Se eu não me engano, era o de que tripulantes de um navio pesqueiro jura-
vam ter visto a face de Nemileu Tadamin. Isso, era esse o nome: Nemileu Tadamin. Não me lembra-
va quem era, mas soava familiar. Pretendia pesquisar assim que chegasse aqui, mas eu havia es-
quecido que hoje era o dia da mudança.
Com um pouco de esforço, consegui fechar a caixa. Agora, só me restava esperar a equipe de
mudanças voltar para levar as últimas coisas. Ou seja, eu ia esperar por muito tempo; eles tinham
acabado de sair.
Deixei a caixa num canto qualquer e olhei para o escritório, agora quase vazio. Estava de pé so-
bre um piso impecavelmente imundo de madeira de idís, no meio duma sala bem espaçosa com
algumas caixas num canto, um telefone no chão, algumas mesas, um arquivo pequeno.
Desde que eu começara a trabalhar aqui, nunca havia sequer tocado naquele arquivo. Sabia qual
o seu conteúdo – um dos nossos colegas costumava passar um bom tempo vasculhando aquelas

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duas gavetas repletas de pastas. Ele dizia que era por pura diversão, mas eu nunca entendi como é
que alguém poderia se interessar tanto pelos documentos que estavam ali. No geral, eram apenas
rascunhos de reportagens que não haviam sido publicadas. Resolvi dar uma olhada. Abri uma das
gavetas, detive-me por alguns segundos para apreciar o doce cheiro de bolor e retirei uma pasta
qualquer.
Convenientemente, a parte inferior da velha pasta cedeu-se e tudo o que estava lá dentro – uma
papelada idêntica a que estava sobre a minha mesa momentos atrás, só que embelecida com a a-
ção do tempo e da humidade – espalhou-se rapidamente pelo chão. Agachei-me para apanhar tudo
e, para minha surpresa, o primeiro documento que eu peguei mostrava uma velha reportagem com
um jovem Nemileu.
Sim, agora me lembrava. Nemileu havia sido um dos líderes do movimento Antimáter, há uns
quarenta anos atrás. Meus pais não gostavam dele. Quando eu era menor, morava em Terro-
Suntäro e costumava vê-lo gritando a esmo na Praça Central, mas não entendia ainda sobre o que
ele falava. Foi apenas quando lemos sobre ele em história nacional, lá nos meus tempos de estu-
dante, que eu fui saber que ele lutava contra os costumes licsos. Ele dizia que os nossos costumes
eram nojentos e que com eles nós havíamos amaldiçoado toda a terra. Que toda aquela bela sujeira
não passava de nossa ruína.
Claro que ninguém gostou disso. Isto é, ninguém exceto um grupo realmente pequeno, que a-
chou ele revolucionário. Um bando de espertalhões que gostavam de bancar como ―intelectuais‖.
Achavam-se tão superiores quando recolhiam tudo o que era descartado e depois ateavam fogo
naquilo. E o costume deles de cavar buracos para defecar neles? Que ideia ridícula. Uma prática
desnecessária que exigia esforço demais para um método nada eficiente. E depois eles ainda os
tampavam! Por um acaso eles tinham vergonha até das próprias fezes?
Há tempos que mantemos os nossos costumes. Desde os primeiros licsos, centenas de anos
atrás, e através das gerações até a atualidade, todos estes costumes permaneceram intocados. In-
fringi-los seria um insulto. Não, mais do que isso: uma heresia.
Pelo que eu me lembre, o movimento foi fortemente repreendido pelas forças nomádicas, sob
uma ordem direta da nomo Nicéria I, no dia em que pretendiam acabar com as nossas fábricas, que
para eles eram "o símbolo de toda a sujeira da nossa cultura". Aos participantes, prisão perpétua.
Aos líderes, execução. Os muitos que resistiram foram mortos naquele dia, que ficou conhecido co-
mo o Dia de Enniki.
Calmamente recolhi os outros documentos, empilhei-os todos e deixei-os sobre a minha mesa
para analisar melhor o conjunto. Puxei uma caixa grande para me sentar e comecei a lê-los, um a
um.
A calma não durou muito. Momentos depois, olhava para a minha mesa e dava um outro suspiro.
A princípio, estava organizando as folhas numa pilha de material lido, mas logo, devorado pelo me-
do, eu acho, já não me importava mais com a organização e no fim encontrava-me novamente com
uma montanha desorganizada de papéis sobre a mesa.
Eu tremia. Sentia, dentro de mim, um misto de... Não sei bem ao certo o quê. Por um lado, esta-
va animado, porque finalmente encontrara o "algo a mais" que procurava para a matéria. Por outro,
estava perplexo, pois o meu profissionalismo não era desenvolvido o suficiente – e provavelmente
nunca seria – para evitar que eu o estivesse. Um furo de reportagem logo ali, nas minhas mãos!
Respirei fundo, porque não se pensa direito quando se está confuso, e decidi fazer o que parecia
mais certo: falar com o senhor Glaisto Anerinte. Foi o que fiz no dia seguinte. Logo depois que eu
terminei de falar das informações que obtivera, ele me indicou um endereço numa pequena cidade
ao sul.
O homem que me atendeu naquela humilde casa nos arredores de Abi já apresentava os seus
primeiros sinais de velhice. Apesar disso, parecia em ótima forma. Não parecia ter chegado aos cin-

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quenta, mas essa era uma impressão minha. Na sua face era possível perceber uma profunda triste-
za, mas isso poderia também ser só impressão minha.
— Senhor Ecsen? Ecsen Videcto? – era o nome que eu anotara.
— Sim?
— Bom dia. Meu nome é Adusci Grafos e trabalho para a Gazeta de Licson. Gostaríamos de fa-
zer algumas perguntas a respeito de Anáclis, tudo bem?
Ele pareceu estranhar. Estremeci por dentro. Por um momento, pensei que ele não aceitaria,
mas, pelo contrário, convidou-me para entrar.
Depois que nos acomodamos na sala dele, expliquei tudo o que eu havia explicado a Glaisto.
Durante toda a minha explicação, Videcto não esboçou a menor mudança em seu semblante.
— É isso? – foi a resposta dele.
Eu não entendi.
— Sim, é isso, senhor. – respondi, incerto.
Lentamente, ele levantou-se da cadeira e abriu um armário lotado de livros. Do meio deles, ele
retirou o que parecia ser um álbum de fotografias. Passou o livro para mim.
— Garoto, há tempos venho me perguntando que fim teve Nemileu. – disse ele, sem entusiasmo
algum – Tinha certeza de que ele não havia sido executado.
Abri o álbum. Havia somente uma fotografia; todas as outras páginas estavam em branco.
— Essa fotografia foi tirada no dia em que fui a Licson pela primeira vez. Foi também quando
conheci Nemileu. Esse homem da direita é o Glaisto.
Olhei para a fotografia por alguns momentos, analisando cada detalhe. Sem dúvida, fora tirada
na Praça Central de Licson. Era a nova vista do nosso escritório. Pouca coisa havia mudado. Nemi-
leu, Glaisto e Ecsen conversavam.
— Pela primeira vez, você disse? – perguntei.
— Sim, a primeira e única. Permaneci lá por alguns dias e depois voltei para Hapla.
— Mas então você não esteve lá no dia de Enniki?
— Não, não. Isso foi alguns dias depois que eu saí. Eu já havia voltado para casa.
Devolvi o álbum para ele, que tornou a guardá-lo.
— Mas... Você sabia do ataque? – perguntei quando ele voltava a se sentar.
— Ah, sim, sabia. Nemileu estava realmente empolgado, mas eu... Eu ainda não entendia os mo-
tivos dele.
— Como assim? – não fazia sentido.
Houve um silêncio.
— Meu garoto, até aquele dia eu nunca havia saído de Hapla. Era a primeira vez que eu via o
mundo lá de fora e tudo era novidade para mim. Glaisto, que sempre falava muito disso, me guiava
pelas ruas de Licson mostrando cada uma das maravilhas do mundo licso...
Segundo ele, havia muitos anos, Hapla era um pequeno vilarejo que nunca havia entrado em
contato com o mundo de fora. E nenhum de seus habitantes pretendia, pois simplesmente não havia
necessidade nem curiosidade de fazê-lo.
A vida lá era simples e rudimentar. Todos se conheciam e não haviam grandes emoções. Uma
vez ao ano eles tinham um Festival da Colheita e todos os dias, nos fins de tarde, eles se reuniam
em sua pequena praça para ouvir as magníficas histórias do Contador de Histórias, que era o cara
mais admirado de toda a vila.
Ele contou que, numa certa noite, bem no clímax de uma das melhores histórias que o Contador
de Histórias já tinha contado em toda a vida, houve um clarão intenso e uma explosão ensurdecedo-
ra no bosque ao lado. Foi quando eles entraram em contato pela primeira vez com um licso. A explo-
são havia sido causada pela queda de uma autêntica nave licsa, pertencente a Glaisto Anerinte.
Eles então cuidaram de Glaisto, que virou rapidamente o centro das atenções. Todos, incluindo o

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Contador, se reuniam todas as tardes e ouviam as histórias que ele tinha para contar do mundo ex-
terior.
O pessoal todo, claro, estava ficando empolgado com a ideia de sair de Hapla e ver com os pró-
prios olhos tudo o que Glaisto descrevia – as luzes, as máquinas, as construções. Só que nem todos
estavam dispostos a fazê-lo, talvez por medo.
Foi quando Ecsen e Glaisto viraram amigos.
Quando Glaisto havia finalmente se recuperado do acidente, convidou Ecsen para visitar Licson,
que era a sua cidade-natal. E Ecsen o acompanhou com prazer.
A princípio Ecsen ficou maravilhado e apavorado ao mesmo tempo com todas as novidades que
os seus olhos viam. Eram tantas coisas, tantas cores, tanto movimento, tanto som! Tudo tão cheio
de vida!
E esse gosto era partilhado por um dos melhores amigos de Glaisto, Nemileu Tadamin, que esta-
va, nessa época, no auge do movimento Antimáter, fazendo discursos para imensas multidões na
grande capital licsa que era Licson.
Os três tiveram boas conversas por alguns dias, mas Ecsen percebeu que realmente sentia falta
de casa e queria voltar. Nemileu não queria. Havia gostado muito de Ecsen e tinha até tentado con-
vencê-lo a lutar pela causa antimátera. No entanto, a causa não fazia sentido algum para Ecsen por-
que Hapla não partilhava dos mesmos costumes que os Licsos. Nemileu entendeu, mas não deixou
de falar que, se Ecsen por um acaso mudasse de idéia, ele ainda poderia participar do atáque à En-
niki, que era um pólo industrial próximo a Licson.
Ecsen não mudou de idéia. Voltou para Hapla alguns dias depois e só foi ter mensagens dos lic-
sos quando, numa calma tarde de verão, um agente da Companhia Licsa de Serviços Postais pas-
sou pela vila procurando um tal de "Ersen".
Na mensagem, Glaisto falava sobre os acontecimentos do dia de Enniki, dizendo que ele estava
sob prisão domiciliar – e continuava até hoje – e que os outros companheiros estavam bem. Não
entrou em detalhes.
— A carta ainda está com você? – perguntei, depois que ele terminou.
— Ah, não. Infelizmente eu acho que a joguei fora.
— Mas por quê?
Ele levantou-se e andou até uma janela. Eu o acompanhei.
— Está vendo aquela cidade ao longe? – perguntou ele, apontando para Abi.
— Sim. – respondi. – Aquela é Abi.
— Agora ela é Abi. Anos atrás, antes dos Licsos chegarem aqui, ali ficava Hapla. Ela começou a
se tornar o que é hoje pouco depois que eu voltei de Licson.
Entendi. Ele havia perdido muitas coisas que pertenceram à vida dele e, no lugar delas, foi colo-
cado algo completamente novo. Eram os sinais do fim de uma vida, para quem ainda não era tão
velho assim. E eu ali, indagando-o sobre apenas um dos detalhes da vida dele.
Agradeci-o pela colaboração e deixei-o em paz.
No fim, o dia da entrega da minha matéria chegou, e eu não tive escolha alguma senão entregar
mais uma reportagem como as que eu havia recortado. Afinal, não queria mais incomodar aquele
velho homem com esse assunto bobo, nem mais ninguém.
Consertei aquela velha pasta, guardei os documentos e os coloquei de volta no arquivo.

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O Crime Compensa
Caio Silveira

M arcus Johnson, apesar de usar estratégias diferentes a cada vez, sempre arquitetava
meticulosamente todos os passos de seus planos criminosos: desde a ideia em si à
sua plena realização e fuga aos olhos dos policiais. Primeiramente, decidia o que faria; depois, fre-
quentava o local do futuro crime pelo tempo que achava necessário, detalhadamente notando, por
exemplo, a entrada e saída de empregados, se numa empresa, ou a frequência com que clientes vi-
nham a uma loja; assim, formava imagens do dia em que viria executar o planejado – percorrendo
todo o seu caminho e analisando a segurança do lugar em geral – e, finalmente, circundava toda a
vizinhança observando a existência de caminhos alternativos para uma fuga mais rápida e discreta.
Por ser um homem de inteligência rara e de alta capacidade de abstração, costumava sempre
considerar o máximo possível da improbabilidade vigente em situações reais, assim dando aos seus
planos muitas opções extras e possibilidades de improvisação. Assim funcionou por oito anos, perío-
do no qual houve o assassinato de nove homens e mais alguns roubos por parte de Marcus – o que o
tornou o único serial killer procurado internacionalmente e, devido ao fato de se encontrar foragido
judicialmente por tanto tempo, obrigou-o a aderir técnicas nômades à sua vivência e a mudar sua i-
dentidade diversas vezes; até que, em seu décimo quarto crime, o homem, sob pressão de todos os
problemas que a mídia lhe causava ao abordar criticamente seus feitos, cometeu um erro sistemático
que, ao final, resultou em sua prisão perpétua.
Ele havia planejado matar um famoso comerciante de armas que, visando o lucro próprio, vendia
aos seus compradores produtos de péssima qualidade por um alto preço – fato que irritou Marcus um
ano antes do dia em questão, ao cair em seu golpe. Depois de uma semana observando suas ações,
descobriu que o vendedor ficaria num hotel de luxo austríaco por mais doze dias e que permanecia
em seu quarto no terceiro andar todas as manhãs até o meio-dia; assim, estudou o sistema de servi-
ços e segurança do local – memorizando onde câmeras encontravam-se e descobrindo o horário de
limpeza dos quartos e funcionamento de academias e restaurantes.
Dentre outros detalhes, descobriu que, em cada um dos oitenta e dois andares do lugar, constava
uma grande lixeira colocada todos os dias no mesmo horário próxima a um braço mecânico, o qual a
pegava e despejava seu conteúdo em um compartimento que conduziria todo o lixo a uma caçamba
externa; por fim, as lixeiras eram recolhidas minutos antes de meio-dia por um empregado do hotel.
Considerou que, após lidar com a vítima, provavelmente notariam a falta desta rapidamente e a
polícia logo seria acionada; ele, então, trocaria seu uniforme de limpeza por um macacão de couro
com capuz e máscara – cobrindo assim todo seu corpo; em seguida, desceria sorrateiramente dois
andares e entraria na lixeira do corredor. Se fizesse isso discretamente, cairia na caçamba e mais
uma vez estaria livre se tomasse cuidado com possíveis viaturas policiais.
No dia marcado, o assassino foi ao hotel e, subindo ao terceiro andar, executou sua obra; descen-
do as escadas, trocou suas roupas e, já no primeiro andar, correu ao local onde o braço mecânico
encontrava-se, à sua direita. Ali parou abismado no amplo corredor de paredes brancas, notando que
a lixeira não estava lá como de rotina: para infortúnio de seu plano, na noite anterior foram servidos
frutos do mar estragados; por isso, em conta da situação da maioria dos hóspedes, as lixeiras ficaram
muito fétidas pela manhã – necessitando em urgência o recolhimento prévio de todo o lixo.
Marcus ficou paralisado no local, pensando em uma maneira alternativa de fuga e culpando-se por
não ter meditado sobre isto anteriormente; entretanto, surgiu pelo elevador, à esquerda do homem e
pela escada, à sua direita, dois grupos compostos no total por doze policiais, acionados no momento
de chegada do assassino no hotel, cercaram o homem, que, sem outras opções, fora obrigado a se
entregar à Justiça.

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Eu sabia que não ficaria aqui para sempre. Depois de um ano e meio, consegui, mas os alarmes
soam! Isso significa que aqueles terríveis defensores do bem acabaram por descobrir minha fuga,
enfim; já se passaram quase vinte minutos desde que deixei aquele cubículo imundo – atravessando
as fronteiras da prisão – e só agora os trouxas notaram minha ausência, o que pode ser muito pro-
veitoso se eu conseguir pensar em como usar do jeito certo essa vantagem... O que seria melhor?
Procurar um lugar bom e discreto passando por aquela floresta densa na esquerda, talvez? Ou vou
cuidadosamente pela estrada? Mas este outro som logo atrás de mim... Só podem ser uivos e lati-
dos caninos e burburinhos humanos a uma distância que parece ser incrivelmente pequena; então
vou tentar a floresta – como naquela vez na Alemanha, quando despistei policiais pela décima pri-
meira vez, há três anos.
Lembro-me daquela fuga como se fosse ontem! Aprendi em meio ano todo o esquema de segu-
rança do lugar e, depois de tirar a consciência de meia dúzia de guardas do governo, alcancei meu
velho amigo Johann Lischwall, morador de um prédio de alta classe e segurança em Munique e cra-
vei-lhe um tiro no peito e outro na cabeça – as drogas do homem eram famosas por aquelas ban-
das, sabem? Descobri pouco antes de seu assassinato que o safado, apesar de amigo de infância,
enriqueceu às minhas custas depois de se aproveitar, durante três anos seguidos, dos meus ganhos
e, o pior, sem nem ao menos devolver o dinheiro que eu lhe emprestava – criando com isso uma
imensa rede de tráfico de drogas. Muito bem feito: abusou do dinheiro de seu melhor amigo para
entrar neste tipo de negócio ilegal e acabou morto! O meu problema foi que os vizinhos assustaram-
se com barulhos anormais e chamaram a polícia, mas nada que um pouco de treinamento, Le Par-
kour, filmes de artes marciais e experiência em escotismo não resolvessem. A ocasião veio-me à
cabeça então pelo fato do prédio de Johann ficar ao lado de um bosque imenso – o qual exigiu mui-
to estudo e que me abrigou momentaneamente no longo período em que permaneci espião de mi-
nha vítima.
De minha cela, o lugar que agora estou tinha um aspecto menos tenebroso: quantidade indefiní-
vel de árvores de troncos grossos e curvos, que parecem espíritos com as mãos espectrais ao alto,
cercam-me de todos os lados; começou a chover – o que ensopou meu velho e preferido par de bo-
tas e meu sobretudo russo – e mal enxergo a Lua ou indícios de luz, já que as copas das árvores
geram juntas escuridão de alto grau. Este bosque, assim, remete-me ao meu passado; desta vez, à
minha adolescência. Lembro-me que gostava de passear em parques e pequenos bosques em mi-
nha humilde cidade natal, em companhia de minha mãe; andávamos quase todos os dias juntos, no
final da tarde, até o dia de sua morte...
Costumávamos discutir minha vida conturbada, já que naquele período não via razões na dedica-
ção ao estudo e frequência rígida à escola, então perambulava entediado pelas ruas pacatas da re-
gião. Segundo ela, era importante preocupar-se com uma boa vivência, composta por diversas ami-
zades, muito estudo, uma família e um curso decente de faculdade gerador de empregos de alta
qualidade; mesmo assim, nunca dei muitos ouvidos às suas palavras – o que creio às vezes não ter
sido a ação certa.
Estou sob pressão por conta dos uivos próximos a mim, já escorreguei diversas vezes no musgo
tentando despistar a força policial, não tenho ao menos uma arma para minha defesa e a escuridão
em nada me assiste. Talvez minha escolha não foi a melhor, mas achei mais apropriado seguir a
experiência passada; pela estrada, seria possível minha captura por automóveis, entretanto, meu
cansaço viria a ser menor.
Minhas pernas e meus braços... muito cansados! Corro com incrível dificuldade, mas não duvido
muito que seria metralhado caso parasse: os policiais e seus cães perseguem-me com fúria colos-
sal. E... O que é aquela luz branca bruxuleante distante à minha frente? Só pode ser a saída deste

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inferno de árvores! Mesmo assim, não posso simplesmente atingir aquele ponto em minhas condi-
ções, pois estaria extremamente vulnerável e meu paradeiro esclarecer-se-ia totalmente aos olhos
dos carcereiros; não, preciso antes despistar o grupo que me busca incessantemente. Para isso,
bastaria descobrir uma forma de utilizar as árvores e a escuridão em meu benefício.
―Ali está ele! Chega de psicopatas perigosos! O governador autorizou a morte daquele prisioneiro
caso não conseguíssemos pegá-lo numa fuga... HOMENS! Preparar para abrir fogo!”, ouço a alguns
metros – logo atrás de mim. Então quer dizer que os policiais receberam autorização para abrirem
fogo contra mim? Isso definitivamente não é bom! Preciso... Ah! Minhas costas!
Então a minha vida termina por aqui, em tamanha crueldade? Mais tarde estudei; aprendi muito e
adquiri o hábito de ler livros e textos famosos, como os de Edgar Allan Poe ou de Sir Arthur Conan
Doyle; tornei-me por fim mártir dos assassinos em série, mas sempre fui uma pessoa muito solitária:
não casei, muito menos tive filhos, nunca confiei em meus amigos e raramente sentia necessidade
da companhia deles, sempre detestei manter horas de conversas a fio com qualquer pessoa que
não minha mãe...
Talvez devesse ter prestado mais atenção aos conselhos dela – para evitar a tragédia no fim. As-
sim, seria possível o oferecimento de chances de usar minha inteligência para outros feitos: ficar
famoso por inventar algo que revolucionasse a Física, por exemplo, ao invés de ser conhecido como
um dos maiores assassinos da História. Nada de sucesso e paz; apenas tornei-me uma pessoa obri-
gada a ter uma vida à margem do cotidiano comum e especializada em eliminar facilmente todos
aqueles que não satisfaziam aos meus interesses próprios. Ao menos terei mais uma vez a compa-
nhia da única pessoa que um dia me entendeu e que perdoou meus erros: minha querida progenito-
ra, perdida a tanto tempo por conta de meu desvio comportamental.

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Fidelidade
Nathana Louise Czornei

O s meus motivos?É isso o que o senhor quer? Entender porque uma pessoa aparente-
mente tão serena faz o que fiz? Deixe-me te ajudar então, visto que passarei muito
tempo aqui e não tenho mais nada a perder.
Quero que fique claro que não foi por ódio ou vingança e que não sou um assassino frio e desal-
mado. Uma parte de mim morreu com ela e tudo o que eu fiz foi por amor.
Quem ama não faz uma coisa dessas, o senhor me fiz. Eu discordo. Ela estava sofrendo, não
tinha perspectivas, já não sonhava mais... Eu acabei com o sofrimento dela e ainda tomarei toda a
culpa sozinho, passarei o restos de meus dias aqui. Isso é amor!
Se eu não hesitei?Mas é claro que sim!Você não aceita o fim de uma pessoa amada como quem
aceita o fim do dia. Você espera que a pessoa lute até o fim, nem tanto por ela, mas por você mes-
mo. Um suspiro de puro egoísmo. Quando passei a pensar nela e não em mim, vi que era a coisa
certa a ser feita, ela já estava morta por dentro.
O senhor acha que eu não tinha o direito, que haviam outros modos de ajudá-la?Talvez o senhor
esteja certo, talvez eu devesse tê-la ajudado de outras formas, talvez eu estivesse tão perdido quan-
to ela, talvez devesse ter desistido... Talvez... Talvez... Quem sabe?Eu fiz a minha escolha e faria de
novo. Não me arrependo.
Um absurdo!Um absurdo, o senhor me diz!Vê-se que nunca amou ninguém, vê-se que nunca
sofreu das dores da alma. Acha que eu senti satisfação?Que estou contento?Eu preferiria ter morri-
do no lugar dela, ou com ela... Mas seria covardia da minha parte, afinal as pessoas precisam punir
alguém. Eu aceito isso.
Agora, meu bom senhor, que sua curiosidade foi saciada, anote bem em seus registros: Eu não
sou um mártir, um coitado, um doente. Eu fiz essa escolha e poderia ter feito outra. Eu estou ciente
da situação. Mas entenda também, se o senhor amasse tanto quanto eu a amei faria o mesmo que
eu fiz.

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O Poder do Homem
Ricardo Nesello Künzel

A s pessoas, em geral, possuem reações comuns a várias situações, no entanto eu nunca


conheci uma situação tão curiosa quanto a de uma pessoa que se encontra amarrada
em uma cadeira com uma mordaça na boca, sem fazer a menor idéia de onde está. Ateus rezam,
durões choram, e algumas pessoas simplesmente se aquietam e procuram um momento de paz an-
tes de morrer, isso quando elas não estão no cativeiro de Ugly Boy D.
O tic tac do relógio soa tão torturante nos ouvidos da pobre garota quanto uma faca atravessando
as vísceras lentamente. Os gritos haviam cessado, àquela altura do campeonato ela já havia percebi-
do que ninguém a escutaria, a raiva e a ânsia por matar seu raptor cresciam exponencialmente no
antes inocente coração de uma jovem. Então, o som de uma lâmina sendo amolada trouxe de volta o
desespero ao seu espírito. Não a levem a mal, a raiva, o desejo de sangue e a energia decidida a
fazer algo por sua vida eram grandes e sinceros, grandes e frágeis, como um castelo de cartas.
Gritos, gemidos e pedidos de piedade encheram o ambiente ao mesmo tempo que um sorriso en-
chia a face do seqüestrador, um sorriso impecavelmente branco e alinhado, extremamente sarcástico,
parecia que a própria morte se regojizava do sofrimento da garota. Ela via esse sorriso, era tudo que
enxergava no corredor escuro que levava ao seu cativeiro. O sorriso permaneceu ali alguns minutos,
segundos, horas, o tempo já não importava mais, o espírito dela já estava destruído, embora seu cor-
po não acumulasse mais do que alguns arranhões.
Finalmente o sorriso emergiu das sombras. A visão do seu inimigo surpreendeu a cativa, já tinha
ouvido falar de Ugly Boy D pela mídia, mas esse título era apenas um apelido dado a ele pela polícia,
principalmente devido ao estado em que suas vítimas eram encontradas. Quem havia visto o rosto do
criminoso, sabendo quem ele realmente era, estava enterrado a 7 palmos de profundidade, algumas
vezes em buracos diferentes. Na verdade, se aproximava dela um homem de feições bonitas, com
classe, vestido elegantemente, como se estivesse a caminho de um coquetel beneficente.
— Vo... você é Ugly Boy D? - perguntou a moça com a voz trêmula e tímida.
— É verdade que me chamam dessa maneira, mas eu não gosto do apelido...
— O que você vai fazer comigo?
Com uma serenidade e educação que assustava, o homem respondeu:
— Não leve para o lado pessoal, as pessoas necessitam de comida, algumas necessitam de dro-
gas, bem, eu necessito da visão do sofrimento alheio, da vítima pedindo pela morte enquanto seu
sangue escorre lentamente pelo seu corpo, exalando medo por todos os poros.
Antes da metade da frase do homem, a vítima já gritava, antecipando a agonia que certamente lhe
será causada, e o homem se encheu de prazer ao vê-la nesse estado. Os gritos que sucederam a
conversa foram extremamente altos, mas se dispersaram no ar quilômetros antes de chegarem ao
ser humano mais próximo.
A garota, cujos últimos instantes de vida acabei de lhes narrar ficou conhecida como a 13ª vítima
de Ugly Boy D, seu corpo fora mutilado e um grande D, escrito em sangue, marcava o local da tragé-
dia, o que os jornalistas descreveram como ―Os minutos de maior agonia que um ser humano deve
ter vivido‖. Enquanto este ataque era noticiado na televisão, um homem tomava uma taça de vinho e
assistia à reportagem, com um sorriso no rosto.

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Fábula de um reino perdido
Daniel Schwalbe Koda

E m um oceano costumava existir um reino que outrora fora feliz. Cada metro cúbico de
água satisfazia-se com sua posição adequada em seu mundo, contendo grande quanti-
dade de luz solar, calor em abundância e churrasco de algas. Era um reino abençoado por Netuno,
pai dos mares, pois diziam ser ali o local onde nascera.
Antigamente, muito antes da chegada dos Portugueixes, as tribos que viviam no reino sobrevivi-
am em harmonia, sem abusar da própria casa, sem construir palácios em corais, sem aniquilar sua
própria espécie. Depois da chegada dos estranhos colonizadores, que usavam escamas adicionais,
eram sujos e portavam acessórios brilhantes mas inúteis, houve um massacre na população harmo-
niosa. Os poucos sobreviventes estão reunidos em locais específicos e demarcados, como o Peixin-
gu.
O tempo passou e a história foi escrita. Muita coisa ocorreu na história deste reino; a maioria não
é digna de ser contada, mas para contextualização, esse local foi praticamente saqueado de suas
riquezas naturais, destruído por ricos interesseiros, privado de liberdade, enganado e hoje ainda se
dizem felizes.
Pois bem, os felizes habitantes do local eram muitos. A popularidade de tal país chegou a ser tão
grande que diversas espécies até mesmo do outro lado do mundo vieram tentar uma vida melhor.
Lógico, pois o vasto território, as belezas naturais, como recifes e intermináveis florestas aquáticas,
além do clima, eram ressaltados em propagandas e incentivos de imigração em todos os oceanos. A
população era amável, a alimentação era abundante e tal mar seria sem dúvida o melhor de todos
os sete mares, se não fosse por um detalhe: sua história não permitiu um desenvolvimento cultural
em busca do melhor. O local, conhecido atualmente como Belíssima República das Anêmonas Soci-
almente Iludidas – normalmente chamado apenas por suas iniciais -era só um reles marzinho, para
onde escorria todo o esgoto dos Mares do Norte.
O atual coordenador da república era um gigantesco molusco. Sua popularidade era incontestá-
vel. Era um ser venerado como um dos melhores coordenadores do mar até então. Reconhecido por
todos como um polvo que subira na vida com seu próprio esforço e dedicação, que possuia carisma
e muito senso de humor, foi eleito o representante dos cardumes. Dentre suas características não
estava inclusa o uso do imenso cérebro do qual era dotado, mas seus instintos auxiliavam muito
quando queria despistar perseguidores ou fazer uma ―cortina de tinta negra‖.
O reino de Netuno era privado de vulcões submarinos, terremotos, magma, redemoinhos e afins.
O coordenador, Sr. Polvo, dizia ser um local afetado apenas por ―marolinhas‖ e que nada iria derru-
bá-los. Era um local pacífico, mas ignorante. Era fácil corromper os peixes. A principal rede de televi-
são, transmitida em ondas de alta frequência, mais especificamente, canal baleia, foi criada pelos
grandes peixes irmãos do Norte e seu objetivo principal sempre foi, como o nome ―rede‖ já sugere,
prender os peixes e manipulá-los como bem entender. Seu esporte preferido, o Nadobol, consistia
em um jogo ridículo no qual um cardume persegue uma pedra e luta para fazê-la ultrapassar as
fronteiras de uma alga entortada em forma de anel. Diziam que o Nadobol tinha o poder de levar ao
delírio até mesmo os cabeças-de-bagre, desde que influenciados a realmente torcer pelo seu time.
Com um povo assim, era fácil para o governo aproveitar todas as brechas na Esconstituição e
roubar todo tipo de pérolas. Diziam que o Sr. Polvo negociava com tubarões o contrabando de toda
espécie de algas no mar. Porém, quando questionado, negava com todos seus sete tentáculos.
Sim ,sete, pois um de seus tentáculos foi cortado fora em um acidente com um enorme caranguejo.
O Sr. Polvo negava, também, desconhecer as gafes de seu governo, principalmente se tratando
dos bagres senadores, cuja especialidade era simplesmente ser ―liso‖ e esquivar-se das acusações.

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Os escândalos eram imensos: desvios de dinheiro público, mesadas para toda classe de políticos e
outros, cuja gravidade chega a ser tão decepcionante que não vale a pena comentar.
Parte da população, porém, não via isso. Os camarões continuavam a aplaudir o governo com
todos os seus pares de patas e apêndices natatórios. Os tubarões, desde que tivessem largas áreas
no fundo do mar, não atacavam. Tudo graças à uma política assistencialista do Governo Polvo que
fornecia dinheiro para os não-trabalhadores, de acordo com o número de peixinhos no cardume. Em
teoria, o Bolsa Cardume era muito útil para épocas de caça escassa e para aqueles sem possibilida-
de de sustento próprio. Mas até os antes trabalhadores se acomodaram. A raia, por exemplo, não se
move de seu esconderijo. Inclusive as águas-vivas, que antes formavam caravelas para se manifes-
tar se aquietaram.
Em meio a esse mar sujo de corrupção, A Belíssima República vivia uma época de prosperidade
financeira. A inflação, especialidade dos baiacus, estava estável. A economia se desenvolveu muito
com exportações de matéria-prima para os gigantescos peixes do Oriente. O PIB aumentava. Era
incontestável o crescimento econômico daquele mar, mas enquanto via-se melhoras econômicas, a
sociedade continuava a regredir. A educação no país era fraquíssima, pois os investimentos federais
não eram suficientes para educar a população. Era mais simples simplificar os exames nacionais
para manipular (outra especialidade do Sr. Polvo) habilmente os índices de aprovação. Lógico, que
governo vai querer eleitores conscientes e compromissados em colocar nos trilhos uma nação
―desgovernada‖?
Agora, o Sr. Polvo está prestes a deixar a coordenação dos mares. E ainda sai como heroi, um
Polvo do povo, um coordenador consciente da população. Ora, e quem se importa com o amanhã,
se hoje pode-se assistir a Copa do Oceano tranquilamente, recebendo dinheiro do governo e, literal-
mente, ―boiando‖?

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Crianças, amores e monstros
Ricardo Nesello Künzel

C orra!
O palpitar acelerado de um coração socava incansavelmente o tórax, mas o seu pró-
prio coração não lhe poderia fazer pior do que aquilo que o perseguia. O latejar acentuado dos mús-
culos de suas coxas torturavam seu cérebro com pedidos de descanso, porém, tortura alguma no
mundo faria jus à dor e ao sofrimento que o aguardavam, que o perseguiam. Os pulmões também
não paravam de pedir, por oxigênio, pelo precioso elemento que fazia todo aquele organismo funcio-
nar, bem, não haveria organismo se ele simplesmente acatasse a esses fúteis pedidos.
Corra!
Poucos diriam que Mário seria alguma coisa na vida, e esses eram os poucos que prestavam
atenção na sua existência. Notas baixas, desempenho físico menor ainda. Ele esperava que alguma
criatura sobrenatural viesse lhe trazer uma mensagem, uma missão, assim como nos livros que ele
lia e nos filmes que ele assistia. Bem, ele iria esperar sua vida inteira, não haveriam portais mágicos
para outros mundos, não haveriam seres mágicos voadores, nem alienígenas super poderosos vin-
do lhe buscas, lhe informando que seu lugar não era ali e que ele iria a outro planeta ter uma vida de
lutas e glórias. Não, ele era apenas um garotinho franzino, condenado a ser eliminado pela seleção
natural.
Bem, nesse mundo que inventei, não há magia ou poderes, não existem milagres ou divindades,
mas existe sim a ciência, e embora eu tenha tentado disfarçar, o fato é que essa história é de ficção
científica, portanto vamos ao cientista maluco, como de praxe.
Os poucos cabelos grisalhos se emaranhavam na reluzente cabeça enrugada. O guarda-pó, já
não tão branco quanto os cabelos, repousava havia dias nos ombros pequenos. Que cruel destino
para o primeiro lugar da classe, primeiro lugar do vestibular, formando honorário e brilhante profes-
sor Paulo Menezes. Ver colegas muito menos inteligentes do que ele descobrirem elementos novos,
desenvolverem novas tecnologias e ganharem prêmios Nobel, pode ter chateado o professor. Ser
traído pela sua esposa depois de 2 filhos e 13 anos de casado podem tê-lo irritado. Por fim, ter sua
humilde tentativa de pesquisa inovadora roubada foi o estopim. Conseguiu alguma quantidade de
material radioativo, montou um laboratório isolado em algum lugar rodeado por animais e plantas em
abundância e se pôs a desenvolver sua vingança.
Mário caminhava lentamente, distraído como sempre, sem prestar atenção quanto a direção que
tomava. Infeliz o momento em que ele dobrou aquela esquina, o pano embebido em éter fez o mun-
do apagar em instantes. Quando acenderam a luz da realidade novamente, ele estava numa jaula,
numa sala cheia de jaulas, jaulas em cima de outras jaulas, uma jaula com um cão à sua direita,
uma jaula com um porco à sua esquerda, e o mais importante, uma jaula com uma garota à sua
frente.
Lúcia era uma garota da idade de Mário, que a propósito, tinha 12 anos, ela também não era mui-
to inteligente, menos inteligente que ele, devo acrescentar. Tampouco era melhor sucedida em algo
do que ele era. E era bastante feia por sinal. Mas para Mário, bem, ela era um anjo. Quando ele a-
cordou, ela já estava desperta, assustada como um filhote longe de sua mãe. Eles trocaram algu-
mas palavras, basicamente a mesma história.
Ele tinha encontrado alguém com tanto em comum com ele, que mal acreditava no que aconteci-
a, ainda mais porque estava preso em uma jaula em um lugar frio, mal iluminado e cheio de animais,
devia ser só mais um sonho, doce pensamento.
Algumas horas após o despertar de Mário, o cientista Paulo entrou no recinto. Calmo como um
monge, louco como... um louco. Ele pigarreou como se fosse dar um grande discurso e começou a

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fazê-lo:
— Boa noite a todos os convidados, eu gostaria de me apresen...
— Onde a gente tá? O que você vai fazer com a gente? Por que você tá fazendo is...
— Ordem na platéia, estarei disposto a responder suas perguntas assim que minha apresentação
estiver concluída, desde que as mesmas sejam feitas individualmente. Continuando...
Como a criança que era, Lúcia pensou em fazer o que era melhor: irritar.
— Lálálálálálálálálálá, não to te ouvindoo. – disse Lúcia, cobrindo as orelhas com as mãos.
— Quem permitiu que crianças entrassem na minha apresentação? – indagou o cientista, como
se estivesse falando com seu assessor – ah, você tem razão, eu as convidei. Bem se tratando de
crianças, vou ser sucinto. Vocês são minhas novas cobaias para meu experimento com um brinque-
dinho que eu inventei, como ela está me irritando ela será a primeira.
Ao dizer isso ele retirou uma seringa e aplicou uma injeção de calmante na garota, utilizando do
fato de ser adulto e ―ligeiramente‖ mais forte do que ela. Sem dar ouvido aos protestos, ofensas e
promessas de morte do pequeno garoto, ele levou a garota da sala com a maior tranqüilidade. Com
o fechar da porta o desespero tomou conta de Mário. O amor de sua vida tinha sido levado. Claro
que você leitor deve estar desmerecendo o título de ―amor de sua vida‖ que Lúcia havia recebido,
mas os sentimentos de Mário eram verdadeiros, frágeis, certamente, mas também verdadeiros.
Depois que a porta se fechou, Mário fez pouca coisa, afinal, não havia muito a se fazer mesmo, de
repente um clique quebrou o silêncio que se instalara no ambiente, com um rangido a porta se abriu
automaticamente. Mário saiu timidamente da jaula, sem saber o que estava acontecendo. Até uma
voz fraca, com pouca vida ecoar, provavelmente oriunda de um sistema de som, era Paulo.
— Corra!
Sem dar credibilidade ao que acabara de ouvir, o garoto começou a explorar seu cativeiro, e en-
controu uma câmera que filmava tudo ali.
— Corra seu tolo!
Após este comando, o som que o garoto escutou, bem, não tenho palavras para descrevê-lo,
mas se um demônio fazia algum som ao morrer, devia ser bem parecido com aquele. Agora, sem
pensar duas vezes, o garoto começou a correr, atravessou a porta pela qual o cientista tinha saído
anteriormente e correu. Todas as portas do edifício estavam destrancadas, tinham travas elétricas
somente. Ele cruzou corredores, sem fazer idéia do seu destino, até chegar a uma porta, com uma
pequena janela de vidro, que estava trancada. Ele aproximou seu rosto para ver o que havia do lado
de dentro e antes que seus olhos pudessem distinguir qualquer imagem na escuridão, uma criatura
pulou contra a porta, tentando atacar o garoto. Protegido pelo resistente vidro, ele caiu, assustado,
no chão. A criatura continuava a atacar a porta, e ele então pode ver o que era seu agressor.
Era Lúcia, e ao mesmo tempo não era, pouco da sua aparência tinha mudado, porém ela emana-
va uma selvageria que afugentaria os mais bravos leões ou os maiores ursos. Ela estava incrivel-
mente rápida, forte, e perigosa para uma garota de sua idade. Quero dizer, não se podia mais cha-
má-la de garota, quaisquer que fossem os horrores praticados contra ela, nada de humano havia
restado nela.
Chocado pelo que acabara de vivenciar, Mário permaneceu sentado. O amor de sua vida havia
se transformado em um monstro, que certamente seria seu assassino. Desnorteado ele permaneceu
por alguns instantes ali, a pequena luz que havia aparecido em seu mundo agora era um mar de
trevas. Seus sentimentos o inutilizavam para qualquer ação. Até a primeira rachadura se formar no
vidro, aí o instinto de sobrevivência falou mais alto.
Corra!
Esse foi o único pensamento que preencheu sua cabeça enquanto ele percorria os corredores e
portas atrás de uma saída. Sem saber se o monstro havia escapado de sua prisão, ele encontrou a
passagem para o exterior da construção.

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O ar frio bateu em seu rosto, e a floresta que havia em frente não encorajava ninguém a sair da
construção, mas uma mutação humana assassina era incentivo suficiente para tal. Ele correu e cor-
reu por entre as árvores, implorando a Deus que aquela fosse a direção para a civilização. Quando
o cansaço foi demais para o pobre garoto, ele parou e sentou-se. Enquanto retomava o folego, já
certo de que havia despistado seu inimigo, ele ouviu. Um rugido, voraz, gutural, como se Lúcifer es-
tivesse anunciando sua chegada à terra.
Corra!
Sem pestanejar, ele retomou sua empreitada pela floresta. O cativeiro não havia melhorado a sua
condição física, e ele já não aguentava mais correr. Diminuindo o ritmo, ele pensou em Lúcia, aquela
da jaula, seu anjo, sua salvadora, e sua alma vivenciou alguns instantes de paz. Nesse momento,
uma mão atravessou seu tórax e removeu o coração do corpo do garoto.
Não me leve a mal leitor, eu sei que você pode ter esperado que Mário teria um final heróico, der-
rotando o monstro e trazendo de volta a Lúcia que residia em algum lugar daquela abominação. No
entanto, eu não prometi nenhum final feliz em minha história, meu único objetivo era lhe proporcio-
nar alguns instantes de leitura, e se você está lendo este trecho, provavelmente eu já consegui. Se
for de seu agrado, crie um final novo, não ficarei chateado. A verdade é que continuaremos pensan-
do em nossos amores e correndo de nossos monstros, correndo por nossa vida e felicidade.

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Mat'Klan-Nah — O Começo
Caio Silveira

H á pouco mais de três mil anos antes do surgimento da Terra, havia no Sistema Solar,
entre Marte e Júpiter, um pequeno planeta de cor azulada relativamente semelhante à
Terra, cujo tamanho era aproximado ao de Vênus e que havia surgido há quase um bilhão de anos.
O corpo – já com presença de vida – era nomeado, na língua druídica, Mat-Klan'Nah, ou, em portu-
guês, ―Mundo dos Mutantes‖. Lá viviam quantidade indefinível de seres mitológicos e lendários, tais
como elfos, minotauros, orcs (espécies de ogros devotos a demônios e criaturas sombrias), dragões
(geralmente bípedes), feiticeiros e certos humanoides; no entanto, mesmo diante de tal variedade de
tradições e modos de vida, o povo de Mat-Klan'Nah dificilmente optava por guerras ou a destruição
da rica Natureza mutante – características estas que garantiram prosperidade e rápida evolução do
planeta e da vida de seus habitantes.
Passados dois mil anos de adaptação de grande parte da fauna, flora e atmosfera, sendo a últi-
ma particularmente parecida com a da Terra – por possuir quantidades quase semelhantes de oxigê-
nio e vapor de água – o mundo mutante encontrava-se no ápice de sua evolução. Havia má distribu-
ição de tecnologia e, assim, a maior parte do povo vivia no correspondente à Idade Média terrestre
ligeiramente melhorada e mais higiênica. Até então, não havia sistemas de indústrias ou qualquer
tipo de poluição: o mundo estava conservado e as imensas florestas e bosques dominavam pratica-
mente todo o terreno; os mares, límpidos e brilhantes, reluziam à luz do Sol; os mutantes podiam
descansar tranquilamente em suas casas após o duro dia de trabalho no campo, artesanato, comér-
cio ou treino nas Guardas...
Mat-Klan'Nah era dividido em sete grandes províncias, cada uma nomeada na língua druídica
diante dos principais deuses mutantes: Fa'Hun, deusa do ar; Jimay'tan, deus do fogo; Wak'Gaag,
deus da terra; Shin-Yal, deusa da água; Raas-Furt, deusa da Natureza; Tah'Guin, deus da Vida e
seu irmão Iber'thytus, deus dos mortos. Cada província, com exceção da de Shin-Yal, que se encon-
trava submersa, era separada por Oceanos, que totalizavam cinco e cujos nomes na língua élfica
eram: Arti-Krat (―O Límpido‖, que separava Fa'Hun de Raas-Furt), Fryah Trin (―Águas da Natureza‖,
que separava Raas-Furt de Tah'Guin), Guinef Xin (―O Reluzente‖, que separava Tah'Guin de
Wak'Gaag), Pran-Fuyt (―Oceano Vermelho‖, que separava Wak'Gaag de Jimay'tan e que abrigava
Shin-Yal) e Hat'Ujaan (―O Obscuro‖, que separava Jimay'tan de Iber'thytus).
A região mais próspera de todo o mundo era a de Meri-Dhan, uma cidade democrática da provín-
cia de Fa'Hun e talvez a mais rica economicamente, onde quase toda a tecnologia mutante se en-
contrava. Todas as províncias, exceto a da deusa do ar, mais modernizada e formada por cidades e
distritos, eram compostas por reinos e, estes, por aldeias, vilas, feudos e povoados.
Dentre as aglomerações mais importantes, é possível citar as muitas aldeias orcs espalhadas
pelas regiões de Iber'thytus e Jimay'tan; um reino de elfos e druidas na província de Raas-Furt; Dra-
gantine, feudo principal do reino Drak-Tur, situado na província de Tah'Guin e cuja população era de
dragões na maioria bípedes e alguns quadrúpedes; as Cinco Sociedades de Cavaleiros, na provín-
cia de Fa'Hun; as vilas dos feiticeiros montanheses de Wak'Gaag; os Elementais de Fogo e a orga-
nização mafiosa Chama Ardente (―Tza-Trajghiq‖, na língua sagrada) da província de Jimay'tan; o
reino submerso da província de Shin-Yal, habitado por criaturas marinhas; as névoas acinzentadas e
o Reino Banido (Yjekq-Muljo'etyf‖, na língua dos orcs), habitado por lobisomens, vampiros e espíri-
tos sombrios e condenados, da província de Iber'thytus e, novamente na província de Tah'Guin, os
Yan-Kul, povo descendente dos Tei-Kan, criaturas sagradas que desapareceram misteriosamente há
mais de treze mil anos atrás e que, segundo a crença popular, foram incumbidos pelos deuses de
criarem Mat-Klan'Nah.

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Para os mutantes, a origem da grande ―bola de fogo‖ que regia e iluminava todo o céu durante o
dia ou os pontos luminescentes e três círculos dispostos de tal maneira a formar um triângulo duran-
te a noite era totalmente desconhecida. Druidas, cientistas e sacerdotes de Meri-Dhan e o povo em
geral olhavam os céus curiosamente, estudavam e esquadrinhavam todos aqueles astros e a ne-
nhuma conclusão chegavam; somente eram criados mitos, muitas vezes absurdos.
A história mais aceita quanto ao aparecimento do Sol no céu do planeta durante o dia era a se-
guinte: na fase de criação de vida e melhoramento da estética planetária os deuses Jimay'tan e
Fa'Hun haviam discutido sobre a temperatura do planeta e, ao final, o primeiro – sentindo-se injusti-
çado por Fa'Hun ter ganhado – disparou fogo para cima com toda a fúria; a bola, em seguida, cho-
cou-se com nuvens que no momento eram criadas pela deusa Shin-Yal, causando um estrondo en-
surdecedor e uma grande explosão. Todos os deuses esconderam-se, rogando pragas por Jimay'tan
ter se enraivecido e atrasado o término de seus trabalhos; entretanto, um momento depois, as cria-
turas divinas levantaram seus olhos ao céu e notaram, com cara de espanto e agradecimento, que
tudo havia ficado mais iluminado e amarelado e que a bola de fogo disparada pelo deus juntou-se às
nuvens ao alto de todos, sendo chamado de Fir-Iagh mais tarde.
Quanto ao surgimento das estrelas e aqueles três satélites naturais, todos considerados sagra-
dos, a deusa Shin-Yal, durante os dias de descanso das divindades, notou que o trabalho de Ji-
may'tan foi muito útil para a prosperidade da vida mutante e da flora que criou com a ajuda de Raas-
Furt, mas ainda não entendia o porque do fogo brilhante desaparecer com o passar do período que
concordaram em chamar de dia – indo em direção ao planeta, como se fosse entrar nele – e, após
algumas horas no período que chamaram de noite, reaparecer do outro lado e voltar a iluminar todo
o céu. Passou muitos ciclos de Fir-Iagh sentada pensando, até que Fah'Guin, ao ter uma ideia quan-
do soube por Raas-Furt a razão da deusa estar parada ali há muito tempo, juntou-se a ela – sugerin-
do que ambos criassem corpos luminosos naquele exato momento, enquanto Fir-Iagh não se apre-
sentava, com o objetivo de iluminar mais apropriadamente a noite, como no dia. A deusa concordou
e, levantando em um pulo, passou a atirar jatos de água para cima juntamente com o deus da Vida,
que atirava ondas em direção aos jatos. Depois do tempo que correspondia a vinte minutos, uma
exaustão invadiu ambos os deuses – que passaram a observar o que haviam produzido: apenas um
pequeno flash esbranquecido nas vastidões do céu negro. Descontentes, não perceberam o fato da
luz ir crescendo rapidamente sem cessar, até que tudo ficou branco por um breve tempo. Quando o
planeta voltou ao normal, nenhum deus permanecia lá e a negridão de seu céu fora substituída por
estrelas, mais tarde chamadas de Torhus e por um triângulo levemente inclinado cujos vértices eram
satélites aproximadamente do tamanho da Lua terrestre (eram as Três Luas Sagradas de Mat-
Klan'Nah): acima, um vermelho, mais tarde chamado de Gar; à esquerda, um azul, mais tarde cha-
mado de Nar e, à direita, um verde, chamado mais tarde de Har.
Muito tempo se passou desde a primeira aceitação de ambos os mitos, mas, apesar de serem
completos para os druidas, seus companheiros elfos e os sacerdotes, não apresentavam explica-
ções suficientes para os cientistas de Meri-Dhan e nobres de três dos quatro reinos de Tah'Guin,
uma das províncias mais populosas de Mat-Klan'Nah. Estes alegavam, por exemplo, serem absur-
das as hipóteses de uma luz cegante fazer com que todas aquelas poderosíssimas divindades desa-
parecessem ou de que uma bola de fogo em choque com uma nuvem originaria o Sol, que sumiria e
reapareceria como por vontade própria.
Assim, um grupo de vinte cientistas passaram a observar incessantemente os astros durante
quase toda a noite com lunetas mais modernas e de aumento de três vezes e meia – pelo corres-
pondente a dois meses terrestres. Ao final da última noite, começaram a construir um teleportador
de partículas que os levaria no mesmo momento à província de Tah'Guin, onde apresentariam seu
trabalho aos nobres da região.
O artefato já havia sido premeditado cinco anos antes do momento. Teria o tamanho de um silo

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rural, podendo abrigar todos ao mesmo tempo e funcionaria com apenas cinco gramas de um mate-
rial radioativo recentemente descoberto para fins energéticos. O material seria liquefeito e transpor-
tado para uma câmara conectada a um direcionador de raios; em seguida, lasers seriam disparados
em muitos espelhos espalhados por todo o ambiente, rigorosamente lacrado. Depois disso, as molé-
culas dos corpos seriam recolhidas pelos próprios constituintes dos raios e depositadas em compar-
timentos conectados a radares. Assim, ondas eletromagnéticas constituídas das mesmas moléculas
e de partículas de luz seriam emitidas, atingindo uma pequena esfera espacial, do tamanho de uma
bola de boliche; finalmente, a esfera direcionaria as ondas ao local escolhido pelo usuário, que lá
seria formado novamente. Primeiramente, erraram certos cálculos e usaram o material errado para o
núcleo de teleportação, causando a perda de nove membros da equipe (sendo um deles o sub-
chefe da operação).
Logo que obtiveram sucesso em seu projeto, pegaram um protótipo portátil do teleportador em
forma de um pequeno cubo e, com o objetivo de conseguir apoio e proteção de milícias ou exércitos,
foram – mesmo dividindo acidentalmente mais um deles ao meio – o mais rápido possível ao feudo
de Dragantine e, em seguida, iriam, numa caravana com seis dragões, para um povoado de mino-
tauros guerreiros no reino vizinho à Leste de Drak-Tur – explicando todas as suas pesquisas dos
últimos meses e alegando que gostariam de viajar ao espaço para confirmar suas teorias.
Para a infelicidade deste grupo, era possível que fossem presos, injuriados ou até mortos, pois
poucos eram os que conheciam seres de outras províncias – todos aprendiam, assim, a desconfiar
dos forasteiros desde a infância. Em Dragantine, porém, depois de ouvidas as histórias, o conse-
lheiro real achou tudo muito interessante e desde o começo confiou plenamente nas intenções dos
cientistas, pois, segundo ele, seres que se habilitam a serem desintegrados e, após curto momento,
serem restituídos deveriam com certeza possuir sabedoria o suficiente para uma população de uma
região do tamanho de dez reinos de Drak-Tur. O rei-dragão Fli-Fo Iuan' ficou extremamente empol-
gado com todas as ideias e disse que com certeza daria seu apoio, chamando em seguida seu me-
lhor marechal (o dragão Ron'Puik) e sugerindo que também devessem ir às Luas Sagradas (que
chamou de ―bolas brancas da noite‖) investigar se havia a presença de formas de vida lá. Após bre-
ve momento de reflexão, a equipe aceitou a sugestão e partiu em direção aos minotauros com uma
caravana de dragões comerciantes que precisavam entregar manufaturas para as aldeias do Leste.
Dragantine era um local esplêndido. O menor dos dragões lá registrado media pouco mais de
cinco metros e meio, sendo que o rei – o mais alto de todos – media em torno de vinte e um metros,
o que exigia a imensidão de todas as construções, principalmente do castelo – cujo teto ficava a
quarenta e dois metros do chão. O feudo era bem cuidado: não havia muita sujeira no chão (quase
todo de grama e palha); a maioria das casas, bares e lojas pareciam ser esculpidas em granito de
tão cativantes que eram; haviam muitas árvores de folhas verde-escuras ou amareladas, grandes
floreiras geralmente azuis ou vermelhas e muitas macieiras na região toda e o castelo, por conta da
sua grande altura, era perfeitamente notado a mais de três quilômetros da muralha de pedra que
delimitava o feudo de 120 km2, mesmo por trás das imensas florestas que circundavam Dragantine.
O caminho entre o feudo em que se encontravam e os minotauros era longo, mas, ao contrário
do que as criaturas colossais temiam, não abrigava perigos muito grandes – somente pedras escor-
regadias e animais semelhantes a onças em meio a certas florestas – principalmente para criaturas
que tinham a opção de voo e hálito de fogo.
Antes mesmo de chegarem no povoado de destino, chamado de Muyi Khyasde pelos habitantes
da região, foram dragões e cientistas recebidos agressivamente pelos guerreiros e o cacique-
minotauro, que, por serem primitivos e não manterem relações com outros povos, eram desacostu-
mados a receberem visitas de raças que não as deles mesmos. Moradores vieram correndo das
entranhas da floresta lançando cordas pesadas e fortes correntes nos forasteiros, que caíram no
chão – batendo as cabeças ou caindo de mau jeito, desmaiando todos ao impacto. Os minotauros,

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então, que eram criaturas de força incrivelmente grande, levaram todos para o centro do povoado e
os amarraram a troncos grossos e grandes.
Muyi Khyasde era um povoado tribal muito pequeno e humilde: constituído somente de três torres
de proteção na entrada, uma construção de pedra espaçosa onde vivia o cacique e sua família e
mais vinte ocas médias de um material como pau-a-pique ou, se não, madeira, dispostas em uma
circunferência – onde havia, ao centro, muitos bancos, mesas de pedra, lanças com cabeças de di-
ferentes criaturas espetadas e dois grandes totens (um com desenhos amarelos, azuis e vermelhos
e o outro com figuras acinzentadas, brancas e verdes), que possivelmente faziam referência a guer-
ras vencidas ou homenagem a algum ídolo minotauro. No chão quase não havia grama; a terra, ver-
melha, era toda compactada e, apesar de haver florestas grandes e belas em uma região próxima,
as árvores vizinhas ao povoado estavam todas desfolhadas, ou, se não, arrancadas pela raiz.
Assim que os forasteiros acordaram, o cacique rugiu, informando – na língua universal mutante –
que seu nome era Jun'Huai Tan e que exigia explicações de todos aqueles seres curiosos. O repre-
sentante principal da burguesia dos dragões alegou que gostaria somente de oferecer certos produ-
tos da província vizinha, de onde vinham; o chefe dos cientistas, por sua vez, aproveitando o fim do
crepúsculo, fitou os corpos celestes, dizendo que ele e seus companheiros pesquisaram a fundo as
origens de todos aqueles pontos brilhantes e que gostariam muito de compartilhar suas descobertas
com as criaturas ali presentes – também não aceitadoras dos mitos divinos.
Jun'Huai Tan pôs-se a pensar e, à medida que o fazia, franzia cada vez mais a testa, até que a-
ceitou a proposta do grupo forasteiro, ordenando a soltura de todos. Apesar de os moradores ainda
se mostrarem com receio de ficarem à vista, o cacique, o pajé do povoado e seus principais guerrei-
ros mostraram-se muito interessados com as observações dos cientistas e rapidamente espalharam
todas as roupas e artefatos de couro e pedra que os dragões comerciantes traziam – pagando-os
com cem moedas de ouro (denominadas Zyn). Por fim, Klatso, o comandante da Guarda Khyasde,
alegou que dentro de dez meses mandaria grande parte de seus subordinados à Meri-Dhan – onde
se juntariam aos dragões e cientistas para o começo da jornada.
Maru, o então sub-chefe da missão dos cientistas, ficou maravilhado com os minotauros e suas
diferentes tradições – exigindo que ficasse ali até que os guerreiros fossem ao encontro do restante.
Os outros concordaram e, assim, o chefe jogou o protótipo do teleportador no chão, possibilitando a
abertura e crescimento do cubo – fato este que deixou todas aquelas criaturas tribais boquiabertas.
Passado o tempo determinado por Klatso, era uma tarde de Sol forte e pouco vento; os cientistas
observavam as espécies da flora vizinha à Meri-Dhan quando rapidamente pousaram sete espaço-
naves do triplo do tamanho da muralha da cidade, esféricas e de cor verde com detalhes em branco
e azul. O grupo quase caiu na grama ao tentar ver o que acontecia no momento e, então, saíram de
um dos objetos voadores Klatso e Ron'Puik, acenando e indo ao encontro dos miúdos cientistas.
Contaram que trouxeram mais de cem soldados para a missão e que deveriam partir o mais rápido
possível – o que causou uma sensação de ansiedade nos nove seres, fazendo-os irem à mesma
hora pegarem seus apetrechos e suas pesquisas.
Dentro de uma das naves, os cientistas logo juntaram-se a Maru, que usava uma roupa diferente
e um cordão de fibra e penas vermelhas e amarelas, em uma mesa com várias cadeiras. O sub-
chefe passou a contar todas as novidades daqueles meses que se encontrou fora do lugar em que
havia nascido e passado sua vida inteira: entre outras coisas, havia experimentado muitas comidas
diferentes, dançado e festejado à maneira tribal e aprendido muito a respeito da medicina dos mino-
tauros.
Por dentro, a espaçonave era muito maior do que parecia ser externamente: para ver o teto curvo
era necessário uma contorção quase total da coluna. Além disso, apresentava tecnologia extrema-
mente avançada em todos os aparelhos de navegação e utilitários que visavam o conforto dos via-
jantes; sua pintura era quase toda cromada – ou, se não de cor branca ou amarela-clara; haviam

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muitas janelas amplas, onde os cientistas impressionados puseram-se a observar o espaço e a fa-
zer muitos cálculos e anotações.
Após o equivalente a três meses mutantes de circulação pelo Sistema Solar, concordaram – de-
pois de passar por Júpiter – em finalmente parar nas Três Luas Sagradas, onde poderiam descobrir
os segredos daqueles satélites.
Foram primeiramente a Nar, depois a Har e finalmente a Gar. As duas primeiras estavam comple-
tamente vazias, a não ser por várias sombras no céu negro e algumas construções abandonadas;
Gar, por sua vez, encontrava-se repleta de seres vermelhos e colossais (maiores até mesmo do que
Fli-Fo Iuan') e muitas torres negras ou vermelho-sangue. Havia ao fundo um castelo muito grande,
dentro de uma cratera e que poderia ter mais ou menos setenta metros de altura – com torres che-
gando aos cem metros.
Os mutantes aterrissaram num campo deserto a alguns quilômetros de distância da vista daque-
las criaturas, organizando-se e armando-se à medida que saíam das naves: o exército-dragão, com-
posto por sessenta e seis soldados, pôs-se à frente de todos, dispostos horizontalmente em seis
filas; seguido por cinquenta e dois membros da Guarda Khyasde, dispostos em quatro filas e, final-
mente, os dez cientistas acompanhados por Klatso, que empunhava um machado duplo e Ron'Puik,
que empunhava um martelo de guerra.
Em seguida, colocaram-se a marchar em direção às torres e notaram que aquelas criaturas eram
surpreendentemente Tei-Kans, o que fizeram todos, espantados, ajoelharem-se diante do que viam;
só estranharam o fato das criaturas estarem com muitas cicatrizes ou mutiladas. Seus olhos não os
enganavam: realmente eram Tei-Kans, mas o que não imaginavam era que suas almas foram pos-
suídas por espíritos sombrios provavelmente vindos da província mutante de Iber'thytus. No momen-
to em que criavam a província sombria – a única restante, espíritos negros vieram do céu cercando
as criaturas, que empunharam receosamente seus bastões e lanças para a luta; aquelas sombras
avançaram e, quando passavam pelo peito dos Tei-Kan, estes caíam ao chão e, depois de se deba-
terem incontrolavelmente, levantavam e começavam a atacar seus companheiros – que nada podi-
am fazer, por se tratarem de seres iguais a eles.
Mil anos de incessável luta entre Tei-Kans e os espíritos mais tarde conhecidos como demônios
se passaram, até que todas as criaturas sagradas com coração puro se foram – dando lugar a gi-
gantes mal-encarados, repletos de cicatrizes e que matavam qualquer ser sem piedade ou razão.
Os demônios notaram a presença daqueles seres diferentes e cujas alturas eram a das canelas
deles, enfurecendo-se: pisavam, chutavam e matavam todos os guerreiros ao alcance deles. Os
minotauros e dragões partiram em defesa para a luta – resistindo até que chegassem à cratera do
castelo; lá, em apenas vinte e dois seres no total, foram recebidos por guardas reais, que os captu-
raram e levaram à presença do rei-demônio, no Salão Principal.
O Salão, muito amplo, era cinza-escuro por dentro; no teto – muito longe do chão – havia uma
pintura grosseira das Três Luas em meio às constelações; haviam vários candelabros gigantes es-
palhados e, ao meio, um tapete vermelho, onde estava, ao final deste o imenso trono do rei.
O rei, governante de todas as Luas e intitulando-se Asbe Ghurtait, o Kin Hain' Gar (―Rei Glorioso
de Gar‖, em português), disse que – estranhamente na língua universal dos mutantes – sabia o ob-
jetivo deles, mutantes, ao irem até lá e que mostraria toda a cultura nativa, sob proteção real, ofere-
cendo em seguida um tratado de aliança que deveria ser assinado pelo representante supremo de
Mat'Klan-Nah. Ron'Puik pegou o tratado, saindo em seguida acompanhado por seus companheiros
e mais dez demônios da guarda real.
De volta ao planeta, Klatso, Ron'Puik e os três cientistas restantes foram chamados ao Conselho
Principal de Meri-Dhan, para que expusessem todas as suas ideias e compartilhassem as ideias e
teorias formadas. Explicaram toda a viagem e suas descobertas aos conselheiros, incluindo o conta-
to com os Tei-Kan agressivos e uma nova teoria do surgimento do Sol, estrelas e satélites do plane-

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ta. O público da sessão e todos os conselheiros ficaram impressionados com tudo o que tinham aca-
bado de ouvir e, sem pensar ou considerar que os demônios eram criaturas agressivas e que não
era recomendável depositar confiança neles, assinaram o tratado.
Dois anos depois, de volta à Gar, Ghurtait recebia mais um minúsculo ser – que não foi atacado
ou recebido grosseiramente: o general-principal da Guarda Azul de Meri-Dhan, um dos exércitos
mais poderosos de toda Mat'Klan-Nah. O ser reportava ao demônio que naquele dia fazia vinte
Ryahkyt (uma contagem de tempo usada por aqueles seres malignos) desde quando os conselhei-
ros assinaram o tratado de paz oferecido e que agora podiam depositar total confiança nos seres
lunáticos – já que frequentavam as mesmas lojas, bares, centros de aprendizagem e coisas afins.
Kin Hain' Gar levantou num pulo, com extrema animação e chamou seu marechal – ordenando
que atacassem com toda a fúria os principais centros do planeta, não importando o que os mutantes
fizessem. Logo, um grupo de trezentos e cinquenta demônios muito bem treinados saíram em dire-
ção a Mat'Klan-Nah, onde caíram como meteoros – aniquilando tudo o que viam.
Neste período, o planeta entrou em decadência: a paz dissipou-se em todas as regiões; perdeu-
se mais do que a metade da população mutante – o que fez com que até camponeses se armassem
e que o treinamento de todos os soldados melhorasse muito, possibilitando o ganho de espaço e
vitórias em certas guerras contra os demônios. Até hoje, passados bilhões de anos da traição do
general de Meri-Dhan, no entanto, estas duas raças ainda guerreiam com a mesma fúria do princí-
pio – ora perdendo, ora ganhando, mas nunca dando trégua.

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Jogo dos Espíritos
Priscila Angélica Assis Ulrich

M eu nome é Alejandra, tenho 13 anos de idade. Bem, até a semana passada, eu era
mais uma daquelas adolescentes idiotas que tiram sarro de tudo e de todos. Afinal,
adolescência é a fase em que fazemos diversas besteiras e "burradas"... Só que
algumas podem não ter mais volta...
Em uma bela segunda-feira depois da aula, meus amigos de sala e eu resolvemos tentar jogar
aquele famoso "Jogo dos Espíritos", onde você escreve as letras, números e as palavras "Sim" e
"Não", todos dispostos em um círculo e, com um copo ou um compasso, você deixa que o suposto
espírito aponte as letras e forme palavras, de forma que ele converse com os participantes. Bem,
creio que tenha sido melhor mencionar como funciona, pois sempre tem um bobão que fala que não
entendeu. E, aproveitando para fazer um adendo aqui, tem também aquele idiota que vira e diz "Que
história idiota"... Ao segundo, cuidado, pois posso estar por perto e mais tarde posso fazer com que
você tenha uma história mais idiota ainda.
Voltando à minha incrível segunda-feira: Estávamos todos jogando, envolvidos em um silêncio
fúnebre, todos com suas atenções completamente voltadas ao tabuleiro, até que, de repente, o gato
de minha amiga pulou sobre a mesa e olhou-nos de forma amedrontadora. Incrível, adorei ver aque-
la expressão aterrorizada estampada no rosto de algumas amigas, ficaram apavoradas e então qui-
seram terminar o jogo ali mesmo. Uma delas me puxou rapidamente e disse, gaguejando, um seco
e amedrontado "Vamos".
Porém, antes de sairmos do quarto, o copo de vidro que estava na mesa foi arremessado no
chão, mas não havia ninguém por perto. Esqueci de mencionar que, segundos antes, um vento frio,
de congelar a espinha, entrou pela janela do quarto. É, pode ter sido o vento que derrubou o copo.
Céus, por que tanto pavor de todos? O clima estava tenso e duvido que alguém quisesse ficar ali
sozinho, foi quando sugeri então que poderíamos ir a uma pizzaria, para continuarmos nossa banal
segunda-feira e esquecer o que havia acontecido ali. Todos toparam de imediato, sem pensar duas
vezes. Iria ser divertido. Eu e a Rah fomos na frente para nos arrumar antes de ir a pizzaria, eles
continuaram por lá para arrumar as coisas e limpar os estilhaços de vidro.
Na pizzaria foi tudo P-E-R-F-E-I-T-O. Rimos muito quando um dos garçons escorregou e acabou
derrubando uma das pizzas que estava quase inteira. Após terminarmos acabou cada um voltando
para sua casa, com exceção da Raíssa que acabou indo comigo para a minha.
Ao chegar em casa, apresentei minha amiga aos meus pais e à minha irmãzinha de 6 anos.
Quando fui com a Rah em direção à escada que levava aos quartos, minha irmãzinha perguntou:
— Ale, você não vai nos apresentar o seu outro amigo?
A princípio, não entendi o que ela quis dizer, mas não precisei. Ela tinha apenas seis anos. Na
idade dela, até mesmo eu tinha meus amigos imaginários. Olhei para ela e respondi, de forma irôni-
ca:
— Ahhhh Maah, pare com isso, você e seus amigos imaginários... Eu não tenho mais amigos
imaginários.
E então subi com a minha amiga para o meu quarto e, sem muita conversa, acabamos dormindo.
No dia seguinte, tudo ocorreu bem. Fomos à aula e depois a Rah foi para a casa dela normal-
mente. Ou pelo menos era o que eu imaginava.
Na quarta e na quinta-feira ela não foi para a aula, e isso não era normal. Eu a conhecia havia
anos, e ela nunca matava uma única aula. Resolvemos passar em sua casa para saber o que tinha
acontecido. Ao chegar na casa dela, sua mãe atendeu a campainha após alguns toques, chorando.

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Sem interesse de realmente querer saber o motivo de suas lágrimas, perguntei o motivo do choro.
— Foi horrível - começou ela, ainda chorando -, na terça-feira, quando cheguei em casa após o
trabalho, chamei a Raíssa para tomar um café comigo. Estranhei ela não responder e demorar para
descer, então acabei indo no quarto dela para ver se estava tudo bem ou se ela estava mesmo em
casa. Quando cheguei lá, eu a encontrei em cima da cama com um canivete no peito - e, acredite ou
não, havia ainda mais choro aqui - Rapidamente chamei uma ambulância. Ela ainda está no hospital
- disse a mãe dela.
— Tá certo, admito, por essa eu realmente não esperava. Imediatamente, decidimos visitar a Ra-
íssa no hospital, então a mãe dela nos levou, mas creio que devia estar sob o efeito de remédios
para se acalmar, já que não conseguimos conversar com ela para saber mais detalhes sobre o que
havia acontecido.
No hospital, não conseguimos conversar com a Raíssa. Ela estava sedada, dormindo, tomando
diversos medicamentos na veia, ligada a uma porção de aparelhos com "bips" e mais "bips", com
vários leds de todas as cores que você possa imaginar. Ficamos cerca de 2 horas lá, mas ela não
acordou, então decidimos ir para nossas casas e voltar outra hora.
Na noite de quinta-feira tive um sonho muito estranho. Sonhei que estava brincando com a minha
irmãzinha em meu quarto, quando, de repente, um rapaz misterioso entrou pela sacada, jogou mi-
nha irmãzinha na parede e, sem chance de reação, enfiou um compasso em minha garganta. Sim,
um compasso. Tantos tipos de armas de fogo, tantas espécies de facas e adagas, e ele me furou
com um compasso. Como eu disse, o sonho foi estranho. Apenas para deixá-lo ainda mais esquisi-
to, ele me disse em minha orelha, com uma voz metálica:
— Isso não é apenas um jogo de tabuleiro - e então, sumiu.
Acordei assustada e olhei ao meu redor. Havia apenas a minha irmãzinha, encostada na parede
do meu quarto, exausta, me observando. Levei-a para seu quarto e, com sono e preguiça de retor-
nar para o meu, resolvi dormir junto dela.
Logo pela manhã, sexta-feira, ao acordar e perceber que estava sozinha em casa, resolvi visitar
Raíssa que estava no hospital. Uma vez lá, ela acabou apenas reafirmando a versão de sua mãe.
Disse a ela que voltaria mais tarde, que esta era apenas uma "visita de médico" dei-lhe um beijo na
testa e me retirei do quarto. Ao sair, esbarrei num de meus amigos, de minha sala. Ele me olhou,
mas não me disse nem apenas um simples "oi". Ok, compreensível, estávamos todos um tanto aba-
lados, desnorteados. Sem problemas. Segui adiante e fui para o colégio.
Na sala de aula as coisas começaram a ficar estranhas. Postei-me ao lado da Amanda que cho-
rava incessantemente, agachei-me ao seu lado e perguntei o motivo das lágrimas. Claro, era óbvio o
motivo, mas parece que, mesmo diante das mais óbvias situações, costumamos fazer perguntas
idiotas como esta. Admito que não foi grande surpresa o fato dela não me responder, afinal, estava
abalada, talvez não quisesse conversar, ou talvez apenas preferisse ignorar minha pergunta. O es-
tranho foi ela nem ao menos me olhar ou se mexer quando alisei seus cabelos, como um gesto de
consolo. Ela me ignorava simplesmente como se ninguém mexesse em seu cabelo. Ah, se for im-
portante anota aqui... O professor também parecia estar um pouco "zumbificado", sem conseguir
prestar atenção nas coisas, afinal, parece que não me ouviu respondendo meu nome durante a cha-
mada. Para não chamar muita atenção para mim alertando-o de que não me ouvira, fui ao lado dele
e peguei uma caneta para arrumar a minha a presença em seu caderno. Alguns amigos me olharam
e ficaram imóveis, boquiabertos. O que eu havia feito demais? Então, outros começaram a gritar e
saíram correndo. Santo Pai, o que havia de MAIS errado que eu já não soubesse?
Levou alguns segundos até que eu esboçasse alguma reação. Como que por instinto, corri para
fora da sala, atrás dos outros alunos. O único que não correu foi o professor, que manteve-se em pé
no mesmo lugar que estivera antes, apenas me olhando. Ou para minha mão. Algo errado com ela?

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Enfim, eu já estava fora da sala quando um aluno passou e esbarrou em minha mão, derrubando a
caneta que eu ainda segurava. Sem um pingo de educação para me pedir desculpas, ele continuou
seu caminho. Abaixei-me para pegar a caneta. Fechei meus dedos ao seu redor e, quando puxei
meu braço de volta, ela escorregou novamente. Impaciente, abaixei-me e fechei minha mão para
pegá-la, mas não conseguia pegá-la. Estranho. Mal sabia eu que a parte mais estranha disso tudo
viria a seguir.
Olhei para o corredor que se seguia para fora da sala onde eu ainda estava parada na porta, on-
de o professor havia acabado de desabar numa cadeira, suando e com dificuldade para respirar. Ao
longe, alguns alunos ainda corriam, outros conversavam em voz alta. Podia notar que algo estava
errado, havia um "q" de pânico em suas vozes. Foi quando a vi. Raíssa estava parada em meio a
todos, olhando atentamente para mim. Os outros alunos passavam perto dela como se ela nem esti-
vesse ali, como se nem ao menos, minutos antes, estivessem chorando por seu estado de saúde.
Ninguém a cumprimentava. Ela também parecia não fazer questão disso, apenas me encarava aten-
tamente. Levantei-me (sem a caneta) e fiquei a observando enquanto ela caminhava em minha dire-
ção.
Quando ela se aproximou o suficiente, corri para abraçá-la. Era estranho que ela estivesse tão
bem, e já estivesse no colégio, mas não importava. Ela estava ali. Ao abraçá-la, não pude sentir a
mesma animação por parte dela. Após alguns segundos abraçadas, nos afastamos um pouco e ela
ficou em silêncio. Perguntei tudo o que tinha direito a perguntar: "Como você está? O que aconte-
ceu? Por que já está aqui? Quando recebeu alta?", entre outras perguntas, mas ela não respondeu
a nenhuma delas. Ela simplesmente me puxou de volta, me dando um abraço apertado e pude sen-
tir suas lágrimas caindo em meus ombros. Talvez emoção por estar bem novamente. Ahh, quem me
dera que fosse isso.
Ao nos afastarmos um pouco novamente, ela me puxou pela mão até um banco ali próximo, vazi-
o. Nos sentamos e ficamos um tempo em silêncio. Até ela tomar a palavra.
— Como você está? - perguntou
— Eu? Estou bem! Quero saber como você está... - respondi
— Por que estão todos afoitos assim? - perguntou a Raíssa, ignorando o que eu disse
— Não sei, apenas preenchi meu nome na presença. Talvez tenham visto algo que os assustou
na sala. Não sou feia a esse ponto - respondi, rindo de minha piada
— Você tem se olhado no espelho recentemente? - ela respondeu, meio que com ignorância
— Está me chamando de feia? - perguntei, um pouco magoada
Sem responder, ela me puxou até o banheiro feminino. Estava vazio também. Agora, parecia que
todos os alunos se reuniram na minha sala. Enfim. Ela me postou frente ao espelho, mas não olhei,
olhava para ela, sem entender o objetivo daquilo tudo.
— Veja... - ela me disse, apontando para o espelho
Não sei como descrever o que vi. Ou não vi. O espelho simplesmente estava refletindo a parede
oposta, como se não houvessem duas garotas em pé ali, bem na frente dele.
Fiquei olhando-o de forma curiosa. Não havia percebido o que se passava.
— Rah, o que está acontecendo com o espelho?
— Não é bem o espelho... - ela respondeu, cabisbaixa
— C-como assim? - gaguejei. Não sei o motivo pelo qual gaguejei, mas gaguejei.
— Hoje pela manhã, sua mãe foi me visitar no hospital. Ouvi ela conversando com minha mãe... -
começou ela, receosa
— E o que tem? - perguntei. Nossas mães não se conheciam, ou seja, haviam acabado de se
conhecer então.
— O que você se lembra de ontem à noite?

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— Como assim? Tomei um banho, fui deitar, dormi um pouco, acordei e vi minha irmã no meu
quarto, levei-a pro quarto dela e acabei dormindo lá mesmo...
— Só isso? - ela insistiu, mesmo vendo que eu não sabia onde ela queria chegar
— Só, oras. Por quê? - respondi, ainda com os olhos fixos no espelho, no lugar onde ele deveria
estar refletindo algo
— Nenhum sonho?
Certo, agora foi estranho (como se todo o resto já não estivesse sendo). Como ela sabia do so-
nho?
— Bem... Um estranho. Sonhei que alguém entrou no meu quarto e enfiou um compasso no meu
pescoço, e disse alguma coisa.
— Se lembra do quê? - disse ela, agora me olhando atentamente, com pressa para saber a res-
posta
— Algo como "Não era apenas um jogo". Afinal, o que isso tem a ver com o espelho? - perguntei,
já nervosa
Ela me observou em silêncio por alguns segundos e, então, caiu de joelhos, começando a chorar.
Abaixei-me e comecei a sacudí-la, perguntando o que estava errado. Ela me olhou fixamente nos
olhos e retomou a palavra.
— Eu ouvi o que sua mãe conversou com a minha... As duas chorando... Hoje, ao voltar pra ca-
sa, depois de levar sua irmã para a escola, sua mãe foi ao seu quarto.
Não pude pensar o que havia de tão terrível nisso. Ela mexeu em meu computador e leu meus
históricos de conversa?
Se fosse, eu iria brigar muito. Cadê a privacidade?
— Que tem? - perguntei, grosseiramente
— Ela te viu deitada na cama...
— Como assim? A essa hora, eu já estava aqui no colégio, morrendo de sono...
— Ela te viu deitada na cama... - disse, levando a mão ao meu pescoço e passando-a em uma
parte que, por algum motivo, doeu.
— Ai! Por que me beliscou?
— Sua mãe... - disse, em meio às lágrimas - disse que você estava deitada...
— TÁ, TÁ, isso você já disse, loucura, mas que tem?
— ... com um compasso fincado em seu pescoço.
Gelei. Eu não sabia se ria - pela loucura toda -, se chorava - não me perguntei o porquê - ou que
outra reação ter. Fiquei encarando-a, esperando ela falar alguma coisa para comprovar a loucura
toda, mas ela apenas chorava. Levei, lentamente, com medo, minha mão até o meu pescoço e, no-
vamente, senti aquela dor incômoda. Levantei-me e me olhei, ou pelo menos tentei, no espelho. Na-
da. Saí correndo do banheiro, deixando-a ali no chão, e então, com o primeiro aluno que encontrei,
resolvi tentar chacoalhá-lo e gritar. Gritar, eu gritei, mas ele não parecia ter me ouvido... Chacoalhar,
eu tentei, mas ele simplesmente continuou andando, passando direto por mim. Quando eu digo
"passando por mim", digo no sentido literal. Ele passou por dentro de mim, digamos assim. Respirei
fundo e caminhei lentamente de volta para o banheiro. Fiquei em pé ao lado de Raíssa, e então des-
moronei ali. Comecei a chorar, como nunca antes chorei. Não sabia de onde podia sair tanta lágri-
ma. Se é que realmente havia alguma lágrima caindo.
— C-como? - foi tudo que pude dizer
Após alguns minutos tentando achar as palavras, em meio ao choro, ela me respondeu.
— Parece que... O nosso jogo, na segunda-feira... O copo ter quebrado... Parece que realmente
fizemos contato com algo...

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Não podia acreditar no que ouvia. Aquilo não era real.
— Espíritos não existem... - murmurei
— Você está aqui... - respondeu ela
— Você também...! - finalmente, sem pensar em mim, percebi que as pessoas também não havi-
am reparado nela no corredor
— Eu tive o mesmo sonho que você... As máquinas no hospital já foram desligadas...
Nos abraçamos e choramos juntas.
— Mas e os outros? Como escaparam disso?
— Parece que nós fomos as únicas a saírem do jogo sem "pedir permissão" ao espírito...
— E daí?
— E daí que ele se revoltou com nosso desacato. Era um espírito agressivo... Não sei se o vere-
mos novamente, mas ninguém nos verá outra vez...
Após algumas horas em completo silêncio, apenas chorando e vendo como as garotas entravam
no banheiro e conversavam alegremente como se não estivéssemos ali, resolvemos ir até o hospi-
tal. Para minha surpresa, eu estava dividindo o mesmo apartamento que a Raíssa. Nossos pais cho-
ravam. Tentei pegar algo, para mostrar minha presença ali, mas não consegui segurar nada.
— Não adianta - ela me respondeu - Já não somos mais matéria para ter contato com objetos e
pessoas...

***********

Após o nosso enterro, o qual assistimos sem chorar, apesar de ficar com um "nó" na garganta,
nos dirigimos para longe dali. Não me pergunte para onde, ou para fazer o quê. Estávamos apenas
caminhando, juntas. Sempre fomos grandes amigas, e agora, seríamos amigas inseparáveis, para
sempre.

32
Rotina
Gabriella Yamashita Felber

A cordei. Escovei os dentes. Troquei de roupa. Enfrentei um dia cheio de trabalho. Voltei
para casa. Dormi. Acordei. Escovei os dentes... Rotina. Todos os dias eu penso: será
que nunca vai acontecer nada interessante comigo, será que nunca vou encontrar alguém interes-
sante? Destino. Talvez esteja escrito que minha vida tem que ser sempre a mesma coisa. Ou talvez
não.

Acordei, mas levantei sentindo algo diferente. Acho que é o meu sexto sentido feminino agindo.
Dizem que ele nunca falha. Realizei o resto de minhas tarefas matinais e fui para o trabalho. Duran-
te o caminho, eu olhava para as pessoas, esperava que elas viessem falar comigo, mas não aconte-
ceu nada. Durante o trabalho, esperei algum telefonema de algum amigo. Nada ocorreu. Fui almo-
çar, com a esperança de que algo novo acontecesse. Também nada. Voltei para o trabalho, passei o
resto da tarde eufórica pensando: bom, o dia ainda não acabou. De repente fui avisada que eu era
esperada por alguém na recepção, fiquei toda animada, mas cheguei lá e era só mais outro cliente.
Ah, como a minha vida é deliciosa.

Voltei para casa, bebi alguns copos de vinho e adormeci em companhia da minha única amiga, a
bebida. Não, brincadeira, caro leitor, minha amiga, a rotina.

33
0
O mistério
Gustavo Claudino Clemente

5h 30m – residência do senhor Otávio de Almeida:


Pontualmente às 5h e 30m o suspeito acordou, usou o banheiro e dirigiu-se à cozinha.
Pegou a velha bandeja de madeira e colocou duas canecas de louça, o café, o leite, uma cestinha
de vime com rosquinhas de pinga e frutas. Pôs, também, um vasinho com algumas margaridas co-
lhidas em seu jardim. Levou ainda o jornal do dia. Desceu a escada externa que leva ao porão da
casa, em passos calmos e tranqüilos. Voltou como de costume, duas horas após e saiu para o tra-
balho. Percebe-se a felicidade em seu rosto e tranqüilidade na alma que ele transmite após estas
estranhas visitas ao porão, o que fez com que várias pessoas nos tenham pedido uma investigação.

08h 30m – Vou entrar e investigar o porão. Dizem que esse estranho hábito do senhor Otávio
começou no dia seguinte à morte de sua esposa, há dois anos. Chego até a escada que leva ao
porão. São poucos os degraus até a verdade escondida. A porta do porão é fechada apenas por
uma tranca de madeira. Abro a porta e entro, meus olhos se acostumam ao escuro após alguns mi-
nutos. O porão tem um ar gelado e sombrio, chão de terra batida. Consigo ver apenas uma mesa
pequena e duas cadeiras. Vejo ao lado da mesa uma porta trancada a cadeado.Ouço então um ba-
rulho sobre o assoalho e corro para fora com medo de ser pego em meu ilícito ato de invasão. Che-
go ao carro em tempo de ver o velho cachorro saindo da casa. Resolvo voltar amanhã.

05h 30m do dia seguinte – Cheguei no horário de costume e aguardei pacientemente que o sus-
peito descesse as escadas do porão e fui até lá. Para minha surpresa, a porta estava aberta, lá den-
tro pude ver o vulto do senhor Otávio e de outra pessoa sentada na cadeira ao lado. Ele lia as notí-
cias do dia, parava algumas vezes para sorrir, eu ouvia então, o som de um beijo que ele dava no
vulto. Resolvi então entrar e acabar logo com o sofrimento daquela criatura, presa há tanto tempo no
velho porão. Empurrei a porta com força e adentrei ao recinto, o suspeito deu um grito e vi quando o
vulto ao seu lado caiu ao chão. Aproximei-me e vi a patética figura inerte no chão, não acreditava no
que via. O senhor Otávio então, me mandou sair de sua propriedade e de sua intimidade.
Saí rápido, com a prisioneira como prova. Solicito liberação da prova e entrega ao seu proprietário
após o encerramento do caso.

Anexos ao relatório – um manequim feminino com peruca loira e roupa composta de: calcinha e
sutiã de renda vermelha, cinta-liga, meia sete oitavos da mesma cor e sapato de salto alto.

Anésio da Silva – investigador de polícia

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