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verve

verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

9
2006
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº 9 ( maio 2006 - ). - São Paulo: o Programa, 2006 -
Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Co-
ordenadores: Teresinha Bernardo e Paulo-Edgar Almeida Resende.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre R. Degenszajn, Edson Lopes
Jr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C.
Corrêa, Gustavo Ferreira Simões, Lúcia Soares da Silva, Márcio Ferreira
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Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago
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Conselho Editorial
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to (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo
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do Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de
Lisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgar Almeida Resende (PUC-SP), Silvio
Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de
Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberda-
de. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
partituras, John Cage
SU M Á R I O

Somos todos canibais


Claude Lévi-Strauss 13

A filiação de Proudhon
Daniel Colson 23

As políticas do pós-anarquismo
Saul Newman 30

A paixão russa de destruir


Georges Nivat 51

Europa: a guerra inacabada


Nildo Avelino 60

Ensaio sobre um abolicionismo penal


Edson Passetti 83

Liberdade assistida: uma tolerância intolerável


Thiago Souza Santos 115

Os anarquistas e as prisões:
notícias de um embate histórico
Acácio Augusto 129

Contingentes de homens inúteis


Edson Lopes 142

Tolerância e conquista,
alguns itinerários na Declaração Universal dos Direitos Humanos
Salete Oliveira 150

A “ordem” do Estado,
as peculiaridades humanas e anarquia!
Edgar Rodrigues 170
Uma história do anarquismo:
o surgimento da Federação Libertária Argentina
Pablo M. Perez 189

Durruti está morto, contudo vivo


Emma Goldman 217

Elogio do amor livre


Amparo Poch y Gascón 226

Narcisismo, sujeição e estéticas da existência


Margareth Rago 236

Poéticas do virtual e os processos de subjetivação


Tania Mara Galli Fonseca 251

O apelo desejante
ou o roteiro improvável para uso
dos ratos de biblioteca
Nilson Oliveira 271

A arte pela (an) ar(q)


Michel Ragon 277

RESENHAS

É o bastante?
ou a conveniência de se manter na moda.
Ana Salles 285

William Gibson e cyberpunk:


reflexão ou antecipação?
Márcio F. Araújo Jr. 289

Para além do gênero


Eliane Knorr de Carvalho 293

Michel Foucault: um rosto desenhado na areia


Tony Hara 297

Thoreau, um andarilho
Ana Godoy 306
canibal não é mais a designação colonialista suplemen-
tar aos selvagens, aos outros, aos anormais, aos perigo-
sos. o antropólogo claude lévi-strauss, num gesto rápido e
certeiro, mostra que somos todos canibais: rompimento
com o etnocentrismo.
o iluminismo não é mais a referência inquestionável
da anarquia. práticas anarquistas contemporâneas, sem
perder o vigor das lutas e pensamentos passados, dissol-
vem universais, problematizam o poder, terrorismos e a
propagação da idéia de europa pacífica.
os novos campos de concentração urbanos reafirmam
os etnocídios e levam o abolicionismo penal a se revirar e
a decompor o controle de jovens infratores a céu aberto, os
posicionamentos anarquistas sobre prisioneiros, os con-
tingentes de pessoas tidas como inúteis e as declarações
universais humanistas relacionadas à tolerância zero.
é preciso federação anarquista? conheça a federação
libertária argentina.

Jo
mulheres corajosas atualizam outras discussões: emma
goldman, fala do petrel buenaventura durruti na guerra
civil espanhola; e por dentro desta luta, amparo poch y
gascón (dra. salud alegre) da revista mujeres libres, comba-
te a tirania do amor; margareth rago e tania fonseca de-
sassossegam pelo cuidado de si e a experimentação de
habitar entre.
leitor e livro corpo a corpo: escritas que queimam sel-
vagens e sem paz, tendo o sangue como tinta. são mos-
tradas as conexões entre a anarquia e as artes, mesmo
com um silêncio sobre o dadaísmo. por isso, partituras do
anarquista john cage não deixam cessar o ruído do silên-
cio em verve 9.
as resenhas interceptam deslizes, relacionam ficção
científica e sociedade de controle, comentam a obra de
uma anarquista contundente, analisam os encontros so-
bre foucault ocorridos em 2004, e saúdam os andarilhos
que ladeiam henry david thoreau.
verve
Somos todos canibais

somos todos canibais1

claude lévi-strauss*

Até 1932, as montanhas do interior da Nova Guiné


compunham a última região totalmente desconhecida
do planeta. Formidáveis obstáculos naturais protegiam
seu acesso. Garimpeiros de ouro, seguidos logo depois
pelos missionários, foram os primeiros a penetrá-la, mas
a Guerra Mundial interrompeu essas tentativas. Ape-
nas a partir de 1950 foi possível perceber que esse vasto
território era habitado por quase um milhão de pessoas
falando línguas diferentes de uma mesma família lin-
güística. Esses povos ignoravam a existência dos bran-
cos, que foram tomados por divindades ou fantasmas.
Seus costumes, suas crenças, sua organização social
iria abrir aos etnólogos um campo de estudos inimagi-
nável.

* Filósofo de formação, realizou pesquisas etnográficas no Brasil Central na


década de 1930, período em que foi professor de Sociologia na Universidade
de São Paulo. Conhecido como inventor da antropologia estrutural, é membro
da Academia Francesa e do Collège de France, onde criou o laboratório de
Antropologia Social.
verve, 9: 13-21, 2006

13
9
2006

Não somente aos etnólogos. Em 1956, um biólogo


americano, Dr. Carleton Gajdusek, descobriu uma do-
ença desconhecida. Nas pequenas populações divididas
em cerca de 160 aldeias num território de 250 milhas
quadradas, somando quase 35 mil indivíduos, uma pes-
soa em cada cem morria todo ano de uma degeneres-
cência do sistema nervoso central manifesta por uma
tremedeira incontrolável (donde o nome da doença: kuru,
que significa “tremer” ou “tiritar” na língua do principal
grupo) e por uma desorganização progressiva dos movi-
mentos conscientes, seguida de múltiplas infecções.
Após acreditar ser a doença de origem genética, Gajdu-
sek demonstrou que ela era causada por um vírus de
ação lenta, particularmente resistente, e que até hoje
não foi isolado.
Foi a primeira vez que se percebeu uma doença de-
generativa causada por um vírus de ação lenta no ho-
mem; mas as doenças animais, como o scrapie2 e a do-
ença das vacas loucas que recentemente fez estragos
na Grã Bretanha, são muito parecidas. No próprio ho-
mem, uma outra afecção degenerativa do sistema ner-
voso, a doença de Creutzfeldt-Jacob, existe em estado
esporádico no mundo inteiro. Mostrando que, como no
kuru, ela pode ser inoculada nos macacos, Gajdusek
provou que ela é idêntica ao kuru (uma predisposição
genética, contudo, não foi excluída). Ele recebeu o prê-
mio Nobel em Medicina, em 1976, por esta descoberta.
No caso do kuru, a hipótese genética não coadunava
com a estatística. A doença acometia as mulheres e
crianças pequenas com freqüência muito maior que os
homens, a ponto de se contar, nas aldeias mais afeta-
das, uma mulher para cada dois ou três homens, às ve-
zes quatro. Surgido talvez no começo do século,3 o kuru
também tivera conseqüências sociológicas: redução da
poligamia, proporção aumentada de homens solteiros e

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verve
Somos todos canibais

de viúvos encarregados da família, além de mais liber-


dade das mulheres na escolha do cônjuge.
Mas se o kuru é de origem infecciosa, faltava ainda
encontrar os vetores do vírus e a razão da repartição
anormal entre as idades e os sexos. Procurou-se em vão
pelo lado da alimentação e da insalubridade das caba-
nas, nas quais vivem as mulheres e crianças (separa-
das de seus maridos ou pais, que moram juntos numa
casa coletiva; os encontros amorosos ocorrem nas flo-
restas ou nos jardins).
Quando os etnólogos entraram por sua vez na região,
desenvolveram uma nova hipótese. Antes de passar ao
controle da administração australiana, os grupos viti-
mados pelo kuru praticavam o canibalismo. Comer o
cadáver de certos parentes era uma maneira de lhes
testemunhar afeição e respeito. Cozinhava-se a carne,
as vísceras, o miolo; preparava-se os ossos pilados com
legumes. As mulheres, responsáveis pelo trincho dos
cadáveres e pelas outras operações culinárias, aprecia-
vam particularmente essas refeições macabras. Pode-
se supor que elas se contaminavam ao manipular os
cérebros infectados e que, por contato corporal, conta-
minaram suas crianças pequenas.
Parece que, naquela região, essas práticas canibais
começaram a ser realizadas na mesma época em que o
kuru apareceu; e que, depois que a presença dos bran-
cos deu fim ao canibalismo, o kuru diminuiu regular-
mente até hoje quase desaparecer. Uma relação de cau-
sa e efeito poderia pois existir. A prudência contudo se
impõe, uma vez que as práticas canibais descritas com
um prodigioso luxo de detalhes pelos informantes nati-
vos, já haviam desaparecido quando as pesquisas co-
meçaram. Não dispomos de nenhuma observação dire-
ta, de experiência realizada em campo, que permita afir-
mar que o problema esteja definitivamente resolvido.

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Eis que, há alguns meses, na França, na Grã Breta-


nha, na Austrália, a imprensa se apaixona por casos da
doença de Creutzfeldt-Jacob (idêntica ao kuru, eu dis-
se) ocorridos após injeções de hormônios extraídos de
hipófises humanas, ou enxertos de membranas prove-
nientes de cérebros humanos (a hipófise é uma peque-
na glândula situada na base do cérebro). Esses trata-
mentos servem para combater, no primeiro caso, pro-
blemas de crescimento de crianças, e no segundo, a
esterilidade feminina. Diversas mortes foram assina-
ladas na Grã Bretanha, na Nova Zelândia, nos EUA, re-
lativas à esterilidade; outras mais recentes, foram re-
gistradas na França, entre crianças tratadas através de
hormônios de crescimento extraídos de cérebros huma-
nos provavelmente mal esterilizados. Fala-se de um
escândalo compatível àquele que, numa escala maior,
comoveu a opinião pública francesa com o caso do san-
gue contaminado pelo vírus da AIDS e, como nesse últi-
mo caso, as queixas foram depositadas na justiça.
Assim, a hipótese sugerida pelos etnólogos e aceita
pelos médicos e biólogos, de que o kuru, doença própria
de algumas pequenas populações exóticas, tinha sua
origem no canibalismo, encontra uma ilustração sur-
preendente entre nós: aqui e ali, as doenças irmãs se
transmitiam às crianças e às mulheres que, através de
caminhos sem dúvida diversos, incorporavam materi-
ais cerebrais humanos. Um caso não prova o outro, mas
há entre eles uma admirável analogia.
Talvez surjam protestos contra essa aproximação.
Entretanto, que diferença essencial há entre a via oral
e a sanguínea, entre a ingestão e a injeção, para intro-
duzir um pouco de substância de outrem num organis-
mo? Uns dirão que é o apetite bestial pela carne huma-
na que faz o canibalismo ser horrível. Deverão, pois,
restringir essa condenação a alguns casos extremos, e

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Somos todos canibais

subtrair da definição de canibalismo outros casos ates-


tados, impostos como dever religioso, muitas vezes cum-
prido com repugnância, repulsa mesmo, traduzida em
mal-estar e vômitos.
A diferença que estaríamos tentados a estabelecer
entre um costume bárbaro e supersticioso, de um lado,
e uma prática fundada no saber científico, de outro, tam-
bém não será probatória. Atualmente empregos de subs-
tâncias retiradas do corpo humano, procedimentos ci-
entíficos aos olhos das antigas farmacopéias, são su-
perstição para nós. E a medicina moderna, ela própria
proscreveu há alguns anos os tratamentos, há pouco ti-
dos como eficazes, porque se revelaram inoperantes,
senão nocivos. A fronteira parece ser menos nítida do
que gostaríamos de imaginar.
Entretanto, o senso comum continua vendo na práti-
ca do canibalismo uma monstruosidade, uma aberração
tão inconcebível da natureza humana que certos auto-
res, vítimas do mesmo preconceito, chegam a negar que
o canibalismo tenha alguma vez existido. Invenções de
viajantes e etnólogos, dizem. A prova: durante o século
XIX e XX, estes produziram inúmeros testemunhos pro-
venientes do mundo todo, mas nunca uma cena de cani-
balismo foi diretamente observada por eles. (Deixo de lado
aqueles casos excepcionais em que pessoas, quase mor-
rendo de fome, foram constrangidas a comer seus com-
panheiros já mortos, pois o que se contesta é a existên-
cia do canibalismo como costume ou como instituição.)
Num livro4 brilhante mas superficial, que teve gran-
de sucesso junto ao público mal informado, W. Arens
baseou-se particularmente nas idéias admitidas sobre
o kuru. Se as histórias do canibalismo são fábulas ad-
vindas, como afirma,5 da cumplicidade entre os pesqui-
sadores e seus informantes indígenas, não existe mais
a razão de acreditar que na Nova Guiné o canibalismo

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esteja na origem do kuru, menos ainda que na Europa a


doença de Creutzfeldt-Jacob se transmita também pela
via do canibalismo: hipótese grotesca que ninguém afir-
mou.
Ora, acabamos de ver precisamente que é a realida-
de incontestável do segundo caso que, sem trazer a pro-
va, confere uma verossimilhança acurada ao primeiro.
***
Nenhum etnólogo sério contesta a realidade do cani-
balismo, mas todos sabem também que não se pode re-
duzi-lo à sua forma mais brutal, consistindo em matar
inimigos para comê-los. Este costume certamente exis-
tiu, tanto que no Brasil onde — para ficar num único
exemplo — alguns viajantes antigos e jesuítas portu-
gueses que viveram no século XVI durante anos entre
os índios e falavam sua língua, fizeram testemunhos
bastante eloqüentes.
Ao lado deste exocanibalismo, deve-se localizar um
endocanibalismo que consiste em consumir em grande
ou muito pequena quantidade a carne fresca, apodreci-
da ou mumificada de parentes defuntos, seja crua, cozi-
da ou carbonizada. Nos confins do Brasil e da Venezuela
os índios Yanomami, infelizes vítimas, como sabemos,
dos garimpos de ouro que invadiram seu território, con-
somem ainda hoje os ossos previamente pilados de seus
mortos.
O canibalismo pode ser alimentar (em período de pe-
núria ou por gosto pela carne humana); político (como
castigo de criminosos ou por vingança contra inimigos);
mágico (para assimilar as virtudes dos defuntos ou, ao
contrário, para afastar suas almas); ritual (se ele decor-
re de um culto religioso, de uma festa dos mortos ou de
maturidade ou para assegurar a prosperidade agrícola).
Pode enfim ser terapêutico como atestam as numero-

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Somos todos canibais

sas prescrições da medicina antiga, e na Europa mesmo


num passado não tão longínquo. As injeções de hipófise e
os enxertos de matéria cerebral, das quais falei, os trans-
plantes de órgãos tornados hoje prática corrente, decor-
rem indiscutivelmente dessa última categoria.
As modalidades do canibalismo são, pois, tão varia-
das, suas funções reais ou supostas tão diversas, que
se chega a duvidar que a noção de canibalismo, tal como
é empregada correntemente, possa ser definida de modo
mais ou menos preciso. Ela se dissolve ou se dispersa
quando se tenta delimitá-la. O canibalismo em si não
possui uma realidade objetiva. É uma categoria etno-
cêntrica: só existe aos olhos das sociedades que o pros-
crevem. Toda carne, qualquer que seja a proveniência,
é um alimento canibal para o budismo que crê na uni-
dade da vida. Ao contrário, na África, na Melanésia, po-
vos fazem da carne humana um alimento como um ou-
tro qualquer, senão às vezes o melhor, o mais respeitá-
vel que, dizem é o único a “ter um nome”.
Os autores que negam a existência presente e pas-
sada do canibalismo sugerem que a noção foi inventada
para aprofundar ainda mais o fosso entre selvagens e
civilizados. Nós atribuiríamos falsamente aos primei-
ros costumes e crenças revoltantes a fim de nos propor-
cionar uma boa consciência e de confirmar a crença na
nossa superioridade.
Invertamos essa tendência e tentemos perceber em
toda sua extensão os fatos do canibalismo. Sob modali-
dades e com fins extraordinariamente diversos segun-
do os tempos e os lugares, trata-se sempre de introduzir
voluntariamente, nos corpos de seres humanos, partes
ou substâncias provenientes do corpo de outros huma-
nos. Assim exorcizada, a noção de canibalismo parece-
rá doravante bastante banal. Jean-Jacques Rousseau
via a origem da vida social no sentimento que nos leva

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a identificarmos-nos a outros. Afinal, o meio mais sim-


ples de identificar outrem a si mesmo é ainda comê-lo.
Em última análise, se os viajantes em terras longín-
quas se inclinaram facilmente, e não sem complacên-
cia, diante da evidência do canibalismo, é que, sob essa
forma generalizada que permite abarcar a totalidade do
fenômeno, o conceito de canibalismo e suas aplicações
diretas ou indiretas, acontecem em todas as socieda-
des. Como mostra o paralelo que tracei entre os costu-
mes melanésios e nossos próprios usos, pode-se até di-
zer que ele existe também entre nós.

Tradução do francês por Dorothea Voegeli Passetti.

Notas
1
“Nous sommes tous des cannibales”, publicado em Lévi-Strauss, Michel Izard
(org.). Éditions de L’Herne. Paris, 2004, pp. 34-36. A publicação original é em
língua italiana: “Siamo tutti cannibali”, La Republica, 10 de outubro de 1993.
2
O termo inglês scrapie é também usado no Brasil para designar essa doença
neurodegenerativa que afeta o gado bovino e caprino, que em francês é conhe-
cida como tremblement du mouton (NT).
3
Século XX (NT).
4
William Arens. The man-Eating Myth. New York, Oxford University Press,
1979.
5
Idem, pp. 111-112.

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verve
Somos todos canibais

RESUMO

O canibalismo além da forma amestrada que conhecemos é também


uma designação etnocêntrica se for compreendido como do huma-
no, todos somos canibais.

Palavras-chave: Etnocentrismo, ciência, canibalismo.

ABSTRACT

Cannibalism beyond the domesticated form that we know is also


an ethnocentric designation if comprehended as belonging to the
human, we are all cannibals.

Keywords: Ethnocentrism, science, cannibalism.

Indicado para publicação em 4 de outubro de 2005.

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verve
A filiação de Proudhon

a filiação de proudhon

daniel colson*

Como a maioria dos outros teóricos do anarquismo


(Godwin, Coeuderoy, Dejacque ou Bakunin, por exem-
plo), Proudhon não escapa do desprezo ligado à aparente
excentricidade de suas idéias — mas também a modos
de agir e de situar-se no mundo — despreocupadas com
as formas e convenções capazes de mascarar sua origi-
nalidade. No entanto, a esse descrédito comum, Prou-
dhon acrescenta uma má e estranha reputação (devida
sem dúvida à importância e ao caráter durante muito
tempo enigmático de sua obra) que não apenas reforça
as razões para não lê-lo, mas principalmente para dizer
ou repetir despropósitos a seu respeito. Por exemplo, e
para citar somente o lugar comum mais extravagante,
que ele seria “o pai do anti-semitismo moderno”.1 En-
tretanto, o interesse contraditório e, por um longo perí-
odo, inconcluso por seus escritos — de Elie Havély a
Georges Gurvitch, passando por Leon Brunschvicg ou o

* Professor de Sociologia na universidade de Saint-Étienne, membro da livra-


ria libertária La Gryffe de Lyon, autor de Petit lexique philosophique de l’anarchisme.
De Proudhon a Deleuze. Paris, ed. Le Livre de Poche, 2001 e Trois essais de
philosophie anarchiste, Islam, Histoire et Monadologie. Paris, ed. Léo Scheer, 2004.
verve, 9: 23-29, 2006

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2006

durkeiniano Célestin Bouglé e o inclassificável Geor-


ges Sorel — basta para mostrar a força e a importância
de uma filosofia que apenas o ressurgimento libertário
destes últimos anos, e a aparição de um pensamento
contemporâneo dito “pós-moderno”, finalmente tornou
perceptíveis.

As ondas Proudhon
Embora seja certo que ele recusaria tal distinção, a
importância de Proudhon é de duas ordens. Ela é em pri-
meiro lugar histórica e política. De fato, é impossível com-
preender o que quer que seja sobre a natureza e signifi-
cação dos movimentos revolucionários ocorridos a partir
da segunda metade do século XIX sem conhecer a obra
de Proudhon. Uma obra que esteve em parte na origem
desses movimentos, mas que é, sobretudo, expressão e
fonte de inspiração para a riqueza, diversidade e origina-
lidade de sua realidade e significação emancipadoras.
Durante mais de setenta e cinco anos (quatro gerações
operárias), desde a fundação da 1ª Internacional, em Lon-
dres em 1865, até o fim da revolução espanhola em 1939,
o conjunto de países em vias de industrialização foi atra-
vessado por surpreendentes movimentos operários e re-
volucionários, mas freqüentemente ignorados, duplamen-
te massacrados, tanto em sua realidade quanto em sua
lembrança, pelas ulteriores configurações do comunis-
mo marxista. A influência de Proudhon passa por múlti-
plas ondas e histórias diferentes, que se recobrem e se
reforçam mesmo quando são muito diversas. Temos por
exemplo, os movimentos cooperativos — esse ramo du-
radouro, mas negligenciado do movimento operário in-
ternacional. Ou ainda a 1ª Internacional (AIT), uma pri-
meira vez, com as posições moderadas dos “proudhonia-
nos” de estrita observância (os “mutualistas”), e depois,
contra os primeiros, através da radicalidade revolucio-

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verve
A filiação de Proudhon

nária dos partidários de Bakunin, que conviveu regu-


larmente com Proudhon (durante os anos 1840), e que o
lera com paixão, antes de se apropriar dele e de retomá-
lo de outra forma. Outro exemplo é a Espanha. Inicial-
mente o proudhonianismo aí se difunde não entre os
operários, mas na pequena burguesia dos meios repu-
blicanos e federalistas, em especial com as traduções e
os escritos de Pi y Margal, ministro da efêmera repúbli-
ca de 1871, mas também inspirador mais ou menos di-
reto dos levantes cantonalistas dos anos 1860. Esse pri-
meiro proudhonianismo encontra-se e é recoberto por
uma segunda onda, desta vez estrita e massivamente
operária, através do duplo acontecimento que foi o eco
da Comuna de Paris e a ligação duradoura das princi-
pais forças operárias com o anarquismo de Bakunin.
Um outro exemplo, mais tardio, é o sindicalismo revoluci-
onário que, a partir da França e depois um pouco em
todas as partes do mundo, acaba representando o proje-
to de Proudhon em oposição, mas também em estreita
afinidade, com o proudhonianismo extremo e insurre-
cional dos anarquistas, e com aquele aparentemente
tão diferente dos múltiplos e proliferantes movimentos
culturais e cooperativos. Essa capacidade de Proudhon
de inspirar realidades tão diferentes quanto os movi-
mentos messiânicos dos operários agrícolas andaluzes,
a rigorosa e complexa federação dos relojoeiros do Jura
suíço, as ações itinerantes dos Industrial Workers in the
World (IWW) americanos, ou os grupos anarquistas do
East End judeu de Londres, serviu por um longo período
para justificar o veredicto de incoerência e heteroge-
neidade que geralmente se atribui à sua obra, como tam-
bém às revoltas e realizações de caráter libertário dos
quais ela é a vertente teórica. Mas é justamente aqui
que uma releitura contemporânea de Proudhon e des-
ses movimentos, pode tentar esclarecer sua originali-
dade e o rigor de sua lógica interna.

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2006

“A anarquia, essa estranha unidade que não se diz


senão do múltiplo”. Através dessa fórmula, Gilles Deleu-
ze e Félix Guattari descrevem com economia e precisão
a originalidade do projeto libertário, e do modo pelo qual
Proudhon o pensou, duplicando assim sua diversidade e
suas contradições aparentes. De fato, como Proudhon
conseguiu ao mesmo tempo, para nos atermos ao mais
conhecido, afirmar-se como reformista e como revoluci-
onário, celebrar e denunciar o trabalho, opor-se ao ro-
mantismo insurrecional e tornar-se o apologista do guer-
reiro, reclamar-se da emancipação e dar provas de uma
inverossímil misoginia, sustentar durante o conflito do
Sonderbund suíço (1847) os cantões católicos e reacioná-
rios contra a maioria radical da Confederação, ou ainda
adversário das greves e dos primeiros sindicatos trans-
formar-se no primeiro inspirador do sindicalismo revolu-
cionário? Graças a trabalhos como os de Pierre Ansart
(especialmente Naissance de l´anarchisme2), mas também,
mais recentemente, o trabalho da jurista Sophie Cham-
bost,3 ou ainda o livro coletivo Lyon et l´esprit proudhoni-
en,4 percebe-se melhor a coerência de um pensamento e
de um projeto fundados sobre a anarquia do real e que
rompem com o conjunto das representações da moderni-
dade. Lembremos rapidamente os traços mais marcan-
tes dessa coerência e dessa ruptura.

Uma anarquia positiva


Contra a uniformidade e as simplificações opressivas
da ordem e da representação, contra as ilusões das for-
mas, das molduras, das aparências e das classificações,
o anarquismo proudhoniano opõe o múltiplo e o diferen-
te, uma avaliação interior e singular dos seres e das si-
tuações, onde, segundo o princípio da homologia, os ami-
gos e os associados desejáveis em tal ou tal movimento
(opressivo ou emancipador) raramente estão onde se

26
verve
A filiação de Proudhon

pensa encontrá-los. À objetividade ordenada e mutilan-


te de um mundo submetido a Deus, ao Estado, ao capi-
tal, e à Ciência, o anarquismo de Proudhon — antes de
Nietszche e segundo um Leibniz liberado de Deus — opõe
o subjetivismo absoluto de um mundo anárquico que deve
ser ordenado a partir do interior, por experimentação e
pelo senso prático, por associações e des-associações
(federalismo), um mundo que convém escolher e cons-
truir dentre todos os mundos possíveis, transformando
a anarquia do real em anarquia positiva. O anarquismo
de Proudhon substitui a articulação mecânica, exterior
e utilitarista dos seres, por sua afinidade interior, para
o bom ou para o mau, a partir do jogo infinito dos encon-
tros e das associações, e como mostra qualquer história
de amor, a posse de um quepe, de um volante ou de uma
casa no subúrbio. À concepção restritiva e republicana
de uma liberdade que “pára onde começa a liberdade
dos outros” (Rousseau), o anarquismo de Proudhon opõe
uma liberdade transdutora, capaz de se estender “ao
infinito” (Bakunin). À igualdade exterior e formal das
casernas, “a igual nulidade e a escravidão igual de to-
dos diante de um mestre supremo” (Bakunin), o anar-
quismo de Proudhon opõe a igualdade interior de um eu
absoluto, inviolável em sua dignidade, ali onde, como afir-
ma Deleuze, “o menor torna-se o igual do maior desde
que não seja separado daquilo que ele pode.” Ao dualis-
mo da alma e do corpo, o anarquismo opõe o monismo de
um pensamento onde tudo é potência, desejo e vontade,
forças a cada vez singulares e dotadas da possibilidade
de avaliar incessantemente a qualidade emancipadora
ou opressiva daquilo que as constitui. A falsas oposi-
ções que fixam e justificam a prisão em que vivemos —
indivíduo/sociedade, natureza/cultura, bem/mal, ho-
mem/mulher, objetividade/subjetividade, humano/
não-humano — são substituídas pelo anarquismo por
uma composição e uma transformação permanentes dos

27
9
2006

seres e das situações. Todo indivíduo é um grupo, um


“composto de potências”, e todo grupo, toda entidade co-
letiva, não importando seu tamanho ou duração, é um
“indivíduo”, dotado de vontade e força, de sua própria sub-
jetividade. À liberdade abstrata e vazia do cidadão, do
consumidor e desempregado “livremente” em busca de
dinheiro, de trabalho e de felicidade, o anarquismo opõe
a necessidade interior dos seres, segundo a natureza
mais ou menos fugidia de sua composição, de seus en-
contros e de suas associações. Necessidade e liberdade
se confundem, pois para o anarquismo, e como em Spi-
noza, é dita livre a coisa que existe apenas pela neces-
sidade de sua natureza” e “obrigada, a coisa que é de-
terminada por uma outra a existir e a agir segundo uma
lei particular e determinada.”5
Em suma, é preciso ler e reler Proudhon à luz das
experiências das quais ele é ao mesmo tempo a expres-
são e o inspirador, mas também à luz de um pensamen-
to dito pós-moderno que ele esclarece e que o esclarece,
contribuindo assim a dar sentido e força a todos aqueles
que, seja à escala do mundo, seja à de sua vida mais
imediata, recusam o absurdo e os pesadelos previsíveis
deste século XXI que se inicia.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas
1
Pierre Birnbaum, Le Monde, de 18 de janeiro de 1987; Roger Pol-Droit, Le Monde
de 12 de setembro de 2003, etc.
2
Piere Ansart. Naissance de l’anarchisme. Paris, ed. PUF, 1970.
3
Sophie Chambost. Proudhon et la norme. Pensée juridique d´un anarchiste. Rennes, ed.
Presses universitaires de Rennes, 2004.
4
Vários autores. Lyon et l´esprit proudhonien. Lyon, Atelier de création libertaires,
2003.
5
Spinoza. Éthique, livro I, def. 7.

28
verve
A filiação de Proudhon

RESUMO

O artigo apresenta o pensamento de Proudhon como multiplicador


de práticas distintas e diversas entre si ao longo da história do
socialismo, da Comuna de Paris ao sindicalismo revolucionário,
do anti-romântico insurrecional ao apologista guerreiro. Pensamento
do múltiplo e da diferença evita os falsos dualismos indivíduo/
sociedade, natureza/cultura, bem/mal...

Palavras-chave: Proudhon, anarquismo, história.

ABSTRACT

The article presents Proudhon’s thought as multiplier of distinct


and diverse practices throughout the history of socialism, from
the Paris Commune to the revolutionary syndicalism, from the in-
surrectional anti-romantic to the apologist warrior. Thought of the
multiple and of the difference avoids false dualisms person/soci-
ety, nature/culture, good/evil…

Keywords: Proudhon, anarchism, history.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2005.

29
9
2006

as políticas do pós-anarquismo

saul newman*

Recentemente, as políticas radicais vêm enfrentan-


do novos e numerosos desafios, dentre eles, a reemer-
gência do Estado agressivo e autoritário, juntamente
com seus novos paradigmas de segurança e biopolítica.
A “guerra ao terror” serve como mais um disfarce para
legitimar a reafirmação coercitiva do princípio de sobe-
rania estatal, ultrapassando os limites tradicionais im-
postos pelas instituições legais ou pelas políticas demo-
cráticas. Além disso, há uma hegemonia dos projetos
neo-liberais da globalização capitalista, bem como o obs-
curantismo ideológico da chamada Terceira Via. O co-
lapso do sistema comunista há quase duas décadas pro-
vocou uma profunda desilusão, que resultou num vácuo
teórico e político da esquerda radical, que tem desenvol-
vido na Europa uma ineficiente oposição à ascensão da
extrema direita, assim como um insidioso e assustador
conservadorismo, cujas sombrias implicações ideológi-
cas estão apenas começando a se desdobrar.

* Saul Newman é pesquisador (pós-doutorado) e professor no Departamento


de Ciências Políticas da University of Western Australia.
verve, 9: 30-50, 2006

30
verve
Políticas do pós-anarquismo

O momento anarquista
Talvez devido ao desarranjo no qual a esquerda en-
contra-se atualmente, tem-se articulado uma renova-
ção do interesse no anarquismo como uma alternativa
radical possível ao marxismo. De fato, o anarquismo foi
sempre uma espécie de ‘terceira via’ entre liberalismo
e marxismo, e agora, com o desencanto geral diante do
liberalismo do livre mercado e com o socialismo centra-
lizador, o apelo, ou pelo menos o interesse, pelo anar-
quismo tende a crescer.
Esse revival do anarquismo é devido também à proe-
minência do vagamente definido movimento anti-glo-
balização, que contesta a dominação da globalização neo-
liberal em todas as suas manifestações — da ganância
corporativa à degradação ambiental e aos alimentos
geneticamente modificados. O movimento está alicer-
çado numa ampla agenda de protestos, que incorpora
uma multidão de diferentes assuntos e identidades po-
líticas. Porém, o que testemunhamos é uma nova for-
ma de política radical, que é fundamentalmente dife-
rente de ambas as políticas de identidade particulariza-
das que têm prevalecido nas sociedades liberais do
ocidente e no velho estilo de política marxista de lutas
de classe. De um lado, o movimento anti-globalização
unifica diferentes identidades numa luta comum; e ain-
da assim, esse campo comum não é determinado de
antemão ou baseado na priorização dos interesses par-
ticulares de classe. Ao contrário, ele se articula de for-
ma contingente no decorrer da própria luta. O que torna
esse movimento radical é a sua imprevisibilidade e in-
determinação — o modo pelo qual ligações e conexões
inesperadas são constituídas entre diferentes identida-
des e entre grupos que de outra maneira teriam pouco
em comum. Assim, enquanto este movimento é uni-
versal, no sentido de que ele evoca um horizonte eman-

31
9
2006

cipador comum que constitui a identidade dos partici-


pantes, ele rejeita a falsa universalidade das lutas mar-
xistas, que negam a diferença e subordinam outras lu-
tas ao papel central do proletariado — ou, para ser mais
preciso, ao papel de vanguarda do partido.
É a recusa das políticas hierárquicas e centralizado-
ras, essa abertura a uma pluralidade de diferentes iden-
tidades e lutas, que faz do movimento anti-globalização
um movimento anarquista. Ele não se torna anarquista
apenas porque grupos anarquistas são proeminentes no
movimento, mas principalmente porque, mesmo não
sendo conscientemente anarquista, incorpora formas
anárquicas de política em sua estrutura e organização1
— que é descentralizada, pluralista e democrática —
assim como a sua política inclusiva. Da mesma forma
que anarquistas clássicos como Bakunin e Kropotkin
insistiram, em oposição aos marxistas, que uma luta
revolucionária não poderia ser confinada ou determi-
nada pelos interesses de classe do proletariado indus-
trial, e que também deveria estar aberta aos campone-
ses, ao lumpen proletariado, aos intelectuais déclassé,
entre outros, o movimento contemporâneo inclui uma
ampla gama de lutas, identidades e interesses — sindi-
catos, estudantes, ambientalistas, grupos indígenas,
minoridades étnicas, pacifistas, entre outros.
Pós-marxistas como Ernesto Laclau e Chantal Mou-
ffe argumentam que o horizonte político radical já não é
mais dominado pelo proletariado e sua luta contra o ca-
pitalismo. Eles apontam para uma série de novos movi-
mentos sociais e identidades — negros, feministas,
minorias étnicas e sexuais — que não cabem mais na
categoria marxista de luta de classe: “O denominador
comum entre eles provém da sua diferenciação com a
luta dos trabalhadores, considerada como luta de ‘clas-
ses.’”2 Classe, portanto, não é mais a categoria central

32
verve
Políticas do pós-anarquismo

pela qual a subjetividade política radical é definida. Além


disso, as lutas políticas contemporâneas não são mais
determinadas pela luta contra o capitalismo, mas apon-
tam para novos espaços de dominação e destacam no-
vas arenas de antagonismo — racismo, privatização,
vigilância no trabalho, burocratização, entre outros.
Segundo Laclau e Mouffe, esses novos movimentos so-
ciais têm sido fundamentalmente lutas contra a domi-
nação, mais do que meramente exploração econômica,
como iria supor o paradigma marxista: “A sua novidade
se explicita no fato de que eles questionam as novas
formas de subordinação.”3 Isto significa que são lutas
anti-autoritárias — lutas que contestam a falta de reci-
procidade em relações particulares de poder. Nesse caso,
a exploração econômica seria vista como parte de uma
problemática mais ampla de dominação — que inclui-
ria também formas sexuais e culturais de subordina-
ção. Neste sentido, se poderia dizer que as lutas e os
antagonismos apontam para um momento anarquista na
política contemporânea.
De acordo com os pós-marxistas, as condições políti-
cas contemporâneas já não podem ser explicadas a par-
tir das categorias teóricas e paradigmas centrais para a
teoria marxista. O marxismo era conceitualmente li-
mitado pelo essencialismo de classe e determinismo
econômico, que teve o efeito de reduzir o político a um
espaço estritamente determinado pela economia capi-
talista e pela emergência dialética do que era visto como
o sujeito universal emancipador. Por assim dizer, o
marxismo foi incapaz de entender o político como um
campo completamente autônomo, específico e contin-
gente, considerando-o sempre como um efeito super-
estrutural das estruturas econômicas e de classe. As-
sim, a análise da política estava subordinada à análise
do capitalismo. Em decorrência disso, o marxismo sim-
plesmente não possui nenhuma bagagem teórica em

33
9
2006

lutas políticas que não se baseiem na noção de classe e


que não estejam focadas em questões econômicas. A fa-
lha catastrófica do projeto marxista — e seu ápice en-
contrado na massiva perpetuação e centralização do po-
der e autoridade estatais — mostrou que ele negligen-
ciou a importância e especificidade do âmbito político.
Em contrapartida, pós-marxistas contemporâneos afir-
mam a primazia do político, percebendo-o como um cam-
po autônomo — que, em vez de ser determinado por uma
dinâmica de classe e pelos trabalhos da economia capi-
talista, é radicalmente contingente e indeterminado.
É então surpreendente que a teoria pós-marxista não
tenha reconhecido a contribuição crucial do anarquis-
mo clássico em conceituar um campo político completa-
mente autônomo. Certamente, é a ênfase na primazia
e especificidade da política que caracteriza o anarquis-
mo e o distingue do marxismo. O anarquismo ofereceu
uma crítica socialista radical do marxismo, expondo sua
fragilidade teórica sobre a questão do poder do Estado.
Diferente do marxismo, que enxergava o poder político
como uma derivação da posição de classe, anarquistas
como Mikhail Bakunin insistiram que o Estado deveria
ser visto como o principal impedimento à revolução so-
cialista, e que ele é opressivo independente da sua for-
ma ou da classe que o controla: “Eles (marxistas) não
entendem que o despotismo não reside na forma do Es-
tado, mas no próprio princípio do Estado e do poder políti-
co.”4 Em outras palavras, a dominação existe na própria
estrutura e lógica do Estado — ele constitui um espaço
autônomo ou campo de poder que deve ser destruído como
o primeiro ato da revolução. Os anarquistas acredita-
vam que a negligência de Marx dessa questão teria con-
seqüências desastrosas para as políticas revolucionári-
as — uma previsão comprovada com exatidão pela revo-
lução bolchevista. Para os anarquistas, o poder político
centralizado não poderia ser facilmente superado e es-

34
verve
Políticas do pós-anarquismo

tava sempre em perigo de ser reafirmado se não fosse


especificamente combatido. Assim, a inovação teórica
do anarquismo reside em levar a análise do poder para
além do paradigma de reducionismo econômico do mar-
xismo, apontando também a outros espaços de autori-
dade e dominação que foram negligenciados pela teoria
marxista — por exemplo, a Igreja, a família, as estrutu-
ras patriarcais, a lei, a tecnologia, assim como a estru-
tura e hierarquia do próprio Partido Revolucionário mar-
xista.5 O anarquismo ofereceu novos instrumentos para
a análise do poder político e, assim, ampliou o espaço do
político como um campo específico da luta revolucioná-
ria e antagonismos, que não poderiam mais se subordi-
nar às preocupações puramente econômicas.
Especificadas as contribuições do anarquismo à polí-
tica radical e, particularmente, sua proximidade teóri-
ca aos projetos pós-marxistas atuais, houve um estra-
nho silêncio sobre essa tradição revolucionária por par-
te das teorias radicais contemporâneas. Entretanto, é
importante notar que assim como a teoria contemporâ-
nea deveria considerar a intervenção do anarquismo, o
próprio anarquismo poderia se beneficiar significativa-
mente se incorporasse perspectivas teóricas contem-
porâneas, particularmente àquelas derivadas da análi-
se do discurso, da psicanálise e do pós-estruturalismo.
Talvez nós poderíamos afirmar que o anarquismo hoje
se dá mais pela prática do que pela teoria, apesar, é
claro, das intervenções de diversos pensadores anarquis-
tas modernos influentes, como Noam Chomsky, John
Zerzan and Murray Bookchin.6 Já chamei a atenção para
a anarquia em ação que vemos nos novos movimentos
sociais que caracterizam o nosso campo político. No en-
tanto, as próprias condições que possibilitaram a emer-
gência do momento anarquista — a pluralização das lu-
tas, subjetividades e espaços de poder — são também as
condições que evidenciam as contradições centrais e

35
9
2006

limites da teoria anarquista, cujos alicerces ainda es-


tão no paradigma do Iluminismo humanista, com suas
noções essencialistas do ser humano racional e sua fé
positivista na ciência e na objetividade histórica das
leis. Assim como o marxismo estava politicamente li-
mitado por suas próprias categorias de classe e deter-
minismo econômico, bem como por sua visão dialética
do desenvolvimento histórico, pode-se dizer que o anar-
quismo também está limitado por suas amarras episte-
mológicas no discurso essencialista e racionalista do
Iluminismo humanista.

Novos paradigmas sociais: pós-estruturalismo e aná-


lise do discurso
O paradigma do Iluminismo humanista tem sido subs-
tituído pelo paradigma da pós- modernidade, que pode ser
visto como uma perspectiva crítica no discurso da moder-
nidade — uma “descrença em metanarrativas”, como afir-
mou Jean- François Lyotard.7 Em outras palavras, a con-
dição pós-moderna questiona precisamente a universali-
dade e o absolutismo dos alicerces racionais e morais
derivados do Iluminismo. Ela desmascara as próprias idéi-
as que não questionamos mais — nossa fé na ciência, por
exemplo — evidenciando sua natureza arbitrária e a ma-
neira com que foram construídas pela exclusão violenta
de outros discursos e perspectivas. O pós-modernismo tam-
bém questiona as idéias essencialistas sobre a subjetivi-
dade e a sociedade — a convicção de que há uma verdade
central e imutável na base de nossa identidade e de nossa
existência social, uma verdade que só pode ser revelada
uma vez que as mistificações irracionais da religião ou da
ideologia forem descartadas. Em vez disso, o pós-moder-
nismo enfatiza a natureza mutante e contingente da iden-
tidade — a multiplicidade de maneiras pelas quais ela pode
ser experimentada e entendida. Além disso, a história pode

36
verve
Políticas do pós-anarquismo

ser vista, sob a perspectiva pós-moderna, como uma série


de contingências e acidentes desordenados, sem origem
ou propósito, diferente da história entendida como desdo-
bramento da lógica racional e da verdade essencial, como
na dialética. Assim, o pós-modernismo enfatiza a instabi-
lidade e a pluralidade de identidades, a natureza constru-
ída da realidade social, a incomensurável diferença, a con-
tingência da história.
Há atualmente diversas estratégias teóricas críticas
que tratam das questões da pós-modernidade, e que eu
acredito ter implicações cruciais para as políticas radi-
cais hoje. Tais estratégias incluiriam o pós-estruturalis-
mo, a ‘análise do discurso’ e o pós-marxismo. Elas deri-
vam de uma variedade de diferentes campos em filosofia,
teoria política, estudos culturais, estética e psicanálise,
que ainda compartilham de uma maneira geral um en-
tendimento discursivo sobre a realidade social. Por assim
dizer, elas entendem as identidades sociais e políticas como
construídas por meio de relações de discurso e de poder,
que não têm significado inteligível fora deste contexto. Além
disso, tais perspectivas vão além de um entendimento
estrutural determinista do mundo, apontando para a in-
determinação da própria estrutura, assim como para as
suas múltiplas formas de articulação. Existem diversas
problematizações teóricas importantes que podem ser de-
senhadas aqui, que são não somente centrais para o campo
político contemporâneo, como também têm implicações
importantes para o próprio anarquismo.
A) A opacidade do social. O campo sócio-político é ca-
racterizado por múltiplas camadas de articulações, an-
tagonismos e dissimulação ideológica. Ao invés da exis-
tência de uma verdade social objetiva para além da
interpretação e da ideologia, há somente o antagonis-
mo das articulações conflituosas do social, que deri-
vam do princípio althusseriano (originalmente freudi-

37
9
2006

ano) de sobredeterminação — segundo o qual os signifi-


cados nunca são totalmente fixados, possibilitando a
emergência de uma pluralidade de interpretações sim-
bólicas. Slavoj Zizek elabora um interessante exemplo
desta operação discursiva por meio da análise de Claude
Lévi-Strauss sobre integrantes da tribo Winnebago e
suas diferentes percepções sobre a localização espaci-
al de suas construções. A tribo divide-se em dois gru-
pos — ‘aqueles que estão em cima e aqueles que estão
embaixo’. Pediram para um indivíduo de cada grupo
desenhar a planta de sua vila na areia ou num papel.
O resultado deste estudo apontava diferenças radicais
entre as representações de cada grupo. ‘Aqueles que
estão em cima’ desenharam a aldeia como um grupo
de círculos concêntricos dentro de círculos, com um
grupo de círculos no meio e círculos satélites arranja-
dos ao redor destes. Este esboço corresponderia à ima-
gem ‘conservadora-corporativa’ da sociedade sustentada
pela classe superior. Enquanto ‘aqueles que estão em-
baixo’ também desenharam a vila como um círculo,
porém explicitamente dividido por uma linha em duas
metades antagônicas — correspondendo, assim, à vi-
são ‘revolucionário-antagonista’ das classes inferiores.
Zizek comenta: “a divisão entre as duas percepções ‘re-
lativas’ implica uma referência oculta a uma constan-
te — não a objetiva e ‘real’ disposição das construções,
mas um núcleo traumático, um antagonismo funda-
mental que os habitantes da aldeia foram incapazes
de simbolizar, de considerar, de ‘internalizar’, de reali-
zar — um desequilíbrio nas relações sociais que impe-
diu a comunidade de se organizar de forma harmôni-
ca.”8
De acordo com este argumento, seria impossível sus-
tentar a noção anarquista de objetividade social ou to-
talidade. Há sempre um antagonismo no nível de repre-
sentação social que enfraquece a consistência simbóli-

38
verve
Políticas do pós-anarquismo

ca desta totalidade. As diferentes perspectivas e as in-


terpretações conflituosas do social não poderiam ser vis-
tas como meros resultados de uma distorção ideológica,
que impedem o sujeito de capturar a verdade da socie-
dade. Isto indica que as diferenças nas interpretações
sociais — este incomensurável campo de antagonismos
— é a própria verdade da sociedade. Em outras palavras,
a distorção aqui explicitada não está no nível da ideolo-
gia, mas no nível da própria realidade social.
B) A indeterminação do sujeito. Assim como a identi-
dade do social pode ser vista como indeterminada, a iden-
tidade do sujeito também pode. Isso deriva de uma série
de diferentes abordagens teóricas. Pós-estruturalistas
como Gilles Deleuze e Felix Guattari procuraram abor-
dar a subjetividade como um campo de imanência e devir
que permite a emergência de uma pluralidade de dife-
renças, não como uma identidade fixa e estável. A su-
posta unidade do sujeito é desestabilizada por meio das
conexões heterogêneas formadas com outras identida-
des sociais ou assemblages.9 Uma abordagem distinta
sobre a questão da subjetividade pode ser encontrada
na psicanálise lacaniana, na qual a identidade do su-
jeito é sempre deficiente ou incompleta devido à au-
sência do que Jacques Lacan chama de object petit a — o
objeto perdido do desejo. Esta ausência na identidade é
também registrada na ordem simbólica externa por meio
da qual o sujeito é entendido. O sujeito busca o reco-
nhecimento de si por meio da interação com a estrutu-
ra da língua; no entanto, esta estrutura é em si mesma
deficiente, já que existe um certo elemento — o Real —
que escapa à simbolização.10 Fica claro nestas duas abor-
dagens que o sujeito já não pode ser visto como uma
identidade completa, inteira e confinada a si mesma
fixada numa essência — ao contrário, sua identidade é
instável e contingente. Portanto, a política não pode mais
estar baseada inteiramente em reivindicações racio-

39
9
2006

nais de identidades estáveis, ou na afirmação revoluci-


onária de uma essência humana fundamental. Pelo con-
trário, as identidades políticas são indeterminadas e con-
tingentes — e podem dar vazão a uma pluralidade de
lutas diferentes e freqüentemente antagônicas sobre
como essa identidade deve ser definida. Tal abordagem
questiona claramente o entendimento anarquista da
subjetividade, como baseada numa essência humana
universal com características morais e racionais.11
C) A cumplicidade do sujeito no poder. O status do su-
jeito é ainda problematizado pelo seu envolvimento em
relações de poder e discurso. Este problema foi extensa-
mente explorado por Michel Foucault, que revelou uma
miríade de possibilidades pelas quais a subjetividade é
construída por meio de regimes discursivos e práticas
de poder-saber. De fato, a forma pela qual nos enxerga-
mos como sujeitos auto-reflexivos, com características
e capacidades particulares, está ligada à nossa cumpli-
cidade com as relações e práticas de poder que freqüen-
temente nos dominam. Isto questiona a noção do sujei-
to humano autônomo e racional e o seu status em uma
política radical de emancipação. Segundo Foucault, “o
homem que nos é descrito, o qual somos convidados a
libertar, já é em si mesmo o efeito de uma sujeição
muito mais profunda que ele mesmo.”12 Isto traz diver-
sas implicações ao anarquismo. Em primeiro lugar, em
vez de haver um sujeito cuja essência humana natural
é reprimida pelo poder — como acreditavam os anar-
quistas — essa forma de subjetividade é na realidade
um efeito do poder. Assim, essa subjetividade foi produ-
zida de tal forma que ela se vê possuindo uma essência
reprimida — de tal forma que a sua liberação é simultâ-
nea à continuidade da sua dominação. Em segundo lu-
gar, a figura discursiva do sujeito humano universal,
central ao anarquismo, é em si mesma um mecanismo
de dominação, focada na normalização do indivíduo e na

40
verve
Políticas do pós-anarquismo

exclusão das formas de subjetividade que não se encai-


xam nela. Esta dominação foi desmascarada por Max
Stirner, que demonstrou que a figura humanista do
homem era na realidade uma imagem invertida de
Deus, e desempenhava a mesma operação ideológica
de oprimir o indivíduo e negar a diferença.
D) A visão genealógica da história. A visão da história
como desdobramento de uma lei fundamental é aqui
rejeitada, em favor de uma perspectiva que enfatiza as
rupturas, as interrupções e descontinuidades. A histó-
ria é vista como uma série de antagonismos e multipli-
cidades, em vez da articulação de uma lógica universal,
como encontramos na dialética hegeliana, por exem-
plo. Segundo Foucault, não há ‘segredos essenciais ou
atemporais’ para a história, mas meramente “perigo-
sos jogos de dominação”13. Foucault entendia a genealo-
gia nietzscheana como um projeto de desmascaramen-
to dos conflitos e dos antagonismos, a “guerra silencia-
da” que é travada por trás do véu da história. O papel do
genealogista é, portanto, “despertar, por debaixo da for-
ma de instituições e legislações, o passado esquecido
das lutas reais, das vitórias e derrotas encobertas, do
sangue que secou nos códigos da lei.”14 As instituições,
práticas e leis que contemporizamos ou percebemos
como naturais ou inevitáveis, condensam violentas lu-
tas e antagonismos que foram reprimidos. Segundo Ja-
cques Derrida, a autoridade da lei é baseada em um
gesto fundador da violência que tem sido negada. A lei
deve ser fundada sobre algo que antecede sua existên-
cia e, portanto, sua fundação é por definição ilegal. O
segredo da existência da lei deve, conseqüentemente,
ser algum tipo de ilegalidade rejeitada, um crime ou ato
de violência original que concebe o corpo da lei e que se
encontra agora escondido nas suas estruturas simbóli-
cas.15 Em outras palavras, as instituições e identidades
políticas devem ser entendidas como procedências polí-

41
9
2006

ticas — por assim dizer, antagônicas — e não de origens


naturais. Tais origens políticas têm sido reprimidas no
sentido psicanalítico — isto é, foram “re-alocadas” e não
completamente eliminadas, e podem ser reativadas se o
significado destas instituições e discursos for contesta-
do.16 Ao mesmo tempo em que o anarquismo comparti-
lharia deste compromisso desconstrutivo com a autori-
dade política — ele rejeitava a teoria do contrato social
do Estado, por exemplo — ele ainda se submete a uma
visão dialética da história. O desenvolvimento social e
político é visto como sendo determinado pelo desdobra-
mento de uma essência social racional e de leis histó-
ricas e naturais imutáveis. O problema é que se essas
leis imutáveis determinam as condições da luta revo-
lucionária, sobra pouco espaço para entender o político
como indeterminado e contingente. Além disso, a críti-
ca genealógica também poderia se estender às institui-
ções ‘naturais’ e às relações que os anarquistas perce-
bem como opostas à ordem do poder político. Isto ocorre
porque a genealogia enxerga a história como um cho-
que de representações e um antagonismo de forças, nas
quais relações de poder são inevitáveis. Assim, qualquer
identidade, estrutura ou instituição são desestabiliza-
das — mesmo aquelas que possam existir em uma soci-
edade anarquista pós-revolucionária.
Estas quatro problemáticas, centrais às análises pós-
estruturalista e de discurso, têm implicações fundamen-
tais para a teoria anarquista: se o anarquismo preten-
de ser teoricamente efetivo na atualidade, se almeja se
comprometer inteiramente com as lutas e identidades
políticas contemporâneas deverá abdicar das estrutu-
ras do Iluminismo humanista no qual está articulado
— com seus discursos essencialistas, suas percepções
positivistas das relações sociais e visão dialética da his-
tória. Deverá, ao contrário, afirmar inteiramente a con-
tingência da história, a indeterminação da identidade

42
verve
Políticas do pós-anarquismo

e a natureza antagonista das relações sociais e políti-


cas. Em outras palavras, o anarquismo deverá seguir
seu discernimento sobre a autonomia da dimensão po-
lítica e suas implicações lógicas — e perceber o político
como um campo aberto de indeterminação, antagonis-
mo e contingência, sem as garantias da reconciliação
dialética e da harmonia social.

A problemática do pós-anarquismo
O pós-anarquismo pode ser visto como a tentativa de
revisar a teoria anarquista desprendida das abordagens
essencialistas e dialéticas, por meio da elaboração e
aplicação de pensamentos provenientes do pós-estrutu-
ralismo e da análise do discurso. Este exercício serve
para destacar o que há de inovador e importante no anar-
quismo — precisamente a teorização da autonomia e a
especificidade do domínio político, assim como a crítica
desconstrutiva da autoridade política. São estes aspec-
tos cruciais da teoria anarquista que devem ser evi-
denciados, e cujas implicações devem ser exploradas.
Eles devem ser desprendidos das condições espistemo-
lógicas que os criaram, mas que atualmente o restrin-
gem. O pós-anarquismo atua por meio de uma operação
de resgate no anarquismo clássico, extraindo seus prin-
cípios centrais sobre a autonomia política e explora as
suas implicações nas políticas radicais contemporâne-
as.
O ímpeto desta intervenção pós-anarquista surgiu do
meu entendimento de que a teoria anarquista era in
nuce pós-estruturalista, assim como o pós-estruturalis-
mo era in nuce anarquista. Assim, o anarquismo permi-
tiu, como eu havia argumentado, a teorização da auto-
nomia do político com seus múltiplos espaços de domi-
nação e poder, bem como em suas múltiplas identidades

43
9
2006

e espaços de resistências (Estado, Igreja, família, estru-


tura patriarcal etc.), que vão além da estrutura do redu-
cionismo econômico do marxismo. No entanto, tais ino-
vações teóricas estão limitadas pelas condições episte-
mológicas do tempo — as idéias essencialistas sobre a
subjetividade, as visões deterministas da história e o
discurso racional do Iluminismo.
O pós-estruturalismo é, pelo menos no que se refere à
sua orientação política, fundamentalmente anarquistas
— particularmente seu projeto desconstrutivo de desmas-
carar e desestabilizar a autoridade das instituições, con-
testando as práticas de poder que são dominantes e ex-
cludentes. O problema do pós-estruturalismo residia no
fato de que ele demandava um comprometimento com as
políticas anti-autoritárias e ao mesmo tempo não pos-
suía conteúdos ético-políticos explícitos, nem tampouco
elaborava uma explicação adequada da individualidade.
O problema central de Foucault, por exemplo, estava no
questionamento: se o sujeito é construído por meio de
discursos e relações de poder que o dominam, como exa-
tamente ele resiste à dominação? Portanto, a premissa
da aproximação do anarquismo com o pós-estruturalis-
mo, está na maneira como cada um deles evidencia e
lida com os problemas teóricos do outro. A intervenção
do pós-estruturalismo na teoria anarquista, por exem-
plo, evidenciou uma lacuna teórica — o anarquismo não
reconhecia as relações de poder ocultas e os autorita-
rismos potenciais, presentes nas identidades essenci-
alistas, e estruturas discursivas e epistemológicas, que
compunham as bases de sua crítica à autoridade. E a
intervenção anarquista na teoria pós-estruturalista, de
outro lado, expôs suas abordagens éticas e políticas su-
perficiais e, particularmente, suas ambigüidades em
explicar as agências e resistências no contexto das in-
desejadas relações de poder.

44
verve
Políticas do pós-anarquismo

Esses problemas teóricos estão situados em torno da


questão do poder, do lugar e do fora. Foi evidenciado que
enquanto o anarquismo clássico era capaz de teorizar,
no sujeito revolucionário essencial, uma identidade ou
lugar de resistência fora da ordem do poder, este sujeito
encontrava-se, nas análises subseqüentes, emaranha-
do nas próprias relações de poder que contestava. Ao
mesmo tempo, o pós-estruturalismo, enquanto expunha
precisamente tal cumplicidade entre sujeito e poder era
deixado sem um ponto teórico de partida — um fora —
pelo qual poderia criticar o poder. Deste modo a perplexi-
dade teórica que eu procurei abordar em From Bakunin
to Lacan, referia-se ao fato de que precisamos entender
que não há uma saída essencialista ao poder — nenhum
campo sólido ontológico ou epistemológico que vá além
da ordem do poder. As políticas radicais precisam, no
entanto, de uma dimensão teórica exterior ao poder e de
uma noção de agenciamento radical que não seja total-
mente determinada pelo poder. Ao explorar a emergên-
cia dessa contradição, eu descobri duas ‘interrupções epis-
temológicas’ centrais no pensamento político radical. A
primeira foi encontrada na crítica ao Iluminismo huma-
nista elaborada por Stirner, que compuseram as bases
teóricas para as intervenções pós-estruturalistas, arti-
culadas dentro da própria tradição anarquista. A segun-
da emergiu da teoria lacaniana, cujas implicações foram
além dos limites conceituais do pós-estruturalismo,17 que
apontou para as deficiências presentes nas estruturas
de poder e linguagem, e para a possibilidade de uma no-
ção de agenciamento radicalmente indeterminada, evi-
denciada por meio desta lacuna.
Assim, o pós-anarquismo não é tanto um programa
político coerente, mas uma problematização anti-auto-
ritária que emerge genealogicamente — ou seja, por
meio de uma série de conflitos teóricos ou contradições
— a partir de uma abordagem pós-estruturalista do

45
9
2006

anarquismo ou, na realidade, de uma abordagem anar-


quista do pós-estruturalismo. No entanto, o pós-anar-
quismo também implica uma ampla estratégia de ques-
tionamento e contestação das relações de poder e hie-
rarquia, e de revelação de espaços de dominação e
antagonismo previamente ocultos. Neste sentido, o pós-
anarquismo pode ser entendido como um projeto ético-
político inacabado de desconstrução da autoridade. Des-
te modo, o que o distingue do anarquismo clássico é
que ele é uma política não-essencialista. Isto significa
que o pós-anarquismo não depende mais de uma iden-
tidade essencial de resistência, e não está mais anco-
rado nas epistemologias do Iluminismo ou nas garan-
tias ontológicas do discurso humanista. Ao contrário,
sua ontologia é constitutivamente aberta a outra, e
assume um horizonte radical vazio e indeterminado,
que pode incluir um pluralidade de diferentes lutas
políticas e identidades. Em outras palavras, o pós-anar-
quismo é um anti-autoritarismo que resiste ao poten-
cial totalizante de um discurso ou identidade fecha-
dos. Contudo, isto não significa que o pós-anarquismo
não tenha limites ou conteúdo ético, que podem ter
suas bases em princípios emancipadores tradicionais
de liberdade e igualdade — princípios cuja natureza
incondicional e irredutível foi afirmada pelos anarquis-
tas clássicos. No entanto, é importante ressaltar que
tais princípios não estão mais ancorados em uma iden-
tidade fechada, mas tornam-se ‘significantes vazios’18
que estão abertos a diversas articulações decididas de
forma contingente no decorrer da luta.

Novos desafios: biopolítica e o sujeito


Atualmente, um dos desafios centrais às políticas
radicais encontra-se na deformação do Estado-Nação —
uma deformação que exibe paradoxalmente sua verda-

46
verve
Políticas do pós-anarquismo

deira face. Segundo Giorgio Agamben, a lógica da sobe-


rania além da lei, e a lógica da biopolítica, se cruzaram
na forma do Estado moderno. Deste modo, a prerrogati-
va do Estado é regular, monitorar e policiar a saúde bio-
lógica de sua população. Conforme afirmou Agamben,
esta função produz um tipo particular de subjetividade
— a qual ele denomina homo saccer —, definido pela for-
ma de “vida nua”, ou à vida biológica despida de sua sig-
nificação política e simbólica, assim como pelo princí-
pio de assassinato legal ou assassinato com impunida-
de.19 Um exemplo paradigmático dessa condição seria a
subjetividade do refugiado e os campos de refugiados que
proliferam por toda parte. Dentro destes campos, uma
nova forma arbitrária de poder é exercida diretamente
sobre a vida nua do detento. Em outras palavras, o corpo
do refugiado, que foi despido de todos os seus direitos
legais e políticos, torna-se o alvo da aplicação da sobera-
nia do biopoder. No entanto, o refugiado é meramente
emblemático do status biopolítico ao qual estamos todos
sendo reduzidos progressivamente. Certamente, isto
aponta para um novo antagonismo que tem se revelado
central à política.20 Uma crítica pós-anarquista seria
precisamente direcionada a esta ligação entre poder e
biologia. Não é suficiente afirmar os direitos humanos
do sujeito contra as incursões do poder. É preciso exa-
minar de forma crítica a maneira pela qual certas sub-
jetividades humanas são construídas como condutores
do poder.
O vocabulário conceitual para analisar estas novas
formas de poder e subjetividade não estava disponível
ao anarquismo clássico. No entanto, mesmo nesse novo
paradigma de poder subjetivador, o compromisso ético e
político de questionamento da autoridade do anarquis-
mo clássico, assim como sua análise sobre a soberania
do Estado — que foram além das explicações de classe
— são ainda hoje relevantes. O pós-anarquismo é ino-

47
9
2006

vador precisamente porque combina o que é crucial na


teoria anarquista com uma crítica pós-estruturalista/
analítico-discursiva do essencialismo. O resultado é um
projeto político aberto e anti-autoritário para o futuro.

Tradução do inglês por André Degenszajn e Olivia


Goulart.

Notas
1.
Ver a discussão elaborada por David Graeber a respeito de algumas destas
estruturas anarquistas e formas de organização em “The New Anarchists”.
New Left Review 13 (Jan/Feb 2002): 61-73.
2.
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Hegemony and socialist strategy: towards a
radical democratic politics. London, Verso, 2001. p. 159.
3.
Idem, p. 160.
Mikhail Bakunin. Political philosophy: scientific anarchism (Organizado por G. P.
4.

Maximoff). London, Free Press of Glencoe. p. 221.


Ver Murray Bookchin. Remaking society Montreal, Black Rose Books, 1989. p.
5.

188.
6.
As duas últimas permanecem resistentes ao pós-estruturalismo e pós-moder-
nismo. Ver, por exemplo, John Zerzan. “The catastrophe of postmodernism”.
In Anarchy: A Journal of Desire Armed, Fall 1991, pp. 16-25.
7.
Ver Jean-Francois Lyotard. The postmodern condition: a report on knowledge. Tra-
dução de Geoff Bennington e Brian Massumi. Manchester, Manchester Uni-
versity Press, 1984.
8.
Ver Judith Butler, Ernesto Laclau e Slavoj Zizek. Contingency, hegemony, univer-
sality: contemporary dialogues on the left. London, Verso, pp. 112-113.
9.
Ver Gilles Deleuze e Felix Guattari. Anti-oedipus: capitalism and schizophrenia.
Tradução de R. Hurley. New York, Viking Press, 1972. p. 58.
10.
Para uma discussão aprofundada das implicações políticas da abordagem
lacaniana sobre a identidade, ver Yannis Stavrakakis. Lacan and the political.
London, Routledge, 1999. pp 40-70.
11.
Piotr Kropotkin, por exemplo, acreditava no instinto natural de sociabilida-
de no homem, que constituía as bases para relações éticas, enquanto Bakunin
argumentava que a moralidade e a racionalidade do sujeito emergia do seu

48
verve
Políticas do pós-anarquismo

desenvolvimento natural. Ver, respectivamente, Peter Kropotkin. Ethics: origin


and development. Tradução de L.S Friedland. New York, Tudor, 1947; e Baku-
nin. Political philosophy, op cit., pp. 152-157.
Michel Foucault. Discipline and punish: the birth of the prison. Tradução de A.
12.

Sheridan. Penguin, London, 1991. p. 30.


13.
Michel Foucault. “Nietzsche, genealogy, history” in (Paul Rabinow org.) The
Foucault reader. New York, Pantheon, 1984. 76-100. p. 83.
Michel Foucault. “War in the filigree of peace: course summary” Tradução
14.

de I. Mcleod in Oxford Literary Review 4, no. 2 (1976): 15-19. pp. 17-18.


Ver Jacques Derrida. “Force of law: the mystical foundation of authority” in
15.

(Drucilla Cornell et al orgs.) Deconstruction and the possibility of justice. New


York, Routledge, 1992, pp. 3-67.
Ver Jacob Torfing. New theories of discourse: Laclau, Mouffe and Zizek. Oxford,
16.

Blackwell, 1999.
17.
A questão de que Lacan possa ser visto como um ‘pós-estruturalista’ levanta
um ponto central de discussão entre pensadores como Laclau e Zizek, já que
ambos são fortemente influenciados pela teoria lacaniana. Ver Butler et al, op.
cit.
18.
Esta noção de ‘significante vazio’ é central na teoria lacaniana da articulação
hegemônica. Ver Judith Butler et al, op. cit.. Ver Ernesto Laclau. “Why do
empty signifiers matter to politics?” in (Jeffrey Weeks org.) The lesser evil and the
greater good: the theory and politics of social diversity. Concord, Rivers Oram Press,
1994. pp. 167-178.
Ver Giorgio Agamben. Homo sacer: sovereign power and bare life. Tradução de
19.

Daniel Heller-Roazen. Stanford, Stanford University Press, 1995.


20.
Segundo Agamben: “A inovação das políticas assurgentes é que esta não será
mais uma luta pela conquista ou do controle do Estado, mas uma disputa entre
Estado e não-Estado (humanidade)... ”Giorgio Agamben. The coming communi-
ty, Tradução de Michael Hardt. Minneapolis, University of Minnesota Press,
1993. p. 84.

49
9
2006

RESUMO

O anarquismo é apresentado como pensamento radical que, na


atualidade, potencializa e permeia o movimento anti-globalização.
Entretanto, é justamente nesta atualidade que o anarquismo en-
contra as limitações que o acompanham desde o século XIX. Im-
porta, então, problematizar o anarquismo, aproximando-o e con-
frontando-o ao pós-estruturalismo e aos limites do iluminismo.

Palavras-chave: anarquismo, pós-estruturalismo, pós-anarquismo

ABSTRACT

Anarchism is presented as a radical thought that currently poten-


tializes and permeates the anti-globalization movement. However,
it is exactly in this actuality that anarchism finds the limitations
that are following it since the 19th Century. Then, it is critical to
problematize the actuality of anarchism, bringing it closer to and
confronting it to poststructuralism and to the limits of Enlighten-
ment.

Keywords: anarchism, poststructuralism, postanarchism.

Indicado para publicação em 8 de março de 2004.

50
verve
Paixão russa de destruir

a paixão russa de destruir

georges nivat*

“O anarquismo é principalmente uma criação dos


russos”. Assim começa, em l´Idée russe,1 a reflexão de
Nicolas Berdiaeff sobre o que ele chama de paixão russa
de destruir. Uma paixão teorizada e colocada em prática
no século XIX pela classe superior russa, ou seja, a no-
breza. Bakunin, o príncipe Kropoktin, ou ainda o conde
Leon Tolstoi criaram todo um corpus de textos que é um
catecismo do anarquismo, e que se transformou em uma
verdadeira poética da anarquia.
É claro que, antes deles, os anarquistas e suas idéias
não eram estranhas ao povo russo, e tinham gerado toda
uma lenda popular em contraponto à história oficial do
Império. Podemos mesmo dizer que a crônica lendária
das revoltas, dos salteadores, e das inúmeras jacqueries,2
formavam uma espécie de contra-história da Rússia. Aos

*
Professor emérito na Universidade de Genebra, publicou Vers la fin du mythe
russe e Russie-Europe, la fin du schisme. Lausane, Ed. L´Âge d´Homme, 1988;
Impressions de Russie, l´an I, e Regards sur la Russie de l´an VI. Paris, Ed. De
Fallois, 1993.
verve, 9: 51-59, 2006

51
9
2006

salteadores precipitando-se em hordas a partir do Les-


te, juntavam-se os cismáticos de todo tipo que fugiam
da Rússia central, entre os quais o proto-papa Avvakoum.
Ditada a seus discípulos do fundo de sua prisão de gelo
de Poustozersk, sua notável Vida, traduzida magnifica-
mente para o francês por Pierre Pascal, mostra muitos
aspectos de um anarquista em nome de Deus.
Bakunin foi um senhor russo da têmpera de
Avvakoum. Para ele, os vilarejos russos, com sua tra-
dição de comunismo primitivo, ou seja, o comunismo
da comunidade do mir,3 deviam incendiar toda a Eu-
ropa burguesa, passando pelos camponeses do Jura
suíço ou da Calábria italiana. Aos olhos de Bakunin,
Marx era apenas um pan-germanista hegeliano. O
estágio último da humanidade chama-se revolta. Em
1842, Bakunin termina seu ensaio sobre a Reação na
Alemanha,4 e lança sua divisa da “paixão pela destrui-
ção”, uma paixão que, para ele, é “o único caminho
em direção ao verdadeiro cristianismo.” Aliás, aquele
hegeliano, que vê na contradição um “conceito total,
absoluto, verdadeiro”, também faz apelo ao Apocalip-
se, que condena severamente os Mornos. “Confiemos
no eterno espírito que destrói e que aniquila, simples-
mente porque ele é a fonte insondável e eternamente
criadora de toda vida.” Pois a paixão da destruição é
também uma paixão criativa. Em seu livro Deus e o
Estado, Bakunin ataca a religião estabelecida, assim
como a ciência e os positivistas. “Se Deus existisse,
seria preciso aboli-lo”, ele declara, invertendo ironi-
camente a fórmula de Voltaire. Quando um chefe de
Estado fala de Deus, monarquista ou republicano, “po-
dem ter certeza que está pronto para tosar um pouco
mais seu povo rebanho.”
Alexandre Herzen deixou-nos um belo retrato de
Bakunin, em um capítulo de suas memórias, Passado

52
verve
Paixão russa de destruir

e meditações,5 mas ele não se refere, por uma razão evi-


dente, a um episódio muito estranho da vida de Baku-
nin: o da Confissão. Bakunin havia inquietado muito par-
ticularmente o poder czarista ao dominar o famoso Con-
gresso eslavo de Praga, convocado em 1848, para anunciar
a liberação dos povos eslavos do jugo dos déspotas. Vinda
a reação, ele foi entregue às autoridades czaristas pelo
governo suíço da época. Passou três meses preso em for-
talezas, primeiro em Pedro-e-Paulo em São Petersburgo,
depois na antiga fortaleza sueca de Shlusselbung. Foi lá
que ele redigiu, de sua própria iniciativa, a propósito de
seu carcereiro-chefe, o Imperador Nicolau I, uma sur-
preendente Confissão, que só foi publicada em 1923, na
Rússia soviética, satisfeita em golpear o prestígio dos
anarquistas com essa publicação. Nesse documento, ele
professa a propósito do czar, “carrasco dos povos”, um ódio
comum pelo Ocidente burguês, e o imperador deve ter
lido com prazer (anotado de seu próprio punho): “Penso
que, mais na Rússia que em outros lugares, é preciso
haver um poder ditatorial forte, preocupado unicamente
em educar e esclarecer as massas.” Mais tarde, tendo
escapado da Sibéria, Bakunin instala-se na Suíça, em
Genebra, onde exerceu uma forte influência sobre os
anarquistas suíços, principalmente do Jura. Ele também
se rendeu ao encanto ambíguo de um jovem cínico vindo
da Rússia, que chegou a Genebra em 1869, Nietcháiev, o
famoso autor do Catecismo revolucionário,6 que prega uma
organização fechada da conjuração revolucionária e uma
abjuração total de qualquer consideração moral na esco-
lha dos meios. Foi transposta a passagem teórica da anar-
quia à ditadura absoluta. O crime também compareceu
para selar a equipe dos conjurados: o assassinato do es-
tudante Ivanov em Moscou, que se tornou, nos Demônios
de Dostoievski, o assassinato de Chatov pelo grupo de
Piotr Verkhovenski.

53
9
2006

A luta ou a fuga
Assim, o Catecismo revolucionário enunciava no pará-
grafo sexto: “Duro para consigo mesmo, o revolucioná-
rio também deve ser duro com os outros. Todos os senti-
mentos de ternura que tornam o homem efeminado,
como os laços de parentesco, a amizade, o amor, a grati-
dão, e mesmo a honra, devem ser sufocados pela paixão
única e fria pela causa revolucionária.” Foi só a contra-
gosto que Bakunin abriu os olhos para os aspectos in-
quietantes e mesmo pérfidos de Nietcháiev. Sua longa
carta de ruptura enviada de Locarno em dois de junho
de 1870 (e publicada pelo historiador Michael Confino) é
notável pelo sentimento de constrangimento e de pusi-
lanimidade do autor da carta, um nobre russo libertá-
rio, ainda embaraçado em suas noções de honra, mas
fascinado por um louco saído do povo. Nessa longa decla-
ração de amor frustrado, Bakunin afirma: “Se fosse pre-
ciso escolher entre a bandidagem e o roubo daqueles
que ocupam o trono, e o roubo e a bandidagem do povo,
sem hesitar eu me colocaria ao lado desse último.” A
ditadura será coletiva e invisível. “Pequenos grupos não
desejando nada para si”, conduzirão o oceano popular
desenfreado para “a organização da mais completa li-
berdade popular”.
O príncipe Kropotkin, outro grande anarquista, conta,
em suas Notas de um revlucionário, que o irmão do czar
Alexandre II veio visitá-lo na sua cela da fortaleza Pedro-
e-Paulo. Dirigia-se a ele chamando-o de “príncipe”, e ti-
nha dificuldade de entender o engajamento de Kropok-
tin. O príncipe conheceu muitas outras prisões, entre as
quais a de Lyon em 1882, após a explosão do café Belle-
cour. Tanto na França como em outros lugares, ele se
via rodeado de um enxame de agentes da polícia secreta
czarista, a Okhrana. Kropotkin conheceu todos os dra-
mas do anarquismo russo: a “degoevtchina”, do nome de

54
verve
Paixão russa de destruir

um anarquista recrutado pela Okhrana e que foi obri-


gado por seus camaradas a assassinar, em 1883, um
chefe da polícia; o “azeftchina”, do nome de Azef, sem
dúvida um agente da Ohkrana, mas que, para se fazer
confiar por seus camaradas, tinha assassinado o mi-
nistro do interior Plehvé; e finalmente a “bogrovtchina”,
do nome de um revolucionário, colaborador da Okhrana
que, em 1911, no Grande Teatro de Kiev, na presença
do Imperador Nicolau II, assassinou a queima-roupa o
Primeiro ministro Stolypine, numa decisão individual
(Soljenitsin transforma-o em episódio central de seu
romance histórico Agosto 14). Os estragos do “entrismo”
dos terroristas do partido socialista revolucionário na
polícia secreta (e vice-versa) foram enormes. Consulta-
do freqüentemente nesses episódios de duplas lealda-
des ambíguas, o velho príncipe acreditava que os fins
não justificavam todos os meios, e condenava esse “en-
trismo” fatal. Mas ele foi derrotado pela lógica perversa
dos dois inimigos. Andrei Biély consagrou seu grande
romance Petersburgo a uma descrição poética e policial
dessa extraordinária confusão do terror e da repressão
secreta, ao longo episódio da Provocação que marca a
época anarquista da Rússia. Como em seu romance,
uma bomba tiquetaqueava no ventre do país, que pren-
dia a respiração...
O debate sobre a utilização ou não da violência na
instauração de uma anarquia a serviço da felicidade de
todos assumiu na Rússia um relevo particular. Aos ter-
roristas da Vontade do povo que abateram o czar liberta-
dor Alexandre II, no dia em que ele tinha sobre sua es-
crivaninha o projeto de uma Constituição de seu mi-
nistro Loris-Melikov, depois aos combatentes do Partido
dos socialistas revolucionários que exterminaram os
dignatários (como se vê no relato patético de Leonid
Andreev, O Governante), opôs-se o conde Tolstoi, que pre-
gava uma outra anarquia. Tolstoi abominava da mes-

55
9
2006

ma forma o regime czarista, e não era menos odiado


por ele, mas ele era o apóstolo da não-violência, que
retirava do ensinamento do Evangelho. Em seu roman-
ce Ressurreição (1899), Tolstoi retratou revolucionári-
os na prisão. São eles que educam Katioucha, a prosti-
tuta vítima de um sedutor, e falsamente acusada de
um crime. O estudo dos rascunhos de Ressurreição
mostra quanto, na primeira redação, Tolstoi era mais
severo com os revolucionários. Ele vê na sua ação o
resultado de pulsões sexuais insatisfeitas... Na versão
final, atenua um pouco essa tese, mas ainda perma-
nece uma forte condenação do recurso à violência re-
volucionária. O príncipe Nekhlioudov, o sedutor de Ka-
tioucha, encontra, atravessando o rio Ienisseï, um
adepto da seita dos “begoun” ou seita dos fugitivos. Re-
cusa do imposto, recusa do sorteio para o recrutamen-
to militar, e mesmo recusa do estado civil, o begoun
recusa-se a dizer seu nome. Sente-se que Tolstoi ad-
mira profundamente o modo de vida desses fugitivos e
enxerga aí uma solução plausível para a violência, so-
lução que ele irá adotar in extremis, fugindo de sua casa
para ir morrer numa pequena estação anônima, em
Astapovo.

Os negros e os vermelhos
O anarquismo foi um componente da revolução rus-
sa que a historiografia soviética naturalmente mini-
mizou, e mesmo mascarou. No Journal de Russie de
Pierre Pascal,7 que fundou em Moscou o grupo bolche-
vista francês, vê-se que os anarquistas estão muito
presentes. Ele mesmo tinha dois amigos anarquistas
italianos que vieram para Moscou, e juntos eles fun-
daram uma espécie de comuna, numa vila requisita-
da de Ialta. Ali discutiam à exaustão para decidir se
tinham o direito de ter um caseiro para o inverno, ou

56
verve
Paixão russa de destruir

seja, se era certo recorrer a um trabalho alugado, ou


em outras palavras, à exploração do homem pelo ho-
mem... A bandeira negra dos anarquistas flutuou uma
última vez nas ruas de Moscou no funeral de Kropotkin,
em 1921.
Nestor Makhno, por sua vez, morreu em Paris. Brutal,
incendiário, ele reuniu em 1917, na Ucrânia submetida
aos alemães pelo tratado de Brest-Litovsk, um exército
de quase quarenta e cinco mil homens sob a bandeira
negra. Suas façanhas guerreiras impressionaram Lênin.
Kiev, às voltas com a guerra civil, mudava de mãos a
cada mês. A anarquia varria vitoriosamente as ricas ter-
ras do tchernoziom. Makhno recusava a lei, o regulamen-
to, a justiça. Cabia ao povo aplicar soberanamente a jus-
tiça, fora de qualquer lei escrita. Makhno foi pouco a pou-
co sendo vencido pelo Exército Vermelho, Kiev foi libertada
de seu ataman8 nacionalista Petlioura. No romance A Tor-
rente de ferro, Serafimovitch mostra como a massa anar-
quista dos partisans conseguiu pouco a pouco se auto-
disciplinar e, em suma, se bolchevizar. A literatura sovi-
ética passa assim, pouco a pouco, ao elogio da vida
elementar, à celebração da vontade dos homens em ves-
tes de couro e de punho inflexível: os comissários.
Duas semanas após os funerais de Kropotkin em
Moscou, Kronstadt e seus marinheiros vermelhos se
sublevavam contra a ditadura dos bolchevistas, e os ma-
rinheiros socialistas e anarquistas lançavam seu fa-
moso SOS para o mundo inteiro. Trotski veio retomar
a ilha revoltada graças à cavalaria vermelha. A ditadu-
ra do proletariado estrangulava a velha liberdade anar-
quista russa, nascida nos caminhos do bandido Stenka
Razine, o velho sonho da justiça popular e direta.9
“Abre-te, abismo sangrento,
E na plenitude do ser,

57
9
2006

Diante do povo, o mundo e as estrelas


Que brilhe a tua justiça!”
Maximilien Volochine, 5 de janeiro de 1923.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas
1
Nicolas Berdiaeff. L´idée russe. Problèmes essentiels de la pensée russe au XIXe. et
début du XXe. siècle. Tradução e notas de H. Arjakowsky. Paris, Ed. Marne,
1969.
2
Diz-se das insurreições dos camponeses contra a nobreza.
3
O mir é a comuna camponesa.
4
O livro foi publicado sob o pseudônimo de Jules Elysard.
5
Alexandre Herzen. Passe et méditations. Tradução e apresentação de Daria
Olivier. Lausanne, Ed. L´Âge d´Homme, 1974.
6
Os principais documentos que permitem avaliar a amplidão do domínio que
Nietcháiev exerceu sobre Bakunin foram publicados pelo historiador Michael
Confino em Cahiers du monde russe et soviétique. Paris, Ed. Mouton, La Haye,
1966-1967.
7
Pierre Pascal. “Mon Journal de Russie, 1918-1921”, in Communisme. Lausan-
ne, Ed. L´Âge d´Homme, 1977.
8
Diz-se do chefe eleito dos clãs cossacos, na época de sua independência.
9
Cf. Ante Ciliga. L´Insurrection de Cronstadt et la destinée de la révolution russe.
Paris, Ed. Allia, 1998. Esse curto texto, escrito por um comunista desencanta-
do, foi inicialmente publicado na revista de Boris Souvarine, Le Contrat social.

58
verve
Paixão russa de destruir

RESUMO

Uma genealogia do anarquismo russo, enfatizando os percursos


de Bakunin, Kropotkin, Tolstoi e Makhno, frente à Rússia do sé-
culo XIX e começo do XX e no interior do próprio anarquismo.
Delineiam-se a idéia de revolução, ou a paixão por destruir, assim
como o anarquismo pacifista, como respostas contundentes, e não
conciliadoras, diante da ordem estabelecida.

Palavras-chave: Anarquismo, Rússia, revolução, terrorismo.

ABSTRACT

Genealogy of Russian anarchism, privileging Bakunin, Kropotkin,


Tolstoi and Makhno’s journeys in the Russian context of the 19th
Century and beginning of the 20th and inside anarchism itself. It
delineates the idea of revolution, or the passion for destruction,
as well as the pacifist anarchism, as firm, and not conciliating,
answers for the established order.

Keywords: Anarchism, Russia, revolution, terrorism.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2005.

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9
2006

europa: a guerra inacabada

nildo avelino*

“Eis uma nação, há um tempo reputada uma das mais


belicosas, hoje a mais industriosa, a mais potente em capi-
tais, que reclama o desarmamento geral e se pronuncia em
toda ocasião contra a guerra. Mas que outra coisa faz, tro-
cando armadura, se não atrair os seus rivais para um novo
combate, no qual se crê segura da vitória?”
Proudhon

Uma disposição parece comum aos grupos humanos:


o etnocentrismo ou a atitude que consiste na negação
das diferenças a partir de um ponto mais ou menos dis-
tante em que se encontram separadas duas culturas.
Exemplo bem conhecido de uma prática etnocêntrica foi
a notória atitude com que a antiguidade chamou de bár-
baro o que não se conformava aos costumes greco-ro-
manos, e também o modo como a modernidade conside-

* Mestre em Ciências Sociais, pesquisador no Núcleo de Sociabilidade Libertá-


ria, Nu-Sol, e integrante do Centro de Cultura Social de São Paulo. Autor de
Anarquistas: ética e antologia de existência. Rio de Janeiro, Achiamé Editor, 2004.
verve, 9: 60-81, 2006

60
verve
Europa: a guerra inacabada

rou selvagem o modo de vida que não se enquadrava


nos seus valores.
Trata-se de um olhar que lança sobre o outro uma
reprovação daquilo que ele afirma ser, ao mesmo tem-
po em que afirma uma qualidade distintiva. Lévi-
Strauss mostrou o quanto é precária e limitada a no-
ção de humanidade como qualquer coisa que pretende
englobar uma espécie ou gênero, já que a experiência
etnocêntrica explicita que a humanidade cessa sem-
pre nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico ou mes-
mo da aldeia. O “Universal” espécie é impotente con-
tra o particular etnocêntrico, ele se dissolve frente ao
gesto de um grupo qualquer, ao erguer-se e se autopro-
clamar o portador, mais ou menos legítimo, de uma
certa superioridade cultural. “Nas grandes Antilhas,
alguns anos após a descoberta da América, enquanto
os espanhóis enviavam comissões de investigação para
pesquisar se os indígenas tinham ou não uma alma,
estes últimos dedicavam-se a imergir brancos prisio-
neiros, a fim de verificar, após uma vigília prolongada,
se seu cadáver estava ou não sujeito à putrefação.”1
De modo equivalente, a Ordem de São Jerônimo reali-
zava uma pesquisa psico-sociológica na qual submeti-
am “(...) os colonos a um questionário visando saber
se, segundo eles, os índios eram ou não ‘capazes de
viver por conta própria’”. Ainda que todos tenham res-
pondido negativamente, contemporizava-se que “‘a ri-
gor, talvez, seus netos; ainda assim, os indígenas são
tão profundamente viciosos, que pode se duvidar; a pro-
va: eles fogem dos espanhóis, recusam-se a trabalhar
sem remuneração, mas levam a perversidade a ponto
de dar de presente seus bens; não aceitam rejeitar os
companheiros cujas orelhas os espanhóis cortaram’. E
à guisa de conclusão unânime: ‘É melhor para os índi-
os tornarem-se homens escravos do que se manterem
como animais livres...’”.2

61
9
2006

Mas Lévi-Strauss também nos fez supor que existe


uma distância entre essas duas experiências etnocên-
tricas. Uma distância que é da ordem da constituição
das sociedades, entre duas constituições culturais que
seriam irredutíveis uma à outra, onde “(...) o outro, aque-
le ser que em nossa cultura, para não ser dizimado, pre-
cisa aceitar ser subordinado, tornando-se o mesmo de
mim”. Distância que separaria sociedades antropoêmi-
cas de sociedades antropofágicas: “A nossa é antropoê-
mica, não suporta os desvios, os vomita para fora: pren-
de, interna, confina, exila, mata.”3
Com isso, seria necessário acrescentar mais esta
afirmação: se toda cultura é etnocêntrica, apenas a cul-
tura ocidental é etnocidiária. O etnocídio, entendido
como destruição sistemática de modos de vida e siste-
mas de pensamento, seria uma vocação do Ocidente
porque estaria inserido na moral do humanismo. É para
o bem do selvagem que se pratica o etnocídio, é para
arrancá-lo deste estado deplorável e elevá-lo ao nível da
civilização e da cultura superior. Ele implica um gesto
correcional. “Suprime-se a indianidade do índio a fim
de fazer dele um cidadão brasileiro. Na perspectiva de
seus agentes, o etnocídio não poderia ser um empreen-
dimento de destruição. É, ao contrário, uma tarefa ne-
cessária, exigida pelo humanismo inscrito no coração
da cultura ocidental.”4
O etnocídio possui sua racionalidade, está ligado a
esse princípio de identificação e a esse projeto de redu-
ção do outro ao mesmo, ele funciona como uma política.
Com efeito, essa dissolução do múltiplo através de uma
técnica de assimilação e de assemelhamento encon-
trou seu apogeu entre o crepúsculo da Renascença e o
alvorecer da Idade Clássica, em meados do século XVII,
lá onde se articulou uma nova percepção em relação à
miséria, “(...) novas formas de reação diante dos proble-

62
verve
Europa: a guerra inacabada

mas econômicos do desemprego e da ociosidade, uma


nova ética do trabalho e também o sonho de uma cidade
onde a obrigação moral se uniria à lei civil, sob as for-
mas autoritárias da coação.”5 Foi a partir da multiplica-
ção de uma população duvidosa de camponeses expul-
sos de suas terras, de soldados desertores, de operários
sem trabalho, de pobres, de doentes, etc.6 que um etno-
centrismo “aquém mar” colocou em funcionamento as
categorias lógicas familiares aos povos colonizados do
velho mundo. Selvagens, dirá Eugène Buret, ao escrever
em 1840 La misère des classes laborieuses en Angleterre
et en France, a respeito desses pobres. “Selvagens os ope-
rários o são pela incerteza da sua existência, primeiro
traço de identificação que aproxima o pobre do selva-
gem. Para o proletário da indústria, como para o selva-
gem, a vida está à mercê das sortes do jogo, dos capri-
chos do acaso: hoje boa caça e salário, amanhã caça
improdutiva ou desemprego, hoje abundância e ama-
nhã a fome.”7 Mas são selvagens principalmente por seu
nomadismo incessante que se inicia com a vagabunda-
gem das crianças e que termina com essa “(...) popula-
ção flutuante das grandes vilas, esta massa de homens
que a indústria atrai em torno a si, da qual ela não pode
se ocupar constantemente e que ela tem sempre em
reserva a sua disposição. É no interior dessa população,
muito mais numerosa do que se supõe, que se recruta o
pauperismo, este inimigo ameaçador de nossa civiliza-
ção.”8
Condição selvagem de uma população primitiva que
habita esses bairros malditos onde homens e mulheres
flertam com o vício e com a miséria, onde crianças se-
minuas se atrofiam nessas habitações sem ar e sem
luz. É lá, no coração mesmo da civilização e do progres-
so, que se encontram esses homens e mulheres em-
brutecidos por uma vida selvagem, por uma miséria “(...)
tão horrível que inspira mais desgosto que piedade e

63
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2006

que nos leva a vê-la como o justo castigo de um crime.”


Chevalier faz notar que não apenas a condição do ope-
rário e o seu gênero de vida possuíam uma analogia
com os povos selvagens, mas também os aspectos da
sua revolta e dos seus conflitos de classe ganharam os
contornos de uma raça diferenciada. “Isolados da na-
ção, colocados fora da comunidade social e política, soli-
tários em suas necessidades e misérias, para sair des-
sa apavorante solidão eles tentam e, como os bárbaros
aos quais foram comparados, planejam provavelmente
uma invasão.”9
Até a primeira metade do século XIX a palavra prole-
tário possuía conotações muito diferentes das que se
conhecem e que estavam além de uma conotação eco-
nômico-política. Proletário para Balzac era menos uma
classe que uma raça portadora de um modo selvagem e
bárbaro de viver. Mas será Adolphe Thiers, chefe do po-
der executivo de 1871 a 1873 e responsável pela repres-
são à Comuna, quem atribuiu a essa “turba de nôma-
des”, num discurso proferido em 1850, um princípio de
separação e de classificação sobre esses “vagabundos”
que possuíam salários consideráveis para terem um
domicílio, mas que o recusavam, preferindo uma vida
desajustada. Dizia que “(...) não é o povo que queremos
excluir, é esta multidão confusa, essa multidão de va-
gabundos dos quais não se pode tomar nem o domicílio,
nem a família; de tal modo oscilantes que não é possível
encontrá-los em nenhuma parte; e que não souberam
garantir às suas famílias um sustento razoável: é esta
multidão que a lei tem por finalidade afastar.”10
Foi esta percepção que se teve dos pobres: uma popu-
lação que não pertencia à cidade, sobre quem caía a
suspeita de todos os crimes, de todos os males como epi-
demias e violências, nem tanto devido aos seus carac-
teres próprios, mas pelo fato imediato desta sua posição

64
verve
Europa: a guerra inacabada

e condição de exterioridade, “(...) por essa imigração, que


provocava rapidamente a proliferação da antiga mendi-
cidade.”11
Foi por oposição à cidade, um lugar de ordem e de
comportamentos bem definidos, que a analogia com os
povos selvagens foi possível; foi destacada a partir dessa
oposição uma espécie de instinto selvagem como fonte de
repugnância pelos esforços necessários ao bem-estar
trazidos por uma vida sedentária: “Vossas vidas são a de
um nômade e selvagem. (...) Da vida selvagem, eles apre-
sentam a ausência de identidade e esta indiferença em
relação ao estado civil.”12 É que ao povoar Paris essa po-
pulação emprestava-lhe, pelo mero fato da sua presen-
ça, um outro modo de viver e morrer, outros hábitos e
valores, outras preocupações e agitações, e sobretudo
davam a todos seus co-habitantes demonstrações coti-
dianas dessa experiência brutal, direta e concreta de
uma existência nômade no coração mesmo do imobilis-
mo social projetado pela cidade.
Mas o que foi a cidade? Paradoxalmente, a cidade do
século XVIII foi um projeto concebido para garantir e
promover a circulação. A antiga vila do século XVII e
início do século XVIII, caracterizada por um enclausu-
ramento no interior de um espaço fechado e murado,
criava por isso um problema para o novo desenvolvimen-
to econômico, jurídico e administrativo, que fazia com
que o problema da cidade no século XVIII tivesse sido
um problema essencialmente de circulação. Era preci-
so garantir essa nova e necessária circulação comerci-
al, de pessoas, de bens, de mercadorias, etc., e a isso
respondeu, mais ou menos de modo utópico, o projeto da
vila-capital. Tratava-se de uma metáfora arquitetural
do Estado como um edifício em cuja capital, a parte no-
bre do edifício, deveria habitar o Estado ou o soberano,
seus funcionários e oficiais. A relação entre a capital e

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9
2006

todo o resto do edifício (a fundação era representada pe-


los camponeses, as áreas comuns do edifício pelos arte-
sãos), era ao mesmo tempo uma relação geométrica que
assumia a forma de um círculo em cujo centro a capital
deveria se encontrar, e uma relação política, na medida
em que as ordens que dela emanavam deveriam ter uma
tal circulação que sequer o menor canto do território
pudesse delas se subtrair. Conseqüentemente, a capi-
tal cumpria também o papel do difusor moral, difusor
disso que era necessário impor, quais condutas adotar,
quais maneiras de fazer. Enfim, a capital era o lugar do
bom exemplo moral.
Correlato ao problema da circulação nesses projetos
da vila-capital foi igualmente o problema da vigilância.
Problema-corolário, “(...) desde quando a supressão das
muralhas exigida pelo desenvolvimento econômico fez
com que não mais fosse possível fechar as vilas à noite
ou vigiar minuciosamente as idas e vindas durante a
jornada, e por conseqüência a insegurança das vilas era
acrescida pelo afluxo de todas as populações flutuantes,
mendigos, vagabundos, delinqüentes, criminosos, la-
drões, assassinos, etc., que podiam vir, como se sabe,
do campo. (...) Dito de outro modo se tratava de organizar
a circulação, de eliminar isso que nela era perigoso, de
fazer a divisão entre a boa e a má circulação, de maxi-
mizar a boa circulação diminuindo-lhe a má.”13
De modo geral, tratou-se de limitar o impacto político
que o estilo de vida dessas populações pobres oferecia.
Foi preciso governar a miséria,14 procurando desarmar
seu potencial de antagonismo, colocando em funciona-
mento estratégias de despolitização que provocavam sua
dissociação em relação ao poder. Processo de criminali-
zação, por exemplo, que a utopia da vila-capital articu-
lou inicialmente em torno do problema da circulação,
mas que rapidamente desenhou através dele uma polí-

66
verve
Europa: a guerra inacabada

tica de fixação que terá como demiurgo a polícia. “É pre-


cisamente a polícia quem introduziu e generalizou a
denominação sistemática das ruas e das praças e a
numeração das casas, como elementos indispensáveis
para a identificação uniformizada das pessoas. Em 1749,
por exemplo, o engenheiro Guillauté propôs ao então
chefe da polícia um projeto assaz ambicioso (...), o proje-
to de Guillauté prevê subdividir a cidade em segmentos
de vinte casas e de confiar cada um deles à vigilância
de um agente da polícia.”15
Mas é igualmente possível perceber como os “desvi-
os” em relação ao projeto da vila-capital provocaram o
que se poderia chamar de processos de colonização inter-
na, que funcionaram de suportes por meio dos quais se
deu a extensão dos dispositivos disciplinares. Foucault
mencionou três tipos de práticas colonizadoras. Uma,
que se estabeleceu sobre a juventude por meio dos es-
quemas da pedagogia, através de uma colonização pe-
dagógica, ou seja, pela idéia segundo a qual não é pos-
sível um aprendizado sem passar por um certo número
de estágios necessários e obrigatórios. Outra prática co-
lonizadora, muito conhecida pelo seu escândalo, foi a
colonização dos povos. Aqui atuou o já mencionado hu-
manismo dos jesuítas, fazendo com que a colonização
fosse pensada e organizada como contraponto às práti-
cas da escravidão. Os jesuítas eram contrários à práti-
ca escravagista, considerada em si mesma brutal e al-
tamente consumidora de vidas. Opuseram “(...) a esta
prática da escravidão tão custosa e tão pouco organiza-
da, um outro tipo de distribuição, de controle e explora-
ção humana por um sistema disciplinar”16 que consis-
tiu em dar aos índios todo um esquema de comporta-
mento estatutário, indicando-lhes horário para as
refeições, para despertar, para dormir e até mesmo ho-
rário destinado aos atos sexuais. Outro tipo de coloniza-
ção, desta vez mais crucial e fundamental para o funcio-

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2006

namento da sociedade industrial dos séculos XVIII e XIX,


foi a colonização interna dos vagabundos, dos mendigos,
dos nômades, dos delinqüentes, dos pobres, numa pala-
vra, colonização da miséria.
Creio ser nesse sentido que Clastres atribui a men-
cionada vocação etnocidiária do Ocidente a essa parti-
cularidade que ele diz “(...) constituir o critério clássico
de distinção entre os Selvagens e os Civilizados, entre o
mundo primitivo e o mundo ocidental. O primeiro rea-
grupa o conjunto das sociedades sem Estado, o segundo
se compõe de sociedades de Estado.”17 O Estado é o prin-
cípio de inteligibilidade por meio do qual é possível com-
preender como algumas sociedades podem ser etnocên-
tricas sem ser etnocidiárias. Inteligibilidade que tam-
bém serve para impedir em nossos dias o devaneio em
pensar que o “passado piromaníaco” da Europa possa ser
transformado, através de um “processo poderoso e ir-
reversível de hibridização e multiculturalismo”, na bran-
dura de “(...) uma nova forma de conviver e aceitar as
diferenças mútuas, estabelecida para substituir as vio-
lentas provas de força e eliminar a opção pela guerra.”18
Parece-me que, ao contrário, os dedos chamuscados
de pólvora e o sangue seco sob os tratados de paz foram
menos uma “lição trágica” que uma espécie de subsolo
sobre o qual se ergueram as democracias contemporâ-
neas. Essa convicção segundo a qual “(...) a Europa está
bem preparada, se não para liderar, então muito certa-
mente para mostrar o caminho que leva do planeta hob-
besiano à ‘unificação universal da espécie humana’,
segundo a visão de Kant (...),”19 demonstra bem o vigor
com que ainda funciona a vocação etnocidiária do Oci-
dente.
Foucault forneceu os subsídios necessários para lan-
çar sobre essa problemática uma reflexão crítica. Res-
pondendo a questão “O que é a Europa?”, ele colocou o

68
verve
Europa: a guerra inacabada

fim do Império Romano em 1648, ano em que a Europa


reconheceu que o sonho do Império não deveria mais
constituir a vocação última dos diversos Estados euro-
peus, onde o acontecimento mais significativo estaria
no Tratado de Paz de Westphalia, que encerrou a Guer-
ra dos Trinta Anos (1618-1648): um conflito que se es-
tendeu para o âmbito internacional por meio das expe-
dições marítimas holandesas que atracaram no Brasil,
Angola e Ceilão.20 Westphalia é então um tratado anti-
Império, dirigido contra o sonho do Império que se esta-
va configurando pela dinastia dos Habsburgos da Áus-
tria e da Espanha e pela sua pretensão à “monarquia
mundial”; ele representou a restauração do equilíbrio
político europeu após trinta anos de um grande conflito
multidimensional; equilíbrio que seria futuramente
rompido, no novo despertar do sonho do Império, com
Napoleão e Hitler. Mas, em todo caso, ele engendrou esse
gesto emblemático de limitação do Império que fundou
a Europa como pluralismo de Estados.
Subjacente a esse gesto fundamentalmente prático
de limitação do Império funcionou também toda a novi-
dade da nascente razão de Estado do século XVII. Tanto
Botero quanto Palazzo21 definiram a razão de Estado como
“(...) um conhecimento perfeito dos meios pelos quais os
Estados se formam, se mantêm, se fortalecem e se ex-
pandem.” Segundo Foucault, esse aspecto do crescimen-
to de um Estado e da sua expansão atravessou todas as
definições da razão de Estado formuladas no decorrer do
século XVII. Porém, tratava-se de um crescimento que
não poderia ser indefinido, absoluto e ilimitado como no
Império, e não poderia sê-lo precisamente porque, se-
gundo essa razão de Estado, era preciso evitar esse pro-
cesso que se constata na história de todos os Impérios,
“(...) processo praticamente inevitável, em todo caso sem-
pre ameaçador, que arrisca colocar o Estado em deca-
dência e de o fazer, após o ter conduzido ao zênite da

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2006

história, desaparecer. Isso que é preciso evitar, no fun-


do, e é nisso e para isso que funciona segundo Botero e
Palazzo a razão de Estado, foi o que se deu no reinado da
Babilônia e no Império romano: Império retirado do jogo
após a vitória [l’Empire de Charlemagne], esse ciclo do
nascimento, do crescimento, da perfeição e depois da
decadência. Esse ciclo é chamado, no vocabulário da
época, de ‘revolução’. A revolução, as revoluções, é essa
espécie de fenômeno quase natural, enfim, meio natu-
ral meio histórico, que conduz os Estados a um ciclo que,
após os ter conduzido ao esplendor e à plenitude, os faz
em seguida desaparecer e se apagar.”22 Será esse tipo
de crescimento que é preciso evitar, crescimento exter-
no, crescimento que traz em si mesmo o próprio germe
de sua aniquilação; porque toda pretensão ao Império,
seja ele o dos Habsburgos, de Napoleão ou de Hitler, ar-
risca sempre um excesso estratégico na forma de inimi-
gos demais a combater e frentes demais a defender, uma
vez que o preço de possuir tantos territórios foi sempre
a existência de numerosos inimigos; mas também ex-
cesso engendrado na forma do desequilíbrio político eu-
ropeu que todo excesso de potência provocava. Foi isso
que esses primeiros teóricos da razão de Estado procu-
raram conjurar, era preciso passar de um tempo de ten-
dências unificadoras e exacerbadas, para um tempo
atravessado pelos fenômenos de concorrência. É a esse
fenômeno da concorrência entre diversos Estados, con-
corrência entre pluralidade de domínios, que se deve
atribuir o que os historiadores chamaram de “milagre
europeu”. Perguntou-se “(...) porque foi entre os disper-
sos e relativamente pouco adiantados habitantes das
partes ocidentais da massa terrestre da Eurásia que
ocorreu um processo incessante de desenvolvimento
econômico e inovação tecnológica que faria dessa re-
gião o líder comercial e militar do mundo?”23 A resposta
estaria numa certa fragmentação política européia, no

70
verve
Europa: a guerra inacabada

fato básico da inexistência de uma autoridade uniforme e


de um governo central e, ao contrário, na existência de
variados centros de poder. Dessa percepção anti-Império
nasceu essa concorrência fundamental que fez com que
as forças militares das monarquias européias, que pare-
ciam absolutamente insignificantes comparadas aos exér-
citos do sultão e das tropas maciças do Império Ming, al-
cançassem o desenvolvimento extraordinário que se co-
nhece.
Mas para além do “milagre”, essa passagem das rivali-
dades dinásticas para as concorrências entre Estados, que
nada mais foi que o afrontamento pensado em outros ter-
mos, colocou em evidência para a política a noção de for-
ça: não se julgou mais necessário um crescimento exte-
rior, uma expansão territorial, etc., mas o crescimento
das forças do Estado, da sua majoração e intensificação
interna. O que os teóricos da razão de Estado apontaram foi
o desenvolvimento de uma dinâmica das forças: uma vez
que o Estado não existe sozinho, mas lado a lado com uma
pluralidade de outros Estados com os quais ele mantém
relações de concorrência, era necessário conceber um
sistema limitativo de sua ambição exterior ao mesmo tempo
em que deixava a liberdade absoluta para o aumento ili-
mitado de suas forças no interior de suas fronteiras. “Muito
fraco, um Estado se tornaria presa fácil de seu vizinho.
Muito forte, ele constituiria uma ameaça para sua segu-
rança. Esse foi o sistema do equilíbrio europeu. Como as-
segurar um equilíbrio de forças, condição de uma paz du-
rável, nesse espaço geográfico sem unidade, formado por
Estados múltiplos, desiguais e rivais, que era a Europa?
Um tal projeto supunha o funcionamento de meios milita-
res, bem como da organização de uma diplomacia perma-
nente: dispositivo político-militar.”24
A Europa enquanto espaço de paz foi, portanto, a re-
sultante desses processos estatais, foi a obra de Estados

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2006

e pensada do ponto de vista dos interesses de Estados,


essa foi a sua história: a Europa “(...) como região geo-
gráfica de Estados múltiplos, sem unidade mas com des-
nivelamento entre os pequenos e os grandes Estados,
tendo com o resto do mundo uma relação de utilização,
de colonização, de dominação. (...) Eis o que é a Euro-
pa.”25
É, portanto, possível localizar na Europa, nesse proje-
to de constituição de um espaço de paz limitativo da po-
tência dos diversos Estados, a procedência dos diversos
processos de colonização. Tenham eles se dado sob a
forma da obtenção de recursos pela extensão de seu do-
mínio para o resto do mundo, onde uma das razões des-
sa expansão residiu “(...) sem dúvida na dialética da paz
perpétua e do crescimento das forças. Os Estados não
podiam mais estender sua potência no seio da Europa,
eram necessários outros terrenos para conquistar com
a finalidade de neles encontrar os recursos e o expedi-
ente necessários ao seu desenvolvimento.”26 Ou tenham
eles se dado também sob a forma de todos aqueles pro-
cessos de colonização interna de que falamos. Porque
se é verdade que, segundo a razão de Estado, cada Esta-
do deve se autolimitar no âmbito das suas relações in-
ternacionais através de um dispositivo diplomático-mi-
litar, pelo contrário, no âmbito da sua política interna, e
por meio de um dispositivo de polícia, o Estado dá a si
mesmo uma série de objetivos ilimitados. “Nos grandes
tratados de polícia do século XVII e XVIII, todos que cor-
relacionaram os diferentes regulamentos e que tenta-
ram sistematizá-los estão de acordo sobre isso, e eles o
dizem em termos expressos: o objeto da polícia é um
objeto quase infinito. Quer dizer que enquanto potência
independente em relação às outras potências, aquele
que governa segundo a razão de Estado tem objetivos
limitados. Ao contrário, na medida que ele dirige uma
potência pública que regula o comportamento dos sujei-

72
verve
Europa: a guerra inacabada

tos, aquele que governa tem um objetivo ilimitado. A


concorrência entre Estados é precisamente o ponto de
junção entre esses objetivos limitados e esses objetivos
ilimitados, porque é precisamente para poder entrar em
concorrência com os outros Estados, que aquele que go-
verna deverá regulamentar a vida dos sujeitos, sua ati-
vidade econômica, sua produção, o preço pelo qual irão
vender as mercadorias, o preço pelo qual eles as com-
prarão, etc. A limitação do objetivo internacional do go-
verno segundo a razão de Estado, essa limitação nas
relações internacionais tem por correlativo a ilimitabi-
lidade no exercício do Estado de polícia.”27
Há sentido em distinguir guerra e paz? É fácil pensar
a guerra na duração de suas batalhas, no clarão de suas
bombas, na impertinência de seus assédios. Os fatos
materiais da luta além de não exprimirem toda sua re-
alidade deixam intocado o princípio da sua inteligibili-
dade. “A estratégia e a tática, a diplomacia e a sutileza,
possuem seu lugar na guerra como a água, o pão, o vi-
nho, a vela, no culto [religioso].”28 Diríamos, portanto,
que aquilo que existiria de inacabado no contexto euro-
peu seria menos uma “aventura” que uma experiência
nazista. Ora, a guerra não foi conjurada em nome do
direito dos indivíduos, em respeito à sua liberdade, etc.,
mas foi, como se viu, a resultante de um cálculo, de
uma racionalidade e de uma evidência política. Essa é,
talvez, a razão porque o fim da guerra não significou o
fim das violências, mas, como sugere Gros, sua distri-
buição e re-configuração em estados de violência. De-
pois do escândalo e de todo o teatro de protestos que ele
implicou, veio um tempo em que o tipo de experiência
vivida é estranho tanto a uma ordem imperial do tipo
romano, quanto a uma ordem estatal do tipo westpha-
liano. “Desde a ‘queda do muro’, uma distribuição nova
de violências teve lugar, que se reflete segundo dois ter-
mos: intervenção e seguridade. (...) Nem um único Impé-

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2006

rio com seus limites tumultuosos, nem uma pluralidade


de Estados com suas fronteiras em alerta, mas um mun-
do global atravessado por estados de violência, regulados
por um sistema de seguridade e de intervenções.”29
Basta pensar, por exemplo, que através desse siste-
ma de seguridade um fenômeno tem servido para reati-
var em nossos dias algumas das velhas funções da razão
de Estado: o fenômeno da criminalização da imigração.
Repetição monótona de uma antiga infâmia, o imigrante
é hoje o novo selvagem, população deslocada e portadora
de um estilo de vida retardatário em relação à moderni-
dade. Nova classe de sujeitos sobre os quais se aplica e se
faz funcionar na sua plenitude as velhas funções pura-
mente negativas do poder de soberania, mas também as
velhas funções positivas do poder disciplinar. Prisão, ba-
nimento, morte; disciplinamento e utilização do corpo ou
inclusão identitária, sujeição, etnocídio. É bem verdade,
como notou Bauman, que depois do petróleo a mão-de-
obra imigrante é o combustível que impulsiona as gran-
des economias.30 Mas para além do lucro econômico, essa
nova classe de sujeitos produz um lucro que é da ordem
do poder, um lucro na economia do poder, um sobre-valor
político. Esses sans-papier, termo há um tempo utilizado
para o trabalhador desprovido da carteira de trabalho, cons-
tituem hoje a base para “(...) a elaboração de um projeto
securitário europeu (...) através da produção de um ile-
galismo normalizado (...). Do mesmo modo que o ‘delin-
qüente’ do século XIX, o imigrante clandestino represen-
ta, portanto, a nova figura de ameaça para os Estados eu-
ropeus.”31
Por isso ser imigrante na Europa hoje é estar sujeito
a uma gestão essencialmente policial dividida entre
medidas de integração e medidas de repressão, obvia-
mente com a balança pendendo para a repressão. O jor-
nal italiano L’Espresso noticiou o funcionamento inter-

74
verve
Europa: a guerra inacabada

no de um desses “campos” para imigrantes ilegais. A


ilha de Lampedusa (Agrigento, Sicília), que no final do
século XIX “hospedou” anarquistas e subversivos con-
denados por associazione di malfattori ao domicilio coatto
(dentre os quais o “perigoso” Errico Malatesta) e que sob
o fascismo “hospedou” os oppositori al regime, mantém
hoje o mais importante Centro de Permanência Tem-
porária, C.P.T.,32 da Itália: crianças numeradas no bra-
ço, imigrados obrigados a assistir e a participar de para-
das fascistas simuladas por policiais, agressões físicas
e humilhações tais como obrigar mulçumanos assistir
filmes pornográficos na tela de um celular, obrigar os
imigrados a se sentarem sobre esgoto, etc.,33 quer di-
zer, violência sistemática que não deixaria muito a de-
sejar ao “antigo” regime fascista.
Mas seria equivocado pensar que as violências às
quais são submetidos os imigrantes na Itália são privi-
légio desses “campos”: acontecem ali sob a forma do es-
cândalo, mas seguramente eles não detêm seu mono-
pólio. Vi pessoas com trabalho regular serem amontoa-
das como ratos e sofrer agressões numa sala de Questura
ao solicitar o permesso di soggiorno, vi a segregação total
imposta pela sociedade italiana a essas populações de
imigrados. “Os marroquinos, os argelinos, os tunisia-
nos, são dezenas de milhares (...) não se deve subesti-
mar a perturbação estética... porque se pode dizer: ‘não
estão fazendo nada!’. Mas perturbam simplesmente por-
que existem! Ou seja, o mendigo perturba até certo pon-
to, mas eles perturbam porque existem. É intolerância,
dizem que é racismo; mas esse é um modo fácil de re-
solver o problema; ‘vocês são racistas’, mas as pessoas
não são racistas! Em algumas paradas de ônibus, a uma
certa hora, centenas de marroquinos tomam os meios
públicos porque ali perto existem alguns locais onde dor-
mem, etc., sobem 40, 50 extra-comunitários. As pes-
soas não sobem naquele ônibus. Por que são racistas?

75
9
2006

Não, porque têm uma razão. Primeiro, ninguém paga o


bilhete; segundo, fazem de tudo dentro do ônibus; ter-
ceiro, fedem: até quando um fede, tudo bem, mas se são
50 não é mais caridade cristã, é suicídio!”34
Esse humanismo que brada o fechamento desses “cam-
pos”, fechamento absolutamente justificado, não faria ces-
sar a violência. Essa é a proposta da Rifondazione Comu-
nista e demais democratas, para os quais seria preciso
recuperar a cultura da legalidade: fechar os “campos” e
dar o voto aos imigrados. Mas o império da legalidade é
apenas o outro verso da mesma opressão. Uma relação
de domínio não lança mão apenas de mecanismos ne-
gativos de poder, é mesmo provável que seu uso tenha
sido minoritário na história; ao contrário, os mecanis-
mos positivos de poder, pelo seu ardil e sutileza, foram
sempre preferidos. O que estaria em jogo na cultura da
legalidade é que por meio dela funciona ainda a mesma
racionalidade política, é ainda o velho tema da coloniza-
ção que é acionado a partir dela, quando se pensa que
“(...) a figura do estrangeiro marca a borda extrema da
inclusão, o limite a partir do qual a lógica da assimila-
ção cessa de jogar para dar lugar aos mecanismos de
exclusão se aplicando a grupos e indivíduos perigosos
previamente identificados, classificados e seriados. Em
outros termos, o sistema biopolítico homogeneíza as po-
pulações quando ele pode e a encarcera, exclui ou de-
porta quando estima necessário.”35 A escolha democrá-
tica recai, portanto, entre esses dois extremos: morte
física e direta, ou morte social/política e indireta, ca-
racterizada pela existência negada ou precária: etnocí-
dio.
Seria necessário perguntar-se de que outro modo se
poderia justificar a existência desses inúmeros campos
permanentemente temporários, desses incrementos
sempre mais extensivos de policiamento e controle (como

76
verve
Europa: a guerra inacabada

é o caso do Sistema de Informação Shengen, S.I.S.), do


funcionamento incessante de novos procedimentos judi-
ciais (como é o caso do acordo Shengen), etc., de que modo
tudo isso poderia ser colocado em funcionamento em ple-
na luz do dia e no coração das grandes democracias euro-
péias, sem essa figura esquálida e virtualmente perigo-
sa do imigrante? Apenas é possível porque ele represen-
ta essa figura criada pela estigmatização consensual da
“ameaça” pela qual se obtém o consenso da opinião pú-
blica contra um inimigo político e social que é neces-
sário combater em nome da segurança. “O projeto secu-
ritário europeu encontra desse modo na construção do
Outro ameaçador as razões da sua própria existência, bem
como as condições de coesão das populações.”36
Como observou Passetti, de algum modo o Estado foi
levado “a desdobrar-se para afirmar sua soberania, anco-
rada na política dos direitos humanos ou no multicultu-
ralismo.”37 Sob as vestes do multiculturalismo, escamo-
teado numa pretensão pluralista e democrática, se ins-
taurou o etnocídio, ou melhor, é somente pelo etnocídio
que o multiculturalismo pode funcionar. O que são todas
essas práticas governamentais de reconhecimento, de
integração, de direitos, se não um processo difuso de igua-
litarismo homogeneizante? Práticas reclamadas sempre
em nome de uma igualdade que nega a diferença, ao
mesmo tempo em que conferem um deslocamento da ló-
gica dos conflitos sociais para o campo da cultura, provo-
cando seu esvaziamento político e uma des-potencializa-
ção das tensões. Práticas de participação dissociadas de
implicações de poder e que funcionam como estratégias
de despolitização das desigualdades.
Existe hoje uma necessidade urgente de pensar a
relação política para além do âmbito jurídico da sobera-
nia, como para além do âmbito institucional do Estado;
é urgente pensar as relações de governo como direção

77
9
2006

de condutas. Um tipo de governo que implica a liberdade


do sujeito, mas que a vincula unicamente a partir de
relações com o próprio governo. Foi isso o que caracteri-
zou e continua caracterizando o liberalismo. Foucault
insistiu que era preciso evitar o despropósito de pensar
a monarquia administrativa dos séculos XVII e XVIII
como sendo um tipo de regime que “(...) deixava mais ou
menos liberdade que um regime dito liberal que tem
por função ocupar-se continuamente, eficazmente dos
indivíduos, seu bem-estar, sua saúde, seu trabalho, sua
maneira de ser, sua maneira de se conduzir, até mes-
mo da sua maneira de morrer? Portanto, julgar a quan-
tidade de liberdade entre um sistema e outro não tem,
creio, de fato, nenhum sentido.”38 Esse mesmo despro-
pósito se insinua quando se compara o nosso presente
democrático ao nosso passado totalitário: ruptura ou con-
tinuidade insidiosa e obscura que ligaria esses disposi-
tivos presentes a antigos sistemas de poder?

Notas
1
Claude Lévi-Strauss. “Raça e história” in Antropologia estrutural dois. Tradução
de Maria do C. Pandolfo. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 1993, p. 334.
2
Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Tradução de Rosa F. D´Aguiar. São
Paulo, Cia. das Letras, 2004, p. 71.
3
Edson Passetti. Nise da Silveira, uma vida como obra de arte. http://
www.museuimagensdoinconsciente.org.br
4
Pierre Clastres. “Do etnocídio” in Arqueologia da violência – ensaio de antropologia
política. Tradução Carlos E. M. de Moura. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 55.
5
Michel Foucault. História da loucura na idade clássica. Tradução de José T. C.
Netto. São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 56.
6
Segundo Foucault, em 1606 a cidade de Paris possuía 30.000 mendigos para
uma população inferior aos 100.000 habitantes, idem, p. 64.
7
Eugène Buret apud Louis Chevalier. Classes laborieuses et classes dangereuses a
Paris pendant la première moitié du XIXe siècle. Paris, Éditions Perrin, 2002, pp.
451-452.

78
verve
Europa: a guerra inacabada

8
Idem, p. 452.
9
Ibidem, p. 453, grifo do autor.
10
Adolphe Thiers apud Louis Chevalier, 2002, op. cit., p. 459.
11
Louis Chevalier, 2002, op. cit., p. 460.
12
Idem, p. 462.
13
Michel Foucault. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France, 1977-
1978. Paris, Gallimard/Seuil, 2004, p. 20.
14
Cf. Giovanna Procacci. Gouverner la misère. La question sociale em France (1789-
1848). Paris, Seuil, 1993.
15
Salvatore Palidda. Polizia Postmoderna. Etnografia del nuovo controllo sociale. Mi-
lão, Ed. Feltrinelli, 2000, p. 32.
16
Michel Foucault. Le pouvoir psychiatrique. Cours au Collège de France, 1973-
1974. Paris, Gallimanrd/Seuil, 2003, p. 71.
17
Pierre Clastres, 1982, op. cit., p. 57.
Zygmunt Bauman. Europa. Uma aventura inacabada. Tradução de Carlos A.
18

Medeiros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 45.


19
Idem, p. 43.
20
Paul Kennedy. Ascensão e queda das grandes potências. Transformação econômica e
conflito militar de 1500 a 2000. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Ed.
Elsevier, 1989, p. 47.
21
Giovanni Botero (1540-1617) escreve em 1589, em Veneza, Della ragion di
stato libri dieci; Giovanni Antonio Palazzo, nascimento e morte desconhecidos,
escreve em 1604, em Nápoles, Del governo e della ragion vera di stato. Foi a eles que
Foucault atribuiu a articulação da razão de Estado.
22
Michel Foucault, 2004, op. cit., pp. 296-297.
23
Paul Kennedy, 1989, op. cit., p. 25.
24
Michel Senellart. “Michel Foucault et la question de l’Europe” in Gabriella
Silvestrini (org.). Trasformazioni della politica. Contributi al seminario di Teoria
politica. Department of Public Policy and Public Choice “Polis”, University of
Eastern Piedmont “Amedeo Avogadro”, http://polis.unipmn.it/, pp. 45-46.
25
Michel Foucault, 2004, op. cit., p. 306.
26
Michel Senellart, op. cit., p. 47.
27
Michel Foucault. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France, 1978-
1979. Paris, Gallimard/Seuil, 2004, p. 9.

79
9
2006

28
Pierre-Joseph Proudhon. La guerra e la pace. Lanciano, Ed. R. Carabba, 1974,
p. 46.
29
Frédéric Gros. États de violence. Essai sur la fin de la guerre. Paris, Gallimard,
2006, p. 231.
30
Zygmunt Bauman, 2006, op. cit., p. 25.
31
Denis Dues. “Immigration clandestine et sécurité dans l’Union européenne:
la sécurité intérieure européenne à l’épreuve des théories de Michel Foucault?”
in Alain Beaulieu (org.). Michel Foucault et le controle social. Saint-Nicolas (Qué-
bec), Presses de l’Université Laval, 2005, p. 6.
32
Os Centros de Permanência Temporária [Centri di Permanenza Temporanea]
foram instituídos em 1998 atendendo às exigências do acordo comum europeu
Schengen, destinados a “hospedar” imigrantes ilegais em procedimento de ex-
pulsão ou, para aqueles desprovidos de documento, imigrantes em procedi-
mento de identificação. Existem 12 CPT espalhados pela Itália, dentre os quais
o da Ilha de Lampedusa que recebe as populações norte-africanas (marroqui-
nos, argelinos, tunisianos, egípcios, etc.).
33
Fabrizio Gatti. “Io, clandestino a Lampedusa”, L’Espresso, http://
www.espressonline.it.
34
Apud Salvatore Palidda, 2000, op. cit., p. 227.
35
Denis Dues, 2005, op. cit., p. 16.
36
Idem, p. 26.
37
Edson Passetti. “Sociedade de controle e abolição da punição” in São Paulo em
Perspectiva, vol.13, n.3, São Paulo, jul-set/1999, p. 56.
38
Michel Foucault, 2004, op. cit., p. 64.

80
verve
Europa: a guerra inacabada

RESUMO

A partir do funcionamento do etnocídio no Ocidente como política


de redução da diferença por um enquadramento dominante, uma
outra leitura é dada à idéia da Europa como espaço de paz defen-
dida pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Retomando as discussões
que Michel Foucault faz do surgimento da razão de Estado defini-
da como principio limitativo de crescimento externo estatal e ao
mesmo tempo como intensificação das forças internas de um Esta-
do, uma outra leitura é proposta para a Europa: espaço em que
num determinado momento, as relações de violência foram re-con-
figuradas e re-distribuídas visando diminuir seu escândalo, a
transmutação da guerra em estados de violência.

Palavras-chave: Europa, etnocídio, razão de Estado.

ABSTRACT

From the operation of ethnocide in the West as a policy for reduc-


tion of the difference by a dominant framing, another reading is
given to the idea of Europe as a space of peace defended by the
sociologist Zygmunt Bauman. Taking Michel Foucault’s discussi-
ons on the emergence of the reason of state, defined as limitative
principle for external growth of the state and, at the same time, as
intensification of internal forces within a state, another reading is
proposed to Europe: a space where, in a given moment, the relati-
ons of violence were reconfigured and redistributed aiming at the
reduction of its scandal, the transmutation of war in states of
violence.

Keywords: Europe, ethnocide, reason of state.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmado


em 13 de março de 2006.

81
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

ensaio sobre um abolicionismo penal

edson passetti*

O abolicionismo penal é uma prática libertária inte-


ressada na ruína da cultura punitiva da vingança, do
ressentimento, do julgamento e da prisão. Problematiza
e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sis-
tema penal moderno, os efeitos da naturalização do cas-
tigo, a universalidade do direito penal, e a ineficácia
das prisões.
Refuta a natureza ontológica do crime, ao mostrá-lo
como criação histórica, na qual a criminalização de com-
portamentos, em maior ou menor quantidade, depende
das épocas e das forças sociais em confronto.
O abolicionismo revira o consenso a respeito da na-
turalização do castigo, que fundamenta o princípio da
punição no direito penal. O abolicionismo penal opera
fora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação ge-
ral das penas, para lidar com a infração como situação-

* Professor no Depto. de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados


em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol — Núcleo de Sociabilida-
de Libertária.
verve, 9: 83-114, 2006

83
9
2006

problema, considerando cada caso como uma singulari-


dade. Propõe novas práticas, relacionando as partes en-
volvidas e a justiça pública, com base na continuidade
da vida livre de punições, ao visar, de um lado, reduzir e
anular a reincidência e, de outro, obter do Estado uma
indenização para a vítima.
Atua pela via da conciliação entre as partes, como
ocorre no direito civil. Realiza uma reviravolta no atual
sistema penal e abre possibilidades para um percurso
experimental de respostas à situação-problema. Desta
maneira, abole a concepção criminológica de indivíduo
perigoso, norte do direito penal contemporâneo, e propi-
cia a expansão da educação livre do castigo. Diante do
velho, repetitivo, fracassado e inoperante itinerário pu-
nitivo de sentenciamentos consolidado pelo direito pe-
nal, o abolicionismo propõe percursos experimentais
para lidar com cada infrator em liberdade.

Do aprisionamento ao controle a céu aberto


Segundo os estudiosos do assunto, a expansão dos
costumes abolicionistas levaria a uma drástica redu-
ção dos gastos governamentais com o sistema penal e
também dos lucros da indústria do controle do crime.
Este duplo movimento anti-reformista estabelece um
novo e diferente âmbito do querer político e explicita que
o abolicionismo penal, com o fim da punição, da prisão e
do direito penal, não desconhece o aparecimento de no-
vos problemas, que exigirão das partes envolvidas in-
ventivas maneiras de lidar com cada evento.
Na sociedade disciplinar, como mostrou Michel Fou-
cault, a internação em espaços fechados fortalecia a
obtenção de utilidade e obediência dos corpos, e as ima-
nentes relações de poder produziam positividades pro-
dutivas, políticas e sociais. No limite, a repressão fun-

84
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

cionava pela ameaça. As forças armadas, internamen-


te, intimidavam a parte da população disposta a provo-
car levantes e revoluções e, ao mesmo tempo, protegi-
am o Estado de forças ou Estados inimigos externos. A
polícia intimidava o indivíduo a ajustar-se à ordem, ao
zelar pela livre circulação de mercadorias e o tranqüilo
trânsito de pessoas. Enquanto instituições sociais fun-
cionavam para formar o corpo livre, útil e dócil, a prisão
moderna aparecia, no século XIX, como o lugar de ree-
ducação e re-socialização dos infratores a serem cor-
rigidos e devolvidos, produtivos e obedientes, à socieda-
de. O prisioneiro era visto como um corpo a ser norma-
lizado, não só pela aplicação dos dispositivos punitivos
do direito penal, mas também pelo investimento dos sa-
beres das ciências humanas, atuando sobre ele na cor-
reção dos desvios que o levaram a cometer ações peri-
gosas e ameaçadoras à sociedade. Pensava-se corrigir
uma caracterizada situação de anomia que vivia o in-
frator pelas aplicações normalizadoras derivadas da as-
sociação do saber penal e humanista. No interior da pri-
são, o prisioneiro era um corpo passível de investimen-
tos positivos, capazes de lhe retirar periculosidades e
anormalidades, advindas das condições materiais e es-
pirituais precárias de vida à margem da sociedade. Este
prisioneiro era visto então como delinqüente, e deveria
ser devolvido, como cidadão obediente e produtivo: o efei-
to simultâneo do direito de punir, das práticas científi-
cas de reforma do indivíduo e da introjeção de valores
superiores pela religião. Os reformadores da prisão, des-
de então, não deixaram de acreditar neste tripé, e in-
vestiram cada vez mais em agilizar procedimentos,
ampliar atendimentos e assistências e estimular reli-
giosidades. Os reformadores da prisão e do direito penal
acreditavam neste sistema e em seus aperfeiçoamen-
tos, e reconheciam que as condições materiais de exis-
tência eram responsáveis pela maioria das infrações,

85
9
2006

sempre confirmadas, a qualquer momento, pelas esta-


tísticas. Desta maneira, o pensamento reformista pro-
curava associar políticas de redução das condições de
vida precárias com redução de criminalidade, ora glorifi-
cando o liberalismo, ora o welfare-state, com mais ou
menos políticas sociais. O limite reformista estava de-
limitado pela utopia do igualitarismo sócio-econômico,
de um lado pressionado pelo socialismo estatista que
não deixava de lançar mão da própria prisão, do tribunal
e das humanidades e, de outro, pelos anarquistas que
consideravam o crime uma doença social que desapa-
receria com o fim do capitalismo, acreditando ainda no
potencial racional das humanidades superando o direi-
to penal e as religiosidades. Ainda sob os desdobramen-
tos dos efeitos iluministas, estes reformadores oscila-
vam entre mais ou menos Estado (aproximando liberais
e socialistas) ou ausência de Estado (com os anarquis-
tas levando o liberalismo para além da fronteira).
Na sociedade atual o controle passa a ser a céu aber-
to. Sugere Gilles Deleuze, que opera-se um deslocamen-
to relativo à ênfase na internação da sociedade discipli-
nar, sem com isso pretender uma substituição total.
O controle do território e da população, por terra, mar
e ar, passa a se efetivar pela distribuição de satélites
no espaço sideral. As forças armadas comandam pelo
campo orbital, assim como a polícia, as polícias secre-
tas e particulares, as polícias de seguro e comunitári-
as, a polícia da polícia: a sociedade de controle policia
pessoas, internações, espaços subterrâneos, profundi-
dades de rios a oceanos, estrelas, planetas e sistemas.
Policia exércitos, políticos e magistrados. Policia trân-
sitos de pessoas, móveis e espaçonaves. A sociedade de
controle policia em fluxos, pretendendo alcançar segu-
ranças, obtendo confianças e disseminando tolerânci-
as. É a sociedade dos reformadores iluministas, depois

86
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

que estes descobriram como ocupar-se com fronteiras


constantemente móveis que abarcam conjuntos de Es-
tados como a Europa Unida, mercados como o NAFTA ou
o Mercosul, forças militares como a OTAN, diplomacias
como a ONU. Na sociedade de controle, o corpo não é
prioritariamente o alvo produtivo e obediente; nela im-
portam fluxos, importam inteligências. E estas nem sem-
pre se acomodam em corpos a serem disciplinados. Pas-
samos da era da mecânica dos corpos para a era dos
fractais, quanta, genomas, células, as invisibilidades de
bactérias e vírus. Nesta sociedade pune-se mais, e a
prisão deixa de ser o lugar preferencial destinado ao
infrator, em decorrência da diversificação do direito pe-
nal. Os usos das penas para comportamentos desvian-
tes também se desdobram, e aparecem possibilidades
de justiças punitivas de Estado sem aprisionamentos.
Entretanto, isso não significa que a substituição da pri-
são por dispositivos a céu aberto funcione pelo desloca-
mento. Na maioria das vezes, ainda que os reformado-
res tentem justificar controles a céu aberto — como li-
berdade assistida, semi-liberdade, prestação de serviços
à comunidade, disseminação de tribunais de pequenas
causas, leis de penas alternativas, justiça restaurati-
va... — como redutores ou supressores da prisão, estes
acabam somados à continuidade do encarceramento,
agora em prisões eletrônicas, e passa-se a caminhar do
tribunal penal local (proveniente do recente projeto de
justiça restaurativa) ao Tribunal Penal Internacional.
O direito penal, as ciências humanas e as religiões se
expandem da prisão para outros acontecimentos puni-
tivos, com custos indiretos do Estado com ONGs de as-
sistência e acompanhamento do penalizado, ou direta-
mente com polícias locais, técnicos de gabinete, infor-
mantes e informática controlando locais, bairros,
espaços selecionados e georeferenciados. Se na socie-
dade disciplinar os custos eram com punições para forta-

87
9
2006

lecer a prevenção geral, que funcionava objetivando dis-


suadir o potencial infrator pela ameaça do castigo, na
sociedade de controle, que começa a se organizar com
base em programas de tolerância zero (punir mais qual-
quer infração, mesmo que ínfima), estão em jogo custos
com prevenção, no sentido de informar sobre a pluralida-
de de penas como maneira de se contornar o aprisiona-
mento ou deixar a prisão para criminosos irrecuperáveis. A
linha direta que havia entre infração e prisão agora é
transformada em um fluxo que absorve, expele, modifica
e transforma. Se no passado se acreditava no saber da
prisão para solucionar anomias, agora se lança mão da
própria prisão para afirmar que seu saber é incapaz de
corrigir, socializar, educar, evitar reincidências, para
justificar a continuidade de uma prisão de segurança
máxima, e que abarca os sempre atualizados campos de
concentração e extermínio, as colônias penais em ilhas,
a grande prisão no rochedo como Alcatraz, até aquelas
menorzinhas em qualquer cidade sobre o RDD — Regi-
me Disciplinar Diferenciado. O corpo na prisão é menos
importante do que as organizações prisionais dentro e
fora dela, conectadas com produtividades, coordenando
tráficos, empregos internos, sistemas de benefícios, re-
lações com parentes e mulheres, consolidando um flu-
xo dilatado de conexões com a sociedade livre, a segu-
rança do lado de fora e seus vínculos com polícias e for-
ças armadas. Na sociedade de controle não há mais a
margem, apesar de permanecerem aumentadas as pre-
cariedades materiais e imateriais; todos estão dentro. A
prisão não pretende mais devolver o encarcerado bom e
obediente; ela negocia sentenças no interior do siste-
ma penal, entradas e saídas de parentes, celebra casa-
mentos, rotinas domésticas, até chegar ao ponto em que
permanecer preso chega a ser uma solução segura. Os
reformadores do sistema penal não cessam de propor
projetos de punição, disciplina e controle em fluxos, es-

88
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

tendendo aos poucos os interesses pela pena às descri-


ções sobre a cidade, as zonas fronteiriças e o campo.
Oscilam entre direito penal máximo e mínimo, substi-
tuição de termos sentenciais em que a pena é substitu-
ída por medida, da proliferação de jurisprudências à prá-
tica de justiça efetiva; e, neste fluxo, diversas negocia-
ções com tribunais são possíveis. Assim é que na atual
sociedade de controle o conservador programa tolerância
zero se transforma em políticas que absorvem liberais e
socialistas, rivalizando com lutas pela defesa de direi-
tos humanos. Assim é que os anarquistas tradicionais
também se restringem, no campo prisional, a lutas em
defesa de presos políticos, denunciando dispositivos de
confinamento perpétuo. Assim é que, por fim, lembran-
do Michel Foucault, expande-se o teatro de denúncias
que o Estado espera de cada um.
O abolicionismo penal surpreende por enfatizar a edu-
cação livre diante da cultura do castigo, suprimindo a
solução fácil, burocrática e onerosa da aplicação da pena
em nome de uma história remota, fundada no castigo,
na sua naturalização e numa duvidosa moral superior
que atravessa a sociedade disciplinar e a de controle.
Ele não se restringe à jurídica mão única destinada a
suprimir o direito penal, mas inventa práticas modifi-
cadoras dos costumes, eliminando os tribunais no coti-
diano — como o conhecido julgamento caseiro em que
os pais de todas as classes sociais punem seus filhos
com uso moderado ou não de violência, sob as garantias
do direito penal. O abolicionismo penal provoca os juí-
zes, advogados, promotores e técnicos sociais e compor-
tamentais a abdicarem de procedimentos envelhecidos
e preconceituosos, anamneses caducas, testes obsole-
tos, enfim, do poder que reitera seus saberes repressi-
vos para exercitarem práticas liberadoras. Se é modifi-
cando os costumes repressores que se inventa uma so-

89
9
2006

ciedade mais livre, a abolição do direito penal é tam-


bém resultante de práticas liberadoras do castigo.
Disposto ao debate, mas avesso à polêmica, pelo fato
desta reiterar posições dogmáticas, o abolicionista pe-
nal recusa a crítica dos normalizadores que o acusam
de gerar anomias. O abolicionismo penal também não
aceita o confortável confinamento numa utopia, como
pretendem seus oponentes, mesmo quando estes lou-
vam suas intenções com o objetivo de obstruir sua ex-
pansão. O abolicionismo penal recusa elogios; ele quer
ecos.

Qual sociedade sem penas?


Um breve, mas atento olhar para a sociedade atual
notará que práticas abolicionistas acontecem diaria-
mente. Neste sentido, é preciso dizer que a sociedade
sem penas já existe e é experimentada pelas pessoas
envolvidas em uma situação-problema, quando dispen-
sam a mediação policial ou judicial e encontram solu-
ções conciliadoras.
Entretanto, a sociedade sem penas também existe
sob o reino do direito penal, e é apaniguada pelos adver-
sários e inimigos do abolicionismo penal. Mas esta, di-
ferentemente da outra, somente terá fim quando desa-
parecer o direito penal.
É notório que nem todos os chamados delitos chegam
ao sistema penal, compondo o que os burocratas cha-
mam de cifra negra. Reconhece-se, assim, a incapaci-
dade estrutural do sistema penal, tanto para garantir a
proteção à sociedade contra os chamados indivíduos pe-
rigosos que ela cria, quanto para reformar os encarce-
rados que ela pretende reeducar pela penalização, obje-
tivando redução ou supressão das reincidências. Toda-
via, a dimensão do fracasso na prevenção à desordem e

90
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

ao crime não cessa aí. É maior. Está acrescida de um


outro acontecimento interno ao sistema penal: sua in-
capacidade em processar e sentenciar todo aquele que
lhe é destinado, devido não só à lentidão dos procedi-
mentos, dos que nenhuma reforma permanente conse-
gue dar conta, mas porque o próprio sistema penal não
foi criado para responder a todas as infrações a ele en-
caminhadas. Desta maneira, conclui-se que o sistema
penal processa, prende e sentencia pelo dispositivo da
seletividade, e os seus alvos principais se ampliam ou
se concentram a partir das populações pobres e miserá-
veis, das pessoas que atentam contra a moral e dos re-
beldes contestadores do conformismo. Portanto, há mais
sociedades sem penas do que imagina o simplório e obe-
diente cidadão. Diante disso, a doutrina da punição pelo
direito penal como prevenção geral contra a desordem é
a utopia da sociedade disciplinar que migra para a de
controle, sob o regime político democrático ou totalitá-
rio.
Estas breves considerações a respeito da existência
desta sociedade sem penas no interior da sociedade
punitiva mostram que a continuidade dos fracassos pe-
nalizadores e de sua utopia depende de costumes pau-
tados na disciplinar obediência ao superior hierárqui-
co. Nesta roda-viva, os cidadãos pouco reparam nas in-
ventivas soluções que eles próprios encontram no
dia-a-dia para resolver as infrações cometidas, e mui-
tas vezes diluem suas atitudes abolicionistas concilia-
doras para com a situação-problema no elogio à sua es-
perteza ou mesmo no júbilo pela sua capacidade de bur-
lar a lei exercendo o direito pela exceção. É neste domínio
que este mesmo cidadão, capaz de bradar pelo combate
ao fim da impunidade, contribui para a reprodução des-
ta sociedade sem penas estruturada na perpetuação de
assujeitamentos do cidadão e na consolidação de cor-
relatas práticas de corrupção, que vão dos costumes ao

91
9
2006

direito penal e ao Estado, e deste novamente aos com-


portamentos prescritos e normais. A corrupção, portan-
to, jamais será uma disfunção do sistema penal ou do
Estado, mas é somente uma prática inerente aos des-
dobramentos hierárquicos decorrentes da naturalização
do castigo e da obtenção de obediências pelo afago das
recompensas.
Em nossa sociedade, a população mais abastada, e
excluída da seletividade penal, permanece desfrutando a
mesma boa sorte, produzindo, por meio de políticos e fun-
cionários competentes, as leis universais atreladas às
práticas ilegais que sustentam interesses particulares.
Este universalismo particularista da lei e do direito pe-
nal se robustece e se perpetua pela capacidade de pena-
lizar, de vez em quando e por diversos motivos, um indi-
víduo privilegiado. Quando isto acontece, aumentam as
agitações em favor da série punitiva, propiciando ao in-
divíduo midiatizado satisfazer sua ânsia por participar e
se sentir vingado. Sob este conforto efêmero, ele reitera
a crença na moral da pena, fundada em sua aplicação
universal e igualitária, incluindo o poderoso. Contudo,
cedo ou tarde, vem a decepção, quando ele constata que o
castigo imposto ao outro, e que o regozijou, foi minimiza-
do ou suprimido mediante a revisão processual. Pertur-
bado ou conformado, assimila o fato, e surpreendente-
mente legitima a prática da seletividade, consolando-se
na utopia do fim da impunidade e da corrupção, refugian-
do-se na esperança de uma verdadeira reforma penal e na
doutrina do castigo apocalíptico advindo do julgamento de
Deus. Por omissão, esperança, crença no sobrenatural
ou desejo de garantir a universalização da punição, cada
indivíduo midiático, ao clamar por mais castigos, colabo-
ra para a continuidade das penas e ampliação da corrup-
ção. E assim, o direito penal e os seus críticos normaliza-
dores fortalecem suas alianças com o rebanho, colabo-
rando para a perpetuação de um viver conformista.

92
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

Diferentemente do indivíduo massificado da socieda-


de disciplinar, aparece na sociedade de controle o diví-
duo, convocado constantemente a participar das decisões.
Se a sociedade disciplinar precisava do corpo produtivo e
obediente, a de controle necessita da inteligência parti-
cipativa. Neste sentido, a democracia passa a ser a uto-
pia da sociedade de controle (globalizada ou pela anti-glo-
balização), e objetiva não mais reduzir resistências, even-
tualmente suprimindo-as, mas integrá-las. Se na
sociedade disciplinar o poder se exercia em rede, e daí
concluía Foucault que todo poder implicava resistências,
na sociedade de controle o poder se exerce em fluxo, e daí
se constata que todo poder implica integrar resistências.
Se na sociedade disciplinar progrediam os grandes fas-
cismos, na de controle preponderam os micro-fascismos:
não mais o grande direito de causar a morte ou a vida,
mas o direito de participar da vida pelo pluralismo civil,
político, cultural e social.

Os novos reformadores penais


Diante do fluxo punitivo, veloz e certeiro, que se atua-
liza constantemente, as reformas penais objetivam redi-
recionar e ampliar os exercícios da punição e da corrup-
ção. Os mais influentes reformadores na atualidade di-
videm-se em dois grandes grupos: um pretende variar as
penalidades, reduzindo os encarceramentos, e o outro
propõe o aumento de penalizações e aprisionamentos. De
um lado, posicionam-se os defensores das penas alter-
nativas, os arautos da criminologia crítica; de outro lado,
os conservadores que propugnam os programas de tole-
rância zero. De ambos os lados, eles defendem a varia-
ção de penas e a criminalização de novos comportamen-
tos, mas por vias adversas, fomentam o paradoxo da con-
tinuidade ampliada dos encarceramentos, e por
conseguinte da corrupção do interesse particular.

93
9
2006

Numa era de controle eletrônico, estar dentro ou fora


da prisão deixa de ser um aspecto distintivo da seletivi-
dade penal. Um novo acontecimento prisional aos pou-
cos se consolida. Trata-se da conformação das periferi-
as das grandes cidades como campos de concentração,
nos quais as pessoas têm permissão para transitar para
o trabalho, desde que regressem rotineiramente, rece-
bendo do Estado escolas, equipamentos sociais e políci-
as comunitárias. Aparece, então, uma nova diagrama-
ção da ocupação do espaço das cidades, em que políticas
de tolerância zero e de penas alternativas se combinam,
ampliando o número de pobres e miseráveis visados,
capturados e controlados, compondo uma escala mais
ou menos rígida de punições, deixando inalterados a ci-
fra negra e os dispositivos de seletividade. Consolida-se
uma nova prática do confinamento a céu aberto, e o sis-
tema penal mais uma vez se amplia, dilatando os mu-
ros da prisão.
Na sociedade disciplinar, falar em periferia era iden-
tificar quem se encontrava à margem: da boa família,
do lar, da sólida formação moral, do emprego, do consu-
mo, da habitação... Falava-se daqueles que por um aca-
so poderiam entrar para o interior da boa sociedade ou
ser dela expulsos em definitivo como prisioneiros, ban-
didos, traficantes, criminosos... e confinados na prisão,
quando não mortos em confronto com outras gangues
ou com a própria polícia. Periferia ou subúrbio era o lu-
gar dos outsiders, que, depois de assimilar os códigos de
moradia e conduta hegemônicos, ainda administravam
a convivência com aqueles que ameaçavam à margem
da margem, com uma interminável guerra civil. Na so-
ciedade de controle a periferia está dentro. Todos são
passíveis de captura. Vivemos, então, momentos de pe-
riferias que pelo planeta se realizam de maneira plura-
lista. Temos a periferia formada pela pequena cidade
ou conjunto de cidades-dormitório, que acomoda a popu-

94
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

lação que trabalha na metrópole, e que em seu interior


vê aumentar as ilegalidades. Outra maneira de perife-
ria-dormitório acontece quando os moradores da peque-
na cidade ou deste conjunto deslocam-se para trabalhar
em novos centros empresariais, abertos em suas proxi-
midades, e que procuram dar conta da contenção do aflu-
xo para a metrópole. Assim, ao mesmo tempo em que
estas cidades-dormitório se conformam em relação à
metrópole ou ao centro produtivo, recentemente inau-
gurado, desenvolve-se em paralelo a indústria do turis-
mo. Esta se esmera em enaltecer as histórias destas
cidades como povoados seculares, visando colaborar para
a manutenção das pessoas no local, pela criação de no-
vos empregos, atração de populações entorno ou empre-
gados de escalões superiores dos centros empresariais
vizinhos para conhecer a história local, com o intuito
de ampliar laços integrativos e culturais à zona de tra-
balho e desdobrar empregos. Estas periferias formadas
por cidades pequenas também progridem por meio de
diversificada política cultural, visando fortalecer as raí-
zes ou as manifestações culturais populares e de massa,
combinando ações governamentais com não-governa-
mentais, na mesma sincronia em que funciona a nova
política de penalizações com medidas anti-prisionais.
Mas há uma terceira, mais intensa, violenta, surpre-
endente. Pelo menos no Brasil ela se chama favela, no
asfalto, no morro, nos alagados. Construídas com pape-
lão, madeira, paus e plásticos, restos de outdoors, tijo-
los, e erguidas sobre a laje, palafitas ou a rés do chão.
Ali estão trabalhadores dos comércios e indústrias le-
gais e ilegais, autônomos miseráveis, serviçais do nar-
cotráfico, pequenas prostitutas, pequenos prostitutos,
altos e baixos gigolôs, gente que vai servir na polícia ou
no exército, gente que serve pessoas de fino trato, de
escolas de samba, de digitação, de escola mesmo, de
capoeira, de cultura popular, escola do crime, de negros

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2006

e não negros, de brancos e não brancos, tudo girando, e


no sobe e desce constante. Embaixo do edifício estelar,
lá está a favela discriminada como pertencente ao bair-
ro X, enquanto o prédio dos bacanas é do bairro Y. E todo
mundo quer ser bacana! E quem não quer ser bacana
começa achar que a periferia é autêntica, um lugar
especial, até maravilhoso. E neste vaivém está todo
mundo ligado na TV, e pleiteando o bilhete único com
validade de 2 horas, o atual dispositivo de custo baixo de
transporte ao trabalhador, desde que ele regresse ime-
diatamente para casa ou vá apenas da casa para o tra-
balho. Todos de volta para a periferia. Todos mantidos
presos na periferia. Periferia-prisão! E, como toda pri-
são, com sua economia, justiça, violência, conexões e
interligações.
Na sociedade de controle, as reformas do sistema
penal e das práticas de confinamento incorporam os
espaços disciplinares, como a fábrica, a escola, o hospi-
tal, a prisão, num campo ampliado que os conecta, cha-
mado de periferia. Os comportamentos criminalizados
são multiplicados e as medidas penais variadas, conso-
lidando o regime de tolerância zero — punir qualquer
pequena infração como medida de dissuasão — crença
em segurança, estatal e privada, que migrou dos con-
servadores aos mais radicais socialistas de Estado para
constituir um novo consenso penal. Permanece, toda-
via, inabalável a secular crença na associação pobreza-
periculosidade, sem a qual o sistema penal, no passado
e no presente, não garante sua continuidade com refor-
mas institucionais, mais ou menos democráticas.
No passado, foi pelo jogo político das reformas que o
sistema penal alimentou sua burocracia e fortaleceu a
prisão. Consolidou-a como o local para onde devia ir o
imoral, o desordeiro, o repugnante, refazendo no cida-
dão obediente e responsável a crença na justiça pelo

96
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

medo da prisão — local onde cabiam todos os ilegalismos e


seu complemento, as rebeliões por liberdade e demolição
da prisão. Foi assim que todo sentenciado pelo sistema
penal acabava sendo tratado como um preso político, um
perigo para a ordem, pois deixava de haver a distinção entre
infração material e ideológica. Eram todos ladrões, homi-
cidas, estelionatários, rebeldes e revolucionários que ti-
nham seus corpos disponíveis às confissões, torturas e
sujeições, aos negócios, às economias, empregos e subor-
nos, à morte, e que, não raramente, viam seus familiares
e pessoas próximas envolvidas nas trapaças, negócios ile-
gais e novos assujeitamentos. A prisão encarcerava sele-
tivamente o infrator e suas relações de afinidades, carce-
reiros e diretores, reformadores e beatos. Advinda da soci-
edade disciplinar do século XIX, tornou-se a matriz do
campo de concentração da atual sociedade de controle, e
permaneceu como a imagem mais forte do medo da força
repressiva de um Estado. No passado, a prisão era, para
cada cidadão livre e responsável, a imagem do terror. Hoje,
são as periferias que assumem este lugar da imagem do
terror, sejam elas compreendidas como os espaços das
grandes cidades ou ações de agrupamentos terroristas
estrangeiros, vistos também como procedentes das perife-
rias da globalização. Estamos todos presos?!

Um abolicionismo
Diante dos reformadores em geral, podemos nave-
gar outro fluxo, ainda pouco caudaloso e freqüentado
pelos rebeldes.1 Não se trata de compreendê-lo a par-
tir da histórica oposição entre revolucionários e re-
formistas, pois desde os desdobramentos socialistas
estatistas advindos do início do século XX, mais pre-
cisamente após a Revolução Russa, constata-se que
os revolucionários, como lembrava Proudhon,2 no sé-
culo XIX, nada mais são do que novos reformadores,

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9
2006

restaurando a centralidade de poder. Se os revolucio-


nários e reformadores são intelectuais proprietários
da verdadeira consciência, os rebeldes são agencia-
dores de mudanças, compondo forças intempestivas
que desassossegam centralismos.
Depois da II Guerra Mundial, pensadores como Fou-
cault e Deleuze não deixaram de chamar a atenção
para a vida fascista, calcada no gosto pelo poder, por
desejar aquilo que nos domina e explora, e por justifi-
car atrocidades cometidas por dirigentes e assujeita-
dos, em nome da consciência verdadeira, alojada no
Estado em nome da nação ou da classe.3 Foucault e
Deleuze enfrentaram sem medos o discurso da viti-
mização, mostrando que as subjetividades nela conti-
das autorizam extermínios, que vão da casa ao Estado
e deste às minúsculas e supostamente inexpressivas
localidades. Louk Hulsman, um dos mais intensos abo-
licionistas penais, também é avesso ao domínio dos
intelectuais, esclarecendo e dirigindo consciências, fa-
lando em nome de pobres, oprimidos, excluídos, aban-
donados, miseráveis, enfim, o grande contingente com
suposta deficiência de consciência, que muitas vezes
segue seus tiranos, travestidos de messias, pai políti-
co, condutor para a nova era.4
Pensadores como Proudhon e Hulsman ensaiam ou-
tras saídas para o mundo da propriedade, a partir da
vivência de novos costumes que afirmam uma educa-
ção libertária, uma liberdade que começa em cada um,
abolindo o castigo em seu interior. Mesmo sem ser uma
referência explícita de Hulsman, o anarquismo, e mais
precisamente o pensamento libertário, rondam suas
reflexões, e em comum com Proudhon fazem transpa-
recer a emergência contínua de uma nova sociedade
livre e desigual, que problematiza o saber do direito
penal e atua na luta dos movimentos abolicionistas.

98
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

Pensadores como Foucault e Deleuze ensaiam outras


experimentações para este mundo de propriedade em que
a democracia somente progride com a disseminação de
muita miséria. Experimentações são ensaios de vida,
relações intensas entre o que se vive e pensa, provocan-
do novas subjetividades voltadas para outros estilos de
vida, compondo uma intrínseca relação entre pensar e
agir, na qual não está mais em jogo uma teoria que ori-
enta uma práxis. Não está mais em questão o macro, o
molar, levando-se em consideração que o devir revoluci-
onário coletivo se esgotou. Por outros percursos, no sé-
culo XIX, Max Stirner e depois Nietzsche sinalizavam para
o fim dos universais e, ao estilo de Stirner, devíamos
deixar a sociedade morrer, e abdicar da gloriosa função
de reformadores sociais. A sociedade é um conceito cria-
do pelos homens, e acompanhado de suas fantasmagori-
as, para mostrar um determinado momento evolutivo da
espécie. A sociedade, seu nascimento e sua conserva-
ção, é o objeto de interesse de revolucionários e reforma-
dores. Os rebeldes, então, distinguir-se-iam destes agen-
tes pluralistas, pela ênfase no devir insurreto pessoal e
ensaístico, nômade, nosso eterno retorno.
O abolicionismo penal, assim como o anarquismo, é
um pensamento em aberto, inacabado, diverso, composto
de singularidades, mas que podem ser uniformizadas
ou unificadas pelos critérios do pluralismo democrático
ou das afinidades grupais. Ambos correm o risco de se-
rem capturados por organizações molares. O primeiro
subordinando-se à criminologia crítica — trajeto que
parece agregar o abolicionismo penal de influência
marxista — , funcionando como reformador radical no
interior do Estado e do tribunal. O segundo, pela noção
de sociedade, substituindo o Estado depois de sua aboli-
ção, em que o indivíduo deixa de estar sobre o domínio
repressor do Estado para passar ao exercício autônomo
e livre de autoridades sociais. Contudo, o poder é mais

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9
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do que repressão. Desde a sociedade disciplinar, de onde


provém o anarquismo moderno, o poder funciona pelas
suas positividades expressas nas utilidades e docilida-
des exigidas dos corpos, compondo uma tecnologia de
poder que atravessou o capitalismo para se alojar tam-
bém no socialismo de Estado. O anarquismo foi contun-
dente em sua crítica a esta positividade do poder, pro-
pondo demolir relações de obediência, desde as mais
próximas como amor, sexo, educação de crianças e ami-
zade, até arruinar o Estado. O anarquismo foi e é o dis-
curso mais contundente à sociedade disciplinar, mas
que se restringe aos limites do deslocamento da sobe-
rania do rei, povo, proletário no Estado para a sociedade.
Foi a derradeira expressão da maioridade iluminista
restaurada, ou da verdadeira emancipação humana.
Com a emergência da sociedade de controle, torna-
se mais pertinente ainda uma das derradeiras proble-
matizações de Foucault, ao se perguntar se algum dia
nós alcançaríamos a maioridade.5 Deleuze, anos depois,
dirá que diante das maioridades se interpõe, vive e se
aparta a força do menor como devir, aquela minoria
que evita modelos.6
O abolicionismo penal é um discurso que emerge
da sociedade de controle, e é neste sentido que Louk
Hulsman aparece como seu instaurador, apartando-se
dos desdobramentos herdados da crítica marxista re-
volucionária ou reformista da sociedade capitalista,
expressa em pensadores como Nils Christie e Thomas
Mathiesen. O abolicionismo penal de Hulsman é dife-
rente dos marxistas, relembrando não só sua aversão
ao intelectual condutor de consciências como também
sua preocupação em demolir incondicionalmente o
direito penal, sem direito a negociações de aprisiona-
mentos transitórios, mas também por não condicionar
a situação-problema a uma determinação sócio-econô-

100
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

mica. O abolicionismo penal de Hulsman responde às


inquietações provocadas pela sociedade de controle: está
apartado da centralidade do tribunal, da aplicação uni-
versal da lei, do domínio acadêmico do direito penal, da
baboseira fétida daqueles que dizem ser o abolicionis-
mo penal uma belíssima utopia, e daqueles que o com-
batem, descabelando-se e babando ensandecidos, em
qualquer rodinha, que o abolicionismo penal dissemina
impunidades e anomias, bradando o surrado jargão bur-
guês que associa anarquia a baderna.
O abolicionismo penal como amplificador de resis-
tências na sociedade de controle atua em fluxos incor-
poradores, mas não uniformizadores, e é assim que re-
conhece e convive com os vieses marxistas em seu in-
terior. Entretanto, na sociedade de controle não se opera
mais por posicionamentos e contra-posicionamentos,
como na sociedade disciplinar. Nela se é convocado a
participar democraticamente, com base na difusão de
informações e comunicações, em fluxos diversos, simul-
tâneos e constantes. Mais do que resistir (porque o alvo
da sociedade disciplinar é anular resistências), isto pro-
picia a cada um, a cada divíduo, libertariamente, in-
venções da vida, ensaios de existência, demolições da
sociedade ou reconhecimento de que ela está morren-
do.
Lembrando uma contundente reflexão deixada por
Foucault para os tempos de agora, o ensaio é uma expe-
riência modificadora de si no jogo da verdade, e não se
confunde com a aproximação ao pensamento de outro,
com a finalidade de comunicar. Pensar é experimen-
tar.7 Deleuze, tecendo um retrato de Foucault, mostrou
a distinção entre história e experimentação, para sali-
entar que só há experimentação diante de condições
adversas colocadas pela história.8 Desta maneira, a ex-
perimentação quase foge da história, é indeterminada,

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2006

é filosófica, e Foucault teria colocado sua vida no seu


pensamento o que, segundo Deleuze, o caracterizava
como o único filósofo do século XX que teria saído do
século XIX. Foucault, por sua vez, e ainda vivo, dizia que
esperava que o século XXI fosse deleuziano. Estamos,
então, diante de experimentações, estilos de vida, en-
saios de existências, que não são consumidos por pala-
vras, livros, aulas, púlpitos, messiazinhos e corajosa-
mente demolem universais. O abolicionismo penal quer
modificar pelo transtorno gerado em si próprio. Então,
se de um lado assimila em seu interior efeitos de resis-
tências advindos da sociedade disciplinar, como o refor-
mismo marxista, de outro incentiva a ensaios de expe-
rimentações e a se separar dos reformadores.
Abre-se um campo a ser retomado pelo Nu-Sol, e
que vem desde os estudos iniciados na década de 1990,
a respeito do ensaio sobre o fim das punições, liber-
tos, agora dos modelos. O ponto de discórdia e de bifur-
cação de percursos com Hulsman (sem deixar de re-
conhecer os instigantes trabalhos de pesquisa e teo-
ria de Christie e Mathiesen) se encontram na alternativa
aos universais. Hulsman em seus poucos, mas precio-
sos escritos, mostra que na sociedade de controle não é
mais a abundância de publicações (tendência a crescer
cada vez mais por meio de obras temáticas, prescriti-
vas, científicas e literárias, dentro e fora da Internet)
nem os longos tratados que prevalecem, mas o apreço
pelos ensaios de curta duração, capazes de gerar implo-
sões transgressivas. O ponto de discórdia com Hulsman
situa-se, apenas, em relação à defesa de modelos alter-
nativos.
De início, convêm lembrar que o rompimento com uni-
versais é também uma superação do pensamento por
modelos. Portanto, ao situar cinco modelos alternativos à
universalidade da lei (conciliação, educação, terapia, com-

102
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

pensação e a própria punição, quando aceita pela outra


parte) para buscar resoluções para situações-problema,
Hulsman nos remete a trajetos que podem vir a ser imo-
bilizadores. Menos pelos conteúdos dos modelos, mas pela
própria existência dos mesmos, que funcionam, enfim,
como uma referência para os custos de Estado, por meio
das exigências racionais do cálculo econômico e das re-
presentações. Nada a discordar a respeito das atenções
relativas a indenizações de vítimas ou suportes para in-
fratores, a ênfase na conversação com base na concilia-
ção e na compensação eficazes no direito civil, o acompa-
nhamento regular, o efeito destas soluções para encerrar
com o processo de encarceramentos (o que não significa
abrir as portas das bastilhas), a aposta na redução de rein-
cidências. Mas a vida não cabe num modelo, nem em cin-
co nem em n modelos. Tomemos um exemplo recente de
justiça, que se assemelha ao abolicionismo penal e que
se fundamenta em modelos (sem esquecer que o regime
de penas alternativas, como vimos, no passado recente,
procurava legitimar-se diante das forças progressistas, dis-
farçando-se de discurso não-encarcerador e argumentan-
do que penas alternativas levariam à diminuição do nú-
mero de prisões; ao contrário, a história o colocou como
mais um discurso encarcerador, na medida em que não
deixaram de aumentar as penalizações e não ocorreu a
redução das prisões; enfim, pela culatra, o discurso das
penas alternativas também contribui para a aceitação da
política de tolerância zero). Trata-se de analisar, breve-
mente, a atual proposta de justiça restaurativa, que cres-
ceu também desde a década de 1990, e que se caracteriza
como “(...) um processo através do qual todas as partes
interessadas em um crime específico se reúnem para
solucionar coletivamente como lidar com o resultado do
crime e suas implicações para o futuro”,9 vinculado ao
controle de pessoas que vivem situações de vulnerabilida-
des (o que no passado recente se chamava situação irre-

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2006

gular ou situação de risco, habitantes da cultura da pobre-


za, ou diversas designações para a mesma e seletiva po-
pulação perigosa). Enfim, a justiça restaurativa, que deve
ser analisada com mais detalhes noutra ocasião, não é
apenas a nova face da reforma, mas é também a cara que
mais se aproxima do abolicionismo penal, ao propor aos
envolvidos com a situação-problema que encontrem suas
soluções, por meios diretos ou indiretos, mas sem apar-
tar-se do Estado. Os princípios do programa de Justiça Res-
taurativa, promovido pela ONU e financiado pelo BID, “(...)
procuram privilegiar a conciliação, a restauração ou a
cura, prescindindo em muitos casos das autoridades judi-
ciais, em favor das comunidades dos locais em que ocor-
reram as infrações. Os valores que parametram a Justiça
Restaurativa dividem-se entre os diretos como o diálogo
respeitoso, o republicano e o de não dominação; e os indi-
retos como o perdão, a clemência e o remorso. A aplicação
da justiça restaurativa no Brasil delineia-se com o objeti-
vo de formação de um domínio que seja, simultaneamen-
te, preventivo do ponto de vista penal e instrumentaliza-
dor de programas acoplados à reforma do sistema judiciá-
rio. Fica uma questão: como é possível suprimir modelos
punitivos se a justiça restaurativa pressupõe modelo al-
ternativo que de antemão reconhece a superioridade de
alguém? Então, suprime-se em parte as autoridades judi-
ciais para pôr em seu lugar a comunidade. Desloca-se o
risco da exceção para o do fascismo.”10
O abolicionismo penal pretende suprimir a autoridade
superior. Dessa maneira deve apartar-se dos modelos em
favor de uma resposta-percurso que se modifica a cada
caso, por meio de um acompanhamento que também se
afasta da vigilância em favor da parceria. Ora, isto é
muito difícil de ser compreendido pelos reformadores,
intelectuais condutores de consciência e militantes de
ONGs. Afinal, para onde pode seguir um infrator sem o
seu condutor de consciência? A resposta-percurso en-

104
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

volve os integrantes da justiça e da situação-problema,


procurando acionar dispositivos antropofágicos em que
os desvios são assimilados pelos envolvidos, abdicando-
se das soluções antropoêmicas da nossa cultura ociden-
tal, que por não suportar os desvios os reenvia para ar-
quipélagos repressivos, como sublinhava o antropólogo
Claude Lévi-Strauss.11 Portanto, diante da falência das
soluções universais, das ambigüidades dos modelos al-
ternativos (não esquecendo que alternativo é somente
a outra cara do mesmo modelo), a resposta-percurso apa-
rece como maneira de ampliar as críticas e sugestões
elaboradas, inicialmente, por Hulsman, em função da
experimentação da vida como ensaio, fortalecendo o flu-
xo abolicionista, não pelos resquícios de resistências
advindas da sociedade disciplinar, mas pela expansão
de forças ativas diante das reativas, e considerando que
cada situação-problema realmente é um caso.
Diante da insistência na restauração da tese da liber-
tação, coloca-se a pertinência das práticas de liberação,
ensaístas e rebeldes. O que fortalece o fluxo abolicionista
penal na sociedade de controle são as rebeldias que aba-
lam a crença de outros abolicionistas em eliminar as
condições de miserabilidade, que vão da defesa da res-
tauração do welfare-state diante do Estado punitivo atual,
compreendendo um leque que abarca abolicionistas como
Christie12 e Mathiesen,13 mas também socialistas esta-
tistas não convencionais, como Zigmunt Bauman,14 Loïc
Wacquant15 e Antonio Negri & Michael Hardt,16 e anar-
quistas como Noam Chomsky.17 Por mais bem intencio-
nados que estejam, ficam esbaforidos no interior das for-
ças reativas. O abolicionismo penal de Hulsman não quer
mais ou menos Estado; ele quer o fim do direito penal,
costumes libertários, outros estilos de vida. Aproxima-se
mais do campo molecular, apartado do molar, rizomático
e nômade. Não pretende recuperar o molar, como Negri
& Hardt com a noção de multidão, como Wacquant e a

105
9
2006

restauração de políticas públicas, como Bauman, dando


conta da atenção sobre as vidas desperdiçadas e como
Chomsky, aderindo ao passado do welfare-state para re-
cuperar direitos sociais, e elaborando uma estranha,
expressionista e estratégica teoria da ampliação da jaula.
Todos, com as melhores intenções, permanecem no cam-
po reativo das reformas ou utopias revolucionárias.
A rebeldia do abolicionismo penal procedente de Hul-
sman favorece liberar a vida dos modelos, tornando-a
mais salutar, mais ensaísta, e suprimindo a autoria. O
abolicionismo penal passa a ser uma outra linguagem,
que arruína autorias individualizadas em pessoas, car-
gos, procedimentos ou instituições. Ela se faz por expe-
rimentações sem pleitear hegemonias. Pode até coe-
xistir estrategicamente com outras forças redutoras de
centralidades ou taticamente, segundo as circunstân-
cias. Ainda que a sociedade de controle pretenda pacifi-
car definitivamente as relações de poder pela participa-
ção democrática generalizada, fazendo reluzir, outra vez,
os raios iluministas kantianos e de seu projeto de paz
perpétua, a política ainda permanece sendo uma guer-
ra prolongada por outros meios.

Vaivém: sinal de alerta


Vivemos uma era de tolerância zero, era da segu-
rança propagada por meio de cercas, construções e dis-
positivos eletrônicos, e que pretende capturar singula-
ridades, como o abolicionismo penal, em nome da am-
pliação de universalidades repressoras, pluralistas,
democráticas e uniformizadoras. Em defesa da seguran-
ça do cidadão, institui-se a periferia como campo de con-
centração, a disseminação da educação de crianças e
jovens pela denúncia e delação, o culto à repressão, a
propagação de preconceitos metamorfoseados em políti-

106
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

cas de cotas, enfim, novas tecnologias de poder restau-


radoras do discurso aristocrático, porém por seu avesso,
em cujo limite se acusa o outro como sangue ruim por
natureza. Se antes se naturalizava o castigo, agora o
racismo reaparece, não mais como decorrência da cri-
minologia, mas da disseminação de direitos por meio do
multiculturalismo.
O abolicionismo penal alerta para o fato de que a lógi-
ca punitiva começa muito antes de aparecer uma situa-
ção-problema, e que muitas vezes ela cala, esconde, dis-
farça, maquia e ronda a vida de muitas pessoas. Encon-
tra-se disseminada no cotidiano, fomentando não apenas
os pequenos fascismos, mas ampliando sua faceta terro-
rista por meio de respostas legais ao crescente clamor
por mais punição e aprisionamentos, deixando aconte-
cer chacinas e execuções por agentes policiais, gangues
e sicários, contemporizando com o terrorismo diário ins-
talado, segundo a moral, em lares venerados e barracos
desrespeitados.
O fascismo terrorista possui outros dois aspectos,
além daqueles conhecidos historicamente, quais sejam:
o Estado de exceção temporário ou permanente, com
prática de morte e intimidação pela ação violenta vi-
sando destruir os oponentes do Estado. Advindo da fase
do Terror da revolução Francesa, e próprio do Estado-
nação, o fascismo molar no século passado se concreti-
zou como efeito do nacionalismo exacerbado contra mo-
bilizações socialistas e democráticas, constituindo-se
em um movimento reativo a um outro fascismo, que
emergira no início do século passado e inerente aos
desdobramentos da revolução socialista. Neste caso, o
terror na revolução Russa consagrou o seu grupo reati-
vo, o bolchevista, pretendendo perpetuar a ditadura do
proletariado. A seu modo, reprisou o período do Terror
francês do século XVIII: em nome do proletariado ou do

107
9
2006

povo, os condutores de consciência pretendem obter ple-


nos poderes para dirigir a massa... E assim como o fas-
cismo europeu sofreu seu golpe fatal com o final da II
Guerra Mundial, o totalitarismo socialista sucumbiu
depois da reviravolta neoliberal da década de 1980. To-
davia, as longas convivências com o estado de sítio,
em vez de confirmá-lo como dispositivo de exceção, o
catapultou à condição de regra, como mostrou Giorgio
Agamben:18 o estado de exceção foi sendo trazido gra-
dativamente para dentro da lei e das constituições de-
mocráticas e liberais do Estado de Direito, desde o iní-
cio do século XX, principalmente desde a República de
Weimar.
Um outro terror, anti-estatal, molecular e anarquis-
ta, e desvencilhado do fascismo, apareceu na Europa,
no século XIX , visando, pela ação direta, provocar mor-
tes, explosões e pânicos, não só contra reis e prínci-
pes, mas também em locais privados tidos como pú-
blicos, escancarando a falácia da segurança ofereci-
da pelo Estado, os equívocos propositais de sua justiça,
os desdobramentos relativos ao regime da proprieda-
de disseminando miséria.19 Os novos rumos dos anar-
quismos individualista, sindicalista, coletivista e co-
munista da primeira metade do século XX praticamen-
te acabaram com o terrorismo anarquista, que pode
ser caracterizado como ação rebelde radical diante do
refluxo do movimento operário europeu, depois do
massacre da comuna de Paris e do domínio das lide-
ranças operárias pelos socialistas estatistas fora da
península ibérica.
De cima para baixo ou de baixo para cima, o terror
se concentrava em ações no interior do território de
um Estado-nação, para conservá-lo ou destruí-lo, di-
ante do imperativo da internacionalização das rela-
ções de poder.

108
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

Os dois novos aspectos do fascismo terrorista (e é


desnecessário lembrar que o fascismo também cria po-
sitividades de poder e não se define somente pelo uso
violento ou repressivo) relacionam-se com a internaci-
onalização das relações de poder na sociedade de con-
trole. Um deles, o de pulverização, diz respeito à ação
imediata de grupos adversários de Estados hegemôni-
cos, como Al Qaeda (agrupamento que vem se desdobran-
do em programa na sociedade de controle), ativistas pa-
lestinos, ou até mesmo antigos nacionalistas (como o
IRA, na Irlanda e o ETA, na Espanha), atualmente em
fase de assimilação pela Europa, ou grupos conservado-
res derivados da dissolução da URSS, como os cheche-
nos, e que pleiteiam ser Estado Nacional (numa era que
não admite mais sua predominância, mas na qual, con-
traditoriamente, para pertencer aos consórcios contem-
porâneos, ser Estado continua a ser a condição de ad-
missão), sem esquecer, ainda, dos terroristas das déca-
das de 1960 a 1980, dentro e fora da Europa, como
“Brigadas Vermelhas”, “Baader-Meinhof”, “Sendero Lu-
minoso”, “FARC”. Não há marcos fixos para suas emer-
gências. Elas são diversas e oscilam entre os vestígios
da primeira parte do século XX, final da II Guerra Mun-
dial, com o reconhecimento do Estado de Israel, a conti-
nuidade das lutas de grupos separatistas, a emergência
dos aiatolás no Irã do final da década de 1970, o redi-
mensionamento do controle petrolífero no Oriente Mé-
dio, a luta contra o Império soviético, a luta contra o
Império norte-americano, a reterritorialização da URSS,
o aparecimento de guerrilheiros e terroristas radicais
na América Latina e na Europa, lutando contra regimes
capitalistas, ditaduras militares, enfim, um interminá-
vel aparecer, desaparecer e reaparecer de terrorismos
de procedência molar. Foi assim que, no vaivém dos com-
bates, as restrições aos aclamados direitos civis e políticos
e a censura explícita à liberdade de expressão, não só

109
9
2006

foram sendo justificadas, mas prontamente assimiladas.


E isto não se deve apenas ao ataque às torres gêmeas do
World Trade Center, em Nova Iorque, em 11 de setembro
de 2001. Os Estados, aos poucos, assimilaram estados de
exceção em seu interior, que agora se justificam em
nome da democratização do planeta. Antes era preciso
intervir em outros Estados em nome da liberdade contra
o socialismo ou em nome do socialismo contra o indivi-
dualismo. Na sociedade de controle atual se intervém em
nome da democracia, seus direitos, seus espaços, sua
permanência, a garantia da segurança do planeta. O se-
gundo fascismo terrorista, o de concentração, realiza-se
com o processo descrito anteriormente de transforma-
ção das periferias em campos de concentração, amplian-
do os dispositivos dos Estados fascistas na Europa, na
América Latina e no Brasil (em um contínuo que vai do
Estado Novo à ditadura militar, mas que também apanha
outro fluxo, que vai da repressão democrática pelo estado
de sítio, na década de 1920 contra anarquistas, até os
limitados direitos políticos na atualidade democrática em
que não só inexiste a liberdade do voto facultativo, mas
também a introjeção da repressão, incluindo o direito ao
emprego e à liberdade de sair do território, para aqueles
que decidirem não exercer seu direito de abstenção). O
fascismo terrorista se expande, rejuvenescido com sua
bela cirurgia plástica chamada de democracia. Nos Esta-
dos Unidos, no Brasil e um dia na China, as pessoas nes-
te planeta passaram a viver em um imenso arquipélago
formado por campos de concentração, encenando rituais
democráticos, regrados por dispositivos de exceção e vi-
giados desde o espaço sideral.
Nesta época repleta de distribuição de direitos, para-
doxalmente, estamos mais presos ainda, acostumados
com a pena de morte e a construção de prisões para sen-
tenciados que lá devem permanecer até morrer. Se no
passado constatava-se que a prisão não corrigia nem in-

110
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

tegrava o infrator à sociedade, hoje se reconhece que ela


passou a ser um lugar de sociabilidade de pessoas aban-
donadas pelas ruas, que visitam parentes e amigos con-
finados nestes palácios de repressão e morbidez.20 En-
quanto as periferias das grandes cidades se consolidam
como prisões a céu aberto, a antiga prisão no interior
deste espaço funciona tanto como dispositivo de sociabi-
lidade de miseráveis quanto como acionista de negócios
ilegais. Não há mais lugar ou legitimidade para rebeli-
ões; vivemos uma era de reformas tamanhas, que a con-
tinuidade da prisão passou a ser um modo lucrativo de
vida, defendido pela hierarquia empresarial superior dos
encarcerados. Num piscar de olhos tudo parece integra-
do no vaivém da lei pelos ilegalismos.
O abolicionista penal se afasta das práticas seletivas
que alimentam os corredores limpos e engravatados dos
tribunais, e as sujeiras e fedores nas prisões, lares e
escolas, repartições públicas... Adversário do universa-
lismo moralizador, o abolicionista pratica a ética da libe-
ração. Problematiza o direito penal e os costumes puniti-
vos na atualidade, não se restringindo ao papel de resis-
tência jurídica. Não é uma utopia, mas a escolha libertária
de quem abole o castigo em si e na sociedade, proferindo
um não afirmativo e bradando aos que querem mais pu-
nição: em meu nome não!

Notas
1
Max Stirner. O único e a sua propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa,
Antígona, 2004; Albert Camus. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumi-
anek, São Paulo/Rio de janeiro, Record, 1996.
2
Paulo-Edgar A. Resende & Edson Passetti. Proudhon. Política. Tradução de
Célia Gambini e Eunice Ornelas Setti. São Paulo, Ática, 1986.
3
Michel Foucault. “Uma introdução à vida não-fascista”. Tradução de Fernan-
do José Fagundes Ribeiro. In Cadernos de Subjetividade. Gilles Deleuze, São Paulo,
Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade/PUC-SP, 1996, pp. 197-200.

111
9
2006

Michel Foucault e Gilles Deleuze. “Os intelectuais e o poder. Conversa entre


Michel Foucault e Gilles Deleuze” in Microfísica do poder. Tradução e Organiza-
ção de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 69-78.
4
Louk Hulsman. “Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da justiça
criminal”. Tradução de Maria Brant. In Verve. São Paulo, Nu-Sol/PUC-SP,
2003, v. 3, pp. 190-219. “Alternativas à justiça criminal”, Tradução de Maria
Lucia Karam, in Edson Passetti (org). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de
Janeiro/São Paulo, Revan/ Nu-Sol, 2004, pp. 35-68.
5
Michel Foucault. “O que são as luzes?” in Manoel de barros Motta (org.).
Michel Foucault. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Ditos
e Escritos. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
2000, pp. 335-351.
6
Gilles Deleuze. “Controle e devir”, in Conversações. Tradução de Peter Pál
Pelbart. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1992, pp. 209-218.
7
Michel Foucault. O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1984.
8
Gilles Deleuze. “Um retrato de Foucault”, in op. cit., 1992, pp. 127-147.
9
www.nu-sol.org , hypomnemata 63/jul.2005.
10
Idem. Ver também, Catherine Slakmon, Renato Campo P. de Vito & Renato
Sócrates Gomes Pinto. Justiça restaurativa. Brasília, Ministério da Justiça e Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimnto – PNUD, 2005.
11
Claude Lévi-Strauss. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São
Paulo, Companhia das Letras, 1996.
12
Nils Christie. “Civilidade e Estado”. Tradução de Beatriz Scigliano Carneiro.
In Edson Passetti & Roberto B. Dias da Silva (orgs). Conversações abolicionistas.
Uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo, IBCCrim/PUC-SP,
1997, pp. 241-257. A indústria do controle do crime. Tradução de Luis Leiria. Rio
de Janeiro, Forense, 1998. A suitable amount of crime. London/New York,
Routledge, 2004.
13
Thomas Mathiesen. Prison on trial. London. Sage, 1990.
14
Zigmunt Bauman. Modernidade e holocausto. Tradução de Marcus Penchel. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros, Rio de Janeiro, Jorrge Zahar Editor, 2005.
15
Loïc Waquant. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 2003.
16
Antonio Negri & Michael Hardt. Império. Tradução de Berilo Vargas, Rio de
Janeiro, Record, 2001. Multidão. Tradução de Clovis Marques, Rio de Janeiro,
Record, 2005.

112
verve
Ensaio sobre um abolicionismo penal

17
Noam Chomsky. Notas sobre o anarquismo. Tradução de Vários. São Paulo;
Imaginário/Sedição, 2004.
18
Giorgio Agamben. Homo sacer, o poder soberano e a vida nua. Tradução de
Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. Estado de exceção.
Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo, Boitempo Editorial, 2004.
19
Jean Maitron. Ravachol e os anarquistas. Tradução de Eduardo Maia. Lisboa,
Antígona, 1981. É importante salientar também a diferença entre este terroris-
mo anarquista europeu e, em especial, o russo. Ver: Os demônios de Dostoievski
e Georges Nivat, neste número.
20
Megan Comfort. “‘A casa do papai’: a prisão como satélite doméstico e
social”, in Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro, ICC-Instituto Carioca de Crimi-
nilogia/Revan, 2004, v. 13, pp. 77-100. Loïc Wacquant. “O curioso eclipse da
etnografia prisional na era do encarceramento de massa”. in Discursos Sediciosos,
op. cit., pp. 11-34.

113
9
2006

RESUMO

O abolicionismo penal, em sua atualidade, como problematizador


contundente do direito penal visa afirmar outros percursos para
lidar com as situações hoje tipificadas como crimes. O abolicio-
nismo investe em aproximações táticas com o direito civil e suas
práticas conciliatórias, mas pretende ir além, com a invenção de
modos libertários e não-encarceradores de lidar com situações-
problema. Desse modo, o abolicionismo não pactua com os posici-
onamentos da criminologia crítica e do direito penal mínimo e, afas-
tando-se do rótulo de utopia, se posiciona como prática viável no
presente.

Palavras-chave: abolicionismo penal, sociedade de controle, re-


beldias.

ABSTRACT

Penal abolitionism, as a sharp strategy to problematize penal law,


aims to affirm other possibilities to deal with situations currently
considered crimes. Penal abolitionism invests in tactical approa-
ches to civil law e its conciliatory practices. But it intends to go
beyond, inventing libertarian and non-incarcerating ways to deal
with situations-problem. Therefore, abolitionism does not concur
with the perspectives of critical criminology and minimum penal
law. And at the same time, it stands apart from utopias and affir-
ms itself as a viable practice today.

Palavras-chave: penal abolitionism, society of control, defiances.

Recebido para publicação em 18 de outubro de 2005 e confirmado


em 14 de fevereiro de 2006.

114
verve
Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

liberdade assistida: uma tolerância


intolerável1

thiago souza santos*

“Eu tenho o dever de amar. E se o amor é um manda-


mento e uma lei, eu terei de ser educado para isso; e se me
rebelar, serei punido. Por isso se exercerá sobre mim uma
influência moral, o mais forte possível, para me conduzir
ao amor.”
Max Stirner

A Liberdade Assistida, L.A., é uma das sete medidas


sócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente, que são passíveis de aplicação a jovens
que praticarem algum ato infracional. Correntemente está
associada à Liberdade Vigiada, prevista pelo Código de
Menores Mello Matos de 1927 (decreto lei nº 17.943/
27), seguida da liberdade assistida instituída pelo Códi-
go de Menores de 1979 (lei nº 6.697/79). A Liberdade

* Sociólogo e mestrando em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisador no Nu-


Sol.
verve, 9: 115-128, 2006

115
9
2006

Vigiada compôs o capítulo VIII do Código Mello Matos (art.


92 ao art. 100), que estabelecia que o jovem pudesse
conviver com seus pais, mas estaria sob constante vigi-
lância do juiz, através de pessoa designada por ele, e,
ainda, teria de “(...) comparecer em juízo conforme o
agendamento designado; o prazo máximo desta vigilân-
cia seria de um ano; fazia alusão a um termo com as
‘condições de livramento’, que deveria ser assinado pe-
los pais ou responsáveis; e, no artigo 100 preconizava a
possibilidade de sua aplicação para qualquer ‘menor’ —
abandonado ou delinqüente, conforme o arbítrio do juiz,
tendo em vista a segurança ou moralidade deste “me-
nor””.2
Com a implantação do Código de Menores de 1979, a
Liberdade Vigiada cedeu lugar à Liberdade Assistida.3 A
principal diferença entre o antigo atendimento e o sur-
gido em 1979 remete à doutrina expressa pelo governo
militar, que privilegiava ações de vigilância conjugada
com tratamento psicossocial; contudo, apesar da mu-
dança de foco, culminando com o aparecimento da Li-
berdade Assistida, o atendimento em meio aberto não
seria incorporado como uma prática recorrente para
punir jovens: manter-se-ia privilegiado o tratamento
com internação em instituições específicas, sob a dire-
triz da doutrina da situação irregular.4
A conceituação situação irregular foi proposta por Allyrio
Cavallieri, segundo a lógica binária do normal e anor-
mal. Para ele, “(...) regular é o que está de acordo com a
regra, a norma. Irregular é o que contraria a norma, o
que se opõe a normalidade.”5 Em situação irregular —
ou fora da normalidade — era considerado o jovem esta-
belecido em família desestruturada, privado de condi-
ções essenciais de subsistência, saúde e/ou instrução
obrigatória por falta, ação, omissão, impossibilidade
manifesta, de pais ou responsável. Era também consi-

116
verve
Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

derado menor em situação irregular: jovens vítimas de


maus tratos impostos por familiar ou responsável; os
em perigo moral; os privados de representação ou assis-
tência legal pela falta eventual dos pais ou responsável
e, ainda, jovens considerados autores de infração penal
e/ou com desvio de conduta.6
Tudo isto correspondia ao modelo norteador do Códi-
go, as diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do
Menor, PNBM. A PNBM “(...) introduzida pós-64, através
da lei 4513 de 1º de dezembro de 1964, e apresentada
em setembro de 1965. (...) A lei invoca a participação
das comunidades para que junto ao governo participem
da ‘tarefa urgente’ de procurar encontrar soluções para
o problema do menor no Brasil.”7 O Estado de São Paulo
hesitou em aderir à PNBM, mantendo suas instituições,
como o Recolhimento Provisório de Menores, RPM, e o
Centro de Observação Feminina, COF. Somente em
1973, com a criação da Fundação Paulista de Promoção
do Menor, PRÓ-MENOR, e posteriormente com a criação
da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, FEBEM,
São Paulo incorporou-se definitivamente à PNBM.8
O Código de Menores de 1979 vigorou até a promul-
gação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, ins-
tituído em 1990 pela lei nº 8.069. Com o ECA, a nomen-
clatura “Liberdade Assistida” permanece; entretanto, o
caráter da medida é diferenciado, por ser, a partir de
então, considerada uma medida sócio-educativa, e não
mais uma pena. Vemos como vigiar e tratar são substi-
tuídos pelo princípio de acompanhar, auxiliar e orientar, o
que denota o caráter educativo e pedagógico da medida
— mas não se pode deixar de ressaltar que este caráter
educativo é acompanhado de uma lógica penalizadora
explícita no ECA, ao associar medida sócio-educativa a
pena9 e correlacionar ato infracional a crime.10 Além
disto, a Liberdade Assistida, sob a vigência do ECA, pre-

117
9
2006

vê um atendimento descentralizado, dando ênfase à pre-


sença de Organizações Não-Governamentais, ONGs, e
Prefeituras para a realização dos acompanhamentos.
Compõe-se assim, uma gênese que segue um mode-
lo jurídico de progresso (Liberdade Vigiada, 1927/Liber-
dade Assistida, 1979/Liberdade Assistida, 1990), privi-
legiando o aperfeiçoamento das práticas legais através
de constantes reformas das legislações. No entanto, com
o ECA, a Liberdade Assistida comporta uma caracterís-
tica muito peculiar, que emergiu na década de 1980,
nos movimentos sociais de defesa de direitos: a partici-
pação da comunidade no acompanhamento de jovens sob a
medida, consagrando experiências que nasceram nas
paróquias, nas associações de bairros, em que se desta-
ca a Pastoral do Menor.
Quando começou o trabalho com jovens sob a medida
de Liberdade Assistida (início da década de 1980), a Pas-
toral, juntamente com o Centro de Defesa dos Direitos
da Criança e do Adolescente, CEDECA, inventou uma
nova forma de acompanhamento; instaurou uma práti-
ca de libertação que visou desinstitucionalizá-los, re-
tirando-os, de certa forma, das mãos do Estado. Neste mo-
mento, ainda com a vigência do Código de Menores de 1979,
era pequeno o número dos que recebiam a Liberdade As-
sistida como medida, apesar de já ser prevista na legisla-
ção,11 devido ao enfoque em práticas disciplinares-insti-
tucionais que visavam corrigir os ditos desvios dos jovens.
Estes primeiros acompanhamentos eram realizados por
casais da comunidade que tinham envolvimento com a
Pastoral. Eles escreviam relatórios informativos a respei-
to dos jovens e do andamento de seu acompanhamento,
com o objetivo de informar ao juiz sobre todo processo de
reintegração. A experiência foi intitulada Liberdade Assis-
tida Comunitária, e a nomenclatura L.A.C. também serviu
para diferenciá-la do atendimento realizado pelo Estado.

118
verve
Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

A L.A.C. foi implementada visando “(...) completar as


ações dos técnicos da FEBEM (...),”12 com o objetivo cen-
tral de “(...) desenvolver o potencial humano do jovem,
buscando a sua realização pessoal e social e utilizando o
ato transgressão da lei num gesto construtor do seu pró-
prio projeto de vida; esclarecer e orientar o jovem sobre o
motivo da medida aplicada a ele pela Justiça, o que deve
mudar no seu estilo de vida, e os novos compromissos
que devem ser assumidos por ele para haver mudança
na sua conduta; elaborar com o jovem um projeto educa-
tivo individual — com atividades escolares, profissiona-
lizantes, esportivas, de lazer e de trabalho — capaz de
redimensionar seus hábitos e valores e reorganizar o seu
tempo; orientar o jovem sobre o seu relacionamento fa-
miliar, com os vizinhos e com outros grupos sociais.”13 A
Pastoral inseriu uma referência de atendimento que se
tornou o modus operandis para controlar jovens conside-
rados infratores em meio aberto e foi capturada como
política governamental do Estado.
Atualmente, a Liberdade Assistida segue este modelo
de aplicação, em que as ONGs estão encarregadas de de-
senvolver todo o gerenciamento da medida, informando
ao juiz o andamento de cada caso; cabendo à FEBEM efe-
tuar os convênios e fiscalizar o acompanhamento. Os jo-
vens são encaminhados, preferencialmente, às ONGs in-
seridas na comunidade de sua procedência. Então, o que
antes era uma pequena experiência local tornou-se gran-
de, universal. O acompanhamento realizado por casais
da comunidade cedeu lugar a um atendimento mais es-
pecializado, feito por técnicos em diversas áreas do co-
nhecimento — assistência social, psicologia e pedagogia
e as organizações de bairros, assim como o número de
jovens em Liberdade Assistida multiplicam-se.
Isso indica duas possibilidades: uma relativa ao dis-
curso oficial, que afirma retirar jovens internados das

119
9
2006

Unidades de Internação da FEBEM para serem atendi-


dos em meio aberto por Organizações Não-Governamen-
tais e Prefeituras; outra, a utilização da Liberdade As-
sistida como uma medida a mais a ser imposta, ampli-
ando o poder do Estado de punir.
Dados de 1996 e 2003 indicam tanto o aumento do
número de jovens internos, quanto de jovens sob a me-
dida de Liberdade Assistida. Em 1996, o número absolu-
to de internações era de 1.479,14 chegando em 2003 a
6.189.15 Em sete anos, houve um aumento de 265%. Com
relação à medida de Liberdade Assistida, constatou-se
que em março de 1996 o número de jovens atendidos
pela FEBEM-SP era de 4.705. Nessa época, como mostra
o estudo de Francisca da Silva,16 eram poucas as orga-
nizações que faziam o acompanhamento da Liberdade
Assistida: apenas a associação Dom Bosco e mais três
CEDECA’s, que atendiam, no total, cerca de 380 jovens.
Somando os atendimentos da FEBEM-SP — maior res-
ponsável na época — com os das organizações ligadas à
Pastoral do Menor, totaliza-se aproximadamente 5.085
jovens sob medida de Liberdade Assistida no ano de 1996,
enquanto que em janeiro de 2003 esse número chegou
a 13.310,17 evidenciando um aumento de mais de 141%.
Estes dados, enfim, sugerem que a Liberdade Assistida,
estrategicamente, não é um redutor da internação, mas
antes disso, um outro recurso punitivo.
De fato, houve um redimensionamento das formas
punitivas do Estado, em que a internação não desapare-
ceu. Apenas as medidas em meio aberto ganharam mais
força política e cultural. Um problema permeia esta dis-
cussão e refere-se à punição em meio aberto, prevista
desde 1927 com o primeiro Código de Menores brasilei-
ro e que, somente agora, torna-se uma prática recor-
rente e generalizada: como ela ganha essa importância
estratégica e se torna um modelo punitivo atual, já que

120
verve
Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

estamos em uma época em que proliferam expressões con-


servadoras, cobrando mais unidades de internação para
jovens, redução da idade penal e ampliação do período de
internação?
A fiscalização é uma das variáveis responsáveis pela
resolução deste problema. O suporte das novas tecnologi-
as de informação facilita esta fiscalização, proporcionan-
do um maior controle dos jovens em meio aberto através
do estabelecimento de rotinas e dos mapas geo-referenci-
ados, alimentados com dados que geram coordenadas pre-
cisas sobre locais de residência dos infratores, contribuin-
do para a implementação de novas “políticas públicas”. Con-
tudo, estas tecnologias ainda não estão completamente
disseminadas, e são implantadas, muitas vezes, como pro-
jetos piloto. Em razão disso é importante atentar para o
fato de que as tecnologias de informação são apenas ins-
trumentos de uma estratégia política de governo que colo-
ca em prática a descentralização do atendimento das me-
didas sócio-educativas em meio aberto previstas pelo ECA,
que devem ser realizadas através de convênios do Estado
com ONGs e Prefeituras, que ficam incumbidas de fiscali-
zar os jovens pobres, mas sempre sob a supervisão do Es-
tado.
Além do convênio com o governo do Estado, estas orga-
nizações também recebem verbas de investidores priva-
dos beneficiados pelo abatimento fiscal. Com isto, o custo
por jovem sob sanção é reduzido, mas seria equivocado
afirmar que a escolha por esta forma de atendimento jun-
to às ONGs seja meramente econômico, por dois motivos
distintos: primeiro, o desvio da receita fiscal para aplica-
ções filantrópicas faz com que o Estado reduza apenas os
gastos diretos com o acompanhamento dos jovens; segun-
do, além dos gastos com convênios, é importante notar
que, se o custo é reduzido por pessoa, aumenta no todo,
pois pune-se muito mais. Por essa razão não se deve di-

121
9
2006

zer, como o faz o discurso oficial, que o aumento de jovens


sob a imposição da liberdade assistida é decorrente de um
esforço político para esvaziar as unidades de internação.
Há um complemento estratégico entre as medidas, uma
união indissociável, fazendo com que o regime de inter-
nação e a medida em meio aberto acompanhem-se: há
tanto o jovem egresso que teve a Liberdade Assistida como
progressão de medida, como os que foram punidos, acusa-
dos de terem cometido uma infração leve e considerados
primários, acarretando na imposição da Liberdade Assis-
tida. A medida em meio aberto tem a internação como
seu complemento e respaldo; o jovem vive sob intensa
ameaça, pois o descumprimento da medida pode resultar
em internação. É assim que a institucionalização da Li-
berdade Assistida consolidou um novo itinerário punitivo.
Percebe-se, assim, que essa medida atualiza e dá mais
vitalidade às práticas punitivas. Onde antes se punia mui-
to, ou não se punia, cria-se uma gradação de medidas (leia-
se penas)18 para abranger todo tipo de conduta criminali-
zada. Se, antes, muitos jovens que realizassem algum tipo
de furto, utilizassem algum tipo de substância considera-
da ilegal entre outras coisas, poderiam ser soltos por não
ser viável encaminhá-los às unidades de internação, com
a Liberdade Assistida abre-se um leque de possibilidades
para impor ao jovem uma tutela. Cada tipo criminal pode
ser remetido a uma medida específica: das infrações mais
irrelevantes às consideradas mais graves (dependendo do
que for estabelecido pelo Estado como certo e errado, legal
e ilegal). Todas as infrações deverão estar cobertas, e para
cada uma, a sua respectiva medida.19 Ampliam-se as pos-
sibilidades de punir, cria-se uma gradação da punição que
se articula como estratégia política de tolerância zero.
O conceito principal da tolerância zero é punir os peque-
nos delitos para combater os grandes crimes e impedir
uma conduta desviada que não seja normalizada. A polí-

122
verve
Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

tica de tolerância zero não é apenas um aumento nos


índices carcerários, mas sim uma estratégia policial de
combate a certas condutas. Promove punições conside-
radas tolerantes, disseminando-as estrategicamente
como afirmação da necessidade da existência das pri-
sões (seja de jovens ou de adultos) para trancafiar os
considerados perigosos.
A Liberdade Assistida acoplada ao programa de tole-
rância zero redimensiona a visão acerca dos jovens.
Surge uma separação entre o que seria o jovem estru-
turado na vida do crime20 e o jovem passível de recupe-
ração. O estruturado no crime será não só o que come-
teu o ato infracional, mas também o que está envolvido
com certos valores provenientes de uma vida relacio-
nada com o mundo do crime: é um irrecuperável. Como
identificar esta proximidade do jovem com os valores
negativos da criminalidade? Através de exames psicos-
sociais, psiquiátricos e observações constantes da roti-
na e ambiente físico de residência realizados pelos téc-
nicos, tendo como um de seus objetivos a apresentação
de relatórios aos juízes para classificar o jovem. É por
meio dessas informações que o juiz assina sua senten-
ça. Termos como “revela com o seu proceder índole in-
fracional latente” e “apresenta linguagem de gíria de
marginalidade” são recorrentes nesses relatórios, com-
pondo o rol de expressões que estigmatizam o jovem
como delinqüente, e indicam sua adesão (ou recusa) aos
valores contrários dos bons valores da sociedade. Para
os considerados estruturados ou irrecuperáveis são vol-
tadas ações mais repressivas, enquanto que para os pas-
síveis de recuperação são direcionadas ações mais to-
lerantes, despenalizadoras. Assim, espera-se apartar ví-
cios de virtudes. A internação entretanto, mescla jovens
irrecuperáveis com os que ainda são possíveis de colo-
car no rumo certo, o que transforma o encarceramento
em um espaço de contaminação moral, onde os viciosos

123
9
2006

influenciam negativamente os passíveis de recupera-


ção.
Quando se faz essa separação e essa qualificação do
jovem como estruturado, delinqüente, marginal, proble-
ma, não se diz apenas o que o jovem é. O jovem qualifi-
cado é estigmatizado não só por seu ato, pelo que afir-
mam sobre ele, mas, antes, por tudo aquilo que ele não
é e deveria ser. A partir desta estigmatização pune-se e
encarcera-se por meses e até por três anos, tempo limi-
te estipulado pelo ECA.21 Entretanto, sob a concessão de
medidas de segurança, o Ministério Público tem conse-
guido “(...) aumentar o tempo de permanência do jovem
em regime de internação. Isso ocorre quando se com-
prova, por meio de laudos psicológicos, psiquiátricos e
de assistentes sociais, que se trata de um adolescente
que colocará a sociedade em risco.”22 Jovens, enfim, são
punidos pelo que podem vir a fazer.
O poder de observar e de analisar, delegado aos edu-
cadores sociais, coloca-os em posição de agentes da lei,23
que selam destinos de terceiros. Suas observações e
análises partem de uma racionalidade técnico-científi-
ca que determina o grau de periculosidade do jovem,
para com isso estabelecerem o que deve ser feito com
ele. É baseado no laudo destes técnicos que o juiz deter-
mina se o jovem permanece internado, ou se, já não
sendo mais considerado perigoso, pode ser encaminha-
do à Liberdade Assistida para continuar seu processo de
ressocialização em meio aberto. Enfim, a presença dos
técnicos atravessando todo o processo punitivo do jovem
constitui aquilo que Michel Foucault chamou de micro
tribunal.24
Nota-se assim que a sempre louvada tolerância ex-
pressa no ECA não só redesenha um novo itinerário
punitivo, mas também mantém, em termos gerais, os
mesmos objetivos: punir como forma de ressocializar. O

124
verve
Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

que se espera da Liberdade Assistida é que ela cumpra


esse papel de recolocar o jovem no rumo, já que, preten-
siosamente, ela é um espaço de reconstrução de sua
vida, e um equipamento social de sua inserção em pro-
gramas governamentais de assistência social. O acom-
panhamento realizado, seja por instituições estatais ou
não, reitera a expectativa das entidades de controle, a
fim de pacificar indisciplinas, conter rebeldias, adaptar
e integrar o jovem, tendo por meta tornar suportável o
insuportável.

Notas
1
Este artigo decorre de uma pesquisa de Iniciação Científica intitulada Liberda-
de Assistida: uma tolerância intolerável. Aconteceu com o auxílio de bolsa PIBIC-
CNPq, no período de agosto de 2003 a agosto de 2004, e faz parte do projeto
Políticas Libertadoras, Tolerância e Experimentação de Liberdade, Prodoc-CAPES.
2
Roberta Pompêo de Camargo Carvalho. A abordagem da ação educativa na
liberdade assistida sob a ótica do orientador, Dissertação de Mestrado. São Paulo,
PUC-SP, 2003, p. 19.
3
“Art. 38. Aplicar-se-á o regime de Liberdade Assistida nas hipóteses previstas
nos incisos V e VI do art. 2º desta lei, para o fim de vigiar, tratar e orientar o
menor. Parágrafo único. A autoridade judiciária fixará as regras de conduta do
menor e designará pessoa capacitada ou serviço especializado para acompanhar
o caso.” Ana Valderez A. N. de Alencar e Carlos Alberto de Sousa Lopes. Código
de Menores. Brasília, Senado Federal, 1982, p. 14.
4
“Art. 1º - Este Código dispõe sobre a assistência, proteção e vigilância a
menores: I – até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular;
II – entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei. Parágrafo único
– As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo menor de dezoito anos,
independentemente de sua situação.” Ana Valderez A. N. de Alencar e Carlos
Alberto de Sousa Lopes, op. cit. 1982, p. 9.
5
Idem, p. 83.
6
Ibidem.
7
Edson Passetti. “O Menor no Brasil Republicano” in Mary del Priori e Fer-
nando Londoño (orgs) História da Criança no Brasil. São Paulo, Contexto, 1991,
pp. 150-151.
8
Idem.

125
9
2006

9
Salete Oliveira. Inventário de Desvios – os direitos dos adolescentes entre a penalização
e a liberdade. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC-SP, 1996.
10
“Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou
contravenção penal”. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília-DF, Im-
prensa Nacional, 1997.
11
Título V – Das Medidas de Assistência e Proteção. Capítulo I – Das Medidas
Aplicáveis ao Menor. (...) Art. 14 – São medidas aplicáveis ao menor pela
autoridade judiciária: (...) IV – imposição do regime de liberdade assistida.
Código de Menores. Brasília, Senado Federal, 1982.
12
Hedwig Knist. O adolescente infrator em regime de liberdade assistida: uma reflexão
psicossocial sobre reintegração. Dissertação de Mestrado apresentada na Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 1996, p. 16.
13
Dom Luciano Mendes. “O que é a liberdade assistida comunitária (L.A.C)” in
Anote, http://www.anote.org.br/desta/index.asp?cod=51, 17/09/2002. Aces-
sado em set. 2003.
14
Dados e indicadores para análise da situação do adolescente de ato infracional no Estado
de São Paulo. São Paulo, CONANDA/FEBEM-SP, 1996.
15
Folha Online. 11/03/2005. http://www1.folha.uol.com.br/folha/especi-
al/2005/febem/perfil.shtml. Acesso em jan. 2005.
16
Francisca Silva. Liberdade Assistida, uma proposta sócio-educativa? Dissertação
de Mestrado. São Paulo, PUC-SP, 1998.
17
Folha On line, op. cit.
18
Uma primeira discussão sobre a ligação entre medida sócio-educativa e o seu
correlato, pena, foi feita no livro Violentados – crianças, adolescentes e justiça.
Edson Passetti (coord.). São Paulo, Imaginário, 1999, 2° ed.
19
Segundo o ECA, a medida de privação de liberdade não deveria ser imposta
a jovens que cometessem infrações consideradas leves, como o furto. O estudo
realizado por Enid Rocha Andrade Silva e Simone Gueresi, Adolescentes em
conflito com a lei: situação do atendimento institucional no Brasi, forneceu dados a
respeito da internação dos jovens segundo os delitos praticados. Percebe-se,
então, que muitos jovens são internados por delitos, que segundo o ECA,
deveriam receber medida sócio-educativa mais branda. Um exemplo é o alto
número de jovens internados por furto (14,8%). Enid Rocha Andrade Silva e
Simone Gueresi. Adolescentes em conflito com a lei: situação do atendimento instituci-
onal no Brasil. Brasília, s/n, 2003.
20
Essa diferenciação aparece em um estudo realizado por Nilton Ken Ota, em
pesquisa encomendada pela UNICEF. Em seu estudo, o autor faz uma reflexão
da percepção do adolescente acerca da lei. Na página 53 de seu relatório,

126
verve
Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

escreve o seguinte: “Nas entrevistas concedidas durante o levantamento explo-


ratório, alguns educadores figuraram a modalidade extremada deste tipo de
atendimento pela opinião de que certos adolescentes responderiam plenamen-
te às obrigações formais da medida por estarem conscientes do seu âmbito
coercitivo, manejando com eficácia suas prescrições, de modo instrumental e
calculado. Em contrapartida, outros educadores atribuíram o descumprimento
reiterado da medida aos já ‘estruturados’, os ‘bandidões’. Por estarem envolvi-
dos no mundo do crime, estes adolescentes desprezariam qualquer determina-
ção judicial, mesmo sabendo das conseqüências implicadas neste comporta-
mento. Em detrimento do seu sentido educativo, nestes casos, o atendimento
seria restringido ao seu aspecto punitivo”. Nilton Ken Ota. A liberdade assistida
e os sentidos da lei: a percepção dos adolescentes. São Paulo, consultoria para a
UNICEF, 2002.
21
“Art. 121, § 3º - Em nenhuma hipótese o período máximo de internação
excederá a 3 (três) anos”. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília-DF,
Imprensa Nacional, 1997.
22
Ariel de Castro Alves. Especialista se posicionam contra a redução da maioridade
penal. Agência dos Direitos da infância e Adolescência, http://www.andi.org.br.
Acessado em jan. 2004.
23
Roberta Pompêo de Camargo Carvalho, op. cit., 2003.
24
Michel Foucault. Vigiar e Punir – História da violência nas prisões. Tradução de
Taquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

127
9
2006

RESUMO

A liberdade assistida como forma de ampliação da punição aos


jovens infratores está associada à política de tolerância zero. An-
tes de ser um dispositivo ressoacializador como se apresenta, a
liberdade assistida acrescenta ao conjunto de estigmas que car-
regam jovens pobres.

Palavras-chave: Liberdade assistida, jovens, punição.

ABSTRACT

The assisted freedom as way of strengthening punishment to in-


fractions committed by youth is associated to the policy of zero
tolerance. Rather than being a device of resocialization, as it pre-
sents itself, the assisted freedom is added to the stigmas the
poor youth are condemned to carry.

Keywords: Assisted freedom, youth, punishment.

Recebido para publicação em 13 de setembro de 2005 e confirma-


do em 14 de fevereiro de 2006.

128
verve
Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

os anarquistas e as prisões: notícias de


um embate histórico1

acácio augusto*

“Fazemos nossos caminhos como o fogo suas centelhas.”


rené char

A prisão, esta criação recente, emerge em um deter-


minado momento no século XIX. Logo ela é entendida
como indispensável, mesmo para os que admitiam seu
fracasso. Torna-se, a partir de então, peça fundamental
de uma nascente economia do castigo e para o funcio-
namento de uma nova tecnologia de poder. Expressão
terminal do dispositivo disciplinar. Imagem do medo.
Sabemos disso desde as contundentes análises his-
tóricas de Michel Foucault, em Vigiar e punir. É também
a partir de Foucault que entendemos o nascimento das
prisões como efeito de lutas intermináveis. A prisão
expressa uma situação estratégica de exercício de po-

* Bacharel em Ciências Sociais, mestrando no Programa de Estudos Pós-gradu-


ados em Ciências Sociais da PUC-SP e pesquisador no Nu-Sol.
verve, 9: 129-141, 2006

129
9
2006

deres, não se trata de repressão ou ideologia, mas de


embates que se travam contra, para, pela e apesar das
prisões.2

Temos que ouvir o ronco surdo das batalhas


No momento mesmo em que esses embates se confi-
guram no velho mundo, os anarquistas emergem como
atiradores e alvo dessas novas técnicas de exercício de
poder: ao mesmo tempo em que as combatiam, eram tam-
bém alvos seus. A demolidora reflexão, em 1793, acerca
do castigo perpetrada por William Godwin (1756-1836);3 o
contra-noticiário policial dos anarquistas do La Phalange
(1836);4 o controverso escrito de Proudhon sobre a propri-
edade (1840);5 o julgamento do anarco-terrorista Émlie
Henry (1894);6 as reflexões de Kropotkin acerca das pri-
sões;7 as polêmicas levantadas por Malatesta no final do
século XIX;8 ou mesmo a profilaxia de Lombroso contra
os anarquistas,9 são todos estes fatos de batalha que os
libertários travaram contra o tribunal, lutas em que fo-
ram atiradores e alvo das prisões, do tribunal e, sobretu-
do, das técnicas de governo e do exercício das disciplinas.
Não é objetivo deste artigo fazer uma antologia des-
sas batalhas, mas é inevitável rememorá-las quando
se quer apresentar uma série de associações anarquis-
tas que em nossos dias se propõem a lutar contra as
prisões. Sobretudo quando se trata de associações que
reivindicam para si uma tradição que se inicia em 1905
na Rússia, ainda sob o governo czarista e em meio a
uma guerra civil. É neste momento específico que sur-
ge a Cruz Negra Anarquista (CNA).
No entanto, não se trata também de contar a histó-
ria dessas associações, mas a partir da notícia de sua
existência levantar a seguinte pergunta: qual a radica-
lidade da histórica oposição dos anarquistas ao sistema

130
verve
Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

penal nos dias atuais? Nesse questionamento somos le-


vados a situar como uma associação anarquista de atu-
ação planetária empreende suas práticas de resistên-
cias às prisões em uma sociedade que diversifica am-
plamente suas técnicas de exercício de poder, conforme
mostraram as reflexões que o filósofo Gilles Deleuze fez
da chamada sociedade de controle a partir das problema-
tizações estabelecidas por Michel Foucault sobre o fun-
cionamento do poder no Ocidente.10

As CNA’s
As CNA‘s compreendem diversas associações que
prestam apoio a presos no planeta, em especial pre-
sos políticos e de guerra. No Brasil praticamente ine-
xiste. Constitui-se como federação de associações au-
tônomas que se articulam, como grupos de afinida-
de,11 exclusivamente na defesa de casos.
Cada associação age na sua localidade e conta com
as demais para divulgação das suas ações. As infor-
mações entre elas são trocadas por via postal, mas
principalmente pela Internet. É desta maneira que re-
alizam uma de suas principais atividades, a CRE (Ca-
deia de Resposta de Emergência). Esta ação consiste
em enviar cartas, e-mails, fax e realizar manifesta-
ções diante de embaixadas ou outras instituições pú-
blicas, vinte e quatro horas após a notícia de uma pri-
são, como maneira de pressionar autoridades para ga-
rantir a comunicação ou mesmo a liberação de uma
pessoa presa.
Não há nenhum tipo de financiamento governamen-
tal ou privado para sustentação das CNA‘s. As associ-
ações vivem da colaboração de pessoas ligadas ao mo-
vimento, contribuições espontâneas e rendas decor-
rentes da venda de livros, revistas, jornais, camisetas,

131
9
2006

adesivos, shows e CDs produzidos por seus integran-


tes.
Como já apontado no início do texto, a primeira as-
sociação da CNA surge na Rússia, em 1905. Com a
tomada do Estado pelos bolchevistas (1917), ela se
transfere para Berlim apoiando os anarquistas perse-
guidos pela ditadura do proletariado. É extinta na dé-
cada de 1940, com a ascensão do nazismo, e ressurge
em 1960, na Inglaterra, prestando apoio a persegui-
dos pelo regime fascista de Franco, na Espanha. Des-
de 1980 diversas associações passam a ser criadas
no planeta (há associações da CNA em toda América
Latina, Estados Unidos, Europa e Austrália). Na déca-
da seguinte, ocorre sua maior difusão nas bordas dos
novos movimentos anti-capitalistas e do uso da Inter-
net como ferramenta de intervenção política.12
A atuação destas associações, que se rearticulam
nas décadas de 1980 e 1990, explicita uma atitude
radical de oposição às prisões, ao enfrentar o proble-
ma do encarceramento como um problema político, e
não como um drama pessoal, psicológico ou técnico-
jurídico. Embora ainda se filiem à argumentação pro-
filática de Kropotkin — desenvolvida em seu escrito
clássico sobre as prisões, que toma a revolução social
como panacéia para o problema do encarceramento
nas sociedades sob regime do monopólio, estatal ou
privado, da propriedade — é em meio às suas ações
pontuais de embate direto com o sistema penal que
emerge sua radicalidade, possibilitando experimen-
tações de liberdade.
É a partir desse critério que se pode destacar as
associações de Madri e Nova Jersey como as mais re-
levantes dentre todas que agem em diversas cidades
do planeta, apresentadas a seguir por meio das lutas
específicas travadas por cada uma das associações.

132
verve
Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

A nova CNA Nova Jersey


A década de 1980 marca a reativação planetária da
atuação das CNA‘s. Esta década está marcada, também,
pela expansão das políticas de superencarceramento, como
mostram os estudos de Nils Christie e Loïc Wacquant.13 A
CNA de Nova Jersey, em especial, passa a problematizar
os novos programas penais, nomeadamente o tolerância
zero estadunidense, aplicados pelos governos à direita nas
prefeituras de Detroit e Nova York, e posteriormente ex-
portados como políticas de tolerância zero para América
Latina e Europa, por partidos ligados à social-democracia.
Encontram-se no sítio da CNA Nova Jersey14 121 textos
que analisam e combatem tal política apresentado-a como
parte de uma guerra de extermínio dos indesejáveis (ne-
gros, imigrantes, moradores de rua, subversivos, etc.), para
depois apontar para uma luta objetivando estancá-la.15 Ao
se analisar os textos, partindo do tema principal de com-
bate às políticas de tolerância zero, nota-se uma proposi-
tal distinção, feita pelos autores da associação de Nova
Jersey, entre as palavras war (guerra) e struglle (luta). Esta
distinção visa apontar as políticas de Estado como uma
guerra de extermínio dos indesejáveis e as resistências a
ela como necessidade de uma luta, cujo alvo é a manuten-
ção da vida livre.
Desta maneira elas se inserem numa tradição de lu-
tas políticas do século XIX contra o exercício de poder bio-
político, que se articulava, por meio da norma, junto às dis-
ciplinas. Como sugere Foucault: “contra o poder ainda novo
no século XIX, as forças que resistem se apoiaram exata-
mente naquilo sobre o que ele investe — isto é, na vida e
no homem enquanto ser vivo. [...] Pouco importa que se
trate ou não de utopia; temos aí um processo bem real de
luta; a vida como objeto político foi de algum modo tomada
ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava con-
trolá-la.”16

133
9
2006

A intervenção contumaz da associação de Nova Jer-


sey não só coloca a discussão acerca das prisões no cam-
po político, como faz da vida o objeto de suas lutas por
libertação. Isto faz com que as reivindicações dos pre-
sos e dos que estão fora da prisão não se coloquem em
termos de Direito, mas como um embate direto contra o
Estado e seus mecanismos de regulamentação da vida
associados aos dispositivos disciplinares. Neste ponto,
é inevitável fazer ecoar a afirmação de Foucault: pouco
importa se o que orienta as lutas da CNA Nova Jersey é
a busca utópica da sociedade livre e igualitária, mas é
preciso atentar para os efeitos destes discursos nas lu-
tas contra a prisão e o sistema penal.

A CNA Madri
A CNA Madri foi dissolvida em janeiro de 2006 por pro-
blemas internos, mas suas campanhas prosseguiram por
outras regiões da Espanha. O documento que notícia sua
dissolução argumenta a incapacidade material e huma-
na (dinheiro, material, militantes, repressão da polícia)
para prosseguir as campanhas na cidade de Madri, des-
locando esforços para as associações da Galícia, Albace-
te, Barcelona e a recém criada Federação Ibérica de Asso-
ciações da Cruz Negra Anarquista, que agrega as associa-
ções existentes em Portugal.17
A principal campanha das associações espanholas, que
tinha como núcleo Madri, é a de combate a uma medida
administrativa veiculada nas prisões espanholas chama-
da FIES (Fichero de Internos de Especial Segmento).18
Campanha de expressão planetária, rendeu um embate
direto das CNA‘s com o governo espanhol, chegando a
associação de Madri ser declarada ilegal — sob a acusa-
ção de ser grupo terrorista — pelo juiz Baltazar Garzon,19
que ainda decretou a prisão de diversos integrantes da

134
verve
Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

CNA de Madri, promovendo uma caça às bruxas aos cen-


tros culturais anarquistas, de Madri e Albacete, e às
Okupas — casas ocupadas que funcionam como mora-
dia e espaço de atividades culturais dos jovens espa-
nhóis, em geral punks, anarquistas e anarco-punks.
Nestas fichas “especiais” encontram-se anarquistas,
militantes do ETA, muçulmanos acusados de envolvi-
mento com a Al Quaeda, objetores de consciência, trafi-
cantes, imigrantes ilegais e pessoas acusadas de en-
volvimento com o “crime organizado” ou supostamente
ligados a grupos políticos na prisão. O argumento de com-
bate ao FIES articulado pelas CNA`s comporta a apre-
sentação de técnicas de governo utilizadas pelo Estado
espanhol para eliminação dos indesejáveis ao produzir
um cárcere dentro do cárcere, configurando um método
de eliminação pelo isolamento e indução ao suicídio.
O FIES é definido em seu estatuto como um “regime
de vida” aplicado a um determinado grupo de presos, que
protege os outros presos não incluídos no FIES, e ao
mesmo tempo, defende a sociedade daqueles conside-
rados mais perigosos. É um regime que regulamenta e
administra a vida de terroristas e narcotraficantes re-
clusos. Não aplica a execução sumária, mas adminis-
tra a vida pela utilização da norma que define certas
categorias de presos que ameaçam a saúde e a segu-
rança da população: os presos deixam de ser considera-
dos passíveis de disciplina para serem controlados e
anulados até a morte chegar.
Trata-se de um procedimento definido como admi-
nistrativo e acoplado a uma instituição disciplinar para
fins de gestão dos conflitos e controle contínuo dos pre-
sos, cientificamente classificados como perigosos. Nes-
se procedimento de sujeição peculiar há uma positivi-
dade: diante de pessoas que são, do ponto de vista po-
lítico e produtivo, perigosas e inúteis, as técnicas de

135
9
2006

controle biopolítico — a gestão calculista da vida se-


gundo um poder que causa a vida ou devolve à morte,
como definiu Foucault20 — são experimentadas e tes-
tadas em pessoas tomadas como cobaias dos meca-
nismos de gestão e controle de vidas.
Em meio a uma escalada planetária de prisões como
Guantánamo, que escandaliza grupos de direitos huma-
nos no mundo todo, ou mesmo da existência incontesta-
da das RDD‘s (Regime Disciplinar Diferenciado) — pri-
sões de segurança máxima espalhadas pelo interior de
São Paulo — a luta infame dos anarquistas na Espanha
contra esse regime de detenção peculiar se apresenta
como uma urgência que estranhamente não encontra
eco no Brasil, onde — salvo o singular contraposiciona-
mento do Nu-Sol que alia anarquismo e abolicionismo
penal — alguns dos contemporâneos grupos e associa-
ções de anarquistas parecem estar mais preocupados em
ocupar as prateleiras do supermercado das esquerdas e
fazer manifestações com escolta policial.
Em um texto que conta a história das lutas anti-
prisionais na Espanha,21 o grupo de pessoas que pro-
duz e assina o texto como CNA ressalta que o fim da
ditadura fascista lembrou aos militantes que lutavam
contra o regime de Franco, e acabavam no cárcere,
algo que sempre esteve evidente no embate histórico
dos anarquistas com o sistema penal: todo preso é um
preso político.
O que o fim da ditadura brasileira trouxe de novo aos
grupos de luta por anistia e aos grupos que durante a
ditadura militar lutaram pela libertação de presos polí-
ticos? Esta é uma questão pertinente quando o alvo é
problematizar um discurso contemporâneo que afirma
a democracia e os direitos humanos como a superação
dos problemas vividos durante aquele período ditatorial.
Muitos destes problemas persistem e tornam-se mais

136
verve
Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

agudos na medida em que nos dias de hoje se fortalece


um discurso que afirma as políticas de tolerância zero
como a grande panacéia no campo das políticas sociais,
e encontrando diminutas resistências. Afirmar que todo
preso é um preso político é uma urgência icontornável
para qualquer pessoa, anarquista ou não, que se ocupe
do problema das prisões.

Lutas contra o sistema penal e experimetações de


liberdade
Foi sob os efeitos de hegemonia da burguesia no sé-
culo XIX que os anarquistas apresentaram-se como con-
testação radical das técnicas disciplinares e das regu-
lamentações de governo das populações. Marcaram na
história moderna seus contra-posicionamentos, expe-
rimentaram liberdades com suas práticas sediciosas,
arruinadoras das hierarquias e da autoridade centra-
lizada, e pretenderam abolir os castigos no próprio pre-
sente. Nas experiências das CNA’s, os anarquistas sem-
pre souberam fazer de suas lutas utópicas experiênci-
as heterotópicas.22
São portadores de uma tradição, reivindicada pelas
CNA‘s, que se renova nos enfrentamentos com autori-
dades. Hoje habitam outros espaços e travam conver-
sações e batalhas com práticas sociais diversas, in-
cluindo as vinculadas com as novas tecnologias eletrô-
nicas. Contudo, resistir na atualidade implica outras
intensidades que não mais apenas as experimentadas
na decadente sociedade disciplinar. É preciso estar atento
para não ser capturado na velocidade dos fluxos eletrôni-
cos e nas convocações constantes à participação.
Lutar contra o regime das penas é um estilo de vida,
uma prática cotidiana, pois a intensidade da vida é capaz
de arruinar o programa. Desse modo, “resistir também

137
9
2006

não é mais uma atitude que ocorre em lugares ou atra-


vessa a estratificação. É preciso se desdobrar velozmente.
É preciso ser intenso, virar vacúolo. (...) Se a sociedade de
controle governa pela velocidade, integrando e convocan-
do a participar, o que se exige das resistências? Elas alte-
ram velocidades. Exercitam intensidades, surpreenden-
tes ataques, a antidiplomacia: diante da negociação, o ime-
diato; diante da razão, o instintivo; diante da criação, a
invenção”.23
As CNAs travam suas lutas dentro de um campo da
reforma da sociedade. Há experimentações de liberdade,
radicalidades experimentadas em alguns momentos pe-
los que estão envolvidos nestas lutas, mas há uma limita-
ção na medida em que existe um programa societário a
ser cumprido. Uma intensa luta contra as prisões que abale
os castigos assim como as novas tecnologias de controle,
não passa pela busca de um horizonte libertador, mas pela
urgência em se liberar, no presente, dos fluxos que ar-
rastam para uma vida de servidão.
Amarradas a programas societários, as lutas contra as
prisões correm um duplo risco: de receberem o comando
Ctrl+b, isto é, serem salvas e incorporadas num programa
maior, totalizador; ou o Ctrl+Alt+Del, isto é, serem sim-
plesmente eliminadas.
Todo preso é um preso político!

Notas
1
Este artigo apresenta resultados da pesquisa de iniciação científica “Cruz Negra
Anarquista (CNA). Embates com o sistema penal: controle e experimentações de
liberdade”; apresentada, em 2005, ao Departamento de Política da Faculdade de
Ciências Sociais da PUC-SP e à Comissão de Pesquisa e Extensão da PUC-SP,
financiada pelo CNPq e premiada como melhor trabalho de iniciação científica do
Departamento de Política em 2005.
2
Michel Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis,
Vozes, 2002, pp. 195-254.

138
verve
Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

3
Willian Godwin. “Crime e punição” Tradução de Maria Abramo Caldeira Brant in
Verve, n° 5. São Paulo, Nu-Sol, 2004, pp. 11-84.
4
Michel Foucault, 2002, op. cit., pp. 228-242.
5
Pierre-Joseph Proudhon. O que é a propriedade. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa,
Editorial Estampa, 1975.
6
Jean Matrion. “Émile Henry, o benjamim da anarquia” Tradução Eduardo Maia.
in Verve n° 7, São Paulo, Nu-Sol, 2005, pp.11-41.
7
Piotr Kropotikin. As prisões. Tradução Martin La Batalha. São Paulo, Index
Librorum Prohibitorum, 2002.
8
Ver em especial Errico Malatesta. Escritos revolucionários. Tradução Plínio Augusto
Coelho São Paulo, Imaginário/Nu-Sol/Soma, 2000; Errico Malatesta. “Incompa-
tibilidade” in Francesco Saveiro Merlino & Errico Malatesta. Democracia ou anar-
quismo. Tradução Júlio Carrapato. Lisboa, Ed. Sotavento, 2001.
9
Cesare Lombroso. Los anarquistas. Tradução J.M. Domínguez. Madrid, Jucar,
1977; Michel Foucault. Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo,
Martins Fontes, 2002, pp.173-206.
10
Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” Tradução de
Peter Pál Pelbart in Conversações. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2000, pp.219-226. .
11
A noção de grupos de afinidades dentro das práticas anarquistas orienta que as
associações são formadas a partir da proximidade e preferências dos indivíduos,
garantindo que as relações entre as associações se fundem pela afinidade que cada
associação tem com as práticas anarquistas específicas. Edgar Rodrigues. Pequeno
Dicionário de Idéias Libertárias. Rio de Janeiro, CCeP Editores, 1999, pp.35-36.
Também em Murray Bookchin. “Grupos de Afinidade” in Geoorge Woodcock.
Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LPeM, 1999, pp.162-164. Um outro
uso da prática de afinidades entre os anarquistas pode ser encontrada em Edson
Passetti. “Atravessando Delueze” in Verve, n° 8, São Paulo, Nu-Sol, 2005, pp. 42-
48.
www.anarchistblackcross.org; www.nodo50.org/federacioniberica_cna/;
12

www.angelfire.com/zine/libertad/cna.html; entre outros.


13
Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução de André Telles Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 2001; Nils Christie. A indústria do controle do crime — a caminho dos
GULAGs em estilo ocidental. Tradução de Luis Leiria. Rio de Janeiro, Editora
Forense, 1998.
14
www.anarchistblackcross.org.
15
A preocupação da CNA Nova Jersey com essa seletividade racial do sistema penal
estadunidense (que não é privilégio deste) decorre, sobretudo, pelo fato de ser na

139
9
2006

sua maioria composta por ex-militantes dos Black Panters, fato evidente inclusive
pela cidade em que está localizada. www.anarchistblackcross.org
16
Michel Foucault. A vontade de saber — vol. 1 da História da sexualidade. Tradu-
ção de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio
de Janeiro. Graal, 2001, p. 136.
17
Conforme comunicado recebido por e-mail de janeiro de 2006. Os grupos de
Albacete, Barcelona e a recente CNA Ibérica, que reúne associações da Espa-
nha e Portugal, prosseguem os trabalhos descritos aqui, especialmente junto
aos presos inclusos no FIES.
18
Para cartas, escritos e documentos de combate ao FIES em espanhol, francês
e inglês, ver: www.ecn.org/breccia/dossier/;www.ucm.es/info/eurotheo/nor-
mativa/fies.htm; www.toutmondehors.free.fr/fies.html; www.ainfos.ca/01/
feb/ainfos00368.html.
19
Baltazar Garzon, iminente juiz espanhol famoso mundialmente por coman-
dar o julgamento do ditador chileno Augusto Pinochet. Chegou a ser indiacdo
ao prêmio Nobel da paz com assinatura de figuras ilustres como a do escritor
português José Saramago.
20
Michel Foucault, 2001, op. cit., pp. 127-149.
21
A discussão encontra-se no texto: “Breve história da luta contra o FIES”,
publicada no site da CNA Nova Jersey. “A transição do facismo ditatorial para
uma “democracia de Estado” no meio dos anos setenta não fez dirferença neste
ponto: a repressão continua severa, e as prisões superlotadas. A luta pela liber-
tação de presos políticos se alterou então para uma luta pela a libertação de
todos os prisioneiros e a abolição do sistema penal”. Cf.
www.anarchistblackcroos.org.
22
Para Foucault a sociedade moderna se carateriza por posicionamentos nas
relações de vizinhança dentro de grades, redes ou organogramas, os contra-
posicionamentos atravessam essas redes e estratificações, desestabilizando-as.
Isso aparece na noção de heterotopia apresentada por Foucault, Michel. “Ou-
tros espaços” in Ditos e Escritos III. Tradução de Inês A. D. Barbosa. São Paulo,
Forense, 2001, pp. 411-422. Essa noção é utilizada por Edson Passetti para
problematizar práticas anarquistas, entendendo-as como contraposicionamen-
tos heterotópicos. Edson Passetti. “Heterotopias anarquistas” in Verve, n° 2,
São Paulo, Nu-Sol, 2002, pp. 141-173.
23
Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003, p.
251.

140
verve
Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

RESUMO

A Cruz Negra Anarquista (CNA) é uma associação que emerge em


1905 na Rússia e existe até hoje em diversos países. A atuação de
suas associações mais expressivas, locadas em Nova Jersey e
Madri, é problematizada diante do histórico embate dos anarquis-
tas contra a prisão, o sistema penal e Direito.

Palavras-chave: Prisões, Cruz Negra Anarquista, abolicionismo


penal.

ABSTRACT

The Anarchist Black Cross is an association that emerged in 1905


in Russia and still exists today in several countries. Its most
expressive associations, located in New Jersey and Madrid, are
problematized before the historical anarchist struggle against pri-
son, the penal system and the law.

Keywords: Prisons, Anarchist Black Cross, penal abolitionism.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmado


em 6 de março de 2006.

141
9
2006

contingentes de homens inúteis

edson lopes*

Em 2001, quando da adoção da Declaração Universal


da Diversidade Cultural o diretor geral da Unesco, Koïchi-
ro Matsuura , expressou a esperança de que um dia esse
texto adquirisse mais força do que a Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos. Esta esperança, pretende ain-
da sustentar-se sobre o universalismo moral dos direi-
tos humanos, como condição indispensável para a cons-
trução da dignidade do homem, que desde o preâmbulo
da constituição da Unesco de novembro de 1948, apóia-
se na difusão da cultura e da educação para a justiça, a
liberdade e a paz.
Entre a Constituição da Unesco e a Declaração Uni-
versal da Diversidade Cultural, há algumas dezenas de
outras declarações, compromissos, pactos, conferênci-
as e convenções, que programam uma regularidade, a
que Salete Oliveira chamou de “exercícios ordinários”:
a educação, a difusão, o compromisso, a responsabilida-
de, a conscientização, sensibilização, fomentação, pro-

* Edson Lopes é mestrando do Programa de Estudos Pós Graduados em


Ciências Sociais da PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol e bolsista CNPq.

verve, 9: 142-149, 2006

142
verve
Contigentes de homens inúteis

teção, consolidação e definição de políticas. Exercícios


que se repetem através de instituições, recomendáveis
à linguagem, aos corpos e aos fluxos difusos de comuni-
cação. Segundo a autora os documentos se endereçam
uns aos outros, prenunciam-se, refazem um circuito de
presença e lembrança, “a naturalização de seu discur-
so rarefeito”1. Neste movimento de regularidades e “na-
turalização”, desde a década de 1940, a UNESCO, des-
ponta como o espelho de promessas de melhores garan-
tias para a paz. Neste sentido, paz é um clima de
segurança, um conjunto de condições, que abarcam a
garantia dos direitos humanos, justiça, tolerância, igual-
dade política e diversidade cultural; uma programática
para a idéia de paz realizar-se enquanto concreto, na
ausência de guerra ou solução violenta de conflitos,
numa constelação histórica que não é o hoje.
Traduz-se segurança como condição que exerce im-
pacto tanto no sistema que sustenta a sociedade como
também a vida no planeta. Segundo Bauman, “a segu-
rança na qual nos preocupamos, da qual somos adverti-
dos, encorajados e preparados para temer, enquanto os
poderes constituídos nos prometem que será garantida,
não é mais a que Roosevelt ou Beveridge tinham em
mente”. Não é a segurança de nosso lugar na socieda-
de, da política de seguros contra riscos inevitáveis numa
economia capitalista, da dignidade pessoal, da honra pelo
trabalho, do pleno emprego, do auto-respeito, da com-
preensão e do tratamento humanos, “mas a segurança
do corpo e das posses pessoais”2; ainda, completa Pas-
setti, a segurança por ações que são capazes de “garan-
tir certa restauração do planeta diante do reconheci-
mento do inevitável estrago proporcionado pelo capita-
lismo e o efêmero socialismo estatal”.3
O que era combatido por Roosevelt e Beveridge, eram
calamidades, pestes, aflições, sofrimentos, doenças,

143
9
2006

misérias, imundícies, ignorância, demasiadamente


concretos, “que se colocavam entre as pessoas e as suas
chances de uma vida decente”.4 As estratégias utiliza-
das no pós-guerra, para se enfrentar o desemprego, as
destituições, as exclusões e degradação social obstina-
vam-se na regular definição da dignidade. De outro
modo, ao passo que o episódico Estado Social abre as
alas ao Estado Penal, os “riscos” e “vulnerabilidades” tor-
naram-se os motes para uma economia das penas.
Riscos e vulnerabilidades são invisíveis, são traços
de cálculos, traços comparativos, deduções estatísticas,
índices, fontes de tutelas informáticas, que se colocam
entre as pessoas e suas chances de viver tranquilamen-
te, exigente de grande dose de prevenção. O tema da
vulnerabilidade, no campo das investigações biológicas
e ecológicas é equacionado através de escalas de inter-
ferências na biodiversidade e ecossistemas. Portanto, a
segurança ecológica opera suas condições marcadas por
vulnerabilidades naturais que impactam a sobrevivên-
cia das espécies, reivindicando controle e prevenção.
Seja na vida social ou natural, a vulnerabilidade apre-
senta-se como perigo potencial, situação alarmante,
associada a comportamentos e impactos que ameaçam
a consolidação das condições propícias e que pretendem
abarcar a totalidade da vida. O direito, sob a forma de
justiça de Estado, opera a condição prioritária da justiça
capaz de garantir a tranqüilidade social, diversidade
cultural e biológica como condições próprias e univer-
sais à segurança.
Em “O Nativo Relativo”, ao demonstrar a inquietação
dos antropólogos em relação à identidade e destino da
antropologia, “o que ela é, se ela ainda é, o que ela deve
ser, se ela tem o direito de ser, qual é seu objeto próprio,
seu método, sua missão, e por aí afora”;5 ao definir que
cultura, sociedade e natureza redundam no mesmo e

144
verve
Contigentes de homens inúteis

são noções que não designam o objeto da antropologia e


sim seu problema, ao questionar a tradição do nativo e
introduzir a variação das relações sociais enquanto ob-
jeto da antropologia, Viveiros de Castro, introduz uma
série de implicações éticas e políticas em favor da no-
ção imanente de problema. Não se propõe a interpretar
o pensamento pelo ponto ancorado da equivalência cul-
tural, mas realizar uma experimentação com ele. Não
dialoga. Não coleta visões de mundo, porque não há
mundo pronto para ser visto. Esta experimentação, além
de problematizar o estado de arte da antropologia, forne-
ce elementos singulares para a problematização do tema
do diálogo cultural e do imperativo moral da diversidade
cultural como política de Estado, acenando para direitos
exclusivos.
A participação, como ato, insere-se atualmente numa
interface de fluxos, exigida como um estatuto vital de
cidadania. É preciso, gerir, criar, administrar, reformar,
opinar, delatar, interferir, manifestar, monitorar, nu-
merar, fixar, etc. Ou seja, a participação exige e acomo-
da para a interlocução diplomática.6 A noção de diálogo
que acomoda-se nesse veio, apontando para a virtude
do consenso e o respeito à diferença, segundo Viveiros
de Castro, encerra uma vantagem estratégica, uma
vantagem epistemológica, a razão que outra razão des-
conhece, explica e interpreta, traduz e introduz, textua-
liza e contextualiza, justifica e significa. “Mas o que
aconteceria se o tradutor trair sua própria língua?”7
O referencial da diversidade cultural, fundado no di-
álogo e na interface diplomática, sustenta-se na noção
transcendente do contexto, seja ecológico, econômico,
político (indispensáveis para efeitos comparativos) e pri-
vilegia uma convergência referencial universal, o posi-
cionamento multiculturalista, como reação ao monocul-
turalismo ou etnocentrismo. Discriminação diretamen-

145
9
2006

te associada a uma vocação da Europa ocidental funda-


da nas suas conquistas que direcionariam a hierarquia
das relações entre homens e sociedades.
Diferenças são reconhecíveis, assaltam-nos como
surpresas, maravilhas, medos. Dorothea Voegeli Pas-
setti, alerta para o equívoco de se reduzir o etnocentris-
mo a uma atitude exclusivamente européia ou branca.
“Trata-se de uma forma generalizada do enfrentamento
com os outros, que ultrapassa o “nós” uniformizador oci-
dental”.8
O enfrentamento e o reconhecimento do outro, em-
bora atravessado por uma atitude relativista, pronta para
dar o mesmo peso a todas as coisas, ainda assim, carac-
terizaria uma forma aparentemente oposta ao etnocen-
trismo, lidando de forma cordata com diferenças reple-
tas de preconceitos. O relativismo diz: tudo vale a mes-
ma coisa, todas as diferenças se equivalem. Ainda que
alguns críticos visualizem a postura relativista como
incapaz de reduzir o etnocentrismo, recaem na defesa
do reconhecimento e reconstrução de categorias de
identificação, refazendo o itinerário que irá do diálogo à
tolerância, das políticas multiculturais à política de to-
lerância, à tolerância zero.
Enquanto fonte valiosa para se moldar o futuro, o
multiculturalismo, pode ser visto como um terreno de
luta tendo em vista a reformulação da memória históri-
ca, da identidade nacional, da representação individu-
al, social e política, bem como da política da diferença.9
A partir dos EUA a expansão do tema multiculturalista
se deu na confluência das lutas dos negros por direitos
civis na década de 1960, favorecendo a emergência das
ações afirmativas, relativas a minorias capazes de maio-
ria (consenso, acordo e direitos visando a universais),
mulheres, índios, negros, homossexuais, etc. Também,
virou um novo quadro de estudos, compondo na década

146
verve
Contigentes de homens inúteis

de 1970, currículos de universidades como San Fran-


cisco State University, Havard, Yale e Columbia. E, se-
gundo Luiz Alberto Oliveira e Petronilha Beatriz, “a arte
foi e será o veículo mais privilegiado do multiculturalis-
mo”10, haja visto o filme Filadéfia, Faça a Coisa Certa de
Spike Lee e o recém Oscar de melhor filme, Crash de
Paul Haggis. No Brasil, as ONGs foram as responsáveis
pela implementação das teses e projetos multiculturais,
embora as universidades tenham criado programas sen-
síveis ao estudo da temática. Desde o final da década de
1980 o debate sobre o multiculturalismo estava muito
ligado à forma como estava sendo realizado no campo
educacional brasileiro, já que estava em foco no período
a constituição dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
O referencial multiculturalista exige a construção
da categoria “outro”, uma identidade a priori. Como o
mostra Martuccelli11, o que está em jogo é sempre uma
articulação entre a identidade e o político.
O reconhecimento do viver na insegurança, disse-
mina vulnerabilidades escaladas hierarquicamente,
naturaliza a periculosidade enquanto fonte de crimina-
lidade, deita as cartas do mapeamento, levantamento e
reconhecimento das anomias e profilaxias, numa pai-
sagem povoada de outros, formando setores de popula-
ção (internas ou estrangeiras, confinadas ou em vista
de reaquisição de antigos territórios) visados de alguma
maneira, criminalizados, descartados e vivos enquanto
participativos. O perigo potencial, associado a compor-
tamentos e situações, acena ao reconhecimento do ou-
tro entre o ressentimento e a compaixão. “São precisos
exercícios ordinários para que uma cultura grandilo-
quente subsista e sustente relações assimétricas.”12
Pequenos hábitos repetitivos, paixões pelo poder, com-
paixões, ressentimentos, indignações, simplicidade,
vontade de reformar, proporcionalidades, relativismo,

147
9
2006

participação, gestão, educação, inculcação... que digam


respeito ao convívio, à saúde, à justiça, à liberdade polí-
tica, preservação dos ecossistemas, para que tudo vire
costume e afine no interior da globalização. O que não
suspende de modo algum a importância vital que a mor-
te, o racismo, o isolamento e os micros fascismos exer-
cem no equacionamento dos medos.

Notas
1
Salete Oliveira. “A grandiloqüência da tolerância, direitos e alguns exercícios
ordinários” in Verve, vol. 8. São Paulo, Nu-Sol, 2005, p. 279.
2
Zygmunt Bauman. Europa. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 2006, p. 84.
3
Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Editora Cortez,
2003, pp. 47-48.
4
Zygmunt Bauman, 2006, op. cit., p. 85.
5
Eduardo Viveiros de Castro. “O nativo relativo” in Mana. Rio de Janeiro, vol.
8 abril de 2002, p. 6.
6
Edson Passetti, 2003, op. cit., p. 2.
7
Eduardo Viveiros de Castro, 2002, op. cit., p. 6.
8
Dorothea Voegeli Passetti. “Intolerável tolerância intolerante” in Edson Pas-
setti e Salete Oliveira (orgs). A tolerância e o intempestivo. São Paulo, Ateliê
Editorial, 2005, p. 205.
9
V. R. Silvério. “O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora.” In
Revista Brasileira de Cultura, vol. 94, nº 5. Rio de Janeiro, 2000, p. 86.
10
Luiz Alberto Oliveira Gonçalves & Petronilha Beatriz Gonçalvez e Silva.
“Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a porpostas e políticas” in
Educação e pesquisa, vol 29, nº 1. São Paulo, janeiro/junho de 2003, p. 20.
11
D. Martuccelli. “As contradições políticas do multiculturalismo“ in Revista
Brasileira de Educação. São Paulo, maio/agosto de 1996.
12
Salete Oliveira, 2005, op. cit., p. 287.

148
verve
Contigentes de homens inúteis

RESUMO

A diversidade cultural e biológica, enquanto conteúdo que atuali-


za a programática para a realização da paz e da segurança no
planeta, reivindica ao mesmo tempo prevenção e controle, e multi-
culturalismo como reação ao monoculturalismo. Conteúdo concei-
tual que embora tenha reconhecidas suas limitações, recorrem a
aperfeiçoamentos e ao reforço do itinerário que vai do diálogo cul-
tural à tolerância, das políticas multiculturais às políticas de tole-
rância.

Palavras-chave: multiculturalismo, segurança, controle.

ABSTRACT

The cultural and biological diversity, as the content that updates


the program for the realization of peace and security in the planet,
claim at the same time prevention, control, and multiculturalism as
reaction to monoculturalism. Conceptual content that although its
limitations are recognized, reach out to improvements and to the
emphasis on the itinerary that goes from cultural dialogue to tole-
rance, from multicultural policies to policies of tolerance.

Keywords: multiculturalism, security, control.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmado


em 13 de março de 2006.

149
9
2006

tolerância e conquista, alguns itinerários


na declaração universal dos direitos
humanos

salete oliveira*

a conquista da tolerância e a natureza humana, estes


universais
Se fosse possível indicar um território, tornado frase,
capaz de condensar o ponto de convergência do discurso
moderno e contemporâneo acerca da tolerância, seria este:
a tolerância é uma conquista. Se fosse possível apontar
um domínio no qual este território, do século XVII ao XXI,
refestela-se no discurso em defesa da tolerância, seria
este: a conquista de direito. Se fosse possível tocar no cam-
po discursivo da tolerância no qual o domínio se constitui
a partir do território, seria este: a natureza humana. Mas
como na história não há “se”, é preciso ir de encontro ao
espaço de enfrentamento deste território, domínio e campo,1
lá onde eles se fazem rasteiros e brutais, imperceptíveis e

* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora-pesquisa-


dora na PUC-SP pelo Prodoc-CAPES.

verve, 9: 150-168, 2006

150
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

legíveis, ordinários e grandiloqüentes: na educação para


a obediência.
O cultivo do medo ao castigo é a base da educação para
a obediência. Ao contestá-la Godwin, no século XVIII, afir-
ma que a questão da punição talvez seja a mais funda-
mental da ciência política.2 Sua análise mordaz sobre o
castigo descreve como a prevenção assume o nome de jus-
tiça penal, ou punição. A falácia da prevenção geral resi-
de, segundo ele, em seu próprio efeito reverso de eficácia,
ao converter quase todos em uma massa de covardes. A
covardia tornada obediência.
O deslocamento do direito penal clássico para o moder-
no, além de compor uma das procedências da prevenção
geral mostra-se como um dos efeitos da humanização das
penas presente no discurso dos reformadores do século
XVIII, ao defenderem a individualização e proporcionali-
dade da pena ao delito, concomitante à gestação da prisão
moderna e imediata constatação de seu fracasso. Prou-
dhon, no século XIX, atento a estes efeitos realiza uma
crítica demolidora para o momento em que vivia e pre-
sentifica a prática abolicionista como uma das atualida-
des vigorosas da atitude anarquista.
“O crime faz a vergonha e não o cadafalso, diz o provér-
bio. Apenas por isso, pelo fato do homem ser punido mes-
mo que o mereça, ele se degrada: a pena o torna infame
não em virtude da definição do Código Penal, mas por cau-
sa da falta que motivou a punição. O que importa pois a
materialidade do suplício? O que importam todos os siste-
mas penitenciários? O que fazeis deles é para satisfazer a
vossa sensibilidade, mas eles são impotentes para reabi-
litar o infeliz que vossa justiça golpeia. O culpado, uma vez
dobrado pelo castigo, é incapaz de reconciliação; sua man-
cha é indelével e sua danação eterna. Se as coisas pudes-
sem ocorrer de outra maneira, a pena deixaria de ser pro-

151
9
2006

porcional ao delito e não seria mais do que uma ficção,


não seria nada.”3
A atualidade das análises de Godwin e Proudhon se
encontra, também, em incidir sobre o próprio princípio
da tolerância que exige uma relação assimétrica de co-
mando do superior e obediência do inferior. Neste sen-
tido, ambos explicitam os efeitos de direitos, descober-
tas, submissões e extermínios provenientes da tolerân-
cia como conquista.
A tolerância é uma conquista. Assertiva regular que,
desde Voltaire4, Locke5, Stuart Mill6 e Kant7, dentre ou-
tros, não cessou de respaldar o discurso moderno da to-
lerância. Forma segura para justificar a necessidade
de sua existência, a partir de uma ausência a ser pre-
enchida pela educação para a obediência.
Para Voltaire a tolerância não sendo um atributo
natural é um valor moral que deve ser aprendido e in-
corporado pela alma, na educação dirigida a uma natu-
reza fraca como resposta ao fanatismo; em John Locke
a educação, distinta para governantes e governados,
deve ser pautada por uma conduta da tolerância sob os
pressupostos de democracia, pluralidade e liberdade de
fazer o que a lei não proíbe; em John Stuart Mill na edu-
cação correlata à instrução geral utilitária na qual o
aprendizado do sentimento da tolerância cumpre a fun-
ção de controle social e pauta as intervenções morais e
legais no interior de uma comunidade civilizada.
Em Voltaire, Locke e Mill a tolerância iluminista,
assume, respectivamente, a conotação educadora de
valor moral vinculado ao Estado; de conduta pluralista
com separação entre religião e comunidade política con-
jugada à instrução formadora de governantes e gover-
nados; de controle social na comunidade civilizada. En-
tretanto, é com Kant que a tolerância ganha seu atribu-

152
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

to de maioridade universal. Ao perguntar “quem somos


nós” Kant condiciona a emancipação para a maioridade
a partir do sujeito esclarecido, capaz de distinguir entre
o uso privado da razão — o cidadão que, mesmo discor-
dando, obedece aos mecanismos sociais para responder
aos interesses da comunidade — e o uso público da razão
— o homem que expõe suas concordâncias e discordân-
cias publicamente. Logo, a liberdade que leva ao esclare-
cimento vincula-se à atitude do homem enquanto sujei-
to racional e não enquanto membro de um determinado
grupo social, pois o uso da razão vincula-se, com Kant ao
conceito de hospitalidade.
Independente de a natureza humana ser boa ou má,
não faz parte dela ser tolerante, logo a tolerância deve
ser uma conquista do homem. Contudo, ela só passa a
sê-lo como um direito a conquistar pelo homem esclare-
cido de Kant. Na assertiva grandiloqüente a tolerância
nasce da falta cujo pressuposto universal é a natureza
humana que passa a ter como meta o direito. O projeto
de paz mundial em Kant alçado por meio do esclareci-
mento exige que também o direito ganhe maioridade na
universalização do direito dos povos, hospitalidade aco-
plada ao cosmopolitismo.
A tolerância é uma conquista do direito e de direito. O
pressuposto metafísico do campo (a natureza humana)
constituiu a preposição do domínio universal (a conquista
de direito) por meio da ausência de território (a tolerância
é uma conquista). É assim que a conquista de direito se
amplia para sua própria maioridade. Não se tratará mais,
tão somente dos direitos do homem e do cidadão, consa-
grados na Declaração de 1789, mas da universalização dos
direitos humanos, prescrita na Declaração de 1948, que
atualizará o projeto de emancipação kantiano. O brilho
reluzente iluminista da tolerância veio traduzir-se na
maioridade do domínio jurídico-político da humanidade.

153
9
2006

O que o registro da lei, seu texto escrito em sua im-


ponência legível explicita reside nos gestos que só se
tornam imponentes quando nas miudezas cotidianas
explicitam esta vontade de verdade do humano acompa-
nhada da vontade do pequeno e do grande julgamento.8
Para a tolerância conquistar esta grandeza equiva-
lente ao humano maior, convém abordar, de forma bre-
ve, uma cartografia etimológica do próprio termo tole-
rância apresentada por Daniel Lins.9 O autor em seu
texto aponta para a possibilidade de uma tolerância rizo-
mática diante da tolerância arborescente. Para efeito des-
ta análise específica interessa apenas deter-se nesta
última.
Segundo ele, a idéia de tolerância surge tarde no oci-
dente, por volta do século XII, e emerge do termo into-
lerância, do latim intolerabilis. O autor brinca: no come-
ço era a intolerância. O sentido de tolerável aparece dois
séculos mais tarde e o registro do verbo tolerar, de acor-
do com Antonio Houaiss, no século XV e o da palavra
tolerância no XVII.
Lins mostra que a tolerância como conceito surge no
século XVII com Espinosa em seu Tratado teológico, no
qual propõe uma “nova ética independente e tolerante”
— uma rebelião contra a moral religiosa da época —
que viria a ser revisitada por John Locke. Montesquieu
por sua vez, ao articular sua teoria acerca da separação
dos três poderes, segundo Lins, imprimiria maior prag-
matismo ao escopo teórico de Locke. Mas não só, os filó-
sofos do iluminismo, principalmente Voltaire, em sua
defesa da tolerância concluíam que “o humano, dotado
de razão, compreenderia a necessidade desse ideal e o apli-
caria. Ao combinar as teorias da democracia à tolerân-
cia, chega-se à Declaração dos Direitos Humanos, do
cidadão e da democracia liberal. (...) Tolerância: ato ou
efeito de tolerar; indulgência, condescendência; tendên-

154
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

cia a admitir nos outros modos de agir e sentir diferen-


temente o mesmo, diametralmente opostos às nossas;
o adjetivo tolerante (1789) é assim definido por Houaiss:
que tolera, que desculpa certas falhas e erros.”10
Após apresentar um rol de definições etimológicas à
palavra tolerância — reter-se, conter-se, no grego anti-
go; aturar, suportar, sofrer, sentido encontrado na mai-
oria das línguas; perdoar, nos idiomas árabes e turco;
permitir nas línguas orientais, dentre outras — o autor
sublinha que a maior parte das definições alocam a to-
lerância no âmbito da não-violência e a situam no âm-
bito da passividade e do conformismo, o dever de tole-
rância. Provém daí a definição oficial aceita e difundida
tanto pela UNESCO como pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948.
Lins fornece, em sua análise acerca do dever da to-
lerância, uma receita bem humorada e corrosiva da pró-
pria tolerância: “um gesto de desprezo, uma pitada de
caridade, um punhado de hipocrisia, uma suspeita de
cinismo, uma nuvem de presunção, uma camada de
consentimento: eis a composição química da tolerân-
cia.”11
Diante de tal receita é inócuo pleitear o direito da
tolerância em detrimento do dever da tolerância, pois
ambos são complementares e já estavam dispostos à
mesa. A tolerância é uma conquista. A tolerância é uma
conquista de direito e do direito.

a tolerância e os direitos universais, este espírito da


reforma
A defesa da tolerância naturaliza o direito, cujo ápi-
ce aloca-se no Estado e na Lei, naturalizando-se, simul-
taneamente, castigo e recompensa como forma de res-
tauração do direito violado. Este campo discursivo indi-

155
9
2006

ca, para uma perspectiva analítica, a possibilidade de


mapeá-lo de forma breve por três itinerários, conecta-
dos a trechos presentes na Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos, respectivamente: o da origem do huma-
no; o da falta no humano e o da diversidade do humano.
O itinerário da origem do humano — e que se mostra
matriz para o desdobramento dos itinerários seguintes
— parte do conceito de natureza humana, cuja condição
imperfeita justifica a necessidade de uma mediação
superior para atingir a verdadeira humanidade. Neste
caso, a imperfeição não só constituiu um dispositivo
político para fundamentar as teorias do contrato como
atualiza sua instrumentalidade, operando pelo referen-
cial de soberania ao transitar pela cisão inequívoca en-
tre os estados de guerra e os de paz.
É pertinente retomar, ainda que de forma pontual,
as críticas contundentes de Godwin e Proudhon às teo-
rias do contrato.12 Em Godwin os homens se associam
em função da ajuda mútua, entendida como reciproci-
dade. Logo o surgimento do governo é um produto da
moral, não de um contrato, e exige sempre submissão
pela força ou pelo consentimento. Em Proudhon, o con-
trato não passa de uma criação, de literatura, pois um
contrato diz respeito a um acordo entre dois indivíduos
e sempre em torno de um objeto específico. Não há con-
trato universal uma vez que não existe objeto univer-
sal.
Foucault ao dar adeus às teorias de soberania, mos-
trou como elas pertencem à construção filosófico-jurídi-
ca da grande origem, que opera a cisão entre os estados
de guerra e os de paz. A teoria da soberania se apóia em
um tríplice primitivismo: o do sujeito que deve ser su-
jeitado, o da unidade do poder que deve ser fundamenta-
da e o da legitimidade da lei que deve ser respeitada.13

156
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

No itinerário da origem do humano o preâmbulo da


Declaração assume o estatuto não só do grande come-
ço, o ponto de origem gloriosa que reafirma duplamente
a natureza digna, seja a humana, seja a da humanida-
de do documento.
“Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade
inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo.
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos
direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ul-
trajaram a consciência da humanidade e que foi procla-
mado, como a mais alta aspiração do homem comum, o
advento de um mundo em que os seres humanos, livres
do medo e da miséria, gozem da liberdade de palavra e
da liberdade de crenças.
Considerando essencial promover o desenvolvimen-
to de relações amistosas entre as nações.
Considerando que os povos das Nações Unidas rea-
firmaram, na carta, sua fé nos direitos humanos funda-
mentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e
na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e
que decidiram promover o progresso social e melhores
condições de vida em uma liberdade mais ampla.
Considerando que os Estados-membros se comprome-
tem a promover, a cooperação com as Nações Unidas, o
respeito universal aos direitos humanos e liberdades
fundamentais e a observância desses direitos e liber-
dades é da mais alta importância para o pleno cumpri-
mento desse compromisso, a Assembléia Geral procla-
ma a presente Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos

157
9
2006

e todas as nações, como objetivo de cada indivíduo e cada


órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta De-
claração, se esforce, através do ensino e da educação,
por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,
pela adoção de medidas progressivas de caráter nacio-
nal e internacional, por assegurar seu conhecimento e
sua observância universais e efetivos, tanto entre os
povos dos próprios Estados-membros, quanto entre os
povos dos territórios sob sua jurisdição.”14
O preâmbulo não só aloca-se na origem da própria
natureza humana como, também exige que é preciso
reescrever sua verdade, qualificar, esquadrinhar o hu-
mano naquilo que o identifica. A natureza humana as-
sume neste momento o valor equivalente ao do próprio
documento, no qual o preâmbulo prepara a entrada em
cena para seus 30 artigos. A grandiloqüência da lei se
imiscui no discurso cotidiano e ordinário que passará a
inflacionar os ouvidos por meio das incontáveis reco-
mendações, convenções, decretos, projetos, denúncias,
reformas. O humano reformado: a pessoa humana, a dig-
nidade da pessoa humana.
“Artigo 1°. Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência, por isso devem agir fraternalmente uns
com os outros.”15
“Artigo 3°. Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade
e segurança pessoal.”16
“Artigo 6°. Todo ser humano tem o direito de ser, em
todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a
lei.”17
Os seis primeiros artigos da Declaração trafegam de
forma insistente no itinerário da origem do humano. É
como se fossem, simultaneamente, o elogio ao preâm-
bulo e a condensação do desdobramento dos demais ar-

158
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

tigos. Contudo esta multiplicação da origem sedimenta


o destinatário ao qual, não apenas o humano, mas a
pessoa humana se remete para se familiarizar; acredi-
tar-se viva e livre se segura e, por fim, se reconhecer: a
lei.

a tolerância e o julgamento, esta uniformidade


O itinerário da falta no humano — que se desdobra do
anterior mostra-se como a conexão necessária entre o
primeiro e o terceiro itinerário (o da origem do humano e
o da diversidade do humano) — parte da afirmação de au-
sência de tolerância no homem, devido à sua natureza
fraca. E é diante dela que se estabelece uma outra neces-
sidade mediadora vinculada à sua própria libertação. Para
libertar-se de sua fraqueza o verdadeiro homem necessi-
ta de uma razão de julgamento superior e universal.18
O sexto artigo da Declaração, por sua vez, opera a pas-
sagem não apenas para os subseqüentes como se torna o
ponto de inflexão entre o itinerário da origem do humano
e o da falta no humano. Do sétimo ao décimo primeiro
artigo a ausência na natureza humana (tolerância) passa
a ser preenchida pela razão de julgamento, tanto para su-
prir a falta como para julgá-la.
Trata-se do incremento penal que vem fortalecer a idéia
de tribunal humano, entendido a partir de então dupla-
mente: o grande tribunal do mundo e a disseminação de
tribunais no mundo. E como o direito não sobrevive sem a
reinvenção da vítima, esta é o suporte necessário para
que se parta dela a fim de se concentrar, demoradamen-
te, no seu duplo inerente, o algoz.
“Artigo 7°. Todos são iguais perante a lei e têm direito,
sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm
direito a igual proteção contra qualquer discriminação que

159
9
2006

viole a presente Declaração e contra qualquer incitamen-


to a tal discriminação.
Artigo 8°. Toda pessoa tem direito a receber dos tribu-
nais nacionais competentes remédio efetivo para os atos
que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reco-
nhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo 9°. Ninguém será arbitrariamente preso, detido
ou exilado.
Artigo 10°. Toda pessoa tem direito, em plena igualda-
de, a uma justa e pública audiência por parte de um tribu-
nal independente e imparcial, para decidir de seus direi-
tos e deveres, ou do fundamento de qualquer acusação
criminal contra ele.
Artigo 11°.
1- Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o di-
reito de ser presumida inocente até que sua culpabilidade
tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento
público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as ga-
rantias necessárias à sua defesa.
2- Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou
omissão que, no momento, não constituíam delito peran-
te o direito nacional ou internacional. Também não será
imposta pena mais forte do que aquela que, no momento
da prática, era aplicável ao ato delituoso.”19
A partir do que falta no humano, a Declaração define a
falta humana, o erro o desvio, o crime. O crime de lesa-
sociedade e lesa-humanidade, diante do qual a própria
Declaração é a primeira vítima. Neste circuito o tribunal
passa a ser o território do direito no campo punitivo uni-
versalizado, cujo parâmetro econômico-político sedimen-
ta o domínio da conquista de direitos. O regime do castigo
encontra sua pacificação na formalidade da aplicação do
procedimento.

160
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

a tolerância e a educação, esta obediência


O itinerário da diversidade do humano — forma mo-
bilizadora mais atual dos dois itinerários anteriores
(o da origem do humano e o da falta no humano), ao
redimensionar a diferença na uniformidade 20 — exi-
ge a garantia do pluralismo, congregando o elemento
multicultural. A meta a ser atingida é o julgamento
neutro e total que condense a expressão do humano
verdadeiro.
A educação, neste caso, constitui o espaço privile-
giado de investimento para uma cultura da paz com
base na tolerância. Trata-se de uma educação espe-
cífica com estatuto de universalidade firmada em um
tríptico: paz, direitos humanos e democracia. O plura-
lismo o atravessa, oficialmente, como o grande tema
transversal capaz de conectar a neutralidade pragmá-
tica do relativismo cultural e diversos projetos liber-
tadores vinculados à instituição de novas identidades,
com o objetivo de harmonizar conflitos.21 A defesa da
tolerância neste campo discursivo incide no espaço da
educação para a obediência como uma ética do futu-
ro.22 O humano verdadeiro.
Se por um lado a Declaração dos Princípios da Tole-
rância de 1995 é o documento maior que explicita de
forma acabada o itinerário da diversidade no huma-
no, por outro só o faz embasada no espírito da reforma
que é o animador privilegiado das soluções e dos prin-
cípios universais reafirmados pela ONU em 1948.
Embora o valor tolerância atravesse a íntegra da De-
claração Universal dos Direitos Humanos apenas uma
única vez o termo tolerância é citado; precisamente no
artigo que se refere de maneira pontual à educação
igualada à instrução.
“Artigo 26.

161
9
2006

1- Toda pessoa tem direito à educação. A instrução


será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fun-
damentais. A instrução elementar será obrigatória. A
instrução técnico-profissional será acessível a todos,
bem como a instrução superior, esta baseada no méri-
to.
2- A instrução será orientada no sentido do pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do forta-
lecimento do respeito pelos direitos do ser humano e
pelas liberdades fundamentais. A instrução promove-
rá a compreensão, a tolerância e a amizade entre to-
das as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadju-
vará as atividades das Nações Unidas em prol da ma-
nutenção da paz.
3- Os pais têm prioridade de direito na escolha do
gênero de instrução que será ministrada a seus fi-
lhos.”23
Eis aí a expressão do pluralismo, cujos efeitos re-
produzem uma cultura da semelhança. Para garantir
a diversidade é preciso fazer o outro parecer-se com o
um. As crianças aos adultos responsáveis, como ex-
tensão de suas propriedades. A família à comunidade
na proximidade da confissão e delações transparentes.
A multiplicação disto na sociedade e no monopólio que
o Estado detém sobre a educação, laica ou religiosa, a
serviço da humanidade, bem a defender na uniformi-
dade da diferença.
Vale ressaltar que os artigos situados entre o 11°,
citado anteriormente, e o 26° percorrem dois trajetos
específicos. O primeiro parte da proteção da lei à famí-
lia, ao lar e à vida privada; para se multiplicar nos se-
guintes em sociedade e Estado, enfatizando religião,
raça e nacionalidade ao retornar à família instituída
pelo matrimônio no 16° artigo.

162
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

“Artigo 16°.
1- Os homens e mulheres de maior idade, sem qual-
quer restrição de raça, nacionalidade ou de religião, têm
o direito de contrair matrimônio e fundar uma família.
Gozam de iguais direitos ao casamento, sua duração e
sua dissolução.
2- O casamento não será válido senão com o livre e
pleno consentimento dos nubentes.
3- A família é o núcleo natural e fundamental da so-
ciedade e tem direito à proteção da sociedade e do Esta-
do.”24
O segundo trajeto específico parte do direito à propri-
edade no 17° artigo, multiplicando-se em liberdade in-
dividuais até o 20° artigo: liberdade de pensamento e
opinião; liberdade de consciência e religiosa, liberdade
de reunião e associação pacífica. Do 21° ao 25° artigos
as referências contemplam variações da liberdade soci-
al vinculadas no 21° aos direitos de representação e
sufrágio universal; no 22° à segurança social garantida
pelo esforço nacional e cooperação internacional; nos
23°, 24° e 25° à regulamentação trabalhista associada à
dignidade humana, à presença de sindicatos, ao lazer e
bem-estar.
No espaço entre o julgamento e a educação que co-
bre o intervalo do 11° ao 26° artigo, o primeiro trajeto
específico, entre o 12° e 16° artigos, pode ser apreendido
pela equação tribunal, família, sociedade e Estado en-
quanto o segundo trajeto, compreendido entre o 17° e
26° artigos, mostra-se parametrado pela propriedade, li-
berdade, segurança e educação. Os quatro artigos finais
da Declaração prescrevem em linhas gerais a reafir-
mação da própria declaração, contudo conectam a pes-
soa humana, a comunidade e a própria ONU, valendo
destacar os dois últimos.

163
9
2006

Artigo 29°
1- Toda pessoa tem deveres para com a comunidade,
na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua persona-
lidade é possível.
2- No exercício de seus direitos e liberdades, toda
pessoa estará sujeita apenas às limitações determina-
das pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o
devido reconhecimento e respeito dos direitos e liber-
dades de outrem e de satisfazer as justas exigências da
moral, da ordem pública e do bem-estar de uma socie-
dade democrática.
3- Esses direitos e liberdades não podem, em hipóte-
se alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos
e princípios das Nações Unidas.
Artigo 30. Nenhuma disposição da presente Declara-
ção pode ser interpretada como o reconhecimento a qual-
quer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qual-
quer atividade ou praticar qualquer ato destinado à des-
truição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui
estabelecidos.25
O atual programa de tolerância zero não foi um erro
de percurso. Ele tão somente constitui um dos efeitos
destes itinerários, ou ainda o itinerário mais recente
deste passado que de tão fraco não tem força nem para
morrer: o homem.
O espaço do cultivo da obediência vai da educação ao
julgamento. Sobreposição de itinerários na disputa da
verdade verdadeira no espaço de uma cultura embasa-
da no valor da tolerância, em nome, não mais de deus,
mas da demarcação de territórios, domínios e campos da
universalidade do humano e dos direitos universais. É
possível que tanta persistência em falar do humano seja
a maneira mais eloqüente de manter viva, por outras

164
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

vias, a idéia de juízo final. Se no passado, para afirmar a


maioridade iluminista foi necessário equacionar deus
e razão, hoje ela se atualiza pela acomodação e tolerân-
cia entre razão e religião.
No ocidente a intolerância foi um dos baixos come-
ços da tolerância. A construção do anormal, do perigoso
diante do qual a sociedade precisa se defender, ao con-
trário do que se pensa, antes de ter sido a posteridade
da norma, do normal, é paradoxalmente o que lhe ante-
cedeu — afirma Canguilhem ao lembrar que a vontade
de limpar exige um adversário à altura. Em defesa da
humanidade a prática preventiva se engrandece e im-
prime novos contornos ao regime do castigo e da educa-
ção para a obediência.

Notas
1
Utilizo-me aqui dos termos território: noção jurídico-política; domínio: no-
ção jurídico-política e campo: noção econômico-política, a partir da sugestão
fornecida por Michel Foucault. Isto não significa se voltar para uma reflexão
filosófico-jurídica, mas a uma análise histórico-política travada no espaço, dis-
tante, tanto do recorte de períodos, etapas e idades temporais, quanto de uma
hermenêutica do direito. “A descrição espacializante dos fatos discursivos de-
semboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados.” Michel Fou-
cault. “Sobre a geografia” in Roberto Machado (Org. e trad.) Microfísica do
poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, p.159.
2
William Godwin. “De crimes e punições”, Tradução de Maria Abramo Caldei-
ra Brant, in Verve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 5, 2004, pp. 11-86.
3
Pierre-Joseph Proudhon. Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da misé-
ria. Tradução de José Carlos Morel. São Paulo, Ícone, tomo I, p. 427.
4
Voltaire. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução de
Paulo Neves. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
5
John Locke. “Carta acerca da tolerância”, tradução de Anoir Aiex in Locke.
São Paulo, Abril Cultural, Col. Os pensadores, 1983.
6
John Stuart Mill. Sobre a liberdade. Tradução de Alberto da Rocha Barros.
Petrópolis, Vozes, 1991.

165
9
2006

7
Immanuel Kant. “Resposta à pergunta o que é ´esclarecimento`?” in Textos
Seletos. Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis,
Vozes, 1974; A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa, Edições 70, 1990.
8
A este respeito ver Salete Oliveira. “A grandiloqüência da tolerância, direitos
e alguns exercícios itinerários” in Verve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 8, 2005, pp.
276-389; “Tolerar, julgar, abolir” in Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A
tolerância e o intempestivo. São Paulo, Ateliê Editorial, 2005, pp. 191-201; “Tribu-
nal, fragmento mínimo, palavra infame” in Edson Passetti (org.). Kafka, Fou-
cault: sem mdos. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, pp. 115-122.
9
Daniel Lins. “Tolerância ou imagem do pensamento?” in Edson Passetti e
Salete Oliveira (orgs.), 2005, op. cit., pp.19-33.
10
Idem, p. 24-25.
11
Ibidem, p. 20.
12
William Godwin, 2004, op. cit.; Pierre-Joseph Proudhon. Do princípio federa-
tivo. Tradução de Francisco Trindade. São Paulo, Nu-Sol & Imaginário, 2001.
13
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975-1976).
Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 1999,
14
“Declaração Universal dos Direitos Humanos”. in Zélia Maria Mendes Bia-
soli-Alves e Roseli Fischmann (orgs.). Crianças e adolescentes: construindo uma
cultura da tolerância. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2001, pp.
197-198.
15
Idem, p. 198.
16
Ibidem, p. 199.
17
Ibidem, p. 199.
18
Voltaire, ao defender o zelo da humanidade, afirmava que devido à fraqueza
humana não só a religião se faz necessária como a educação cumpre papel o
papel de desenvolvimento da tolerância que se fundamenta em um valor supre-
mo: “o bem físico e moral da sociedade”. Trata-se da prevenção ao intolerável
promovida pelo fortalecimento da razão como meio indispensável para a inter-
venção de um julgamento justo. Voltaire, op. cit., 1999.
19
“Declaração Universal dos Direitos Humanos”, 2001, op. cit., pp. 199-200.
20
A este respeito ver Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São
Paulo, Cortez, 2003; Silvana Tótora. “Devires minoritários: um incômodo” in
Verve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 6, 2004.
21
No âmbito internacional coaduna-se com as diretrizes atuais da ONU para-
metradas pela Declaração sobre os Princípios da Tolerância, promulgada pela
UNESCO em 1995, implementadas em redes regionais, nacionais e locais por

166
verve
Tolerância e conquista, alguns intinerários...

meio da promoção de projetos e políticas de educação, com vistas ao combate


da violência e aumento da segurança. A este respeito ver Zélia Maria Mendes
Biasoli-Alves e Roseli Fischmann (orgs.), 2001, op. cit.; Regina Novaes e Paulo
Vannuchi (orgs.). Juventude e sociedade: trabalho, educação e cidadania. São Paulo,
Instituto Cidadania £ Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
22
Guilherme Corrêa. Educação, comunicação e anarquia. Procedências da sociedade de
controle no Brasil. São Paulo, Cortez, 2006.
23
“Declaração Universal dos Direitos Humanos”, 2001, op. cit., p. 203.
24
Idem, p. 201.
25
Ibidem, pp. 203-204.

167
9
2006

RESUMO

Itinerários da conquista da tolerância, na política moderna, anali-


sados a partir de trechos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948. Os efeitos políticos do investimento na obedi-
ência vão da educação ao julgamento.

Palavras-chave: Tolerância, declarações universais, abolicionismo


penal.

ABSTRACT

Itineraries of the conquest of tolerance, in modern politics, are


analyzed from fragments of the 1948 Universal Declaration of Human
Rights. The political effects of the investment on obedience are
perceived from education to judgment.

Keywords: Tolerance, universal declarations, penal abolitionism.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmado


em 13 de março de 2006.

168
9
2006

a “ordem” do estado, as peculiaridades


humanas e anarquia!

edgar rodrigues*

Após ler alguns verbetes do meu dicionário e de ou-


tros que tive a curiosidade de conhecer, pude resumir,
e não fui só eu, que “anarquia é falta de governo consti-
tuído: desordem!”
Ora, esta falta de “ordem” atribuída aos anarquistas,
para o antigo republicano espanhol Alfredo Calderón,
quem falou no parlamento espanhol e também escre-
veu, é obra do governo, do Estado!
Disse-o com toda a clareza, no começo do século XX:
“O Estado mata! É homicida, é assassino, mata por pre-
meditação, com aleivosia, com ferocidade. Mata sem
compaixão, sem obcecação, sem arrebatamento — por
conveniência, por egoísmo, por cálculo. O Estado rouba.
Casta sem conta nem medidas, e, para pagar as suas

* Vivendo no Rio de Janeiro desde 1951, Edgar Rodrigues é um dos mais


importantes arquivistas do movimento anarquista no Brasil e em Portugal.
Suas análises, entrevistas e compilações de documentos distribuem-se em mais
de quarenta livros e cerca de mil artigos.
verve, 9: 170-188, 2006

170
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

dívidas, enterra as mãos nos bolsos dos contribuintes. O


Estado joga. É empresário, é banqueiro, é aliciador. O
Estado folga. A ociosidade, mãe de todos os vícios, é sua
predileta. [...] Na vida oficial tudo é mentira: mentira o
pacto constitucional, mentira a lei fundamental do Es-
tado, mentira a folha oficial, mentira a representação
parlamentar, mentira os atos da maioria, mentira as
promessas, mentira os programas, mentira a adesão,
mentira a disciplina, mentira o orçamento... Há menti-
ra representativa, administrativa, eclesiástica, militar,
naval, acadêmica, jurídica, penal, bancária, bolsista,
aristocrática, democrática, moral, estética, higiênica e
alimentícia... Todo o Estado é uma grande mistificação,
uma burla colossal...”1
Antes e depois do retrato da desordem feito pelo antigo
político republicano espanhol, a história não oficial, de-
monstra, sem precisarmos de lentes de aumento, que
artesãos e trabalhadores das cidades e dos campos fo-
ram, e são, vilmente explorados e escravizados há sé-
culos. Os governantes reduziram ao silêncio os produto-
res de riquezas. A burguesia que “veio” substituir o feu-
dalismo, para assegurar “suas conquistas”, organizou
exércitos com gente deserdada, sob o comando de “seus
nobres”, esmagou o próprio povo, usando os jovens filhos
do povo, a quem armou para matar seus irmãos, seus
pais, sempre que pleiteavam, e pleiteiam, alguma me-
lhoria social. E foi essa burguesia “nova” quem saiu vi-
toriosa nas revoluções Francesa, Inglesa e nas de ou-
tros países, usando a boa-fé dos ingênuos, para dominar
os produtores de riquezas que lhes “oferecem” as mãos
(dos filhos) armadas para matar seus irmãos trabalha-
dores.
Foram, e são, esses governantes, que para manter a
“ordem”, a deles, nos 3357 anos, entre 1500 antes do
nazareno até ao final do século XIX, deflagraram 3130

171
9
2006

anos de guerras, contra 227 anos de paz.2 E de 1900 a


1980, também para manter a “ordem”, com as mãos dos
filhos dos operários cujos pais e irmãos fabricaram as
armas, provocaram 154 guerras, conflitos armados e
invasões, com milhões de mortos, mutilados, órfãos,
neuróticos, casas e plantações destruídas.3
Em contrapartida, para os antigos pensadores e filó-
sofos, o anarquismo nunca declarou guerras, nem é uma
“idéia nova, data de muito antes da nossa era”. Tem
suas raízes no pensamento egípcio,4 hindu e chinês de
Confúcio, Mo Ti, Chung Tse e Lao Tse. Este último filó-
sofo antecedeu em 500 anos a Cristo, e mereceu nota
do escritor Victor Garcia:5 “Quando estudamos a filoso-
fia chinesa, apoiando-nos em palavras de força, como a
de Carrington Goordrich, a de Will Durant e a de Tsui
Chi, podemos observar como todos estes escritores não
regateavam elogios e afirmavam que tanto Lao Tse, como
Mo Ti, Hsiin Tse e Chuang Tse, todos eles, projetaram o
pensamento libertário de que se nutriram as gerações
vindouras. Não se trata, pois, de apoiar-se no pensamen-
to ácrata de um Paul Gille ou de um Elisée Reclus, que,
logicamente, destacam esta trajetória anarquista de um
ramo do pensamento chinês. Carrington Goodrich, Will
Durant e Tsui Chi são historiadores imparciais, aber-
tamente convencidos da necessidade do Estado em toda
a sociedade. É sua honestidade profissional que os obri-
ga a não silenciar esta importante corrente libertária
que inicia Lao Tse, inclusive antes do próprio Confú-
cio.”
Não é estranho aos anarquistas o pensamento grego,
e principalmente o hebreu. Este último, embora religio-
so e autocrático, envolve idéias de igualdade e ajuda
mútua, chegando a profetizar uma sociedade integral,
anárquica. O professor Aníbal Vaz de Melo, em seu livro
Cristo, o Maior dos Anarquistas, defende a seguinte tese:

172
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

“A anarquia que foi um sonho generoso, uma utopia, um


anseio de amor e de fraternidade imaginado e sonhado
pela bondade santa de um Reclus, de um Bakunin, de
um Malatesta e de um Kropotkin apresenta, numa série
de seus adeptos, um gigante anarquista — Cristo.
Galileu foi, na realidade, o maior dos anarquistas.
Cristo já era anarquista. Lançou fora e longe todas as
muletas religiosas, combateu, energicamente, os credos
políticos de sua época, colocou-os fora da órbita do Estado,
indo de encontro às leis escritas, aos usos, costumes,
tradições e firmou a grandeza (da personalidade humana
— livre) inteiramente livre, de todas as peias (trata-se de
uma antiga forma de prender as pessoas pelos pés com
cordas) e algemas do formalismo social.
A Anarquia será a verdadeira forma da futura organi-
zação social, com as suas bases e raízes no amor, na bon-
dade e na fraternidade.”6
Na Idade Média, os adamistas, seita herética popular
da Boêmia, proclamavam a abolição da propriedade indi-
vidual e estabeleciam a comunidade de bens.
Não é menos significativo o exemplo da seita cristã
dos carpocráticos, em Alexandria: “A comunidade — es-
creve Max Beer — e as igualdades são a base da justiça
de Deus. No universo tudo é comum. O céu se estende
igualmente em todas as direções e cobre a terra do mes-
mo modo. A luz banha igualmente todos os seres. A natu-
reza proporciona seus benefícios a todos os organismos
vivos. O próprio Deus deu tudo a todos.”7 E não diz que a
Terra tivesse divisas, fronteiras, fosse retalhada ou foi
doada pela natureza a algum político. À luz da geografia
universal, da verdade histórica, o planeta Terra, obra da
natureza, não foi doado individualmente ou retalhado.
Na época — não se ignora isso —, não existiam topó-
grafos, desenhistas ou arquitetos para dividir em lotes

173
9
2006

a Terra, e nem tabeliões para fazer escrituras, deter-


minando a quem seriam distribuídos os “países” ou as
propriedades individuais. Tudo isso é obra da ambição
humana, das guerras e dos vencedores, que impediram
os vencidos de possuir sua parte em nosso planeta.
“As legislações dos povos (egípcios, hindus e judeus)
como a do sábio Minos, em Creta, obedeciam igualmen-
te ao princípio do Comunismo.”8
Pitágoras fundou também, em Cretona, na Itália,
uma sociedade destinada a estudar e a praticar os prin-
cípios da igualdade, fraternidade e comunidade. Para
Platão (450 anos antes do nazareno), “(...) em qualquer
parte que isto se realize ou deva realizar-se é preciso
que as riquezas sejam comuns, e que se empregue o
maior cuidado em separar do comércio da vida até o nome
de propriedade.”9
“O europeu do século XII — escreve Kropotkin — era
essencialmente federalista. Homem de livre iniciativa
e de livre entendimento, partidário acérrimo de uniões
desejadas e livremente aceitas, ele via, em si próprio, o
ponto de partida para toda a sociedade.”10
Em nome desse belo entendimento da igualdade li-
bertária, das comunidades de iguais, G. Etiévant, desa-
fiando os juízes durante seu julgamento no Tribunal de
Versalhes, em Julho de 1892, disse: “Desde os neófitos
até os homens, todos os seres possuem órgãos mais ou
menos aperfeiçoados para deles se servirem. Todos os
seres têm, então, o direito de se utilizar dos seus ór-
gãos, de acordo com a vontade da mãe natureza. Assim,
com nossas pernas, temos o direito a todo o espaço que
podermos percorrer; com nossos pulmões a todo o ar que
pudermos respirar; pelo nosso estômago a todo o alimento
que pudermos digerir; pela parte do nosso cérebro a tudo
que pudermos pensar, ou assimilar nos pensamentos
dos que nos cercam; pela nossa faculdade e elocução a

174
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

tudo que pudermos dizer; pelos nossos ouvidos a tudo que


pudermos escutar. E, temos direito a tudo isso porque
temos direito à vida e tudo isto constitui a vida. São es-
tes os verdadeiros direitos do homem! Ninguém precisa
decretá-los: eles existem como existe o sol!”11
Étienne Cabet, no livro Rumo ao Icário; Lord Lytton, em
The coming race; Edward Bellamy, em Looking Backward,
2000 to 1887; William Morris, em Notícias de lugar ne-
nhum; Eugene Richter, Pictures of a Socialistic Future;
Mably, Barbenf, Simon Linguet, Brissot, entre outros,
também ajudaram a quebrar as armaduras do capitalis-
mo, formando os precursores das idéias libertárias a que
William Godwin e Proudhon deram forma doutrinária, tor-
nando o anarquismo uma filosofia de vida, resgatando a
bandeira da Anarquia, passando-a de mão em mão para
os anarquistas que lhe sucederam até aos nossos dias.
É muito construtiva, e educativa, a definição e a in-
terpretação do velho pastor protestante americano, reve-
rendo J. C. Kimball, quando pergunta e responde: “O que
é anarquia? Que doutrina é essa pela qual os seus parti-
dários sacrificam as suas vidas, e por que tantos outros,
entre eles os mais profundos pensadores deste século,
estão dispostos a morrer [o texto do pastor Kimball foi es-
crito e divulgado durante o enforcamento dos “mártires
de Chicago”, 1887, nos EUA], propagando-a em todas as
partes do mundo civilizado? É forçoso que haja nessa dou-
trina alguma coisa digna de estudo.
Crê-se geralmente que a Anarquia é uma sociedade
em completo estado de confusão, desordem e violência;
um Estado em que pequenas facções fazem entre si uma
guerra de supremacia, resultando, hoje, umas vitorio-
sas, amanhã, outras; um Estado no qual se destinam to-
das as garantias de vida e de propriedade; um Estado,
enfim em que cada um faça o que lhe pereça, julgando só
por um critério torpe.

175
9
2006

A palavra Anarquia quer dizer literalmente sem go-


verno (não sem orientação nem ordem), como a enten-
dem os verdadeiros anarquistas; um Estado social onde
não haja poder autoritário que legisle a ação dos ho-
mens. É das leis humanas e não das leis naturais que
os anarquistas procuram libertar-se; são os livros de leis
que eles intentam destruir, e não a sociedade. Longe de
desejarem um estado de confusão, desordem e violên-
cia, os anarquistas aspiram a conquistar e a assegurar
a paz e a ordem.
Os anarquistas crêem — e é verdade — que a atual
confusão, desordem e violência que flagelam a socieda-
de, são devidas à interposição dos governos artificiosos
com as leis naturais; e que o único meio de se verem
livres destes males é se desligarem dessa causa artifi-
cial, humana e necessariamente imperfeita. A nature-
za, dizem eles, em todas as suas relações, opera unica-
mente pelo impulso das leis interiores.
Nos prados, as flores e as ervas crescem juntas, em
agradável consórcio, e não têm livros de leis; os pás-
saros na gruta, as inúmeras espécies de peixes no mar,
os castores fabricando as suas habitações, as formigas
— perfeitas sociedades na sua defesa — não escolhem
legisladores, nem mantém governos, nem juízes, nem
exércitos, nem polícias; não, nada disto. Regem-se pe-
las suas leis naturais. E se estes seres podem passar
sem leis artificiais, por que é que o homem, com mais
alto grau de inteligência, há de submeter-se a essa dis-
posição arbitrária e opressora? Nesse sentido os discí-
pulos da Anarquia não combatem a sociedade, antes pelo
contrário, são socialistas, na mais lata acepção da pala-
vra. Eles consideram o homem como um ser natural e
social, a quem, se se deixasse em completa liberdade,
por suas próprias intuições constituiria uma organiza-
ção social mais perfeita que nenhuma das que o gênio

176
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

humano possa inventar; um organismo igual ao corpo


humano, no qual todos os membros teriam o seu lugar e
ocupação, e todos juntos cooperariam harmonicamen-
te.”12
Os anarquistas são irredutíveis inimigos da autori-
dade política: do Estado; da autoridade econômica: do
capitalismo; da autoridade moral, intelectual: da reli-
gião, do patrimônio e da moral oficial.13 Advogam a li-
berdade plena por compreender que sem esta não se
pode entender a anarquia.
Segundo o anarquista romeno Eugen Relgis, “A Li-
berdade é uma energia que resulta de aspirações e rea-
lidades humanas, de suas potências conscientes, pro-
gressivas e combativas, segundo as estruturas das or-
ganizações sociais. Há uma energética de liberdade que
se aprende. A liberdade interior que se capta, se dirige,
se conquista, se defende e se cultiva, já que ela é essa
última expressão, cultura.”
O anarquista é, portanto, uma pessoa partidária da
anarquia. Cidadão contrário à desigualdade existente
na atual sociedade mercantilista, bélica, imperialista e
exploradora, que subjuga os homens em prejuízo da feli-
cidade humana!
É um propagandista de um mundo novo, onde o saber,
o bem-estar, a beleza, a franqueza, a justiça e a frater-
nidade são necessidades permanentes, tratadas e cul-
tivadas como a saúde, a vida do ser humano. O anar-
quista defende o livre acordo, a ajuda mútua, a coexis-
tência harmoniosa, a igualdade de direitos, deveres,
responsabilidades, de oportunidades e possibilidades,
independente da idade, força física, diplomas, aparên-
cia, nível de inteligência, cor, sexo, etnias.
O elemento mais importante a desenvolver, a pre-
servar para o anarquista é o ser humano. Por isso advo-

177
9
2006

ga a liberdade integral (física, psíquica, econômica, re-


ligiosa, política, etc.) como meio de se dar ao homem o
direito e a possibilidade de desenvolver todas as suas
capacidades, potencialidades, aptidões, sem temores,
restrições, cerceamentos ou frustrações.
Para o anarquista existe um só homem: a humani-
dade; uma só nação: o universo!
Se tivermos de acusar o anarquista de alguma coisa,
seria certamente de ser um obstinado defensor de uma
sociedade de iguais, sociedade que uma minoria — para
poder continuar vivendo e acumular as riquezas produ-
zidas pela maioria — impede que se realize. E não de
desejar a desordem, em meio à qual se recusa a convi-
ver, e a qual contesta e combate com o anarquismo.
E para não se atribuir aos anarquistas ou ao anar-
quismo o poder de destruição armazenado pelos gover-
nantes, pelo Estado e suas bombas, vamos sintetizá-lo.
Anarquismo é a doutrina dos anarquistas — a nova or-
dem social — baseada na liberdade, na qual a produção,
o consumo e a educação e instrução devem satisfazer
as necessidades de cada um, de todos os seres huma-
nos. Os anarquistas (independente das inúmeras pecu-
liaridades que respeitarão e ajudarão a superar suas
limitações, quando for o caso) propõem-se a substituir a
organização obrigatória pela organização voluntária, pelo
livre acordo, espontaneamente firmado e eternamente
dissolúvel, sempre que se faça necessário, não ligando
os homens senão pela comunidade de interesses, ne-
cessidades e pela reciprocidade de conseqüências, afi-
nidades e simpatias. O anarquismo, filosofia de vida dos
anarquistas, profundamente humanitarista e de liber-
dade plena (física e psíquica), não aceita que o homem
precise ser governado, que por costume se tornou es-
cravo, razão pela qual lhe parece irracional, utópico, uma
verdadeira calamidade pública deixar de sê-lo.

178
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

O hábito de sofrer a autoridade dos chefes, dos gover-


nantes e seus mandões auxiliares condicionou o indi-
víduo ao longo dos séculos, deformou-o naquilo que ele
tem de mais importante: a iniciativa, a razão, a inteli-
gência, o desejo de ser livre, tirou-lhe a confiança em si
mesmo!
O idealista ácrata vê em cada ser humano um cola-
borador em potencial e procura revelá-lo pela educação,
pelo ensino racionalista e pelo exemplo.
Não se ocupa exclusivamente das lutas de classes,
não vê intelectuais ou operários como seres superiores
ou inferiores, diferentes; não combate os patrões por ser
patrões! Sua meta é o ser humano no seu todo, por ver
nele o elemento mais importante para tornar a velha
sociedade um mundo novo!
Suas idéias ou doutrinas pretendem ajudar a des-
pertar e desenvolver, em cada ser humano, toda as ap-
tidões de que é possuidor, seu potencial, fazê-lo desa-
brochar!
O anarquista não ignora que cada indivíduo, ao nas-
cer, traz disposições psíquicas que, no conjunto, refle-
tem as influências atávicas, hereditárias, infiltradas ao
longo dos séculos, transmitidas de gerações a gerações,
e que esses males não se curam com a marginalização,
ou pancadas no exterior das crianças ou castigos físi-
cos. Do meio em que nasce e cresce, do ambiente —
dentro e fora do lar — em que viveu ou vive os primeiros
anos de vida, dependerá a formação do seu caráter, e
este guiará seus atos durante sua existência: será sua
personalidade.
A educação, o temperamento, a herança genética,
as influências naturais do meio que cerca as crianças,
impõem-lhe formas de vida, juntamente com as influ-
ências sociais do meio, e determinarão o seu compor-

179
9
2006

tamento positivo, negativo ou artificial. O ser humano é


fruto da sociedade em que viveram seus antepassados,
do meio onde nasceu, dos padrões religiosos, políticos,
econômicos, sociais, culturais, opressivos e repressivos
predominantes, do ambiente onde formou sua personali-
dade.
Logo, não é válida a concepção de que o poder e o
governo evitam, pela sua existência e “fiscalização”, atos
anti-sociais e violentos.
O anarquista demonstra que atos anti-sociais e vio-
lentos são o resultado da organização social baseada nas
desigualdades de condições, carências, níveis de vida,
políticas, terrorismos, punições! O roubo, o atentado, o
assassinato contra pessoas contra exploradores ou abas-
tados, resultam dos sistemas vividos que impedem uma
imensa maioria de pessoas trabalhadoras, como nós, de
satisfazer todas as suas necessidades! Têm suas raízes
na propriedade privada, suas origens no “direito divino”
de uns poucos, que estragaram aquilo de que carecem
milhões de seres humanos, em geral, os produtores de
riquezas durante oito horas ou mais diariamente. E
quando o impulso do temperamento é demasiado forte,
quando a necessidade ou a revolta fala mais alto, a in-
justiça grita primeiro, o indivíduo “infringe” as leis arti-
ficiais, estudadas, mentalizadas, escritas e aprovadas
por uns poucos para submeter muitos à obediência, vi-
sando consagrar a espoliação do homem pelo homem. E,
na voz de seus administradores, são considerados e qua-
lificados tais atos como anti-sociais, quando a verdadei-
ra causa reside exatamente na situação desigual e
opressiva, conduzida e sustentada pelos mandões, go-
vernantes e seus parasitas, encarregados de aparecer
na frente como amortecedores, pára-choques. Numa
sociedade em que cada indivíduo tenha a faculdade de
se desenvolver livre, integralmente, sem carências,

180
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

esses atos certamente não poderão ser cometidos, dada


a ausência das razões e motivos que hoje os determi-
nam (salvo os casos raríssimos que são de origem mé-
dica, psiquiátrica).
Por outro lado, está provado cientificamente que den-
tro da atual sociedade não existe nenhum meio impe-
ditivo ou repressivo que evite que tais atos tenham
lugar, pois é em seu seio que germinaram os mias-
mas que correm o sistema e chegam ao exterior de
seus porões. A violência imposta na sociedade gera a
violência individual, cada vez em maior escala. E fren-
te a essa anomalia do poder público são chamados ju-
risconsultos, para dar opiniões e apresentar soluções,
sem se darem conta de que o comprometimento moral
e material do homem depende, exclusivamente, das
condições de “saúde do meio”, das hereditariedades,
da educação a que foi e é submetido! E por último, da
“ordem” e da exploração do governo, do Estado!
O homem infringe leis penais feitas pelo homem
para dominar seus semelhantes, acreditando sempre
que pode escapar à punição de seu ato. Comete delitos
anti-sociais, e tem como professores os legisladores ou
punidores — porque sua vontade é incapaz de impedir
os motivos que o impeliram a cometê-los. A insufici-
ência de sua vontade é devida à educação recebida, ao
meio freqüentado, faz parte dos seus vícios orgânicos,
hereditários, das deformações de caráter que lhe fo-
ram impostas pela sociedade que o esfomeia e o con-
diciona. E por mais violentas que tais leis artificiais se-
jam, são sempre impotentes para prevenir e evitar os de-
litos e os crimes! E a violência de baixo cresce na proporção
e intensidade da violência e a exploração de cima!
Por isso, a gravidade de tais atos reflete a incompetên-
cia, é a própria negação da validade das leis, é a autocon-
denação do Estado! Quando a autoridade irracional pensa

181
9
2006

acabar com a necessidade, a usurpação que ela mesma


representa e defende, contrariando o direito das pessoas,
torna-se impotente para cumprir sua pretendida missão,
e se declara fatalidade na realidade!
O homem não é uma máquina que se ajusta por meio
de botões, tem necessidades físicas, psicológicas, alimen-
tares, educacionais, emocionais, possui um cérebro que
pensa!
E o anarquismo possui a química capaz de “lapidar” a
educação dos seres humanos. Os que sabem mais, detém
mais conhecimentos, ajudarão a elevar os conhecimen-
tos dos que sabem menos, a preparar os seus companhei-
ros em vez de explorá-los ou colocar-se no topo da pirâmi-
de social, como acontece nas sociedades política, capita-
lista ou bolchevista hoje.
Um ser humano vale um ser humano: os anarquistas
sabem isso! E na medida em que os anarquistas, intelec-
tuais e operários, se integrarem, independentemente das
ferramentas que cada um use, no meio das peculiarida-
des com que terão de conviver, saberão elevar os menos
preparados, acabando com as hierarquias, igualando-se
todos em deveres, direitos e possibilidades. Uma comuni-
dade de iguais não quer dizer que têm de ser todos do
mesmo tamanho, possuir as mesmas capacidades inte-
lectuais ou profissionais: as diversidades humanas fazem
parte de uma sociedade que os anarquistas pretendem
tornar um novo mundo, onde cada um de seus membros
só se sentirá feliz com a felicidade de todos.
O corpo humano possui milhões de células, e estas fun-
cionam livremente, cada uma realizando suas funções sem
se atropelar, sem precisar de chefes para dizer a cada uma
o que deve fazer, sem leis ou autoridades para obrigá-las a
exercer suas tarefas, dizer quem é quem. E se essas “má-
quinas humanas” impulsionadas pelos milhões de célu-

182
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

las realizam trabalhos manuais e intelectuais, capazes


de produzir a felicidade individualmente, de cada um de
nós, por que achamos impossível transformar essa felici-
dade em um bem de todos, em Anarquia?
Juntando todas as experiências e interpretações do
anarquismo, da idéia ou da filosofia de vida dos pensado-
res que evoco aqui, das mais distintas regiões e culturas
do planeta, somadas com a visão do autor, chego à conclu-
são de que se as células que nos movem conseguem rea-
lizar um sábio e gigantesco trabalho sem chefes, nós, que
temos o privilégio de as possuir e ainda um cérebro para
pensar, optar, decidir pelo melhor caminho, porque não
somos capazes de fazer a felicidade humana, pela anar-
quia?
Ao concluir minha pesquisa e divagações, penso que
uma Declaração de Princípios ajudaria a entender a nova
mecânica, a anarquia. Declaração provisória, entenda-se,
por ser individual e ainda por ser o anarquismo uma filo-
sofia de vida evolutiva, certamente atualizada todos os dias,
até onde a ciência ao serviço da humanidade e a inteli-
gência humana puderem elevar cada componente da so-
ciedade ácrata.
1: A anarquia é um sistema social à margem da igreja
e do Estado, livre da influência de poderes ou forças políti-
cas, democráticas ou autoritárias: econômicas ou religio-
sas, e não aceita lideres.
O anarquismo é um corpo de doutrinas científico-filo-
sóficas, econômicas e sociais, que estabelecem as bases
da vida de relação, da harmonia social, em substituição
aos presentes sistemas de desequilíbrio social que deter-
minam o caos, as violências, tragédias e vicissitudes para
a humanidade.
2: Em religião, o anarquismo proclama o direito do
livre exame, a emancipação humana, libertando o inte-

183
9
2006

lecto de todas as concepções, teológicas ou metafísicas,


do misticismo e da superstição, dos poderes teocráticos
das instituições eclesiásticas.
3: Em política, o anarquismo ignora o Estado, bem
como todas as formas de governo, domínio do homem
sobre o homem.
O anarquismo visa a extinção de todas as institui-
ções jurídicas, políticas, militares e policiais, leis, códi-
gos, elementos de opressão, de repressão, desapareci-
mentos de privilégios, casta e classe. A sociedade por si
mesma terá a responsabilidade da ordem pública, a ga-
rantia dos direitos individuais ou coletivos.
4: O anarquismo quer a supressão do sistema do sa-
lário, do patronato e do capitalismo. O poder político da
igreja, e do capitalismo são estados de guerra, não ha-
vendo lugar a entendimento de espécie alguma.
O anarquismo quer a supressão da propriedade pri-
vada, individual, de grupo, empresa, Estado, igreja, so-
ciedade. Um regime em que cada indivíduo indistinta-
mente almeje a posse da riqueza natural ou social que
lhe corresponda como parte que é da nossa espécie.
Dentro deste princípio federalista, o indivíduo se har-
moniza para a realização do socialismo anarquista inte-
gral.
5: O anarquismo, doutrina revolucionária, é, ao mes-
mo tempo, libertária, combatendo todas as formas de coa-
ção, partam da igreja, do Estado, ou mesmo de qualquer
grupo ou indivíduo.
6: A filosofia anarquista preconiza a igualdade e a su-
pressão de todas as formas de hierarquia religiosa, políti-
ca, econômica, social e cultural.
7: No que respeita à fraternidade, o anarquismo pro-
põe-se, para chegar à realização dessa aspiração huma-

184
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

na, a supressão das diferenças injustas dos interesses


econômicos e políticos, e a supressão das fronteiras políti-
cas, eliminando os preconceitos nacionalistas e patrióti-
cos, dos quais os dirigentes se servem para oprimir e ex-
plorar a humanidade.
8: Tratamos aqui somente do sindicalismo revolucio-
nário ou de resistência, que age com os próprios meios
diretamente, na luta pelo melhoramento econômico dos
operários sindicalizados, ou quando muito, das classes em
que mais se evidencia a organização sindical.
O sindicato, órgão específico de defesa dos interesses
profissionais ou corporativos e de resistência à desenfre-
ada exploração patronal, agindo, porém, nos limites do sis-
tema do salário e, ao mesmo tempo, nos acordos salariais,
não é susceptível de transformação no sentido de subver-
são do regime econômico, de modo a estabelecer uma nova
distribuição da riqueza ou inaugurar uma nova economia,
capaz de facultar a todos os seres humanos, de maneira
eqüitativa, os elementos indispensáveis à própria subsis-
tência.
É, pois, o sindicalismo um meio de luta dos trabalhado-
res, que perpetua a desigualdade (aumento de salários,
aumento do custo de vida), salvo quando pensa na eman-
cipação do proletariado, fato que exige projeções franca-
mente revolucionárias. A atitude dos anarquistas em face
ao sindicalismo deve consistir em apoiar, em suas lutas,
os operários sindicalizados, com propaganda das idéias
revolucionárias, anarquistas, da implantação de uma so-
ciedade nova, de igualdade social.
9: No verdadeiro terreno da propaganda e da ação dos
ácratas está a criação de agrupações especificamente
anarquistas. Deste ponto é que a sua ação e atividade deve
irradiar para toda parte.

185
9
2006

O anarquismo, longe de popularizar-se e diluir-se


em torno de elementos estranhos, perdendo de vista
a base de onde emerge, deve, pelo contrário, ser a base
sobre a qual se apóiam as forças da igualdade e da liberda-
de. Os anarquistas, atuando em todos os campos onde pos-
sam agir, estarão em toda parte onde haja movimento,
não se deixando arrastar pelas influências conservadoras
e autoritárias.
Por sua vez, às agrupações anarquistas cabe desenvol-
ver uma atividade intensa e permanente, de modo a man-
ter vivo, nos militantes, o espírito idealista e revolucioná-
rio.
A obra dos militantes e agrupações anarquistas deve
ser feita sem reticências, de forma que crie homens de
pensamento esclarecido, com princípios definidos e con-
vicções profundas, senhores da filosofia e da ética anar-
quista.
10: O Comitê dos Grupos Anarquistas, considerando a
necessidade de cada momento, sugere a criação de um
movimento organizado, das forças anarquistas, as quais
devem estar preparadas, o mais possível, para realizar com
eficiência o advento da sociedade anarquista.
Para concretizar essa aspiração, propõe-se a adoção de
um método de organização, pois está demonstrada a evi-
dência, pelos fatos históricos das sociedades humanas, de
que os que vencem, em qualquer terreno de luta, não são
os que têm o direito e a razão de seu lado, mas os mais
coesos, os mais bem organizados, os que têm melhores
métodos de organização e táticas de luta.
Assim, acredito na necessidade de: a) criar, em todas
as localidades cuja situação geográfica seja favorável, um
comitê local para a relação entre os grupos ali existentes;
b) entre os vários comitês locais da mesma região, criar o
comitê regional ou federação; c) entre os comitês regio-

186
verve
A ordem do Estado, as peculiaridades humanas e a anarquia

nais ou federações, criar o comitê federal ou confedera-


ção, cuja localização deve ser estabelecida em um con-
gresso; d) provisoriamente estes comitês tomarão para si
o encargo de se relacionar com todos os elementos do país,
para a realização prática das bases acima enunciadas e
futuros congressos, onde se avaliará o que foi feito, o que
deu certo e o que terá de ser corrigido: atualidade em de-
cisão coletiva.

Notas
1
Alfredo Calderón desenha o governo-Estado como pai-mãe da desordem! Prova
duplamente que seus servidores putrificam tudo em que botam as mãos!
2
Enciclopédia Universalis Mumdaneum. Bruxelas, Paul Otlet.
3
ONU – Relatório da Comissão Palme, Independent Commision on Disarmament
and Security Issues. Common Security, 1982.
4
A primeira greve no Egito data de 1170 aC. Benjamin Cano Ruiz. ¿Qué es el
anarquismo? México, Nuevo tiempo, 1985.
5
Victor Garcia. Escarceos sobre China. México, Tierra y Libertad, 1962, e La sabidu-
ría oriental. México, Tierra y Libertad, 1985. Robert Scalapio. Anarquism in China.
Seattle, University Washington Press, 1972.
6
Aníbal Vaz de Mello. Cristo, o maior dos Anarquistas. São Paulo, Editora Piratininga,
1956. Everardo Dias, espanhol de nascimento, maçom, anti-clerical, em seu opús-
culo Cristo era Anarquista, São Paulo, 1919, também tinha a mesma opinião. Só
mudou depois que se tornou comunista, sogro de Astrojildo Pereira, dirigernte do
P.C.B..
7
Max Beer. História do Socialismo e das Lutas Sociais. São Paulo, Editora Expres-
são Popular, 1968. Edgar Rodrigues. Universo Ácrata, Santa Catarina, Editora
Insular, 1999.
8
Henrique Martins. Socialismo. Porto, Portugal, 1912, 3 vols.
9
Idem.10
10
Piotr Kropotkin. O Estado e o seu papel histórico. Portugal, Porto, 1922.
11
G. Etiévant. “Declaração de Princípios Anarquistas – Comunistas” in A
Revolta. Portugal, Lisboa, 1893.
12
Edgar Rodrigues. Jornal de Almada, 8-2. Portugal, 1977.
13
O autor diferencia a autoridade racional, do saber, da irracionalidade, da
força, do poder!

187
9
2006

RESUMO

Apresentação de levantamento realizado pelo autor acerca das in-


terpretações dadas à palavra anarquia. Nega os que afirmam que
esta signifique desordem e afirma a anarquia como única possibi-
lidade de realização das aspirações humanas de felicidade, liber-
dade, igualdade e fraternidade. Ao final, apresenta uma declara-
ção de princípios anarquistas, contendo dez pontos, como resul-
tado de suas pesquisas e reflexões.

Palavras-chave: anarco-cristianismo, primitivismo, história das idéi-


as anarquistas, anarco-sindicalismo.

ABSTRACT

Presentation of research produced by the author about the inter-


pretations given to the word anarchy. Denying those who assert
that this word means disorder, he affirms anarchy as the only
possibility for realization of human aspirations of happiness, li-
berty, equality and fraternity. In the end, he presents a declarati-
on of anarchist principles, including ten points, as a result of his
researches and reflections.

Keywords: anarcho-christianism, primitivism, history of the anar-


chist ideas, anarcho-syndicalism.

Recebido para publicação em 2 de fevereiro de 2006 e confirmado


em 3 de março de 2006.

188
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

uma história do anarquismo: o


surgimento da federação libertária
argentina

pablo m. perez*

Nota introdutória por natalia montebello**


Centro da cidade, bairro de Constitución, avenida Bra-
sil. A série de demarcações territoriais termina por aqui.
A casa da sede de Buenos Aires da Federação Libertária
Argentina, a FLA, transborda as delimitações e suas me-
didas. O espaço projeta-se em múltiplos percursos: dos
anarquistas que há mais de 30 anos transitam por ela,
dos amigos, dos pesquisadores, dos curiosos, dos desavisa-
dos, dos interessados, dos encontros, das invenções, dos
confrontos, dos documentos, dos vestígios... Os movimen-
tos se sobrepõem, descrevendo uma descontinuidade que

* É historiador. Faz parte do grupo de trabalho de catalogação, preservação,


difusão e pesquisa da Biblioteca Archivo de Estudios Libertarios, BAEL. Coorde-
nou a elaboração e edição dos dois catálogos da BAEL lançados até o momen-
to.
** Pesquisadora no Nu-Sol e doutoranda no Programa de Estudos Pós-Gradu-
ados em Ciências Sociais da PUC/SP.
verve, 9: 189-215, 2006

189
9
2006

afirma e constantemente atualiza um estilo libertário de


viver. Não há demarcação onde práticas de liberdade in-
ventam o espaço, subvertendo qualquer cristalização ter-
ritorial.
Práticas de liberdade emergem de bons encontros, de
encontros interessados em ampliar, em potencializar e
em atualizar relações livres, insubmissas diante do auto-
ritarismo da ordem geral. Se muitas propostas deste ou
daquele futuro libertário para todos passaram e passam,
entre conversas e publicações, pelo espaço em movimen-
to da FLA, também passam, e reverberam, invenções de
liberdade que irrompem com a alegria, sempre revolucio-
nária, daqueles que se interessam por práticas anarqui-
zantes. São os encontros, e nunca o espaço, a possibilida-
de de subverter qualquer representatividade sobre a vida
de cada um. Surgem assim associações livres, que pres-
cindem de um formato que dê voz à vontade: a vontade dos
interessados não ecoa na representação em nome de to-
dos, e associações livres não interessam a todos. Interes-
sa aqui um deslocamento, que nos aproxima das associa-
ções que percorrem a casa da FLA, que a atravessam, a
despeito de qualquer representação, sempre ideal, que
possa ser feita de um espaço e mesmo de sua cronologia.
A casa, não como território, mas como superfície, e seus
relevos, pela qual, sobre a qual, invenções de liberdade
reinventam e subvertem o próprio espaço.
Aqui chegaram e chegam documentos que contam
miríades de histórias do anarquismo, ou melhor, de anar-
quismos. Revistas, jornais, folhetos, cartas, anotações,
cartazes... vêm de 44 países, desde 1890, e são arquivados
pelo trabalho autogestionário que se organiza, na casa,
desde começos da década de 1990. Inventa-se, então, a
Biblioteca Archivo de Estudios Libertarios, BAEL. Pessoas
interessadas em organizar, preservar e disponibilizar a
imensa quantidade de material que à casa chega desde

190
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

seu surgimento associaram-se para repetir o gesto, tão


comum no interior do anarquismo, de inventar um espa-
ço para o estudo, o debate, a pesquisa, enfim, o movimen-
to vital das idéias libertárias. Espaço também de reflexão
e de práticas anarquistas, que descreve, em seu cotidia-
no, os princípios da associação livre, que prescinde da hi-
erarquia e da centralização e que afirma a participação
segundo a vontade de cada um para tanto.
Como grupo autogestionário, a BAEL dispensa os subsí-
dios, públicos ou privados, e se desdobra em encontros com
outros arquivos, com outros interessados. Encontros que
desenham um descompasso, uma descontinuidade, e só
nisto são uma resposta contundente à produtividade capi-
talista e às concessões que a ela se fazem em nome de...
em nome do quê? Sem concessões, entretanto, a BAEL
produz, apaixonadamente, material de impecável quali-
dade acadêmica e, com a mesma qualidade oferece orien-
tação aos pesquisadores que a consultam.
Estes pesquisadores, vindos de diversos lugares, tran-
sitam pelo galpão de 20 metros de comprimento por 10 de
largura que guarda as publicações organizadas por países.
Eles não enfrentam os procedimentos burocráticos do que
se entende por eficiência, eles se deparam com jovens
generosos, que os recebem em sua casa, em meio à sua
vitalidade. Pesquisadores atentos repararão que a vida li-
bertária que dá o ritmo ao arquivo, longe de uma produti-
vidade linear e eficiente, possibilita a potencialidade: in-
ventam-se peças de teatro, conferências, seminários, ofi-
cinas, outras associações autogestionárias, outros espaços,
outros trabalhos.

*********

191
9
2006

I
O movimento anarquista argentino, que emerge na
segunda metade do século XIX, cresceu continuamente
durante várias décadas. A formação de clubes culturais,
bibliotecas, companhias filodramáticas, escolas e a Federa-
ção Operária fizeram do anarquismo a expressão de am-
plos setores operários e populares. Milhares de imigran-
tes e argentinos silenciados, submetidos a jornadas de tra-
balho humilhantes, amontoados em cortiços, encontram
um espaço para suas reivindicações. Para eles, não há
redenção no céu, mas aqui, no banquete da vida, afirman-
do práticas de liberdade, prescindindo de hierarquias ou
patrões. Assim vivem, inventando suas próprias respos-
tas, desenvolvendo um movimento cultural alternativo,
arrancando conquistas nos seus lugares de trabalho. Não
se pode esquecer a passagem de Errico Malatesta, na dé-
cada de 1880, ou a de Pietro Gori, em 1900,1 com confe-
rências por toda a Argentina e seminário na Faculdade de
Direito.2 Ambos imprimem vitalidade ao movimento local.
Mas é em abril de 1902 quando começa a aparecer de
maneira mais contundente o anarquismo. Nesta data se
definem os delegados socialistas da Federação Operária
Argentina, FOA, e se afirma a Federação Operária Regio-
nal Argentina, FORA, tornando-se rapidamente o setor
mais forte do movimento operário. Paralelamente, no dia
23 de novembro, o Estado Argentino sanciona a Lei de Re-
sidência, dirigida aos anarquistas, e que os submetem a
centenas de detenções e deportações. A ordem conservado-
ra não se detém em perseguições, e isto não impede que
em 7 de novembro de 1903 apareça La Protesta,3 o maior
jornal anarquista argentino e um dos mais importantes
do mundo.
O anarquismo não deixa de crescer, protagonizando
todos os conflitos sociais e lutas populares daquela pri-
meira década do século. As crônicas sobre as enormes

192
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

manifestações de rua o dimensionam como movimento


de massas. As classes dirigentes não podem ignorar a pres-
são constante e, em 1904, o Ministro do Interior, Joaquín
Víctor González, leva um projeto de lei ao Congresso para
restringir a jornada de trabalho a oito horas e efetivar ou-
tras demandas operárias; mas, sob pressão dos empresá-
rios, a lei não é aprovada. Em 1907 o Congresso cria o
Departamento do Trabalho, uma nova tentativa de agir
legalmente contra um movimento que questiona a ordem
estabelecida. Enquanto isso, em 1905, a FORA realiza seu
V Congresso, no qual estabelece como princípio o anarco-
comunismo, e não apenas o setor operário se reafirma, mas
também se realizam diversas experiências em âmbitos
culturais, como a criação das escolas racionalistas, im-
pulsionadas por Julio Barcos. Em 1910, La Protesta está
chegando ao seu ápice, passando a ser o único diário anar-
quista do mundo que edita também um vespertino, La
Batalla. Mas a vida deste será breve, já que, em junho de
1910, em apenas 48 horas, o Congresso aprova uma lei
repressiva: a Lei de Defesa Social, provocando o fechamen-
to de jornais libertários, e a perseguição, deportação e pri-
são de muitos militantes.
Toda a década de 1900 é de crescimento, confrontos,
elaboração de projetos e debates internos no movimento
anarquista argentino. Sob seu princípio de liberdade, con-
trário à autoridade institucionalizada e à hierarquia, e
afirmativo da igualdade, encontram-se diversas expres-
sões.4 Estas diferenças podem ser rastreadas nas varia-
das publicações editadas no período e, se é verdade que La
Protesta converte-se no porta-voz por excelência do movi-
mento, grupos com uma posição diferenciada em relação
à organização e ao movimento operário têm sua própria
voz, constituindo um grande leque libertário que não res-
ta forças, mas, ao contrário, amplia a proposta e permite
chegar aos mais vastos setores da sociedade.

193
9
2006

Qual é o peso dos confrontos sociais, em seu conjun-


to, no devir histórico, na construção de uma realidade
cotidiana?
Se olharmos para a primeira década do século XX,
veremos que do anarquismo surgem muitos projetos que
representam amplos setores, com uma Federação Ope-
rária mais forte que a socialista União Geral dos Traba-
lhadores, UGT, com lutas que obrigam o Estado a dar
importância à problemática social.
Com quanto contribuiu a indomável atitude anarquis-
ta para a queda da ordem conservadora e para a abertura
da representação política? O anarquismo, sem o propor,
alheio a acertos parlamentares e resistente à política
burguesa, talvez pusesse contra a parede a velha forma
do Estado, aquela que não conseguiu mais se abrir e
incorporar novos setores, mostrar-se como representan-
te de todos, incluir as novas vozes, reconhecer uma nova
voz que falava, rangia, e reclamava cuja língua era in-
ventada no movimento libertário. Mas, para poder abrir
espaço, o Estado devia oferecer a ilusão da igualdade:
devia construir cidadãos argentinos. Frente ao Estado
conservador não só estavam os anarquistas, mas tam-
bém radicais e socialistas. Entretanto, resulta inegável
a incidência dos anarquistas na vida política do país. Os
anarquistas não lutavam pela abertura política, não
acreditavam no parlamentarismo e, mesmo assim, tal-
vez seus atos tenham contribuído para desenhar um novo
jogo de representação política, concessão feita pelo Es-
tado restritivo com a finalidade de manter sua conti-
nuidade.
Para alguns historiadores, a Lei Sáenz Peña, que es-
tabelece o voto universal, marca o fim da influência po-
lítica do anarquismo. Também no âmbito social e cultu-
ral foi diminuindo seu espaço, devido as modificações
na estrutura social: com a nova oferta do ócio, direcio-

194
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

nada aos setores populares (futebol, cinema), a reestru-


turação do espaço urbano (distanciamento das popula-
ções dos lugares de trabalho) e a agressiva campanha
de argentinização (símbolos pátrios, extensão da escola
primária, serviço militar obrigatório). O Estado e a eco-
nomia capitalista agora se espalhavam e penetravam
naqueles âmbitos que antes lhes escaparam. No movi-
mento operário também foi sentida a nova realidade
política, diante de um presidente, Hipólito Yrigoyen, elei-
to por voto universal, secreto e obrigatório. A ação dire-
ta como método de luta ainda tinha argumentos, mas
deixava de atingir muitos setores, ao se propagarem no-
vos mecanismos de negociação desde o Estado.
Não é possível entender a perda de peso do anarquis-
mo argentino, a partir de 1910, apenas pela repressão
desatada com terrível ferocidade: invasões, fuzilamen-
tos, deportações e encarceramentos de milhares de pes-
soas. Mas tampouco podemos atribuí-lo apenas à aber-
tura da representação política, à modificação nos hábi-
tos sociais ou à transformação que passava o sistema
produtivo nacional. E menos ainda a certa visão mar-
xista que identificou o anarquismo com um tipo de tra-
balhador atrasado, rêmora de regimes pré-capitalistas
com tendência a desaparecer. Talvez todas as explica-
ções anteriores, exceto a última, nos ajudem a enten-
der o desalento de um movimento, mas é possível afir-
mar que o anarquismo estava longe de desaparecer. E
mostrará toda sua vitalidade nas duas décadas seguin-
tes, até o que podemos chamar de segundo momento
libertário, momento que descreve o surgimento da Fe-
deração Libertária Argentina na década de 1930.
Se em um princípio o debate interno esteve perpas-
sado pela adesão ao individualismo, coletivismo e co-
munismo,5 o acontecer histórico possibilitará novas dis-
cussões. O Estado fechado, alheio e mero representan-

195
9
2006

te das classes abastadas, começava a se abrir, e ainda


que apenas se tratasse de um distanciamento estratégi-
co das classes dominantes do controle direto da política
para se refugiar num controle menos visível mas mais
efetivo, o certo é que o cenário mudava, e muitos pensa-
ram que as estratégias de luta também deveriam fazê-lo.
Desta forma acontece o rompimento na FORA, no IX Con-
gresso de 1915, que decide retirar, por 46 votos contra 14,
a definição do comunismo anárquico como finalidade e se
pronunciar contraria à adoção de sistemas filosóficos ou
ideologias determinadas. O grupo minoritário se manterá
como FORA V Congresso e reafirmará seus princípios.
Apesar do peso das idéias sindicalistas na nascente FORA
IX, é possível encontrar nela muitos representantes que
aderem ao anarquismo e que se formaram nele. Suas con-
signas seguem apelando à luta de classes revolucionária e
à greve geral revolucionária,6 inclusive na organização que
a sucede, a União Sindical Argentina, USA, em 1922. Ha-
bitualmente se atribui à USA uma extração puramente
sindicalista, porém ela manteve uma forte influência anar-
quista ou, mais precisamente, anarco-bolchevista,7 gra-
ças à qual a Aliança Libertária Argentina, ALA, soube exer-
cer seu controle numa relação semelhante à conseguida
pela FAI com a CNT espanhola.8 O surgimento da ALA pode
ser localizado no Primeiro Congresso Regional Anarquis-
ta de Buenos Aires, realizado em outubro de 1922. Ali se
encontram 84 grupos argentinos, dois estrangeiros e 40
representações individuais, sendo excluídos os anarco-bol-
chevistas, que realizarão seu próprio congresso, com a
participação de 60 militantes, representando oito organi-
zações da capital e nove do interior, e constituindo a Ali-
ança Libertária Argentina em 23 de janeiro de 1923, em
Buenos Aires. No dia 23 de abril já começa a ser publicado
seu jornal oficial, El Libertario, que aparecerá até 1932,
com um total de 109 números editados.

196
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

Os debates foram intensos e ferozes entre as duas


correntes, visíveis nos confrontos verbais mantidos en-
tre La Protesta9 e El Trabajo, depois Unión Sindical e pos-
teriormente Bandera Proletaria. Mas a partir de 1917,
com a Revolução Russa, se incorporaria outro tema que
sacudiria o ambiente anarquista: o apoio primário e de
expectativa que produzirá o levantamento do povo russo
diante da opressão tirânica de séculos, irá se traduzin-
do tanto em grupos críticos da revolução10 como em ou-
tros que apoiariam a construção da União Soviética a
qualquer custo. Este debate aparece em todas as publi-
cações da época, e é graficamente retratado em La Pro-
testa, El Trabajo e Bandera Roja. O tempo dissolverá esta
polêmica, mas quando o Estado soviético já não tiver
nada mais de revolucionário e os anarquistas se reuni-
rem contra ele, haverá aparecido na política argentina
uma nova variável impossível de ignorar: o Partido Co-
munista Argentino.
Aos debates anteriores falta acrescentar as ações de
grupos menores, mas de grande repercussão e também
emblemáticos do anarquismo: o anarquismo expropria-
dor ou o anarco-banditismo, definido assim por La Protes-
ta.
A década de 1920, com um novo Estado, eleições uni-
versais, novas relações entre o movimento operário e
o governo, não foi um tempo tranqüilo.11 O fuzilamento
massivo de trabalhadores rurais na Patagônia, o as-
sassinato de Jacinto Aráuz, em La Pampa,12 as ações
assassinas de bandos nacionalistas unificados na Liga
Patriótica, comandada por Manuel Carlés, encontrava
do outro lado lutadores dispostos a se armar, a se de-
fender, a matar seus inimigos e a expropriar para fi-
nanciar suas publicações e ajudar os companheiros
presos. Severino Di Giovanni foi o mais lendário de
todos eles e, ao seu lado, América e os irmãos Scarfó.

197
9
2006

Miguel Arcángel Rosigna,13 cérebro de fugas carcerári-


as impressionantes, inaugura a figura trágica do desa-
parecido na Argentina, depois de ser detido pela polícia.
O grupo de Tamayo Gavilán também deve ser lembrado
e, sem dúvida, a rápida passagem de Durruti, Ascaso e
Jover pela Argentina, com o assalto à estação de metrô
de Caballito e ao Banco da Província de Buenos Aires,
em San Martín.
Deve ter sido muito grande o impacto que estes gru-
pos provocaram, perseguidos sem trégua pela polícia e o
exército, em fuga constante e gerando em muitas in-
tervenções a morte de transeuntes ocasionais. Assim
podemos entender a posição cada vez mais dura do gru-
po de La Protesta, que os condenou publicamente, acu-
sando-os de violência fascista e negando seu anarquis-
mo. Mas frente a ela estavam La Antorcha, Brazo y Cere-
bro, Pampa Libre e Ideas (La Plata), que se mantiveram
próximos. Os expropriadores viram passar milhares de
pesos por suas mãos, mas viveram pobres, ajudando in-
cansavelmente as famílias dos presos, editando publi-
cações anarquistas, como a emblemática Culmine, e com
desfechos que são um símbolo de suas vidas.
Lembremos que Di Giovanni é surpreendido em uma
gráfica revisando a edição das obras de Elisée Reclus,
Rosigna cai depois de se arriscar para libertar seus com-
panheiros da prisão de Montevidéu e Durruti morre na
defesa heróica de Madri. Enfim, a década de 1920 foi de
duro e sangrento debate dentro do anarquismo,14 no tom
do ambiente social de violência e repressão estatal, de
assassinatos patrióticos da Liga de Manuel Carlés.
Não podemos entender a violência entre as tendên-
cias anarquistas sem analisar seu conteúdo social, sem
considerar a violência a que eram submetidos pelo Es-
tado, que os colocava contra a parede, ou as definições
políticas, que eram vividas como uma escolha de sobre-

198
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

vivência. Provavelmente esta análise sobre a violência


praticada durante toda a década para dirimir as dife-
renças políticas no interior do anarquismo não seja com-
pleta, e outros interessantes fatores possam ser incor-
porados,15 mas sem dúvida é um elemento a ser consi-
derado.
Não interessa aqui definir as arestas que delimita-
riam um suposto corpus anarquista, incluindo e exclu-
indo as tendências do movimento, estabelecendo uma
ortodoxia ou um pensamento definitivo para o anarquis-
mo. Como sabemos, o desenvolvimento do pensamento
libertário contemplou em todas as épocas diversos ma-
tizes e também aqueles que pretenderam se atribuir a
condição de verdadeiros porta-vozes da idéia. Foram La
Protesta e a FORA V os que cuidaram estritamente dos
postulados, mas o que podemos dizer do antorchismo, do
anarco-sindicalismo da ALA, dos anarco-bolchevistas, do
anarquismo expropriador, e ainda daqueles libertários
individualistas que não se enquadravam em nenhum
destes grupos?
Enquanto em décadas anteriores os diferentes olha-
res ampliavam a chegada a crescentes setores sociais,
agora não havia lugar para dissidências e a violência
dirimia os confrontos. As transformações econômicas,
políticas e sociais colocaram em disjuntivas impossí-
veis de prever um movimento que tivera eco em amplos
setores sob seus límpidos princípios. Estes deviam ser
mantidos a custa de uma menor representação nas mas-
sas? Em caso afirmativo, como agir, como manter o so-
nho da derrocada do capitalismo, como fazer política?
No interior do anarquismo, na medida em que não
se trata de uma teoria acabada que pressupõe a queda
do capitalismo ou a sucessão de modos de produção que
augura a chegada do socialismo, são intensas as variá-
veis que entram em jogo, pois é mais forte aqui apenas

199
9
2006

a potente voz que reclama justiça, a indomável atitude


contra toda forma de exploração, o sensível grito diante
da opressão. Assim pode ser entendida a atitude solitá-
ria e reivindicadora de tantos anarquistas como Rado-
witzky, Wilckens e Wladimirovich, e se bem se conside-
ra que onde há opressão deverá haver um ato de rebel-
dia, tudo isto estava delimitado pela idéia firme de que
o mundo libertário seria alcançado em breve, de que o
capitalismo desmoronaria inevitavelmente.
Se o anarquismo estava longe de estar morto em
1910, também já não era o mesmo. Agora havia tensão
em diversos setores, e alimentava-se de novas práticas
diante de uma nova realidade, mas ainda mantinha uma
forte influência no cenário argentino. A FORA acusa os
outros, talvez com razão, de desviacionismo. Mas sem
reconhecer que seu purismo a distancia e a reduz cada
vez mais. Os outros buscam novas formas de articular
as idéias libertárias, de operar em uma realidade que
muda, mas sem visualizar que agora estão longe de uma
época em que a queda de todo um sistema parecia imi-
nente. Acabara, então, a crença das massas em uma
mudança revolucionária, na queda abrupta do capita-
lismo.
Então, como agir? Como efetivar um posicionamento
político de agora em diante? O tempo, e mais precisa-
mente a década de 1930, irá desenhando no movimento
libertário esta busca de respostas.

II
No dia 6 de setembro de 1930, o General José Félix
Uriburu inaugura a história dos golpes de Estado na
Argentina do século XX. O presidente Hipólito Yrigoyen
entregará um trunfo aos anarquistas meses antes de
ser derrocado: o indulto a Simón Radowitzky. Mas isto

200
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

contribuirá para a irremediável queda do líder radical.


Imediatamente, todas as publicações anarquistas foram
proibidas16 e seus locais invadidos. Aconteceria um dos
momentos de maior repressão para o movimento. Sur-
preendido em meio a divisões internas, desarticulado e
sem capacidade de resposta, sofre centenas de detenções,
aprisionamentos em Ushuaia, deportações, fuzilamen-
tos17 e torturas. Na hora do resguardo, de nada serviu à
FORA manter-se longe do que definia como um conflito
dentro da burguesia, e a La Protesta tampouco lhe foi útil
se desligar dos setores violentos do anarquismo, conven-
cida a ter um rosto mais humano. Diante da ditadura se
apagam todas as diferenças. Para o autoritarismo não
existem tons de cinza, mas um só inimigo. As sutilezas
não são seu ponto forte, e a tortura emergirá como sínte-
se de seu discurso.
Paradoxalmente, a repressão serviu para refletir sobre
a luta e a morte mantida nos anos 20: parecia uma res-
posta da história, que castigava violentamente aqueles
que tinham se relacionado com violência, convidando-os
a se unirem contra o verdadeiro inimigo. A ditadura deu
o marco concreto para possibilitar a unidade: o batalhão
3o bis da prisão de Villa Devoto,18 onde tinham confluído
centenas de militares de diferentes tendências, muitos
como passo prévio à transferência para Ushuaia. Os li-
bertários, depois de várias disputas,19 conseguem expul-
sar os comunistas do pavilhão, situação que deve ter con-
tribuído para o seu reconhecimento e se unirem neste
confronto secundário, mas não de menor importância
para o anarquismo. Assim, o espaço estava completo para
dar início às discussões; e seus olhares se voltaram para
a autocrítica, e produziram um fato impensável anos
atrás: 300 militantes de todas as tendências, em setem-
bro de 1931, organizaram um Congresso na prisão.20 Era
o começo da unidade e da reinvenção, e ao mesmo tempo
do surgimento de um novo tema de discussão: a criação

201
9
2006

de uma organização específica do anarquismo que logras-


se coordenar e unificar suas forças.
O especifismo não era na verdade um tema novo: sem-
pre havia se aproximado da idéia de construir uma or-
ganização mãe e o I Congresso Regional de 1922 podia
ter aberto este caminho. O certo é que, intimamente,
todos21 coincidiam em reconhecer a FORA como organi-
zação finalista, e em se distanciar de construções mais
próprias de partidos políticos burgueses ou autoritários.
Enfim, era o proletariado sob seus princípios federativos
a verdadeira expressão do anarquismo local,22 sua fer-
ramenta de luta, e talvez o começo da sociedade futu-
ra.23 Mas a FORA não tinha cada vez menos peso dentro
do movimento operário? E, por outro lado, como coorde-
nar setores crescentes, como o movimento estudantil24
ou os núcleos culturais? Estas perguntas foram chaves
na hora de pensar a nova organização; parecia que o
anarquismo tinha começado a variar em sua composi-
ção.
Mas 1930 é também a década que marca o fim do
modelo agro-exportador argentino, é a crise final do so-
nho harmônico, como celeiro do mundo, que tinha pro-
porcionado a divisão internacional do trabalho. E com
isto a estrutura produtiva irá se transformando, acele-
rando as mudanças já anunciadas durante a Primeira
Guerra Mundial. Isto reanimará o debate iniciado na
década anterior entre aqueles partidários da organiza-
ção por ofício ou por indústria. A FORA se manterá fiel a
seus princípios federativos, opondo-se a todo tipo de or-
ganização por indústria. Esta posição, que já tinha ge-
rado a incorporação de muitos sindicatos à USA, agora
propiciará que muitos anarquistas criem grupos inter-
sindicais nas associações reformistas, e que reconhe-
çam as transformações no capitalismo como um fato
objetivo com o qual deverão trabalhar. Com estes pontos

202
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

centrais de discussão: superar as diferenças fratricidas


da década anterior, criar uma organização específica do
anarquismo e revitalizar a FORA sem deixar de levar em
consideração outras formas de participação sindical.
Acontecerá então, um grande encontro em setembro de
1932, em Rosario, o II Congresso Regional Anarquista.25
Todos os setores contribuíram para sua realização; La
Protesta pediu, desde suas páginas, a elaboração de co-
municações que delineassem os pontos de discussão, me-
diante uma pesquisa destinada a seus leitores, e vários
militantes percorreram o país, reabilitando as velhas prá-
ticas linyheras,26 para concentrar os grupos e instar sua
participação.
Em 13 de setembro de 1932 começa o Congresso, com
a participação de 53 delegados em representação de 30
organizações de toda a Argentina.27 Tinha sido aberto,
uma vez mais na história anarquista, um lugar de inter-
câmbio, construção e reconhecimento. Mas, tinham sido
diluídas realmente as diferenças para permitir a unida-
de? Na verdade, o que pareceu acontecer é que se esgo-
taram certas discussões e se estabeleceram outras, pro-
duto de uma nova conjuntura histórica e da reorganiza-
ção de grupos e militantes diante de novas disjuntivas.
Desta maneira, encontramos agora representantes do
grupo La Antorcha unidos com a FORA e apoiando o ponto
de minoria no Congresso, três votos, enquanto que 49
delegados aprovam a conformação de uma organização
específica libertária. As principais resoluções que ofe-
receu o encontro instaram a criar uma organização fe-
derativa de grupos que pudesse conter todas as verten-
tes, em ampla liberdade e, ao mesmo tempo, seguir dan-
do à FORA a qualidade de organização finalista do
anarquismo. Por que a FORA se opunha, então, à forma-
ção da organização específica?28 Não podemos omitir que
outras resoluções também impulsionavam a formação

203
9
2006

de grupos inter-sindicais exteriores à FORA e em sindi-


catos opositores.
O impasse estava colocado: resistir dentro da FORA e
provocar dali que os operários percebessem sua verda-
deira luta e nutrissem suas filas, ou reconhecer a per-
da da hegemonia anarquista dentro do movimento ope-
rário e atuar como tal em outros sindicatos. O Congres-
so, sem aceitar totalmente a segunda opção, optou pelo
reconhecimento tácito da realidade, convencido de uma
tática que devolveria ao anarquismo as massas operá-
rias perdidas. Se, depois de mais de 70 anos, vemos esta
tática como infrutífera, este encontro de Rosario, sem
alcançar seus objetivos revolucionários, sempre aber-
tos e presentes, possibilitou o Comitê Regional de Rela-
ções Anarquistas, CRRA, que revitalizou todo o movi-
mento no país e deu ao ideal libertário novas forças. Já
em setembro de 1933, fez nascer Acción Libertaria como
seu porta-voz, retratando quase quarenta anos de histó-
ria, até seu desaparecimento, em março de 1971.
O CRRA29 teve um importante papel na organização
da militância, conseguindo que os seis comitês locais
estabelecidos no Congresso de Rosario (Rosario, Resis-
tencia, Bahia Blanca, Santa Fe, Tucumán y Capital)
aumentassem para 16 em setembro de 1933, e chegas-
sem posteriormente a 30. Conseguiu a conformação de
uma organização inter-sindical na corporação da indu-
mentária, a reorganização da Associação de Trabalha-
dores do Comércio de Rosario e a construção do Sindi-
cato de Operários de Bondes e Anexos em Buenos Aires,
de expansão em todo o país (autônomo, não aderido à
FORA).
A FORA, enquanto isso, terá duas importantes atua-
ções no começo da década: a greve portuária, em janei-
ro de 1931 e, em julho, diante da chegada de uma em-
barcação nazista, a agitação e a greve convocada pela

204
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

Federação Operária Local Bonaerense. Agora, enquanto


as atividades do CRRA cresciam, conectando zonas e pre-
parando a todos os militantes do país para um próximo
congresso que fizesse surgir a Organização Específica,
esperavam-se os resultados da Assembléia Geral da
FORA, a ser realizada em outubro de 1934. Mesmo sen-
do conhecida a opinião contrária da maioria dos mem-
bros da FORA em relação à formação específica, espera-
va-se que influísse a majoritária votação do congresso
de Rosario. Mas, finalmente, as resoluções aprovadas pela
FORA não foram alentadoras para aqueles que impulsio-
navam os acordos de 1932: reafirmou-se a organização
por ofício, a posição contrária às comissões inter-sindi-
cais30 e a opinião anti-especifista, assentando uma dura
postura contra a organização libertária nascente. Dian-
te disto, o CRRA optou por se definir abertamente a favor
de impulsionar o trabalho nos sindicatos por rama de in-
dústria. A brecha estava aberta novamente.
Entretanto, isto não malogrou o objetivo, e o trabalho
desenvolvido pelo CRRA durante três anos pôde se concre-
tizar em outubro de 1935, ao ser realizado o Congresso
Constituinte da Federação Anarco-Comunista Argentina,
FACA.
A FACA, primeira organização específica da Argentina,
estabelece sua sede de correspondência em Buenos Aires,
e começa a desenvolver múltiplas atividades em todo o
país, em continuidade com as desempenhadas pelo CRRA.
Podemos destacar a intensificação da campanha pela li-
berdade dos presos de Bragado: Pascual Vuotto, Reclus de
Diago e Santiago Mainini, torturados e condenados por um
crime que não cometeram, em 1931. Foram editados mi-
lhares de exemplares do jornal Justicia,31 porta-voz da cam-
panha, e percorrido todo o país, com manifestações, supor-
tando a perseguição e o assassinato,32 até conseguir o in-
dulto, em 1942.

205
9
2006

Em 1936 acontece um dos fatos mais importantes


para o anarquismo mundial. O levantamento do gene-
ral Franco contra a República Espanhola desencadeia a
Guerra Civil, mas também acelera o processo revoluci-
onário que vinha sendo desenhado, e que tinha como
protagonista o forte movimento anarquista espanhol. O
movimento anarquista cumpriu um papel decisivo na
derrota dos sublevados em várias cidades, e conseguiu
controlar importantes zonas, desenvolvendo seu traba-
lho de construção revolucionária. Assim nasceram as
coletividades de Aragón e a coletivização de indústrias
e serviços na maior parte da Catalunha. Na Argentina,
a FACA realizou uma campanha importante a favor do
movimento espanhol. Interveio na formação de nume-
rosos comitês populares de ajuda à Espanha. Fundou,
em acordo com a CNT e a FAI espanhola, o Serviço de
Propaganda de Espanha, editando a revista Documentos
Históricos de España, e impulsionou a formação da Soli-
dariedade Internacional Antifascista, SIA. Foram desig-
nados três militantes como delegados na Espanha: Ja-
cobo Prince, Jacobo Maguid e José Grunfeld, que ocupa-
ram cargos de máxima responsabilidade no jornal da
confederação Solidaridad Obrera, na publicação da FAI,
Tierra y Libertad, e na Secretaria Peninsular da FAI, res-
pectivamente.
A década de 1930 foi de formação e crescimento para
a FACA, em duras condições de repressão, que tinham
dizimado o movimento no início da ditadura. Em 1939,
com uma estratégia de ampliação e junto a homens
que não eram libertários, é criada a revista Hombre de
América. E em 1941 surge o jornal Solidaridad Obrera,
como expressão de um importante setor de corporações
autônomas orientadas pela FACA. Em 1946, a criação
da editorial Reconstruir foi de notável importância para
a difusão das idéias libertárias, editando dezenas de fo-
lhetos e livros, até os dias de hoje.

206
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

A derrota na Revolução Espanhola e o começo da Se-


gunda Guerra Mundial reavivaram as campanhas anti-
militaristas, assim como a ajuda a todos os refugiados.
Neste marco se iniciou uma campanha para auxiliar os
companheiros sobreviventes do terror nazista, envian-
do roupas e mantimentos à Alemanha.
O enorme impacto repressivo que causou o fascismo
em todo o mundo, sua expansão, o surgimento do regi-
me nazista e a existência, na Argentina, de grupos que
assassinavam os operários e que apoiavam estas ten-
dências, gerou um clima político que buscou evitar o
nascimento de movimentos similares no país. O pero-
nismo parecia reunir as condições de um movimento
fascista vernáculo, construindo sua base de sustenta-
ção na massa operária, organizada em sindicatos im-
pulsionados desde o Estado e com uma orientação auto-
ritária. A maior parte dos libertários não duvidou em
atacar o Estado peronista, recebendo prisão e fechamento
de seus jornais: em 1946 foi criado o jornal Reconstruir,
que sofreu processos por desacato e seqüestro de edi-
ções, transladando sua impressão para a cidade de Ro-
sario, e em 1952 foram encarcerados os operários por-
tuários da FORA.
O ano de 1945 foi outro ponto de inflexão para a his-
tória argentina. Juan Domingo Perón chega à presidên-
cia e com ele se produz uma das grandes mudanças do
século. A crise terminal do modelo agro-exportador ar-
gentino, que tanto proveito gerou até a década de 1930,
e as condições criadas pela Segunda Guerra Mundial,
impulsionaram setores da burguesia nacional para a
construção de um projeto de desenvolvimento interno.
A indústria nacional, e mais ainda o controle estatal da
economia, serão os pilares do peronismo. Somado a isso,
a necessidade de criar um mercado interno de consu-
mo crescente que possibilitasse a produção nacional.

207
9
2006

As mudanças sociais e políticas produzidas a partir dis-


so foram de tal magnitude que provocaram um movi-
mento de massas de importância mundial. A sindicali-
zação operária elevou-se de 500.000 para 2.500.000 fili-
ados e os benefícios obtidos pelos trabalhadores, em
condições de pleno emprego, produziram um desloca-
mento rápido de adesões ao peronismo. Esta atitude da
maior parte do movimento operário, que se prolonga até
os dias de hoje, relegou ao esquecimento a riqueza das
experiências anteriores, produzindo uma invisibilida-
de, sobretudo do movimento anarquista.
A construção do discurso peronista alimentou-se de
reivindicações operárias existentes, apelou para a dig-
nificação do oprimido e aludiu para tanto à exaltação da
pátria. Mas, se em décadas anteriores recorreu-se à
pátria desde o poder e contra os operários de idéias es-
trangeiros, agora se utilizava para designar àqueles que
tinham ocupado o subsolo da nação. O verdadeiro feitor
da pátria era, então, o povo trabalhador, aquele que for-
java com seu esforço as riquezas nacionais. O movimen-
to operário, que durante décadas tinha construído suas
reivindicações em oposição direta ao conceito de pátria,
estabelecendo-o como raiz do militarismo, as guerras e
o aproveitamento da burguesia, via agora que seus re-
clamos se veiculavam através dela. O trabalhador co-
meçou a ser protegido por uma legislação inexistente
tempo atrás, a redistribuição do ingresso nacional diri-
giu-se para os mais desfavorecidos, os salários aumen-
taram, muitas reivindicações socialistas e anarquistas33
começaram a ser cumpridas e muitas pessoas começa-
ram a aceder a benefícios antes negados. Mas, se os
benefícios econômicos e sociais foram reais, e a explo-
ração descarnada que realizava a elite foi restringida, a
dignidade alcançada estava longe dos postulados revo-
lucionários da primeira metade do século. O melhora-
mento das condições sociais pareceu reconstruir o

208
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

movimento operário, e direcioná-lo por um sentido de


pertencimento e inclusão. As lutas já não estavam
dirigidas para a emancipação do gênero humano, para
derribar as fronteiras que separam os homens e der-
rocar o capitalismo. E a dignidade pretendida tinha
um recorte nos ideais mais altos, nascidos nos movi-
mentos revolucionários.
Neste sentido, se a abertura da ordem conservadora
ao voto universal significou uma inclusão de amplos
setores na representação política, o peronismo con-
formou um segundo movimento de abertura, agora na
esfera econômica e social, e uma construção de per-
tencimento no âmbito capitalista. Será necessário
aguardar algumas décadas para que uma nova fase do
sistema capitalista descarte a necessidade do pleno
emprego e o consumo massivo para se realimentar, e
possa acomodar a acumulação junto à exclusão de
grandes massas do mercado de trabalho e de consu-
mo.
A posição assumida pela FACA frente ao governo
peronista ficou plasmada no jornal Acción Libertaria, e
também nas resoluções e declarações dos diferentes
congressos e plenários nacionais, celebrados por esta
organização.
Desde a formação da FACA até sua designação como
Federação Libertária Argentina, FLA, aconteceram seis
grandes encontros: em dezembro de 1936 o Plenário
Nacional de Agrupações Provinciais, em fevereiro de
1938 o Primeiro Congresso Ordinário, em julho de 1940
o Segundo Congresso Ordinário, em outubro de 1942
o Plenário Nacional de Agrupações e Militantes, em
dezembro de 1951 o Terceiro Congresso Ordinário e,
em fevereiro de 1955, o Quarto Congresso Ordinário;
nasce a FLA.

209
9
2006

Se nesta data as idéias anarquistas tinham deixa-


do de ser uma expressão de massas e de representar
o movimento operário majoritário, sobressai a conti-
nuidade e o desenvolvimento conseguido pela organi-
zação específica. Enquanto o anarquismo via-se rele-
gado em sua expressão operária a um espaço cada vez
mais reduzido, desenvolveu-se uma nova forma de
canalizar os ideais libertários que, sem deixar de es-
tar imersa no retraimento geral do movimento, esfor-
çava-se para demonstrar a vigência das idéias anar-
quistas. Este novo momento histórico, vivido sob a
necessidade de uma mudança de estratégias, que ar-
ticulava a militância não incluída na FORA, insuflou
forças ao movimento e possibilitou a Federação Liber-
tária Argentina, em atividade permanente até os dias
de hoje. Sem prejuízo da FORA, que soube contemplar
milhares de trabalhadores nas décadas anteriores,
tinha sido aberta um novo momento, que propiciava
outro tipo de militância. Ainda que para ambas orga-
nizações apenas ficasse reservado um lugar de mino-
rias.
Não se pode dizer que as idéias anarquistas tenham
falecido. Nem tampouco que ao serem adotadas por
grandes contingentes humanos fossem de maior acer-
to. Isto só expressaria um especial clima de época,
quando maiorias estariam dispostas a romper com os
valores que sustentam todo um sistema. Possibilida-
de sempre aberta, neste breve momento da história
que é o capitalismo, e no qual as idéias anarquistas,
através dos questionamentos colocados sobre a igual-
dade e a liberdade, seguem expressando sua vigência
e, sobretudo, em seu grito firme contra toda opressão.

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

210
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

Notas
1
As atividades de Malatesta e Gori na Argentina, assim como seu pensamento,
aparecem bem retratados em: Hugo Mancuso & Armando Minguzzi. Pensami-
ento social italiano en Argentina: utopias anarquistas y programas socialistas (1870-
1920). Buenos Aires, Ediciones Biblioteca Nacional, 1999, p. 12. Também ver:
Hector Adolfo Cordero. Alberto Ghiraldo, precursor de nuevos tiempos. Buenos
Aires, Editorial Claridad, 1962.
2
Na revista Ciencia Social n° 15, fevereiro de 1900, reproduz-se o seminário
ministrado por Pietro Gori na Universidade de Buenos Aires.
3
Tinha surgido antes como La Protesta Humana. Ver Pablo M. Pérez (Coord.).
Catálogo de Publicaciones Políticas, Sociales y Culturales Anarquistas (1890-1945).
Colección Archivo. Federación Libertaria Argentina. Biblioteca Archivo de
Estudios Libertarios. Buenos Aires, Editorial Reconstruir, 2002.
4
A publicação anti-organizadora por excelência foi El Perseguido, que aparece
em 18 de março de 1890. O porta-voz máximo da tendência anarco-individu-
alista foi Germinal, que por sua vez aparece em 14 de novembro de 1897. E a
tendência organizadora inicia-se com força em 1894, com três publicações: El
Obrero Panadero, El Oprimido e La Questione Sociale.
5
Em 1898 o grupo Progreso y Libertad, de La Plata, organiza um Encontro
Socialista Libertário, onde um dos temas propostos mostra a importância deste
debate: “(...) o coletivismo, o comunismo e o individualismo, origem e impor-
tância atual e futura destas teorias socialistas. Qual delas está mais em harmo-
nia com os princípios da anarquia?”. Folheto do grupo Progreso y Libertad, na
biblioteca José Ingenieros.
6
Ver Samuel L. Baily. Movimiento obrero, nacionalismo y política en la Argentina.
Buenos Aires, Editorial Paidós, 1984.
7
Sobre esta definição ver Andrés Doesswijk. Entre camaleones y cristalizados: los
anarcobolcheviques rioplatenses, 1917-1930. Tese de Doutorado. Universidade de
Campinas, 1998.
8
Foi consultado o trabalho de Fernando López Trujillo, “El anarquismo en los
´30: la FACA”, apresentado em: I Jornadas de Historia de lãs Izquierdas, organiza-
ção do Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas,
CeDInCI, em Buenos Aires, em dezembro de 2000. O autor afirma a hipótese
de que o conflito entre a USA e a FORA pode ser entendido como uma disputa
ideológica no interior do próprio movimento anarquista. Também ver núm. 7
de Vía Libre, abril de 1920. No artigo intitulado “Federación Obrera Argenti-
na, apuntes de historia y critica del movimiento obrero argentino”, assinado
por Armando Flogueral, é criticada duramente a constituição da FORA V. Este
grupo é acusado diretamente de ter realizado um golpe interno no anarquismo,
e de atentar contra a unidade do movimento operário e lhe retirar, ao mesmo

211
9
2006

IX, mas em menor número em relação a outros grupos, até que a FORA IX,
perdida em sua linha de ação, foi presa de negociações oportunistas. Desde o
anarquismo, e referenciando a Malatesta e Bakunin, rejeita a tática da FORA V
e adere à moção de omitir a definição de anarco-comunismo dos estatutos
internos, segundo o argumento de que não é possível chegar à “Idéia” através
da luta econômica sindical, mas sim em um momento posterior, sendo que esta
luta proporciona apenas a solidariedade operária e o reconhecimento como
grupo.
9
Em 1916 acontecera um rompimento no interior de La Protesta, que provo-
cou a saída de Antilli e Rodolfo González Pacheco, que fundam La Protesta
Humana, La Obra, depois Tribuna Proletária, e mais tarde La Antorcha.
10
Atitude acentuada pela matança de anarquistas em Kronstadt, perpetrada
pelo Exército Vermelho, comandado por Trotsky.
11
A década fora inaugurada em 1919, com os acontecimentos da Semana
Trágica. Ver Edgardo Bilsky. La Semana Trágica. Buenos Aires, CEAL, 1984, e
Julio Godio. La Semana Trágica... Buenos Aires, Hyspamerica, 1985.
12
Ver Osvaldo Bayer. Los anarquistas expropiadores, Simon Radowitzky y otros
ensayos. Buenos Aires, Editorial Galerna, 1975. Na década de 1920 sucedem-se
os assassinatos de trabalhadores, assim como na grande greve de La Floreetal,
na região do Chaco em Gualeguaychu, cometidos pela Liga Patriótica.
13
No dia 27 de março de 1931, nove dias depois da famosa fuga do presídio de
Punta Carretas, de Montevidéu, quando conseguiram fugir Vicente Moretti e
três anarquistas catalães, Ros.igna é capturado pela policia em seu alojamento
na rua Curupí. No dia 31 de dezembro de 1936 chega ao fim sua reclusão no
Uruguai e é deportado para a Argentina, onde o aguardam vários processos,
mas, apesar de anulados, é transladado de delegacia em delegacia, até que se
perde qualquer pista dele. Supõe-se que tenha sido lançado ao Rio da Prata.
Em 10 de maio de 1935, Juan Antonio Moran, secretario geral da União
Operária Marítima e também anarquista, sofreu uma morte similar, quando foi
seqüestrado ao ser libertado da prisão de Caseros, mas encontrado morto e
torturado dois dias depois em General Pacheco.
14
Vale lembrar o ataque ao jornal Pampa Libre, de General Pico, em agosto de
1924, efetuado por gente de La Protesta, ou o assassinato de López Arango em
1929, praticado, supostamente, por gente de Severino Di Giovanni. Ver Jorge
Etchenique. Pampa Libre., anarquistas en la Pampa argentina. Buenos Aires, Ame-
ríndia, 2000.
15
Na década seguinte, a repressão estatal será feroz durante a ditadura e,
entretanto, o movimento se dispõe a encontrar outros mecanismos parar solu-
cionar as diferenças; ali começa a Federação Libertária Argentina.

212
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

16
Curiosamente, a primeira publicação que consegue ser editada na clandestini-
dade é Anarchia, elaborada por Di Giovanni e América Scarfó. Mas a sua
atitude insubmissa acabará em pouco tempo, quando Di Giovanni é capturado
e fuzilado.
17
No dia 1o. de fevereiro de 1931 será fuzilado Di Giovanni e, no dia seguinte,
Paulino Scarfó.
Ver José Grunfeld. Memorias de un anarquista. Buenos Aires, Editorial Nuevo
18

Hacer, 2000; e Jacobo Maguid. Recuerdo de un libertario. Buenos Aires, Editorial


Reconstruir, 1995. Os autores fazem o relato destes fatos como participantes.
19
Resultam vários feridos depois de um grande enfrentamento.
20
Ver Jacobo Maguid. op. cit. O autor afirma que as atas do Congresso foram
elaboradas por Jesús Villarías, primeiro editor do jornal Pampa Libre e depois de
Brazo y Cerebro. Posteriormente, estas atas servirão como antecedentes no Con-
gresso de Rosario, de 1932, para onde serão enviadas. No dia sábado 17 de
janeiro de 1931, o jornal L´Adunata del Refrattari, de Nova Iorque, publica uma
carta sobre o congresso da prisão.
21
Ver Jacobo Maguid, op. cit. O autor explica que a criação de uma organização
não se pretendia em detrimento da FORA. Ver também José Grunfeld, op. cit.,
2000, em que narra as atividades realizadas em Rosario para vitalizar a FORA,
ao mesmo tempo em que eram organizados os Comitês Regionais de Relações
Anarquistas.
22
Em outros países existiam organizações específicas, lembremos apenas o caso
da FAI, na península Ibérica.
23
Neste sentido, cabe esclarecer que a FORA rejeitou a posição anarco-sindica-
lista. Isto é, não aceitava que os sindicatos se encarregassem da construção da
sociedade, depois da revolução emancipadora, e manteve sua posição de que
não é possível legislar sobre o futuro da sociedade depois da mudança. Ver
Antonio López. La FORA en el movimiento obrero. Buenos Aires, Centro Editor
de América Latina, 1987.
24
José Maria Lunazzi, reconhecido militante, chegou a ser presidente da Fede-
ração Universitária de La Plata.
25
Ver Jacobo Maguid, op. cit., O autor afirma que foi considerado como
antecedente o Congresso de 1922, para denominar este como II Congresso.
26
Os linyheras costumavam perambular pelas ruas, sem trabalho fixo. Também
eram contatos que levavam jornais anarquistas a diferentes partes da Argenti-
na. Havia certos lugares marcados onde enterravam estes jornais, para serem
apanhados por outras pessoas. Ver Jorge Etchenique, op. cit.

213
9
2006

27
Fernando López Trujillo, em seu trabalho antes citado, reproduz uma nota de
La Protesta, de 24 de setembro de 1932, na qual aparecem todos os grupos
participantes.
28
A FORA sempre combateu a formação de uma organização específica do
anarquismo. Neste período o fará com maior força a partir do Congresso de
Rosario, de 1932. Ver Antonio López. La FORA en el movimiento obrero. Tomo
I. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1987
29
A secretaria geral do CRRA funcionou na clandestinidade, na casa do mili-
tante Enrique Balbuena.
30
Será necessário esperar até a Reunião Geral da FORA, realizada em 1962,
para que aconteça uma abertura neste sentido. Na ocasião, uma resolução
estabelece a formação de grupos inter-sindicais de orientação forista em asso-
ciações alheias ao movimento. Ver Antonio López, op. cit.
31
Ver Pablo M. Pérez, op. cit.
32
Em um ato em Santa Fe é assassinado o militante Salvatierra por um grupo
fascista. Ver Jacobo Maguid, op. cit.
33
Ver Antonio López, op. cit.
“O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista”. Prefácio à edição norte-
34

americana de O anti-Édipo, capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix


Guattari.

214
verve
Uma história do anarquismo: o surgimento...

RESUMO

O movimento anarquista argentino desde começos do século XX,


considerando os seus diferentes posicionamentos, divergências e
encontros. Conflui no surgimento da Federação Anarco Comunis-
ta Argentina, FACA, em 1955 e seu desdobramento na Federação
Libertária Argentina, FLA, em 1935. Descreve o surgimento e as
atividades da Biblioteca Arquivo de Estudos Libertários, BAEL,
na década de 1990.

Palavras-chave: movimento anarquista, história, Argentina

ABSTRACT

The Argentinean anarchist movement since the beginning of the


20th Century, taking into account its different positions, divergen-
ces and encounters. Converge in the emergence of the Argentine-
an Anarcho Communist Federation, FACA, in 1935 and its develo-
pments to the Argentinean Libertarian Federation, FLA, in 1955.
Describes the emergence and activities of the Archive Library of
Libertarian Studies in the 1990s.

Keywords: anarchist movement, history, Argentina.

Recebido para publicação em 3 de março de 2006 e confirmado em


21 de março de 2006.

215
verve
Durruti está morto, contudo vivo

durruti está morto, contudo vivo1

emma goldman*

Durruti, a quem vi há não mais que um mês, perdeu


sua vida nos combates de rua de Madrid.
Meu conhecimento anterior deste tempestuoso pe-
trel do anarquismo e seu revolucionário movimento na
Espanha era meramente das leituras sobre ele. Em mi-
nha chegada a Barcelona aprendi muitas histórias fasci-
nantes sobre Durruti e sua coluna. Elas tornaram-me ávi-
da para ir ao front de Aragon, onde ele era o espírito guia
das audazes valentes milícias, lutando contra o fascismo.

* Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidos


com a irmã indo trabalhar como operária têxtil. Em pouco tempo tornou-se uma
militante combativa juntamente com seu companheiro Alexandre Berkman, o
que lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente o uso
de contraceptivos. Escolhemos este texto (In Emma Goldman. Anarchism and
Other Essays. Toronto, Dover Publication Inc., 1969. pp. 109-126) de 1910 por
mostrar uma reflexão ativista, dirigida aos trabalhadores organizados, situando
os efeitos de uma leitura científica e a necessidade da abolição das prisões. Emma
Goldman participou criticamente da Revolução Russa, da Guerra Civil Espa-
nhola e morreu em 1940, no Canadá. Seu corpo foi sepultado em Chicago, junto
com os dos anarquistas de Haymarket.

verve, 9: 217-225, 2006


217
9
2006

Cheguei ao quartel-general de Durruti quase à noite,


completamente exausta pela longa viagem numa estrada
rude. Poucos momentos com Durruti foram um forte tôni-
co, refrescante e animador. Um corpo poderoso como se
abrisse o caminho das Pedras de Monteserrat, Durruti
representava facilmente a imagem mais dominante en-
tre os Anarquistas que conheci desde minha chegada à
Espanha. Sua energia extraordinária me entusiasma-
va, como parecia ser o efeito em todos os que estavam ao
seu redor.
Vi Durruti em uma verdadeira colméia de atividades.
Homens entrando e saindo, o telefone constantemente
chamando por Durruti. Além disso, haviam as ensurdece-
doras marteladas dos trabalhadores que estavam constru-
indo um galpão de madeira para a equipe de Durruti. Atra-
vés de toda a gritaria e constante exigência de seu tempo,
Durruti permaneceu sereno e paciente. Recebeu-me como
se me tivesse conhecido por toda sua vida. A gentileza e
cordialidade de um homem engajado em uma luta de vida
ou morte contra o fascismo era algo que eu dificilmente
esperava.
Havia ouvido muito sobre o comando de Durruti, so-
bre a coluna que levava seu nome. Estava curiosa para
saber por quais meios, além da campanha militar, ele
utilizou para conseguir unir ao todo 10.000 voluntários
sem treinamento ou experiência militares de nenhum
tipo. Durruti pareceu surpreso que eu, uma velha Anar-
quista, pudesse mesmo perguntar isso.
“Tenho sido um Anarquista por toda minha vida”, ele
respondeu. “Espero que tenha permanecido um. Eu deve-
ria achar muito triste ter me tornado um general e domi-
nar os homens com pulso militar. Eles vieram a mim vo-
luntariamente, estão prontos a arriscar sua vida na luta
antifascista. Acredito, como sempre acreditei, em liber-
dade. A liberdade que repousa no senso de responsabilida-

218
verve
Durruti está morto, contudo vivo

de. Considero a disciplina indispensável, mas precisa ser


interna, motivada por um propósito comum e por um forte
sentimento de camaradagem.” Ele ganhou a confiança dos
homens e sua afeição porque nunca agiu como superior.
Durruti era como um deles. Comia e dormia com tanta
simplicidade quanto eles; freqüentemente negando a si
sua própria porção para alguém fraco ou doente, e mais
necessitado. E dividia com eles, também, o perigo de cada
batalha. Este era sem dúvida o segredo de seu sucesso
com a coluna. Os homens o adoravam. Eles não somente
levavam adiante todas as instruções dele como também
estavam prontos para segui-lo ao maior risco possível para
repelir a posição fascista.
Eu havia chegado na noite de um ataque que Durruti
tinha preparado para a manhã seguinte. Ao amanhecer,
Durruti — assim como o resto da milícia, com o rifle sobre
o ombro — liderou o caminho. Junto deles, fez o inimigo
retroceder 4 km, e também obteve sucesso em capturar
uma quantia considerável de armas que os inimigos ti-
nham deixado para trás em sua fuga.
O exemplo moral de simples igualdade não era de modo
algum a única explicação para a influência de Durruti.
Havia um outro: sua capacidade de fazer com que seus
milicianos compreendessem o sentido mais profundo da
luta antifascista — o sentido que havia dominado sua pró-
pria vida e que ele havia aprendido a articular para os
mais limitados.
Durruti me falou da sua abordagem aos difíceis proble-
mas dos homens que vinham para depois se fazerem au-
sentes logo quando mais se precisava deles no front. Os
homens evidentemente conheciam seu líder — conheci-
am sua determinação — sua vontade férrea. Mas eles tam-
bém conheciam sua compaixão e a nobreza escondidos
por trás de sua aparência austera. Como ele poderia re-

219
9
2006

sistir quando os homens contavam a ele de doença em


casa — pais, esposa ou filhos?
Durruti foi perseguido antes dos gloriosos dias de ju-
lho de 1936, como um animal selvagem, de país a país.
Preso por vezes como criminoso, até mesmo condenado
à morte. Ele, odiado anarquista, odiado pela trindade si-
nistra: a Burguesia, o Estado e a Igreja. Esse sem-teto
vagabundo incapaz de sentimento, como o diabrete ca-
pitalista inteiro proclamava. Quão pouco eles conheci-
am Durruti... Quão pouco entendiam seu coração aman-
te. Ele nunca ficou indiferente às necessidades de seus
companheiros. Agora, no entanto, ele estava engajado
em uma luta desesperada contra o fascismo em defesa
da Revolução, e cada homem era imprescindível em seu
posto. De fato uma situação difícil de enfrentar. Mas a
engenhosidade de Durruti vencia todas as dificuldades.
Ele ouvia pacientemente a história de infortúnio e então
discorria sobre a causa da doença entre os pobres: exces-
so de trabalho, desnutrição, falta de ar livre, de alegria de
viver.
“Você não vê, camarada, que a guerra que eu e você
travamos é para salvaguardar nossa Revolução, e a Re-
volução é para dar fim à miséria e ao sofrimento dos po-
bres. Nós temos de vencer nosso inimigo fascista. Nós
temos que ganhar essa guerra. Você é uma parte es-
sencial disso. Você não vê, camarada?”. Os camaradas
de Durruti viam sim, e geralmente permaneciam.
Quando alguém insistia em partir, Durruti dizia “Tudo
bem, mas você vai a pé, e quando chegar a seu vilarejo,
todos saberão que sua coragem falhou, que você fugiu, que
se esquivou da tarefa que impôs a si mesmo”. Isso funcio-
nava como mágica. O homem implorava para ficar. Ne-
nhuma intimidação militar, nenhuma coerção, nenhu-
ma punição disciplinar para manter a coluna Durruti no

220
verve
Durruti está morto, contudo vivo

front. Só a energia vulcânica do homem carregava to-


dos consigo e fazia todos sentirem-se unos com ele.
Um grande homem este anarquista Durruti, um
líder nato e professor dos homens, atencioso e terno
camarada em uma só pessoa. E agora Durruti está
morto. Seu grande coração já não bate. Seu corpo po-
deroso veio abaixo como uma árvore gigantesca. E no
entanto, porém —Durruti não está morto. As cente-
nas de milhares que compareceram no sábado, 22 de
novembro de 1936, para prestar sua última homena-
gem a Durruti, são a prova disso.
Não, Durruti não está morto. O fogo de seu espírito
ardente acende em todos que o amaram e conhece-
ram, e nunca poderá ser extinto. As massas já ergue-
ram alto a tocha que caiu das mãos de Durruti. Eles a
estão carregando ante si na estrada que Durruti mos-
trou por muitos anos, a estrada que leva ao ápice do
ideal de Durruti. Esse ideal era o anarquismo — a
grande paixão da vida dele. Ele o serviu completamente
e se manteve leal a ele até seu último suspiro.
Se fosse necessária uma prova da ternura de Durruti,
sua preocupação com minha segurança teriam-na
dado. Não havia lugar para alojar-me nos quartéis da
equipe geral. E o vilarejo mais próximo era Pina. Mas
este fora bombardeado repetidamente pelos fascistas.
Durruti abominava que eu fosse mandada para lá. In-
sisti que estava tudo bem. Afinal só se morre uma
vez. Pude ver em seu rosto o orgulho de que sua ca-
marada não tinha medo. Deixou-me ir, sob forte pro-
teção.
Fui grata a ele porque me deu a rara oportunidade
de conhecer muitos dos camaradas em armas de Dur-
ruti e também de falar com as pessoas do vilarejo. O

221
9
2006

espírito dessas vítimas do nazismo, mais que postas à


prova, era extremamente impressionante.
O inimigo estava a apenas uma pequena distância de
Pina e do outro lado de um riacho. Mas não havia medo
ou fraqueza entre as pessoas. Eles heroicamente segui-
am lutando. “Antes mortos que regidos pelo nazismo”, dis-
seram-me. “Estaremos com Durruti e tombaremos com
ele até o último homem”.
Em Pina, descobri uma criança de 8 anos, uma órfã
que já havia sido atrelada à labuta diária com uma família
fascista. Suas mãozinhas estavam vermelhas e incha-
das. Seus olhos, cheios de horror dos terríveis golpes sofri-
dos nas mãos pelos mercenários de Franco. O povo de Pina
é deploravelmente pobre; no entanto todos davam a esta
criança maltratada todo o amor e carinho que ela nunca
conhecera antes.
A imprensa européia, desde o começo da guerra anti-
fascista, uniu-se para caluniar e difamar os espanhóis
defensores da liberdade. Não houve um só dia dos últimos
4 meses em que estes sátrapas não escreviam as repor-
tagens mais sensacionalistas das atrocidades cometidas
pelas forças revolucionárias. Todos os dias os leitores des-
sas folhas amarelas eram alimentados com notícias de
tumultos e desordens em Barcelona e outras cidades e
vilarejos livres da invasão fascista.
Tendo viajado por toda a Catalunha, Aragão e Levante,
visitado cada cidade ou vilarejo no caminho, posso atestar
que não há sequer uma palavra de verdade nos horripi-
lantes relatos que li nas imprensas britânica e continen-
tal.
Um exemplo recente da fabricação de notícias comple-
tamente inescrupulosas era dada por alguns jornais a res-
peito da morte do anarquista e líder heróico na luta anti-
fascista, Buenaventura Durruti.

222
verve
Durruti está morto, contudo vivo

De acordo com este relato absurdo, a morte de Durruti


supostamente levou adiante violentas dissensões e revol-
tas em Barcelona entre os camaradas do falecido herói
revolucionário Durruti.
Seja quem for que escreveu essa invenção descabi-
da, esta pessoa não esteve em Barcelona. E sabia me-
nos ainda do lugar que Buenaventura Durruti ocupava
nos corações dos membros da CNT e da FAI. De fato, nos
corações e na estima de todos apesar de sua divergên-
cia com as idéias políticas e sociais de Durruti. Na ver-
dade, nunca houve tão completa unidade nas fileiras do
front popular na Catalunha, como desde que a morte de
Durruti foi conhecida até quando ele foi finalmente posto
para descansar.
Cada partido de cada facção política que lutava con-
tra o fascismo espanhol parou para prestar tributo amo-
roso a Buenaventura Durruti. Mas não só os camaradas
diretos de Durruti, contando centenas de milhares e
todos os aliados na luta antifascista, a maior parte da
população de Barcelona representou um incessante aflu-
xo de humanidade. Todos tinham vindo para participar
do longo e exaustivo cortejo fúnebre. Barcelona nunca
havia testemunhado antes tal mar de gente, cujo pesar
silencioso ergueu-se e prostrou-se em completo unís-
sono.
Assim também com os camaradas de Durruti — ca-
maradas intimamente ligados por seu ideal, e os cama-
radas da esplêndida coluna que ele havia criado. Sua
admiração, seu amor, sua devoção e respeito não deixa-
ram espaço para discórdia e dissensão. Eles eram como
um só em seu pesar e determinação de continuar a ba-
talha contra o fascismo, e pela concretização da revolu-
ção pela qual Durruti havia vivido, lutado e se arriscado
por inteiro até seu último suspiro.

223
9
2006

Não, Durruti não está morto! Ele está mais vivo que
os vivos. Seu exemplo glorioso será agora emulado por
todos os camponeses e trabalhadores catalães, por todos
os oprimidos e desamparados. As lembranças da cora-
gem e da força de Durruti os incitarão a grandes feitos
até que o fascismo seja destruído. Aí então começará o
verdadeiro trabalho — o trabalho sobre uma nova estru-
tura social de valor humano, justiça e liberdade.
Não, não! Durruti não está morto! Ele vive em nós
para todo sempre.

Tradução do inglês por Maria Abramo Caldeira Brant.

Notas
1
“Durruti is dead, yet living”, Hoover Institution on War, Revolution and
Peace, Stanford, 1936.

224
verve
Durruti está morto, contudo vivo

RESUMO

Emma Goldman, momentos após a morte de Durruti, escreve um


breve e inesquecível texto sobre a existência revolucionária, na
Espanha de 1936.

Palavras-chave: Durruti, Revolução Espanhola, anarquismo.

ABSTRACT

Emma Goldman, soon after Durruti’s death, writes a short and


unforgettable essay on the revolutionary existence, in Spain in
1936.

Keywords: Durruti, Spanish Revolution, anarchism.

Indicado para publicação em 15 de março de 2004.

225
9
2006

…elogio do amor livre1

amparo poch y gascón

Apresentação por Margareth Rago*


A ativista anarquista Amparo Poch y Gascón nasce
em Saragoça, na Espanha, em 1902 e, como muito pou-
cas mulheres em sua época, torna-se médica pedia-
tra. Funda a Organização “Mujeres Libres”, vinculada
à CNT - Confederação Nacional do Trabalho, ao lado de
Mercedes Comaposada e Lucía Sanchez Saornil, alguns
meses antes da eclosão da Guerra Civil Espanhola, em
1936. Escreve na revista do mesmo nome, onde assina
como Dra. Salud Alegre, abordando, com fina ironia, te-
mas políticos, sociais e relativos à saúde feminina e
infantil. Assim como suas companheiras, — e como a
brasileira Maria Lacerda de Moura (1887-1945), que tam-
bém publicava na imprensa anarquista espanhola —,
Amparo criticava a moral burguesa, a virgindade e o ca-
samento monogâmico indissolúvel; defendia a liberda-
de sexual para as mulheres, assim como a maternida-

* Professora do Depto. de História - IFCH/UNICAMP.

verve, 9: 226-235, 2006

226
verve
Elogio do amor livre

de consciente e voluntária. Dedica sua vida à luta re-


volucionária, mesmo durante o exílio forçado pela as-
censão do regime franquista. Falece em Toulouse, em
1968.

Prece do Amor Livre


Diz assim:
I. Tome a pétala fresca e suculenta; tome a polpa
doce da fruta madura; tome a senda esbranquiçada sob
o sol do poente, a colina de ouro, o carvalho, e a fonte
na sombra. Tome meus lábios e meus dentes onde brin-
cam as risadas como fios de água, e os fios de água
como risadas.
II. Eu não tenho Casa. Tenho, sim, um teto amável
para resguardar você da chuva e um leito para que você
descanse e me fale de amor. Mas não tenho Casa. Não
quero! Não quero a insaciável ventosa que enfraquece
o Pensamento, absorve a Vontade, mata o Sonho, que-
bra a doce linha da Paz e do Amor. Eu não tenho Casa.
Quero amar no extenso “além” que não fecha nenhum
muro nem limita nenhum egoísmo.
III. Meu coração é uma rosa de carne. Em cada fo-
lha tem uma ternura e uma ansiedade. Não o mutile!
Tenho asas para ascender pelas regiões da pesqui-
sa e do trabalho. Não as corte!
Tenho as mãos como palmas abertas para recolher
moedas incontáveis de carícias. Não as acorrente!

Convite ao Bom Amor


Mulher, ame sobre todas as coisas. Mas antes apren-
da o Bom Amor. No Bom Amor pesa tanto o alto quanto

227
9
2006

o baixo, o Pensamento quanto a Carne, a Doçura quan-


to o Desejo; e é incompleto se lhe falta qualquer uma
destas coisas. Aprenda o Bom Amor.
Para ele é necessária plena liberdade, mas tam-
bém capacidade plena, pois sem esta a primeira é uma
ficção. Apenas se é livre quando se pode tomar uma
decisão dentre todas as que a ocasião oferece, quando
se pode escolher um caminho depois de ter reconhe-
cido todos, aquilatando seus valores e aceitando suas
conseqüências. Mas isto é obra da Inteligência, do Co-
ração e da Vontade, e é necessário aperfeiçoar os três
se queremos alcançar a categoria de seres livres. Se
não é assim, continuaremos afogando a nossa inqui-
etude entre simulacros amorosos.
Se você não se capacita, mulher, será um ser de
instintos, será uma carne simples, monótona e limi-
tada, fechada em você mesma e por você mesma abo-
lida. Se você não se capacita poderá vibrar com o rit-
mo irregular das estações e dos céus nublados segui-
dos de sol forte; você terá a pulsação perene dos
animais e das plantas; dará suas generosas florações
de fêmea; mas não conseguirá o Bom Amor.
Cultive a Inteligência para enroscá-la como uma
meiga roseira trepadeira no duro tronco dos impera-
tivos do Instinto; cultive a Sensibilidade e a Delicade-
za para correr como um calmo riacho, recolhendo to-
das as dores e todas as alegrias sem descanso, sem o
menor abatimento de sua generosidade; cultive a Von-
tade para perfilar sua vida, para modelar sua canção,
para esculpir suas obras por você mesma.
E depois desdobre o Sorriso como uma suave ser-
pentina multicolorida; reparta o Abraço num denso ra-
cimo de frutas douradas; e solte o Beijo, como um cau-
dal de música feliz.

228
verve
Elogio do amor livre

Lembre que o delicado Eros, para chegar ao Bom Amor,


teve de desatar suas vendagens.
Mulher, ame sobre todas as coisas.

Casamento e amor
Quando o homem perdeu a fresca graça de seus amo-
res sem travas, ingênuos e primitivos; quando se consu-
miu a inocente naturalidade de suas paixões e se afogou
em regras morais a sincera, a cordial simplicidade do
desfrute em plena marcha sobre a Natureza; quando o
hálito perfumado e voluptuoso das “Canções da Bílis” foi
totalmente esquecido... desceu o amor à categoria de
pecado. Mas como a vida, sem ele, estancava-se com sua
fadiga inexplicável, os homens, com um insano desejo
de vingança, lutaram contra Eros e lhe cuspiram no ros-
to.
O condenaram ferozmente, sem pensar que se fazi-
am desgraçados. Por uma paixão, toda uma vida de tortu-
ra. Pela atração de um dia, incontáveis anos de repug-
nância. Eros foi despojado de suas asas.
Por um doce olhar espontâneo é obrigado a estar olhan-
do sempre o mesmo objeto; por um generoso e cândido
abraço é forçado a abraçar sempre a mesma pessoa. A
Alma humana, imóvel; e a Vontade, solidificada em gelo!
Do gesto amoroso se fez um minucioso código, morto e
frio; do mais grato e ardente presente, uma compra-ven-
da em parcelas, inclusive com sua regulamentação; ou à
vista, com seu contrato em regra, e a um preço muito
mais elevado, porque além do dinheiro, que conta para
muito pouco, entram em compromisso o Coração e a Li-
berdade, que são tudo para o Amor.
Quando, roubada a nobreza de toda manifestação amo-
rosa, já feita dever, os homens se envergonharam, tal-

229
9
2006

vez, de tudo o que tinham manchado, tão só tentaram


justificar sua profanação com outra maior, tomada como
desculpa: o filho. E disto, tão claro e tão simples, tão divi-
namente brutal e tão profundamente humano, fizeram
um novo elo e soldaram a corrente para sempre, entre os
covardes. Fizeram tampo para sua hipócrita timidez, do
filho, que é apenas um ponto no qual convergem dois
cuidados e dois deveres, mas nunca uma justificativa moral
do que tão só o Bom Amor, sobre nós, justifica.
E cegos os homens e as mulheres por si mesmos, con-
tinuam caindo na armadilha; e, quando lhes falta nobreza
para encontrar saída, arrancam-se o Coração e o colocam
como alicerce do Casamento.

Um fruto esplêndido: o adultério


Precisamente porque a Vida é Vida, não é quietude.
Somos todos os seres de uma dupla corrente, que não ces-
sa um momento, de entradas e saídas. Sob esta perma-
nência aparente das formas, a matéria e a energia — duas
modalidades da mesma coisa — estão em perpétuo fluir,
em um ir e vir sem descanso. E assim a Alma. Por isso, ao
se sentir ferida no mais profundo, ao sentir degradado o
mais nobre de sua natureza, rangeu de dor e espanto. Ain-
da tentou conter-se na fria unidade de sua condena; mas
a Vida, em seu fluir eterno, impôs-se com razão. Assim,
da degradante aceitação do casamento — contrato e regu-
lamentação do inalienável — surgiu esse fruto vermelho
e redondo, farto e eloqüente, estupendo e prometedor: o
adultério. É o protesto natural e humano contra a trava
pesada ao alado e imponderável; e reivindica, como uma
gargalhada fresca, entre zombeteira e honrada, o pleno
direito à liberdade de amar, o transbordamento sobre as
correntezas artificiais, da evolução da personalidade. Aqui
está, como uma conseqüência do esquecimento do verda-
deiro ser de Eros e do Homem, este duplo crime da mísera

230
verve
Elogio do amor livre

vida diária: a convivência fria ou a carícia instintiva e


isolada sobre a Carne muda; e o abandono culpado e te-
meroso do Sentimento, valor universal. Em suma, amor
que não é Amor.

A mulher em defesa
Quando perdeu sua louçania graciosa de lírio ereto,
a mulher, estritamente monogâmica por imposição, jun-
to ao homem, essencialmente poligâmico por natureza,
e sinceridade cuidadosamente mantidas, percebeu um
fato: a Propriedade. A Casa se fechava como uma boca
ansiosa e havia nela muito que fazer. A realidade eco-
nômica enterrou a mulher, completamente ignorante
já do ingênuo prazer da vida primitiva, de que a Casa a
excluía de todas as tarefas de produção, de todos os tra-
balhos públicos que dão direito à subsistência. Esta lhe
vinha por meio do homem, a quem rendia seus serviços
privados, inclusive os sexuais; e se defendeu em sua
nova posição, preocupando-se por consolidar os laços que
a uniam ao homem.
Este homem é meu e eu sou sua, disse. A Proprieda-
de encolheu seu pontudo nariz de agiota, piscou seus
repugnantes olhos e todos os regimes de opressão au-
mentaram as cifras de suas vítimas.
Foi a venda da Consciência, da Liberdade, da Espon-
taneidade, pela Irresponsabilidade e a negação a produ-
zir.

Em direção ao Bom Amor


Mulher, se você quer recobrar a dignidade perdida;
se quer encontrar um sol novo neste sol tão antigo; se
quer sentir o renascimento de sua alma e a graça sin-
gular de se encontrar a si mesma, suba a escada amo-

231
9
2006

rosa em benefício de sua superação. Multiplique sua


capacidade de amor, mulher, mas...
Pense que o sentir nem lhe dá direito sobre nin-
guém nem a faz objeto de propriedade.
Pense que por muito grandes que sejam a paixão
do prazer e o prazer da paixão, não devem arrastar
você em sua torrente; e que se em uma hora gloriosa
você pode extraviar seus sentidos, jamais deve per-
der sua vontade.
Pense que o homem amado tem sua alma, suas
idéias, seus interesses, sua personalidade, enfim, que
só em alguns pontos coincidirá com a sua; mas que a
mais perfeita coincidência não supõe a absorção de
um pelo outro.
Pense que é imoral permanecer em vida comum e
íntima quando não existe uma florescente Ilusão, uma
palpitante Ansiedade, um doce e sereno Bom Amor,
ainda quando tenham sido feitas mil promessas e mil
propósitos tenham criado mil ligações.
Pense que o filho também não é, nem deve ser, ra-
zão de comunidade amorosa quando já não há amor;
que é possível amá-lo, cuidá-lo, instrui-lo, protegê-lo,
educá-lo, sem se servir dele como pretexto para a mais
repugnante das mentiras.
Pense que por ele não se deve mentir, que precisa-
mente por ele se deve ser nobre, sincero, corajoso,
com uma alma e uma ação paralelas, com uma fé e
uma atitude acordes; que é necessário sentir e fazer
a verdade para poder ensiná-la a ele.
Pense que para chegar ao Bom Amor é necessário
aprender a trabalhar, a sentir docemente e com reti-
dão, a ter aspirações, a movimentar a inteligência,
profundamente inquieta, em direção ao Bem...

232
verve
Elogio do amor livre

Amor livre!
E então, mulher, apaixonadamente apaixonada, não
peça por seu amor. Grane-o, como a videira; floresça-o,
como a roseira; levante-o, como o eucalipto; sem pergun-
tar nada, sem pedir nada para o amanhã.
Nem a videira, nem a roseira, nem o eucalipto, an-
tes de granar, antes de florescer, antes de se levan-
tar, pedem um jardineiro que os atenda, nem exigem
promessa de que o sol não haverá de secá-los, nem o
vento haverá de quebrar seus talos, nem a água im-
petuosa haverá de afogar suas raízes. Eles são gene-
rosos, e quando um deles perece, muitos mais nas-
cem para a vida. Ame, ame, mas que os braços não
lhe sirvam como amarras, mas como coroa. Deixe que
tudo vá e volte; e você, sorria sempre, tenaz procura-
dora de todas as alegrias terrenas. Sorria sempre, ágil
e sentimental, doce e reflexiva, através do esqueci-
mento, do desprezo, da critica. Alente sua criação: lan-
ce à Vida uma nova medida para estimação de seu
sexo. A Vida está cansada já da Mulher-esposa, pesa-
da, demasiado eterna, que já perdeu as asas e o gosto
pelo deliciosamente pequeno e pelo nobremente gran-
de; está cansada da Mulher-prostituta, à que resta ape-
nas a raiz sucintamente animal; está cansada da Mu-
lher-virtude, séria, branca, insípida, muda...
Invente o novo tipo; ponha o sal na Vida; a cor e a
chama nos beijos desiguais. Ame, fale, trabalhe. Com-
preenda, ajude, console.
Aprenda a desaparecer e a desobrigar de sua pre-
sença; e a conhecer o valor do “eu” livre. Sem nada;
nem por dinheiro, nem por paz, nem por sossego...
Amor Livre!

233
9
2006

Remessa
Eu não tenho a Casa, que o arrasta como uma in-
transigente e implacável garra; nem o Direito, que o
limita e o nega. Mas tenho, Amado, um carro de flores e
horizonte, onde o sol se põe como roda quando você me
olha.
Quando você me beija...

Mujeres Libres, número 5, julho 1936

Tradução do espanhol por Natália Montebello.

Notas
1
Extraído de Antonina Rodrigo. Amparo Poch y Gascón. Textos de una médica
libertaria. Zaragoza, Alcaraván, 2002, pp. 95-101.

234
verve
Elogio do amor livre

RESUMO

Amparo Gascón fala do Bom amor. O amor livre de correntes, de


amarras, de prisões. Critica a monogamia como relação anti-natu-
ral, como uma imposição institucionalizada que atinge com mais
força a mulher que o homem e a torna a protetora da Casa, guardiã
de sua prisão. E em contra-partida à regulamentação do corpo,
dos sentimentos e das relações, aponta para o adultério como um
protesto natural e humano.

Palavras-chave: adultério, amor-livre, mujeres libres.

ABSTRACT

Amparo Gascon talks about the Good love. The love that is free
from chains, ties and prisons. She criticizes monogamy as an anti-
natural relation, an institutionalized imposition that strikes harder
woman than man and turns her into the protector of the House,
guardian of her own prison in opposition to the regularization of
the body, the feelings and relationships, pointing out adultery as
a natural and human protest.

Keywords: adultery, free love, mujeres libres.

Indicado para publicação em 3 de março de 2006.

235
9
2006

narcisismo, sujeição e estéticas da


existência

margareth rago*

“...mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido


de si mesmo.”
Clarice Lispector

A cultura de si que se desenvolve nos marcos da atu-


alidade poderia fazer ouvir uma voz uníssona postulan-
do comportamentos narcisistas, egocêntricos e altamen-
te alienantes, de modo a acentuar as tendências de iso-
lamento, a quebra de vínculos e a desagregação social
que enfrentamos em nosso mundo. Já sabemos que a
Modernidade introduziu concepções e valores masculi-
nos, que norteiam as formas de constituição de si e das
relações com o outro, muito problemáticos, porque es-
peculares, autoritários, competitivos e sedentários. Con-
tudo, também aprendemos, nas últimas décadas, que,
em outros momentos históricos, a exemplo da Antigüi-

* Professora do Depto. de História - IFCH/ UNICAMP.

verve, 9: 236-250, 2006

236
verve
Narcisismo, sujeição e estéticas da existência

dade greco-romana, encontram-se experiências sociais


e reflexões éticas em torno das práticas de si bastante
diferenciadas, ou seja, mais humanizadas, integradas
e sofisticadas. Nessa direção, as problematizações de
Michel Foucault foram decisivas para introduzir e des-
dobrar essas discussões.1 Já o feminismo, em sua luta
pela emancipação feminina, denunciou vigorosamente
as formas de sujeição das mulheres e de produção de
sua subjetividade pela “cultura do narcisismo”, que
abrangem as práticas corporais de embelezamento e
rejuvenescimento largamente difundidas pela mídia,
assim como o recurso a avançadas tecnologias de inter-
venção no corpo ou de cirurgia plástica.
Christopher Lasch analisa com profundidade a “cul-
tura do narcisismo”, mostrando como, nesta, o indiví-
duo se torna incapaz de sair de dentro de si mesmo e de
ter distância em relação ao mundo, tamanho o grau de
projeção e identificação que estabelece com o mundo
exterior.2 Portanto, dificilmente consegue perceber o Ou-
tro em sua diferença e positividade. Para a personalida-
de narcisista, o mundo público é visto como um espelho
do eu, confundido com o privado. Ao contrário do que ocor-
ria no século XVIII, na Europa, em que as pessoas com-
partilhavam um fundo comum de signos públicos, o que
criava melhores condições de sociabilidade, no século
XIX, o culto romântico da transparência e da autentici-
dade “rasgou as máscaras da civilidade” usadas em pú-
blico.3 Doravante, fortalece-se a crença de que o “verda-
deiro eu” se encontra no fundo de cada um de nós, mar-
cado pelo sexo biológico, e que aquele que consegue
mostrar-se em sua transparência é digno de ser defini-
do como o mais verdadeiro e o mais confiável no grupo
social. No entanto, ao sobrepor o privado no público, ao
confundir as duas esferas, o indivíduo deixa de ver a
cidade como espaço possível de interação social e torna-
se um “espectador passivo,”4 constantemente insatis-

237
9
2006

feito consigo mesmo e com as relações sociais que con-


segue estabelecer.
Nesse contexto, a preocupação consigo mesmo refor-
ça o narcisismo, à medida que incita o indivíduo a vol-
tar-se para “o seu próprio umbigo”, a ter olhos exclusi-
vos para si mesmo, ao mesmo tempo em que esta imer-
são na própria interioridade é especialmente reforçada
pela estetização da aparência pessoal e pelo embeleza-
mento do próprio corpo, seja através das práticas de gi-
nástica em academias e do consumo de cosméticos, seja
pelas intervenções cirúrgicas que proliferam, especi-
almente, no Brasil. Vale enfatizar, entretanto, que o
voltar-se para o próprio eu não significa um encontro
interior, uma conquista do equilíbrio pessoal, num mo-
vimento subjetivo libertário, mas, ao contrário, leva a
uma dissociação de si, já que se trata de um investi-
mento para adequar-se a um modelo exterior, imposto
pelo mercado e pela mídia. Nesse caso, o indivíduo as-
sume e adere sem mediações à fantasia que projeta de
si mesmo.
No entanto, como forma de sujeição e de renúncia de
si, o culto contemporâneo do corpo está nas antípodas do
“cuidado de si” do mundo greco-romano, aonde era fun-
damental a “conversão a si”, a partir de todo um traba-
lho ético-estético de elaboração pessoal. Para Foucault,
aliás, quanto mais o indivíduo é incitado a exprimir o
seu eu mais profundo e a revelar as suas emoções mais
íntimas, mais fica submetido a essa forma de poder de-
nominada de “governo por individualização”, que se exer-
ce na vida cotidiana, vinculando-o à sua identidade.
Já sabemos também o quanto essa “cultura somáti-
ca”5 é, de algum modo, tributária da estética do racis-
mo, que, apropriando-se do ideal da beleza grega desde
as suas origens, no século XVIII, preconiza harmonia,
proporção nas formas corporais, virilidade e moderação,

238
verve
Narcisismo, sujeição e estéticas da existência

conseguidas a partir de atividade física, do esporte e da


ginástica. No século XIX, esta se torna moda enquanto
forma de escultura do corpo, tendo por função criar ho-
mens saudáveis e fortes para a nação. Para a mulher,
excluída da esfera pública, afirma-se o ideal da “mãe da
raça”, santificada, de formas opulentas, mulher natu-
reza voltada para o amor pelo esposo e para os cuidados
do lar e dos filhos, em oposição à figura feminina notur-
na, erotizada, avessa ao trabalho e ansiosa por prazer.6
Vale lembrar o quanto essa discussão se afina com
as reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt, especial-
mente em suas análises sobre As origens do totalitaris-
mo, livro que aparece primeiramente em 1951. Para ela,
o surgimento das massas, constituída por multidões de
indivíduos atomizados, indiferentes, carentes de ideal
e de ação política explica, em grande parte, a força dos
regimes totalitários, como o nazismo e o estalinismo.
Ela afirma que uma das principais estratégias de con-
trole social dos regimes totalitários é a atomização do
indivíduo, a quebra dos vínculos espontâneos estabele-
cidos entre os homens/mulheres e os grupos sociais. É
a destruição das redes de articulação política, como os
sindicatos, as comissões operárias, as formas informais
de organização de base, tanto quanto sociais, — clubes,
associações de moradores, grupos de lazer, etc. — que
se tornam focos de violenta repressão do Estado. Sem
laços afetivos e sociais suficientemente fortes para an-
corá-los, sem compromissos políticos que os envolvam e
articulem, os indivíduos ficam soltos e cada vez mais
fragilizados em sua solidão; isolados e sentindo-se de-
samparados, tornam-se vulneráveis à propaganda tota-
litária, presas fáceis para o poder. Em suas palavras: “o
totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que
tem de acabar com a existência autônoma de qualquer
atividade que seja, mesmo que se trate de xadrez. Os
amantes do “xadrez por amor ao xadrez”, adequadamen-

239
9
2006

te comparados por seu exterminador aos amantes da


“arte por amor à arte”, demonstram que ainda não fo-
ram totalmente atomizados todos os elementos da soci-
edade, cuja uniformidade inteiramente homogênea é a
condição fundamental para o totalitarismo. [...] Os mo-
vimentos totalitários são organizações maciças de indi-
víduos atomizados e isolados.”7
O objetivo do poder totalitário é, assim, destruir as
redes associativas espontaneamente constituídas, dis-
tribuir os indivíduos, isolá-los, classificá-los e organizá-
los, como mostra tão bem Foucault nos anos 1970, de
modo a facilitar a dominação. Vigiar e Punir é, nesse sen-
tido, um estudo profundo da formação da sociedade dis-
ciplinar, que, na verdade, é a sociedade totalitária por
excelência, produtora de “corpos politicamente dóceis,
mas economicamente produtivos.”8 Indivíduos isolados
uns dos outros, sem laços de interesse comum que os
unam, como acontece, por exemplo, com as classes so-
ciais, incapazes de estabelecer redes de relações soli-
dárias, carentes da interação humana possível com o
mundo na esfera pública e privada, tornam-se indife-
rentes e desinteressados não só em relação aos outros,
mas também diante de si mesmos. Como afirma Duar-
te, ao analisar o pensamento da filósofa alemã: “A perda
dos interesses é idêntica à perda de si, e as massas
modernas distinguem-se [...] por sua indiferença quan-
to a si mesmas (selflessness), quer dizer, por sua au-
sência de interesses individuais.”9
Reforçando essa discussão, Giorgio Agamben, na es-
teira de Walter Benjamin, mostra como o indivíduo, no
mundo contemporâneo, foi expropriado também cultu-
ralmente, ao ser destituído de sua própria experiência.
Em suas palavras: “(...) aliás, a incapacidade de fazer e
transmitir experiências talvez seja um dos poucos da-
dos certos de que disponha sobre si mesmo.”10 Segundo

240
verve
Narcisismo, sujeição e estéticas da existência

ele, já não é nem mesmo necessária uma catástrofe


para a destruição da experiência, uma vez que a própria
existência cotidiana profundamente repetitiva e monó-
tona, nas grandes cidades não deixa nada a ele que pos-
sa ser traduzível em experiência: “o homem moderno
volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia
de eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insóli-
tos, agradáveis ou atrozes — entretanto nenhum deles
se tornou experiência.”11
Portanto, desenraizados, expropriados, sem vínculos
fortes com a tradição e com o seu meio social, os indiví-
duos se tornam disponíveis, pois se consideram sem
importância e, logo, tornam-se presas fáceis para os
regimes totalitários e para os discursos sedutores dos
fascismos cotidianos.
De outro lado, é na Antigüidade clássica que Foucault
encontra morais que não se destinam a sujeitar o indi-
víduo, a produzir “corpos dóceis”, obedientes e submis-
sos, como na Modernidade, fazendo-o renunciar a si
mesmo, como pregará o cristianismo, submetendo-se a
normas, leis, códigos e regras pretensamente univer-
sais, impostos a todos em nome do bem comum. Naque-
le mundo, evidenciam-se outros modos de constituição
da subjetividade, — as “estéticas” ou “artes da existên-
cia” — , estilos de vida em que a preocupação maior é da
ordem da ética e da liberdade. Segundo ele: “da Antigui-
dade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era
essencialmente procura de uma ética pessoal a uma
moral como obediência a um sistema de regras. E se eu
me interessei pela Antiguidade, é que, por toda uma
série de razões, a idéia de uma moral como obediência
a um código de regras está em vias, hoje, de desapare-
cer, já desapareceu. E a esta ausência de moral respon-
de, deve responder uma pesquisa que é a da estética da
existência.”12

241
9
2006

Num mesmo movimento, portanto, a valorização da


História, o reencontro com a tradição herdada da Anti-
guidade clássica, — tradição cujos elos haviam sido per-
didos, como enfatizara Hannah Arendt, referindo-se à
“herança sem testamento”, na expressão do poeta René
Char — e a constituição de um novo conceito: o da “sub-
jetivação”.
No primeiro caso, a genealogia de inspiração nietzs-
chiana é fundamental para escapar de uma leitura apa-
ziguada e linear do passado, legitimadora do presente, e
restituir-lhe sua própria temporalidade. O outro concei-
to é importante para que Foucault possa sugerir saídas
para nossa atualidade, que se debate com a necessida-
de urgente de fundar uma nova ética,13 — novas refe-
rências para a construção dos códigos norteadores da
ação —, enquanto os códigos modernos de sociabilidade
desmoronam por falta de fundamentos éticos e a noção
de identidade é criticada como forma fascista de cons-
trução e afirmação de personalidades autoritárias e ego-
cêntricas. Mostrando modos diferentes e estilizados de
existir, Foucault aponta para as práticas de si do mundo
greco-romano como práticas da liberdade, exercidas na
relação consigo mesmo e constituídas por exercícios que
a sociedade oferece e ensina, como maneiras de formar
libertariamente o cidadão, educar o jovem na aprendi-
zagem do “cuidado de si” e na relação com o outro. Se-
gundo ele, “(...) as morais antigas [...] eram essencial-
mente uma prática, um estilo de liberdade. [...] A vonta-
de de ser um sujeito moral, a procura de uma ética da
existência eram principalmente, na Antiguidade, um
esforço para afirmar sua liberdade e para dar à sua pró-
pria vida uma certa forma na qual se poderia reconhe-
cer, ser reconhecidos pelos outros [...].”14
Reforçando esses argumentos e referindo-se à expe-
riência de si e do corpo que tinham os antigos gregos, o

242
verve
Narcisismo, sujeição e estéticas da existência

historiador Jean-Pierre Vernant explica que para eles,


“(...) o eu não é nem delimitado nem unificado: é um
campo aberto de forças múltiplas [...] essa experiência
é, sobretudo, orientada para fora e não para dentro. O
indivíduo se procura e se encontra no outro, nesses es-
pelhos que refletem sua imagem e que são para ele cada
alter ego, parentes, filhos, amigos.”15
Segundo Vernant, o indivíduo se realiza naquilo que
ele projeta e opera, sem introspecção. O cogito ergo sum
não faria nenhum sentido para um homem grego. Em
suas palavras: “O sujeito não constitui um mundo inte-
rior fechado, no qual ele deve penetrar para se reencon-
trar ou antes para se descobrir. O sujeito é extrovertido.
[...] A consciência de si do indivíduo não é reflexiva, vol-
tada para si mesmo, fechamento interior, face a face
com sua própria pessoa: ela é existencial. A existência
é anterior à consciência de existir.”16
Vale acompanhar, mesmo que brevemente, alguns
desdobramentos das reflexões de Foucault sobre o “cui-
dado de si”, tema que atravessa a reflexão moral da An-
tigüidade e que contrasta radicalmente com a experi-
ência moderna. Em nossa sociedade, ocupar-se de si
mesmo é interpretado de modo suspeito, como forma de
individualismo exacerbado, sinal de vaidade e de egoís-
mo, em oposição aos interesses públicos, ao bem comum.
Já para os gregos e romanos, era imprescindível saber
cuidar de si, ter o governo de si para a relação libertária
também com o outro. Com o cristianismo, a salvação
pessoal só pode ser obtida com a renúncia de si, com a
negação dos próprios desejos, com o sacrifício pessoal.
Para os antigos, ao contrário, tratava-se de trabalhar-
se, de esculpir-se, de dar-se uma forma estilizada de
vida, o que implicava saber usar os prazeres, para se
chegar à vida temperante, equilibrada. Segundo Fou-
cault, “(...) para os gregos e romanos — sobretudo para

243
9
2006

os gregos —, para bem se conduzir, para praticar como


se deve a liberdade, era preciso ocupar-se de si, preocu-
par-se consigo mesmo, ao mesmo tempo para conhe-
cer-se [...] e para formar-se, para superar-se a si mes-
mo, para dominar em si os apetites que ameaçariam
levá-lo.”17
Foucault insiste, portanto, em mostrar como o conhe-
cimento de si, entendido como uma busca do que existe
de verdadeiro no fundo de nós mesmos não é um ato
neutro, mas uma forma de submissão ao olhar do outro,
já que se estabelece, como explica Gros, “(...) uma soli-
dariedade histórica entre a constituição de si como ob-
jeto de conhecimento por si mesmo, a obediência inde-
finida ao Outro e a morte perpétua para si mesmo.”18 Ao
mesmo tempo, Foucault abre a possibilidade de proble-
matizar a reinvenção de si mesmo, ao pensar a subjeti-
vidade como histórica e não natural, como uma cons-
trução e não como uma determinação biológica ou cul-
tural inevitável, como afirmara o século XIX e aceitara
grande parte do século XX.
Considero que dar destaque, como faz o autor, ao tema
do “cuidado de si” na cultura greco-romana adquire, na
atualidade, um significado político maior, pois trata-se,
nessa “conversão” — e não “renúncia de si” — da pos-
sibilidade das rebeldias e resistências, das mudanças,
dos deslocamentos, do ser outro/a do que se é, de esta-
belecerem-se novos laços sociais, enfim, de pensar e
viver diferentemente. Foucault encontra essas práticas
libertárias precisamente naquilo que não era visto, em
espaços que nos escapavam substancialmente por falta
de olhar, ou antes, porque estávamos aprisionados em
um modo de olhar identitário, profundamente excludente
e normatizador. Por isso, escapava-nos uma outra ma-
neira de pensar a subjetividade, não como uma nature-
za ancorada no corpo e no sexo biológico, mas como um

244
verve
Narcisismo, sujeição e estéticas da existência

trabalho refletido sobre si e orientado por regras e prin-


cípios.
Essa inversão do olhar nos faz perceber o quanto es-
távamos distantes dessas problematizações, já que os
“discursos da revolução” incitavam a esquecer-se da
própria subjetividade, considerada como “desviante”.
Contudo, nessa inversão de cento e oitenta graus, não
se trata de mergulho, mas de ficar na superfície, en-
contrando o sujeito imerso em redes de relações e sig-
nificações, constituído na linguagem, como efeito e não
como origem.
Foucault pergunta pelas condições sociais e cultu-
rais que produzem indivíduos narcisistas, personalida-
des egocêntricas, insensíveis e intolerantes, questio-
nando, portanto, os modos naturalizados de produção do
ser e da própria existência, para além da dimensão eco-
nômica. Ao mesmo tempo, aponta, vale repetir, para
modos diferenciados de problematização e de experiên-
cia individual ou social, como os que possibilitam a cons-
tituição do eu ético através das práticas do “cuidado de
si”.
Examinando aquilo que caracteriza o “cuidado de si”
na experiência dos antigos gregos, Gros enfatiza a di-
mensão da oposição entre o “cuidado de si” e o “conheci-
mento de si”: à pergunta “quem é você”, Sócrates res-
ponde com um deslocamento: “o que você está fazendo
de sua vida?”. A seguir, Gros explica que o “cuidado de
si” não remete tanto a uma forma de meditação, mas de
concentração, pois se trata de mostrar que os exercíci-
os de “conversão a si” não implicam atitudes de intros-
pecção, de hermenêutica de si, nem da objetivação de
si por si mesmo, como poderíamos supor. “A atitude que
consiste para o sábio em se retirar em si mesmo, em se
voltar para si, em se concentrar em si mesmo visa an-
tes uma intensificação da presença para si.”19

245
9
2006

Discutindo a “A parrésia no cuidado de si”, Foucault


explica que, na conversa face a face com Sócrates, em
que se é exigido a fazer um exame da própria vida, não
se trata de preencher o modelo da autobiografia confes-
sional, afinal, “dar conta de sua vida, seu bios, inclusi-
ve, não é dar uma narração dos acontecimentos histó-
ricos que ocorreram em nossa vida, mas bem demons-
trar que se é capaz de mostrar que há uma relação entre
o discurso racional, o logos, que se é capaz de usar e a
maneira como se vive. Sócrates está perguntando acer-
ca do modo como o logos dá forma a um estilo de vida
pessoal, porque está interessado em descobrir se há uma
relação harmônica entre os dois.”20
Segundo ele, quando Sócrates pergunta a Laques pela
sua coragem na guerra do Peloponeso, não pretende que
ele lhe relate todas as suas façanhas heróicas, mas que
mostre como o logos dá forma racional, inteligível, à sua
coragem. O “cuidado de si” supõe, pois, uma correspon-
dência regulada e harmônica (a metáfora do músico
que consegue a bela harmonia não na lira, mas que
sabe harmonizar sua vida — logos e bios) entre o pensa-
mento e a ação; entre o que se diz de si mesmo e o que
se faz, entre palavras (logoi) e ações (erga). Visa tornar-
se senhor de si mesmo, pelas meditações sobre o mun-
do, a natureza das coisas e si mesmo. Diz Foucault, “(...)
o sofista pode fazer discursos muito pertinentes e boni-
tos sobre a valentia, mas não é ele mesmo valente.”21 —
por isso, Sócrates pode ser considerado um parresiasta.
Portanto, aqui não se trata do elogio do individualis-
mo narcisista, de uma figura solitária e indiferente ao
mundo, como lembra Gros, mas da “(...) maneira como
ele se integra num tecido social e constitui um motor
da ação política. O cuidado de si se exerce num quadro
largamente comunitário e institucional: é a escola de
Epíteto que oferece formações diferenciadas e dirige-se

246
verve
Narcisismo, sujeição e estéticas da existência

a um amplo público de discípulos; é Sêneca praticando o


cuidado de si, ao entreter uma correspondência escrita
com amigos, escrevendo tratados circunstanciados, etc.
Foucault não deixa de insistir sobre esse ponto: o cuida-
do de si não é uma atividade solitária, que cortaria do
mundo aquele que se dedicasse a ela, mas constitui, ao
contrário, uma modulação intensificada da relação so-
cial. Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros,
mas de modular de outro modo esta relação com os ou-
tros pelo cuidado de si.”22
Contudo, apesar de todas essas críticas aos modos
imperantes de subjetivação no mundo contemporâneo,
também se pode afirmar que nem todos sucumbiram a
essa moral do espetáculo e que nem todos caíram den-
tro da “bolha narcísica”, como destaca Freire Costa. Sa-
bemos, ademais, que cuidar de si pode ser uma manei-
ra de facilitar a relação com o outro. E, aliás, hoje co-
nhecemos melhor nosso corpo, damos maior atenção à
saúde, cuidamos melhor de nós mesmos, sem necessa-
riamente nos alienarmos. Para Sennett, faz parte da
civilidade o cuidado de si, da aparência e da higiene
pessoal.
Finalmente, gostaria de destacar a maneira pela qual
o feminismo também traz importantes contribuições
para esse debate, tanto pelos questionamentos que co-
loca, quanto pelas práticas que incita. Afinal, o feminis-
mo valorizou as mulheres, enfatizando especialmente
sua capacidade política e administrativa, sua inteligên-
cia e espiritualidade, em oposição aos discursos misó-
ginos que as associavam exclusivamente ao corpóreo;
desfez, pois, as tradicionais dicotomias que separavam
hierarquicamente corpo e alma. Realizou, ainda, uma
crítica contundente ao ideal de feminilidade e beleza e
aos cuidados excessivos com o corpo como formas de
sujeição, preconizados pela mídia, e não como trabalho

247
9
2006

sobre si mesmas, o que ao mesmo tempo não significa


que tenha descartado as preocupações com as questões
da saúde. Muito pelo contrário, deslocando o foco das aten-
ções, o movimento feminista deu visibilidade a uma série
de temas diretamente relativos ao corpo feminino, à se-
xualidade e à maternidade, mas também à violência do-
méstica, ao estupro, ao aborto, antes silenciados pela so-
ciedade em geral. Portanto, discutir os temas que envol-
vem o corpo feminino passa, desde as lutas empreendidas
pelo feminismo, por considerar importantes aspectos re-
lativos à saúde física e psíquica das mulheres, o que por
sua vez, implica a demanda por novas formas de relação
entre os gêneros.
O movimento feminista denunciou as inúmeras for-
mas de alienação e sujeição feminina, sobretudo aquelas
que levam à perda de si mesmas para se constituirem
pelo olhar e pelo desejo masculinos, a partir de modelos
veiculados pela mídia e favorecidos pelo mercado. Nesse
sentido, criou e tem criado estratégias de valorização da
auto-estima das mulheres, entre ricas ou pobres, bran-
cas ou negras, hétero ou homossexuais, que passam tam-
bém pelo corpo, com seus encantos e seduções, ou com
suas rugas e estrias. Em outras palavras, se a ideologia da
domesticidade defendeu a abnegação e o esquecimento
de si como virtudes femininas, trata-se agora de defender
um outro modo de cuidado de si, marcando claramente
as críticas e diferenças em relação ao culto narcísico, fa-
vorecido na contemporaneidade.

Notas
1
Michel Foucault. História da sexualidade – o uso dos prazeres. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1985 ; História da sexualidade
– o cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro,
Graal, 1985 e A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e
Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

248
verve
Narcisismo, sujeição e estéticas da existência
2
Christopher Lasch. A cultura do narcisismo. Tradução de Ernani Pavaneli. Rio de
Janeiro, Imago Editora Ltda., 1983.
3
Idem, p. 51.
4
Richard Sennett. El declive del hombre publico. Tradução de Gerardo di Masso.
Barcelona, Ediciones Peninsula, 1978.
5
Jurandir Freire Costa. A aura e o vestígio. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004, p.
192.
6
George Mosse. La révolution fasciste. Paris, Seuil, 2003, p. 89.
7
Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. Totalitarismo, o paroxismo do poder. Tradução
de Roberto Burigo. Rio de Janeiro, Editora Documentário, 1979, pp. 50-51.
8
Michel Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro,
Vozes, 1976.
9
André Duarte. À sombra da ruptura. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000, p. 51.
10
Giorgio Agamben. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história.
Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2005, p. 21.
11
Idem, p. 22
12
Michel Foucault. Dits et ecrist, vol II. Paris, Gallimard, 1994, p. 1551.
13
Diz Frédéric Gros: “Esta história do sujeito na perspectiva das práticas de si, dos
procedimentos de subjetivação se separa nitidamente do projeto formulado, nos
anos setenta, da história da produção das subjetividades, dos procedimentos de
sujeição pelas máquinas do poder. A história que Foucault quer descrever, em 1982
é a das técnicas de ajuste da relação de si para consigo: história que leva em conta os
exercícios pelos quais eu me constituo como sujeito, a história das técnicas de
subjetivação, história do olhar a partir do qual eu me constituo para mim mesmo
como sujeito.” In Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto (orgs.). Figuras de Foucault.
Rio de Janeiro, DPA, 2005, no prelo.
14
Foucault, op. cit, 1994, p. 1550
15
Jean-Pierre Vernant. L´individu, la mort, l´amour. Soi-même et l´autre en Grèce ancien-
ne. Paris, Gallimard, 1981, p. 224.
16
Idem.
17
Foucault, op. cit., 1994, p. 1531.
18
Gros, op. cit., 2005.
19
Idem.
20
Foucault, op. cit., 2004, p. 332.
21
Idem, p. 335.
22
Gros, op. cit., 2005.

249
9
2006

RESUMO

Entendendo a questão da subjetivação como eminentemente políti-


ca — já que se trata de uma forma extremamente sofisticada de
dominação individual e social — busca-se evidenciar a crítica aos
modos de constituição da subjetividade vigentes no mundo con-
temporâneo, percebidos, também pelo feminismo, como formas de
sujeição e não de liberação. Por sua vez, o feminismo é responsá-
vel pela desconstrução da identidade feminina e pela proposta de
novos modos de existência para as mulheres.

Palavras-chave: narcisismo, estética da existência, subjetividade,


feminismo, gênero.

ABSTRACT

Assuming that subjectivation is a political issue, I try to highlight


the critique of contemporary modes of production of the subjectivi-
ty, considered as forms of power and subjection and not as rela-
ted to liberation. Feminism is considered as responsible for the
contemporary deconstruction of female identity and by the search
for new ways of existence especially for women.

Key-words: narcisism, aesthetics of existence, subjectivity, femi-


nism, gender

Recebido para publicação em 20 de fevereiro de 2006 e confirma-


do em 20 de março de 2006.

250
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

poéticas do virtual e os processos de


subjetivação

tania mara galli fonseca*

“De certa forma, a identidade nômade é a reinvenção de


mim enquanto outro. É o espaço de mim. Se pensarmos este
espaço identitário como estando em ligação com todos os
outros espaços de um “eu” que os critica, designa ou refle-
te, temos aí uma heterotopia identitária. Eu, nômade, sou
outro, além daquilo que pareço ou falo. Eu sou um espaço
de mim, migratório, de transição, nesta cartografia que me
revela e me nega. Eu sou o espelho de mim, um lugar sem
lugar. (...) Em um espaço irreal que se abre virtualmente
atrás da superfície, eu estou lá, onde não estou, uma espé-
cie de sombra que dá a mim mesmo minha visibilidade,
que me permite olhar-me lá onde não estou.”
Michel Foucault

* Psicóloga, Professora Titular do Instituto de Psicologia, pesquisadora e do-


cente do programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

verve, 9: 251-269, 2006

251
9
2006

A conversa que procuraremos estabelecer com os


novos modos de produção de imagens, impulsionar-nos-
á na direção de um enredamento conceitual, situado no
entre de relações disciplinares. Para fins de situar nos-
so ponto de vista, julgamos interessante delimitar nos-
sa concepção de sujeito-corpo como efeito complexo de
agenciamentos maquínicos que se processam inces-
santemente no entre dos corpos, das máquinas, dos dis-
cursos e das práticas.
Imersos no mundo, os corpos fazem suas dobras car-
nais. Neles ressoam as potências e as tendências de
seu tempo, para o qual se oferecem como vias de passa-
gem. Nos corpos formados, revelam-se as marcas do modo
que os produziu, sendo que, portanto, podemos afirmar
que abrigam a dupla condição de criaturas-criadores de
sua atualidade. Corpos engendrados por tecnologias di-
versas, fabricações temporalizadas, isentos daquela es-
sencialidade que permitiu a difusão de um paradigma
universalizante, a-histórico e naturalizado de homem.
Considerando os novos modos de produção digital
como dispositivos disruptores dos limites do corpo sen-
sorial e, sobretudo, de suas potências vitais, buscamos
vislumbrar algo das potencialidades subjetivantes das
atuais poéticas tecnológicas.1 Pode-se dizer que, hoje,
vivemos uma idade social que nos coloca possibilidades
de libertar a imagem da noção de verdade e o pensa-
mento dos dogmas da naturalização, da autoria e da ori-
gem. A marca da transformação continuada da imagem
digital desloca nosso olhar da linearidade tranqüilizan-
te do fio de Ariadne da representação e desorienta-o a
ponto de estranhar a quase imperceptível repetição. A
possibilidade tecnológica atual de produção de imagens
através de abstrações matemáticas, através de gens
numéricos, que nada tem a ver com o sistema figurati-
vo — especular e representacional —, que modela o nos-

252
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

so modo de ver e pensar, desfere-lhe um golpe mortal.


As imagens geradas em computador não são resultado
de um agente físico enunciador. Sendo inteiramente
sintéticas, não dependem de conexões com objetos do
exterior, e podem ser consideradas como meta-imagens,
isto é, atualizações provisórias de um campo de possibi-
lidades, algo parcial de um universo plástico potencial
que ela não pode jamais exibir no seu todo. Em um certo
sentido, a imagem digital é uma hipertrofia dos postu-
lados estéticos do século XV, pois ela realiza, hoje, o so-
nho renascentista de uma imaginação puramente con-
ceitual, passível de ser materializada em imagens. Re-
alismo desencarnado, puro conceito e abstração, são
elaboradas com modelos matemáticos e não em dados
físicos arrancados da realidade visível e sensível.
Estaríamos vivendo as possibilidades de ver o invisí-
vel? Talvez muito mais, conforme nos mostra Arlindo
Machado, quando analisa as atuais tendências da cul-
tura do virtual. Para o autor, pelo menos “(...) teorica-
mente uma mesma informação depositada em supor-
tes digitais pode ser atualizada sob forma de música,
imagem, texto, escultura holográfica ou qualquer outra
modalidade de saída.”2 Não consistindo senão de bits ele-
trônicos, a informação de natureza eletrônica depende
do meio de exibição. Este é que definirá o caráter formal
de sua mensagem. Assim, uma peça musical pode ser
“vista” em uma tela, uma imagem pode ser “ouvida” em
uma caixa de som e um poema literário pode ser expe-
rimentado como uma escultura holográfica.
Estas torções e desencontros entre órgãos sensori-
ais de recepção e formalização da mensagem, apon-
tam oportunidades para pensarmos a problemática do
corpo-sem-órgãos, proposta por Antonin Artaud e estu-
dada por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para os auto-
res, o olhar deve ser concebido como a possibilidade de

253
9
2006

ultrapassagem do que os olhos vêem, e assim, todas as


funções corporais que se encontram, por sua vez, cap-
turadas por um funcionalismo moralizado, reducionista
de novas possíveis experimentações.3
Por outro lado, e ainda perseguindo as torções que
somos obrigados a efetuar, podemos dizer que, enquan-
to dispositivos expressivos, comunicacionais e informa-
tivos, as tecnologias digitais inscrevem-se na geome-
tria fractal que coloca em xeque as últimas garantias
do sistema euclidiano da representação, pois consegue
operar através de categorias abstratas inexistentes na
natureza como o ponto, a linha, o plano e o volume. Na
geometria fractal, as relações entre diferença e repeti-
ção são demonstradas de forma contundente: cada par-
te repete a forma macroscópica predominante, como se
fosse uma miniatura e o exame pode ser continuado
infinitamente, ampliando detalhes cada vez menores e
fazendo vir à tona novas reverberações do motivo plásti-
co principal. O princípio fractal consiste em considerar
que as formas complexas derivam de padrões elemen-
tares, codificados por um “gerador”; elas operam por co-
nexões aberrantes, desmontam a lógica binária que
caracteriza o predominante modo cartesiano de pen-
sar e daí emergem deformações perspectivas, desdo-
bramentos do código perspectivo, produzindo efeitos ir-
realistas e fantásticos. Se o olhar do sujeito contempo-
râneo permanece determinado por modelos formativos
do passado, atualmente é possível dar-lhe a ver uma
espécie de realismo conceitual construído por anamor-
foses, contrárias à lógica do déjà vu e que pervertem as
bases da clássica perspectiva, por negar os postulados
da objetividade e da coerência, a ponto de abolir radical-
mente a figura especular por meio da abstração.
Em seu processo de reprodução, as formas fractais
se complexificam através da acumulação e da super-

254
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

posição sucessiva das formas originais, e passam a uma


aparência disforme e irregular se comparadas à imagem
inicial. Sob aparência anamórfica, sabemos, no entan-
to, a estrutura original e seu gerador, o que nos permite
pensar que há padrões de semelhança em qualquer ní-
vel de complexidade de uma forma observada e que a par-
te já contém o todo, o que coloca em questão o princípio
mecânico em que as partes só têm sentido em relação
ao todo em que se encontram inseridas. Leva-nos a iden-
tificar o mundo como um imenso sistema de redes inter-
conectadas, ressonantes e coexistentes, sem que, con-
tudo, possamos continuar falando a respeito do Uno e do
Mesmo. Nesta geometria da dobra e da desordem, geo-
metria rizomática e errática, o sistema fractal possibili-
ta realizar essa coisa impossível que é supor que a liber-
dade, a irregularidade e o acaso possam ser expressos
matematicamente e que o caos possa ser um aconteci-
mento de interesse científico, rico em ilações filosóficas
e fértil como fonte de produção estética.
É em Félix Guattari que encontramos o nosso prosse-
guimento. O autor francês nos diz que tudo leva a reco-
nhecer que os conteúdos da subjetividade dependem,
cada vez mais, de uma infinidade de sistemas maquíni-
cos. Para ele, “(...) nenhum campo de opinião, de pensa-
mento, de imagem, de afectos, de narratividade pode,
daqui para frente, ter a pretensão de escapar à influên-
cia invasiva da ‘assistência por computador’, dos ban-
cos de dados, da telemática, etc...”4 Juntamente com o
autor, não pretendemos a posição de entrega acrítica
aos efeitos propiciados pelos novos maquinismos, e tam-
pouco a rejeição dos mesmos. Não vemos sentido nos
movimentos de fazer o homem se desviar das máqui-
nas, consideradas, na verdade, como nada mais do que
“formas hiperdesenvolvidas e hiperconcentradas de cer-
tos aspectos da subjetividade.”5 Apostamos em novas ali-
anças entre homem e máquina, desde que estas sejam

255
9
2006

postas a serviço de novos agenciamentos coletivos e


individuais de enunciação e sejam posicionadas como
suportes a projetos proto-subjetivos. Reconhecemos que
todo e qualquer processo de subjetivação que venhamos
a identificar desde a história remota da humanidade
aos dias atuais, tem seu engendramento a partir de
máquinas diversas embutidas nas instituições e que
se expressam como equipamentos coletivos de subjeti-
vação. Estes se constituem como operadores tanto das
vozes do poder e das forças do fora, circunscrevem os
conjuntos humanos e lhes formam o espírito, quanto
das vozes de saber que orientam as práticas técnico-
científicas e econômicas, como ainda das vozes de auto-
referência que desenvolvem uma subjetividade proces-
sual autofundadora de suas próprias coordenadas. Tais
vozes são engendradas por cada tempo social e o defi-
nem, e apontá-las não significa afirmar uma fundação
estrutural universal. Se temos, pois, que os equipamen-
tos coletivos de subjetivação são fabricados historica-
mente, devemos distinguir, em seu processo, zonas de
fratura a partir das quais se reconfiguram forças e se
compõem novas formas de existência.
Na vigência do modo de produção capitalístico,6 pode-
mos identificar como própria à nossa atualidade uma
intensa e extensa fratura produzida pelas novas tecno-
logias de comunicação e informação, NTCI, cujas ope-
rações, em escala planetária, “tendem a duplicar as
antigas relações orais e escriturais. (...) A opinião e o
gosto coletivo, por sua vez, serão trabalhados por dispo-
sitivos estatísticos e de modelização, como os que são
produzidos pela publicidade e pela indústria cinemato-
gráfica.”7 Se temos tido oportunidade de evidenciar que
a subjetividade permanece hoje massivamente contro-
lada por dispositivos de poder e de saber que colocam as
inovações técnicas e científicas a serviço das mais re-
trógradas figuras da socialidade, cabe-nos delinear al-

256
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

gum horizonte no qual possamos refletir novos modos


de nos colocarmos à altura dos desafios da criação do
tempo presente. Com Guattari, também afirmamos ser
“(...) possível conceber outras modalidades de produção
subjetiva — processuais e singularizantes. Estas formas
de reapropriação existencial e de autovalorização podem
tornar-se, amanhã, a razão de viver de coletividades e
de indivíduos que se recusam a entregar-se à entropia
mortífera, característica do período que estamos atra-
vessando.”8

A imagem digital como entrada no ilimitado rizoma9


homem-mundo
Se até o momento temos pontuado alguns elementos
e tendências de nossa atual posição, cabe-nos, agora,
buscar desembaraçar alguns fios, de procedência diver-
sa, e que supomos devam ser correspondidos e enreda-
dos novamente, com vistas à tessitura de uma via de
passagem ou mesmo de uma ponte entre o modo digital
de produção de imagem e os processos de subjetivação
contemporâneos.
Tomaremos, como ponto de partida, a noção de indi-
viduação de Gilbert Simondon que corresponde “(...) à
organização de uma solução, de uma ‘resolução’ para
um sistema problemático.”10 Encontramos, nas formu-
lações deste autor, elementos que nos fazem correlaci-
onar, de forma irresistível, os processos de subjetivação
à questão do virtual. Para ele, a categoria de problemá-
tico não designa um estado provisório. Ela designa o pri-
meiro momento do ser: o pré-individual, que correspon-
de à existência no corpo de singularidades em metaes-
tabilidade e em estado de “acavalamento” uma vez que
ainda não se comunicam ou não são apreendidas em
uma individualidade. A individuação como “resolução”

257
9
2006

deve ser compreendida como ressonância interna e como


informação, sendo que desta última decorrerá a comu-
nicação entre dois níveis díspares, um definido pela for-
ma já contida no receptor e outro pelo sinal trazido do
exterior. Se o ser pré-individual não comporta fases,
porque se coloca como um plano aberto que contém em
si todos os devires em potencial, sendo simultaneamente
passado, presente e futuro, o ser individual pode ser re-
conhecido como o ser fasado, o ser que se desenrola,
que se desenvolve e que se encontra, pois, associado ao
devir do ser. Desta forma, podemos compreender que o
ser jamais é Um: pré-individual, ele é metaestável, su-
perposto, simultâneo a si próprio; individuado é ainda
múltiplo, perpassado pela fase do devir que o conduzirá
a novas operações.
Se temos afirmado a subjetivação como o eixo de nos-
so interesse de pesquisa e se a entendemos como pro-
cessualidade engendrada pelo encontro de uma forma e
de uma matéria, isto significa também que devemos
nos colocar na direção de uma verdadeira ontogênese, o
que significa uma torção nos tradicionais modos de ex-
plicá-la. Trata-se de constituir uma ontogênese inver-
tida, uma gênese às avessas, porque não busca explicar
a individuação a partir do indivíduo. Supõe, ao contrá-
rio, a existência de um primeiro termo, o princípio que
traz em si o que explicará que o indivíduo seja indiví-
duo, e que o mesmo seja recolocado no sistema de rea-
lização em que a individuação se produz.
Nosso pensamento tradicional, tende para o ser aca-
bado, individuado, do qual é necessário dar explicação.
Consideramos que é necessário fazer uma reversão,
considerando primordial a operação de individuação a
partir da qual o indivíduo vem a existir e da qual reflete
o desenrolar, o regime, e enfim, as modalidades em seus
caracteres. Apreendido como realidade relativa, o indi-

258
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

víduo como determinada fase do ser, supõe uma reali-


dade pré-individual anterior e que, mesmo depois da
individuação, não existe complemente sozinha, pois a
individuação não esgota de uma só vez os potenciais da
realidade pré-individual. A individuação é, portanto, con-
siderada como resolução parcial e relativa que se ma-
nifesta em um sistema que contém potenciais. Desta
maneira, o devir é considerado como um modo de reso-
lução parcial de um nó problemático inicial, rico em vir-
tualidades. O ser pré-individual corresponde a um sis-
tema tensionado de forças que procede por saltos quân-
ticos, e a individuação não é o encontro de uma matéria
e de uma forma prévias que existem como termos sepa-
rados, anteriormente constituídos. Refere-se a uma re-
solução que surge no seio de um sistema, sendo ins-
tantânea, brusca e definitiva. Para Simondon, a vida é
individuação perpétua, conforme o modelo do devir. O
vivo não é resultado só de individuação, mas teatro de
individuação.11 O indivíduo vivo é considerado, para o
autor, como sistema de individuação, sistema individu-
ante e sistema individuando-se.
Julgamos que tal enfoque nos permitirá desenvolver
nossas análises a partir de um regime lógico que coloca
o virtual como cerne do devir e da diferenciação. Perce-
bemos existir uma importante vizinhança entre este
determinado modo de conceber a individuação e o fabu-
loso potencial imanente aos processos de digitalização
que, como sabemos, modificam os modelos de represen-
tação e questionam o atual estatuto de nossa capacida-
de corporal. Podemos supor que as potências de ima-
gens digitalizadas instauram um novo regime semióti-
co em que o referente é anulado, remetendo as imagens
a si próprias. Todo um modo de buscar assemelhar as
formas existentes, e operá-las através do reconhecimen-
to, pode dar lugar a processos cognitivos fundados na
invenção, e que permitem fusionar cognição e subjeti-

259
9
2006

vação, abrindo rupturas na lógica binarizante que dis-


socia mente e corpo, razão e afetos. Da mesma forma,
abrem-se possibilidades de reversão do platonismo,12 cuja
base se institui pela instauração de uma realidade
metafísica e ideal que se sobrepõe à realidade munda-
na e sensível, funcionando como modelo a ser seguido.
Pelo platonismo, o sensível é considerado impuro e im-
perfeito, corrói e arruína as formas ideais e é capaz de
apenas produzir cópias e simulacros. O devir é conside-
rado como indesejável processualidade, movimento que
evoca a problemática da finitude e coloca em questão
pressupostos de uma lógica que opera por identidades,
fixando a verdade como essência do ser e ex-conjurando
tudo o que dela difere.
Nesta perspectiva, o pensamento faz do mundo e dos
sujeitos uma imagem analogizável, expulsando a pura
alteridade. Se a imagem se libera da analogia, como nos
mostra André Parente,13 é porque o que pensa nela é
um puro interstício como sua possibilidade de se meta-
morfosear.
Acreditamos que os desenvolvimentos conceituais
que encontramos na obra de Simondon,14 permitem ca-
racterizar os processos de digitalização como dispositi-
vos dos devires da individuação. Oferecendo imagens
liberadas de sua função especular, a digitalização pro-
duz aberrações e mesmo monstruosidades em relação
aos pressupostos da imagem-mundo-analógica. Nada dela
ressoa no modelo, e ela pode ser considerada como uma
pequena máquina que potencializa os modos de subjeti-
vação calcados na alteridade e na afirmação das potên-
cias do falso. A partir de seu poder de se produzir sem
referente, ela pode fazer com que venhamos a colocar
em análise os nossos próprios modos de ver, oferecen-
do-se como novas máquinas de visão que, “(...) à primei-
ra vista funcionam seja como meios de comunicação,

260
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

seja como extensões da visão do homem, permitindo-


lhe ver um universo jamais visto, porque invisível a olho
nu. Do conhecer infinitamente pequeno ao infinitamen-
te grande um novo universo se ‘descobre’, se ‘desvela’,
se ‘cria’, em seus movimentos regulares e caóticos, em
suas miríades de dobras, em outras faixas do espectro
luminoso para além daquelas captadas pelo olho huma-
no, em outros espaços e em outros tempos também.”15
O modo de produção digital se oferece, ao nosso ver,
também como imagem do pensamento que não se des-
gruda do tempo, conferindo-lhe o atributo de criador da
diferença.

A imagem-labirinto
No contexto das NTCI, a noção de labirinto passa a
ser positivada, passando dos sentidos de prisão e desori-
entação para o de uma arquitetura de complexidade
máxima, desafiadora de uma imaginação radical para
encontrar-lhe as possíveis saídas ou “resoluções”, como
nos diria Simondon. Metáfora do próprio pensamento, o
labirinto se opõe às estradas amplas e pavimentadas da
razão segura e certa, iluminada pelas verdades e pelo já
conhecido. Nele, os caminhos dobrados, redobrados em
circunvoluções, nos fazem dar atenção aos próprios
modos de andar, que nos indicam caminhos no ato de
seu próprio acontecer. Constituído por volteios, idas e
vindas em sentido inverso, expandido em diversas dire-
ções, tal como a construção das cidadelas medievais, o
labirinto-rizoma nos impulsiona a uma exploração sem
mapas e nos convoca para uma vista desarmada. Nada
nele permite prever e calcular a geometria do lugar. Ele
instiga a uma geometria dos acasos e a uma inteligên-
cia astuciosa. Percorrê-lo significa investigar, explorar-
lhe as entranhas, cartografá-lo naquilo que se faz pre-

261
9
2006

sença em nós como afecção e possibilidade de núpcias,


devorá-lo naquilo em que julgamos que nos potencializa-
rá. No labirinto, somos navegantes do fora-em-nós, con-
dicionados à situação de estarmos sempre à procura e
sempre em busca de ultrapassar seus sobrepostos e in-
termináveis muros, cavando, no seu espaço, possíveis
saídas que, na verdade, nos fazem cada vez mais afun-
dar nas profundidades de suas superfícies. Portas para
um fora que, no final das contas, se abrem para o campo
de dentro, como aberturas para um horizonte móvel e
jamais alcançável. No labirinto, transformamo-nos em
habitantes do tempo, oferecemos nosso viver como uma
das possibilidades de manifestação da vida, vivemos o
interminável e o indeterminado das formas e sofremos
a cada uma de suas partidas. Somos, por isto, obrigados
ao eterno retorno dessa incessante busca de ultrapas-
sagem dos muros, perseguição que se acende em nós
como demonstração de que estamos vivos. No labirinto,
vivemos a vida em suas incalculáveis manobras e nele
aprendemos também a localizar nossa vontade de saber
e nosso método de fazê-la avançar.
Menos do que um método, porque não aponta cami-
nhos prévios à caminhada a ser realizada, o labirinto
nos ensina que o conhecer implica-se com a poiesis,
estando distante dos cálculos frios e neutralizados da
racionalidade técnica e instrumental. No labirinto, vie-
mos a saber que, para conhecer o mundo, precisamos
muito mais do que interagir e nos adaptar a ele, temos
de deixá-lo trabalhar em nós, afetar-nos para que pos-
samos responder desde este estranho laço de nossa in-
discernível implicação. Sua estrutura não se dobra às
tentativas de linearização e, em seus volteios, avança-
mos sem garantias de volta. Somos paradoxalmente
curvados e elevados pela complexidade que lhe é ima-
nente, pela multiplicação de suas possibilidades e pela
vivência de tempos e espaços simultâneos. No labirin-

262
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

to, somos forçados a nos fazermos à sua altura, sempre


ultrapassando limites, fronteiras e desenhando novos
contornos imprevisíveis. Nosso modo de percorrê-lo e to-
par com as insuspeitadas imanências de sua confusa
ordem-caos sugerem-nos, de modo instigante, a dimen-
são ético-estética de nossas escolhas em relação às pos-
síveis estratégias de produção de conhecimentos, de nós
mesmos e de mundos. No labirinto, tudo nos é simultâ-
neo, nada está decidido a priori. Sua indeterminação
prévia, que deve ser entendida como abertura para a
multiplicidade, nos autoriza a avançar em nossa cons-
trução da ponte-passagem, apontando que a imagem
digital como espaço de criação de mundos e ruptura com
a perspectiva de duplicidade signo-real, pode invocar a
sensibilidade em relação ao tempo e tratar as potências
virtuais como emblema do desejo de trânsito conforme
a demanda do momento, emblema da modelagem pró-
pria de nosso tempo e de suas formas de conhecer. Se
toda a imagem é linguagem, temos, então, na imagem
digital, um acesso ao ritmo e à estética da produção de
subjetividade contemporânea.
Ao colocar em jogo a formação do olhar, a criação e a
leitura da imagem digitalizada permitem-nos entender
que o conhecer se dá através da memória como mar
aberto de imagens, disponível para ser cartografado pelo
presente, memória como espaço virtual capturado pela
última vista. É em pelo menos um pequeno ponto de
acoplamento entre o espectador e a imagem que o su-
jeito se surpreende com o reflexo de seus próprios olhos.
Sedução da afecção — via inconsciente —, que faz com
que a imagem não seja jamais em si, mas sempre para
e com um sujeito. Ela existe na relação. Se o sujeito é
considerado como dobra, como espessura do fora-mundo
recolhida em si, interior do exterior, é verdade que, para
além de uma memória psicológica, ele se torna guar-
dião de uma memória-mundo, história encarnada. O fora

263
9
2006

é percebido como um plano de forças, informe e caótico,


ainda por vir a ser. O sujeito é tido como um dos pos-
síveis efeitos da dobragem destas forças, do que resulta
uma forma parcial, porque a feitura de si corresponde
sempre a operações de seletividade e desaceleração. Este
fora pode também ser pensado como o impensado e o
irrepresentável, e não podemos acessá-lo sem pronta-
mente aproximá-lo de nós mesmos. Desta forma, exis-
tir e subjetivar significa atualizar as virtualidades do
fora que se colocam como plano de composição de devi-
res e em relação ao qual o sujeito se posiciona como
canal (milieu) de existencialização.
Acreditamos que não existe palavra final, certeza e
porto para o pensamento, sendo que o que resta para o
sujeito contemporâneo é a manutenção constante da
narrativa no sentido de não deixar o labirinto hipertex-
tual fazer calar, pois a vivacidade da imagem constante
e deslocada de si, aponta para um mundo aberto e ainda
por fazer. É preciso perder o medo de navegar atualizan-
do o virtual que nos espreita e aguarda. É preciso inva-
dir as uniformidades, fortalecer as diferenças e desvir-
tuar a ordem das coisas. Precisamos desestabilizar o
que pretende ser total, global, uniforme, geral. Devemos
tecer novos enredos, estabelecer novas ligações na rede
de elementos históricos, uma nova trama, um novo en-
redo, um novo imaginário. Devemos experimentar no-
vas conexões entre a série de eventos que nos cercam
e os documentos que conhecemos. Colocar a história
em movimento, para apreender-lhe as estruturas, ilu-
miná-la através da descontinuidade produzida por acon-
tecimentos. “As estruturas são as formas de regulari-
dade dos acontecimentos, são as regras imanentes às
próprias práticas sociais e que as direcionam em dados
sentidos repetitivos, mas que não impedem, o aconte-
cimento desviante, a fuga esquizo, a metamorfose ines-
perada, o acaso instaurador de novos processos.”16

264
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

Para Muniz de Albuquerque, a história não é como um


castelo. Ela deve ser considerada como um labirinto de
corredores e portas contíguas, aparentemente semelhan-
tes, mas que, dependendo da porta que o sujeito escolhe
abrir, pode estar provocando um desvio, um deslizamento
para um outro porvir.
Se a imagem digital pode ser considerada como ima-
gem-tempo que, em vez de representar o real já decifrado,
vise um real sempre ambíguo, a ser decifrado, pode-se afir-
mar que ela funda as possibilidades de um neo-realismo,
definido, por Deleuze, como “(...) a ascensão de situações
puramente óticas (e acústicas) que se distinguem essen-
cialmente das situações sensório-motoras.”17 Na imagem-
tempo, é preciso investir os meios e os objetos pelo olhar,
que as pessoas e coisas sejam ouvidas e vistas, inventari-
adas prolongadamente. Na exploração deste real, as situa-
ções não se prolongam necessariamente em ação explíci-
ta, não são mais de caráter sensório-motor, mas antes,
óticas e sonoras, investidas pelos sentidos, antes da ação
se formar e afrontar seus elementos. Trata-se de estabe-
lecer com o mundo, uma relação onírica, por intermédio
dos órgãos de sentidos, libertos. Do ponto de vista da ima-
gem ótico-sonora, a diferença entre objetivo e subjetivo
tem valor apenas relativo e provisório, pois o mais subjeti-
vo é perfeitamente objetivo, já que ele cria o real pela for-
ça da descrição visual. E, inversamente, o mais objetivo já
é completamente subjetivo, pois substitui pela descrição
visual, o objeto “real”. Colocamo-nos num ponto de indis-
cernibilidade entre real e imaginário e nos permitimos
entrar em um novo e admirável mundo e apreender algo
intolerável e insuportável, poderoso demais e que excede
nossas capacidades sensório-motoras. “Fazer da visão
pura um meio de conhecimento e de ação.”18
Comumente apenas percebemos clichês, ou seja,
imagens sensório-motoras das coisas. Não percebemos

265
9
2006

a imagem inteira das coisas, percebemos sempre me-


nos, apenas o que nos interessa, o que temos interesse
em perceber. Poderíamos, neste sentido, pensar a digita-
lização de imagens como uma poderosa máquina de vi-
são, uma quebra em nossos enfraquecidos sistemas sen-
sório-motores, para dar lugar a uma outra imagem sem
metáfora, que faz surgir a coisa em seu excesso de hor-
ror ou de beleza, para além do bem e do mal. Acedendo o
olho a uma função de vidência, os elementos da imagem
fazem com que ela deva ser lida não menos que vista,
legível tanto quanto visível. Imagem-pensante, imagem-
tempo que nos toca naquilo em que ainda não somos,
mas que já faz parte de nós. Imagem desdobrável, plásti-
ca porque carrega consigo as inúmeras possibilidades de
configuração e diversos regimes de tempo, pois, ao se
transformar também se conserva enquanto memória.
Imagem como realização apenas parcial das virtualida-
des ilimitadas de um programa matemático que opera
com base de bits, estes comparáveis a “células-tronco”
ou a grãos da matéria-mundo, cuja re-aplicação pode ge-
rar qualquer geografia de qualquer paisagem. Sempre
pronta a se auto-destruir para renovar a cena, a nova
imagem afastada do sistema sensório-motor e fabricada
sintética e abstratamente, é também anti-genealógica,
uma vez que se encontra inscrita na lógica das conexões
rizomáticas, a-significantes e descentradas. Sua produ-
ção é geradora de possíveis monstruosidades ao olho co-
lonizado. Em sua fabricação, encontramos, sem dúvida,
incríveis potencialidades de mutação e de reinvenção.
Como nos alerta Guattari, tudo dependerá de como se
dará a aliança homem-máquina, fazendo-se necessário
que esta seja colocada a serviço de novos modos de sub-
jetivação, em que possamos ultrapassar a marca deste
humano do qual somos sujeitos.

266
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

Notas
1
Arlindo Machado. Máquina e imaginário. São Paulo, Edusp, 1996.
2
Idem, p. 18.
3
Gilles Deleuze & Félix Guattari. “Como criar para si um corpo-sem-órgãos”,
in Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol.3. Tradução de Aurélio Guerra
Neto. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996. pp. 9-29.
4
Félix Guattari. “Da produção de subjetividade”, in André Parente (org.).
Imagem-máquina. Rio de Janeiro, Ed.34, 1993. pp. 177-191.
5
Idem, p. 177.
6
O termo “capitalístico” foi forjado por Félix Guattari durante os anos 1970
para designar um modo de subjetivação que não se acha apenas ligado a socie-
dades ditas capitalistas, mas que caracteriza também as sociedades, até aquele
momento ditas socialistas, bem como as do Terceiro Mundo. Entende o autor
que todas vivem uma espécie de dependência/contradependência do modelo
capitalista e, por isso, do ponto de vista de uma economia subjetiva não há
diferença entre elas, pois todas reproduzem um mesmo tipo de investimento
do desejo no campo social.
7
Guattari, Félix. “Da produção de subjetividade”, in André Parente (org.), op.
cit., 1993. p. 186.
8
Idem, pp. 190-191.
9
“Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Tal
sistema poderia ser chamado rizoma. Diferentemente das árvores ou de suas
raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer, e cada um de seus traços não
remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes
de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se
deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas
de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas
sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicida-
des”. François Zourabichvili. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Tel-
les. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2004. p. 97.
10
Gilbert Simondon. L’individu et sa genèse physico-biologique. Paris, PUF, 1964.
11
Gilbert Simondon. “A gênese do Indivíduo”, in Cadernos de Subjetividade/
Reencantamento do Concreto. São Paulo, Hucitec, 2003. pp. 97-117.
12
Luis Antonio Fuganti. “Saúde, Desejo e Pensamento”, in Saúdeloucura, nº3.
São Paulo, Hucitec. 1990. pp. 19-82.
13
André Parente (org.), op. cit., 1993. p. 11.
14
Gilbert Simondon, op. cit., 1964.

267
9
2006

15
André Parente (org.), op. cit., 1993. p. 14.
16
Durval Muniz de Albuquerque Jr. “No castelo da história só há processos e
metamorfoses, sem veredicto final”, in Edson Passetti (org.). Kafka, Foucault:
sem medos. Cotia-SP, Ateliê Editorial, 2004. p. 17.
17
Gilles Deleuze. A Imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São
Paulo, Brasiliense, 1990. pp. 11.
18
Idem, p. 29.

268
verve
Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

RESUMO

As novas tecnologias digitais e um novo pensar-corpo. Da geome-


tria fractal para pensar a noção de corpo sem órgãos de Artaud,
desenvolvida por Deleuze e Guatari para perceber na imagem digi-
tal e no virtual novas invenções, devires, rupturas. A história está
marcada no corpo, e interessa como labirinto, como simultaneida-
des.

Palavras-chave: Corpo, virtual, filosofia.

ABSTRACT

The new digital technologies and a new body-thinking. From the


fractal geometry to think Artaud’s idea of the body without or-
gans, developed by Deleuze and Guatarri to perceive in the digital
and virtual images new inventions, becomings, disruptions. The
history is marked on the body. Here it is viewed as labyrinth, as
simultaneities.

Keywords: Body, virtual, philosophy.

Recebido para publicação em 8 de outubro de 2005 e confirmado


em 6 de fevereiro de 2006.

269
verve
O apelo desejante ou o roteiro improvável para uso...

o apelo desejante ou o roteiro


improvável para uso dos ratos de
biblioteca

nilson oliveira*

“A leitura faz do livro o que o mar e o vento fazem da


obra modelada pelos homens: uma pedra mais lisa, o frag-
mento caído do céu, sem passado, sem futuro, sobre o qual
não se indaga enquanto é visto. A leitura confere ao livro a
existência abrupta que a estátua parece reter do cinzel: esse
isolamento que a furta aos olhos que a vêem, essa distân-
cia altaneira, essa sabedoria órfã; que dispensa tanto o
escultor quanto o olhar que gostaria de voltar a esculpi-la.”
Maurice Blanchot

A escrita, fala-se da escrita literária que faz revelar o


estilo e a força de cada um que nela se enreda. Na maio-
ria das vezes, a escrita deixa poucos rastros das inúme-
ras implicações, das dúvidas, dos impasses, dos vácuos,
sobre a realidade em que foi tecida. Lautréamont e Paulo
Plínio Abreu são casos implícitos dessa realidade. Celine

* Editor da revista literária Polichinello. www.polichinello2004.blogger.com.br.


verve, 9: 271-276, 2006

271
9
2006

reescreveu um sem-número de páginas, podando de pouco


a pouco, até alcançar o ponto essencial de Viagem ao fim
da noite; Kafka, em seu Diário, narra as situações mais
estranhas e adversas que atravessou para edificar sua
obra; Robert Musil atravessou a vida inteira e não teve
por concluído o seu Homem sem qualidades (romance de
uma vida, beleza sem igual na sua realidade de obra fa-
lha, não-concluída). Nessas obras, e em muitas outras
dessa natureza, ficam para trás as dobras mal fechadas
de uma ferida que dilata uma espécie de não-confissão,
segredo mal amarrado, mas ainda assim algo não aces-
sível nem mesmo ao leitor mais atento, que só o escritor
sabe, e por vezes ainda sofre por não conseguir dele se
livrar, e que vai estar presente em seu próximo livro ou
que vai arrastá-lo até ele. Dessa experiência, Mallarmé
disse, escrevendo a um amigo: “sinto sintomas inquie-
tantes causados só pelo ato de escrever”; mas, por vezes,
tal como o fizeram Kafka e Joubert, o escritor lança mão
antes para se aliviar do que para dividir um segredo do
seu Diário; o diário não é essencialmente confissão, algo
relatado em primeira pessoa, mas um memorial, espaço
em que se relata o percurso de uma narrativa, tal como
vimos nos Diários de Maria Gabriela Llansol.1 Nesses
casos, as reminiscências do autor cedem lugar às expe-
riências literárias. Através dos diários, o autor descreve
os rastros e vestígios da sua fonte, mas fazendo jorrar na
sua narrativa a força que resiste e atravessa os tempos.
São textos que nos tiram do lugar, que nos provocam. Es-
crever é um desafio de criação de uma ética que nos con-
vida a nos transformar em meio à própria escrita. Não se
trata de um compromisso com “o belo”, mas de um com-
promisso com a vida, que pulsa por entre os textos, com
uma potência de solidariedade que nos conduz a um de-
vir-outro: estrangeiro, estranho ou o que for. A escrita,
então, torna-se uma experiência que não coincide com
a razão, com a inteligência, com a erudição. Mas com

272
verve
O apelo desejante ou o roteiro improvável para uso...

uma proliferação de fluxos: de linguagens, de pensamen-


tos, que transcorrem linha a linha pelas veias abertas
do acontecimento, que no texto literário se faz revelar,
incidindo, pela leitura, numa superfície que nos força a
pensar e seguir em frente. Na literatura, a leitura é tão
fundamental quanto a escrita, pois é a leitura que reco-
nhece o livro (sua força, suas cintilações) — é a leitura
que atravessa o abscesso do livro e mergulha no cora-
ção da obra de arte. Essa viagem remete o leitor a um
espaço outro: o espaço inominável da escritura, o espa-
ço onde só a obra persevera; a obra lapidada na sombra,
apartada das representações do mundo, acessível so-
mente a um leitor anônimo. Só esse leitor possui a for-
ça afirmativa que consente ao livro o poder de existir.
Só esse leitor assegura à escrita a condição de obra de
arte e mantém com ela uma intimidade desejante que
recusa, a qualquer custo, reconhecer o livro fora de qual-
quer conceito que não seja o de obra de arte. Ler, no
sentido da leitura literária, não tem outro objetivo se-
não o da própria leitura. Nada, fora desse invólucro, atrai
a atenção daquele que nessa jornada se remete, perfi-
lada por assombros e fruições. Não há nada mais peri-
goso que a escrita. Sim, a ameaça contida nas linhas
que avançam com violência, nos arremessando para uma
atmosfera que nos comprime contra o tempo. O que se
passa no interior do livro, isso não se sabe, nem mesmo
aquele que escreve, porque o faz desenganado de qual-
quer objetivo. A escrita é contagiosa. Aquele que escre-
ve agoniza. Aquele que lê persevera: ler, ver e ouvir a
obra de arte exige mais ignorância que saber, exige um
saber que se nutre de uma imensa ignorância e um
dom que não é dado de antemão, que é preciso cada vez
receber, adquirir e perder, no esquecimento de si mes-
mo. E depois de consumida, essa escrita evapora sem
deixar rastro, sem formação, sem nada. Só o silêncio.
Talvez algumas parcas lembranças que se apagarão à

273
9
2006

medida que o leitor se confrontar com a violência de um


outro texto, e outro, e outro. A leitura em esfera de su-
cessiva continuidade alcança a intimidade do vício; tor-
na-se algo tão fundamental quanto um cigarro ou um
café. Faz parte da vida daquele que lê. E aos poucos vai
atravessando como um câncer que evolui no corpo até o
extremo da morte. Ler literatura é entregar-se ao delí-
rio desta possibilidade, é mergulhar no fascínio enquanto
o texto é consumido, digerido sem economia. Não se
erige literatura com boa vontade, não se lê literatura
com boas intenções. Escrever, engendrar literatura sig-
nifica mergulhar no coração da escrita e escrever com
todos os sonhos, com todo o corpo; escrever com a tinta
que vaza das artérias: “a escrita que não consola, nem
salva ninguém da verdade.” Nada em relação à escritu-
ra se assemelha à experiência sofrida por Artaud: “es-
crever ou morrer, mas escrever e morrer, escrever até
a morte, escrever a sua própria morte.” Artaud pensa a
escrita como “um ato de dejeção do ser”; a escrita, nes-
sa esfera, dilacera a face daquele que escreve. Artaud
imprime a escrita-rosto-em-desfazimento. Ela desfaz “o
rosto como território da arte, de todas as artes”; desfa-
zer o rosto para erigir o devir-escrita: “uma escrita de
liberdade, uma escrita não mais contra o organismo,
mas sem organismo.” Desfazer o rosto para gerar pen-
samento: pensamento evasão, sem sair do lugar. A es-
crita de Artaud fratura o muro que aparta obra e leitor,
sua força verte os contornos do livro e age direto no cor-
po, contra o corpo; contrai as vísceras, suja a alma. O
leitor que se alimenta dessa escrita não está imune às
suas irradiações, não sai ileso: “vocês vão ter que estar
prontos, como eu, para queimar todas as formas.” Quei-
mar a forma para aliviar o corpo, queimar a carne para
evacuar deus: matar deus e com ele sua criação. In-
ventar um outro homem para salvá-lo de deus. No espa-
ço literário, o escritor só pertence à sua obra e a ela

274
verve
O apelo desejante ou o roteiro improvável para uso...

está condenado: sem deus, sem razão, sem identidade.


A obsessão da obra arrasta aquele que escreve pra um
extremo onde a morte não é um limite intransponível.
Solitário, apartado do mundo e das coisas, o escritor se
lança à viagem da escrita. Viagem ao infinito da obra:
“a nossa viagem é inteiramente imaginária. É essa sua
força. Ela vai da vida à morte.” Essa viagem é signifi-
cante, forte, não permite outra opção, não é do caminho
para a morte, mas morte certa: morte aos poucos, morte
a crédito; morte do autor, regozijo do leitor, mas um gozo
sofrido, arrancado, página por página, das entranhas do
livro; livro que traz nas suas linhas a selvageria da arte,
o devir selvagem, a escrita arte: “O livro que tem sua
origem na arte não tem sua garantia no mundo, e quando
é lido, nunca foi lido ainda, só chegando à sua presença
de obra no espaço aberto por essa leitura única, cada
vez a primeira, cada vez a única”; a leitura que atraves-
sa o espaço do significante, a fadiga dos códigos, as in-
terpretações dos especialistas que “pensam” a escritu-
ra a partir de uma atmosfera fechada; que investem na
escritura valendo-se ou de uma análise ideológica ou
de uma leitura publicitária ou de uma interpretação
psicológica, que busca na obra um significado social,
uma gênese traumatizante ou um objeto de mercado,
passiva de elogios hiperbólicos ou de críticas demolido-
ras. Em ambos os casos a escrita está apartada de uma
possibilidade artística. No espaço literário, a leitura é
tão fundamental quanto a escrita, pois é a leitura que
reconhece o livro: a leitura do fora, a leitura diletante, a
leitura que atravessa o abscesso do livro mergulhando
no delírio da obra.

275
9
2006

Nota
1
Maria Gabriela Llansol. Escritora portuguesa. Escreveu alguns livros em
forma de diário, entre eles: Finita. Diário II. Lisboa, Rolim, 1987 e Um Falcão em
Punho. Diário I. Lisboa, Rolim, 1985. Fragmentária, singular, a escrita de Llan-
sol fratura os limites entre a memória e a ficção, fazendo de suas obras espaços
de experimentações que buscam o além da linguagem, o impronunciável, a
palavra em estado libidinal. Em uma de suas narrativas nos diz: “nada se pode
dizer com o sexo, mas é com ele que se diz, tal a folha com o lápis.”

RESUMO

A escuta e a leitura sem organismos.

Palavras-chave: Escritores, leitores, arte.

ABSTRACT

Listening and reading without organisms.

Keywords: writers, readers, art.

Recebido para publicação em 10 de novembro de 2005 e confirma-


do em 6 de fevereiro de 2006.

276
verve
A arte pela (an)ar(q)

a arte pela (an) ar(q)

michel ragon*

Rémy de Gourmont dizia do simbolismo, em 1892, que


ele “se traduz literalmente pela palavra liberdade, e para
os violentos, pela palavra anarquia.”
Existia, de fato, um estranho cruzamento das teorias
políticas mais extremas e da literatura mais etérea no
fim do século XIX.
Os poetas simbolistas tinham um verdadeiro culto por
Louise Michel, à qual Verlaine dedicou uma balada pu-
blicada em Le Décadent, revista que reunia Mallarmé,
Rimbaud (fascinado pela Comuna de Paris) e Laurent
Tailhade. Convidada pelos “decadentes” a dar uma con-
ferência na sala do Ermitage, em 20 de outubro de 1886,
Louise Michel declarou: “Os ‘decadentes’ criam a anar-
quia do estilo... Os anarquistas, como os ‘decadentes’,
querem o aniquilamento do velho mundo.”

* Romancista, crítico, historiador da arte e da arquitetura, Michel Ragon é


autor de La Voie libertaire. Paris, Ed. Plon, 1991, e Jean Dubuffet. Paris, Ed. de
Fallois, 1995. Recentemente, publicou a primeira grande biografia de Courbet,
Gustave Courbet, peintre da la liberté. Paris, Ed. Fayard, 2004.
verve, 9: 277-283, 2006

277
9
2006

Com exceção de Félix Fénéon, diretor da La Revue


Blanche de 1885 a 1903, que foi aprisionado em Mazas, por
ocasião do processo dito dos Trinta, e de Richard Wagner,
que se associou a Bakunin no momento da insurreição
de Dresden, a afiliação dos poetas e dos pintores simbolis-
tas ao movimento anarquista foi na realidade mais teóri-
ca que ativa.
Apesar disso, a fascinação desses movimentos artísti-
cos de vanguarda coincide com o período mais extremo do
anarquismo, ou seja, o ilegalismo e o terrorismo dos anos
1886 a 1912. E muitos textos literários são verdadeiros
apelos à insurreição.
A violência das afirmações publicadas nesse período é
hoje inimaginável. A propósito da bomba de Vaillant na
Câmara dos deputados, Laurent Tailhade (1854-1919), um
dos fundadores do Mercure de France escrevera: “que im-
portam as vítimas se o gesto for belo!” E ele reclamava por
um regicida contra o czar, em visita a Paris em 1902: “será
[ele escreve em Le Libertaire] que entre esses soldados
ilegalmente retidos na estrada, onde acampa a covardia
imperial, entre esses guarda-barreiras, que ganham nove
francos por mês, entre os pedintes, os mendigos, os vaga-
bundos, os fora-da-lei, os que morrem de frio sob as pon-
tes, no inverno, não há nenhum que pegue seu fuzil, seu
atiçador, para arrancar dos freixos dos bosques o bastão
pré-histórico e, subindo no estribo das carruagens, gol-
peie até a morte, golpeie no rosto e golpeie no coração a
corja triunfante, czar, presidente, ministros, oficiais e os
clérigos infames... O sublime Louvel, Caserio, não tem
mais herdeiros? Os matadores de reis também estão mor-
tos?”
Quanto a Octave Mirbeau (1848-1917), ele escreve em
L´En-dehors, em 1º de maio de 1892: “a sociedade não pode
se queixar. Foi ela mesma que gerou Ravachol. Ela se-
meou a miséria, ela recolhe a tempestade.”

278
verve
A arte pela (an)ar(q)

Pintores engajados
E embora em 1903 o doce romancista dos humil-
des, Charles-Louis Philippe (1874-1917), pronuncian-
do-se sobre o assassinato de McKinley, presidente dos
Estados Unidos, levante algumas dúvidas sobre a eficá-
cia política dessa prática, ele não deixa de esclarecer,
em uma de suas Chroniques du Canard Sauvage: “Não
quero absolutamente condenar a filosofia anarquista,
clara e bela, impregnada de amor e de fraternidade, e
ensinada por santos, desde o sapateiro Jean Grave até
o príncipe Kropotkin. Isso seria uma má ação, pois ela
contém um pouco da grande esperança humana.”
Entre os pintores neo-impressionistas, Pissarro era
sem dúvida o que possuía a mais sólida formação políti-
ca. Paul Signac dizia, no entanto, ter sido formado por
Kropotkin, Élisée Reclus e Jean Grave. Ambos, assim
como Seurat e Maximilien Luce, eram colaboradores dos
jornais anarquistas. Classificado como suspeito após o
assassinato do Presidente Carnot, Pissarro teve até que
se refugiar na Suíça.
Oscar Wilde e Alfred Jarry também reclamavam a
anarquia, tanto por suas atitudes e provocações quanto
por suas obras.
Embora o simbolismo e o neo-impressionismo tenham
sido estreitamente ligados às teorias anarquistas, a te-
oria libertária encontra-se de modo mais evidente no
romancista popular Michel Zevaco, que se dizia discípu-
lo de Louise Michel e de Jules Vallès, e que foi preso em
1892 por seu elogio da ação direta. Colaborador do jornal
Le Libertaire, de 1893 a 1918, ele fará passar em sua
série de Pardaillan a idéia do herói sem mestre. A filo-
sofia anarquista, veiculada por romances de capa e espa-
da, irá assim marcar muitos leitores populares e mesmo
infantis, como Jean-Paul Sartre, que dirá, em As Pala-

279
9
2006

vras, que Pardaillan tinha sido o herói preferido de seus


sete anos.
Entre 1930 e 1940, a literatura proletária animada por
Henry Poulaille (1896-1980) em oposição política ao mar-
xismo e em oposição literária aos escritores ditos burgue-
ses, mostrava adequação muito maior com a anarquia do
que a literatura simbolista. O vocabulário realista, a des-
crição da vida dos operários e camponeses, o pacifismo, a
insubordinação... Pode-se dizer que Henry Poulaille e seus
amigos ao mesmo tempo aderiram à doutrina libertária e
a ilustraram com suas obras.

A adesão inesperada do surrealismo


A conjunção anarquia e movimento artístico de van-
guarda, como no episódio simbolista, concretizou-se, no-
vamente, no início dos anos 1950, com a súbita adesão
inesperada dos surrealistas ao movimento libertário.
Inesperada, quando lembramos das conclusões baru-
lhentas do surrealismo e do marxismo. É verdade que a
ideologia surrealista combinava infinitamente melhor
com o anarquismo do que com o partido comunista. E o
pensamento libertário nunca deixou de entusiasmar
Buñuel, Artaud, Desnos e Benjamin Péret, que chegará a
se engajar nas milícias anarquistas em 1936, indo com-
bater na linha de frente de Teruel.
Em 1952, em seus Entretiens com André Parinaud,
André Breton se perguntava por que o surrealismo em
seus inícios havia tomado o caminho da colaboração
com o marxismo e não com o anarquismo; “por que”,
ele dizia, “uma fusão orgânica não pôde ser realizada
nesse momento entre elementos anarquistas propria-
mente ditos e elementos surrealistas? É o que ainda
me pergunto vinte e cinco anos depois.”

280
verve
A arte pela (an)ar(q)

Brigados por O homem revoltado


De outubro de 1951 a agosto de 1952, os escritores
surrealistas colaborarão regularmente no jornal anar-
quista Le Libertaire. Trinta e um artigos serão assim
publicados, dentre os quais apenas um assinado por
André Breton, em dois de janeiro de 1952, intitulado A
Clara Torre: “onde o surrealismo pela primeira vez se
reconheceu [ele escrevia], bem antes de definir a si
mesmo e quando era apenas associação livre entre in-
divíduos que rejeitavam espontaneamente e em bloco
as restrições sociais e morais de seu tempo, foi no es-
pelho negro do anarquismo.”
Embora os artigos dos colaboradores surrealistas do
Libertaire nunca se refiram à filosofia anarquista e nun-
ca citem seus pais fundadores, André Breton partici-
pará de todas as lutas da Federação Anarquista: solida-
riedade com os militantes da CNT, defesa dos insub-
missos...
A briga entre surrealistas e anarquistas se dará a
respeito da publicação de O homem revoltado, de Albert
Camus. Atacar Camus em Le Libertaire, como faziam os
surrealistas, pareceu intolerável aos militantes anar-
quistas, embora Camus nunca tenha declarado com tan-
to alarde sua adesão à anarquia quanto Breton.
Apesar da briga, André Breton continuará a colabo-
rar episodicamente no Monde Libertaire (sucessor do jor-
nal Le Libertaire). É nessa publicação que irá aparecer,
em 23 de dezembro de 1956, o manifesto surrealista,
Hungria, sol levante, onde os insurgidos de Budapeste
eram comparados aos partidários da Comuna de
Paris.Em novembro de 1966, por ocasião da morte de
André Breton, Le Monde Libertaire publicou na primei-
ra página o seguinte anúncio fúnebre:

281
9
2006

“André Breton morreu


Aragon está vivo...
Uma infelicidade dupla para o pensamento honesto...”
Mas, sem dúvida, desde Fénéon, desde Tailhade, desde
Mirbeau, o autor que se situa mais violentamente na es-
fera de influência anarquista é um pintor: Jean Dubuffet
(1901-1985). Embora nunca tenha tido relações com a Fe-
deração anarquista, ele escreveu em primeiro de novem-
bro de 1970 a Henry Poulaille: “Meus próprios impulsos
sempre foram, acredito, os que constituem a posição do
anarquismo.”
Seu livro Asfixiante cultura (1968) é uma fogueira, que
pode ser considerada uma espécie de manual libertário.

Tradução do francês por Martha Gambini.

282
verve
A arte pela (an)ar(q)

RESUMO

Relações entre arte e anarquismo na França, problematizando o


terrorismo e o surrealismo. Do simbolismo ao surrealismo, a anar-
quia não se limita a movimentos, mas transborda-os.

Palavras-chave: Arte, anarquia, terrorismo.

ABSTRACT

Relations between art and anarchism in France, problematizing


terrorism and surrealism. From symbolism to surrealism, anarchy
does not restrict itself to movements, but overflows them.

Keywords: revolutionary movements, art, anarchy.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2005.

283
verve
É o bastante? ou...

Resenhas

é o bastante? ana salles*/edson passetti**


ou a conveniência de
se manter na moda

Nils Christie. A suitable amount of crime. Londres, Routledge,


2004, 137 pp.

O livro de Christie é sem dúvida alguma um estudo de


grande importância para a análise das condições utiliza-
das para a construção do conceito de crime e dos efeitos
que o sistema punitivo de justiça têm sobre as socieda-
des. O autor tem como ponto de partida a investigação dos
tipos de atos que são vistos como ‘maus’ por meio de um
esquema classificatório e que terminam por designá-los
como crime. Buscando encontrar quais são as condições
sociais utilizadas para que se classifique uma situação
conflituosa como crime, Christie tem como desafio seguir
o destino dos atos por meio do universo dos significados:

* Estudante de graduação em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisadora no


Nu-Sol e bolsista CNPq.
** Professor no Depto. de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol — Núcleo de Sociabilida-
de Libertária.

verve, 9: 285-288, 2006


285
9
2006

“crime não existe”, mas trata-se de uma das formas pos-


síveis de classificar situações indesejáveis. Interessa-lhe
o modo como os sentidos nascem e criam formas partindo
da idéia de que o crime é um produto de processos cultu-
rais, sociais e mentais.
A suitable amount of crime (Uma quantidade conveniente
de crime) mostra como nas sociedades modernas a convi-
vência entre estranhos tornou-se uma situação conveni-
ente para que atos indesejáveis sejam designados e con-
siderados como crimes. Por meio de relatos de situações
conflituosas vividas no cotidiano, Christie aponta a con-
veniência que certos conflitos possuem para serem clas-
sificados como crime como, por exemplo, um homem que
violenta sua mulher e afirma que a está apenas “discipli-
nando”. O homem violento usa a intimidade para fazer
com que certas práticas não sejam designadas como cri-
minosas, na medida em que freqüentemente isola a mu-
lher para não ser enquadrado na categoria de criminoso e
a mulher, talvez por depender financeiramente do homem
ou mesmo pelas lembranças dos dias de amor que vive-
ram juntos, se submete à idéia do seu disciplinamento.
O autor aponta para o uso do conceito de máfia e de
terror como ferramentas para que o Estado alcance seus
propósitos. Christie cita trechos da obra de Johan Back-
man em seu livro The Inflation of Crime in Russia: The Soci-
al Danger of the Emerging Markets (A inflação do crime na
Rússia: O perigo social dos mercados emergentes) para
exemplificar de que modo as idéias que se têm sobre má-
fia tornaram mais fácil a preservação do controle pela au-
toridade russa. Além da imagem em que a máfia aparece
como uma indústria extremamente lucrativa, seja en-
quanto tema da literatura ou do cinema russo, ela é tam-
bém usada por políticos como figura do novo inimigo pós-
guerra fria: se a máfia existir na Rússia o país não é digno
de confiança. Sua imagem fez com que as autoridades

286
verve
É o bastante? ou...

russas devolvessem poderes ao Ministério do Interior e


instalassem um sistema de policiamento intenso no país.
A contemporaneidade está presente no livro de
Christie. O autor reflete sobre o atentado de 11/9 re-
metendo-se às atrocidades históricas de Auschwitz,
de Hiroshima e Nagasaki, de Dresden, dos Gulags, do
Vietnã e do Camboja. Segundo ele, o 11/9 não atingiu
apenas a cidade de Nova York ou os Estados Unidos,
mas atingiu todo o Ocidente que enxergou nele um
novo mal, um novo monstro que deve ser eliminado: o
terrorista.
Christie apresenta ao longo do livro tabelas que mos-
tram a diferença nas taxas da população carcerária entre
os países industrializados onde figuram os Estados Unidos
e a Rússia com as maiores taxas; discute algumas simi-
laridades e diferenças que levaram os dois países a apre-
sentarem taxas tão elevadas no número de presidiários,
apontando para a diferença do conceito marxista do “valor
de uso” das prisões nos dois países.
Apesar de não ver mais viabilidade para o abolicionis-
mo penal, e conseqüentemente na completa abolição da
instituição penal agora, Christie demonstra, retomando a
tese de seu livro anterior A indústria do controle do crime,
grande simpatia pelo chamado minimalismo. O minima-
lismo aproxima-se do abolicionismo ao desconstruir a idéia
de crime, tendo como ponto de partida de análise o ato
conflituoso, mas se distancia dele ao admitir ainda a prá-
tica do encarceramento. A corrente minimalista admite
a histórica crítica abolicionista penal de que o sistema
punitivo é fragmentário e seletivo, rompendo com a cons-
trução ontológica do crime, mas admite a punição como
inevitável para certos casos, sustentando a existência do
uso de um direito penal mínimo que acaba por se mani-
festar de forma drástica no encarceramento de corpos. Se-
ria necessário questionar até que ponto a substituição do

287
9
2006

Direito penal pelo Direito penal mínimo não seria mera


diferenciação de grau de um sistema que tem os mesmos
impactos e as mesmas finalidades. Seria isso o bastante?
Em todo caso, para Christie, a generosidade e o per-
dão são valores que poderiam fazer com que a instituição
penal fosse a menor possível. A punição é algo que está
em completa desarmonia e em oposição com esses valo-
res. E aqui Christie parece desconhecer de William Go-
dwin a Elias Canetti, que o perdão é a parte positiva do
poder de punir.
Manter alguém dentro de uma cela está próximo a re-
tirar a vida dessa pessoa, é que apenas ainda não ganhou
a mesma aversão que a tortura e a pena de morte tem na
atualidade. Por isso o autor acredita na negociação direta
entre as partes envolvidas nas situações-problema que
se transformam em proximidades com a justiça restaura-
tiva. Assim, ele reescreve o que afirmara, anteriormente,
como abolicionista que o sentimento de vingança susten-
ta um ciclo no qual a vítima faz uso do mesmo método que
o agressor, ou seja, não se trata de promover meios para
restaurar os danos que a vítima sofreu, mas de causar
danos àquele que a agrediu.
Segundo o autor, o criminologista possui uma posição
ética perante a sociedade. Ele aponta sua preocupação em
relação às universidades se transformarem em institui-
ções de marketing fazendo com que os pesquisadores se-
jam capturados pelo sistema penal: ambos estão se tor-
nando produtores e fornecedores de materiais para a ad-
ministração da justiça criminal.
Christie finaliza seu livro citando os povos Mennonites
e Amish, do Canadá e dos Estados Unidos como exemplos
de pequenos núcleos de resistência à cultura monolítica
dominante, mostrando a importância da comunidade e da
criação de uma contracultura para tornar possível a exis-
tência de uma justiça criminal menor possível.

288
verve
William Gibson e cyberpunk: reflexão ou antecipação?

O tempo apanhou Christie de diversas maneiras. Ele


acomodou-se à era das punições e da moda do direito pe-
nal mínimo. Apressado em permanecer influente trans-
creve trechos de artigos publicados anteriormente sem
citá-los. Ajusta-se ao lado progressista dos sociais-demo-
cratas. Ainda, por vezes, permanece contundente, mas
Christie se burocratizou e acabou conveniente.

william gibson e cyberpunk:


reflexão ou antecipação? márcio f. araújo jr.*

William Gibson. Neuromancer. São Paulo, Aleph, 2003, 304 pp.

William Gibson. Reconhecimento de Padrões. São Paulo, Aleph,


2004, 409 pp.

A ficção científica, enquanto gênero literário, firmou-


se no pós II Guerra Mundial, quando alguns trabalhos
se tornaram best-sellers, alcançando o rádio, a televisão
e, principalmente, o cinema. E isso se deveu à crescen-
te sofisticação do gênero e à forma como assuntos de
teores psicológicos e sociais passaram a ser tratados.
Foi nesse período, também, que Deleuze situou a as-
censão da sociedade de controle e que começaram a ser
colhidos os resultados das pesquisas realizadas durante
a guerra, principalmente no que diz respeito à telein-
formática.

* Estudante de graduação em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador no


Nu-Sol.

verve, 9: 289-292, 2006

289
9
2006

O termo cyberpunk é cunhado por Bruce Bethke em


1983 num conto homônimo, e está diretamente ligado
ao conceito de ciberespaço/cibercultura. O cyberpunk
está imerso no presente e engloba literatura, música,
cinema, ciência, e a cultura do PC/Macintosh. Abrange
obras que vão de Mary Shelley, Philip K. Dick, J.G.
Ballard, Gibson até McLuhan e Walter Benjamin, e
músicos como Patti Smith, Lou Reed, Ramones, Sex Pis-
tols — e a geração punk — como fontes de influência. O
movimento tem como ponto zero Neuromancer, 1984, de
William Gibson, obra na qual também é elaborado o con-
ceito de ciberespaço e que inspira outros autores como
Pat Cadigan, Bruce Sterling, Lewis Shiner e Greg Bear.
O cyberpunk “reconhece” o enfraquecimento dos indi-
víduos controlados o tempo todo, quando a tecnologia se
transforma na mediadora das relações sociais. Há a todo o
momento, ênfase na interação e interface homem-má-
quina, pela via da internet, realidade virtual, RPGs (Role
Playing Games), MPORPGs (Multiplayer On-Line Role Playing
Games) que remete à dicotomia cartesiana mente/corpo,
em que a interação humana e mecânica aparece como
indissociável e conflituosa. É por isso que na narrativa
cyberpunk há uma redução nas diferenças entre hu-
manos e andróides, como a presente em Blade Runner
de Ridley Scott, baseado no romance Do androids dream
of eletric sheep? de Philip K. Dick.
William Gibson é considerado um dos mais influ-
entes escritores da escola cyberpunk e conduz os lei-
tores ao ciberespaço/matriz, termos criados por ele
em Neuromancer e largamente utilizados atualmente
quando nos referimos à internet. Mundo novo, local —
ou locais, devido a seus platôs — de novas e imprevi-
síveis experiências. Virtualizado.
Em Idoru, Rez, um pop star de carne e osso, anun-
cia seu desejo de se casar com uma idoru. Os idoru

290
verve
William Gibson e cyberpunk: reflexão ou antecipação?

são ídolos que não existem no mundo real, feitos de


informação pura, formados por arranjos de informa-
ção extremamente complexos e sofisticados, que con-
ferem a eles uma “existência” original. Humana. So-
mos alertados para o poder da informação digitalizada
e “sua” capacidade de, insidiosamente, criar e des-
truir “coisas”. Criados em sistemas com alta densi-
dade de informação, a vida dos personagens reais e
virtuais pode ser investigada com precisão a partir de
“(...) dados cruciais em pilhas aparentemente aleató-
rias de informações incidentais” (p. 32), os bancos de
dados.
O comportamento de todos é registrado em bases
de dados extremamente vulneráveis, podendo ser in-
terpretados de forma quase precisa. O ciberespaço é
um local de invenção, de “constructos” — termo cria-
do por Gibson para se referir à personalidade de um
homem morto arquivada num cartucho de memória
binária, em algumas traduções pode ser encontrado o
termo espectrom, que procura dar um tom tecnológico
e fantasmagórico ao mesmo tempo, de confirmação/
determinação do real. Assim, apesar da frieza dos da-
dos e da impessoalidade do ciberespaço, tais inven-
ções humanas ainda buscam por humanização dos
sentimentos.
Isso pode ser observado em alguns jogos eletrôni-
cos e, inclusive, William Gibson antecipou em Neuro-
mancer o fato de que a inteligência artificial surgiria
da interação entre homem e máquina a partir dos jo-
gos eletrônicos. Por isso a confusão quando ocorre o
encontro entre o humano, Rez, e a idoru no espaço
real ou no ciberespaço. Trata-se da confusão frente
às características humanas desenvolvidas pela má-
quina, em constante aperfeiçoamento digital de pro-
tocolos e interfaces. Por isso o desconforto é evidente:

291
9
2006

“Que tipo de capacidade computacional era necessá-


ria para criar algo assim, algo que respondia ao seu
olhar?” (p. 211). Por isso, a relação de Rei Toei (a ido-
ru) e Rez é resultado de sentimento, tecnologia e lou-
cura.
Em Reconhecimento de Padrões, trechos de um fil-
me começam a aparecer na Internet. Em pouco tem-
po o proprietário de uma renomada agência de publi-
cidade multinacional se interessa por ele, conside-
rando-o a maior “sacada” em termos de marketing.
Para identificar quem poderia estar editando e dispo-
nibilizando os trechos do “Filme” é contratada Cayce
Pollard, uma especialista em marketing, uma coolhun-
ter, caçadora de tendências para a indústria. Cayce
tem a capacidade de avaliar imediatamente a eficá-
cia de um novo logotipo. O problema é que essa habili-
dade, essa “patologia controlada”, desencadeia em
Cayce uma mórbida alergia a certos logotipos, a ponto
dela somente utilizar produtos sem marca.
“Homo Sapiens é reconhecimento de padrões”, um
personagem diz a certa altura, relacionando-o à cria-
ção de novas mídias digitais e às novas relações de
forças provocadas. Daí advém o fenômeno contempo-
râneo do “buzz” por meio do qual agências publicitári-
as criam falsas páginas ou financiam páginas exis-
tentes para a divulgação de seus produtos transfor-
mando, assim, fãs em marketeiros. As agências
reconhecem os padrões de consumo via convergência
de banco de dados e informa os clientes acerca da dis-
ponibilidade de produtos ou então envia um e-mail
que, aparentemente, não tem ligação alguma com a
empresa, mas a marca aparece e é disseminada pela
Internet via “fwd”, e todos se transformam em agen-
tes de marketing e consumidores a partir de uma ope-
ração simples como “send”.

292
verve
Para além do gênero

Os romances de Gibson nos convidam a identificar com


quais forças exteriores as forças presentes no homem
entram em relação na sociedade de controle. Em Neuro-
mancer, por exemplo, Case é expulso da Matriz — ciberes-
paço — e condenado a viver restrito em seu corpo, “na pri-
são de sua própria carne” (p. 7). No ciberespaço o corpo é
um fardo sujeito à modulação. Portanto, devemos tomar
certos cuidados ao procurar estabelecer com quais forças
externas estamos em relação, sob pena de cair em enre-
dos de histórias em quadrinhos, mas não podemos perder
de vista que o futuro de Gibson é nosso presente. E que o
campo de concentração, o extermínio, o estado de exceção
e o uso de tecnologias digitais para sua consecução estão
presentes.

para além do gênero eliane knorr*

Miriam Lifchitz Moreira Leite (org.). Maria Lacerda de Moura:


uma feminista utópica. Florianópolis, Editora Mulheres, 2005, 369
pp.

Maria Lacerda de Moura, anarquista do amor livre, pa-


cifista, individualista e de contradições. Entre revoltas,
amigos, novas descobertas, caos interior, inventou sua
vida. Preocupada com a conscientização da mulher de sua
posição servil, dedicou a isso grande parte de sua obra.
Em meados dos anos 80, Miriam Lifchitz Moreira Leite
publicou o primeiro estudo acadêmico sobre Maria Lacer-
da, intitulado Outra face do feminismo: Maria Lacerda de

* Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da


PUC-SP e pesquisadora no Nu-Sol.

verve, 9: 293-296, 2006


293
9
2006

Moura e, atualmente, organizou para a Série Feministas,


da Editora Mulheres, o livro Maria Lacerda de Moura: uma
feminista utópica.
O livro foi criado a partir de excertos de suas obras.
Miriam Moreira Leite contextualiza, na introdução do li-
vro, a vida e o pensamento de Maria Lacerda com o pensa-
mento e os fatos da época. O primeiro dos cinco temas
definidos no livro é o registro biográfico.
Maria Lacerda conta sobre sua infância, marcada pela
religiosidade, e escreve sobre a importância de seu pai,
espírita convicto, na construção de seu caráter. Muitas
vezes, a linguagem que utiliza em suas reflexões remete
a essa religiosidade, ainda que teça uma forte crítica à
própria religião. Muitas das contradições de Maria Lacer-
da de Moura estão nessa fusão do pensamento radical com
o pensamento religioso; no entanto ela não nega suas con-
tradições, pois não suprime seus conflitos. Seu pensamen-
to não é mumificado, está em movimento, em constante
mutação. É um pensamento vibrante.
O livro está dividido a partir de algumas temáticas prin-
cipais dentro de cada um dos excertos, temáticas que se
atravessam e se entrecruzam sem cessar. Quando reflete
sobre a educação, Maria Lacerda coloca também o proble-
ma do corpo, da educação do corpo da mulher, deste corpo
como uma propriedade que, por princípio, não lhe perten-
ce, e da importância de que cada mulher, a partir de si
mesma, emancipe-se, tome conta deste corpo, e desta
maneira também se preocupe com uma maternidade
consciente.
Maria Lacerda foi uma das pioneiras nos estudos sobre
a condição feminina. Criticava ferozmente a servidão das
mulheres, afirmando que essa situação era sustentada,
também, por elas mesmas. Quando trata do amor plural, o
opõe, não só à mulher, dona de casa melindrosa, esposa,
mãe de família, mas também às “heteras gregas”, que se

294
verve
Para além do gênero

entregam à promiscuidade banal, as mulheres que, de


alguma forma, se assujeitam, aceitam as condições colo-
cadas pelo homem. Uma e outra são um duplo de uma
mesma face.
O amor plural de que fala é o amor livre, o amor entre
indivíduos únicos, o amor do coração generoso, como ge-
nerosos são os anarquistas. Apesar de muitas vezes colo-
car a fraternidade como um conceito importante na vida
de todos os homens, noutros momentos ela também se
posiciona contra, no sentido de que a fraternidade busca a
relação somente entre iguais, preocupando-se com a uni-
formização de todos, enquanto que o amor plural aprecia o
particular, o único. “O verdadeiro pluralista é um indiví-
duo que ama indivíduos” (p.171).
Desenvolve mais intensamente a reflexão que faz so-
bre o amor plural na companhia de Han Ryner. Não foram
poucas as idéias que influenciaram o pensamento de
Maria Lacerda de Moura, como as pacifistas religiosas,
anarquistas, mas foi com Han Ryner, seu amigo, que en-
controu maior ressonância.
Maria Lacerda mostra, a partir do grande número de
autores que comenta, sua vontade de conhecimento. Por
vezes, deixa evidente uma certa confusão no uso dos ter-
mos, adotando conceitos díspares de sua própria reflexão,
o que gerou críticas de seus “(...) contemporâneos, quanto
à prolixidade, à inconsistência teórica e política, às im-
precisões e contradições de suas posições” (p.15). No en-
tanto, sua vontade rebelde e vontade de conhecimento
também despertaram a atenção de anarquistas como José
Oiticica, responsável por introduzi-la na leitura de diver-
sos revolucionários anarquistas. Entre os mais radicais,
conheceu e conviveu com o pensamento de autores que
ainda hoje enfrentam resistências, como Max Stirner.
A leitura da obra de Maria Lacerda de Moura remete
tanto a um tempo passado como a uma atualidade ex-

295
9
2006

pressiva. Em uma época em que se discute sobre a legi-


timidade do comércio das armas, Moura compreende,
muito anteriormente, que se trata de uma indústria de
guerra e armamentos, que vai muito além da questão da
proibição. Afirma ainda que, devido às técnicas moder-
nas, todas as indústrias são hoje indústrias bélicas em
potencial.
Levanta a crítica às instituições de confinamento, e
condena qualquer espécie de castigo: “(...) as prisões fa-
zem criminosos. A cadeia humilha. Ali explodem dege-
nerescências” (p.106).
Ao contrário de grande parte de seus contemporâne-
os, não faz uma distinção rígida entre exploradores e ex-
plorados, entende que estas posições são mutáveis e in-
tercambiáveis.
A atualidade de seus textos é expressiva, pois as críti-
cas que fazia ao seu tempo cabem ainda hoje, a uma
sociedade que preserva, em muito, seus valores. Maria
Lacerda de Moura pensa no Brasil e sobre a maternidade
consciente quando diz: “(...) a mulher trabalha, ganha a
sua vida, mas, não pode dispor do seu corpo, que não é
seu” (p.51).
Pelo tom dado ao texto, consegue passar a vibração de
sua revolta. E apesar da crítica que fazia, devido à severi-
dade com que tratava sua “missão” de conscientizar as
mulheres, deixa escapar o humor, às vezes irônico, às
vezes sarcástico, que não costuma faltar a nenhum anar-
quista.
De contradições, amores, rebeldias, invenções, vivem
os anarquistas. Maria Lacerda de Moura não foi diferen-
te. Na sua singularidade não se tornou uma igual. Não
foi uma, foi muitas. Reinventou-se, e não se deixou fos-
silizar. Não se tornou bolor, e tampouco embolorada tor-
nou-se sua obra.

296
verve
Michel Foucault: um rosto desenhado na areia

michel foucault:
um rosto desenhado na areia tony hara*

Edson Passetti (org.). Kafka, Foucault: sem medos. Cotia, Ateliê


Editorial, 2004, 195 pp.

Tereza Cristina B. Calomeni (org.). Michel Foucault: Entre o mur-


múrio e a palavra. Campos, Editora Faculdade de Direito de Cam-
pos, 2004, 260 pp.

Luis Felipe Falcão; Pedro de Souza (orgs.). Michel Foucault: pers-


pectivas. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005, 142 pp.

A Terra, uma experiência humana cada vez mais


inóspita e estéril. O deserto se amplia e sobre ele se
arrasta o homem reduzido à sua animalidade adoecida,
ao seu instinto de sobrevivência que o impele a enfren-
tar apenas a morte, o fim, o ocaso infame. Uma morte
anônima, sem glória que mal chega a alterar as sonda-
gens e os inacreditáveis gráficos estatísticos. A domi-
nação biopolítica flagrada por Michel Foucault trata, em
resumo, da redução dos estilos de vida, dos modos de
vida de um indivíduo ou grupo (chamada de Bios) à “vida
nua” (Zoé), isto é, a vida biológica, natural. No deserto
que se alastra o homem é seduzido e esmagado por esse
poder que “faz viver e deixa morrer”.
Essa forma de poder se instala justamente no momento
antevisto e chamado por Nietzsche de “apogeu do niilis-
mo”. A época em que se “arrisca uma crítica dos valores
em geral; reconhece sua origem; reconhece o bastante
para não acreditar mais em nenhum valor; o páthos está
presente, o novo calafrio...”(Friedrich Nietzsche, Sabe-

* Jornalista e Doutor em História da Cultura pela Unicamp.

verve, 9: 297-305, 2006

297
9
2006

doria para depois de Amanhã, p. 265). Não há cavernas


na planície; não será possível mais, a esta altura, pro-
curar abrigo e nem consolo em sombras metafísicas e
nem no manto confortável dos valores universais. A pele
radicalmente exposta à luz, ao sol, ao hálito do deserto.
“Se o homem recupera-se dela, apodera-se dessa crise,
trata-se de uma questão da sua força: é pos-sível...” (Fri-
edrich Nietzsche, Sabedoria para depois de Amanhã, p.
265).
Evocar o pensamento de Michel Foucault, 20 anos
após a sua morte, é, sobretudo, evocar essa força e pos-
sibilidade de vida a que se referia Nietzsche em 1888.
Evocar a “poeira ou o murmúrio de um combate” mes-
mo em condições difíceis, desfavoráveis em que até o
desamparo e a precariedade se tornam aliados na luta
contra o conformismo, a resignação e as forças totalitá-
rias que atravessam o corpo.
O amplo legado de Michel Foucault desperta inte-
resses diversos, fundamenta análises precisas de ins-
tituições disciplinares, motiva interpretações cada vez
mais minuciosas de conceitos filosóficos, abre a possi-
bilidade para a reflexão de domínios do saber como a
psicanálise, a psicologia, o direito, a medicina social,
a história... Os possíveis usos da filosofia ou da “ação
filosófica” de Foucault na atualidade são surpreenden-
tes e múltiplos. É o que se pode constatar na leitura
dos livros Kafka, Foucault: sem medos (KF), Michel Fou-
cault: entre o murmúrio e a palavra (MF) e Michel Foucault:
perspectivas (MFP).
Essas obras reúnem diversos artigos (34 no total) es-
critos por intelectuais brasileiros e estrangeiros convi-
dados a participar de colóquios organizados por conta das
comemorações dos 20 anos da morte do filósofo, em São
Paulo, Campinas, Campos e Florianópolis. No prelo, o
livro Figuras de Foucault coordenado pelos professores

298
verve
Michel Foucault: um rosto desenhado na areia

Alfredo Veiga-Neto e Margareth Rago, que reúne os tex-


tos apresentados e discutidos no “Colóquio Internacio-
nal Michel Foucault, 20 anos depois”, realizado na Uni-
camp.
Os livros compõem um mosaico, ou talvez, um labi-
rinto no qual o leitor curioso poderá se aproximar e se
distanciar de Foucault a cada novo artigo lido ou senda
percorrida. De qualquer forma, após a leitura e releitu-
ra desses artigos, a impressão mais ligeira e ao mesmo
tempo mais profunda, diz respeito ao caráter descontí-
nuo da obra de Foucault. Daí a idéia de um mosaico ina-
cabado, mais ainda, em permanente construção.
Tem-se a impressão forte de que neste agora, a figu-
ra de Foucault é como aquele rosto desenhado na areia
da praia. Transforma-se, desaparece e ressurge confor-
me a maré das interpretações. E o movimento é inces-
sante e tem finalidades diferentes. De forma puramen-
te esquemática e, portanto, falível com qualquer esque-
ma, pode-se reconhecer três ondas interpretativas.
Aquela que busca capturar os traços marcantes do ros-
to/obra do filósofo e aplicá-los em novas realidades ou
contextos históricos; a que busca os traços mais sutis,
ou seja, a reflexão sobre temas, problemáticas, teorias
não escritas e apenas abordadas indiretamente pelo fi-
lósofo; e aquelas que lêem no rosto um convite à experi-
mentação e aos horrores e às delícias da invenção de
si.
É desnecessário dizer que esses modos de ler se in-
terpenetram e se confundem no fluxo da escrita. Porém,
teimando em seguir aqui o esquema cometido, os leito-
res encontrarão amplos panoramas da paisagem men-
tal criada por Foucault, perpassados por pontuais análi-
ses, nos artigos de Roberto Machado, Tereza Cristina B.
Calomeni e do pesquisador da Universidade de Lisboa,
Jorge Ramos do Ó.

299
9
2006

Neste modo de configurar o mosaico é possível entre-


ver, primeiro, através do texto de Roberto Machado, uma
“(...) síntese da genealogia das ciências do homem, tal
como foi pensada por Foucault” (MF, p. 33). Trata-se de
uma análise e apresentação em rápidos traços, tanto
da chamada fase “arqueológica”, quanto da fase “genea-
lógica” do pensador francês. Em um segundo momento
Teresa Calomeni elabora um extenso breviário das prin-
cipais teses foucaultianas sobre a analítica do poder (MF,
pp. 39-77). E, finalmente, chega-se às teses da “gover-
namentalidade” ou as “artes de governo” que surgem,
segundo Jorge Ramos do Ó, “(...) como pivô e um ponto
de condensação do conjunto das reflexões de Foucault.”
(MFP, p. 38). Os três artigos reunidos cobrem um grande
período da produção intelectual de Foucault e, na medi-
da do possível, procuram ordenar e sintetizar as suas
descobertas mais instigantes.
É possível dizer que outros textos complementam essa
configuração. São os artigos que analisam com Foucault
— a partir das suas sugestões e conceitos —, certas ins-
tituições ou práticas disciplinares ainda em voga na
contemporaneidade. Como é o caso das prisões, dos Cen-
tros de Atenção Psicossocial que substituíram os anti-
gos manicômios e da escola, agora acoplada às novas
tecnologias de comunicação e de controle, tal como abor-
da Guilherme Corrêa, no contundente artigo intitulado
“Do livro de receitas: como produzir um homem” (KF, pp.
45-54).
De uma forma geral, esses artigos que tematizam as
práticas e instituições disciplinares destacam, com ex-
trema lucidez e precisão, as linhas de continuidade das
práticas características da sociedade disciplinar, ou ain-
da, do poder soberano. Apesar das aparentes mudanças,
dos espetáculos do progresso, das inteligências artifici-
ais, a época em que vivemos se alimenta e se curva à

300
verve
Michel Foucault: um rosto desenhado na areia

moralidade produzida em épocas anteriores. Para o pes-


quisador Thiago Rodrigues, por exemplo, o castigo e a
vontade de punir são constantes que perpassam tanto a
sociedade da soberania (aquela que fazia dos suplícios
públicos uma festa/punição exemplar), quanto a socie-
dade disciplinar e chegam até a nossa época de coleiras
e de ostensiva vigilância eletrônicas (KF, p. 176).
A professora Sandra Caponi, no mesmo movimento,
finaliza seu artigo sobre o poder psiquiátrico questio-
nando a sobrevivência, mesmo nos atuais Centros de
Atenção Psicossocial, de duas velhas estratégias do sa-
ber psiquiátrico do século XIX: o interrogatório e o uso
de drogas. “É verdade — argumenta Caponi — que a or-
dem da psiquiatria deixou de ser o internamento, po-
rém, hoje, trata-se de medicalizar e dominar as paixões,
os delírios e os maus hábitos pelo uso de psicofármacos
aparentemente eficazes. Em lugar de docilizar pelo en-
cerramento físico manicomial, dociliza-se pelo isolamen-
to que impõe o uso de psicofármacos” (MFP, p. 94).
Para encontrar uma outra forma de remontar o mo-
saico é necessário chamar os artigos elaborados por Kle-
ber Prado Filho, Joel Birman e Márcio Alves da Fonseca.
Uma outra estratégia de leitura se aplica a esta confi-
guração. Ao procurar mapear as possíveis trajetórias da
problematização da subjetividade na obra de Foucault,
Kleber Prado Filho lança mão de um recurso chamado
de “leitura transversal”, ou seja, aquela que “remete a
um olhar (...) para temas paralelos, muitas vezes perifé-
ricos, que proliferam nas análises do autor” (MFP, p. 43).
Em um artigo bastante denso — que na prática fun-
ciona como um convite à leitura de seu livro Entre o
cuidado e saber de si: sobre Foucault e a Psicanálise (Re-
lume Dumará, 2000) —, o psicanalista Joel Birman, ao
buscar convergências e divergências entre Foucault e
o discurso da psicanálise também afirma que “[A psica-

301
9
2006

nálise] (...) nunca é trabalhada de forma direta, mas


sempre num campo outro e mais amplo. É para esta tor-
ção, teórica e metodológica, que devemos ficar atentos,
para que possamos captar devidamente a posição da psi-
canálise como produção discursiva na obra de Foucault”
(MFP, p. 99).
Já a ausência de uma teoria do direito na obra de
Michel Foucault torna possível, segundo a análise de
Márcio Alves da Fonseca, “(...) a compreensão do sentido
que pode vir a ter o direito legítimo para Foucault” (MF,
p. 184). Em resumo, é possível dizer que cabe ao direito,
para Foucault, o papel de resistência aos mecanismos
de normalização. E para que a resistência se realize efe-
tivamente é fundamental pensar esse domínio do saber
a partir do indeterminado, do inacabado. A formulação
de uma teoria do direito faz com que se paralise o movi-
mento e se limite a ação dos indivíduos ou grupos que
assumem uma “atitude crítica” ao expressarem a “re-
cusa em ser governado”.
No terceiro movimento ou onda interpretativa desta-
cam-se os artigos de Oswaldo Giacóia Júnior, de Peter
Pál Pelbart e do professor da Universidade de Barcelona,
Jorge Larrosa, intitulado “La operación ensayo: sobre el
ensayar e el ensayarse en el pensamiento, en la escri-
tura y em la vida.” Na nascente deste fluxo a famosa
passagem do livro O Uso dos Prazeres em que o autor se
pergunta, “De que valeria a obstinação do saber se ele
assegurasse apenas a aquisição de conhecimentos e
não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o desca-
minho daquele que conhece?” (Michel Foucault, Histó-
ria da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres, p. 13). Trata-se
aqui dos efeitos da definição e da prática do “ensaio”
entendido por Foucault, como experiência modificadora
de si no jogo da verdade, como exercício de si no pensa-
mento.

302
verve
Michel Foucault: um rosto desenhado na areia

Esse estilo de filosofar surge, segundo o professor


Oswaldo Giacóia Júnior, no momento de abalo das cons-
truções metafísicas e de descrença em relação à capa-
cidade do pensamento em organizar um sistema inte-
gral do conhecimento e de encerrar uma firme totalida-
de. Um estilo forjado, sobretudo, pelo martelo filosófico
de Nietzsche e retomado por Michel Foucault. Com o
fim da metafísica, Nietzsche teria praticado o experi-
mento com o pensamento em busca de algo efetivo. “Ao
filósofo — afirma Giacóia — resta a tarefa crítica e a
conquista daqueles novos reinos de experimentação
consigo mesmo, antecipando, pela via da filosofia, a pos-
sibilidade de novas formas de existência” (KF, p. 91).
Neste artigo ainda, o filósofo Oswaldo Giacóia desta-
ca o caráter político dessa filosofia experimental, en-
saística que impele a uma constante fuga das verda-
des objetivas e do processo de consolidação de uma iden-
tidade fixa e permanente. Nos termos de Foucault,
trata-se de um estilo de pensamento que permite “se-
parar-se de si mesmo” e que, por esta razão, “se trans-
figura em política e antídoto contra toda espécie de fas-
cismo.” Giacóia retoma o artigo “Anti-Édipo: Uma Intro-
dução à Vida não Fascista” (Prefácio do livro de Deleuze
e Guattari) e reconhece nesse processo de transforma-
ção de si pelo exercício do pensamento e da escrita, uma
resistência radical às formas totalitárias de pensar e
de viver. E como observa Foucault: “E não somente o
fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube
tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas
também o fascismo que está em nós, que ronda nossos
espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que
nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que
nos domina e explora” (KF, p. 98).
Se, de fato, o que resta ao pensamento é a criação de
novos territórios experimentais, a literatura é, então,

303
9
2006

uma bela aliada, pois, como afirma Peter Pál Pelbart, a


literatura e o pensamento “são experimentos sem ver-
dade [...] em que arriscamos menos as nossas convic-
ções do que nossos modos de existência” (KF, p. 139).
Peter Pelbart lança mão, em seu artigo, de um experi-
mento inusitado, surpreendente sobre a idéia de um
corpo que não agüenta mais todo o sistema de crueldade
utilizado no adestramento e na domesticação do ani-
mal-homem.
A partir de duas imagens literárias o autor apresenta
o signo de uma resistência, a afirmação de “algo essen-
cial do próprio mundo”. Mas, ao contrário do que se pode-
ria imaginar, não se tratam de personagens robustas,
temerárias, sangüíneas. Antes, são figuras literárias
pálidas, de olhos cinzentos mergulhados no vazio, são
corpos cadavéricos que definham sem alarde, em silên-
cio. O artista da fome, personagem de Kafka e Bartleby,
de Melville, assemelham-se na recusa inabalável, no
gesto extremo de renúncia ao mundo. E o curioso é que
nesse corpo frágil, neste torpor passivo e manso, há efe-
tivamente “indício de uma vitalidade superior”. Os des-
dobramentos desse experimento deslocam, invertem,
alteram as perspectivas e as avaliações do que seja um
corpo saudável, forte, organizado para os embates da vida.
Ao evocar as idéias de Nietzsche, de Artaud, de Deleuze
e de Beckett surge um diferente “estatuto do corpo como
indissociável de uma fragilidade, de uma dor, até mes-
mo de uma certa ‘passividade’, condições para uma afir-
mação vital de outra ordem” (KF, p. 147).
O artigo, na verdade o ensaio, de Jorge Larossa dis-
pensa maiores comentários porque é um texto que me-
rece, antes de tudo, ser incorporado. Trata-se de um tipo
de composição que proporciona, no movimento da leitu-
ra, a oportunidade de refletir cuidadosamente a nossa
própria escrita, a nossa própria relação com o conheci-

304
verve
Michel Foucault: um rosto desenhado na areia

mento e com o presente. De qualquer forma fica aqui o


registro, o comentário muito parcial e precário de que,
para Larrosa, Foucault reinventa o ensaio, esse estilo
tradicionalmente considerado um híbrido entre a lite-
ratura e a filosofia.
E, finalmente, aquém ou além de qualquer esque-
ma, vale lembrar o texto apresentado por Durval Muniz
de Albuquerque Júnior. No artigo, “No castelo da histó-
ria só há processos e metamorfoses, sem veredicto fi-
nal” é possível ler/ver a realização do pensamento en-
quanto jogo, brincadeira maior, força de fabulação. Uma
simples pergunta abre o belo artigo: “O que os historia-
dores podem aprender lendo os escritos de Kafka?” (KF,
p. 13). Na construção rigorosa da resposta, encontra-se
tanto o riso filosófico de Foucault, quanto a gargalhada
de Kafka. O riso atormentado que lembra as pantomi-
nas, os giros e rodopios do Acrobata da Dor: “Gargalha,
ri, num riso de tormenta, / Como um palhaço, que de-
sengonçado, / Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado /
De uma ironia e de uma dor violenta” (Cruz e Sousa,
Obra completa, p. 89).
Aos olhos de um Tuaregue, de um beduíno nômade o
deserto é uma vastidão de saídas. Tudo depende para onde
se quer ir. Alguns comentadores dizem que Foucault
aponta a trilha insólita rumo a um oásis democrático.
Outros, afirmam que ele “evita discípulo, competente e
ajuizado seguidor das suas descobertas para desafiar a
com ele atuar” (KF, p. 11). Ensaiar, experimentar e atuar
no deserto dentro e fora da gente. Um novo calafrio pode
anunciar novas miragens. As linhas de vulnerabilidade
se movem como as dunas em dias de tempestade. Quem
sente o arrepio do deserto não suporta mais esperar a
caravana passar.

305
thoreau, um andarilho ana godoy*

Henry David Thoreau. Caminhando. São Paulo, José Olympio,


2006, 122 pp.

A primeira versão de Walking, ou o Selvagem foi es-


crita em 1851 e lida publicamente neste mesmo ano.
Seguiram-se diversas reescritas e releituras, dando
origem a dois textos, Walking e Wild. Entre os anos de
1851 e 1854, Thoreau reescreveu ambos os textos,
acrescentando ou retirando trechos; em 1862, pouco
antes de morrer, recombinou as duas palestras, das
quais resultou o ensaio denominado Walking. É este
ensaio que ora vem a ser lançado em português na tra-
dução de Roberto Muggiati, sucedendo a obscura tradu-
ção lançada pela Best Seller.
A particularidade desta nova edição reside nos mui-
tos equívocos por ela oferecidos ao leitor, a começar pela
apresentação que, a pretexto de aproximar-nos do en-
saio de Thoreau, confina-nos numa infindável e cansa-
tiva descrição do ato de caminhar. Aprisionado em meio
às trilhas de Itaipava, Buda e o Caminho de Santiago,
resta ao leitor inventar uma fuga, um percurso, que
seria, como afirma Thoreau, como os rastros de um pás-
saro, ou o salto de um trapezista no ar. Fuga que, ao
longo de seus muitos ensaios e infindáveis reescritas,
Thoreau não cessou de inventar, abalando as certezas
do pensamento domesticado, abrindo-se ao imprevisí-
vel, ao desconhecido, desconcertando aqueles que pre-
tendem estabelecer seu pertencimento a um domínio.

* Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP.


verve, 9: 306-310, 2006
verve
Thoureau, um andarilho

Que outra coisa seria um ensaio senão uma experi-


mentação sem começo e nem fim, a composição de uma
paisagem movente que se faz enquanto é percorrida?
Que outra coisa seriam os percursos, senão as vizi-
nhanças que inventamos, tanto mais potentes quanto
inesperadas e surpreendentes?
Assim chegamos à primeira página de Caminhando.
Cada parágrafo — que a recente edição, em mais
um equívoco, traz sem os espaçamentos originais —
apresenta-se como uma pequena narrativa na qual
Thoreau descreve uma personagem, o andarilho, e
mais adiante, os diferentes horários do dia, o sol e o
vento, um temperamento, as grandes estradas e as im-
prováveis trilhas, as longas e pequenas caminhadas,
as regiões estranhas e inabitadas, e aquelas em que
impera a servilidade e o gosto da multidão. Engana-se
o leitor que vê ali tão-somente a descrição de um esta-
do de coisas, pois cada parágrafo configura pequenos
territórios, paisagens construídas em torno de temas
que vão e voltam e cujos elementos são constantemente
re-arranjados, convidando-nos a abandonar “usos e há-
bitos enferrujados e antiquados” (p. 119), com os quais
não paramos de criar os meios de mantermo-nos, jun-
to ao pensamento, confinados. Usos e hábitos que tran-
formam-nos em “andarilhos acovardados (...). [Pois] nos-
sas expedições não passam de giros e regressamos à
noitinha para o pé da velha lareira da qual nos apartá-
ramos. Metade da jornada é para trilhar os caminhos
já percorridos” (p. 68).
Que caminhos seriam estes? Talvez aqueles que nos
levam “ao campo estreito da política” (p. 77), talvez se-
jam ainda aqueles da ecologia, da imensidão selvagem
— a wilderness — com suas inúmeras florestas e ani-
mais a serem conservados, os caminhos do proprietá-
rio e do homem de bem, cuja gorda saúde deve ser

307
mantida a custa de permanecermos sempre prisionei-
ros do já dito, do já visto e sentido, ou ainda os cami-
nhos já dados pelas leis que não cessamos de criar,
pela razão necessária que nos induz a determinar pon-
tos de chegada e de partida, aqueles pelos quais nos
levam os guias impelindo-nos à retidão moral e dos
sentidos. “Cada um de vocês cuidará bem disso” (p.
67), declara Thoreau, logo no primeiro parágrafo, aler-
tando-nos quanto ao hábito que adquirimos de procu-
rar reconhecer em qualquer lugar as marcas do já co-
nhecido, do já sabido.
É deste modo que Thoreau distingue-se dos trans-
cendentalistas norte-americanos, seus contemporâ-
neos, mas é sobretudo deste modo que Thoreau dis-
tingue seus leitores. Aqueles cuja rebeldia há muito
se separou da selvageria e seus percursos, confun-
dindo-se com as trajetórias seguras da política e da
moral, e aqueles para quem caminhar é tomar a pai-
sagem como meio a ser explorado, experimentando
outros funcionamentos com os elementos dados, uma
paisagem que comporta, aquém e além do que é dado,
um certo regime de intensidades, não determináveis;
paisagens táteis, sonoras, auditivas e visuais que se fa-
zem e desfazem nos percursos inventados na errância.
Pois trata-se, como afirma Thoreau no início de Cami-
nhando, de “dizer uma palavra em favor da natureza,
da liberdade e da selvageria; uma palavra que não se
reduza às acusações e queixas de uma época, aos la-
mentos chorosos dos impotentes para quem o “mundo
termina aqui, no leste implacável no qual vivem de
compreender a história e refazer os passos da raça”
(p. 84); uma palavra que exprima o furor, a selvageria,
que nenhuma civilização poderia suportar, uma pala-
vra que somente aqueles que se lançam à errância
não cessam de inventar.
verve
Thoureau, um andarilho

Seguimos caminhando, saltando de um parágrafo a


outro, agora mais atentos aos pequenos e insidiosos con-
finamentos no corpo e no pensamento que nos impedem
de escutar “o galo cantar em cada quintal de nosso hori-
zonte” (p. 119), que nos mantêm satisfeitos no aconche-
go dos cercados por nós construídos e multiplicados, uma
dentre as tantas “armadilhas humanas e outros enge-
nhos inventados para confinar os homens à estrada pú-
blica” (p. 82).
Caminhamos, mas mais incertos quanto às paisagens
que percorremos e quanto aos percursos que extraímos
de cada paisagem. Uma vila, um bosque uma pedra, um
crepúsculo arrastam-nos e a Thoreau em direção a pai-
sagens não localizáveis; deixam de ser referências fixa-
das pelos discursos, sejam eles o de um certo anarquis-
mo romântico ou os da ecologia, ou aqueles salpicados de
espiritualismo, mediadores das relações entre pessoas e
coisas, para apresentarem-se como pontos de cruzamento,
em relação aos quais os percursos não são dedutíveis.
Caminhando, inventam-se passagens, saltos que da-
mos de uma coisa a outra, desfazendo o contorno que limi-
taria as caminhadas e não seria um círculo, senão “uma
parábola, ou uma daquelas órbitas de cometa que foram
tidas como curvas sem retorno” (p. 83). Caminhando, tor-
namo-nos salteadores de fronteiras; nessa errância, os
territórios existentes se desfazem; experimentamos, ca-
minhando, a urgência vital da invenção em relação à qual
natureza, liberdade e selvageria permanecem intimamen-
te implicados com a experiência da existência. Longe de
pedir por portos seguros ou ancoragens, ela exige abando-
no e partida, o incessante caminhar como experimenta-
ção de si e do pensamento, pois o mais selvagem perma-
nece aquém ou além de toda convenção, de todo confor-
mismo cujas coerções seriam apenas outros meios de
desbravamento, domesticação e confinamento.

309
9
2006

São estes os percursos de um andarilho, que para o


pensamento, segundo Thoreau, andando menos “pode
ser o mais errante de todos” (p. 68), sempre segundo as
inquietações que lhe sobrevêm, deslocando-se e perse-
guindo um a mais de vida diante da pequenez das alter-
nativas oferecidas e da vulgaridade do senso comum,
empenhado em reduzir a vida ao regime contábil da pro-
priedade e da dívida.
Em Caminhando, Thoreau incita-nos a inventar um
modo de pensar, um modo de habitar, inseparável de
uma política, modos potentes o bastante para derrubar
as cercas, para abrir os territórios para outras forças,
arrastando-nos na direção de um outro de nós mesmos
e do pensamento, de um sans terre, de alguém sem ter-
ra ou moradia, mas capaz de sentir-se igualmente em
casa em qualquer local. Eis aí, para Thoreau, “o segredo
de vagar com sucesso” (p. 68).
Prossiga a leitura, salte por sobre os equívocos da tra-
dução, esqueça-se da apresentação. Ali tudo é aborreci-
do e fatigante, como só o são os conformados: para es-
ses, caminhar é para bípedes, aqueles a quem só restou
pôr um pé na frente do outro como parte de igualmente
aborrecidos e enfadonhos slogans de bem viver.

310
9
2006

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2006
vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003
Foucault, último, 2004
Manu-Lorca, 2005
A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola, 2006
CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo)
Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004
1. a anarquia Errico Malatesta
2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston
3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertário Murray Bookchin
5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux
6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portugue-
sa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva
8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin
9. deus e o estado Mikhail Bakunin
10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta
12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares
13. do anarquismo Nicolas Walter
14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

312
verve

Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero

15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,

Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,

Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo

Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,

Enckell

24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag

25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo

28. Bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval

29. Autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta

Livros

Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A tolerância e o intempestivo. São

Paulo, Ateliê Editorial, 2005.

Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,

Editora Revan/Nu-Sol, 2004.

Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê Editorial,

2004.

Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone

Editora/Nu-Sol, 2003.

Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.

Imaginário/Nu-sol, 2001.

313
9
2006

Recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Con-


selho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à re-
vista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à for-
matação:

Extensão, fonte e espaçamento:

a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres


contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times
New Roman, corpo 12, espaço duplo.

b) Resenhas: As resenhas devem ter até 6.000 caracteres (com


espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo.

Identificação:

O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas,


para identificá-lo em nota de rodapé.

Resumo:

Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 li-


nhas, em português e inglês.

Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota


de fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Margareth Rago. Entre a liberdade e a história: Luce Fabbri e


o anarquismo contemporâneo. São Paulo, UNESP, 2001, p. 111.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

314
verve

Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in En-


saios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores,
p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor,


ano, op. cit., p. número da página.

IV) Para resenhas

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o


título, da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número


de páginas.

Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Pau-


lo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número


de páginas. Tradução de [nome do tradutor].

Ex: Max Stirner. O único e sua propriedade. Tradução de João


Barrento. Lisboa, Antígona, 2004.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico


para o endereço verve@nu-sol.org salvos em extensão rtf. Na impos-
sibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em dis-
quete seja encaminhada pelo correio para:

Revista Verve

Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos


Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro
Godói, 969, 4o andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.

Informações e programação das atividades


do Nu-Sol no endereço:

www.nu-sol.org

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