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ETNOENTOMOLOGIA Inseto de aparência curiosa e que inspira medo ainda é pouco conhecido
guns lugares do Peru, o inseto ainda é A jequitiranabóia Essa abundância de nomes para as
(Fulgora laternaria)
considerado atração turística e tem assusta a população espécies de Fulgora parece resultar
valor como souvenir. amazônica, devido ao de sua aparência – em especial o for-
A jequitiranabóia pertence à or- seu estranho aspecto mato do apêndice cefálico (a ‘cabe-
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ça’). Pesquisadores diferentes já
comentaram que esse apêndi-
ce é bastante parecido com a
cabeça de um jacaré, con-
tendo até falsas reproduções
de olhos protuberantes e de
dentes afiados. Também há se-
melhanças com a cabeça de co-
bras, como uma mancha que lem-
bra as escamas labiais e caroços
das serpentes da família Boidae (ji-
bóia, por exemplo) e um ponto ne-
gro, entre os falsos olhos e a narina, pareci-
do com a fosseta loreal (órgão sensor que perce-
be diferenças de temperatura) das jararacas (gênero Durante o vôo, podem ser vistas as manchas ocelares
Bothrops). (semelhantes a olhos) em suas asas posteriores
O curioso formato da ‘cabeça’ das espécies de
Fulgora resulta do crescimento extraordinário de
certas regiões de sua superfície, que ‘incham’ como
uma bexiga e formam a protuberância que lhes dá a parte do corpo do inseto, ajudando a escondê-lo de
aparência de uma cabeça de réptil. Acredita-se que predadores. Na Colômbia, tal secreção é tida como
o apêndice frontal atue como uma defesa contra ini- altamente afrodisíaca. A inalação do pó branco que
migos naturais (aves, lagartos e pequenos mamífe- reveste o corpo do inseto já foi tida como capaz de
ros), mas não há estudos que confirmem essa vanta- provocar vômitos, mas não há pesquisas que com-
gem protetora. provem o fato.
Associado à cabeça está o ‘ferrão’, tido como o
órgão com que o inseto injeta sua ‘peçonha mortal’. Ecologia e comportamento
Na verdade, trata-se do estilete sugador, situado na Jequitiranabóias nutrem-se exclusivamente de ve-
linha média do corpo, entre as articulações das per- getais, sugando sua seiva com o aparelho bucal (‘fer-
nas, e que se projeta para fora apenas quando o inse- rão’ ou ‘bico’), introduzido através do revestimento
to se alimenta. Índios e caboclos da Amazônia di- dos caules. Os danos que a ‘picada’ causa ao vegetal
zem que, logo após a cabeça, o inseto tem um ‘espi- são insignificantes, e nunca o levam à morte. No
nho’ venenoso capaz de causar uma ferida se ele entanto, algumas espécies de insetos sugadores de
voar direto para o peito de um homem. Como eles seiva podem eventualmente transmitir vírus ou bac-
costumam considerar a jequitiranabóia uma ‘cobra’, térias capazes de prejudicar ou até matar a planta
transferem a esse inseto, por analogia, o mesmo pa- hospedeira.
vor que têm do réptil. As árvores hospedeiras das espécies de Fulgora
Outro aspecto salientado nas lendas é a ‘ausência são, em geral, aquelas que produzem e concentram
de olhos’ na jequitiranabóia. Um dos motivos do pâ- resinas (gêneros Hymenaea, Myroxylon, Vochysia) e
nico causado pela presença do inseto nas imedia- óleos (Lecythis e talvez Eucalyptus), ou contêm subs-
ções de uma casa deve-se a essa suposta cegueira. tâncias amargas em sua seiva (Simaba, Zanthoxylum,
Na verdade, ele tem olhos compostos, locali- Simarouba), possivelmente gerando compostos se-
zados na base da cabeça. A presença, nas asas poste- cundários. Sabe-se que na seiva do marupá ou paraíba
riores de F. laternaria (mais curtas e largas que as (Simarouba amara) há uma substância, a simarolida,
anteriores), de manchas arredondadas semelhan- que provavelmente é responsável pela grande atra-
tes a olhos é outra característica curiosa. As man- ção do inseto pela árvore. No final do século 19, na
chas, segundo alguns pesquisadores, lembram o as- costa sul da Bahia, a jequitiranabóia era chamada
pecto da borboleta-coruja (gênero Caligo), que tam- de ‘bicho-do-pau-parahy’ba’ justamente por freqüen-
bém exibe em suas asas manchas ocelares seme- tar essa árvore.
lhantes a olhos de coruja. Os ‘olhos falsos’ parecem A preferência por certas espécies de árvores foi
servir como alarme ou ter função de aviso para ini- constatada em estudo realizado durante cinco anos
migos naturais. no Parque Nacional Santa Rosa, na Costa Rica, e tem
Os fulgorídeos também produzem e secretam uma uma explicação científica: em geral, esses insetos
cera que se solidifica em contato com o ar, formando estão intimamente associados às plantas hospedei-
filamentos brancos parecidos com flocos de amian- ras, que lhes fornecem alimento, abrigo e proteção
to. Às vezes, essa cera é tão abundante que cobre contra predadores. Segundo estudos publicados, os
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