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PROMOÇÃO E
PROTEÇÃO DOS
DIREITOS
HUMANOS DE
GERAÇÃO
(versão revisada / copia eletrônica)
junho.07
1
Wanderlino Nogueira Neto
INSTRUMENTOS E MECANISMOS DE
PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DOS DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, ENQUANTO
DIREITOS HUMANOS DE GERAÇÃO.
2007
2
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO
3
1. INTRODUÇÃO
Um saber engajado – Este estudo parte de uma determinada “visão social de mundo”1,
isto é, de um “conjunto orgânico, articulado e estruturado de valores, representações, idéias e
orientações cognitivas; internamente unificados por uma perspectiva determinada, por um certo ponto
de vista socialmente condicionado” (DILTHEY.1996)2. Uma visão social de mundo a partir da
ótica dos que não têm poder, das minorias políticas, daqueles que estão em processo de
emancipação e de fortalecimento de sua identidade – crianças e adolescentes, no caso
presente. E, com essa perspectiva, este estudo está comprometido, no seu embasamento
teórico: a consciência e o conhecimento estão, histórica e socialmente, condicionados. Assim
sendo, o primeiro alerta deve ser: aqui, não se parte de nenhuma falaciosa “neutralidade
axiológica”, para o enfrentamento desta questão da proteção dos direitos humanos
geracionais3, particularmente de crianças e adolescentes. Aqui se estar em busca de um saber
engajado. Enquanto fenômeno cultural, social, político e jurídico, as relações inter‐geracionais
(como também as relações de classe, gênero, raça) são históricas e não podem ser
compreendidas senão na sua historicidade e através dessa historicidade. Imprescindível se
torna, primeiro, que se desmascarem as ideologias de classe, gênero, raça e geração
(principalmente) que permeiam o discurso de determinados cientistas sociais e mais
especificamente de alguns juristas e operadores técnico‐jurídicos. E, em segundo lugar,
importa que nos façamos, a todos, comprometidos com a construção de uma utopia
verdadeiramente revolucionária.
1
DILTHEY, Wilhelm. 1962. ”Gesammelte Schriften” – apud LOWY, Michel.2003 (8ª ed). “As aventuras de Karl Marx
contra o Barão de Munchhausen”. São Paulo: Cortez Editora
2
Idem NOTA 1
3
Crianças/adolescentes, jovens, idosos – ver adiante conceito de “Geração” (in “Essencialidade e Identidade”)
4
2. NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES GERACIONAIS:
A ‐ ESSÊNCIA E IDENTIDADE
Relações geracionais, em geral ‐ Ao conjunto de valores, atitudes, condutas e formas
de relacionamento que definem, na sociedade, o que significa ser adulto ou ser
criança/adolescente4, a isso se pode denominar ʺrelações geracionaisʺ ou ʺrelações de geraçãoʺ.
Essas relações interetárias são, em verdade, um construto, uma construção cultural, que se
inicia antes mesmo do nascimento, quando os pais criam expectativas para o desempenho de
papéis e responsabilidades socialmente atribuídos a crianças / adolescentes e adultos jovens
ou idosos. A identidade geracional é socialmente distribuída, construída e reconstruída nas
interações sociais, especialmente no âmbito da família, da escola, da comunidade vicinal.
Assim se constrói, a partir dessas relações, uma verdadeira ʺordem ou sistema geracionalʺ, com
práticas preestabelecidas e um discurso justificador dessas práticas. Ao modo semelhante das
relações de gênero, quanto aos papéis e responsabilidades do homem e da mulher. Ao modo
semelhante também das relações raciais e étnicas. A respeito da “alquimia” possível entre as
categorias de gênero, geração e raça e das suas possibilidades concretas, de maneira precisa
ensina CASTRO 5: “(...) As categorias raça, gênero e geração têm em comum serem atributos com
significados, histórias, políticas, culturais e econômicas, organizados por hierarquias, privilégios e
desigualdades, aparados por símbolos particulares e ‘naturalizados’. A combinação de categorias como
gênero, raça e geração, na classe, não é uma simples operação de somas de discriminações ou de
linguagens próprias e pode dar origem a sujeitos políticos mais ricos e criativos, além dos esquemas
duais das identidades‐alteridades e este é um desafio “.
Identidade e essência humana ‐ Já que se fala em papéis atribuídos culturalmente, é
de se questionar preliminarmente o seguinte: é possível se falar em ʺidentidade infantil ou
adolescenteʺ...? da mesma forma que se falaria ʺidentidade femininaʺ ou em “identidade negra”
ou “homoerótica” etc.? Isto é, a criança e o adolescente podem ser considerados mais que um
”não‐adultoʺ? a mulher pode ser considerada mais que o ʺsexo‐que‐não‐éʺ (ou seja, aquele ser
que existe apenas em oposição ao ʺsexo‐que‐éʺ, o homem)? Têm, todos eles e elas, identidades
pessoais e sociais, dentro de uma “essência humana”6? Tem‐se como assentado que é
realmente válida a idéia de que é preciso se reconhecer e fortalecer o que se convencionou
denominar ʺidentidadeʺ7. Sem prejuízo da necessidade de se reconhecer que a base ontológica
ou epistemológica da luta pelo reconhecimento e fortalecimento da identidade geracional
4
Isso vale também para os idosos e jovens-adultos (de 18 a 23 ou 29 anos)
5
CASTRO, Mary Garcia. 1992. “Alquimia de categorias sociais na produção dos sujeitos políticos”. Revista Estudos
Femininos”. Vol. 0 .
6
MARCUSE, H. 1936: “The Concept of Essence”. 1937: “Philosophy and the Critical Theory”
7
Apud GOFFMAN, FOUCAULT, BOURDIEU, HALL
5
(como da identidade feminil, negra etc.) é a essência humana, negada e oprimida pelo
adultocentrismo hegemônico, mas que se deve tornar fundamento último da luta da criança e
do adolescente por melhores condições de vida e pela equidade. Assim, dentro desse
contexto da essência humana, ter‐se‐á uma identidade, feminil, negra, infanto‐adolescente,
indígena, homoerótica, islâmica etc. Esse reconhecimento da “identidade” veio enriquecer o
discurso e a prática sobre os diversos sistemas odiosos de dominação política, econômica,
social, cultural e jurídica, que aí estão a criar mais desigualdades e iniqüidades e se
manifestarem sob diversas formas de discriminação, exploração e violência.
Importância da identidade ‐ Mas, cabe a pergunta: ʺ‐Quem necessita da identidadeʺ? A
luta pela identidade legítima, de maneira geral, é permanente e contínua, mesmo que não
explicitada. E a análise da mesma tem que ser tematizada, como pressuposto de toda
discussão sobre quaisquer sujeitos sociais, inclusive crianças e adolescentes (sem descambar
para nenhuma forma reducionista de sociologismo). A identidade é um conceito fundante,
pois articulador entre os discursos e as práticas que, de um lado, produzem a subjetividade
que nos constroem como sujeitos sociais e, de outro lado, procuram colocar‐nos no lugar que
nos é atribuído, enquanto esses sujeitos sociais (os que podem falar e ser‐falados)8 . As
identidades são construídas, ativadas e re‐construídas, estrategicamente, na interação, pelo
conflito, no processo de socialização de cada um, no processo de construção do seu projeto
de vida. Elas dependem do reconhecimento dos outros atores sociais. Nascem da
diferenciação e não da reprodução do seu‐idêntico.
Dimensões da identidade ‐ A marca da identidade é o sentido de ʺpertençaʺ a certas
categorias ou a aspectos culturalmente significantes da sua biografia pessoal: o sentir‐se e
assumir‐se negro, mulher, jovem, yanomami, católico, mahori, baiano, xiita, cigano, lésbica,
por exemplo. E partir daí, em cada encontro social, o indivíduo atua segundo uma ʺlinhaʺ
decorrente do seu pertencimento. E em decorrência dessas ʺlinhasʺ de atuação esperada, a
identidade cria uma ʺfaceʺ 9, isto é, ʺum valor social positivo que o indivíduo reivindica, uma
imagem do sujeito assentada nos atributos aceitos socialmenteʺ 10. Para manter a auto‐estima e seu
orgulho‐de‐pertença no encontro social, na interação, o sujeito precisa preservar sua ʺfaceʺ,
evitando ter que abdicar dela (auto‐respeito). Mas, ao mesmo tempo, evitando ser
marginalizado, discriminado, violentado, em conseqüência dela (ʺtatoʺ ou consideração pelo
outro), num processo de ʺcooperação ritualʺ 11, de orientação defensiva de si mesmo ou
protetora do outro. As noções de honra, de dignidade, de consideração se referem a essa
dimensão da ʺfaceʺ. ʺFaceʺ é afirmação de autenticidade 12. De qualquer maneira, a construção
8
HALL, Stuart
9
Usado aqui no sentido figurado de "cara", diverso de "rosto/cabeça" (anatomia): "quebrar a cara", "pessoa de duas
faces", "jogar na cara de alguém", "enfrentar cara-a-cara"
10
GOFFMAN, Erving
11
GOFFMAN, Erving
12
ZAGNOLI, Nello
6
de qualquer consciência de identidade não pode prescindir do diálogo multivocal com o
diverso. A “militância identitária” 13 deve complementar a militância clássica, em favor da
desconstrução do modelo de classe e de dominação em geral das classes subalternizadas. ´E
preciso articular a luta dos diversos sistemas de reprodução das desigualdades, dos sistemas
de dominação hegemônicas, sem se ater exclusivamente na crítica e denúncia às
desigualdades, iniqüidades, em função das diferenças de gênero, raça e geração.
Identidades epifânicas ‐ Os processos de construção e explicitação de identidades
determinadas são sempre situacionais ou históricos. Há, em cada momento histórico,
identidades que são mais ou menos dominantes e conseqüentemente mais midiáticas –
ʺidentidades epifânicasʺ. Identidades que se manifestam mais fortemente, que se projetam para
o mundo de maneira mais visível. Por exemplo, vivemos, tempos atrás, um período mais
ʺepifânicoʺ de relação à identidade feminina, com o auge do movimento feminista, em seu
momento mais salutarmente radical. Observa‐se, também, que gays, lésbicas, bissexuais e
transgêneros, no momento, estão construindo e explicitando aos poucos, identidades
próprias, com marca mais dominante. Por fim, indubitavelmente, nas últimas décadas, se
está vivendo um período ʺepifânicoʺ, de relação à identidade do ser‐criança, do ser‐
adolescente, do ser‐jovem, do ser‐idoso (identidade geracional).
Identidade geracional, como novidade ‐ Mas, nunca é demais que se faça lembrado
que essa construção da identidade geracional é recente na História – principalmente de
relação à infância. Já se tornou clássico e repetido por todos, o registro que faz ARIÈS14 do
surgimento da palavra relacionada à infância, na História, e o aparecimento das primeiras
imagens de crianças em tamanho normal, ainda não de forma normal, mas sim como
delicados anjos. Registra ele, a esse respeito, que as crianças já aparecem retratadas com
aspectos de ingenuidade, graciosas, brincando e que no século XVII deixam de se vestir como
adultos e já século XVIII são representadas no seu contexto, nos costumes familiares com
roupas que realmente usavam e, por fim, aparecem no centro das imagens e até sozinhas. No
final do século XVIII, com Rousseau, surge um crescente sentido da necessidade de cuidados
com a infância: as crianças seriam frágeis e débeis criaturas. DEMAUSSE15, por sua vez,
lembra: ʺos recém‐nascidos eram chamados de ʹecremeʹ e a palavra latina ʹmerdeʹ deu origem à
palavra francesa ʹmerdeuxʹ, criança pequenaʺ. O processo de construção do conceito de
identidade geracional traspassa toda a História, no mundo e no Brasil, e desemboca nos dias
de hoje com a identidade de criança‐cidadã, de adolescente‐cidadão, reafirmando mais ainda,
política e juridicamente, essa idéia de identidade específica. Assim, é de se reconhecer que,
nos tempos de hoje, há uma infância, uma adolescência e uma juventude, como ʺidentidadesʺ,
13
CASTRO, Mary Garcia. 2003. “Alcance e limites das políticas de identidade” in ”Democracia Viva” – Revista IBASE.
Vol. 19 (nov.dez.) . Rio de Janeiro. RJ
14
ARIÈS, Philippe. 1987
15
DEMAUSE, Lloyde. 1991
7
reconhecíveis, em processo de construção e de afirmação. Quaisquer que sejam os seus
marcos‐limite, estabelecidos pelo direito, pela biologia, pela sociologia, pela psicologia, esses
ciclos etários se destacam dos outros ciclos etários, organizam‐se em contra‐culturas, a partir
de experiências geracionais, passíveis de discrição, explicação e projeção. Todavia, não se
pode esquecer que tais crianças e adolescente estão em lugar geográfico, em uma classe
social, em um sistema étnico‐racial, em uma ambiência cultural ideológica de gênero; isto é,
são de uma geração (um momento no ciclo vital) e estão em uma geração (o Brasil dos anos
90), parte de uma sociedade globalizada e tão paroquial, e tão cheia de injustiças. 16 Para
falar de criança e adolescente, no mundo e no Brasil, é necessário contextualizá‐la: não se
pode falar de uma única infância e adolescência e sim de várias. Nessa linha, questiona
MULLER: ʺse nos perguntássemos quem é a criança do Brasil hoje, necessariamente teríamos que
apontar divergências entre elas, em função de diferenças substanciais entre suas realidades de vidaʺ17.
Essência humana, substantividade e adjetividade da identidade geracional ‐ Há
substancialmente uma identidade‐criança ou identidade‐adolescente, uma ʺfaceʺ, mas essa
identidade substantiva mais das vezes é adjetivada, no processo de construção da dominação
hegemônica do mundo adulto. E só se consegue ver a criança e o adolescente enquanto
ʺmenores, delinqüentes, pobre abandonados, meninos e meninas em situação de risco, abusados e
explorados sexualmente, miseráveis, protagônicos, desnutridos, organizados politicamente,
marginalizadas, exploradas no trabalho, drogadas, assassinadas, maltratadas, deficientes,
desaparecidas, traficadasʺ. Um processo de adjetivação que recalca e oculta a identidade do ser‐
criança (ou ser‐ adolescente) e sua essência humana, num processo claro de coisificação, que
justifica um conseqüente processo de triagem/classificação e a apartação/institucionalização –
des‐humanização..
B ‐ O JOGO DA HEGEMONIA E DA CONTRA‐HEGEMONIA
Adultocentrismo hegemônico ‐ Na maioria das sociedades, as diferenças biológicas
entre crianças / adolescentes e adultos (especificamente a sua identidade geracional)
justificam e legitimam desigualdades, no que diz respeito ao poder atribuído aos adultos
sobre crianças / adolescentes. Isso se reconhecerá como uma cultura popular e institucional
“adultocêntrica”, onde se estabelecem relações de discriminação, negligência, exploração e
violência, isto é, de opressão e dominação sobre crianças e adolescentes18, num claro (mas
raramente reconhecido) processo de hegemonia social, cultural, econômica e jurídica do
mundo adulto, em detrimento do mundo infanto‐adolescente.
16
cfr. CASTRO, Mary e ABRAMOVAY, Miriam. 1998
17
MULLER, Verônica Regina. 2002
18
Mutatis mutandi, sobre os próprios jovens-adultos e os idosos
8
Movimentos sociais contra‐hegemônicos ‐ A tarefa básica dos movimentos sociais e
de suas organizações representativas, no mundo e no Brasil, tem sido a construção de um
processo contra‐hegemônico (social, cultural, político, econômico e jurídico), atuando nas
brechas do bloco hegemônico adultocêntrico. Abandona‐se, cada vez mais, aquela linha
tradicional, meramente filantrópica caritativa, onde a ação se configurava como uma benesse
do mundo adulto, apaziguando consciências e legitimando o higienismo dominante – uma
linha castradoramente ʺtutelarʺ. Essa construção do novo tem produzido indiscutivelmente,
nos últimos anos, experiências referenciais e notáveis alterações no status quo, colocando em
cheque o bloco hegemônico adultocêntrico, com escândalo para ele, a se ver ameaçado.
Outros dominados em luta ‐ Mas, essa mudança vem se fazendo ainda em nível ainda
um tanto incipiente, se compararmos, por exemplo, essa luta com aquela outra pelo
fortalecimento da identidade feminina, pela emancipação radical da mulher e pela
construção de uma nova masculinidade ‐ a democratização das relações de gênero. Ou se
compararmos com luta semelhante contra todas as formas odiosas de discriminação e
violência a que são submetidas a população negra ou indígena, as minorias eróticas19 e outros
segmentos sociais vulnerabilizados, no Brasil e no resto do mundo. As mulheres, os negros,
os índios e os homossexuais ‐ eles próprios sofrendo na própria pele a dominação e opressão
‐ se organizaram e construíram discurso e prática alternativos de radicalidade, com
indiscutível efetividade e capacidade de alteridade, em termos de processo contra‐
hegemônico, pois partiram inicialmente do reconhecimento do antagonismo intrínseco com
os blocos hegemônicos, machista, racista e homofóbico. O fato das organizações sociais
envolvidas nessas lutas lutarem pela ʺsobrevivência de sua identidadeʺ faz realmente diferença,
quando se coteja com o discurso e prática (mesmo os mais progressistas...) de alguns
movimentos e organizações que lutam pela infância e pela adolescência, ainda eivados de
certo paternalismo sub‐reptício. Afirma VOLPI20 que, ʺse os povos indígenas e o povo negro
demonstraram forças organizativas e contestatórias, impondo um luta sem tréguas por sua libertação,
o mesmo não ocorreu com as crianças e os adolescentes, pois a ação, dirigida a eles, sempre esteve
encoberta por um falso manto de proteçãoʺ (grifo meu). Normalmente, é a partir de dentro do
próprio bloco hegemônico adultocêntrico que a luta se faz, com um discurso crítico e uma
prática engajada e conscientizadora: compromisso, solidariedade e cuidado. São adultos que
tentam fazer sobrelevar em si mesmo seus interesses e desejos de bloco, para se
comprometerem com os interesses e desejos dos oprimidos, com o empoderamento ou
potencialização estratégica 21 de crianças e adolescentes, para sua emancipação, para se
tornarem sujeitos da História – reconhecendo e tolerando22 sua ʺfaceʺ. Mais radicais e,
19
Prostituto(a)s, gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, etc.
20
VOLPI, Mário. 2002. Prefácio a "Crianças e Adolescentes – a arte de sobreviver" (MULLER, Verônica e MORELLI,
Ailton José – org.). Maringá: Editora UEM
21
Empowerment
22
Aqui no sentido positivo da expressão
9
portanto mais efetivos seriam os discursos e as práticas contra‐hegemônicas e emancipatórias
do segmento infanto‐adolescente, se o nível de consciência e organização de crianças e
adolescentes chegasse a ponto de construírem um real ʺprotagonismoʺ nessa luta, inclusive
buscando alianças diretas com outros oprimidos23 ‐ um fortalecendo o outro. Se tal
consciência e papel assumissem as próprias crianças e os adolescentes, eles forçariam a nós,
ʺadultos convertidosʺ, a lutarmos realmente ʺcom elesʺ e não apenas ʺpara elesʺ, como ainda
prevalece em nosso tempo, com raras exceções. A participação proativa de crianças e
adolescentes, no mundo familiar, social e político, passariam a se dar a partir deles próprios e
não como concessão do mundo adulto e como decorrência de políticas, programas e projetos
artificiais que, mais das vezes, promovem de fora para dentro essa proatividade, esse
ʺprotagonismoʺ e ao mesmo tempo o emolduram e domesticam.
C. MARGINALIZADOS E CREDORES DE DIREITO, NO JOGO HEGEMÔNICO E
CONTRA‐HEGEMÔNICO.
Essencialidade, identidade e marginalização ‐ Nessa luta emancipatória da infância e
adolescência, tem‐se que procurar alternativas novas, através de espaços e mecanismos
estratégicos (políticos, sociais, econômicos, culturais, religiosos e jurídicos) que se tornem
verdadeiros instrumentos de mediação, nessa luta pelo asseguramento da essência humana e
da identidade geracional, vencendo esse processo de des‐humanização, de dominação e
opressão, de desclassificação social de crianças e adolescentes, nesse jogo hegemônico e
contra‐hegemônico que condena grandes contingentes desse público infanto‐adolescente a
um processo mais específico e doloroso de marginalização.
Que é marginalização? ‐ E. Park24 inaugurou o uso da expressão “marginalidade” (e
seus correlatos), articulado com os de ʺanomiaʺ e de ʺaculturaçãoʺ, desencadeando uma série
de estudos, históricos e sociológicos. Com o passar dos tempos, esse sentido original de
conceito operatório, foi se tornando obsoleto, desusado. Atualmente, conceitos derivados de
“marginalização” passaram a ser usados, nos discursos ideológicos, epistemológicos e político‐
institucionais, em dois sentidos aparentemente antagônicos. Os adeptos da contracultura
(“underground”), no período de 68/72, na Europa principalmente, deram‐lhe um sentido
positivo e o cunharam como um verdadeiro slogan ideológico‐político, bem longe das
preocupações epistemológicas que dominaram o surgimento do conceito. “Marginalidade”
teria a ver, então, com Goddard, Glauber Rocha, “Rei da Vela”, Tom Zé, Raul Seixas, Jane
Joplin, Índia, maconha, LSD, hippies, Woodstock, amor livre e por aí afora... Em segundo
lugar, seu reemprego voltaria também no discurso administrativo oficial e na linguagem
corporativa dos profissionais do serviço social e da psicologia social, para designar mais das
23
Especialmente, os movimentos feministas
24
“The marginal man”
10
vezes os pobres, os hipo‐suficientes e também as diferentes categorias da população sob risco
de exclusão social. “Marginalidade” teria a ver assim com os chamados oprimidos e
excluídos, com as classes populares ditas assim, marginalizadas. Para os primeiros, a
marginalização seria resultado de uma opção de vida, em oposição ao “Sistema”, ao
establishment: um estado a ser buscado e alcançado, na fruição. Para os outros, ela seria
afligida a uma classe dominada por outra classe dominante, sofrida por alguém determinado
e por sua categoria ou grupo social: um processo a ser combatido.
Marginalização e normatização ‐ De qualquer forma, um ponto se tem como comum e
assente: a marginalização leva sempre a um distanciamento de relação às normas sociais e
morais 25. Seria, ao mesmo tempo, uma condenação a esse afastamento e uma busca desse
distanciar‐se. Um distanciamento que implica em alguém (ou um grupo) se colocar como
desviante e conflitante, de relação à norma dominante, hegemônica. Uma forma, portanto de
contra‐hegemonização...? Isso se dá quando as normas nada ou pouco têm a ver com o seu
destinatário, não refletem seus valores, suas necessidades, desejos e interesses – quando não
reconhecem e fortalecem sua identidade (de classe, de gênero, de raça, de geração). Quando
as normatizações morais, sociais e jurídicas são puramente hegemônicas e heterônimas, isto
é, dadas por outro, a parte e acima, isto é, como forma de dominação globalizante. Distancia‐
se do que não se reconhece como seu e como válido para si. O conceito de marginalização
não remete a posições objetivas que os atores sociais ocupam nas relações sociais. Assim,
nenhuma criança ou adolescente é propriamente um marginal, nasceu marginal, está fadado
a ser marginal e acabará marginal. Esse conceito remete aos processos de “desclassificação” e
de “reclassificação” dos indivíduos e grupos, a se movimentarem na estrutura social.
Cidadãos em crise, quanto à sua essencialidade e identidade ‐ Crianças e
adolescentes, assim marginalizados, não são apenas “excluídos”, “oprimidos”, “vitimados”.
Estão dentro do universo global das “crianças e dos adolescentes em crise”. São como parcela
desse grande grupo que tem certo plus acrescido à sua peculiar condição de vida, de
desenvolvimento: pelo fato de estarem em circunstância de crise, alguns determinados são
apartados em processo outro de marginalização. Essa marginalização, decorrente de uma
condição conjuntural e particular da sua essência humana (“crisis”26) remete às diversas
modalidades de relacionamento dos ditos ʺmarginalizadosʺ com a ordem social e muito
particularmente com os sistemas de regulação social. A depender da sua resposta, em sua
relação com a família, a justiça, a polícia, os conselhos tutelares, as igrejas, a escola, os órgãos
de atendimento assistencial etc.etc., eles ganham rótulos no processo de triagem próprio
desses sistemas de regulação social. Ela remete igualmente às também às modalidades de
relacionamentos que esses atores mantêm com as prescrições normativas que a ordem social
25
Lagree e Lew-Fai in “Pairs et reperes. Contribution a l’étude des processus de marginalisation de jeunes” / Vaucresson - Paris
26
No sentido gramsciano: “quando o que é novo ainda não nasceu e o que é velho não quer morrer”.
11
gera e veicula como as regras morais, a etiqueta, a lei. Esses relacionamentos de composição
e/ou de confrontação com os espaços públicos de regulação social e com as normas têm,
como uma das suas bases, a busca constante e insaciada de reconhecimento social, da
identidade, da sua ʺfaceʺ; já que dialeticamente a marginalização também é opção de vida e
não só processo social externo ao marginalizado. Reconhecimento social esse, que passa pela
questão da auto‐estima: alta ou baixa. Um olhar‐se no espelho sem sustos... ou com absoluto
pânico !
Marginalização e relacionamentos sociais ‐ Conseqüentemente, a marginalização
gera relacionamentos que resultam em afirmação e rejeição da parte desses atores,
simultaneamente. Como num procedimento que se poderia caricaturar, no dizer do menino: ‐
“Já que seu mundo não me aceita, eu crio um mundo aparte que me aceita, onde sou o bom...!”. E que
se completaria com a resposta da ordem social: ‐ “Já que você nega meu mundo, eu o destruo...
marginal!” A marginalidade, em conseqüência disso tudo, gera rotulação, estigmatização. O
dar nomes é uma forma de dominação e de apropriação do outro: pivete, veado, cafuçu, cunhã,
negrinha, nordestino pau‐de‐arara, putinha, piranha, vagabundo, ladrão, maconheiro, marginal ... A
marginalidade é imposta pela estrutura social, pelo sistema sócio‐político‐econômico. E ao
mesmo tempo, reconhecida e trabalhada pelo marginalizado, que se assume como tal e
responde como tal, distanciando‐se, cada vez mais.
A lógica da reação social ‐ Sob esse prisma específico, aqui utilizado, a análise da
marginalidade reenvia a esse tema largamente explorado da “reação social”, inicialmente
informal‐difusa da sociedade e comunidade, depois formal‐institucional do aparato estatal.
Reação social que além do mais, numa linha de radicalização, pode se tornar inclusive
“desviante e marginal”, arbitrária e violenta: os arrastões, as institucionalizações ilegais, os
procedimentos abusivos, as torturas, os banimentos, o extermínio... Reação pela qual, os
comportamentos, que se distanciam das normas prevalecentes nos seus ambientes, são
reprovados, rotulados‐estigmatizados, condenados à vindita social, quando não expurgados.
Por isso, quando se enfrenta a questão da relação entre marginalidade e reação social, urge se
considerar a lógica e a prática dos atores envolvidos. A perspectiva do marginalizado em face
da norma e do sistema de regulação social dos quais se distancia e em face inclusive dessa
reação social decorrente de tal distanciamento. E igualmente a ótica dos aparelhos de
repressão, dentro dos sistemas de regulação social, em face da marginalização e do
marginalizado. Isto é, importa em se considerar o itinerário socio‐biográfico do
marginalizado. A maneira pelas quais avaliam sua capacidade de operacionalizar suas
normas pessoais de referência e/ou as normas do seu meio próximo circundante, a maneira
pela qual ele representa os diferentes sistemas de interação aos quais ele é confrontado, as
modalidades pelas quais participa disso que, acima de tudo, a criança e o adolescente
marginalizado e operadores do sistema de regulação social encaram como um jogo, sem
empates.
12
Exemplificando com uma situação ‐ Quando se enfrenta questões, por exemplo, como
a dos “garotos michês” e das “garotas de programa” na exploração sexual‐comercial e a dos
“aviõezinhos” no narcotráfico ‐ importa levar‐se em conta a lógica peculiar deles, as suas
especiais necessidades sexuais e financeiras, a normatização socionômica dos seus guetos e o
papel desclassificante / reclassificante, normatizador e sancionador/protetor de seus pais e
parentes, de policiais, de juizes e promotores, de seus advogados, de professores, dos
namorados e companheiros, do cafetão, do pai‐de‐rua, do bicheiro, do traficante etc. Esse
público infanto‐adolescente deve ser chamado a “superar” essa condição de vida considerada
marginal. E não apenas moralisticamente a “negá‐la”. Um menino ou uma menina que vivia
da prostituição, mesmo deixando essa forma de expressão sexual e profissão, não poderão ter
uma vida sexual igual a de um outro adolescente de sua mesma idade, mas que não viveu
essa situação de marginalização, de exacerbação dos seus desejos e necessidades: terão a
partir de agora novas exigências sexuais e financeiras que precisam ser consideradas. Nem
tão pouco a eles se poderá oferecer algum tipo de posto de trabalho rotineiro, repetitivo,
desprazeiroso, que lhe renda tostões e sem perspectivas de crescimento, de trazer‐lhe
reconhecimento social acima do padrão médio pequeno‐burguês.
Exemplificando com outra situação ‐ Outros apelos devem ser feitos aos operadores
dos sistemas de regulação social, em linha semelhante, mutatis mutandi, quando se tratar, por
exemplo, da erradicação do trabalho infantil, da situação de rua, da delinqüência – por
exemplo. Para que se entenda a mecânica da marginalização e se possa superá‐la de alguma
forma, um outro ponto é primordial: as dinâmicas locais (familiares, vicinais, comunitárias,
grupais p.ex.). Elas devem ser consideradas como um elemento constitutivo das práticas das
crianças e dos adolescentes. Assim sendo essas dinâmicas locais participam também do
processo de marginalização, quando afetam esse segmento social, inclusive produzindo um
discurso ideológico justificador ou repressor das práticas infanto‐adolescentes,
especificamente das práticas da marginalidade. Essas dinâmicas locais devem também ser
consideradas e valorizadas em todo e qualquer processo de integração social de tais crianças
e adolescentes e no desenvolvimento de todo e qualquer programa público de atendimento,
como se verá adiante.
A rede de relações entre pares ‐ Os meninos e meninas dos meios populares se
interessam por sua coletividade próxima (favela, cortiço, invasão, escola, rua e praça, clubes
etc.) e têm valia para ela. Isto é, conhecem os princípios sob os quais essa coletividade
repousa. E são susceptíveis de levar em conta, na elaboração de suas estratégias de
sobrevivência, as prescrições que ela impõe, na medida em que eles participam de uma “rede
de relações entre pares”, que são estáveis, localizadas, dimensionáveis, concretas, efetivas. Os
meninos e meninas das classes ascendentes igualmente acabam se guetificando e
supervalorizando sua “ilha da fantasia” (condomínios fechados, clubes, academias, shoppings
13
etc.), elaborando estratégias de sobrevivência em outro sentido, temerosos com o vasto
oceano de miséria; participando também de uma rede tal, própria e fechada, responsável por
outras formas de prescrições, também. Estabelecem, todos, em geral, estratégias de
confrontação e/ou cooperação. Ou para evitar sua exclusão, apartação e eliminação (os
primeiros) ou para evitar a perda do seu status quo e sua possível eliminação também (os
últimos) Ambos, estabelecem estratégias, no fundo, para negociar sua ascensão crescente e
construção de uma contra‐hegemonia social, na medida do possível... e do aparentemente
impossível. A exacerbação desses processos de conformação/confrontação com as dinâmicas
locais e de integração a sua “rede de relações entre pares” pode criar mecanismos fortalecedores
do processo de marginalização da criança e do adolescente e mesmo de “repressão‐desviante”
(arbítrio e violência institucional) da ordem social e dos sistemas de regulação social, contra
eles. Mas, ao mesmo tempo, ela pode ser uma das saídas num processo de neutralização da
marginalização. Por exemplo, uma forma de exacerbação, radicalização desse processo citado
seria o agrupamento informal: gangues, galeras, turmas, bandos etc. Esses grupos de
pertença (principalmente de adolescentes pre‐adultos, de 16/18 anos e de jovens adultos, de
18/23 anos) precisam ser analisados a partir dessa ótica. Aí reside o supra‐sumo dos
mecanismos da marginalização, no sentido aqui defendido especificamente. Esses
agrupamentos informais são produtores de normas alternativas (de um direito alternativo?!),
geradas socionomicamente (na rede de relações entre pares), com nível de efetividade e
coercitividade imediata maior que a normativa geral estatal e com potencialidade de
atendimento mais real das necessidades e interesses daqueles adolescentes, a partir das suas
dinâmicas locais e obviamente da sua própria “rede de relações entre pares”.
Saídas possíveis num processo de marginalização ‐ Na interatividade entre
indivíduo e agrupamento se encontra a possibilidade de sobreviver e resistir, na
marginalidade. A galera e a turma criam um novo “espelho”, onde esse adolescente pode se
olhar agora sem susto, elevando sua baixa auto‐estima. O “mundo‐lá‐fora”, os “outros” e suas
“regras” passam a ser “careta”, isto é, incômodos, obsoletos e perigosos. Um mundo velho a
impedir o surgimento do novo, do “radical”... e a solução estará na busca do ʺiradoʺ. Os
funckeiros da Favela Tal, a turma da Rua Qual, aquela Galera de Rock‐Garagem, aquele
Grupo de Grafiteiros, os meninos‐de‐rua liderados por Beltrano, os drogadictos ligados a
Fulano, determinados michês, travestis e assemelhados etc.etc., passam todos a se sentir
fortes e reconhecidos socialmente exclusivamente em seus redutos, em seus agrupamentos,
que lhes reforçam a auto‐estima construída nessa “rede de relações entre pares”. Mas, a reforçar
também o sentido de marginalidade. E, a partir desse sentido de pertença ao agrupamento e
desse auto‐reconhecimento social no seio do grupo marginalizado/marginalizante, se produz
uma cultura própria a ser considerada. Uma arte peculiar, por exemplo, que se torna
instrumento operacional da superação da crise vivida pelo adolescente. Mas um instrumento
operacionalizador também desse distanciamento da norma e de contestação ao sistema de
regulação social. E igualmente de integração mais radical e permanente do adolescente a sua
14
galera, gang etc. Assim sendo, por essa “cultura marginal” passam também os processos de
neutralização da marginalidade e de ascensão social e de reconhecimento social da sociedade
como um todo, inclusive do próprio Sistema, antes negado e do qual se desviou o
adolescente e sua galera. Essa transformação passa, por exemplo, pelo grafite, hip‐hop,
funk, rap, pagode, história‐em‐quadrinhos, banda‐garagem. E pela moda. Em conclusão:
“Não há caminho melhor no processo pedagógico para produzir essa ’transformação’ do que a
introdução dos conceitos e das práticas de arte, cultura, beleza – minha prática no âmbito da educação e
da arte leva‐me a afirmar que a convivência com a estética é um direito fundamental da criança e do
jovem, qualquer seja sua situação existencial” (LA ROCCA) 27
Alternativas castradoras ‐ Quando se trata de enfrentar a problemática da
marginalização da infância e da adolescência (a lhes fazer abortada a cidadania), até o
momento, uma dúvida em princípio vem à mente, diante do quadro geral da efetivação da
normativa legal e da operacionalização das políticas e das ações públicas, no Brasil:
9 As crianças e os adolescentes, quando marginalizados, estarão condenados,
sem alternativas, à ʺtríplice danação da solidão, do gueto ou da fogueiraʺ (GENET) ?
9 Qualquer solução terá que vir numa linha soterista, messiânica, a partir de fora
e de cima – como uma outorga, uma salvação, uma redenção, marcada pelo sinete do perdão
abastardador e alienador? Terá que vir numa linha puramente assistencialista e tutelar,
desconsiderando a condição de cidadania dessa criança e desse adolescente?
9 Ou só seria possível uma resposta repressora, violenta e arbitrária do Estado e
da sociedade ‐ como ideológica justificativa da repressão à violência de crianças e
adolescentes desviante‐marginalizados? Devem eles se tornar também objeto de incidência
do discurso e da prática daquele chamado “desvio institucional”, imputável aos próprios
organismos oficiais de regulação social (arrastões, constrangimentos ilegais, torturas,
extermínios etc.) ?
Alternativas possíveis e emancipatórias ‐ Há que existir alternativa. Assim, além do
atendimento público tradicional pelas políticas sociais (educação, saúde, cultura, habitação e
especialmente da assistência social), a marginalização da infância e adolescência é uma
questão de direitos humanos. Reconheça‐se, preliminarmente, que se devem tratar todas as
crianças e todos os adolescentes, por sua identidade geracional (em situações de
crise/marginalização ou não), como pessoas em desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo,
eles que são sujeitos de direito e, portanto, cidadãos com direitos e deveres. Isto é, criança‐
cidadão e adolescente‐cidadão que precisam de pessoas e grupos, responsáveis pela
promoção e defesa dos seus direitos à participação, à proteção, ao desenvolvimento e à
sobrevivência. Mas, eles próprios também responsáveis por seus atos, por sua vida. Não é
27
LA ROCCA ,Césare de Florio . 1998: “Reflexões sobre Liberdade, Direitos e Deveres Humanos” in “Políticas Públicas e
Estratégias de Atendimento Socioeducativo a Adolescentes em Conflito com a Lei” – Brasília: Ed. Ministério da Justiça /
UNESCO
15
preciso que a proteção dessa pessoa em desenvolvimento (em crise), enquanto sujeito de
direito se torne exercício de um poder arbitrário da sua família, da sua comunidade, da
sociedade em geral ou do Estado. Não se protege uma pessoa como se protege um pequeno
animal feroz e perigoso, esquecendo‐se que ele, de qualquer maneira, é um ser que já tem
todos os direitos de um cidadão e como tal deve ser tratado; revertendo‐se o processo de
abortamento da sua cidadania. Apesar de ser uma pessoa com seu desenvolvimento ético‐
psiquico‐fisico prejudicado pela situação de crise social e com seu reconhecimento e inserção,
social, truncados. Eles não precisam de proteção intrinsecamente, mas sim em determinadas
circunstâncias, situações, condições, momentos: as necessárias limitações ao exercício de seus
direitos devem ser entendidas como estratégias para garantir a plenitude desses direitos. Isto
é, limita‐se a autonomia deles para assegurar a plenitude da sua cidadania e não para torná‐
los menos‐cidadão, cidadãos de segunda classe.
Falso antagonismo: repressão e autonomismo ‐ Tem‐se registrado a ocorrência de
duas posições antagônicas diante dessa questão dos direitos da criança e do adolescente,
mais particularmente dos marginalizados. Uns acentuam a necessidade da proteção, quase
que anulando a autonomia deles, vendo‐os como “vulneráveis” em si (não, socialmente
vulnerabilizados), sem responsabilidade alguma por seus atos – necessitando de verdadeira
tutela da família, da sociedade e do Estado e de respostas repressivas e/ou assistencialistas.
Para esses a institucionalização ainda é o melhor caminho: o lugar dessas crianças e
adolescentes marginalizados (michês, travestis, grafiteiros, drogadictos, funkeiros, meninos‐
de‐rua etc.) é no “ninho‐gaiola”. Para eles, as “redes de relações entre pares” desses
marginalizados e a sua dinâmica local devem ser desconsideradas e olhadas sob suspeita.
Não sabem como trabalhar com os agrupamentos informais (galeras, gangs etc.) ou então
pretendem domesticá‐los. Quando não por essa linha, outros por sua vez colocam
exageradamente a tônica da sua reflexão e da sua ação na autonomia da criança e do
adolescente marginalizado e repudiam como “castradoras” as formas de proteção. E acabam
anulando todo e qualquer resquício da responsabilidade/poder parental e da
responsabilidade do Estado e da sociedade pela sobrevivência, pelo desenvolvimento e pela
proteção da criança e do adolescente. Também reforçam todos os aspectos negativos
daquelas “redes” e da dinâmica local, visto como totalmente salutares positivos. Acaba‐se
lutando pelo pretenso “direito” das crianças e dos adolescentes marginalizados, de tudo fazer,
no local, na hora e na medida em que quiserem. E se tornam verdadeiros “cúmplices”, tudo
acobertando, tudo aceitando, em nome da autonomia, da liberdade e da dignidade desse
segmento. Para esses, por exemplo, o direito de ir‐e‐vir implicaria no exercício ilimitado
desse direito por uma criança de 7 anos, por exemplo. Os adolescentes infratores, por sua
vez, apenas “desviantes”, “inadaptados sociais”, por outra justificativa também irresponsáveis,
susceptíveis apenas de “encaminhamentos do serviço social”, de “psicoterapias”, de “análises”, de
profissionalização etc., sem qualquer medida jurídico‐judicial de caráter sancionador (“sanção
de reciprocidade” – PIAGET). Segunda essa corrente mais descolada da realidade, toda e
16
qualquer forma de contenção, de limitação seria absurdo, quando se tratar de adolescentes
infratores. Dentro desse quadro de deformações do discurso ideológico, epistemológico e
político‐institucional e das suas práticas decorrentes – emblematicamente, alguns juizes têm
aplicado a medida socioeducativa de internação (sanção) a adolescentes não especificamente
pela prática de uma determinada infração, que se confunde com o crime ou contravenção
praticada por adultos. Mas por sua condição de marginalidade (não, conflito real com a lei)
de relação à ordem social local. Assim, sentenciam esses adolescentes por serem “useiros e
vezeiros na prática de atos anti‐sociais”, por viverem “em conflito com sua família e/ou com a
comunidade local”, por “não se encontrarem aptos para voltarem à sociedade, apesar de já terem
cumprido a medida socioeducativa imposta” e “para garantir a proteção dele e da comunidade pelo fato
de ser soropositivo” (sic). Isso, mesmo na vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente! Da
mesma visão compartilham, pelo Brasil afora, inúmeros conselheiros tutelares, com práticas
tuteladoras no mal sentido, institucionalizadoras, vendo o abrigo como a única medida
especial protetiva adequada em situações de marginalidade. Constada uma situação de risco,
qualquer que seja ela, determinam o encaminhamento a abrigos... e quando nessa criança e
adolescente sentem o cheiro da marginalidade procuram institucionalizações em abrigos
especiais que já começam a existir ... “com total contenção”. O marginalizado é visto como
aquele que tem uma tendência nata a se rebelar contra as medidas educativas, assistenciais,
protetivas e se o conselho tutelar (quando não o juiz) reconhece uma verdadeira
impossibilidade de atendimento eficaz e eficiente, fora dessa linha
“disciplinadora/sancionadora”. As medidas em meio aberto não conseguem convencer, porque
nelas não se investe, em nenhum sentido. Outras vezes, mutatis mutandi, encontramos
trabalhadores sociais de serviços e programas governamentais e não governamentais
operacionalizando no seu atendimento técnico sua concepção ideológica “autonomista
libertária”, numa deformação do princípio teológico mal assumido: “Onde há amor, não há
pecado”. Ou mesmo juizes, promotores, policiais e defensores que seguem a linha do “laissez
faire, laissez passer” de relação aos atos em concreto praticados por crianças e adolescentes
marginalizados: não se instaura procedimento apuratório de ato infracional atribuído a
adolescente, não se faz apreensão em flagrante deles quando for o caso, fecham‐se os olhos a
situações de abandono, de exploração e discriminação... Finge‐se uma liberalidade falsa de
relação ao que é marginal ou assume‐se uma sensação de incapacidade e de impossibilidade
diante de tudo isso.
O princípio da reciprocidade ‐ Ainda há muito caminho pela frente para que se
desconstrua todos esses discursos ideológicos (a partir de sua própria lacunosidade) que
mascara o nosso discurso epistemológico e político‐institucional. E muito mais caminho para
que construa uma prática de atendimento público eficaz e eficiente, que respeite os direitos
das crianças e dos adolescentes marginalizados, vendo‐os como cidadãos. A marginalização é
uma situação peculiar, com dinâmicas e estruturações próprias, que precisam ser
consideradas em nosso discurso e prática. Tendo‐se a marginalização simultaneamente como
17
proposta da estrutura social (marginalizadora) e como resposta do ator (marginalizado) e
focando‐se a marginalização também duplamente no distanciamento da norma heterônima,
inefetiva / ilegítima e na composição/contraposição aos sistemas de regulação social ‐ aí,
nesses pontos, se deve ir buscar a solução; a possibilidade de neutralização do processo
estrutural marginalizador, com o devido e necessário respeito ao ator‐marginalizado. Em
primeiro lugar, importante se torna trazer para o lidar com essas crianças e esses
adolescentes nessa situação o sentido de reciprocidade. Uma sociedade e um estado,
respeitadores das normas e a elas sujeitos, incitam todos os atores sociais (especialmente os
marginalizados, por sua própria natureza), reciprocamente, ao respeito à norma. Uma
sociedade e um estado, mantenedores de sistemas de regulação sociais (família, polícia,
justiça, escola etc.) atidos a procedimentos legais, induzem todos os atores sociais
(especialmente os marginalizados, por sua própria natureza), reciprocamente, ao respeito a
eles próprios. Em resumo: “O respeito ao direito do outro é o alimento natural de uma eventual
generalização de expectativas que leva à construção de um estado de direito. (...) Numa sociedade em
que se permite grandes hierarquias e desequilíbrios entre os cidadãos, dificilmente se alcançará a
reciprocidade e, conseqüentemente, também será difícil que o direito sirva como instrumento de
organização e pacificação social” (VILHENA.1998)28.
As ações afirmativas como forma de contra‐hegemonia ‐ A criança e adolescente
marginalizados, em si, já carregam uma carga de negatividade muito forte, que lhe impõe a
ordem social e que acabam assumindo. Importante se torna, então, a focalização estratégica
positiva no direito à convivência familiar e comunitária e nas possibilidades práticas de sua
exigibilidade, do que se acentuar tanto o abandono, a situação de sobrevivência na rua, por
exemplo. Isso vale, em outro exemplo, de relação à marginalização pela orientação sexual
(prostituição, travestismos etc.): “a discussão centrada no abuso sexual não implica no
questionamento dos padrões, normas e tradições da sexualidade vigentes na sociedade brasileira;
discutir a sexualidade (de crianças e adolescentes abusados) é discutir a cultura e o padrão civilizatório
vigente (...); nesse sentido trata‐se de colocar na agenda nacional e profissional o direito de todos à
sexualidade responsável e protegida” (FALEIROS29). Com essa postura positiva, abandonamos
também a descrença que nasce do “modelo do dano” (tanto dos atores marginalizados, quanto
dos agentes públicos que com eles lidam), em favor da promoção da “resiliência”, enquanto
potencial humano de passar por experiências adversas sucessivas, sem comprometimento da
capacidade de superar esses percalços, de fazer bem as coisas e resgatar a própria dignidade.
Promover a resiliência da criança e do adolescente marginalizado significa fazer com que ele
consiga construir seu sentido de vida e das coisas, seu lugar no mundo, no presente e,
28
“O Princípio da Reciprocidade” in “Políticas Públicas e Estratégias de Atendimento Socioeducativo ao
Adolescente em Conflito com a Lei” – Ministério da Justiça / UNESCO.
29
FALEIROS, Vicente org./ 1998) - “Relatório da Oficina de Trabalho do Centro de Referência, Estudos e Ações
sobre a Criança e o Adolescente de Brasília” in “Políticas Públicas e Estratégias contra a Exploração Sexual-
comercial e o Abuso Sexual Intra-familiar de Crianças e Adolescentes” – Brasília.: Ed. Ministério da Justiça /
CECRIA .
18
principalmente no futuro. Como diz Cenise Vicente: “A resiliência é um fenômeno psicológico
construído e não tarefa do sujeito sozinho; as pessoas resilientes contaram com a presença de figuras
significativas, estabeleceram vínculos, seja de apoio, seja de admiração; tais experiências de apego,
permitiram o desenvolvimento da auto‐estima e autoconfiança” (VICENTE 30)
A proatividade em construção, como empoderamento ‐ Esse fortalecimento do ator
marginalizado forçosamente nos levará ao ponto mais importante nesse processo de extensão
da cidadania da criança e do adolescente marginalizados: a promoção da sua participação
proativa na vida social em geral e particularmente no planejamento e no desenvolvimento
das estratégias de sua integração social, fortalecendo neles um sentido de empowerment,
enquanto potencialização do seu protagonismo social. As crianças e os adolescentes
marginalizados não podem ser “massa de manobra”, manipulados por seus próprios
marginalizadores. Não podem ser chamados a participar apenas reativamente, como forma
de legitimação dessas estratégias e desses serviços e programas, de determinadas políticas
em seu favor. Em resumo: “A quantidade e qualidade das oportunidades de participação na
resolução das situações reais influenciam os níveis de autonomia e de autodeterminação que eles serão
capazes de alcançar também na vida pessoal, familiar, profissional, cívica, social (...) passa a ter diante
de si uma oportunidade de ‘mobilizar’ em favor de uma causa, em favor de uma vida melhor, em níveis
profundos, como uma opção de natureza pessoal, que lhe é fonte de prazer, de gratificação, de sentido de
auto‐realização”. (“Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei – Reflexões para uma Prática
Qualificada” in Caderno n.01 / DCA‐SNDH‐MJ / org. Wanderlino Nogueira Neto / 1998).
Discriminações positivas ‐ Por fim, constate‐se mais: as situações de negligência,
exploração, violência, opressão e particularmente de discriminação, a que estão submetidos,
de maneira exarcebada, as crianças e os adolescentes marginalizados, a partir de uma
situação ou de desvantagem social (em função da raça, etnia, gênero, sexo, morbidade,
pobreza extrema etc.), ou de vulnerabilidade (exploração sexual, abandono, exploração no
trabalho etc.) ou de conflito com a lei (infração), justificam o quanto suficiente “discriminações
positivas” em favor deles, com ações afirmativas que compensem esse quadro maligno
desencadeador ou potencializador da marginalização.
Contra‐hegemonização política e jurídica ‐ Neste estudo, interessa aprofundar a
discussão especificamente sobre a contra‐hegemonização política e jurídica em favor dos
segmentos geracionais submetidos a esse processo de dominação, em nossa conjuntura, mais
particularmente crianças e adolescentes. É imprescindível que se creia que o Direito tem um
poder transformador maior do que tradicionalmente se atribui a ele, em nosso meio, ainda
30
VICENTE, Cenise. “Promoção da Resiliência” in “Políticas Públicas e Estratégias de Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei” – cit.).
19
muito marcado por um ʺsubstancialismo jurídico” 31, algumas vezes nascido de uma leitura
estreita e ultrapassada da teoria marxista. É imprescindível, igualmente, que uma nova
prática política seja pensada e desenvolvida, a partir da perspectiva dos interesses desses
segmentos sociais dominados, implementando ações afirmativa em seu favor e
operacionalizando uma rede de cuidados básicos.
31
GARCIA MENDES, Emilio - "Infância, lei e democracia: uma questão de justiça"
20
2. UM NOVO PARADIGMA:
A ÓTICA DOS DIREITOS HUMANOS
A ‐ PRELIMINAR DISCURSO CRÍTICO SOBRE O DIREITO
O Direito – De ordinário, se é tentado imaginar que o Direito é um campo apartado da
realidade social: um dado preexistente. Na verdade, ele também não é um ʺdadoʺ, mas um
ʺconstruídoʺ, uma invenção humana, em constante e dinâmica construção e reconstrução
(ARENDT) 32. Mais das vezes, a ascensão dos direitos é fruto de lutas. ʺOs direitos são
conquistados às vezes com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio dos
quisl as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e estandartes de luta antes de
serem reconhecidos como direitosʺ (SACHS)33 Realmente, não existe um Direito previamente
dado ao homem, cuja tarefa de identificação e aplicação seria do operador do direito, que
teria como seu único compromisso a busca desse ʺDireito Puroʺ. Não se pode dizer
maniqueistamente, que o Direito é um mero instrumento de controle social, um instrumento
manipulado por juristas e operadores especializados34, detentores de um saber hermético e
de uma prática inquestionável. E, em função disso, esses chamados operadores do direito
passariam a ser demandado apenas como ʺintelectuais autônomos”35 – de fora e de cima, sem
organicidade – para estabelecerem o que se pode fazer e o que não se pode fazer, a partir de
dogmas e de sanções de inviabilização das reflexões e práticas dos demais operadores
sociais36. Dessa maneira, há o risco de se fazer da atividade desse chamado operador do
direito algo cada vez mais desgastador das possibilidades de um saber a‐disciplinar e de uma
atividade multiprofissional e intersetorial. Uma função puramente aleatória,
disfuncionalizada, arbitrária, marcada pelo elitismo, corporativismo e formalismo‐
cartorialista. O Direito não é um ʺlimite sagradoʺ para as discussões sobre a realidade social e
para o encaminhamento de intervenções sociais e políticas. A tentação é de se considerar
equivocadamente a dimensão jurídica de uma questão social como ʺmolduraʺ e não realmente
como ʺelemento constitutivo da paisagemʺ. O Direito é sempre o resultado do ʺagir comunicativo
dos homens” ‐ um ʺfazer comunicativo setorial no fazer global comunicativoʺ. O Direito não
pertence ao ʺmundo do serʺ (da matéria e da concreção, onde operam o labor e o trabalho) e
sim ao ʺmundo do dever serʺ (dos valores, da ética, da construção do homem, onde opera a
ʺaçãoʺ e dentro dela, a ʺcomunicaçãoʺ). Em verdade, o Direito é algo que ao homem cumpre
produzir, pela necessidade de ordenar aquilo que por si mesmo não se ordenaria com
efetividade e eficácia suficiente – a convivência social.
32
ARENDT, Hannah. 1979. "As origens do totalitarismo". trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro
33
SACHS, Ignacy. 1998. "Direitos Humanos, Desenvolvimento e Cidadania".
34
Juizes, promotores públicos, delegados de polícia, defensores públicos, advogados etc.
35
GRAMSCI, Antonio – op.cit.
36
O operador do direito é um dos muitos operadores sociais.
21
Sentido do Direito ‐ O Direito só é indispensável pela necessidade de se encontrar
uma solução impositiva para os conflitos individuais e sociais. Se assim é, essencial para a
compreensão do jurídico se torna o conhecimento daquilo que leva os homens ao conflito.
Grosso modo, poder‐se‐ia identificar como razões do conflito a ser dirimido pelo Direito:
9 os nossos desejos e necessidades humanas;
9 os nossos interesses de classes e
9 a incapacidade individual e social de satisfazê‐los plenamente,37
Essa última razão do conflito se manifesta (*) quer pela inelimitável interdependência
entre os homens, (*) quer pela escassez de bens apropriáveis ou produzíveis em quantidades
e condições que se fazem necessárias, (*) quer pela prevalência exploratória de interesses
hegemônicos de classes ou grupos. Esse último ponto justifica que se tente fazer da contra‐
hegemonização jurídica, isto é, do recurso ao Direito, um instrumento válido naquela citada
luta emancipatória da infância e adolescência – o conflito a ser dirimido entre o mundo
adulto e o mundo infantil e adolescente.
Direito e Poder – Mas, é impossível se negar a correlação do poder jurídico com o
poder político e econômico, a funcionar como condicionante dessa instrumentalização do
Direito, a serviço da emancipação e extensão da cidadania de crianças e adolescentes. A
realidade vincula necessariamente o poder jurídico ao poder político. E essa simbiose precisa
ser explicitada e aprofundada: o Direito é um discurso do poder. Jurisdicionaliza‐se a decisão
política e assim se institucionaliza um sistema jurídico. Todo o Direito é socialmente
construído, historicamente formulado, atendendo ao que é contingente e conjuntural do
tempo e do espaço em que o poder político atua e à correlação de forças efetivamente
contrapostas na sociedade em que ele – poder político – se institucionalizou. Para se entender
o Direito não basta conhecer e interpretar a norma jurídica, em si. É preciso se conhecer e
entender minimamente esse jogo político e econômico e os seus discursos justificadores. É
preciso ir mais fundo: aos paradigmas fontais. 38 O poder político‐econômico que cria o
Direito o faz necessariamente privilegiando um ou alguns segmentos sociais em detrimento
de outros. Mas, o faz também na justa medida que o equilíbrio de forças socialmente
contrapostas possibilita. O Poder pode... Mas nem tanto pode. A institucionalização de uma
ordem jurídica justa (nacional ou internacional) não é tarefa de juristas, mas sim de políticos.
Ou melhor, é tarefa nascida do confronto das forças sociais contrapostas, na procura da
satisfação dos seus interesses e na real moldura das expectativas institucionalizadas: o
jurídico coabita inevitavelmente com o político, o econômico e o ético. 39 O sistema de
37
CALMON DE PASSOS, J.J. – op.cit.
38
Daí o fracasso de tantas "capacitações" (?) de agentes públicos, operadores do chamado "sistema de garantia dos direitos
de crianças e adolescentes" (conselheiros tutelares, conselheiros dos direitos, educadores, agentes de saúde, trabalhadores
sociais, policiais, magistrados etc.): um "conhecer" superficial e formalista do Estatuto da Criança e do Adolescente,
meramente alienador e não conscientizador.
39
CALMON DE PASSOS, J.J.
22
dominação ‐ que, em última análise, todo ordenamento econômico, político e, portanto
jurídico institui ‐ só se faz operacional se alcançar um ʺmínimo de adesão dos dominadosʺ. Esta
adesão é construída à base de uma fundamentação legitimadora do poder, o que se dá de
modo indireto, via ideologia. 40 O Direito e o Poder (político‐ideológico, econômico e
cultural) estão intimamente relacionados. Não há como fugir disso. CALMON DE PASSOS
ensina a esse respeito: “O Direito é a técnica pela qual se dá a integração entre esses três poderes
(político, econômico e ideológico), de modo a se lograr segurança e operacionalidade à ordem social
impositivamente implementável (...) Apenas é possível, ao Direito, emprestar alguma segurança e
previsibilidade à convivência social, mediante a decisão de conflitos, por um processo previamente
institucionalizado, dentro de expectativas compartilhadas pelo grupo social, com o que contribui para
consolidar e operacionalizar um sistema de produção e uma organização política que o precedem e lhe
ditam a fisionomia e o destino (...)”41. Autores como ARNOLD e RADBRUCH42 consideram o
direito como um elemento de primeira importância na conformação cultural de uma
sociedade. Enquanto HELLER43, avançando ainda mais nesse sentido, entendia que o “direito
é a forma mais avançada de domínio”. No que concorda GARCIA MENDES: “se este último
(autor) está certo em termos gerais, isto é, para as formações sociais do capitalismo central, tanto
passadas como contemporâneas, o é com muito mais intensidade no contexto do capitalismo periférico;
neste caso, ficou mais que demonstrada a importância e sobre‐determinação da esfera política, esfera
política que está composta por dois níveis claramente diferenciáveis, ainda que nem sempre
diferenciados, o estritamente político (o Estado) e o estritamente jurídico (o direito)”.44
Mitos a serem desfeitos quanto ao Direito ‐ Assim um mito basilar precisa ser
desfeito:
9 “A normalização jurídica escapa de qualquer contaminação político-econômica-
ideológica, existindo, pois, ‘Direito Puro’, ordem jurídica neutra. Em sendo assim, a norma jurídica
se basta, em si”.
E, em conseqüência disso, outros mitos decorrentes precisam mais ser descontruídos,
para possibilitar o enfrentamento dos conflitos sociais:
9 “A normalização jurídica é o saber único ou prevalecente e reducionista de um
determinado fenômeno social”;
9 “A normalização jurídica é a solução única ou prevalecente e desarticulada para uma
determinada questão social”.
Todos esses mitos impossibilitam ou dificultam o enfrentamento efetivo de
determinadas questões sociais, que nascem desses conflitos de interesses econômicos,
políticos e ideológicos.
40
Entendendo-se aqui ideologia como representação da realidade que justifica o sistema de poder
41
in “Direito, Poder, Justiça e Processo”. 1999
42
ARNOLD, Willhelm & RADBRUCH, Gustav
43
apud GARCIA MENDES, Emilio
44
GARCIA MENDES, Emílio in “Autoritarismo y Control Social”. 1987
23
Efetividade e eficácia das normas jurídicas ‐ Por que legislações, reconhecidas como
avançadas, que procuram regular, da melhor maneira possível, relações humanas e ao
mesmo tempo pretendem funcionar como vetor na evolução do pensamento e da prática,
coletivos, muitas vezes dão a impressão de ʺineficazesʺ (fenômeno jurídico) e/ou ʺinefetivasʺ
(fenômeno metajurídico) ? Por que, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente tem
dado essa falsa impressão, a grandes segmentos da opinião pública, mesmo uma década
depois de sua promulgação? De qualquer maneira, a aplicação defeituosa ou a baixa
aplicação de uma lei podem levar seus destinatários à idéia de que aquela determinada
legislação é inadequada social e eticamente, perdendo essa norma, conseqüente e
paulatinamente efetividade político‐institucional e eficácia jurídica. Para efeito desta análise,
considerar‐se‐á que a efetividade político‐institucional de uma lei decorre,
• da sua capacidade real de provocar uma cadeia de reordenamentos normativos
decorrentes e satisfatórios, em nível local (estadual e municipal), com a edição de leis e normas
regulamentares específicas, a partir das normas gerais do Estatuto, p. ex.;
• da sua capacidade real de deflagrar um processo irreversível de reordenamento
institucional, onde a máquina do Estado, em nível federal, estadual e municipal, venha a ser
adequada ao novo paradigma político‐jurídico, com a implantação e implementação/fortalecimento
de serviços/atividades e programas/projetos públicos, responsáveis pela satisfação das necessidades
básicas de crianças e adolescentes, através da promoção e defesa dos direitos correspondentes;
• da sua capacidade real de levar a uma flagrante melhoria do atendimento público
direto a essas necessidades e direitos, que resulte na qualificação da demanda e do serviço público45.
Igualmente para esta análise, considerar‐se‐á que a eficácia jurídica de uma lei decorre:
• da sua aplicabilidade a casos em concreto;
• da sua imperatividade, impositividade e coercitividade;
• da imprescindibilidade e exigibilidade dos direitos que ela reconhece, constitui e
assegura.
O Direito apenas ʺelaboradoʺ, enquanto ʺenunciado juízo de valorʺ, ainda não é o Direito –
é de todo impotente, ʺdesarmadoʺ. O Direito é o que faz dele seu processo de produção, em
concreto. O Direito é eficácia, a cada ato de sua produção e concretiza‐se com sua aplicação.
As leis carregam em si o germe da inefetividade político‐institucional e da ineficácia jurídica
quando lhes faltam, em primeiro lugar, legitimidade social. Isso acontece, por exemplo,
quando essas normas jurídicas são outorgadas, quando a produção do Direito se faz de
maneira heteronômica, provocando um estado de anomia, de resistência e desrespeito à
ordem jurídica posta, isto é, ao direito positivo estatal vigente. Igualmente, as leis carregam
em si o germe da inefetividade político‐institucional e da ineficácia jurídica, quando se
limitam a estabelecer apenas princípios programáticos, conceitos abstratos e quando não
prevêem instrumentos que operacionalizem sua implementação (mecanismos e espaços
públicos), isto é, quando não permitem a construção de um sistema de garantia dos direitos.
Quando não isso, os textos normativos também são portadores da sua própria inefetividade
45
GOMES DA COSTA, Antonio
24
político‐institucional e ineficácia jurídica, quando contém igualmente o gérmen da
ʺsobrecargaʺ, isto é, quando o Direito traz mais “mundo exterior” para dentro de si do que é
capaz de suportar. Uma ʺsobre‐politização e uma sobre‐socialização da norma jurídica” 46 – um
excesso. O Direito não existe para ʺcriar mundo exterior”, mas normalizar as condutas sociais
vividas nesse mundo exterior a si, a partir de uma utopia, de determinados valores. Mas, é de
se reconhecer minimamente que se está hoje vivendo um tempo de transição paradigmática:
a emancipação social de segmentos sociais em desvantagem (entre eles, as crianças e os
adolescentes) é uma aspiração óbvia, almejada e em processo de construção. Um valioso
instrumento de mediação e de contra‐hegemonização pode ser a luta pelos Direitos
Humanos. Nesse sentido, necessário se torna construir uma contra‐hegemonia jurídica em
favor das necessidades e dos desejos, de crianças e adolescentes, a partir daí, tornados
direitos e liberdades fundamentais, exigíveis juridicamente.
B. DIREITOS HUMANOS DE GERAÇÃO
Direito dos Direitos Humanos ‐ Em função disso, a formulação dos instrumentos de
promoção e proteção de direitos da criança e do adolescente, isto é, da normativa jurídica
(nacional e internacional) e a sua aplicação em concreto através do dos mecanismos de
promoção e proteção desses direitos, isto é, do aparato estatal47 ‐ ambas devem ser norteadas
pelos princípios universais e indivisíveis do Direito dos Direitos Humanos.
Dimensão jurídica estrita das relações geracionais ‐ Essa visão crítica da efetividade e
eficácia do Direito e a opção política pelo tratamento das relações geracionais sob a ótica do
Direito dos Direitos Humanos – esses dois pressupostos permitem estabelecer melhores
perspectivas estratégicas, a serviço dos interesses dos ʺdominadosʺ, no caso deste estudo, das
crianças e dos adolescentes. Em função disso, necessário se torna trabalhar nas lacunas do
discurso e da prática ideológica, produzidos pelo poder político e econômico dominante,
hegemônico, por força do atual processo de ʺmundialização do mercado” e de reforço do
modelo cultural adultocêntrico, machista‐patriarcalista, homofóbico, racista, ocidentalista. É
preciso se ter cuidado para que um determinado tipo de discurso jurídico (no fundo,
meramente ideológico e reprodutor do discurso da mundialização do mercado e do
adultocentrismo) não seja produtor de um direito positivo, que venha normatizar as
relações de geração, a partir da ótica daqueles a que interessa manter a situação de
dominação do mundo adulto sobre o mundo infanto‐adolescente – de violência, exploração,
abusos, discriminações, negligências. Diante do atrás exposto e questionado, é de se concluir
que qualquer esforço para (a) se levantar e analisar (conhecer) a dimensão jurídica das
relações de geração, e para (b) se produzir/elaborar uma normativa nacional, internacional,
46
HABERMAS, J.
47
Visão ampliada do Estado, onde se incluem tanto a "sociedade política" (governo dos funcionários") quanto a "sociedade
civil organizada" (cfr. Antonio GRAMSCI)
25
multinacional/regional, visando prevenir e combater todas as formas de dominação contra
crianças e adolescentes – esse esforço tem seus riscos, desafios. Mas, como neutralizar esses
riscos? Em primeiro lugar, aceitando‐se o desafio! Não fugindo do risco! Reconhecendo‐se
que a ʺordem de geraçãoʺ (ou ʺsistemaʺ) está a serviço de determinados interesses sócio‐
econômico‐políticos‐culturais48 ‐ isso significa que esse bloco dominante, para se manter,
depende da construção de uma aparente legitimidade, apelando para uma forma constante e
permanente de coação, assegurando sua manutenção como hegemônica. Os blocos
dominantes, na História, sempre sustentaram sua hegemonia econômico‐político também na
construção de uma hegemonia cultural e de uma hegemonia jurídica49. Aí o risco: a solução
da produção de um novo Direito que normatize as ʺrelações de geraçãoʺ pode resultar numa
normatização jurídica que tenha efeitos perversos de regular‐controlar, numa linha
assistencialista‐repressora. E não de emancipar a criança e o adolescente50 numa linha de
promoção social, de proteção jurídico‐social e de extensão de sua cidadania. Aos blocos
dominantes (e suas franjas subterrâneas, marginais e criminosas) interessam, pois a
construção de sua hegemonia jurídica, reforçadora da sua hegemonia econômica, social,
política e cultural. Dois sinais são claras expressões das possibilidades de sucesso da
tendência à hegemonização jurídica sorrateira por parte de certos blocos dominantes, em
nosso contexto brasileiro e latino‐americano, especialmente:
• A aguda escassez de trabalhos críticos no campo do jurídico: a discussão tem sido
prevalentemente ʺabstrata, formal, dogmáticaʺ; numa linha mais de citação e exegese de textos legais,
isto é, positivista. Uma discussão a justificar a manutenção do status quo existente ou a mera reforma
epidérmica de leis. Em disciplinas como a sociologia, a psicologia e em menor medida na economia, o
pensamento crítico é hegemônico ou tenta mais fortemente sê‐lo. Talvez, tudo isso se deve muito à
composição e função das nossas Faculdades de Direito.
• A baixa efetividade e eficácia da normativa internacional e nacional: quando a norma
jurídica se afasta da utilidade instrumental de garantir a supremacia desses multicitados ʺblocos
dominantes” 51 , ela perde muito essa capacidade de se tornar efetiva politico‐institucionalmente e
eficaz juridicamente.
Se não se conseguir reverter esse quadro apresentado, não se poderão criar novas e
mais libertadoras condições sociais e políticas para a produção do Direito, para a reforma e
ampliação da legislação nacional e elaboração de normativa multinacional e internacional. Só
interessa a ʺjurídicialização das relações geracionaisʺ (crianças/adolescente, jovens e idosos) se os
movimentos e organizações sociais tiverem capacidade de fazer prevalecer sua reflexão e
48
Mundialização do mercado, ajustes estruturais, enfraquecimento do poder nacional, androcentrismo etc.
49
"A inexistência de hegemonia plena en el plano de lo económico e do lo político-ideológico, en la relación entre el bloco
dominante e los sectores populares, puede ser atenuada en parte de sus consecuencias negativas para los primeros por la
existencia de relaciones hegemónicas en el plano de lo jurídico" – GARCIA MENDEZ, Emilio. 1987: "Autoritarismo y
control social". Buenos Aires: Ed. Hammurabi
50
E igualmente qualquer outro segmento ou grupo vulnerabilizado ou desabilitado ("handicapé") ou de alguma minoria
(nacionais, culturais, étnicas e lingüísticas).
51
No caso da "violência sexual", por exemplo, identificar-se-iam blocos dominantes, economicamente capitalistas,
politicamente neo-liberais, culturalmente androcêntricos/patriarcais, sexualmente homofóbicos, etnicamente arianos,
esteticamente efébicos etc
26
prática. E poderem se apropriar e se beneficiar desse processo ‐ num contexto de correlação
de forças, de construção de contra‐hegemonia, na ótica do Direito dos Direitos Humanos.
Será que a norma jurídica e seus espaços públicos produtores (legislativo) e aplicadores
(judiciário e administração pública) não podem ser vistos e trabalhados também como
ʺinstâncias e mecanismos de mediaçãoʺ? Ora, obter o ʺconsenso socialʺ, a ʺharmonização52 entre os
cidadãosʺ é aspiração de muitos governantes para alcançar a legitimidade de suas decisões
político‐administrativas: a busca da almejada ʺpaz socialʺ. Mas, com isso, realmente só se está
se visando (sob o manto desse discurso escamoteador) a neutralização das ações dos
movimentos sociais organizados, evitando‐se que os interesses, necessidades e desejos da
população infanto‐adolescente se tornem de alguma maneira hegemônicos. Na verdade, o
que essa ʺpaz socialʺ só quer proteger não são esses interesses contra‐hegemônicos de todos os
ʺdominadosʺ, mas os interesses dos grupos que detém a hegemonia econômica, política,
cultural e jurídica, numa determinada conjuntura. ʺA harmonização pretendida é vista como
neutralidade e a neutralidade apresentada como harmonização, mas numa relação de forças em que
predominam os interesses do capital, a longo e não raro em curto prazoʺ 53. Dessa maneira os
problemas sociais não conseguem ser visto de forma estrutural, mas apenas como problemas
pontuais, isolados, conjunturais – ʺdisfuncionalidades sociaisʺ? E a solução desses problemas é
entendida como fácil, acima dos reais conflitos sociais. E para tanto, necessitar‐se‐iam apenas
de algumas instituições públicas como verdadeiros ʺaparelhos funcionais”, capazes de ʺresolver
paliativamenteʺ os problemas sociais. Muitas vezes, a partir dessa visão factual e casuística,
entre nós, assim são tratadas questões como a do trabalho infantil, da violência intrafamiliar,
da exploração sexual‐comercial, do extermínio e da tortura, do conflito com a lei etc. etc. Há
um certo perigo dos órgãos do ʺsistema de justiça e segurançaʺ e de entidades de defesa de
direitos humanos se tornarem esse ʺaparelho funcionalʺ, na busca de falsos consensos,
escamoteando os conflitos de interesses reais da vida social e tentando essa ʺharmonizaçãoʺ:
buscando uma ʺpaz dos cemitériosʺ. De outra parte, como bem alerta DONIZETI54, há o perigo
de se cair no oposto e se ver nas instituições públicas meramente um ʺaparelho ideológico do
Estado”, ou seja, instrumentos reprodutores de relações sociais, reprodutores do poder que se
encontra monoliticamente nas mãos das classes dominantes, a seu serviço exclusivo, de
direção, dominação e exploração das classes subalternas. Mas, há a possibilidade de uma
terceira visão. Apesar do Estado e suas instituições darem prevalência aos interesses dos
grupos que detém as hegemonias sociais, econômicas, cultural, política e jurídica num
determinada conjuntura, existem todavia algumas brechas nesse poder, algumas ʺinstâncias
de mediaçãoʺ, onde se pode fazer a luta pela incorporação de determinados interesses dos mais
fracos – no caso em discussão dos interesses de crianças e adolescentes. A depender de certa
correlação de forças. Ensina FALEIROS: ʺO Estado mediatiza as relações sociais, segundo a
correlação de forças da sociedade civil. Ou seja, ele não está somente em função dos interesses das
52
No sentido do positivismo sociológico de Max Weber
53
FALEIROS, Vicente. 1980. "A Política Social do Estado Capitalista"
54
Op. cit.
27
classes dominantes, podendo também integrar, aceitar, ou transformar certos interesses das classes
dominadas” ∙ No caso, por exemplo, isso ocorreria com a incorporação e defesa dos interesses
da criança e do adolescente, privilegiando‐os como proteção de seus Direitos Humanos –
direitos fundamentais, econômicos, sociais e culturais. E se poderia construir politicamente
ʺinstâncias e mecanismos de mediaçãoʺ, em favor dos interesses da criança e do adolescente,
priorizados como Direitos Humanos, a partir dos operadores sociais, inclusive dos
operadores do direito? Verdadeiramente, só será possível se construir essa capacidade real
de ʺmediatizarʺ nesses moldes, se incorporada for a essa intervenção jurídica, uma sociedade
civil forte, organizada/mobilizada, política e tecnicamente qualificada, realmente
participativa. E nesse jogo, os fóruns, frentes e demais instâncias não institucionais da
sociedade têm um rico papel a exercer, verdadeiramente de ʺdireção culturalʺ, de formação de
quadros para as diversas organizações sociais, fortalecendo principalmente aquelas que têm
compromissos reais com as lutas emancipatórias.
Igualdade ‐ Deve‐se eleger, como princípio basilar para o processo de contra‐
hegemonização jurídica (a partir da ótica do Direito dos Direitos Humanos), os princípios da
“igualdade perante a lei” (formal) e da “igualdade na lei” (material). Eles nortearão todo o
reordenamento normativo e institucional.
Igualdade formal ‐ O princípio da igualdade formal (“todos são iguais perante a lei”)
exige a aplicação, sem exceção, do direito vigente, sem consideração da pessoa: todos são
obrigados e autorizados pelas normas jurídicas de forma igual. Ou seja, é proibido a todas as
autoridades estatais não aplicar direito vigente em favor ou em detrimento de algumas
pessoas. Esse é o princípio da universalização das normas jurídicas tendo como destinatário
todo e qualquer cidadão (inclusive, crianças e adolescentes), enquanto “sujeito de direitos”.
Nesse “significado negativo”, a igualdade formal só deixa espaço para a aplicação
absolutamente igual da norma jurídica, sejam quais forem as diferenças e as semelhanças
constatadas entre os sujeitos e as situações envolvidas – sejam homens, mulheres,
heterossexuais, homossexuais, transgêneros, crianças, adultos, jovens, negros, brancos,
índios, ciganos, soropositivos, portadores de necessidades especiais, marginalizados,
mendicantes, delinqüentes ou infratores, etc. Vedado fica assim o reconhecimento e a
garantia de direitos que resultem em discriminação, exploração e violência em razão da
classe social, da idade, do gênero (inclusive, orientação sexual), da raça do sujeito, da
situação socioeconômica por exemplo. O princípio da igualdade formal faz prevalecer a
identidade de todos, como cidadãos, de maneira uniforme, independentemente de suas
diversidades, de suas identidades enquanto crianças, mulheres, homossexuais, negros etc.
Igualdade material ‐ Já o princípio da igualdade material, tem um conteúdo
afirmativo, e exige a diferenciação no regime normativo jurídico em face de sujeitos e
situações distintas, diversas: respeito à diversidade na igualdade. Só aquilo que é exatamente
28
igual deve ser tratado igualmente. Fora daí, a verdadeira “igualdade será tratar‐se desigualmente
seres desiguais”.55 A questão é a seguinte: quais fatos não são iguais e por isso devem ser
regulados desigualmente? Quais os critérios para identificação de semelhanças e diferenças,
para efeito de equiparação ou diferenciação do tratamento jurídico? Para isso, temos que
lançar mão do conceito de “arbitrariedade”: isto é, indagar‐se se existe uma diferenciação
arbitrária no tratamento desigual, quando da formulação e da aplicação do direito? Ou há
uma justificação para tanto? Uma “razão razoável” a ser levantado, caso a caso? O princípio da
igualdade material faz prevalecer a diversidade de cada um como pessoas com identidades
próprias. No Brasil, a Constituição federal de 1988, em princípio, coloca como um dos
objetivos fundamentais da nossa República a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação”. (art.3, IV) e afirma que ʺtodos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art.5). Assim, é de se concluir que, em
especial, pra isso se efetivar, a legislação infraconstitucional, o Estado e a sociedade deverão
se propor prioritariamente a reconhecer e garantir de modo afirmativo os direitos dos
segmentos sociais mais susceptíveis de discriminações, explorações e violências: mulheres,
crianças, adolescentes, idosos, negros, índios, por exemplo. Particularmente, de relação às
relações de gênero, a norma maior, determinou claramente: “homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações” (art. 5, I). E, em decorrência disso, estabelece mais: “os direitos e deveres
referentes ã sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. A legislação
civil e penal brasileira aos poucos vem se adaptando a essas novas normas constitucionais
criando sistemas de garantia dos direitos da mulher, protegendo‐as em especial contra as
diversas formas de opressão – em especial as variadas formas de violência sexual. Já, no
tocante à infância e adolescência, a Constituição privilegiou o reconhecimento e a garantia
dos seus direitos, acolhendo nos seus artigos 227 e 228, de maneira precisa e fiel, a Doutrina
da Proteção Integral, consagrada pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança, reconhecendo, à infância e à adolescência, os direitos e liberdades fundamentais de
todo o cidadão (artigo 5° – loc. cit.) e mais alguns outros direitos especiais, a serem atendidos
com prioridade absoluta.
Uma luta pela superação de paradigmas ‐ Mas é preciso cuidado para não se cair em
armadilhas engessadoras e alienadoras, quando nos apropriamos do conceito liberal de
“igualdade”, puramente formal, para tentar dar‐lhe novo alcance, possibilitando o respeito à
diversidade e o exercício da criatividade, nas relações entre gerações (como nas relações entre
gêneros e raças). O projeto maior, a utopia buscada, deverá ser o de superação de todos os
paradigmas tradicionais e justificadores das diversas formas de dominação, mesmo
escamoteadas sob o manto da “igualdade meramente formal”: dever‐se‐á garantir a desejada
“igualdade de direitos”, sem prejuízo da “liberdade de ser diferente e singular”. A radicalidade está
em ir além da tradicional “igualdade de direitos”, isto é, está em buscar se assegurar a
55
BARBOSA, Rui
29
possibilidade de se “inventar e reinventar formas de ser, estar e se relacionar, descobrindo maneiras
de ser e de combinar corpos sem caminhos pré‐mapeados” (CASTRO. 2003). Especificamente na
luta pela emancipação da população infanto‐adolescente, necessário se torna que se garanta
tanto sua “identidade de direitos”, isto é, sua condição de “sujeito de direitos”, quanto sua
“liberdade de ser diverso e singular”, ou seja, sua condição de pessoa em crise, quanto à sua
essência humana e identidade geracional.
30
IV ‐ INSTRUMENTOS DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DOS
DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, ENQUANTTO
DIREITOS HUMANOS DE GERAÇÃO.
A ‐ INSTRUMENTOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS DE PROMOÇÃO E
PROTEÇÃO: A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA
O reconhecimento e a garantia dos Direitos Humanos de Geração ‐ Tudo isso
implica, inicialmente, em se reconhecer, consolidar e garantir especificamente os Direitos
Humanos de Geração (em particular, os direitos de crianças e adolescentes); transformando‐
se “moral rights” em “legal rightsʺ, isto é, transformando afirmações de interesses políticos dos
movimentos pela infância, em direitos positivados pelo Estado e pela ordem mundial. Essa a
grande luta no próprio campo dos Direitos Humanos, em geral: seu reconhecimento e
garantia pelo direito internacional e pelo direito nacional, através sua formulação normativa
e instituição de espaços e mecanismos de proteção. Emblematicamente, em nível mundial,
isso significou a superação da Declaração Mundial pela Criança pela Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos da Criança (1989). E, em nível nacional, a superação das ʺpráticas
alternativas de atendimentoʺ e da ʺaplicação alternativa do direitoʺ, pela promulgação do Estatuto
da Criança e do Adolescente (lei federal 8.069/90). Em ambos os casos, superações
confirmatórias, sem propriamente negação. Em resumo: a novidade do discurso jurídico,
baseado na ʺdoutrina da proteção integral56ʺ está na qualificação do atendimento de
necessidades e desejos de crianças e adolescentes, como atendimento ou garantia de direitos ‐
exatamente aí ele faz diferença, na prática. O novo essencial está no encarar a ʺsatisfação de
necessidades e desejosʺ sob a ótica do Direito dos Direitos Humanos, mais especificamente
como Direitos Humanos de Geração. Mas, às vezes, essa afirmação não tem um conteúdo
mais consistente pela falta de um discurso crítico sobre o Direito, em si.
A chamada “proteção integral”: cuidado e responsabilidade ‐ A Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança convida a assegurar as duas prerrogativas
maiores que a sociedade e o estado devem conferir à criança e ao adolescente, para
operacionalizar a proteção dos seus Direitos Humanos: “cuidados” e “responsabilidades”. As
crianças e os adolescentes têm direitos subjetivos e exigíveis, à liberdade, à dignidade, à
integridade física, psíquica e moral, à educação, à saúde, à proteção no trabalho, à assistência
social, à cultura, ao lazer, ao desporto, á habitação, a um meio ambiente de qualidade e
outros direitos individuais indisponíveis, sociais, difusos e coletivos. E conseqüentemente se
postam, como credores desses direitos, diante do Estado e da sociedade, devedores que
56
BOLBI, John
31
devem garantir esses direitos. Não apenas como atendimento de necessidades, desejos e
interesses, mas como Direitos Humanos indivisíveis, como os qualifica a normativa
internacional ‐ como direito a um desenvolvimento humano econômico e social. Mas, são
pessoas que precisam de alguém, de grupos e instituições, responsáveis pela promoção e
defesa da sua “participação, proteção, desenvolvimento e sobrevivência”, responsáveis por seu
cuidado, em especial. Em seu preâmbulo e em muitos dos seus artigos a Convenção, define
os direitos da criança realmente num sentido próximo da Declaração dos Direitos da Criança,
da ONU, em 1959, apenas como direito a uma proteção especial: “a criança tem necessidade de
uma proteção especial e de cuidados especiais, notadamente de uma proteção jurídica, antes e depois de
seus nascimento”. Todavia, em outros pontos, a Convenção avança e acresce a esse “direito à
proteção especial”, outros tipos de direitos que só podem ser exercidos pelos próprios
beneficiários: o direito à liberdade de opinião (art.12), à liberdade de expressão (artigo 13), à
liberdade de pensamento, de consciência e de religião (artigo 14), à liberdade de associação
(art.15). Direitos que pressupõem certo grau de capacidade, de responsabilidade, isto é, que
pressupõem sujeitos de direitos como titulares. As crianças e os adolescentes são, eles
próprios, seres essencialmente autônomos, mas com capacidade limitada de exercício da sua
liberdade e dos seus direitos. Responsáveis por seus atos, por sua vida – mas em nível
diverso que o adulto. Têm deveres, portanto.
Falso antagonismo entre princípios da Convenção ‐ Difícil, porém, tem sido conciliar
o pólo do “cuidado” (proteção especial) e o da “responsabilização”; principalmente porque se
firmam em dois conceitos, vistos equivocadamente como antagônicos e inconciliáveis:
criança e o adolescente, enquanto (a) sujeitos de direitos e, simultaneamente, (b) pessoas em
desenvolvimento. Principalmente, quando se trata de crianças e adolescentes em crise, isto é,
em desvantagem social (handicap), como os discriminados e negligenciados em razão de
gênero, orientação sexual, estado de morbidade, raça, etnia, origem geográfica etc.), em
situações de vulnerabilidade social (risco pessoal e social, como a exploração sexual, os maus
tratos intra‐familiares, a tortura e custódias ilegais, o abandono, o trabalho infantil etc.) ou
em conflito com a lei penal (infratores). Difícil se torna quando se trata da infância e da
adolescência que foi negligenciada, discriminada, explorada, violentada, oprimida e
marginalizada. Quando se trata daqueles que ocupam as manchetes da mídia e que
provocam certo alarme social. Óbvio que é bem mais fácil falar‐se em “direitos de crianças ou
adolescentes e dever do estado ou da sociedade”, quando se trata da criança e do adolescente, em
tese – do nosso “bom menino”, idealizado! A dificuldade da promoção e da garantia do direito
da infância e da adolescência reside, quando a realidade é má, quando as circunstâncias de
vida dos seus titulares incomodam‐nos, ameaçam‐nos, agridem‐nos. Aí o discurso
epistemológico e político‐institucional de proteção (promoção/garantia) de direitos, firmado
na Convenção, torna‐se, para o senso comum, pretensamente, inócuo, descolado da realidade
e perigoso: mil meninos‐de‐rua seriam capazes de provocar maior escarcéu na opinião
pública que 10 mil crianças e adolescentes fora da escola; por sua vez, os 21.500 adolescentes
32
infratores no Brasil nos fazem esquecer que estão num universo de mais de 19 milhões de
adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos (cfr. “Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei
‘Reflexões para uma Prática Qualificada” n CADERNO 01 ‐DCA‐SNDH‐MJ / org. Wanderlino
Nogueira Neto / 1998). Não há realmente como escapar à ambigüidade permanente do papel
dos pais, dos educadores, dos trabalhadores sociais, da mídia, dos magistrados, da
sociedade, do Estado, quando se trata dessas situações de “crise”, em face da poderosa carga
de preconceito social que cerca a questão. A tentação de “vitimar”, de “execrar”, de
marginalizar se torna sufocante e tolda o senso crítico dos operadores sociais. E aquilo que se
chama de “paradigma civilizatório” da Convenção é facilmente obliterado e torna‐se de
operacionalização difícil e pouco praticada (nunca, impraticável...).
Proteção integral, proteção especial e tutela ‐ Todas as crianças e os adolescentes
precisam de “proteção integral”, intrinsecamente. Mas, em determinadas circunstâncias,
situações, condições, momentos, quando vulnerabilizados ou em desvantagem social,
algumas crianças e alguns adolescentes exigem medidas especiais de proteção ou ações
afirmativas em favor do seu direito (“discriminações positivas”). Em outras, quando em
conflito com a lei penal, exigem medidas (sancionadoras) socioeducativas. As necessárias
limitações ao exercício de seus direitos devem ser entendidas como estratégias para garantir
a plenitude desses direitos. Isto é, limita‐se a autonomia deles para assegurar a plenitude da
sua cidadania e não para torná‐los menos ‐ cidadão, cidadãos de segunda classe, ainda mais
marginalizados. Não se protege uma pessoa como se protege um pequeno animal feroz e
perigoso ou um anjo – jaula ou altar. Não se pode esquecer que ela, de qualquer maneira, é
um ser que já tem todos os direitos de um cidadão e como tal deve ser tratado; revertendo‐se
todo e qualquer processo que resulte no abortamento da sua cidadania ! A eles há que se
garantir, além do mais, sua participação proativa e não meramente reativa, na construção de
sua vida, nos processos de extensão de sua cidadania. Sua participação igualmente de
alguma forma no desenvolvimento dos serviços e programas/projetos públicos,
administrativos e judiciais, governamentais e não governamentais, num sentido lato.
Duas posições ‐ Mas, tem‐se registrado a ocorrência de duas posições antagônicas
diante dessa questão dos direitos da criança e do adolescente, em função da Convenção.
Exatamente, reproduzindo o embate dos discursos e práticas hegemônicos e contra‐
hegemônicos, como se explanou, de maneira genérica, na primeira parte deste livro. Uns
acentuam exacerbadamente a necessidade da “tutela”, quase que anulando a autonomia
ontológica deles; vendo‐os como “vulneráveis” em si (não, vulnerabilizados socialmente), sem
responsabilidade alguma por seus atos – necessitando de verdadeira tutela da família, da
sociedade e do estado e de respostas puramente assistencialistas. Para esses, a triagem, a
apartação (institucionalização), o controle ainda é o melhor caminho: o lugar dessas crianças
e adolescentes é no “ninho ‐ gaiola”. Quando não por essa linha, outros por sua vez colocam
exageradamente a tônica da sua reflexão e da sua ação, numa “autodeterminação” quase que
33
absoluta da criança e do adolescente e repudiam como “castradoras” quaisquer formas de
proteção. E acabam, de um lado, anulando todo e qualquer resquício da
responsabilidade/poder parental e da responsabilidade do Estado e da sociedade pela
sobrevivência, pelo desenvolvimento e pela proteção da criança e do adolescente. Como se
fosse possível reeditar com sucesso absoluto, teorias e experiências como as de Summerhil,
Christiana, Children’s Liberationists, kiddy‐libbers e congêneres... Emblematicamente, dentro
dessa segunda perspectiva, para alguns trabalhadores sociais, conselheiros tutelares, juizes,
promotores, advogados, o direito de ir‐e‐vir implicaria no exercício ilimitado desse direito
por uma criança de 7 anos e assim passaria ela a ter um pretenso direito a estar na rua, em
qualquer circunstância, em qualquer local e a qualquer hora. Os adolescentes em conflito
com a lei, por sua vez, seriam apenas “inadaptados sociais”, irresponsáveis; susceptíveis
apenas de “encaminhamentos do serviço social”, de “psicoterapias”, de “análises”, de
profissionalização etc., sem qualquer medida jurídico‐judicial de caráter sancionador. E
assim, não se instaura procedimento apuratório de ato infracional, não se faz apreensão em
flagrante, fecham‐se os olhos a situações de abandono... Finge‐se uma liberalidade falsa de
relação a tudo isso ou assume‐se uma sensação de incapacidade e de impossibilidade.
Posições como essas contribuem para as práticas dos arrastões e banimentos ilegais e do
extermínio sistemático ou massivo de crianças e adolescentes, exatamente por sua
irrealidade. Dentro desse quadro ainda de deformações ideológicas do discurso
epistemológico e político‐institucional e das suas práticas decorrentes – por oposição àquela
primeira posição, alguns outros juizes têm aplicado medida socioeducativa de internação
(sanção excepcional e mais grave!) a adolescentes, não especificamente pela prática de uma
determinada infração, que se confunda com crime ou contravenção praticada por adultos.
Mas por sua condição de marginalidade, de desviante (não, conflito real) de relação à ordem
social local e às normas. Assim, sentenciam esses adolescentes por serem “useiros e vezeiros na
prática de atos anti‐sociais”, por viverem “em conflito com sua família e/ou com a comunidade local”,
por “não se encontrarem aptos para voltarem a sociedade, apesar de já terem cumprido a medida
socioeducativa imposta” e “para garantir a proteção dele e da comunidade pelo fato de ser
soropositivo” (sic). Isso, mesmo na vigência da Convenção como lei interna no Brasil. Da
mesma visão compartilham, pelo país afora, também, inúmeros conselheiros tutelares, com
práticas tuteladoras (no mal sentido!) e institucionalizadoras; vendo o abrigamento, por
exemplo, como a única medida especial protetiva adequada em situações de risco pessoal e
social. Constada uma situação dessa, qualquer que seja ela, determinam o encaminhamento a
abrigos... e quando nessa criança ou nesse adolescente sente‐se o “cheiro da marginalidade”
procuram‐se institucionalizações em “abrigos especiais”, que já começam a existir,
reconhecidamente como de “contenção máxima”. A criança ou o adolescente, em certas
circunstâncias mais difíceis, é visto como aquele que tem uma tendência nata a se “rebelar”
contra as medidas educativas, assistenciais, protetivas. E o conselho tutelar (quando não, o
juiz) reconhece uma verdadeira impossibilidade de atendimento eficaz e eficiente, fora dessa
linha “disciplinadora/sancionadora”. As medidas em meio aberto não conseguem convencer,
34
porque nelas não se investe, em nenhum sentido. Ainda há muito caminho pela frente para
que se desconstrua todo esse discurso ideológico que mascara o nosso discurso
epistemológico e político‐institucional da garantia do direito da criança e do adolescente e da
sua proteção integral. E muito mais caminho para que construa uma prática de atendimento
público eficaz e eficiente, que respeite os direitos das crianças e dos adolescentes e os
responsabilize por seus deveres; vendo‐os como cidadãos.
Riscos na efetivação das normas da Convenção ‐ Assim sendo, esse novo discurso do
Direito, oriundo da Convenção, atrapalha o tradicional discurso e prática dos “podres poderes”
(Caetano Velloso). E em função disso pode ser tornado de difícil operacionalização. Esse, o
risco. Mais das vezes se espera mais da Convenção sobre os Direitos da Criança do que ela
poderia dar, só pelo simples fato de ter sido ratificada por um Estado‐Parte e se tornado
direito interno ou pelo fato de ter sido promulgado e estar vigendo. A Convenção pode e
deve ser poderoso aliado num luta política pela garantia de parcela de poder para a infância
e a adolescência, em um novo modelo de convivência que não faça da criança e do
adolescente “coisas”, objetos, dominados. Aliado no processo de transformação da nossa
cultura institucional autoritária de relação aos reconhecidos por ela como “mais fracos”, dos
dominados. A Convenção, em verdade, teve o grande condão de tornarem indisponíveis e
exigíveis os direitos de todas as crianças e de todos os adolescentes. De colocá‐los, com
prioridade, na ordem do dia da agenda política mundial e particularmente de cada país que a
ratificou. De forçar a prevalência do seu interesse: do seu “melhor interesse”. O mais
importante dessa Convenção não terá sido a criação de “novos direitos” da criança e do
adolescente, propriamente. Mas a tônica que coloca na necessidade da efetivação da norma,
da implantação e implementação (operacionalização) de um sistema de proteção de direitos,
isto é, espaços públicos institucionais e mecanismos de promoção, controle e garantia
(proteção) dos direitos. Ela deve ser entendida como um apelo, uma incitação para que a
sociedade e os Estados signatários assegurem com efetividade esses direitos,
prioritariamente. De outra parte, um verdadeiro compromisso que assumem esses Estados
no sentido do cumprimento do seu dever de responsabilidade ‐ seu dever de proteger
integralmente suas crianças/adolescentes; garantindo‐lhes a sobrevivência, o
desenvolvimento e proteção especial. Mas sem que, com isso, se prescinda da participação
desses atores, a lhes garantir autonomia.
Em síntese ‐ Essa dicotomia entre autonomia/participação e capacidade
limitada/proteção é só uma aparente contradição criada pelo “discurso jurídico repressivo
menorista”: a Convenção quando fala em “direitos”, quer abarcar os direitos fundamentais da
pessoa humana, os direitos civis, os direitos específicos de proteção, os direitos sociais e
culturais e os princípios que fundam o direito (e por isso o purismo dos seus críticos é muito
mais ideológico que epistemológico). Ela quando nos induz a falar em capacidade limitada
para o exercício de direitos, absolutamente não nos quer induzir a reconhecer que a
35
incapacidade pode estar integrada na capacidade ou vice‐versa. Exatamente atacando essa
lacuna do discurso jurídico‐ideológico tradicional é que se poderá fazê‐lo desmoronar de
dentro para fora; demonstrando em nossas práticas de atendimento público (no sentido
amplo) que é possível conciliar e equilibrar proteção e participação. E isso é possível! A
Liberdade e o Direito são categorias axiológicas. Já a capacidade de exercício limitado de um
direito ou de fruição da liberdade é uma categoria operacional estratégica. Não se
contrapõem. Complementam‐se. Como salienta BAUMANTT57, a limitação e a liberdade
estão casadas, para o bem e para o mal e o seu conúbio só será dissolvido se fosse possível o
retorno à primeva e inocente unidade entre o homem e sua condição; tornando a natureza
novamente não problemática Há absoluta impossibilidade de conviverem liberdades sem
que limitações sejam postas ao seu exercício – isso vale inclusive para o mundo adulto,
quando discutimos as relações entre o Direito e o Poder. Inexiste, pois convivência humana
livre de relações de poder, nem há relação de poder em que se mostre ausente a
desigualdade dos que dela participam, nem há relação de poder a salvo dos binômios
dominador x dominado, controlador x controlado ‐ comando/obediência. A questão não é a
eliminação do poder nas relações entre o mundo adulto e o infanto‐adolescente, por exemplo.
Deveríamos nos esforçar para “domesticar o poder”; para “funcionalizá‐lo o mais adequado
possível, minimizando o negativo da pura dominação e fazendo excelente a sua dimensão de integração
e solidariedade” (RUSSEL) 58. A Convenção sobre os Direitos da Criança pode ser instrumento
valioso de domesticação do poder castrador e tutelar. Depende isso do seu nível de
realização, efetividade, na ordem internacional e nacional.
Falta a parte dos princípios
B ‐ LEGISLAÇÃO NACIONAL DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DOS DIREITOS
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES, ENQUANTO DIREITOS HUMANOS DE
GERAÇÃO: O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
O reconhecimento dos direitos ‐ Complementando as normas constitucionais,
programáticas e auto‐aplicáveis (artigo 226, 227 e 228 – CF), o Estatuto da Criança e do
Adolescente (lei federal 8.069, de 13 de julho de 1990), estabeleceu normas gerais para a
ʺproteção integral à criança e ao adolescenteʺ; reconhecendo‐os como ʺsujeitos de direitosʺ e
simultaneamente como ʺpessoas em condição peculiar de desenvolvimentoʺ. 59 A partir desse
ʺparadigma emancipatório e garantista de direitosʺ, o Estatuto reconhece e garante, em favor da
infância e da adolescência, Direitos Fundamentais, isto é direitos humanos positivados.
57
BAUMANTT, Zigmunt. 1977. “Por uma sociologia crítica”
58
RUSSEL, Bertrand. 1979. “O Poder”
59
Artigos 1° a 6° – Estatuto cit.
36
A realização dos direitos pela via político‐institucional – O Estatuto da Criança e do
Adolescente estabelece um sistema de promoção e proteção de direitos fundamentais,
visando a realização desses direitos, através de medidas administrativas e judiciais.
Norteando a implementação desse sistema garantidor de direitos, o Estatuto (artigo 88)
institucionaliza‐o em obediência aos seguintes princípios:
(a) prioridade absoluta para o atendimento direto de crianças e adolescentes;
(b) prevalência do melhor interesse da infância e da adolescência,
(c) descentralização política e administrativa do atendimento,
(d) participação popular paritária na gestão pública,
(e) manutenção de fundos públicos especiais,
(f) integração operacional, em determinadas circunstâncias de atendimento inicial
(adolescente infrator, p.ex.), e
(g) mobilização social.
Mais...
37
V ‐ MECANISMOS DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DOS
DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES, ENQUANTO
DIREITOS HUMANOS DE GERAÇÃO.
A ‐ MECANISMOS INTERNACIONAIS E INTERAMERICANOS DE
PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES,
ENQUANTO DIREITOS HUMANOS DE GERAÇÃO
Promoção e proteção de direitos humanos. Sistemas, internacional e regional
(interamericano) – A tradição do Direito Internacional dos Direitos Humanos, no mundo
inteiro, leva à utilização corrente da expressão ʺpromoção e proteção dos direitos humanosʺ, a se
fazer através dos “mecanismos” internacionais e nacionais próprios, com base nos
“instrumentos”60 respectivos. É só conferir‐se, a respeito o que estatuem esses instrumentos
(convenções, acordos, declarações e outros documentos internacionais ou multinacionais61 a
respeito). É só conferir‐se a farta doutrina em torno do Direito dos Direitos Humanos, no país
e no mundo62.
No mundo ‐ Em nível internacional, a promoção e proteção dos direitos humanos,
tanto gerais, quanto especiais (mulheres, crianças, refugiados, descapacitados etc.),
operacionalizam‐se através de organismos, grupos de trabalho, tribunais e relatores
especiais, no bojo do Sistema da Organização das Nações Unidas – ONU:
• Órgãos de controle e monitoramento da implementação dos instrumentos: Comissão
dos Direitos Humanos do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e sua Sub‐Comissão de
Promoção e Proteção de Direitos Humanos, Escritório do Alto‐Comissariado das Nações Unidas para
os Direitos Humanos, Comitê dos Direitos da Criança, Comitê contra Tortura, Comitê sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a
Mulher, Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial, Relatoria Especial sobre Tráfico de
Crianças e Prostituição, Relatoria Especial sobre Violências contra Mulheres, Grupos de Trabalho
sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, Grupo de Trabalho sobre Desaparições Forçadas e
Involuntárias, Mecanismos de Monitoramento da OIT para a Convenção 182.
60
Aqui usada a expressão no sentido de “normativa”:
61. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Pacto Universal dos Direitos Civis e Políticos (1966), Pacto
Universal dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas
Cruéis, Desumanos e Degradantes (1984), Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a
Mulher (1979), Convenção sobre a Eliminação de todas formas de Discriminação Racial (1965), Convenção sobre os
Direitos da Criança (1990), Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura (1985), Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Eliminar a Violência contra a Mulher (1994).
62
Por exemplo: PIOVESAN, Flávia. 1997: “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”. 2ª edição. São
Paulo. Max Limonad Ed.; CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. 1991. “A proteção internacional dos direitos
humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos”. São Paulo: Saraiva Ed.
38
• Órgãos de proteção e garantia63, quando da violação dos direitos: Corte Internacional
de Justiça (Haia – Países Baixos), Tribunal Internacional Penal (Roma) e Tribunais extraordinários
(como os tribunais penais internacionais para Ruanda, a ex‐Iugoslávia, por exemplo), e
• Órgãos de promoção de políticas e programas afirmativos: Fundo das Nações Unidas
para a Infância ‐ UNICEF, Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento da Mulher ‐ UNIFEM,
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, Organização
Internacional do Trabalho – OIT (Programa Internacional sobre a Eliminação do Trabalho Infantil),
Organização Mundial de Saúde ‐ OMS.
Nas Américas e Caribe ‐ Em nível regional interamericano e caribenho64, um sistema
de promoção e proteção especial de crianças e adolescentes desponta mais estruturado,
articulado e visível, podendo servir de modelo65 para o Brasil, atualmente, no afã precioso de
sistematizar, estruturar, organizar e fazer funcionar o sistema de promoção e proteção
(garantia) dos direitos de crianças e adolescentes66. Nesse sistema interamericano, a missão
do controle da efetivação dos direitos humanos está entregue à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos67 da Organização dos Estados Americanos – OEA, a quem compete fazer
recomendações aos governos dos Estados‐partes para adoção de medidas adequadas à
proteção desses direitos, preparar estudos e relatórios necessários, solicitar aos governos
informações e submeter um relatório anual à Assembléia Geral da OEA. Em resumo, se diz
que ela tem funções de “(a) conciliação, (b) assessoramento, (c) crítica, (d) legitimação, (e) promoção
e (f) proteção” 68. Se esgotadas todas as providências cabíveis, no âmbito da Comissão –
quando da violação de direitos humanos em concreto – o caso poderá ser submetido à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, ou pela Comissão ou por qualquer dos Estados‐partes.
Por sua vez, a garantia dos direitos humanos é papel da Corte Interamericana de Direitos
Humanos (São José da Costa Rica), órgão jurisdicional do sistema regional, que tem
competência consultiva (pareceres de interpretação das normas da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos) e contenciosa (sentenças com determinações aos
Estados‐partes para adoção de medidas restauradoras do direito violado ou pagamento de
justa compensação a vítimas). E, por fim, a promoção da realização dos direitos da criança e
do adolescente tem, nas Américas, como seus pólos mais importantes e efetivos, o Instituto
Interamericano das Crianças69, o UNICEF70, algumas agências das Nações Unidas de caráter
63
Judicialiformes
64
Outro sistema regional com elevado grau de efetividade é o europeu
65
Exatamente o que está acontecendo, se levarmos em conta que o start do NUDIN/Bahia tinha essa ótica originalmente
66
E isso deve valer também para os sistemas de proteção especial dos direitos da mulher, dos afro-descendentes, dos
índios, dos portadores de deficiências, das minorias eróticas (homossexuais, p.ex.)
67
Bem conhecida, entre nós, como “Comissão de Washington”, para onde muitos casos de violação de direitos da criança e
do adolescente já foram levados por organizações não governamentais brasileiras
68
FIX-ZAMUDIO, HECTOR. 1991: “Protección jurídica de los derechos humanos”. México: Comisión Nacional de
Derechos Humanos
69
Instituto Interamericano de los Niños - Montevidéu (Uruguai)
39
mais geral, mas com atuação também na área da infância e da adolescência71 e algumas
organizações não governamentais interamericanas ou internacionais com atuação regional72.
Compete a esses organismos formular e desenvolver, numa linha eminentemente estratégica,
uma verdadeira “política regional interamericana de promoção de direitos de crianças e
adolescentes”, mobilizando a sociedade em favor desses direitos, advogando politicamente
interesses determinados73, potencializando a participação de crianças e adolescentes74,
construindo parcerias e alianças75, apoiando institucionalmente determinadas intervenções
públicas76, construindo competências77 entre os agentes públicos e militantes do movimento
social, promovendo estudos e pesquisas, acompanhando e avaliando determinadas situações
etc.etc.
B. MECANISMOS NACIONAIS DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DOS DIREITOS
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES, ENQUANTO DIREITOS HUMANOS DE
GERAÇÃO.
54. Promoção e proteção de direitos. Conceituações e rotulações – Como se viu, a
tradição do Direito dos Direitos Humanos, no mundo, leva à utilização corrente da expressão
ʺpromoção e proteção dos direitos humanosʺ. É só se conferir convenções, acordos, declarações e
outros documentos internacionais ou multinacionais a respeito. É só se conferir a farta
doutrina em torno do Direito dos Direitos Humanos, no país e no mundo. É só conferir o
registrado capítulos atrás quando se falou da normativa e dos sistemas de proteção global
dos direitos humanos. A própria Constituição federal ao extinguir implicitamente o
malfadado ʺDireito de Menoresʺ, em seu artigo 24 , XV e no parágrafo 1 do mesmo artigo, não
cria nenhum outro ramo autônomo do direito e sim uma legislação sobre ʺnormas geraisʺ de
ʺproteção da infância e da juventudeʺ 78 (grifei) e determina que em determinadas circunstâncias
crianças e adolescentes fazem jus a uma ʺproteção especialʺ 79. Quando se trata de ramo
autônomo e sistemático a Constituição (art. 22) menciona como tal: ʺcivil, comercial, penal,
processual, eleitoral, agrário, marítimo (...)ʺ. Porém, os que lutam pelos direitos da criança e do
adolescente, geralmente, têm uma certa resistência ao uso dessa expressão ʺpromoção e
70
Através do seu Escritório Regional para a América Latina e Caribe - TACRO, sediado na Cidade do Panamá (Panamá) e
dos seus Escritórios-do-País, sediados em várias capitais das Américas, como Brasília, Santiago etc. e, em raros casos, de
Escritórios Zonais, como os de Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Salvador e São Paulo, no Brasil
71
OIT, OMS, UNESCO, UNIFEM, UNODC, PNUD etc.
72
Por exemplo, Escritório Internacional Católico da Infância - BICE, Rädda Barnen, Kindern in der Knell, Terre des
Hommes, Save the Children Funds (Suécia e Reino Unido), ECPAT
73
advocacy
74
empowerment
75
Pactos, agendas mínimas etc.
76
Apoio técnico e/ou financeiro a determinadas intervenções públicas (governamentais e não governamentais) de caráter
referencial, com capacidade de alteridade e multiplicação (“boas práticas”)
77
Capacitações, treinamentos, aperfeiçoamentos, especializações etc.
78
Artigo 24, XV – CF
79
Artigo 227, § 3°, I a VII - CF
40
proteção de direitosʺ, preferindo ʺgarantia de direitosʺ (num sentido genérico e não no seu
verdadeiro sentido específico) ou ʺatendimento de direitosʺ (a‐tecnia consagrada no Estatuto da
Criança e do Adolescente80). Uns, evitam a expressão de maneira equivocada por não
considerarem essa normatização jurídica das relações geracionais como parte integrante da
esfera do Direito dos Direitos Humanos, como uma especialização desse ramo do Direito e
sim como ramo autônomo, um ʺsucessorʺ do Direito Menoril, no afã de se formular uma
reducionista ʺcriançologiaʺ, visando construir‐se uma irreal ʺcriancidadeʺ – talvez na melhor
das intenções, mas, no fundo, aprofundando‐se, de outra forma o processo de apartação da
criança e do adolescente do mundo da cidadania. Outros evitam a expressão ʺpromoção e
proteçãoʺ, estrategicamente, apenas para evitar confusões com a velha linha ʺtutelarʺ da
ʺdoutrina da situação irregularʺ que utilizava particularmente a expressão “proteção” num
sentido deformado. De qualquer maneira, a expressão “garantia de direitos” tem a seu favor,
no Brasil bem especificamente, a circunstância do texto constitucional pátrio consagrá‐la81,
quando se trata de assegurar, através mecanismos de exigibilidade específicos, a efetividade
dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos cidadãos.
55. Possíveis e indesejados reducionismos ‐ De qualquer maneira, passaram‐se a
reforçar mais os mecanismos de ʺgarantia de direitosʺ e, por via de conseqüência, a
denominar‐se a genérica ʺpromoção e proteção de direitosʺ, como ʺgarantia de direitosʺ. A questão
não é tanto de rotulação ou de conjuntural prevalência estratégica de uma linha ... até aí tudo
bem! Na verdade, é preciso que a utilização de uma expressão ou a priorização estratégica de
uma linha (ʺgarantia ou defesa de direitosʺ) não sejam feitas em absoluto detrimento dos outros
dois tipos de mecanismos, também imprescidíveis: isto é, (a) dos mecanismos de ʺpromoçãoʺ
da efetivação dos direitos e (b) dos mecanismos de “controle” (tanto dessa “promoção”, quanto
dessa “defesa” ou “garantia”). Todas os mecanismos estratégicos de ʺpromoção e proteção dos
direitos humanosʺ (isto é, os espaços e os mecanismos estratégicos) precisam de
implementação simultânea e harmônica – nunca uma prevalecendo sobre o outro.
56. Registrando a história recente – Para melhor se entender a reflexão, no Brasil, em
torno dos “instrumentos e mecanismos de promoção e proteção de direitos humanos”,
especificamente quando em favor da infância (crianças e adolescentes) e da juventude
(jovens‐adolescentes e jovens‐adultos) e em torno da necessidade de se construir um discurso
e uma prática sobre a articulação política ampla e a integração operacional pontual desses
mecanismos, em rede ‐ é de se lembrar um pouco o passado recente. Tal discussão se fazia,
de maneira sistemática e ainda tímida, em 1991, no Núcleo de Estudos Direito Insurgente –
NUDIN82, em Salvador. Essa reflexão e seus produtos83 eram apresentados em termos
80
Artigo 86 – lei cit.
81
Artigo 5º - CF
82
Organização não governamental de estudos, pesquisas e ação social, formada por professores e alunos, associados, da
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA, que atuava no campo dos Direitos Humanos especiais de
41
amplos, quando se discutia a promoção e proteção dos Direitos Humanos das chamadas
“minorias políticas” (negros, mulheres, minorias eróticas, crianças e jovens). Naquela
oportunidade, em especial, procurava‐se inserir, dentro desse contexto geral, o recém‐
editado Estatuto da Criança e do Adolescente e a recém‐ratificada Convenção sobre os
Direitos da Criança. Posteriormente, o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
– CENDHEC, no Recife, em seus seminários de avaliação e planejamento, em parceria com o
Save the Children Fund (UK), aprofundou mais essa reflexão, dando destaque, especifica e
parcialmente, ao que se chamou de “Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do
Adolescente”84; sem porém abandonar a discussão sobre o campo genérico da promoção e
proteção dos Direitos Humanos85. Essa discussão logo se ampliou para o âmbito da
Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED 86 e em
seguida chegou ao CONANDA, que a consagrou em uma Conferência Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (1999); usando‐se, daí em diante, a expressão “garantia de
direitos”, vezes no seu sentido particular e técnico (incluindo apenas os mecanismos de defesa
de direitos quando violados), vezes outras, amplamente, como sinônimo de “promoção e
proteção de direitos”. A partir daí, muito se produziu de doutrina a respeito da matéria,
especialmente por fomento e provocação da Associação Brasileira dos Magistrados e
Promotores da Infância e Juventude – ABMP, do Fundo das Nações Unidas para a Infância –
UNICEF e do próprio CONANDA – tudo isso ainda sem uma sistematização completa e sem
que se construísse certos consensos mínimos a respeito dos marcos teóricos, que só o tempo e
o debate assegurarão. No momento, ainda há uma preocupação maior na configuração do
sistema (e portanto no desenho de diagramas didáticos), do que na sua sinergia interna e
externa (articulação e integração ad intra et ad extra).
57. O Sistema e o Estatuto ‐ Em verdade, o Estatuto, em nenhum momento, é
suficientemente claro quanto a esse “sistema de garantia de direitos”: trata‐se mais de uma
inferência, especialmente a partir dos artigos 86 a 90 e de uma transposição dos modelos
grupos vulnerabilizados (“minorias políticas”), integrando a Rede dos Núcleos de Estudo do Fórum Nacional DCA. O
NUDIN, à época, desenvolvia atividades acadêmicas de extensão para a cadeira Direito Internacional Público da Faculdade
de Direito da Universidade Federal da Bahia
83
Apostilas do Curso de Pós-Graduação (latu sensu) em Direito Constitucional da Criança (Cooperação NUDIN, UNICEF,
CBIA e a Fundação Faculdade Livre de Direito da Bahia). 1990: textos de Wanderlino Nogueira (org.), Vera Leonelli,
Carlos Vasconcellos, Maria Auxiliadora Minahim et alterii.
84
Interessava, naquela ocasião, no CENDHEC, discutir-se, mais especifica e aprofundadamente, a posição dos centros de
defesa da criança e do adolescente, enquanto integrantes do “eixo da defesa de direitos” (ou garantia de direitos, no sentido
estrito) e enquanto entidades de defesa responsáveis pela “proteção jurídico-social” de crianças e adolescentes com direitos
violados (art.87, V – Estatuto da Criança e do Adolescente)
85
CABRAL, Edson Araújo (org.); NOGUEIRA NETO, Wanderlino; BOSCH GARCIA, Margarita; PORTO, Paulo César
Maia; NEPOMUCENO, Valéria et alterii. 1999: “Sistema de Garantia de Direitos. Um caminho para a proteção integral”.
Recife: CENDHEC / BID. Coleção Cadernos Cendhec – vol.8
86
NOGUEIRA NETO, Wanderlino. “A Proteção Jurídico-Social” (tese aprovada em Assembléia Geral da ANCED).
Revista da ANCED vol. 2. 1998
42
internacionais e regional (inter‐americano). Esse sistema nasce muito mais do espírito da
Convenção do que propriamente do Estatuto.
58. O espírito da época ‐ À época da edição do Estatuto87, a reflexão sistemática sobre
“instrumentos e mecanismos de promoção e proteção dos Direitos Humanos” não tinha alcançado o
alto nível que alcançou nos dias de hoje, no Brasil: intuía‐se a necessidade de se “atender
direitos”, num esforço para se superar o velho paradigma do “atendimento de necessidades”,
pelo novo da “garantia de direitos”. Em verdade, a própria discussão sobre a promoção e
proteção dos Direitos Humanos dos cidadãos em geral, como mecanismo de efetivação e
como política de Estado, ainda era incipiente.
59. Dogmática jurídica ‐ Mas, mesmo assim, não se pode negar que o Estatuto dispõe
inquestionavelmente sobre “proteção de direitos da infância e juventude”88, isto é, ele foi
promulgado como norma reguladora dos artigos 227 e 228 da Constituição federal. Assim
sendo, conseqüentemente, ele tem que ser considerado com uma norma de “promoção e
proteção dos direitos humanos”, especificamente de crianças e adolescentes, vez esses
dispositivos citados da Carta Magna têm essa natureza, equiparados que são ao artigo 5º da
Carta Magna89. Deste modo, dever‐se‐á interpretar o Estatuto a partir dos princípios e
diretrizes do Direito dos Direitos Humanos, fazendo‐se uma interpretação sistemática dos
seus dispositivos, em harmonia com as demais normas desse campo do direito, tanto na
ordem jurídica nacional, quanto internacional.
60. Questões semânticas ‐ Porém, os que lutam pelos direitos da criança e do
adolescente, no Brasil, geralmente, têm uma certa resistência ao uso da expressão ʺpromoção e
proteção de direitosʺ, preferindo ʺgarantia de direitosʺ (num sentido genérico e não no seu
verdadeiro sentido específico) ou ʺatendimento de direitosʺ (estranha a‐tecnia consagrada no
Estatuto da Criança e do Adolescente90). Uns, evitam a expressão de maneira equivocada por
não considerarem essa normatização jurídica das relações geracionais como parte integrante
da esfera do Direito dos Direitos Humanos, como uma especialização desse ramo do Direito.
E sim como ramo autônomo, um ʺsucessorʺ (melhorado...?) do Direito Menoril, no afã de se
formular uma reducionista ʺcriançologiaʺ, visando construir‐se uma irreal ʺcriancidadeʺ –
talvez na melhor das intenções, mas, no fundo, aprofundando‐se, de outra forma o processo
87
Não se pode deixar de registrar que esse enfoque, no sentido da conformação ao modelo internacional/regional, já era
advogado por alguns participantes determinados do movimento de luta pelos direitos da criança e do adolescente que se
empenhavam pela formulação do Estatuto citado de início e pela sua efetivação posteriormente: por exemplo, Aninna
Lahalle, Maria Josephina Becker, Césare de Florio La Rocca, Yves de Roussan, Emílio Garcia Mendes, Irene Rizzini,
Jaime Benvenuto, Valdênia Brito e outros.
88
Art. 24 - CF
89
O artigo 1º do Estatuto citado deixa isso meridianamente claro e, em função disso, se tem sustentado em certas ocasiões
que os artigos 227 e 228 da CF devem ser equiparados a “cláusulas pétreas”.
90
Artigo 86 – lei cit.
43
de apartação da criança e do adolescente do mundo da cidadania. Outros evitam a expressão
ʺproteçãoʺ, estrategicamente, apenas para evitar confusões com a velha linha ʺtutelarʺ da
ʺdoutrina da situação irregularʺ que utilizava a expressão “proteção” num sentido deformado. A
própria Constituição federal ao extinguir implicitamente o malfadado ʺDireito de Menoresʺ,
em seu artigo 24 , XV e no parágrafo 1 do mesmo artigo, não cria nenhum outro ramo
autônomo do direito e sim uma legislação sobre ʺnormas geraisʺ de ʺproteção da infância e da
juventudeʺ 91 (grifei) e determina que em determinadas circunstâncias crianças e adolescentes
fazem jus a uma ʺproteção especialʺ 92. Quando se trata de ramo autônomo e sistemático, a
Constituição (artigo 22) menciona como tal: ʺcivil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário,
marítimo (...)ʺ. De qualquer maneira, em certas oportunidades, passou‐se a reforçar mais os
mecanismos de ʺgarantia (ou defesa) de direitosʺ e, por via de conseqüência, a denominar‐se a
genérica ʺpromoção e proteção de direitosʺ, como ʺgarantia de direitosʺ. A questão não é tanto de
rotulação ou de conjuntural prevalência estratégica de uma linha em especial ... até aí tudo
bem! A expressão “sistema de garantia de direitos” já ganhou, no Brasil, foros de legitimidade,
por sua ampla consagração. Na verdade, é preciso que a utilização de uma expressão ou a
priorização estratégica de uma linha (ʺgarantia de direitosʺ) não sejam feitas em detrimento
dos outros imprescindíveis mecanismos. Os mecanismos de promoção e proteção (especial)
dos Direitos Humanos de crianças e adolescentes precisam de implementação simultânea e
harmônica – nunca um prevalecendo sobre o outro.
61. Exemplificando, com a operacionalização dos mecanismos de promoção e
proteção dos direitos de crianças e adolescentes, em especial ‐ Quando se procura enfrentar
a chamada ʺviolência sexual contra crianças e adolescentesʺ (ou seja, o abuso e a exploração
sexual‐comercial) não se deveria restringir as intervenções públicas exclusivamente, apenas à
responsabilização penal dos abusadores e exploradores ‐ maniqueistamente. Mas também, se
deveria assegurar, simultânea e articuladamente, (1) o atendimento médico e/ou psico‐social
do(a)s abusado(a)s e do(a)s explorado(a)s, em serviços ou programas especializados, (2) a sua
inclusão com sucesso na escola, (3) o seu atendimento especializado por serviços do sistema único de
saúde, (4) a inclusão das suas famílias (ou dos próprios beneficiários, conforme a idade) em
programas de geração de ocupação, emprego e renda, (5) ou em programas de erradicação do
trabalho infantil (especialmente, os de eliminação imediata de piores formas de trabalho) etc. etc. E
além do mais, igualmente, nesses casos de violência sexual, se deve assegurar um eficiente e
eficaz monitoramento e avaliação (= controle), tanto das intervenções jurídico‐judiciais
(ʺacesso à justiçaʺ) 93, quanto desse atendimento direto pelas políticas públicas,
administrativamente 94. A mera e isolada responsabilização dos violadores, geralmente, leva
91
Artigo 24, XV – CF
92
Artigo 227, § 3°, I a VII - CF
93
Pelas respectivas Corregedorias, Conselhos Superiores e Ouvidorias, do Poder Judiciário, do Ministério Público, da
Defensoria Pública etc.
94
Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, Fóruns de Entidades Não Governamentais, Fóruns temáticos
mistos, Tribunais de Contas, Congresso Nacional, Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores
44
à re‐vitimização da criança ou do adolescente com seus direitos à sexualidade, violados. A
visão reducionista da promoção e proteção de direitos humanos, que a faz se esgotar na linha
exclusivamente da ʺdefesa de direitos / responsabilizaçãoʺ , igualmente, pode levar a um hiper‐
dimensionamento da figura do juiz dentro do sistema de proteção espacial de direitos, em
oposição a todo avanço que se conseguiu nesse ponto de relação à rançosa e corporativista
ʺdoutrina da situação irregularʺ, firmada na idéia do juiz‐pai, do juiz‐administrador, do juiz
higienista e terapeuta. Não cabe ao juiz (e conseqüentemente ao promotor, ao delegado de
polícia, ao conselho tutelar – mutatis mutandi) fazer indevidamente o papel de gestores
(formuladores, coordenadores e executores) de políticas públicas. São resquícios dessa visão
reducionista, por exemplo, os juizes que normalizam amplamente através portarias, os que
procuram desenvolver diretamente serviços e programas públicos, os que confundem
controle judicial dos atos administrativos com supervisão hierárquico‐administrativa, os que
transformam conselhos tutelares em suas equipes multiprofissionais etc. E assim, esses
magistrados esquecem seu papel primordial de prestadores da jurisdição, de ʺadministradores
de justiça à população que dela necessitaʺ ‐ papel indelegável e de suprema importância para o
funcionamento do sistema como um todo. Por sua vez, o oposto deve ser igualmente
condenado: a redução da proteção integral especial dos direitos dessas crianças e
adolescentes submetidos a abusos e explorações sexuais, exclusivamente ao atendimento
direto em programas e serviços de assistência social, educação e saúde, sem a
responsabilização jurídica (civil, penal, administrativo‐disciplinar etc.) dos violadores. Essa
postura equivocada leva à impunidade e à perpetuação do ciclo perverso de violações de
direitos. O hiper‐dimensionamento dos programas e serviços das políticas públicas também
tem suas mazelas e remete ao assistencialismo, à filantropia, ao higienismo, à tutela – a
satisfação de necessidades, desejos e interesses, sem a marca da qualificação dessa satisfação
enquanto proteção de direitos humanos é um retrocesso, contra o qual se precisa igualmente
lutar. Esse enfoque abastarda a vítima da violência sexual, ao ter seu direito a uma
sexualidade livre e prazerosa reduzido a um mero interesse a ser tutelado, não como dever
do Estado.
C – O SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DOA
DOLESCENTE, ESPECIFICAMENTE, NO BRASIL
62. A promoção de direitos ‐ O eixo estratégico da ʺpromoção da efetivação dos direitos de
crianças e adolescentesʺ, como mecanismo de promoção e proteção de Direitos Humanos,
consubstancia‐se, no desenvolvimento de uma ʺpolítica de atendimento dos direitos da criança e
do adolescenteʺ 95, que integra o âmbito da política de promoção dos direitos humanos96;
estrategicamente cortando, de maneira transversal e intersetorial, todas as políticas públicas
95
Artigo 86 – Estatuto cit.
96
Ver Capítulo seguinte: “Política de Promoção dos Direitos de Crianças e Adolescentes”
45
(institucionais, econômicas e sociais); reforçando a idéia de que a satisfação das necessidades
básicas, por qualquer dessas políticas públicas é um direito do cidadão‐criança e do cidadão‐
adolescente e ao mesmo tempo um dever do Estado, da família e da sociedade. Esta é uma
política que se operacionaliza através duas linhas estratégicas:
• serviços e programas de proteção especial e socioeducativos; e
• serviços e programas das demais políticas públicas, especialmente das políticas
sociais .
97
63. Políticas e estratégias de promoção de direitos humanos geracionais,
especialmente da infância/adolescência ‐ A primeira linha tem um caráter de atendimento
inicial, integrado, emergencial e ao mesmo tempo alavancador da inclusão moral e social de
seus beneficiários (vítimas de violações de direitos): “cuidados & cuidadores”. Aí estão os
programas de abrigamento (ou abrigo), de colocação familiar, de orientação sócio‐familiar,
de localização de desaparecidos, de prevenção/apoio médico e psico‐social a vítimas de
maus‐tratos, abusos, violências, explorações etc. – serviços e programas de proteção especial.
Aí estão, igualmente, os programas de internação, semiliberdade, liberdade assistida etc. –
programas socioeducativos. A segunda, implica na facilitação do acesso aos serviços públicos
básicos (educação, saúde, proteção no trabalho, previdência, segurança pública etc.) e no
asseguramento do sucesso deste atendimento público para um público com “necessidades
especiais”: aí, seus beneficiários estarão sob acompanhamento especial.
64. A defesa dos direitos ‐ O eixo da defesa98 dos direitos da criança e do adolescente
(como mecanismo de promoção e proteção especial dos direitos humanos geracionais) se
consubstancia, na garantia de acesso à justiça, ou seja, no recurso aos espaços públicos
institucionais e mecanismos jurídicos de ʺproteção legalʺ daqueles direitos humanos (gerais e
especiais) e das liberdades fundamentais, da infância e da adolescência; para assegurar a
impositividade daqueles direitos e liberdades e sua exigibilidade, em concreto. Nesse eixo, se
situa a atuação dos órgãos judiciais (varas da infância e da juventude, varas criminais,
tribunais do júri, tribunais de justiça), dos órgãos público‐ministeriais (promotorias de
justiça, centros de apoio operacional, procuradorias de justiça), dos órgãos da defensoria
pública e da polícia judiciária (inclusive os da polícia técnica),os conselhos tutelares
(enquanto contenciosos administrativos, isto é, “não jurisdicionais”).
65. Estratégias de controle da efetivação dos direitos ‐ Por fim, o enfrentamento de
todas formas de violação de direitos, enquanto mecanismo de promoção e proteção de
direitos humanos, deveria se explicitar mais efetivamente através dos espaços públicos e
mecanismos de acompanhamento, avaliação e monitoramento, isto é, do controle social‐
97
A partir da classificação das políticas públicas, em (1) políticas de infra-estrutura, (2) políticas econômicas, (3) políticas
institucionais e (4) políticas sociais.
98
Defesa dos direitos dos violados e responsabilização dos violadores
46
difuso (pela sociedade civil organizada, especialmente, via seus fóruns, comitês) e
institucional (pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente). Para que esse
sistema de acompanhamento‐avaliação‐monitoramento seja implementado e funcione
eficiente e eficazmente é preciso preliminarmente o seguinte:
• discussão ampla no meio da organização social, especialmente via essas instâncias
articuladoras da sociedade civil (fóruns), de modo a pautar politicamente as questões e a mobilizar a
sociedade;
• elaboração de diagnóstico da situação99, com atualizações periódicas, tanto pela
sociedade civil organizada, quanto pelos Conselhos;
• construção de ʺmatrizesʺ, com a construção de indicadores para o acompanhamento,
avaliação e monitoramento, inicialmente, tanto por essas instâncias da sociedade civil, quanto pelo
governo, com indicações (ʺplanos sócio‐políticosʺ);
• exame e referendo, pelos conselhos dos direitos, desse material, a ser promulgado
como ʺnormas administrativas regulamentaresʺ, em caráter deliberativo e vinculante, no que for
cabível, isto é, na esfera estrita de sua competência legal.
Esses mecanismos de controle (acompanhamento‐avaliação‐monitoramento), dentro do
amplo sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente, tem campos de atuação
dos mais importantes, mas na verdade estão sendo pouco explorados, pela maior parte dos
órgãos governamentais, das entidades sociais (especialmente através de seus fóruns) e dos
conselhos. Exemplificando: o controle do desenvolvimento da própria política de promoção
dos direitos, através do cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 90 e no caput do
artigo 91 (Estatuto cit.), que trata do registro de entidades sociais e do registro de programas
governamentais e não governamentais, pelos conselhos municipais dos direitos. Outro
exemplo: a montagem do chamado ʺOrçamento‐Criançaʺ e a partir daí o acompanhamento‐
monitoramento tanto da elaboração orçamentária, quanto da sua execução. Mais: o
acompanhamento do funcionamento dos programas socioeducativos (unidades de
internação e semiliberdade, unidades de acautelamento inicial, programas de liberdade
assistida). Idem, quanto a abrigos etc.
65. Em síntese ‐ Falar‐se hoje em ʺpromoção e proteção de direitos humanos da criança e do
adolescenteʺ tem um novo sentido: acentua a vinculação das normas reguladoras e do sistema
institucional de efetivação e realização dessas normas aos instrumentos e mecanismos,
globais e especiais, internacionais e nacionais, de promoção e proteção de direitos humanos.
Significa a assunção de um compromisso maior com a ótica do Direito dos Direitos
Humanos, afastando toda a tentação de se criar um ramo de direito e um sistema de
proteção, autônomos e isolados, afastando a tentação de desvincular o movimento de luta
pela emancipação de crianças e adolescentes, do movimento maior pela emancipação dos
cidadãos, especialmente dos ʺdominadosʺ, em especial: pobres, mulheres, negros, sem‐terra,
99
Nesse ponto, necessário se torna envolver mais o meio acadêmico (Universidades), sem prejuízo da atuação dos Centros
de Estudos e Pesquisas (autônomos) etc.
47
sem‐tetos, homossexuais, índios, ʺhandcapèsʺ, soropositivos, marginalizados, delinqüentes,
nordestinos etc. É preciso retirar a criança e o adolescente do nicho de sacralização e
idealização em que muitas vezes nosso discurso os entroniza, para lutar mais concreta e
criticamente pela retirada deles dos círculos do inferno a que estão condenados, isto é, da
tríplice danação na fogueira, no gueto ou na solidão.
VI ‐ PROMOÇÃO DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO: A POLÍTICA DE
PROMOÇÃO DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
A ‐ NATUREZA E CARACTERÍSTICAS
66. Uma política intersetorial – O Estatuto prevê, no seu artigo 86, o desenvolvimento
de uma ʺpolítica de atendimento de direitos da criança e do adolescenteʺ. Isto é, dentro do vasto
campo da proteção dos direitos humanos, uma política de promoção dos direitos e
liberdades fundamentais da criança e do adolescente – isto é, dos Direitos Humanos
Geracionais. Obviamente, não se trata aqui de nenhuma política setorial, como as políticas
sociais básicas (educação, saúde, assistência social etc.). Mas sim de uma política intersetorial,
a cortar transversalmente todas as políticas públicas, para assegurar que a satisfação de
determinadas necessidades básicas desse segmento da população seja reconhecida e
garantida como direitos fundamentais, prioritariamente; obedecidos determinados
princípios. Essa política citada teria o condão – através de suas instâncias públicas de
formulação, coordenação, execução e controle (interno) e dos seus mecanismos políticos‐
administrativos – de promover, como Direitos Humanos Geracionais (crianças e
adolescentes), certos direitos da área da educação, da saúde, da assistência social, da
segurança pública, da previdência social, da proteção no trabalho, da segurança alimentar, da
habitação etc. Seria como uma hierarquização, pois segundo a Constituição brasileira, os
direitos humanos são direitos de hierarquia superior, consagrados em normas‐princípio,
acima das normas‐regra.
67. Confusões reducionistas ‐ Dessa maneira, é realmente absurda a confusão que
muitos ainda fazem entre essa ʺpolítica de atendimento dos direitos da criança e do adolescenteʺ
(Estatuto e Conselhos dos Direitos, citados) e a ʺpolítica de assistência socialʺ. Puro ranço da
velha ʺdoutrina da situação irregularʺ, na qual se fundamentava o revogado Código de
Menores, onde o assistencialismo e a repressão eram seus dois pilares. Só que a atual Política
de Promoção dos Direitos Humanos Geracionais (e aí, os direitos da criança e do adolescente)
se firma na doutrina da ʺproteção integralʺ. E, ao mesmo tempo, a Política de Assistência Social
constrói um novo caminho de negação do clientelismo, do ʺprimeiro‐damismoʺ, do
assistencialismo. Novos paradigmas para ambas, mas, que confirmam a autonomia de cada
uma. Alguns querem reduzir simplesmente o Estatuto e os Conselhos dos Direitos da
48
Criança e do Adolescente a meras ʺespecializaçõesʺ da Lei Orgânica da Assistência e dos
Conselhos de Assistência Social. Como se os primeiros tratassem apenas de um setor da
assistência social : o das crianças e adolescentes vulnerabilizados ou em situação de risco
pessoal e social. Enquanto os Conselhos de Assistência Social seriam mais genéricos, mais
abrangentes. Ora, o Estatuto da Criança e do Adolescente não permite tal visão corporativa,
reducionista e equivocada da abrangência de ação dos Conselhos dos Direitos. Na verdade,
não se trata de um ter prevalência sobre o outro ou concorrer com o outro. E sim realmente
de abrangência. Os Conselhos intersetoriais (como os dos Direitos da Criança, da Mulher, da
Condição Negra, dos Portadores de Deficiência etc.) têm uma abrangência maior que
qualquer dos conselhos setoriais (saúde, educação, assistência social). Mas, não uma
importância maior, pois suas funções são bastante díspares, sem confusão, superposição e
concorrência. Programas de proteção a clientelas específicas existem em qualquer das
políticas sociais. Inclusive e principalmente no campo da Política de Assistência Social, como
os programas de proteção de crianças e adolescentes que deles necessitem: vulnerabilizados,
por exemplo. Mas, programas e atividades não se confundem com Políticas, no seu sentido
amplo e puro – e sim as integram como partes. Por exemplo, toda e qualquer forma de
exploração laboral da criança e do adolescente100 deverá se prevenida e erradicada (ou
proibida e eliminada imediatamente, conforme o caso), através de serviços/atividades e
programas/projetos de proteção especial da política de promoção de direitos humanos,
articulados e integrados, com programas/projetos e serviços/atividades das políticas de
saúde, de educação, de cultura, de assistência social, de proteção no trabalho101, de segurança
pública, de agricultura, das relações exteriores etc. etc. A erradicação do trabalho infantil no
Brasil não é uma questão puramente de assistência social. Mas, o é também...
68. Modelo institucional federal – No passado, depois da promulgação do Estatuto
da Criança e do Adolescente, o governo federal especificamente entregou a coordenação
dessa política intersetorial de promoção de direitos, à Fundação Centro Brasileiro para a
Infância e Adolescência – CBIA, vinculada ao Ministério do Bem Estar Social, que a nomeava
como “política de proteção especial”. A vinculação do CBIA ao Ministério do Bem Estar Social,
naquela época, tinha um certo ranço do ʺvelho regimeʺ: um órgão novo, com
responsabilidades novas e revolucionárias (e que a isso se propunha e estava alcançando
realmente antes de sua extinção...), preso, ainda que formal e institucionalmente, ao modelo
assistencial do passado. E, por sua vez, nidificou o Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente – CONANDA, responsável pela formulação e controle dessa
política, na Presidência da República, reforçando, com isso, a natureza de intersetorialidade
ao fazê‐lo responsável pela concertação nacional em favor dos direitos infanto‐adolescentes.
Posteriormente, com a apressada extinção da Fundação CBIA, o CONANDA foi vinculado ao
100
Trabalho precoce, trabalho doméstico, prostituição, narcotráfico, trabalho noturno, trabalho perigoso, insalubre e penoso,
trabalho escravo etc.
101
Idem Nota 34
49
Ministério da Justiça, responsável pela ʺpolítica de defesa da cidadaniaʺ. E nesse Ministério de
Estado se criou o Departamento da Criança e do Adolescente, na estrutura da transformada
Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, ficando ele responsável pela coordenação, em
nível nacional, dessa política de promoção dos direitos humanos da infância/adolescência.
Atualmente, firmando‐se (ao que parece), o Ministério da Justiça como um “Ministério da
Segurança Pública”, toda as políticas de proteção de direitos humanos foram deslocadas para
a Presidência da República, sob a responsabilidade direta de Secretarias de Estado (mais
estratégicas que operacionais), em nível de Ministérios Extraordinários: Secretaria de Estado
dos Direitos Humanos (com sua Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do
Adolescente), Secretaria Nacional da Mulher e Secretaria Nacional pela Igualdade Racial.
69. Modelos estaduais e municipais ‐ Nas esferas estadual e municipal, o nicho
institucional das Políticas de Promoção dos Direitos Humanos (crianças/adolescentes,
mulheres, idosos, portadores de necessidades especiais, negros etc.) varia de um lugar para
outro. Em uns, está ela nidificada em Secretarias de Ação Social, de Desenvolvimento Social,
de Solidariedade Humana (até de Educação). Em outros estados, em Secretarias de Justiça ou
de Segurança Pública – algumas poucas. Em outros raros, diretamente vinculadas ao Chefe
do Poder Executivo – Casa Civil, Gabinete do Governador. A primeira experiência, em
determinados governos e em certos momentos, tem levado ao risco de confundir a Política de
Promoção dos Direitos Humanos com a Política de Assistência Social, de maneira
reducionista, desprezando a ótica da priorização absoluta, da intersetorialidade e da
exigibilidade de direitos. Nesse caso, transforma esta ʺpolítica de direitos humanosʺ em um
mero ramo especializado da Assistência Social: os Conselhos desta última seriam ʺconselhos de
política públicaʺ , enquanto os Conselhos dos Direitos (crianças, mulheres, idosos etc.) seriam
apenas ʺconselhos temáticosʺ (?). Essa distorção pode nos levar aos tempos da ʺPolítica do Bem
Estar do Menorʺ, em boa hora extinta (Sistema FUNABEM‐FEBEM). A segunda experiência,
tem o perigo de fazer repetir modelos do passado (Sistema SAM‐SEAM) de triste memória,
onde a questão dos ʺmenores abandonados e delinqüentesʺ era uma questão de segurança e seu
atendimento se fazia de maneira assemelhada ao atendimento prisional: as Secretarias de
Justiça estaduais, ainda não conseguiram construir uma prática renovada de ʺdefesa da
cidadaniaʺ, apesar do nome e das boas intenções. Seu quadro de pessoal tem razoável
competência (e inclusive os vícios também) no trabalho com determinadas linhas
tradicionalmente suas: trabalhar na articulação política do Poder Executivo com os Poderes
Legislativo e Judiciário, com o Ministério Público, com os Poderes municipais e com a
Sociedade (quando isso não perderam para a Casa Civil ou Secretarias de Governo, em
alguns Estados), no trabalho de supervisão geral de órgãos como as Ouvidorias Gerais e as
Defensorias Públicas e principalmente no trabalho de administração do sistema prisional.
Quando não, em determinadas experiências, funcionam em conjunto com a Segurança
Pública. A conjuntura local dirá qual a melhor vinculação administrativa, levando‐se em
conta uma série imensa de variáveis: de qualquer maneira, a melhor solução está na
50
vinculação a um Ministério, Secretaria estadual ou municipal ou outro órgão público que a
reconheça como política autônoma, que tenha maior abertura para a intersetorialidade, que
tenha maior capacidade de articulação interinstitucional e que tenha realmente força política.
B. OPERACIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE PROMOÇÃO DE DIREITOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: PROGRAMAS E SERVIÇOS
70. Ações sistemáticas, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente ‐ O Estatuto
citado, nos seus artigos 87 e 90, estabelece que essa Política de Promoção dos Direitos da
Criança e do Adolescente (como Proteção dos Direitos Humanos) se desenvolve, isto é, é
operacionalizada, principalmente, através de dois (2) tipos ações permanentes, contínuas e
sistemáticas:
programas e serviços específicos de proteção especial e socioeducativos
programas e serviços das demais políticas
C. PROGRAMAS E SERVIÇOS DE PROTEÇÃO ESPECIAL
71. Os programas e serviços específicos de proteção especial – Esses são dirigidos a
um público‐alvo e a situações próprias, que os distingue dos demais “programas de proteção”
de outras políticas públicas (por exemplo, os programas de proteção especial para crianças e
adolescentes em situação de risco ou vulnerabilizados, típicos da Política de Assistência
Social). Os programas e serviços de proteção especial (de direitos humanos) de crianças e
adolescentes se dirigem a todo o segmento infanto‐adolescente que tenha seus direitos
ameaçados ou violados (art.98 – Estatuto citado) – universais e focalistas, a um só tempo!
Não é uma situação social (vulnerabilização, carência etc.) que justifica a intervenção desses
programas previstos no Estatuto e sim uma situação jurídica: isto é, o não reconhecimento ou
não‐garantia de direitos fundamentais na área da educação, da saúde, a convivência familiar
e comunitária, da cultura, do lazer, do trabalho, da dignidade, do trabalho. O Estatuto
discrimina exemplificativamente (mínimo legal), nos citados artigos 87 e 90 citados, alguns
tipos de programas e serviços de proteção especial (direitos humanos) da criança e do
adolescente:
• Programa de orientação e apoio socio‐familiar;
• Programa de apoio socioeducativo em meio aberto;
• Programa de abrigo (ou abrigamento temporário);
• Programa judicial de colocação familiar ‐ guarda, tutela e adoção;
• Serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psico‐social às vítimas de negligência,
maus tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;
• Serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos;
51
• Proteção jurídico‐social, por entidades de defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
72. Característica maior desses serviços e programas de proteção especial ‐ Os
Programas e Serviços de Proteção Especial de Direitos Humanos, de modo geral, são vistos
por MESQUITA NETO102 como ʺações que visam prevenir a ocorrência de violações de direitos
humanos, direcionadas à população em geral, a grupos de pessoas especialmente vulneráveis a essas
violações ou a grupos de pessoas que já foram vítimas dessas agressões. São ações que visam prevenir a
ocorrência de violações de direitos humanos antes que elas aconteçam ou atender às vítimas
imediatamente após a ocorrência das violações ou no longo prazo que devem ser preservados e
fortalecidos.ʺ Tal característica deveria ter os serviços e programas de proteção especial dos
direitos humanos geracionais. Esses serviços e programas específicos de proteção especial
deveriam ser como ʺunidades de cuidados básicosʺ, como ʺcentros integrados de atendimento
inicialʺ, dirigidos à população infanto‐adolescente, numa linha preventiva e de atendimento
emergencial, precário e encaminhador, funcionando inclusive e principalmente como
ʺretaguardaʺ para os conselhos tutelares e varas da infância e da juventude (e os órgãos do
Ministério Público, da Defensoria Pública). Seus operadores são basicamente ʺcuidadoresʺ,
qualquer que seja sua formação acadêmica e profissional. São esses serviços e programas de
proteção especial os preferenciais ʺprovedores da redeʺ. Através deles e após um trabalho
integrador e preparatório, as crianças e adolescentes, adjetivados de alguma forma por suas
circunstâncias de vida (explorados ou abusados sexualmente, em situação de rua,
soropositivos, torturados, vítimas de maus tratos, narcotraficantes, abandonados, drogaditos,
explorados no trabalho etc.) poderão ser encaminhados a serviços e programas das políticas
sociais básicas e/ou de certas políticas institucionais e econômicas, como ʺsitesʺ desta ʺredeʺ
maior de atenção integral à população infanto‐adolescente. Nestas características apontadas,
certamente estão a essencialidade e o diferencial dos programas e serviços de proteção
especial, de relação aos serviços e programas das demais políticas públicas que podem
incidir sobre essas crianças e adolescentes credores de direito, concorrente e
superpostamente. O Estatuto, por ser norma nacional e geral de proteção, pouco detalhou a
respeito, apenas rotulando os serviços e programas em questão. O ideal seria que leis
federais, estaduais e municipais e normas administrativas regulamentares dos conselhos dos
direitos da criança e do adolescente (nos três níveis, também), em complementação, após
esses anos de experiência de efetivação do Estatuto, viessem melhor definir esses serviços e
programas de proteção especial, aqui em análise.
73. Serviços de prevenção e atendimento médico e psico‐social a vítimas de
violências, explorações, negligências (...) ‐ Aí, o grande buraco da nossa ʺrede de atendimentoʺ
e um dos que mais falta faz: serviços institucionalizados, permanentes, com funcionamento
sistemático e contínuo que recebam e cuidem (promovendo seus direitos em todas as áreas
102
MESQUITA NETO, Paulo de. 2002. "Segundo Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos"
52
de políticas públicas) de crianças e adolescentes, vítimas especialmente de maus‐tratos, de
violência sexual, de exploração no trabalho, de discriminações por seu estado de morbidade
(soropositividade – HIV, deficientes físicos e mentais, por exemplo) – nos termos do inciso III
do artigo 87 do Estatuto. Esse público enumerado exemplificativamente é o que mais
necessita de um serviço dessa natureza, que funcione como um ʺcentro integrado de
atendimento inicialʺ, como apoio principalmente aos órgãos do Poder Judiciário, do Ministério
Público e da Segurança Pública ou mesmo aos Conselhos Tutelares, como sua verdadeira
ʺretaguarda primáriaʺ. Sem tais serviços de proteção especial, a responsabilização dos
agressores, dos violadores da lei, por exemplo, poderá se transformar num verdadeiro
processo de re‐vitimização. Não deveria caber ao Poder Judiciário ou à Polícia Judiciária
assumir mais essa tarefa e sim serem apoiados por serviços dessa natureza, com
características de órgão executor de política pública. Seria um bom exemplo da ʺpromoção de
direitosʺ se articulando com a ʺdefesa ou garantia (estrita) de direitosʺ e a apoiando, dentro do
sistema geral de proteção integral de direitos humanos. Esse serviço deve fazer, além do
trabalho preventivo previsto, um atendimento direto emergencial, enquanto não se decide
que outros tipos de serviços e programas de educação, de assistência social, de saúde, de
habitação (dentre outros), precisam ser agregados, para que se assegure realmente uma
proteção integral a essas vítimas das variadas formas de discriminação, negligência,
exploração e violência. Esse serviço, no caso, se tornaria também o responsável pelo
encaminhamento desse vitimizado a outros programas ou serviços de atendimento protetivo
especial, previstos no Estatuto: unidades de abrigos? programas de apoio socioeducativo em
meio aberto? programas de orientação e apoio socio‐familiar? programas de colocação
familiar? A situação dirá e a submissão do caso concreto ao Conselho Tutelar definirá melhor
o encaminhamento a ser feito por este serviço, em cumprimento a uma decisão desse
contencioso administrativo (ou do juiz, se matéria estiver sob sua jurisdição). Algumas
experiências concretas estão se desenvolvendo no país, nessa linha, que poderiam se
consideradas referências metodológicas: por exemplo, os CRAMI.s no interior de São Paulo,
a ABRAPIA no Rio de Janeiro, o Programa Sentinela (enfrentamento da violência sexual) e o
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil ‐ PETI do Ministério da Assistência e
Promoção Social. Implementados, os dois últimos, em alguns poucos municípios do país e
ainda pecando mais pelo fato de terem se institucionalizados, no momento, como ʺprogramasʺ
e não como serviços permanentes103, deixando em risco sua sustentabilidade e permanência,
em face do seu caráter temporário (típico dos programas/projetos). E pelo fato de estar
nidificado numa política setorial (assistência social) e não, como previa o Estatuto, como um
103
Seria ingenuidade imaginar que na atual conjuntura e dentro do presente quadro estrutural se vá eliminar completamente
o trabalho infantil e adolescente precoce e a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes,através de um
programa público. Esses programas/projetos têm sua validade na medida que agendam politicamente essas questões e
permitem desenvolver uma tecnologia social viável e efetiva para que se criem e implementem serviços permanentes, a
partir dessas experiências.
53
serviço de proteção especial de uma política intersetorial como a de Promoção de Direitos
Humanos: é só se analisar sistematicamente os incisos II e III do seu artigo 87.
75. Programas de apoio socioeducativo em meio aberto – Mais uma vez, o fato do
Estatuto só contemplar normas gerais (e de não se ter outras leis e atos administrativo‐
regulamentares, com normas específicas e operacionais) leva a muitas confusões a respeito
da natureza e do funcionamento desse programa de proteção especial, em análise. Ainda
mais que o Estatuto é realmente confuso, nesse ponto, usando a mesma expressão com dois
sentidos. A expressão ʺsocioeducativoʺ é usada, ora para designar programa de execução de
medidas de natureza sancionatórias e pedagógicas, aplicadas a adolescentes autores de ato
infracional, ora para designar programa de execução de medidas de proteção especial,
aplicadas a crianças e adolescentes com direitos violados ou ameaçados (ʺcredores de direitoʺ).
De maneira precisa e ousada, BRANCHER104 classifica isso como ʺfalha terminológicaʺ e
pontua: ʺ(...) a lei se valeu equivocadamente da expressão ʹapoio socioeducativo em meio abertoʹ, no
mesmo contexto em que logo depois se refere à medida de liberdade assistida (essa sim uma medida
socioeducativa em meio aberto – inc. V) e ainda omite do rol aquela que seria a outra medida de
natureza jurídica equivalente, a prestação de serviços à comunidadeʺ (...) Noutras palavras uma
grande confusão conceitualʺ. Em verdade, a intervenção “socioeducativa” é peculiar ao campo
da Educação Social, cujo discurso fundante e justificador e prática cotidiana e efetiva
produziram, de certa forma, o discurso subjacente à norma do Estatuto da Criança e do
Adolescente ‐ o seu paradigma político‐utópico105. O Estatuto tem como seus inspiradores,
tanto o discurso jurídico protetivo‐garantista internacional (caudatário do Direito dos
Direitos Humanos), quanto a práxis da Educação Social (FREIRE, BULGARELLI) que se
desenvolveu inicialmente como ʺatendimento alternativoʺ no Brasil, através da Pastoral do
Menor e do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, principalmente. A
Educação Social hoje foi incorporada por inúmeras entidades sociais e órgãos públicos, em
todo o país. Essa ação socioeducativa estava tradicionalmente muito mais ligada ao
atendimento dos chamados ʺmeninos de ruaʺ e portanto de toda uma população em situação
social de vulnerabilidade, de risco social e pessoal. Assim sendo, tradicionalmente para nós,
ʺsocioeducaçãoʺ é fruto da Educação Social, isto é, uma forma de intervenção protetiva em
favor de socialmente excluídos. E não tanto uma forma de intervenção sancionatória na
questão do atendimento dos adolescentes infratores, estabelecida, no Estatuto, como uma
definição jurídico‐formal, resultando na aplicação de uma medida sancionatória106. Seria o
104
BRANCHER, Leoberto Narciso. 1998. "Semântica da Exclusão"
105
No sentido progressista, em contra-oposição ao sentido conservador político-ideológico – apud Michael Lowi
106
Na verdade, não existem socialmente "adolescentes infratores". Não é essa uma categoria sociológica ou psicológica. E sim uma
categoria jurídica. São eles aqueles que o juiz os constitui como tal, após um procedimento processual formal e uma declaração também
formal, final. O juiz não "reconhece" o adolescente que comete crime como em uma situação social preexistente, intrínseca, não
"diagnostica" nenhum "erro social", nem declara a criminalidade como uma "situação de risco" ou uma "situação irregular". O juiz
não faz um "encaminhamento social" no caso, nem lhe prescreve uma "terapia social", na velha linguagem higienista do menorismo.
Na verdade, o juiz enquadra a ação do adolescente (não o adolescente, em si) em um tipo penal e lhe aplica uma sanção de natureza
54
caso, de se ter reservado a expressão ʺsocioeducativoʺ apenas para as medidas de proteção,
procurando‐se uma outra expressão para designar as medidas sancionatórias especiais,
aplicáveis aos adolescentes inimputáveis que praticavam crimes e contravenções (ʺinfraçõesʺ).
Sob esse rótulo ambíguo, os programas de ʺapoio socioeducativo em meio abertoʺ são vistos, por
alguns, como programas de ʺprevenção secundáriaʺ no enfrentamento das situações de conflito
com a lei, de exploração sexual comercial, de exploração laboral, de marginalização e/ou
abandono nas ruas... e por aí se vai. Excetuada a situação dos adolescentes em conflito com a
lei (autores de ato infracional), pelos motivos acima expostos, esse tipo de programa de
proteção especial, desenvolvido para enfrentar tais circunstâncias de vida (como violações de
direitos humanos), para seu sucesso tem que se desdobrar em tecnologias sociais
alternativas, de ponta, ousadas, especialmente buscando embasamento nas reflexões e
práticas da Educação Social. Esses programas de apoio socioeducativo em meio aberto
precisam superar o que de tradicional e cediço se tem oferecido, através das políticas
públicas sociais, para atender esse público, em caráter emergencial e vestibular, preparando‐
o para sua inserção em programas e serviços das políticas sociais básicas, nas áreas da
assistência social, educação, saúde, trabalho, habitação etc. Mutatis mutandi, é de se aplicar a
este programa de proteção o que se disse atrás de relação aos serviços de ʺprevenção e apoio
médico e psico‐social a vítimas (...)ʺ, na medida em que ambos são ações de proteção de direitos
humanos e portanto ambos trazem em si essa característica comum: ʺcentros de atendimento
inicial integradoʺ, ʺnúcleos básicos de cuidadosʺ. De ordinário, esses programas de apoio
socioeducativo em meio aberto têm‐se consubstanciado, principalmente em atividades de
cultura, lazer, esporte, profissionalização, realizadas em jornada alternada e complementar à
jornada escolar. Tudo isso, com o fito maior de elevar os níveis de auto‐estima dos violados,
considerando‐se que a baixa de auto‐estima (com todas as suas decorrências) se configura
como a maior seqüela de determinadas violações dos Direitos Humanos Geracionais. Nesse
ponto, esta o nó da questão. A capacitação profissionalizante, a arte, o esporte, o lazer, por
exemplo, não são objetivos em si desses programas, pois eles podem ser mais bem atingidos
pelos programas próprios de suas respectivas políticas públicas. Na verdade, é atividade‐
meio, são estratégias para se assegurar, inicial, precária e emergencialmente, uma promoção
de direitos humanos. Um muito bom exemplo de um serviço dessa natureza parece ser o
ʺCentro Projeto Axéʺ (Salvador – Ba), com suas oficinas de moda, de estamparia, de
reciclagem, de percussão, de dança etc., com seu trabalho de apoio à inserção na escola
formal (com garantia de permanência e sucesso), seu trabalho de re‐inserção familiar ou em
habitações autônomas comunitárias. Dentro dessa linha, pode‐se mais registrar a experiência
da Casa Renascer em Natal (Natal ‐ RN), da Casa de Oxum da Fundação Cidade Mãe
(Salvador – BA), da Casa de Passagem e do SOS Corpo (Recife – PE).
especial (não penal-retributiva, mas psico-pedagógica): Não existe no fundo nenhum "adolescente infrator" e sim "adolescente ao qual
se atribui a prática de ato infracional" ou "adolescente autor de ato infracional" - como precisamente o Estatuto define.
55
76. Programas de abrigo – Por fim, aí estão, os programas protetivos especiais, em
regime de abrigo temporário, desenvolvidos e operacionalizados ou, no modelo tradicional‐
institucionalizado, por entidades (governamentais ou não governamentais) de abrigo
(abrigamento) ou, no modelo aberto, por “famílias de apoio” (experiência de Franca – SP,
p.ex.). Ambos válidos, pois só a conjuntural local definirá a necessidade de implantação de
um ou do outro modelo (ou de um modelo misto!). Esses programas específicos (e
conseqüentemente, suas unidades de execução) servem para acolher temporariamente
crianças e adolescentes, enquanto se tenta re‐colocá‐los em suas famílias naturais (através dos
programas de apoio e orientação familiar – art. 90, I – Estatuto) ou colocá‐los em famílias
substitutas (através dos programas judiciais de guarda e adoção). Seu eixo central está na
restauração de vínculos familiares e comunitários – o mais vem por acréscimo. O objetivo de
uma unidade de abrigo... é a de não ser necessitada, é sua precariedade, sua incompletude!
Uma boa unidade de abrigo (ou família de apoio) deve se preocupar com a mais breve
permanência possível ali do abrigado. Não tem ela que colocar como seu objetivo a
construção ali de um verdadeiro lar, pois ela será sempre um simulacro. Sua preocupação
deve ser o retorno do abrigado à sua família e comunidade (se possível) ou articular‐se para
que seja ela entregue, por exclusiva determinação judicial, a outra família, em regime de
adoção ou guarda ou ao nomeado tutor. Às unidades de execução desse programa de
abrigo, vão ser levadas crianças e adolescentes, nessas circunstâncias acima, por decisão
exclusiva dos juizes da infância e da juventude e dos conselhos tutelares, em cada caso
concreto, apreciado individualmente107. E não por decisões de dirigentes ou agentes de outros
programas de proteção especial (SOS‐CRIANÇA, por exemplo) em caráter definitivo. Em
caráter emergencial, excepcionalmente, um dirigente de unidade de abrigo poderá receber
criança ou adolescente sem prévia autorização da autoridade judiciária ou do conselho
tutelar, mas deverá proceder na forma do art. 92 do Estatuto, fazendo a imediata
comunicação a essas autoridades competentes, para sanar o vício.
77. Pólos genéricos de atendimento protetivo especial. O chamado SOS‐CRIANÇA ‐
Interessante, porém, se torna registrar e analisar uma experiência disseminada pelo Brasil e
denominada como Pólos ou Centros “SOS CRIANÇA”, Complexos de Defesa da Cidadania
etc. ‐ alguns criados com bastante clareza a respeito das ações que deveriam desenvolver,
outros fazendo lamentáveis confusões. São eles os melhores exemplos, no momento de
institucionalização concreta de certos serviços e programas outros de proteção especial para
crianças e adolescentes credores de direitos. O ideal é que esses “centros integrados de
atendimento inicial a crianças e adolescentes vítimas de violações de direito” (ou melhor dito,
centros integrados de proteção especial de direitos) se disseminassem mais (em nível de
municipalização) e se adaptassem um pouco mais aos princípios do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Essencialmente, devem ser eles formatados como um ʺserviço‐poloʺ, isto é, um
107
Nunca, indiscriminada e genericamente, através das higienistas e fascitóides "operações-arrastão"!
56
somatório de programas ou serviços de proteção especial de direitos; explicita e
assumidamente implantados e implementados como órgãos de execução da política de
promoção dos direitos humanos geracionais. O importante é que de nenhuma maneira esse
pólo integrador de programas de proteção especial invada atribuições de outros órgãos do
sistema amplo de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente, como às vezes isso está
acontecendo, especialmente de relação aos Conselhos Tutelares. Se eles se desenvolverem
como órgãos de execução de programas de proteção especial de direitos humanos
geracionais, eles deverão ser considerados ʺentidades de atendimentoʺ, na forma do Estatuto,
sujeito às regras de funcionamento dessas entidades e integrando o Sistema de Promoção de
Direitos. Daí porque nunca se deverão ser confundidos com
os conselhos dos direitos da criança e do adolescente, já que esses são órgãos
colegiados de normalização/monitoramento desses programas/serviços de proteção especial (Sistema
de Controle dos Direitos);
os conselhos tutelares, vez que esses são órgãos colegiados que funcionam como
contenciosos administrativos dirimindo administrativamente (não jurisdicionalmente) conflitos
sociais, aplicando medidas especiais de proteção (Sistema de Garantia de Direitos);
as varas da infância e da juventude, órgãos que prestam a jurisdição, administram
justiça à população, dirimindo jurisdicionalmente conflitos de interesse, aplicando sentenças e outros
despachos judiciais (Sistema de Garantia de Direitos).
Tais “centros” (SOS‐CRIANÇA e assemelhados), desse modo, devem ser considerados
como “retaguardas primárias” para os órgãos dirimidores de conflitos e aplicadores de
medidas restauradoras de direitos ameaçados ou violados (juizes da infância e da juventude
e conselhos tutelares). Esses órgãos precisam de serviços/programas públicos
governamentais e não governamentais que executem programas de atendimento, nos termos
das medidas aplicadas. Por exemplo: se um conselho tutelar aplicar uma medida de proteção
especial de “orientação, apoio e acompanhamento temporário” (art.136, II – Estatuto), ele deverá
requisitar ao Poder Público (de preferência municipal) que um programa ou serviço de
proteção especial atenda inicialmente, de maneira integrada essa criança ou esse adolescente,
indicando posteriormente o atendimento complementar e definitivo por um programa ou
serviço das demais políticas públicas (assistência social, educação, saúde etc.). Ora, eles
poderão funcionar como um pool de programas/serviços em regime protetivo especial (arts.
87, III a IV e 90). Na verdade, ele não é nenhum órgão autônomo, permanente e obrigatório
na rede de atendimento protetivo especial do Sistema de Promoção dos Direitos da Criança e
do Adolescente, segundo o Estatuto. Ele deve obrigatoriamente ser criado por lei estadual ou
municipal (imprescindível, nos termos da Constituição) e regulamentado por ato
administrativo do governo estadual ou municipal. E nesse ato de implantação e
implementação se dará seu perfil institucional, conforme a conveniência administrativa do
ente público responsável por sua criação e manutenção. E aí se deverá definir: que tipos de
programas de proteção especial de direitos humanos de crianças e adolescentes, previstos no
57
Estatuto ou que a necessidade local indicar, deverão ser incluídos no rol de atribuições de um
SOS‐CRIANÇA e seus assemelhados ? Por exemplo:
atendimento (preventivo e curativo) psico‐social, médico e jurídico, a vítimas de
crimes sexuais, de maus tratos ou de torturas e maus tratos, que sejam partes em inquéritos policiais e
ações judiciais e que estejam submetidas à autoridade de um conselho tutelar ou de uma vara da
infância e da juventude;
identificação e localização e recambiamento de crianças e adolescentes desaparecidas
(fuga do lar, por exemplo);
prevenção e apoio em meio aberto a crianças e adolescentes nas variadas situações de
abandono material ou intelectual (situação ʺde rua)ʺ; etc. etc.
Seria o caso de se definir: onde não justifique ainda uma unidade autônoma que assuma
especializadamente um dos programas ou serviços de proteção especial (arts. 87, III e IV e 90
– Estatuto), esses serviços e programas poderiam ser operacionalizados genericamente pelos
Centros SOS CRIANÇA (e seus assemelhados): um berçário de serviços e programas de
proteção especial. O cuidado na implantação e implementação deles deve ser no sentido de
se evitar invasão nas atribuições dos conselhos tutelares – estes sim, órgãos permanentes,
funcionalmente autônomos, a funcionarem como contenciosos administrativos (ʺnão‐
jurisdicionaisʺ). Devem existir para atender às necessidades dos conselhos tutelares (e juizes
da infância e da juventude) e não o contrário. A dúvida fica agora sobre a questão dos
centros integrados de proteção especial de direitos (SOS‐CRIANÇA etc.), como ʺportal
emergencialʺ, antecedendo o atendimento pelos conselhos tutelares. Pelo Estatuto, o plantão
dos conselhos tutelares deveria dar conta desse atendimento primeiro e vestibular. Assim se
pensa seja um conselho tutelar: o primeiro atendimento para apuração da situação e solução
pela via administrativa. Mas, isso não acontecendo, poder‐se‐ia pensar em atribuir a tais
centros integrados de proteção especial de direitos esse papel emergencial e extraordinário,
contanto que de imediato repasse o caso ao conselho tutelar, para regularização do
atendimento emergencial extraordinário, para apuração e solução legal e legítima.
D. OS PROGRAMAS SOCIOEDUCATIVOS
78. Características gerais – Esses programas (?) foram previstas como instrumentos de
enfrentamento das situações de conflito com a lei, isto é, destinados ao atendimento dos
adolescentes aos quais se atribui a prática de ato infracional ou adolescentes autores de atos
infracional (programas de internação, de semiliberdade e de liberdade assistida). Os
programas socioeducativos são, em princípio, uma prestação direta de serviço administrativo
pelo Poder Executivo, sob controle processual difuso ou direto do Poder Judiciário,
fiscalização do Ministério Público e das entidades competentes da sociedade civil e controle
interna (gestão) dos Conselhos dos Direitos. Como programas do campo dos Direitos
Humanos, são preenchidos substantivamente, com conteúdos da áreas das políticas públicas
que se quer especificamente proteger, em cada situação em concreto: direitos fundamentais
58
na área da educação, saúde, cultura, lazer, trabalho e profissionalização, segurança pública,
assistência social, habitação etc. Dentro dessa linha, têm uma função ética e educativa, de
impulso histórico para a elevação moral e intelectual do seu público‐alvo. E formalmente são
apresentados através dos mecanismos de proteção jurídica‐social daqueles que têm direitos
violados e de responsabilização/sanção daqueles que estão em conflito com a lei. Desse
modo, os programas socioeducativos, sendo programas de promoção de direitos humanos,
devem se apresentar portanto como programas formalmente
responsabilizadores/sancionadores jurídicos e substancialmente educativos
E. SERVIÇOS E PROGRAMAS DAS DEMAIS POLÍTICAS PÚBLICAS
79. Características gerais ‐ Em uma segunda linha estratégica de atendimento, a
política de promoção de direitos da criança e do adolescente108 (como a política de promoção
de direitos humanos o faz, de maneira geral) deve fomentar, facilitar, articular a inclusão de
seu público‐alvo de credores de direitos, a partir daqueles seus serviços e programas
específicos de proteção especial e socioeducativos (primeira linha estratégica, atrás
analisados), nos programas e serviços das demais políticas públicas, especialmente das
políticas sociais básicas: educação, saúde, assistência social, trabalho, previdência, segurança
pública, cultura, desporto etc.Assim sendo, a política de promoção dos direitos (e seu
decorrente Sistema político‐institucional) lança seu público de crianças e adolescentes
credores de direitos de adolescentes em conflito com a lei ‐ ad intra ‐ aos braços dos
“cuidadores”, operando nos seus serviços e programas de proteção especial (cuidado premial)
e de socioeducação (cuidado sancionatório). Entretanto, essa missão da política de promoção
de direitos ‐ ad extra do seu estrito Sistema de Promoção – de inclusão privilegiada e
acompanhada nos serviços e programas das demais políticas públicas (educação, saúde,
assistência social etc.), na prática cotidiana, sofre algumas ambigüidades: algumas vezes, a
política de promoção dos direitos da criança e do adolescente é vista apenas como mera
articulação das políticas sociais (garantir acesso à escola, por exemplo), outras vezes, ela é
reduzida aos seus programas de proteção especial (abrigo, por exemplo) ou socioeducativos
(internação, por exemplo). O ideal é se assegurar que ela (como toda política em favor de
Direitos Humanos) tem como missão última o asseguramento do acesso qualificado de seu
público a quaisquer dos serviços e programas de todas as políticas públicas. E ao mesmo
tempo, para isso atingir como ponto‐ômega, essa política aqui em foco precisa do apoio dos
seus serviços e programas específicos109, numa linha nitidamente estratégica.
80. Exemplificando ‐ Assim, poder‐se‐iam elencar, como metas estratégicas da política
de promoção dos direitos da criança e do adolescente, algumas das inúmeras indicações –
108
Insistindo na lembrança: a mesma coisa que “política de atendimento de direitos” – cfr. art.86 – Estatuto cit.
109
Arts. 87, III e V e 90 – Estatuto cit.
59
por exemplo – contempladas no “Relatório da Sociedade Civil sobre a Situação dos Direitos da
Criança e do Adolescente no Brasil”110; tanto referentes especificamente aos Sistemas de
Garantia, Promoção e Controle dos Direitos da Criança e do Adolescentes111 (por exemplo,
“implementação de programas oficiais de proteção a testemunhas e vítimas de crimes contra crianças e
adolescentes”, “criação de unidades de internação provisória em espaço físico de das unidades de
internação provisória”) , quanto referentes genericamente aos Sistemas de Educação e de
Saúde112 (por exemplo, “investimento em programas de nutrição infantil, com ênfase ma faixa entre
12 e 60 meses”, “fortalecimento do acompanhamento e do controle social da totalidade dos recursos
destinados à educação”). Em ambos casos, se estaria procurando operacionalizar a política de
promoção dos direitos da criança e do adolescente, em suas 2 linhas estratégicas de ação, na
forma do artigo 87 do estatuto da Criança e do Adolescente.
VII. A DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: A
EXPERIÊNCIA EMBLEMÁTICA DOS CONSELHOS TUTELARES
A. A ESSÊNCIA DOS CONSELHOS TUTELARES
81. Generalidades ‐ Nos tempos atuais, talvez sejam os conselhos tutelares os espaços
públicos institucionais mais controvertidos, como instrumento de proteção e direitos
humanos, dentro no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. E, ao
mesmo tempo, os mais emblemáticos do “novo regime”... dos novos tempos. No fundo, são
eles o que de mais original e inovador se criou com o Estatuto da Criança e do Adolescente,
de relação à nossa tradição jurídico‐normativa e político‐institucional. Caminhos novos a
serem trilhados... razão de confusões, ambigüidades, descaminhos, tropeços, surpresas. Com
tudo isso, porém, temos muito caminho andado... mas com muito caminho a se andar
também. Talvez, ao se refletir sobre a essencialidade desses conselhos tutelares, sobre sua
intrínseca natureza, boa luz poder‐se‐ia lançar sobre esse novo modo de caminhar: sobre as
novas estratégias (espaços e mecanismos estratégicos) de proteção dos direitos humanos
geracionais e mais especificamente sobre o Sistema de Garantia de Direitos.
82. Natureza jurídica dos conselhos tutelares - Os conselhos tutelares são órgãos públicos, instituídos, criados,
organizados e com seu funcionamento regulado, por normas legais: o Estatuto da Criança e do Adolescente e leis
municipais. São eles órgãos públicos e não instâncias organizativas da sociedade civil: eles integram o Poder Público, a
Administração Pública. O fato de serem compostos por agentes públicos, escolhidos pelas comunidades que integram a
sociedade, não faz deles “organizações representativas da sociedade” (arts. 204, II e 227, §7° - Constituição federal), isto
é, entidades sociais, organizações não governamentais. Estão eles incumbidos "pela sociedade de zelar pelos direitos de
crianças e adolescentes"; mas, quando o povo investe de poder político-administrativo um determinado operador, ele o
está institucionalizando como agente público estatal.Certo ranço antiestatal, a permear ainda o ideário das nossas
110
Relatório apresentado ao Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas (Genebra), pela ANCED, com a adesão do
Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – DCA e de outras entidades (2004)
111
Capítulos 1, 4 e 5 – Relatório citado
112
Capítulos 2 e 3 – Relatório citado
60
organizações sociais, leva às vezes a se marcar a máquina do estado como intrinsecamente antidemocrática; propugnando
por instâncias não-estatais paralelas alternativas (mas sem capacidade de alteridade...) de relação ao estado. Esquecidos que
a verdadeira luta do atual momento histórico é a democratização real do estado, é a ampliação da sua concepção para
incluir nela tanto a sociedade política113), como a sociedade civil organizada - uma marcando a outra. Se fossem
organizações representativas da sociedade não poderia uma norma estatal, uma lei, criá-los, organizá-los. A Constituição
federal (art. 5º, XVII) consagra o princípio da plenitude da liberdade de associação para fins lícitos. As organizações
representativas da sociedade nascem da vontade da própria sociedade, dos seus componentes. Leis, nacional e municipal,
devem instituí-los, criá-los e regulá-los. A norma nacional de proteção os institui, dando-lhes atribuições e define
parâmetros gerais para que leis municipais os criem, os estruturem, organizem, disponham sobre seu funcionamento e sobre
o regime jurídico de seus membros.
Em face disso, o Estatuto citado não poderia ir além do que foi na instituição dos
conselhos tutelares. Essa lei federal em verdade é uma norma nacional de “proteção da
infância e da juventude”, como prevista no art. 24, XV da Constituição federal. Compete à
União legislar, como fez com o Estatuto, sobre esta matéria concorrentemente com os Estados
federados, estando ela limitada à expedição de “normas gerais” (§1° – art. cit.). Por sua vez,
normas legais estaduais poderão, em caráter “complementar” (§2° – art. cit.), legislar a respeito
dos conselhos tutelares, respeitados os limites estabelecidos no art.30 da Constituição federal,
no que diz respeito à competência dos municípios para legislarem.
Em conclusão, em termos práticos:
O Estatuto, em princípio, como norma programática de aplicação imediata
institucionaliza os conselhos tutelares obrigatoriamente como integrantes de um sistema de
garantia dos direitos de crianças e adolescentes, em todo o país.
Mas, a regulamentação complementar do seu papel de proteção especial, nos
casos de violação/ameaça de direitos, poderá vir contemplada em leis estaduais;
Todavia, obrigatoriamente, uma lei municipal, deverá dispor sobre sua criação
formal no âmbito de um determinado município, sobre sua estruturação, organização e
funcionamento e sobre o regime jurídico de seus membros.
A não‐criação do conselho tutelar pelo município deverá implicar numa sanção,
como impõe o Estatuto (artigo 261): fica vedado o repasse de verbas pelo Estado e pela União
para o desenvolvimento de programas na área da infância e da adolescência, nesse
município, enquanto essa providência não for cumprida; inclusive ensejando o ajuizamento
de competente ação civil pública pelo Ministério Público ou por entidade social que tenha
legitimidade processual.
Os conselhos tutelares são órgãos públicos integrantes do Poder Executivo
municipal ‐ Os conselhos tutelares integram o Poder Executivo, uma vez que, em se
tratando de órgãos públicos estatais, forçosamente terão eles que se inserir em um dos 3
Poderes estatais, independentes e harmônicos, entre si: Legislativo, Executivo ou Judiciário
(salvo no caso do Ministério Público, por força de dispositivos expressos da Constituição
federal).
113
GRAMSCI. Antonio - “governo dos funcionários”
61
Ora, considerando‐se sua função de aplicador da lei em casos concretos e sua condição
de ʺórgão não jurisdicionalʺ (Estatuto cit.), aplicando medidas administrativas especiais de
proteção a todas as crianças e todos os adolescentes que delas necessitarem – obviamente há
que se tê‐lo como órgão especial do Poder Executivo. Mais especificamente: órgãos do Poder
Executivo municipal.
O Estatuto remete a leis municipais sua criação e regulação. Cai essa normalização no
âmbito da competência legislativa do município (art.30 – Constituição federal), para dispor
sobre “organização de serviços públicos de interesse local”. Aqui está muitas vezes o calcanhar de
Aquiles do funcionamento de alguns conselhos tutelares: a má normalização. Como se trata
de exercício de atividade legisferante complementar, os legisladores municipais disso
esquecem e acabam abandonando as normas gerais nacionais (ou estaduais, nos raros casos
existentes), incluindo disposições que se conflitam com essas normas. Todavia, o mais
comum é a lei municipal normalizar de maneira incompleta, deixando de regular alguns
pontos básicos da implementação, organização e funcionamento dos conselhos tutelares
naquele município. E – mais comum ainda! – deixando de regular o regime jurídico dos
conselheiros tutelares.
É imprescindível que, na elaboração das leis municipais referentes aos conselhos
tutelares, o poder público municipal (Chefe do Poder Executivo) leve em conta dois pontos
de partida fundamentais. O primeiro diz respeito à participação da população especialmente
das suas organizações representativas (num sentido amplo, envolvendo também as
comunidades, associações, as organizações eclesiais, os sindicatos etc.). O segundo diz
respeito à observação das normas legais de hierarquia superior e os parâmetros orientadores
estabelecidas pelos conselhos dos direitos da criança e do adolescente (em seus três níveis).
Em conclusão:
a) Devem as leis municipais dispor livremente sobre criação, estruturação,
organização e funcionamento dos conselhos tutelares e sobre o regime jurídico dos
conselheiros tutelares;
b) Devem todavia obedecer aos parâmetros mínimos estabelecidos no (*) Estatuto,
(*) nas leis estaduais de proteção à infância e adolescente (caso editadas), (*) nas normas
regulamentares específicas do CONANDA114 e (*) dos conselhos dos direitos da criança e do
adolescente115.
Órgãos especiais, funcionalmente autônomos e administrativamente vinculados a
um Órgão de Administração Superior do Poder Executivo municipal ‐ Os conselhos
tutelares, em face da dogmática jurídica, são órgãos da administração centralizada, sem
114
"Parâmetros para criação de Conselhos Tutelares" - Resolução n. 75
115
Por exemplo: CEDCA-CEARÁ - "Guia Metodológico para criação dos Conselhos Tutelares e dos Direitos da Criança e
do Adolescente". Tomo I – Coleção Ciranda dos Direitos.
62
personalidade jurídica própria 116. E portanto sem possibilidade, por exemplo, de possuírem
CGC próprio, diverso daquele da entidade estatal. Nos municípios que lhes são concedidos
equivocadamente CGC pelos órgãos fazendários federais, são esses conselhos classificados,
na Fazenda Nacional, como ʺassociaçõesʺ, isto é, entidades não governamentais, o que implica
numa situação ilegal, a merecer urgente reparo, pena de responsabilização (inclusive penal)
dos responsáveis pela declaração falsa e conseqüente situação.
Autonomia administrativa e financeira não têm esses conselhos, aos moldes das
entidades da administração descentralizada: o artigo 172 do decreto‐lei 200/67 dispõe que
essa se concederá pelo estado, ʺno grau conveniente, aos serviços aos serviços, institutos e
estabelecimentos incumbidos da execução de atividades de pesquisa ou de ensino ou de caráter
industrial, comercial ou agrícola, que por suas peculiaridades de execução e funcionamento exijam
tratamento diverso do aplicável aos demais órgãos da administração direta (...)ʺ.
Assim sendo, só o reconhecimento, formal e explícito, por lei, de determinados graus
de autonomia administrativa e financeira garantirá tal condição a esses colegiados. Nenhuma
inferência, em sentido diverso, se poderá fazer a partir do texto do Estatuto, pois onde essa
autonomia administrativo‐financeira não estiver claramente permitida, proibida está: este, o
princípio de direito aplicável à espécie, no campo do Direito Administrativo. O Estatuto não
a explicita em nenhum dos seus dispositivos. Quando ele fala em ”autonomia” dos conselhos
tutelares, o faz, no sentido da autonomia funcional, como se verá adiante.
Esses conselhos são órgãos públicos administrativos especiais: estão apenas
vinculados administrativamente, em linha lateral, a um órgão administrativo superior, de
âmbito municipal (Secretaria municipal, por exemplo), que lhes assegura uma ʺtutela
administrativa de apoio institucionalʺ: isto é, dotação orçamentária, recursos humanos de apoio
e material, equipamento e instalações.
Todavia, são funcionalmente autônomos, isto é, sem qualquer subordinação
hierárquica a nenhuma instância administrativa superior. Essa autonomia funcional garante‐
lhes que de suas decisões deliberativas não cabe recurso administrativo hierárquico para
nenhuma instância, qualquer que seja. E sim, controle judicial da legalidade dos seus atos,
por provocação de quem tenha legitimidade processual para tanto.
Muitas vezes, se tem observado que juizes e promotores de justiça intervêm
indevidamente nos Conselhos Tutelares, como se foram seus ʺsuperiores administrativos
hierárquicosʺ, desrespeitando a autonomia funcional dos conselhos tutelares, prevista no
Estatuto. Prática estranha e perigosa essa, pois se configura numa franca usurpação de
poderes, numa intervenção ilegal de um Poder (Judiciário e Ministério Público, estaduais)
sobre outro (Executivo, municipal) Não existe nenhuma linha de subordinação ou vinculação
administrativa entre juizes, promotores e delegados de polícia – por exemplo – e os
conselheiros tutelares.
116
DONIZETI LIBERATI, Wilson & CYRINO, Público Caio B. 1997: "Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do
Adolescente". São Paulo. Malheiros Editores.
63
Existe sim, o poder do Ministério Público de fazer “recomendações” ao conselho tutelar,
nos termos do art. 201, § 5°, ʺcʺ, do Estatuto – como a qualquer autoridade pública. O
conselho tutelar, na esfera da sua autonomia, cumpre ou não a ʺrecomendação público‐
ministerialʺ. Em não cumprindo, se sujeita a ser pólo passivo de uma ação judicial, ajuizada
pelo representante do Ministério Público, se couber – caindo assim na esfera do controle
judicial dos atos administrativos.
De relação ao Poder Judiciário, prevê o Estatuto uma única forma de intervenção legal
e legítima dele, de relação às deliberações de um conselho tutelar: processualmente, via
sentença. Insurgindo‐se o Ministério Público ou qualquer interessado (isto é, quem tenha
legitimidade processual, como pais ou responsável legal da criança ou adolescente) de
relação a uma decisão do conselho tutelar ou de um conselheiro singular, poderão eles
ajuizar ações (ação civil pública, mandado de segurança etc.), perante a Vara Infância e da
Juventude, para controle judicial (formal) do ato administrativo emanado do conselho
tutelar.
Os Conselhos Tutelares são órgãos colegiados e não singulares ‐ Outra peculiaridade
que integra sua natureza jurídica, faz do conselho tutelar (como obviamente diz o nome)
essencialmente um colegiado. Isto é, um órgão integrado por vários agentes públicos, o que
faz com que seus atos administrativos sejam atos jurídicos complexos formais, emanados de
uma decisão colegiada e não de um agente singular.
Em situações especiais (situações emergenciais e urgentes ou atos protocolares de
representação), sempre previstas na própria lei e no seu regimento ou decorrentes de
delegação expressa do plenário colegial, esses atos podem ser praticados pela sua direção ou
por qualquer dos seus membros isoladamente e referendados posteriormente pelo
colegiado.
No dia a dia, os conselheiros tutelares atendem separadamente as mais diversas
situações de ameaças ou violações de direitos de crianças e adolescentes. Principalmente,
quando estão em plantões ou em regime de sobre‐aviso. Mas precisa ficar bastante claro o
seguinte: seus atos deliberativos (aplicação de medidas, representações ao Ministério Público,
encaminhamentos ao Judiciário, requisições, notificações etc. etc.) só podem ser emanados
do colegiado, originalmente ou referendados. Atos decisórios isolados de conselheiros
tutelares não têm validade jurídica.
Natureza político‐institucional dos conselhos tutelares. Mecanismos politico‐
institucionais de construção de um novo modelo de gestão pública ‐ A experiência dos
conselhos tutelares, no Brasil, se justifica ‐ política e institucionalmente ‐ como forma de se
garantir a
64
9 participação popular na gestão do poder, no desenvolvimento dos negócios
públicos pelo estado117.; e a
9 desjudicialização da operacionalização das políticas sociais.
Os conselhos tutelares, por sua natureza, são contenciosos administrativos, criados
para assumirem a solução de conflitos pela via administrativa, para aplicarem a lei em casos
em concreto. Diz o Estatuto, com má técnica legislativa: ʺórgãos não jurisdicionaisʺ; como se a
declaração de uma condição negativa fosse uma definição de sua natureza, pois não se diz o‐
que‐ algo‐é, dizendo‐se o‐que‐ele‐não‐é. Seria o caso de se interpretar a expressão como
ʺórgão contencioso não‐jurisdicionalʺ, em função das suas atribuições.
No passado recente, as questões sociais que envolviam crianças e adolescentes, típicas
de solução por via de políticas públicas, eram levadas e submetidas ao contencioso judicial,
isto é, aos antigos Juízes de Menores – um misto de magistrado, assistente social, prefeito,
primeira‐dama, “pai e provedor”.
Assim, as confusões maiores sobre a real natureza e missão político‐institucional dos
conselhos tutelares nascem de um entendimento equivocado sobre o que sejam intervenção
judicial e intervenção político‐administrativa, isto é, entre prestação jurisdicional
(administração de justiça) e gestão dos negócios públicos (desenvolvimento de políticas
públicas).
Relações entre conselhos tutelares, estado e democracia: a marca dominante da
participação popular, como essência da experiência desses conselhos ‐ Os conselhos
tutelares não são mais, nem menos democráticos que aqueles órgãos públicos constituídos ou
através da representação da sociedade por eleição (senadores, governadores, prefeitos,
vereadores etc.) ou através da participação direta (conselheiros dos direitos, p. ex.) ou através
da investidura legal por nomeações, livres118 ou via concurso público (secretários de estado,
funcionários públicos, juizes, promotores etc.). Os conselhos tutelares são instrumentos do
Estado Democrático de Direito como os outros o são. A questão é se saber que entendimento
se tem de estado e de democracia, para se entender a natureza político‐institucional desses
conselhos .
Papel político‐administrativo dos conselhos tutelares: a marca dominante da
desjudicialização da execução de políticas públicas, como essência da experiência desses
conselhos ‐ A partir dessa visão ampliada do Estado Democrático, os espaços públicos de
linha participativa, como os conselhos tutelares, do mesmo modo como os conselhos dos
direitos da criança e do adolescente (como se verá adiante) devem ser vistos sob dupla
perspectiva:
organizações burocráticas; e
117
Constituição federal – artigos 227, §7º e 224, II.
118
Cargos ou funções comissionadas, de livre nomeação e exoneração ad nutum
65
espaços de poder político.
Organizações burocráticas ‐ Os conselhos tutelares precisam se fortalecer,
preliminarmente, como ʺorganizações burocráticasʺ. A idéia de ʺequipamento burocrático estatalʺ
não pode realmente esgotar toda a potencialidade e a riqueza do papel político‐institucional
de um conselho dessa natureza. Mas, não se a pode desprezar como sem importância nesse
trabalho de construção geral desse papel, a fazê‐los instrumento efetivo do poder estatal. O
asseguramento de condições mínimas de estruturação e funcionamento, dignos para o
conselho é condição essencial para a construção do seu papel político‐institucional.
Um espaço público institucional, como esse , não sendo eficiente administrativamente,
muito dificilmente se tornará eficaz. Isto é, sem bons resultados administrativos, difíceis bons
impactos sociais e políticos.
Um conselho tutelar que esteja mal instalado, quanto à sua sede, que não tenha apoio
administrativo suficiente e com a devida qualificação, que não tenha equipamentos essenciais
atualizados (computador, telefone, fax, copiadora – por exemplo) – obviamente vai ter o seu
desempenho bastante comprometido. Não que a falta disso impeça absolutamente o
fortalecimento desses conselhos como ʺlugares de poder políticoʺ ‐ essas mazelas burocráticas
são fatores condicionantes e não rigidamente determinantes.
Na verdade e na prática, tudo isso se torna um autêntico ʺcírculo viciosoʺ. Pois quanto
mais efetivo seu ʺpoder políticoʺ, mais se fortalece burocraticamente um conselho tutelar. E ao
mesmo tempo, quanto mais fortalecido burocraticamente um conselho desses, mais efetivo
deveria se tornar esse seu ʺpoder políticoʺ. São como duas frentes de luta que se
complementam.
O perigo é quando conselheiros tutelares se esquecem do papel político, da missão
maior do conselho e se reduzem a uma luta corporativa para criar melhores condições de
trabalho para si, colocando a atividade‐meio acima da atividade‐finalística.
O fortalecimento burocrático dos conselhos tutelares depende visceralmente de que
tenham, uma estrutura organizacional pública que lhe dê apoio administrativo. Em sendo
órgãos administrativamente vinculados a um órgão da administração superior do município
(Gabinete do Prefeito, Secretaria Municipal de Desenvolvimento ou Ação Social, por
exemplo) compete a esse órgão de tutela administrativa garantir obrigatoriamente tudo isso:
instalações, equipamentos, material permanente, material de consumo, transporte quando
necessário, pessoal técnico e de apoio administrativo.
A depender do tamanho do município, da sua população, dos níveis de violação dos
direitos de crianças e adolescentes essa estrutura administrativa poderá variar.
Num grande município (Capital, por exemplo) se justifica que o conselho tutelar tenha
sua sede, em prédio destinado a ele especificamente, com um número de dependências que
permita a instalação de sua secretaria de apoio, de sua sala de reuniões, de gabinetes de
atendimento reservado – por exemplo. Justifica‐se que o conselho tenha seu veículo próprio,
computadores para cada conselheiro, telefone privativo. Justifica‐se que tenha servidores de
66
apoio administrativo, colocados especialmente a sua disposição Ora, qualquer Setor, Secção
ou Divisão da máquina pública tem esse mínimo, sem provocar escândalos ou desfalques
maiores. Pelo menos, que se trate esse “filho mais moço”, com os mesmos cuidados e
privilégios que garante aos seus “irmãos mais velhos”. É só uma questão de vontade política,
de se reconhecer que a proteção e garantia dos direitos de crianças e adolescentes é uma
prioridade absoluta, como reconhece a Constituição federal.
Mas, em cidades menores, justificável seria que o conselho ocupasse, no mínimo, duas
salas de um próprio municipal, que fosse compatível com a dignidade de suas funções e com
as necessidades tanto de privacidade, no atendimento do seu público, quanto de
proximidade dessa população. O transporte poderia ser compartilhado e requisitado
justificadamente para atuação na sua área de competência (território do Município). O
telefone se torna muito difícil de compartilhamento diante das peculiaridades e necessidades
do conselho, que o precisa como instrumento de trabalho cotidiano e como instrumento de
integração ao Sistema de Informação para a Infância e Adolescência – SIPIA (em nível
estadual e nacional). O pessoal administrativo poderá se reduzir a um servidor burocrático
ali lotado e a técnicos designado ad hoc, quando se fizer necessário , em cada caso concreto,
mediante requisição do conselho ao dirigente municipal competente (assistentes sociais,
psicólogos, advogados, pedagogos etc.).
O não atendimento dessas necessidades desse órgão permanente e essencial do
chamado ʺSistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentesʺ, salvo melhor juízo,
justifica (por provocação expressa e formal do conselho tutelar prejudicado) a intervenção do
Ministério Público: ou fazendo as recomendações público‐ministeriais, ou propondo
ajustamentos de conduta ou instaurando inquéritos civis ou ajuizando diretamente ações
civis públicas, contra o Poder Público Municipal, na forma da legislação vigente.
Espaço de poder político ‐ Mas, a autoconstrução como ʺespaço de poder político”
deverá ser a grande tarefa, no momento, dos conselhos tutelares, dos conselhos dos direitos
da criança e do adolescente e dos seus membros. Eles têm que se tornar grandes aliados,
nessa autoconstrução, um fortalecendo o outro. Estrategicamente, na atual conjuntura, esse é
o objetivo mais urgente e importante a ser alcançado, pelo movimento de luta pelos Direitos
Humanos de Geração (crianças e adolescentes) – fazer desses conselhos, reais espaços de
poder político! O conselho tutelar, bem como os conselhos dos direitos, não podem ser ʺmais
um órgão burocrático dentre muitosʺ, sempre caudatários, a reboque de outras instâncias da
sociedade civil e do governo – meramente, reativos.
Eles precisam, ambos, construir urgentemente sua proatividade, sua participação
protagônica nas discussões e nas deliberações a respeito do atendimento (na defesa, um, na
promoção o outro) dos direitos de crianças e adolescentes: real e efetivo ʺespaço político de
poderʺ. E tal poder político, eles adquirem, quando se abrem para a sociedade, ouvindo‐a e
possibilitando a sua participação, a explicitação dos conflitos de interesses entre classes
sociais, entre categorias, gerações, gêneros, orientações sexuais, regiões, etnias, raças etc.
67
Eles devem exercitar seu papel político‐administrativo, que faz com este tipo de
intervenção o diferencie de um órgão de intervenção judicial. Para tanto os conselhos
tutelares precisam se tornar potencializadores estratégicos das políticas públicas em favor da
infância e da adolescência, atuando como :
aparelhos coercitivos e de integração;
instâncias de mediação; e
dirimidores de conflitos sociais
E como tal, eles devem exercitar seu papel político‐administrativo, que faz com este
tipo de intervenção o diferencie de um órgão de intervenção judicial.
Instrumentos de integração e coerção ‐ A capacidade de integrar operacionalmente,
de maneira ampla, os diversos atores sociais, com legitimidade reconhecida é realmente uma
importante estratégia potencializadora.
Enquanto os conselhos dos direitos são os grandes articuladores políticos, os
conselhos tutelares são os integradores operacionais. O primeiro na normalização e controle
da política de promoção dos direitos da criança e do adolescente e o segundo na execução em
concreto dessa mesma política, prevista no Estatuto (art. 86).
Quando um direito for violado ou ameaçado, compete ao conselho tutelar aplicar
especiais de proteção e isso ele faz requisitando serviços da área da “saúde, educação,
segurança, serviço social, trabalho e previdência” (art. 136, III, “a” ‐ Estatuto) – isto é, integrando
operacionalmente esse serviços, como forma de reconhecimento e garantia dos direitos
violados ou ameaçados. Quando um conselho tutelar coloca esses serviços públicos como
chamada “retaguarda” para o cumprimento das suas decisões protetivas, ele está exatamente
dando concretude a esse princípio, fazendo‐se agente integrador político, realmente efetivo
– espaço de poder. Aí está o diferencial para um conselho tutelar.
Mas, para isso, os conselhos tutelares precisam igualmente fazer valer sua
coercibilidade, isto é, a capacidade de fazer respeitadas suas deliberações vinculantes, pelo
Estado. E isso não é apenas uma questão técnico‐jurídica, é uma questão político‐
institucional, a ser construída dentro daquela correlação de forças e na conjuntura atual.
Instrumentos de mediação ‐ A segunda estratégia para se construir um conselho
tutelar, como ʺespaço político de poderʺ, é sua transformação em ʺinstância de mediatizaçãoʺ.
Obter o ʺconsenso socialʺ, a ʺharmonização” ∙ entre os cidadãos “é aspiração de muitos
governantes para alcançar a legitimidade de suas decisões político‐administrativas: a busca da
almejada” paz social “. Realmente, se visa – sob o manto desse discurso escamoteador – a
neutralização das ações dos movimentos sociais organizados, evitando‐se que os interesses
das ditas classes subalternas se tornem de alguma maneira hegemônicos. Na verdade, o que
se quer proteger não são interesses comuns entre os cidadãos, mas os interesses dos grupos
que detém a hegemonia econômica, política e jurídica, numa determinada conjuntura.
68
ʺA harmonização pretendida é vista como neutralidade e a neutralidade apresentada como
harmonização, mas numa relação de forças em que predominam os interesses do capital, a longo e não
raro em curto prazo” ∙
Há um sério perigo dos conselhos tutelares se tornarem esse ʺaparelho funcionalʺ, na
busca de falsos consensos, escamoteando os conflitos de interesses reais da vida social e
tentando essa ʺharmonizaçãoʺ: buscando uma ʺpaz de cemitériosʺ.
De outra parte, como bem alerta DONIZETI LIBERATI119, há o perigo de cairmos no
oposto e vermos nas instituições públicas meramente um ʺaparelho ideológico do Estado” ‐
instrumento reprodutor de relações sociais, reprodutor do poder que se encontra
monoliticamente nas mãos das classes dominantes, a seu serviço exclusivo, de direção,
dominação e exploração das classes subalternas.
A partir dessa visão, nenhum sentido realmente tem o funcionamento de um conselho,
escolhido pelas comunidades, como o conselho tutelar: as Políticas de Estado seriam os
reflexos apenas dos interesses das classes dominantes, não havendo nenhum espaço e
possibilidade para a defesa e incorporação dos interesses das classes dominadas.
Mas, há a possibilidade de uma terceira visão do papel de conselhos tutelares, nesse
processo: garantia da pluralidade através do respeito à pluralidade e ao dissenso. Dimensão
importante do pluralismo, na concepção de democracia120, diz respeito à valorização do
dissenso. Já alertava BOBBIO.1986121 a respeito: ʺDesde que mantido dentro de certos limites
estabelecidos pelas denominadas regras do jogo, (o dissenso) não é destruidor da sociedade, mas
solicitador, e uma sociedade em que o dissenso não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a
morrerʺ.
Apesar do estado e suas instituições darem prevalência aos interesses dos grupos que
detém a hegemonia social, econômica, política e jurídica num determinada conjuntura,
existem todavia algumas brechas nesse poder, algumas ʺinstâncias de mediaçãoʺ, onde se pode
fazer a luta pela incorporação de determinados interesses dos mais fracos. A depender de
uma certa correlação de forças.
ʺO Estado mediatiza as relações sociais, segundo a correlação de forças da sociedade civil. Ou
seja, ele não está somente em função dos interesses das classes dominantes, podendo também integrar,
aceitar, ou transformar certos interesses das classes dominadasʺ122
Em nosso caso, por exemplo, isso ocorreria com a incorporação e defesa dos interesses
da criança e do adolescente, privilegiando o atendimento de seus direitos fundamentais –
principalmente enquanto grupo vulnerabilizado, discriminado, violentado, explorado,
ʺcredor de direitosʺ.
E isso se faria numa a tentativa de se deflagrar e fortalecer um processo de
hegemonização dos interesses dos excluídos, dos mais vulneráveis ‐ da criança e do
119
Op. cit.
120
Contextualizado, atrás, neste texto: 1.3.1. "Visões da Democracia e do Estado. Um novo-corporativismo social?"
121
BOBBIO, Norberto – obra citada
122
FALEIROS , Vicente de Paula. 1980: "A Política Social do Estado Capitalista"
69
adolescente (em nosso caso concreto). A ser feito nas brechas do poder hegemônico do bloco
dominante (capitalista, racista, androcêntrico‐patriarcal, adultocêntrico, homofóbico etc.),
com um discurso crítico e uma prática transformadora, na linha da “grande narrativa da
transformação social”.
Essa hegemonização não se chocará com a democracia almejada123, se a colocarmos
sem oposições ao paradigma da pluralidade, pois se trata de um falso dilema: é preciso se
ʺconstruir hegemonia na pluralidadeʺ124 É preciso se ter espaços públicos, onde a pluralidade de
interesses e sujeitos, consolidados através ʺorganizações corporativasʺ,125 possa negociar a
construção da ʺvontade coletiva majoritáriaʺ, através de processos democráticos de tomada de
decisão.
Os conselhos tutelares podem perfeitamente se apresentar como ʺinstâncias de
mediaçãoʺ, pluralistas e hegemonizadoras, em favor dos interesses priorizáveis da infância e
da adolescência. Desse modo, esses conselhos têm que se transformar também em “pólos de
extensão da cidadania”, orientando a população, fazendo educação para os direitos, num
sentido amplo – como se verá adiante, quando se tratar das atribuições legais dos conselhos
tutelares.
Só realmente dirigentes políticos com compromisso com a causa da democracia têm
interesse no fortalecimento dos conselhos tutelares, nessa linha; pois os corruptos,
autoritários e tecnocratas só podem ver, em colegiados tais, um grande entrave aos seus
projetos políticos a ser inviabilizado ou um possível cúmplice a ser manipulado.
SEÇÃO 2
ATRIBUIÇÕES DOS CONSELHOS TUTELARES
Generalidades ‐ O conselho tutelar, muitas vezes, trabalha demais, mas atuando fora
das suas atribuições, isto é, faz pouco da sua missão específica e muito da missão alheia.
Tratando‐se de órgão público, funcionalmente autônomo, de um contencioso
administrativo municipal, aplicador de medidas especiais de proteção ‐ o limite de atuação
de um conselho tutelar está na lei, como qualquer instância pública institucional.
O Estatuto elenca as atribuições dos conselhos tutelares de maneira clara, dentro de
um contexto de rede, integrando um sistema de proteção dos direitos fundamentais de
crianças e adolescentes, onde as atribuições administrativas de outros órgãos e as
competências jurisdicionais estão também claramente explicitadas. Esta é uma marca típica
do Estado Democrático de Direito: ao cidadão só vedado fazer o que lhe veda lei e o Estado
só é permitido fazer o que lhe permite a lei.
Assim sendo, os conselhos tutelares podem e devem fazer o que o Estatuto e a lei
municipal de criação autorizarem. Não podem agir segundo o desejo dos seus integrantes ou
123
Conferir atrás, neste texto: "Uma visão de Democracia e de Estado. Um novo corporativismo social?
124
SOUZA FILHO, Rodrigo – obra citada.
125
SOUZA FILHO, Rodrigo – obra citada.
70
dos demais operadores do chamado “sistema de garantia de direitos”. E, principalmente, não
podem atuar para suprir ausências, faltas, omissões de outros órgãos, como por exemplo de
uma Vara do Poder Judicial, de um órgão do Ministério Público, de uma Delegacia de
Polícia, de uma Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (ou homólogas), de
entidades governamentais e não governamentais de proteção especial ou de socioeducação
etc. etc..
Os registros do SIPIA demonstram que vários conselhos tutelares estão atuando
completamente fora de sua estrada, invadindo as atribuições e atribuições alheias (às vezes
de boa‐fé, outras por ignorância).
Tem‐se constatado, por exemplo, as seguintes invasões abusivas:
a) autorizações para crianças e adolescentes viajarem ‐ a competência é exclusiva e
indelegável dos juizes, em todos os casos de viagem, quando se trata de criança e em casos de viagens
para o exterior, quando se trata de adolescentes;
b) acordos extra‐judiciais de alimentos, com recepção de valores de pensão ‐ trata‐se de
matéria da competência do Ministério Público ou do Poder Judiciário (acordo ou ação, extra‐judiciais
ou judiciais);
c) procedimentos de investigação de paternidade ‐ a competência é privativa do Poder
Judiciário;
d) determinações de registro civil das pessoas naturais (nascimento e óbito), através
requisições aos Ofícios Judiciais competentes, quando o Estatuto prevê apenas a requisição de certidão
do registro, para instruir procedimento apuratório do Conselho Tutelar ‐ a determinação e a
autorização de registro compete a Juiz específico, com competência para controlar os Registros
Públicos;
e) fiscalizações e autuações infracionais de bares, boates, restaurantes, diversões públicas,
quanto à freqüência de pessoas menores de idade e quanto à venda de bebidas aos mesmos e as
chamadas ʺblitzsʺ para apreender meninos em situação de rua – compete ao Conselho Tutelar aplicar
medidas de proteção à criança e ao adolescente nessa situação, requisitando medidas
responsabilizadoras contra os abusadores, vez que o poder polícia é atribuído por lei aos órgãos de
segurança pública, aos órgãos próprios de fiscalização da Prefeitura (concessora do alvará de
funcionamento), à Vigilância Sanitária, ao Poder Judiciário (através seus Agentes de Proteção ou
Comissários de Vigilância, como a lei estadual de organização judiciária dispuser) , por exemplo;
f) concessão de guarda, com destituição ou suspensão do poder parental ‐ a definição de
estado, ou seja, a colocação em família substituta (guarda, tutela e adoção) é da exclusiva competência
do Poder Judiciário;
g) atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei (ato inflacionar) ‐ a
matéria é da competência dos órgãos de Segurança Pública, do Ministério Público e do Poder Judiciário
As aberrações pululam, como se vê. Mas, de outra parte, o cumprimento de sua
missão legal institucional tem produzido intervenções referenciais e exemplares de conselhos
tutelares, no país. Intervenções salutares no sentido de fazerem reconhecidos e garantidos
direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Isso de bom porém só acontece, quando os
71
conselhos tutelares se submetem às leis vigentes e exercem suas atribuições próprias
fielmente: elas já são muitas e importantes.
Em face disso, necessário se torna imperiosamente que os conselhos tutelares
conheçam suas atribuições e as exerçam. Mister se faz que os conselheiros tutelares procurem
cada vez se aprofundar no estudo dessas suas atribuições, uma por uma, avaliando o alcance
e as conseqüências delas.
Um órgão incumbido de zelar pelo cumprimento dos direitos não poderá ser nunca
um órgão que margeie a expressão mais nítida do direito, que é a lei. Por melhor que seja sua
intenção, um conselheiro tutelar não pode se considerar acima da lei.
A potencialização estratégica ‐ O Conselho Tutelar deve fomentar a valorização e a
qualificação das ações de políticas públicas e deve lutar pela extensão da cidadania de
crianças e adolescentes que atenderem.
As leis municipais de criação dos Conselhos Tutelares podem (e devem!) atribuir a
esses colegiados certas funções que chamaríamos de atividades de potencialização estratégica, a
se manifestarem em duas linhas:
9 valorização e qualificação das ações de políticas públicas;
9 extensão da cidadania do seu público alvo (empowerment).
A valorização e qualificação estratégica tem características próprias e está fora do
campo do poder deliberativo e coercitivo do conselho tutelar ‐ A chamada valorização e
qualificação estratégica de políticas públicas implica em se construir e desenvolver
estratégias políticas consagradas pelas Ciências Sociais: mobilização social, defesa política de
interesses (advocacy), empoderamento do usuário (empowerment), parcerização etc.
Assim sendo, importante que essas leis municipais, que estabelecem normas especiais
(complementares de relação às normas gerais do Estatuto), criem atribuições para o conselho
tutelar que contemplem essas linhas estratégicas, fazendo‐o, também potencializador
estratégico de políticas, valorizando e qualificando essas políticas, na forma que a lei
municipal dispuser, amplamente.
Como tal, o conselho tutelar atua para deflagrar um processo de reordenamento
normativo, de reordenamento institucional e de melhoria da atenção direta à criança e ao
adolescente (cfr. GOMES DA COSTA, Antonio Carlos).
Ele se preocupa, por exemplo, em levantar dados, informações e argumentos que
tenham validade nos processos de elaboração legislativa, fornecendo esses subsídios ao
Poder Executivo nos momentos próprios (sanção‐promulgação) ou diretamente ao Poder
Legislativo.
Ele fornece esses mesmos subsídios, de outro lado, ao Ministério Público, para que
promova suas recomendações, acordos de conduta, inquéritos civis e ações civis públicas (ou
mandados de segurança).
72
Ou por fim, pode remeter esse mesmo material ‐ tudo conforme a situação levantada –
aos conselhos dos direitos da criança e do adolescente (nacional, estadual e municipal) para o
desempenho de suas atribuições normalizadoras/formuladoras e controladoras.
A extensão da cidadania tem também suas características próprias, fazendo com o
conselho tutelar fomente a participação proativa (ou protagônica) do seu público ‐ Como
extensor da cidadania, os conselhos tutelares, nos limites de sua possibilidade, devem
procurar atender e aconselhar crianças, adolescentes, pais e responsáveis, a respeito de seus
direitos e deveres. (art. 136, I e II – Estatuto). Nessa linha ele atua como um verdadeiro
“balcão‐da‐cidadania”.
Numa fase preliminar, preventiva, assim procederá o conselho tutelar, mesmo quando
não se justificar uma intervenção mais forte e efetiva sua, isto é, mesmo quando não for o
caso da aplicação de medida especial de proteção, ou de representação ao Ministério Público
ou de encaminhamento ao Poder Judiciário.
Ele deverá fazer o papel de co‐construtor da cidadania do seu público‐ alvo, de
extensor da cidadania: cidadão todos o somos, o que ocorre é o que o exercício dessa
cidadania precisa ser ampliado, aprofundado, radicalizado, estendido, quando se trata de
determinados segmentos da população (índios, negros, mulheres, crianças, jovens, sem‐terra
e sem‐teto, homossexuais etc.).
E aí entra o conselho tutelar estrategicamente promovendo o empowerment
(participação proativa ou protagônica) de crianças, adolescentes e de suas famílias, que
atender de alguma forma.
Tipos de atividades ‐ No exercício dessas atribuições o conselho tutelar estará
zelando pelo atendimento dos direitos de crianças e adolescentes (art. 131 – Estatuto), de
maneira bem concreta.
São típicas atividades desse tipo ação potencializadora estratégica:
palestras, conferências, debates em escolas, associações comunitárias etc.
participação em programas radiofônicos ou televisivos;
participação em campanhas de social‐marketing (distribuição de folders,
cartazes etc.);
participação em eventos públicos, reuniões de instâncias de articulação (fóruns,
frentes etc.);
help desk para orientação inicial, por telefone ou pessoalmente, de pessoas que
tenham dúvidas a respeito de direitos e deveres de crianças, adolescentes, seus pais e
responsáveis
etc.
O cuidado maior nessa linha deve ser evitar que o conselho tutelar invada, sob essa
justificativa ampla, as atribuições dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, das
câmaras de vereadores, dos órgãos de coordenação e execução de políticas sociais (secretarias
73
da assistência, social, da educação, da saúde etc.), do ministério público, do poder judiciário,
dos órgãos policiais – como está sendo freqüente acontecer.
Ou que as atividades do conselho tutelar se reduzam a isso: não exerça ele suas
demais atividades, resumindo‐se a esse papel potencializador estratégico – mobilizador e
capacitador, principalmente.
A proteção de crianças e adolescentes com direitos ameaçados ou violados é a
atividade mais importante de um conselho tutelar e se manifesta com a aplicação de
medidas especiais de proteção, previstas no Estatuto ‐ Aqui está a mais importante e efetiva
das atividades de um conselho tutelar, isto é, quando ele presta proteção especial a crianças e
adolescentes credores de direito, isto é, com seus direitos ameaçados ou violados, quando ele
luta pelo reconhecimento e pela garantia desses direitos.
um conselho tutelar que não aplique medidas especiais de proteção não tem
funcionamento efetivo, como o Estatuto propõe. Pode praticar inúmeras outras atividades
importantes, mas sem a prática dessa, ele deixa de cumprir sua missão maior.
Natureza das medidas especiais de proteção: são atos decisórios e requisitórios,
emanados de um contencioso administrativo, que dependem de execução pelos serviços e
programas públicos (nas áreas de educação, saúde, assistência social, trabalho, segurança
pública etc.) ‐ muitas vezes, certos operadores do aqui estudado Sistema de Proteção dos
Direitos Humanos da Criança e do Adolescente (juizes, promotores, delegados de polícia,
defensores públicos, dirigentes de órgãos públicos e de organizações representativas da
sociedade etc.) e mesmo o público, em geral, imaginam que, quando o conselho tutelar atua,
ele na verdade está na obrigação de “proteger” crianças e adolescentes, diretamente – o
conselho tutelar se confundiria com um órgão de execução das políticas de assistência social
(mais vezes!), de saúde, de educação, de proteção no trabalho, de segurança pública etc.
Os conselhos tutelares estariam pois a disposição dos juizes, promotores e outras
autoridades públicas para darem execução a decisões desses. Como se esses colegiados não
tivessem competência originária para apreciar uma situação de violação ou ameaça de
direitos e aplicar uma medida jurídica de reconhecimento e garantia de direitos. em verdade,
é isso que o estatuto prevê para os conselhos tutelares: um contencioso administrativo, um
órgão não jurisdicional de solução de conflitos de interesses.
Na verdade, o conselho tutelar não executa nenhum programa ou serviço público. ele
requisita esse atendimento ao órgão próprio do poder público. Os mais consagrados
comentarista do Estatuto reconhecem que o conselho tutelar foi criado para exercer antigas
funções do juiz de menores e não para serem órgãos de execução, serviço de retaguarda, para
outros órgãos.
A leitura do art.136 do Estatuto seria suficiente para confirmar esse entendimento: ali
estão as atribuições típicas do conselho tutelar. O Estatuto em nenhum momento o faz
executor de programa ou serviço, o faz órgão de atendimento direto.
74
Aliás, só excepcionalmente o Estatuto faz algo semelhante, quando no inciso VI do
artigo 136, atipicamente, lhe comete a função de “providenciar medida estabelecida pela
autoridade judiciária, dentre as previstas nos artigos 101, de I a VI, para o adolescente autor de ato
infracional”. De qualquer maneira, mesmo aí, ele não executa a medida aplicada pelo juiz, ele
intermedia, ele ratifica a decisão judicial e toma as providências cabíveis (requisição de
serviços, por exemplo). O Estatuto explicita bem essa hipótese de ratificação da decisão
judicial em caso de adolescentes em conflito com a lei.. Assim, não há que se falar em
conselho tutelar exercendo aí funções assemelhadas a de “equipe multiprofissional” ou de
“agente de proteção” das varas da infância e da juventude, como abusivamente isso está
acontecendo.
Essas distorções, tanto partem de alguns juizes, que na falta de apoio técnico no
campo próprio do Poder Judiciário (como o Estatuto determina nos seus artigos 150 e 151)
usam dos serviços, distorcidamente, dos conselhos tutelares, quanto elas partem de alguns
conselheiros tutelares que, para fugirem do pouco caso ou da oposição de determinados
prefeitos, abdicam de sua autonomia funcional.
Reforçando esse entendimento, é de se lembrar que o Estatuto prevê no seu art. 262
que “enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas
pela autoridade judiciária” – isso mostra a semelhança (não igualdade) de funções entre o
contencioso judicial (vara da infância e da juventude) e o contencioso administrativo
(conselho tutelar), sem nenhum traço de subordinação de um ao outro.
Conteúdo: proteção, como medida premial ‐ As medidas especiais de proteção,
aplicadas a crianças e adolescentes com seus direitos violados ou ameaçados (art.136, comb.
com art.98 – Estatuto cit.), têm natureza eminentemente premial. E nunca sancionatórias,
punitivas.
Nesse sentido, ensina L. XAVIER DE CASTRO (in ʺEstatuto da Criança e do Adolescente
Comentadoʺ – artigo 99ʺ‐ Ed. Malheiros), referindo‐se às medidas de proteção especial,
aplicáveis pelo conselho tutelar: ʺEstes instrumentos não poderão ser compreendidos como castigo
ou pena; nem tampouco, ter o caráter de ʹaliviarʹ a responsabilidade jurídica daqueles que estão
causando danos à criança e ao adolescenteʺ.
Por exemplo, não existe nenhum respaldo legal para um conselho tutelar apreender
crianças e adolescentes, colocá‐las em celas, coagi‐las a praticar nenhum ato, destituir o poder
parental dos seus pais etc. etc.
A medida de advertência, por exemplo, não existe para ser aplicada pelo conselho
tutelar a crianças e adolescentes, a título de medida e proteção. Ela existe como medida
socioeducativa aplicada por juiz a adolescente infrator. E como medida responsabilizadora
aplicada pelo conselho tutelar a pais e responsáveis. A juÍza CONCEIÇÃO MOUSNIER ((in
ʺEstatuto da Criança e do Adolescente Comentadoʺ – artigo 101ʺ‐ Ed. Malheiros), apesar de não
concordar com a limitação do Estatuto, nesse ponto, reconhece claramente: ʺAndou bem a lei
em não estender à criança infratora, menor de 12 anos, com pouca idade, as medidas mais severas
75
previstas nos incs. II a VI do art. 112. Quanto à medida de advertência porém o legislador, melhor
agiria, se a tivesse prescrito também para a criança infratoraʺ. Traduzindo: mesmo os que
advogam a advertência como medida especial de proteção, reconhecem que o Estatuto não a
prevê e por tanto vedada está sua aplicação.
As medidas de proteção espacial, previstas no Estatuto, no art. 101, são “benefícios”
concedidos a pessoas em condições peculiares de desenvolvimento e não “seres inferiores”,
fracos, vítimas, desajustados.
Mas, nossa cultura popular e mesmo institucional está indelevelmente marcada pela
concepção autoritária e patriarcalista de que se protege um mais fraco... “castigando”,
infligindo sofrimento, ou pelo menos vitimizando.
O público alvo do conselho tutelar é composto por todas as crianças e adolescentes
que estejam na situação de ʺcredores de direitoʺ, isto é, que tenham quaisquer de seus
direitos ameaçados ou violados e não as crianças e os adolescentes em situação de risco,
isto é, vulnerabilizados sociais ‐ Um verdadeiro mito se criou, com o passar dos tempos, de
que a política de promoção dos direitos, prevista no Estatuto, tinha como seu público‐alvo,
ʺcrianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou socialʺ. Mais especificamente: aventou‐se
que as medidas especiais de proteção deveriam ser aplicadas a crianças e adolescentes nessa
situação de vulnerabilidade social.
O Estatuto não pode ser invocando para justificar essa interpretação do Estatuto e essa
abrangência da política de promoção dos direitos. Em nenhum dispositivo dessa lei se
utiliza tal expressão (ʺsituação de riscoʺ). E o seu art. 98 é claríssimo em determinar que tais
medidas são ʺaplicáveis a crianças e adolescentes sempre que os direitos previstos nesta lei forem
ameaçados ou violados (...) por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, (...) por falta, omissão ou
abuso dos pais ou responsável (...) em razão de sua condutaʺ.
As situações de vulnerabilidade social (situações de risco) são típicas da política de
assistência social, isto é, justificam a intervenção assistencial, através dos seus dos seus
benefícios e das suas ações continuadas, próprios.
Ensina WANDA ENGEL (in ʺEstatuto da Criança e do Adolescente Comentado – artigo 98ʺ
– Ed. Malheiros) a respeito da universalidade dessa política de garantia dos direitos,
apontando um primeiro segmento: ʺSeriam, pois, sujeitos‐alvos das medidas de proteção todas as
crianças que, por omissão destes dos agentes (sociedade e Estado), tivessem aqueles direitos ameaçados
ou violados. Crianças e jovens com a saúde ou a própria vida ameaçadas pelas condições de pobreza,
desnutrição e insalubridade ambiental, sem acesso a uma assistência médica de qualidade; fora da
escola ou submetidos a um processo educacional que os leva ao fracasso escolar, à estigmatização e à
exclusão, inseridos num trabalho que os explora e afastado convívio familiar e comunitário, da escola e
do lazer.ʺ
E explica mais a autora, apontando outro segmento: ʺComporiam esse conjunto, por um
lado, crianças e adolescentes vítimas históricas de políticas econômicas concentradoras de renda e de
políticas sociais incompetentes em sua tarefa de assegurar a todos os cidadãos seus direitos sociais
76
básicos. (...) Estariam neste grupo também, por outro lado, crianças cujas famílias se omitem do dever
de assisti‐las e educá‐las, praticam maus‐tratos, opressão ou abuso sexual ou simplesmente as
abandonam.ʺ
Finalmente ENGELS descreve o terceiro segmento do público alvo para as medidas
especiais de proteção: ʺSurge, porém, na letra da lei, entre os responsáveis pela ameaça dos direitos
da criança, um terceiro agente – ela própria, em função de sua conduta. Reconhece a legislação que a
criança e o adolescente, em função de uma dada conduta – crime ou contravenção – reconhecida como
ato infracional, possam vir a ter direitos ameaçados ou violadosʺ.
Só como exemplo: imagine‐se uma adolescente de 17 anos submetida à exploração
sexual comercial, isto é, vítima em um crime de lenocínio. Além da óbvia
responsabilização/punição do lenão (nos termos do Código Penal), isto é, do seu explorador,
a ela se deve garantir imprescindivelmente uma atenção especial, articulada e integrada, das
políticas públicas – punição de explorador não substitui a proteção da explorada.
A área da assistência social deveria assegurar a ela (a depender da idade) sua inclusão
em programas de renda‐mínima familiar, de geração de emprego, ocupação e renda etc.
Enquanto isso, a área dos direitos humanos (garantia de direitos) se incumbiria de dar
retaguarda às decisões dos juizes da infância e da juventude e dos conselhos tutelares, ou
seja, de dar cumprimento, por seus serviços e programas específicos, às medidas daquelas
autoridades.
O Estatuto elenca uma série de programas e serviços típicos da política de promoção
dos direitos humanos, nos seus artigos 90 e 87, III, IV e V, que poderiam, em princípio,
atender essa adolescente explorada sexualmente – principalmente o programa de apoio
socioeducativo em meio aberto (não confundir com medida socioeducativa em meio aberto,
isto é, liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade!), serviços de proteção
jurídico‐social, serviços de apoio médico e psico‐social.
Dentro dessa linha, no país, temos equipamentos com trabalhos emblemáticos: Casa
Renascer (Natal – RN), Casa de Passagem e SOS‐CORPO (Recife – PE), Centro Projeto Axé –
Moda Axé e Fundação Cidade Mãe – Casa de Oxum, CEDECA Yves De Roussan (Salvador –
BA), CRAMI (Campinas – SP), CEDECA EMAÚS (Belém – PA) etc.
Essa adolescente, tanto é uma pessoa em situação em situação de risco social e
pessoal, quanto uma pessoa credora de direitos (= com direitos violados). E assim necessita,
como um direito seu e dever do Estado, de atendimento cumulativo, articulado e integrado
das várias políticas públicas, tanto as institucionais (direitos humanos, segurança pública
etc.), quanto as sociais (assistência social, saúde, educação, cultura etc.).
Tanto assim é que, por exemplo, o conselho tutelar, como um equipamento‐chave do
chamado “sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente”, quando atende essa
menina explorada na prostituição, aplica‐lhe medida de proteção especial, requisitando, para
tanto, serviços públicos que integrem o amplo leque da proteção social, que se faz necessária,
com atendimentos variados e cumulativos nas ʺáreas da saúde, da educação, do serviço
social, trabalho, segurança públicaʺ (art. 136, III, letra ʺaʺ – Estatuto). E culminando tudo isso,
77
como forma de garantir a priorização e integração desse atendimento multisetorial, requisita
a inclusão dessa adolescente em programa previsto no inciso II do artigo 90 e em serviço
previsto no inciso IV do art. 87, ambos do Estatuto – serviço e programa, específicos, que
poderão, em alguns locais, serem desenvolvidos pelo SOS‐CRIANÇA.
O conselho tutelar é responsável também pela aplicação de medidas especiais de
proteção a crianças em conflito com a lei, já que elas não são responsáveis por seus atos
infracionais, nem recebem medidas socioeducativas ‐ O Estatuto da Criança e do
Adolescente só reconhece como responsável pela prática de crimes e contravenções penais (a
que chama infrações) o adolescente, isto é, aqueles com 12 anos completos. E assim sendo, só
os adolescentes podem ser responsabilizados e sancionados pela prática de crimes e
contravenções, como autores de ato infracionais, aos quais o juiz competente aplicará uma
Medida Socioeducativa (internação, semiliberdade, liberdade assistida etc.).
As crianças (menores de 12 anos) não são submetidas ao juiz da infância e da
juventude, para o procedimento de ato infracional previsto no Estatuto, nem receberão nunca
uma medida socioeducativa (nem advertência!). elas deverão ser atendidas pelo conselho
tutelar, que lhes aplicará medidas especiais de proteção, previstas no art. 136 do Estatuto.
O conselho tutelar tem uma participação bastante limitada no processo judicial de
apuração de ato infracional atribuído a adolescente, não sendo competente para apurar os
fatos nem aplicar medidas socioeducativas ‐ O conselho tutelar só participa
secundariamente do procedimento judicial de apuração do ato infracional atribuído a
adolescente: quando o juiz da causa, constatando que o adolescente, além de se imputar a ele
a prática de um ato infracional, igualmente tem qualquer dos seus direitos ameaçados ou
violados e se encontra também enquadrado nas hipóteses do art. 98 do Estatuto. Isto é,
quando o juiz reconhece que esse adolescente necessita igualmente ou de apoio e orientação
familiar, ou de apoio médico e psico‐social, ou de tratamento médico hospitalar ou
ambulatorial, ou matrícula escolar etc. etc. (art. 101 – Estatuto citado). Nesse caso, o artigo
136, VI do Estatuto estabelece que cabe ao juiz aplicar também uma medida de proteção e
determinar que o conselho tutelar competente atue: ʺprovidenciar a medida estabelecida pela
autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI para o adolescente autor de ato
infracionalʺ.
O conselho tutelar aí está dando execução a uma decisão do juiz da infância e da
juventude, uma vez que esse colegiado não tem competência alguma para intervir na
apuração de ato infracional atribuído a adolescente ‐ matéria judicial processual.
Duas questões estão todavia surgindo na prática, ao arrepio da lei e que merecem se
provoque uma discussão jurídica em torno delas:
a) Existem conselhos tutelares usurpando a função judicante, apurando a prática de
atos infracionais, que se configuram como crime ou contravenção, quando praticados por
adolescentes, inclusive aplicando advertência. Quando no SIPIA se pede o registro da prática
78
de atos infracionais por adolescentes quer apenas que se registre que o conselho tutelar
recebeu notícia do crime (infração) e a remeteu de imediato ao representante do Ministério
Público e/ou juiz. Além do mais um conselho tutelar pode também acompanhar o
acautelamento do adolescente apreendido em flagrante na Delegacia de Polícia para evitar
que sofra torturas ou coisas semelhantes. Nunca substituir o delegado de polícia, o promotor
de justiça e o juiz da infância e da juventude, na apuração de ato infracional e no seu
sancionamento!
b) Alguns magistrados estão aplicando medida de abrigo em entidade a adolescentes
aos quais se atribui a prática de ato infracional (em processo), depois de esgotado o prazo de
45 dias da internação provisória. Ou a aplica ao final do processo, quando ele aplica medida
socioeducativa em meio aberto, substituindo assim o atendimento assistencial ao egresso
previsto no Estatuto, mas de outra natureza. O Estatuto expressamente proíbe isso, ao prever
que no caso do artigo 136, VI só as medidas previstas nos incisos I a VI do artigo 101 são
aplicáveis nessa hipótese, isto é, o Estatuto exclui as medidas dos incisos VII e VIII (ʺabrigo em
entidadeʺ e ʺcolocação familiarʺ).
O sancionamento administrativo de pais e responsáveis ‐ O Estatuto prevê também
que o Conselho Tutelar é competente para aplicar medidas responsabilizadoras, de caráter
orientador e sancionador, a pais e responsável por infrações às normas do Estatuto. Nesse rol
está, por exemplo, a advertência.
Não se tratando de medida premial, de benefício protetivo, mas sim de verdadeira
sanção administrativa, entendo, salvo melhor juízo, que não pode o Conselho Tutelar aplicar
qualquer dessas medidas a pais e responsáveis, sem respeitar o disposto na Constituição
federal, no tocante à garantia da ampla defesa e do contraditório: trata‐se de um litígio, de
um possível conflito de interesses dos pais ou responsável e da criança ou adolescente.
ʺSe esses pais simplesmente resolverem não acatar a decisão do Conselho Tutelar eles estarão
sujeitos a multa por infração administrativa pelo artigo 249 do Estatuto : ʹDescumprir, dolosa ou
culposamente os deveres inerentes ao pátrio poder ou de correntes da guarda ou tutela, bem assim
determinação da autoridade judiciária ou do conselho tutelar. Pena: multa de 3 a 20 salários de
referência, aplicando‐se o dobro em caso de reincidênciaʹʺ – assim ensinam, a respeito dessas
medidas, DONIZETI e CYRINO (obra citada). E com isso mais alicerça o entendimento de
que essas medidas, aplicáveis a pais e responsável não têm a mesma natureza puramente
premial das medidas especiais de proteção, aplicáveis a crianças e adolescentes.
Assessoramento ao poder público, no campo da orçamentação ‐ Os conselhos
tutelares devem anualmente apresentar ao prefeito subsídios (dados, informações e análises)
para a elaboração da proposta orçamentária do município; advogando a alocação de recursos
para a criação ou manutenção/fortalecimento de serviços e programas específicos para
79
atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, especialmente os previstos no Estatuto
(arts. 87, III a V e 90).
Esse oferecimento de subsídios deve ser feito numa linha de assessoramento, isto é,
numa linha consultiva, sem poder vinculante.
Raramente, nos relatórios para o SIPIA, encontra‐se o registro de que o conselho
tutelar tenha cumprido essa sua obrigação legal. Mais das vezes os conselheiros muito se
queixam da falta da chamada “retaguarda” para atender suas requisições, isto é, de serviços e
programas nas “áreas da saúde, educação, trabalho, serviço social, previdência e segurança pública”
para atenderem os direitos violados e ameaçados de crianças e adolescentes. Mas, um gesto
concreto construtivo na busca da solução seria tornar a orçamentação pública mais
participativa. E esse assessoramento dos conselhos tutelares seria um bom instrumento nesse
sentido. É importante pois, que os conselheiros tutelares se capacitem para exercerem regular
e sistematicamente essa função no seu município.
SEÇÃO 3
FUNÇÕES EXECUTÓRIAS
O conselho tutelar não executa diretamente suas medidas especiais de proteção ou
as medidas aplicáveis a pais e responsável – Eles promovem, indicam, determinam que suas
decisões devem ser obrigatoriamente pelas entidades governamentais e não governamentais
que prestam serviços ou desenvolvam programas/projetos de atendimento dos direitos de
crianças e adolescente. Para promover a execução de suas deliberações colegiadas, o conselho
tutelar tem o poder de:
(a) requisitar, formalmente, por escrito, serviços públicos nas áreas da saúde,
educação, serviço social (assistência social), previdência, trabalho e segurança pública;
(b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações, solicitando as necessárias providências para garantir a
executoriedade da sua deliberação desrespeitada.
Ainda para garantir a possibilidade de aplicar medidas especiais de proteção, o
conselho tutelar, durante o procedimento apuratório da situação de violação ou ameaça de
direito, poderá expedir notificações dirigidas a determinadas pessoas para prestarem
declarações, expedir requisições de documentos
O conselho tutelar remete um caso ao juiz da infância e da juventude inicialmente,
quando a matéria não é da competência do colegiado ‐ DONIZETI e CYRINO (obra
multicitada) ensinam com clareza: ʺ(...) todos os casos que envolvam questões litigiosas,
contraditórias, contenciosas, de conflito de interesses, com a destituição do pátrio poder, como a
guarda, a tutela, a adoção e as enumeradas nos artigos 148 e 149 do Estatuto, ao chegarem ao
80
conhecimento do Conselho Tutelar, deverão ser encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude
onde os interessados terão orientação certa da solução da solução de seus problemasʺ.
Muitas vezes, um conselheiro tutelar decide intervir em certos casos que são da estrita
competência do Poder Judiciário, pensando que está ʺajudandoʺ a população. Mas, sua
intervenção, mesmo de boa‐fé, poderá ter efeitos desastrosos, criando uma falsa expectativa
na população e a frustrando de relação ao conselho tutelar. Se a questão não diz respeito a
sua esfera de atribuição, nada tem o conselheiro tutelar de ser ʺporta‐vozʺ do juiz ou ʺassessor
jurídicoʺ de quem o procura, por exemplo, para resolver questões de investigação de
paternidade, guarda de filhos, partilha de bens, alimentos, prática de crimes etc. etc.
O conselho tutelar encaminha um caso ao juiz da infância e da juventude
igualmente quando sua decisão for descumprida pelo dirigente do órgão público ao qual
se dirigiu uma requisição do colegiado ‐ Essa matéria já foi analisada atrás em item anterior,
como forma de garantir o cumprimento de suas decisões.
A remessa do caso ao promotor de justiça (Ministério Público) não pode ser
injustificada e como uma forma do conselho tutelar se desobrigar do cumprimento de sua
missão institucional, mas sim quando for obrigado por lei a fazer uma determinada
comunicação ou representação formal a esse órgão público‐ministerial – O conselho tutelar
está obrigado a comunicar ‐ oficialmente, de imediato, por escrito e justificativamente ‐ ao
promotor da infância e da juventude local (ou àquele que responda pela função, caso ausente
o titular ou vago o cargo, na cidade em que estiver), quando ele, conselho, tomar
conhecimento, de todo e qualquer fato que se configure como crime ou infração
administrativa contra crianças e adolescentes, previstos no Código Penal ou no Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Às vezes, o conselho tutelar, quando tem dificuldades para atender uma determinada
criança ou adolescente ou para lhes aplicar uma medida especial de proteção, ele ʺfaz um
encaminhamentoʺ (sic) ao Ministério Público, mais das vezes indevido, pois o faz fora dos
casos previstos no Estatuto e fugindo do exercício de suas funções. O representante do
Ministério Público não é um ʺpadrinhoʺ, um ʺprotetorʺ do conselho tutelar, a ser chamado em
casos em que a atuação era para ser do conselho tutelar. Nem o Ministério Público é ʺórgão de
execução ou de atendimento diretoʺ. Ele tem sua função constitucional e legal que precisa ser
respeitada.
SEÇÃO 4
REGIME JURÍDICO DOS CONSELHEIROS TUTELARES
81
Natureza da função de conselheiro tutelar ‐ Esta é a matéria mais controversa no
Estatuto, a respeito dos conselhos tutelares e raiz de muitos problemas : a real natureza
jurídica da função de conselheiro tutelar !
Pelo fato de ser o conselho tutelar um órgão público, como se argumentou atrás, os
conselheiros tutelares são obviamente agentes públicos – a classificação mais ampla, onde se
incluem os agentes públicos honorários (jurados), os funcionários públicos sob regime único,
os empregados públicos, os titulares de cargos eletivos (vereadores etc.), os militares, os
magistrados etc. etc. etc. Mas, isso é insuficiente: que tipo de agente público?
Na primeira versão do Estatuto, antes de sua alteração pela lei federal n.8.242/91,
poder‐se‐ia falar que se tratava de cargo eletivo, assemelhado ao de vereador, por exemplo. E
toda a disciplina do seu regime jurídico deveria ser buscada nas normas que disciplinam os
cargos eletivos. A primeira versão falava em ʺprocesso eleitoral presidido pelo Juiz Eleitoralʺ.
Desse modo, se aplicaria literalmente o Código Eleitoral e nenhuma dúvida haveria. Salvo a
que surgiu na época: se assim fora, nenhuma lei municipal poderia regular a matéria, por ser
da competência exclusiva da União..
Todavia a reforma resolveu criar uma forma especial de provimento: livre nomeação
pelo prefeito, após escolha de nomes e indicação pela comunidade.
Assim sendo, pode‐se afirmar que se trata de uma função pública comissionada,
vinculada a mandato certo popular, com regime jurídico especial, a ser estabelecido na lei
municipal que expressamente criar as funções de conselheiros tutelares (titulares e
suplentes).
Natureza jurídica do processo de escolha dos conselheiros tutelares ‐ A escolha dos
conselheiros tutelares e sua investidura na função se fazem através de um
processo/procedimento administrativ,o que se esgota na esfera do Poder Executivo
municipal, ao qual estão vinculados administrativamente os conselhos dos direitos e os
conselhos tutelares. Um procedimento que se completa com a nomeação e posse desses
conselheiros tutelares, pelo Chefe do Poder Executivo municipal126.
Não um processo/procedimento judicial (eleitoral), como na redação original do
Estatuto, posteriormente reformada.
Formas legais e legítimas de processos de escolha pela comunidade ‐ O grande
perigo, a macular a legalidade e legitimidade desse procedimento, tem sido na prática se
manter a idéia de que se trata de um ʺprocesso eleitoralʺ, de uma ʺeleiçãoʺ. Essa concepção
errônea tem parido verdadeiros monstros, na prática.
126
Procedimento de nomeação absurdo se tratasse de processo eleitoral, onde ocorreria a diplomação dos eleitos pelo Poder
Judiciário.
82
Os conselheiros tutelares não exercem sua função como representantes da população,
da sociedade como um todo ‐ na linha da democracia indireta, como previsto na primeira
parte do parágrafo único do artigo 1º da Constituição federal. Não são ʺeleitosʺ, como prevê
esse dispositivo citado.
Exercem‐na, sim, como forma de participação direta da população, nos termos da
Constituição – segunda parte do dispositivo constitucional citado. Tão democrático quanto...!
Supera‐se, sem se negar, o restrito conceito da democracia representativa. A democracia
direta no país se faz igualmente através da participação da sociedade por suas organizações
representativas, por suas comunidades em concreto, no seio da sociedade, geral e difusa. 127
A Constituição federal tem como cláusula pétrea que a democracia brasileira é
representativa e participativa, concomitantemente, uma linha complementando a outra – isto
é, uma não é prevalecente e mais importante que a outra.
Óbvio, que o processo de escolha com a participação de toda a sociedade é uma forma
legal e legítima – possível e defensável! Não porque os conselheiros se tornam mais
ʺrepresentativosʺ. A justificativa é outra, diversa daquela aplicável ao prefeito e vereador, que
precisam ter legalidade/legitimidade de sua representação ‐ como se viu atrás. Mas por que a
sociedade, como um todo, é o somatório das comunidades. Escolhidos pela sociedade
significarão escolhidos pelas comunidades, num sentido amplo e numa interpretação mais
ampliada do Estatuto.
A favor desse sistema de escolha direto pela população milita mais o fato de ter o
CONANDA incluído, na sua Resolução nº 75128, a recomendação de que se adote esse
sistema. Isso vale como um parâmetro político respeitável e não como uma norma jurídica
coercitiva. A partir desse indicativo do CONANDA, as leis municipais devem preferenciar
essa forma de escolha.
Mas, é bom que se faça um difícil exercício de tolerância e de superação de conceitos
políticos tradicionais: a escolha de conselheiros tutelares, através de parcelas da sociedade,
das comunidades, de organizações sociais, também é legítima. Escolhidos através das
organizações comunitárias significam escolhidos pela sociedade, numa interpretação até
mais literal e sistemática do Estatuto. Tanto, que assim se procede para a definição da
participação direta da população no conselhos dos direitos – através das organizações
representativas da sociedade. Por que, politicamente, em um conselho, essa forma é legítima
e no outro (o tutelar) não o é...?!
Ainda mais, é de se lembrar que se tratando de estruturação, organização e
funcionamento de um serviço público municipal, as leis municipais têm um campo de
127
Conferir 1.4.1. atrás, neste texto: "Visões da Democracia e do Estado. Um novo corporativismo social?" Ali, se discutiu
a questão do modelo dicotômico da democracia brasileira, mostrando-se a importância da participação das organizações
corporativas sociais no Estado, como construtoras da Democracia
128
“Parâmetros para a Criação e Funcionamento dos Conselhos Tutelares no Brasil”
83
abrangência e prevalência maior, podendo ir, em certos pontos – em matéria organizacional e
procedimental – a lateri (não, contra) Estatuto da Criança e do Adolescente129.
Trata‐se aqui de se assegurar o respeito ao princípio constitucional da autonomia
municipal. O município hoje, pela Constituição federal é um ente federativo. Os seus artigos
29 e 30 isso asseguram, no tocante à organização do serviço público municipal.
Inconstitucional seria o Estatuto, se invadisse essa esfera do poder legisferante
municipal. Aqui não prevalece o dispositivo constitucional130 que estabelece que compete
concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre proteção à criança
e adolescente. Formalmente os dispositivos sobre estruturação e organização dos conselhos
tutelares estão em uma lei de “proteção à infância e à juventude” (Estatuto citado), mas
substancialmente são matéria de direito administrativo municipal, só podendo a União editar
normas gerais. Tanto que exatamente por isso o Estatuto deixou que regular o procedimento
para aplicação de medida de proteção pelo conselho tutelar, por se tratar de um
procedimento administrativo municipal, a ser regulado por lei municipal. De maneira
diversa, regulou o mesmo Estatuto, quanto ao procedimento para apuração do ato
infracional praticado por adolescente e aplicação de medidas socioeducativas, que foi ali
bastante esmiuçado131: trata‐se aqui de procedimento processual132, cuja competência
legislativa é da União.
Legal também o é essa segunda forma: o que deve prevalecer na exegese dos textos do
Estatuto deve ser a prevalência do ʺmelhor interesse da criança e do adolescenteʺ133. E se deveria
levar em conta também a motivação histórica, a mens legislatoris134. O dispositivo do
Estatuto, em questão, fala em ʺcomunidadeʺ e não em ʺpopulaçãoʺ, ʺsociedadeʺ etc. E basta se
consultar dicionários para se constatar que “comunidade” significa segmento da sociedade,
“parcela da população agrupada por interesses comuns, por razões geográficas” etc. No sentido da
possibilidade legal de se adotar indiferentemente ambas as formas (ʺdireta ou indiretaʺ) se
pronunciam, em sua obra multicitada DONIZETI & CYRINO.
Todavia, necessário se torna evitar um equívoco que tem grassado em alguns
municípios: incluírem‐se autoridades públicas governamentais (prefeitos, secretários
municipais, promotores de justiça, dirigentes de órgãos públicos, diretores de escolas etc.) no
mal chamado “colégio eleitoral”. Enquanto cidadãos poderão participar do processo de escolha
aberto, isto é, a escolha universal. Mas, nunca quando o processo de escolha se proceder
através de representações comunitárias, pois eles são representantes do Poder Público –
coisas que não se confundem na ótica do Estatuto. O Estatuto faz nítida distinção, em todo
seu corpo, entre as esferas do “governamental” e do “não governamental”.
129
O principio da hierarquia das leis não é tão simplista e de aplicação esquemática, da linha do quem pode mais pode
menos. Há que se respeitar o princípio da reserva de competência legislativa de cada esfera.
130
Artigo 24 - CF
131
Artigo 171 e ss. – Estatuto cit.
132
Artigo 152- Estatuto cit. : aplicação subsidiária da legislação processual
133
Artigo 6º do Estatuto cit.
134
Ver registro do histórico do processo legislativo de reforma do Estatuto, aqui feito, no início deste item
84
A participação de qualquer representante de órgão governamental no processo de
escolha de conselheiros tutelares, quando não se tratar do voto universal facultativo, o torna
susceptível de anulação, requerida pelo Ministério Público, por qualquer entidade .
Em conclusão: nos termos do Estatuto, como acima se expôs, possível se torna o
desenvolvimento do processo de escolha referido, através três formas de procedimentos mais
comuns e consagradas pelo uso, hoje, no país:
Facultativamente, todas as pessoas indiscriminadamente (eleitoras ou não),
acima de dezesseis anos e que residam no município, isso comprovando de qualquer
maneira (exibição de documentos e elaboração de listas de votantes a posteriori);
Facultativamente, todas as pessoas que se inscreverem ou cadastrarem,
previamente, na forma definida pela lei municipal (e regulado o procedimento de inscrição,
pelo edital do conselho dos direitos), igualmente com os mesmos requisitos de idade e
residência.
Somente os representantes da sociedade civil organizada, isto é, os
representantes de comunidades (associações, entidades de atendimento, sindicatos,
ministérios eclesiais e toda ou qualquer expressão da organização comunitária).
Papel dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente no processo de escolha
‐ A organização e presidência do processo de escolha de conselheiros tutelares ficaram como
uma atividade especial dos conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente de
discutível definição de sua natureza jurídica e política. E isso ele faz, não tanto numa linha de
gestão de meios135, mas de controle do poder/atribuição do Poder Executivo municipal, de
investir agentes públicos.
De ordinário, há certa dificuldade de se entender a natureza dessa intervenção dos
conselhos dos direitos, que a primeira vista parece discrepar das suas demais atividades,
dentro do espectro geral das atribuições desses colegiados municipais. Realmente, tem‐se
reconhecido que – em função dos seus papéis jurídico‐legal e político‐institucional, como
visto atrás ‐ os conselhos dos direitos não devem assumir nenhuma função de ʺexecução de
política públicaʺ, isto é, desenvolver atividades (através de um determinado serviço público)
ou projetos (no bojo de um programa público): isso ficou bastante claro!
Assim, essa sua função de organização e presidência do processo de escolha dos
conselheiros tutelares (que lhe foi atribuída posteriormente) precisa encontrar seu nicho
jurídico e político‐institucional. E aqui se propõe que seja no campo do controle das ações
públicas136, mesmo se reconhecendo que assim se fará de maneira bem pouco ortodoxa.
Assim sendo, aos conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente
compete essa atípica atribuição, em caráter extraordinário e explicitado no Estatuto:
135
Exercício de atividade-meio, isto é, administrativo-burocrática
136
"Controle" aqui no sentido amplo, não se confundindo com "fiscalização", como se faz algumas vezes.
85
organizar e presidir o processo administrativo de escolha dos conselheiros tutelares,
obedecendo à determinação do Estatuto.
O conselho dos direitos fica absolutamente adstrito às normas da lei municipal, não
podendo ‐ através do seu edital de convocação do processo de escolha – alterar nenhum
dispositivo expresso da referida norma legal, como muitas vezes se está constando na
prática, com sérios prejuízos para a realização do processo de escolha, que assim poderá ser
anulado pela Justiça, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado.
Por exemplo, se a lei municipal estabelecer um limite de idade, uma condição de
escolaridade (nível médio ou fundamental), não pode o edital do conselho dos direitos isso
alterar. Se a lei , em outro exemplo, não prever a apresentação de comprovação da aprovação
em curso sobre o Estatuto, o edital não pode criar essa exigência.
DONIZETI & CYRINO (in ʺConselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescenteʺ)
vão mais longe e explicitam: ʺ(...) o Conselho dos Direitos só poderá dispor sobre processo de
escolha se lei municipal conceder‐lhe autorização expressaʺ.
Os referidos autores ensinam que (a) ou a lei municipal dispõe minudentemente sobre
o processo de escolha dos conselheiros tutelares, não prevendo assim que os conselhos dos
direitos tracem nenhuma norma complementar reguladora quando da convocação de cada
processo de escolha (b) ou a mesma lei traz algumas normas gerais sobre a matéria, como
mínimos legais e expressamente autoriza o conselhos dos direitos a regular a matéria,
suplementarmente.
Histórico ‐ Os conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente
receberam do Estatuto (redação reformada) essa atribuição nova, exatamente para garantir ao
máximo a autonomia funcional dos conselhos tutelares: quanto menos ingerência da
prefeitura municipal, mais autônomo seria esse contencioso administrativo, que tem entre
suas atribuições legais a de requisitar serviços públicos aos órgãos municipais.
Nasceu essa atribuição posteriormente à edição do Estatuto, em lei federal137 que lhe
alterou a redação original, motivada por decisão judicial.
Quando editado o Estatuto, previa ele que os conselheiros tutelares seriam eleitos para
um mandato certo, em processo e eleitoral presidido pelo juiz eleitoral da comarca, sob a
fiscalização do representante do Ministério Público. Mas, dizia também que lei municipal
disporia a respeito desse ʺprocesso eleitoralʺ (sic).
Em São Paulo, em 1991, com toda propriedade, questionou‐se a constitucionalidade
de tais dispositivos do Estatuto; apontando‐se que nenhuma lei municipal poderia dispor
sobre a matéria, tratando‐se de processo eleitoral. Ter‐se‐ia que aplicar as disposições do
Código Eleitoral. Assim sendo, a natureza das funções do conselheiro tutelar seria como a de
um mandatário de cargo eletivo (prefeito, vereador etc.), com todas as decorrências disso:
candidatura partidária, voto universal obrigatório, inelegibilidade etc.
137
Lei federal 8.242 de 12 de outubro de 1991, que cria o CONANDA e dá outras providências.
86
Em função disso, a matéria foi discutida amplamente, à época, no Fórum Nacional
DCA , decidindo‐se por se fazer um lobby junto à Presidência da República, com apoio do
138
CBIA e UNICEF, para que se alterasse o Estatuto nesse ponto, evitando‐se esse vício de
inconstitucionalidade. Na época, elaborava‐se o projeto de lei que criava o Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA (1991) e aproveitou‐se a
oportunidade para se incluir dispositivo que alterava os artigos 132 e 136 do Estatuto, no
tocante ao provimento da função de conselheiro tutelar.
Depois de grande discussão no seio das organizações sociais que militavam no
movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente (DCA), com assessoramento de
juristas que participaram da elaboração do Estatuto ‐ decidiu‐se que se abandonaria a idéia
de processo eleitoral, mandato eletivo, aplicação do Código Eleitoral, condução do processo
pela justiça eleitoral etc. etc..
E optou‐se por uma forma de provimento atípica: um mandato certo, mas não fruto de
um processo eleitoral judicial (federal). Seria um ʺprocesso para escolha (...), realizado sob
responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescenteʺ e fiscalizado pelo
Ministério Público139. Essa a intenção do legislador – importante elemento para exegese dos
artigos reformados do Estatuto. Testemunham DONIZETI & CYRINO (obra citada): ʺA
redação do dispositivo legal acima foi dada pela Lei federal 8.242 de 12.10.91 (DOU 16.12.91), que
definitivamente afastou o questionamento de constitucionalidade da disposição anterior, que previa a
ʹeleiçãoʹ dos conselheiros através de ʹprocesso eleitoralʹ, sob a presidência de juiz eleitoralʺ.
Um procedimento de provimento de cargo ou função mais democrático e mais
próximo do espírito desses conselhos – uma outra alternativa às duas outras formas
possíveis, em termos constitucionais, isto é, no lugar da mera nomeação ad nutum para cargo
comissionado ou após aprovação em concurso público140.
A participação do representante do Ministério Público e do juiz, no processo de
escolha ‐ A imprescindível intervenção do Ministério Público, participando do processo
administrativo de escolha (qualquer que seja a sua forma ‐ ʺdiretaʺ ou ʺindiretaʺ), tem que ser
entendida como função fiscalizadora.
Ele não pode participar, deliberando sobre os procedimentos de organização e
realização desse processo administrativo de escolha dos conselheiros tutelares. O Estatuto
não lhe dá esse poder e nenhuma lei municipal pode ampliar seu papel nesse sentido, pois
seria uma franca ingerência administrativa do parquet na gestão dos negócios públicos
municipais. Já o papel fiscalizador, ele é típico do Ministério Público: da sua própria essência
institucional. A ele a Constituição brasileira garantiu o papel de ʺórgão corregedor maiorʺ,
138
O Autor integrava o Secretariado Nacional dessa articulação de organizações não governamentais, representando a Rede
Nacional dos Núcleos de Estudo e Pesquisa
139
Artigo 139 citado
140
É de se lembrar a limitação que a Constituição federal impõe para o provimento de qualquer cargo ou função pública.
Tinha-se mais, como certo, que o conselheiro tutelar é um agente público, em que pese não ser um funcionário ou
empregado público, no sentido estrito do termo (regime único ou CLT)
87
fiscalizador, controlador – incontestado e independente. A efetividade do Estado
Democrático de Direito depende disso.
Por isso, não pode ele se imiscuir na prática de atos administrativos, como se fora
apenas um agente publico municipal, no caso. Seu papel é bem maior! Está ele atuando junto
aos conselhos dos direitos, nesse caso específico, para fiscalizar os procedimentos ‐
promovendo a aplicação da lei, a defesa dos interesses individuais indisponíveis, os
interesses difusos, coletivos e sociais e a defesa do regime democrático141. Lutando para que
esses atos administrativos (escolha, nomeação e investidura de conselheiros tutelares)
obedeçam aos princípios constitucionais da legalidade, economicidade, moralidade,
impessoalidade e publicidade.
Assim, compete a ele impugnar atos da comissão competente (delegação do conselho
municipal), durante o processo de escolha, perante a própria plenária do conselho. Ou
ajuizar ações judiciais próprias para assegurar o respeito a direitos ameaçados ou violados
(ao seu ver autonomamente), na forma da legislação processual civil.
Já a participação dos juízes, diretamente, no processo administrativo de escolha deve
ser... nenhuma! Ou aliás: maior, mas diversa! Os juizes de direito intervirão, prestando a
jurisdição, quando provocados pelas partes que tenham interesses contrariados e pelo
Ministério Público – quando estes buscarem quem diga o Direito – via sentenças judiciais.
Sua intervenção, nessa linha da prestação jurisdicional, garantirá o império da lei e o respeito
aos direitos de quem possivelmente possa estar sendo lesado.
Esse o papel do Poder Judiciário, do qual não deveria se afastar nessa questão da
escolha dos conselheiros tutelares. Sem prejulgamentos! Sem querer ser ʺadministradorʺ, mas
sim verdadeiro magistrado – esse o espírito do Estatuto, quando extinguiu a figura do ʺjuiz‐
administrador‐legisladorʺ do revogado Código de Menores142
Requisitos exigíveis dos candidatos à função de conselheiro tutelar ‐ Quando do
início de vigência do Estatuto, houve certa dúvida se as leis municipais poderiam inovar ou
não de relação a essa norma geral nacional, que estabelecia, no seu artigo 133, apenas 03
requisitos para que alguém se habilitasse a conselheiro tutelar: (a) reconhecida idoneidade
moral; (b) idade superior a 21 anos; (c) residir no município.
Esses são requisitos mínimos, que as leis municipais estão obrigadas a respeitar.
Argumentava‐se que o Estatuto não previa a ampliação desses requisitos, sendo tal listagem
taxativa e não exemplificativa. Algumas decisões judiciais vieram a lume, de início, sob esse
enfoque.
141
Artigo 157 e 159 da Constituição federal
142
Na prática do dia-a-dia lamentavelmente ainda se encontram alguns poucos magistrados que insistem em intervir
administrativa e indevidamente na vida dos Conselhos Tutelares, como se fossem eles suas equipes multiprofissionais,
inclusive procurando participar do processo de escolha dos conselheiros tutelares, por exemplo.
88
Com o passar dos tempos, passou a ganhar força uma linha de exegese diferente,
dentro da linha que este presente ensaio sustentou atrás: o Estatuto dispõe sobre normas
gerais de “proteção à infância e à juventude” (Constituição federal – art.24)
Essa lei federal em verdade é uma norma nacional de “proteção da infância e da
juventude”, como prevista no art. 24, XV da Constituição federal. Compete à união legislar,
como fez com o Estatuto, sobre esta matéria concorrentemente com os estados federados,
estando ela limitada à expedição de “normas gerais” (§1° – art.cit.). Por sua vez, normas legais
estaduais poderão, em caráter “complementar” (§2° – art.cit.), legislar a respeito dos conselhos
tutelares, respeitados os limites estabelecidos no art.30 da Constituição, no que diz respeito à
competência dos municípios para legislarem. Leis, nacional e municipal, devem instituí‐los,
criá‐los e regulá‐los. A norma nacional de proteção os institui, dando‐lhes atribuições e
define parâmetros gerais para que leis municipais os criem, os estruturem, organizem,
disponham sobre seu funcionamento e sobre o regime jurídico de seus membros.
Assim sendo, respeitados os requisitos do Estatuto, a lei municipal poderá criar novos
requisitos compatíveis com a natureza da função de conselheiro tutelar: grau de
escolaridade, aprovação em capacitações sobre ʺlegislação de proteção à infância e juventudeʺ,
experiência no trabalho de atenção integral à infância / adolescência, número de anos de
residência no município etc.
A questão da idade mínima tem merecido uma discussão nova: após a vigência do
novo Código Civil dever‐se‐á entender que revogada ficou a exigência do limite de idade
fixado em 21 anos, devendo‐se se entender que passa ele agora para 18 anos? Data venia,
entendo que o Estatuto não atrelou expressamente o limite de idade para o exercício da
função de conselheiro tutelar à maioridade civil. Não exige que o conselheiro tenha
adquirido de alguma forma a maioridade civil ‐ em outras palavras. Tanto que na vigência
do antigo Código Civil nunca se defendeu a tese de que os maiores de 18 e menores de 21,
emancipados de alguma forma, pudessem se candidatar a conselheiro tutelar. O juiz e
tratadista Judá Jessé de Bragança SOARES já ensinava no passado: ʺQuanto à idade exigida,
coincide com a maioridade civil, mas não se confunde com elaʺ (grifo nosso).
As leis criam limites de idade para o exercício de determinadas funções públicas,
como para Presidente da República, Senadores etc. etc. E o Estatuto, na mesma linha,
instituiu esse limite em 21 anos. Considerando‐se de futuro politicamente conveniente,
poder‐se‐á alterar (ou não!) o Estatuto, para reduzir o limite para 18 anos ou fixar em
qualquer outro patamar (argumentando ad absurdum: 25? 35?). Mas enquanto essa
providência legislativa, no âmbito do Congresso Nacional, não ocorrer, a idade mínima fica
em 21 anos, salvo melhor juízo.
Outro ponto que merece um aclaramento diz respeito à diferença legal entre
ʺresidênciaʺ e ʺdomicílioʺ: exige o Estatuto que o candidato a conselheiro tenha residência no
município, isto é, aquele município enquanto lugar onde ele tem, de fato, sua morada atual,
com ou sem a intenção de aí permanecer (o domicílio exige residência com ânimo definitivo).
89
Investidura por mandato certo: não‐prorrogação e recondução ‐ A lei municipal
deverá prever a investidura na função de conselheiro tutelar. Ela se inicia com a
proclamação de resultados do processo de escolha, pelo conselho municipal dos direitos da
criança e do adolescente, com a indicação e divulgação por edital dos escolhidos pela
comunidade (titulares e suplentes). Desse ato caberá impugnação do ministério público ou
recurso administrativo dos interessados, ambos perante o próprio conselho municipal dos
direitos, que os apreciará e decidirá em instância administrativa. Desses atos do conselho
municipal dos direitos cabe igualmente o apelo a remédio judicial (mandado de segurança,
por ex.), tanto do ministério público, quanto dos interessados, dirigido ao juiz da infância e
da juventude da comarca – lembrando‐se sempre que o juiz não é instância derradeira,
cabendo mais recursos de suas decisões para a segunda instância do Poder Judiciário
(Tribunal de Justiça do Estado).
Após a edição desse ato complexo formal do conselho municipal dos direitos da
criança e do adolescente de proclamação de resultados e após também o julgamento dos
recursos administrativos e judiciais (caso tenham sido interpostos), em se tratando de agentes
públicos, ato de nomeação deverá ser expedido pelo prefeito municipal (ato vinculado aos
resultados do processo de escolha, não podendo ele ignorar a ordem de escolha). Isso posto,
a mesma autoridade dará posse aos escolhidos e nomeados, podendo delegar essa função,
por exemplo, ao conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente.
Todavia, uma verdadeira aberração jurídica começa a se espalhar sorrateiramente pelo
país, sob o manto de uma falsa legalidade e às vezes lamentavelmente com o respaldo do
ministério público e da justiça da infância e da juventude: a chamada “prorrogação do mandato
dos conselheiros tutelares”.
Ora, tratando‐se de mandato certo, por 3 anos, concedido pela sociedade e
homologado pelo chefe do poder executivo municipal, impossível juridicamente seria se
prorrogar mandatos de agentes públicos. Possível sim a recondução do conselheiro por mais
um mandato: mas aí ele se submete a novo processo de escolha, se submete ao que mal
chamaríamos de “re‐eleição ʺ, isto é, dependeria da vontade da comunidade.
Tem‐se entendido de modo geral, que só uma reforma constitucional (disposição
transitória) poderia prorrogar mandatos do presidente da república ou de outros agentes
públicos investidos em mandato certo.
Findo o mandato do conselheiro tutelar, no dia imediato, não havendo novos
conselheiros escolhidos pela comunidade e nomeados pelo prefeito, as funções protetivas do
conselho tutelar passam a ser exercida provisoriamente pelo juiz da infância e da juventude,
nos termos do art. 262 do Estatuto, aplicado extensivamente.
Nenhuma autoridade pública pode prorrogar, por via administrativa, o mandato de
um conselheiro tutelar. Caso um juiz de direito o faça, em processo judicial, formalmente
através de sentença, será o caso de obviamente se cumprir, recorrendo a prefeitura da decisão
judicial, para o Tribunal de Justiça, por sua manifesta inconformidade com o ordenamento
jurídico..
90
Dentro dessa linha da impossibilidade da prorrogação de mandato de conselheiros
tutelares, em janeiro de 2003, o jornal A TARDE (17.01.2003), de Salvador, Bahia, noticia que
um juiz da infância e da juventude da comarca de Salvador indeferiu um pedido de
prorrogação de mandato e determinou que o novo procedimento de escolha ocorresse em
cinco dias, sob pena de pagamento de multa diária, pelo poder público municipal.
Exatamente por isso tudo é que o CONANDA, através da resolução nº 75, de 22 de
outubro de 2001, em seu artigo 10 determina o seguinte: “Em cumprimento ao que determina o
Estatuto da Criança e do Adolescente, o mandato do conselheiro tutelar é de três anos, permitida uma
recondução, sendo vedadas medidas de qualquer natureza que abrevie ou prorrogue esse período” .
(grifei)
Por fim, é de se ressaltar que, quando o Estatuto prevê a ʺreconduçãoʺ, o faz nesta ótica.
Absolutamente, não está prevendo de forma tácita a prorrogação de mandato do conselheiro
tutelar por mais um mandato. Mas, quer dizer que o conselheiro tutelar não pode continuar a
se habilitar indefinidamente em procedimentos de escolha. Significa aquela norma do
Estatuto que ele se tornará “inelegívelʺ, após ter permanecido no cargo por dois mandatos,
escolhidos para ambos de maneira legítima, pela população, de alguma forma. É portanto ʺa
comunidade que irá autorizar a recondução do membro do conselho, através de novo sufrágioʺ
(DONIZETI & CYRINO – obra citada)
O CONANDA, em sua resolução nº 75 citada, também expressamente defende isso,
como parâmetro para criação e funcionamento de um Conselho Tutelar (parágrafo único do
art.10): “A recondução, permitida por uma única vez, consiste no direito do conselheiro tutelar de
concorrer ao mandato subseqüente, em igualdade de condições com os demais pretendentes,
submetendo‐se ao mesmo processo de escolha pela sociedade, vedada qualquer outra forma de
recondução” . (grifei)
Remunerações e vantagens ‐ O Estatuto traz apenas uma norma programática,
aventando a dupla possibilidade de se remunerar ou não o conselheiro tutelar, no exercício
de suas funções. Uma vez que expressamente vedou a remuneração dos conselheiros dos
direitos, ele contempla a questão dos conselheiros tutelares de maneira... ʺsalomônicaʺ: ʺLei
municipal disporá (...) inclusive sobre sua eventual remuneração de seus membrosʺ (art. 134).
De qualquer maneira, é imprescindível que a lei municipal declare expressamente que
a função de conselheiro tutelar, naquele município, é remunerada. E que alguma lei
municipal fixe o padrão de remuneração. Nunca o conselho dos direitos da criança e do
adolescente! Lei municipal não poderá jamais delegar a esse colegiado a fixação da
remuneração de conselheiro tutelar.
Por sua vez, as verbas para pagamento da remuneração dos conselheiros tutelares
deverão ser provenientes do orçamento público municipal e previstas regularmente na lei
própria, como despesas da secretaria municipal, à qual esteja vinculado administrativamente
por lei os conselhos tutelares. O fundo municipal para os direitos da infância e adolescência
91
não pode financiar o pagamento dessa remuneração, pois se trata de fundo público especial
de investimento, devendo seus recursos ficar destinados a suas atividades‐fim, isto é, ao
financiamento de programas e projetos de proteção/promoção dos direitos da criança e do
adolescente.
Exercício das funções, afastamentos e substituições ‐ A matéria referente a férias,
licenças, faltas, ausências, impedimentos e conseqüentes substituições deverá ser prevista na
lei municipal – coisa que não ocorre geralmente nas leis municipais vigentes.
Regime correcional e disciplinar, destituição e perda da função ‐ Há necessidade
que a lei municipal obrigatoriamente traga previsão das hipóteses específicas em que o
conselheiro tutelar perderá a função e será destituído. E essa lei deverá mais disciplinar os
procedimentos disciplinares para a declaração da perda da função e para a conseqüente
destituição, estabelecendo quem é o responsável pela condução desse procedimento
apuratório (o conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente...?) e pela aplicação
da sanção administrativa de destituição da função (prefeito municipal...?).
Todavia, se a lei municipal for absolutamente omissa a esse respeito, o ministério
público, as autoridades públicas municipais e qualquer interessado que se julgar prejudicado
por ato do conselheiro tutelar, todos eles poderão ajuizar ação judicial própria, contra o
conselheiro tutelar, visando a declaração da perda de função.
CAPÍTULO VII
O CONTROLE NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: CONSELHOS DOS
DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
SEÇÃO I
A ESSÊNCIA DOS CONSELHOS DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
Generalidades ‐ A maior parte da confusão que cerca a estruturação,
organização e funcionamento dos conselhos dos direitos da criança e do
adolescente, no Brasil, nasce de deformações no entendimento de sua natureza
jurídica e político‐institucional – de sua essência. Mais das vezes, há uma
frustração infundada e injusta de relação a esses colegiados. É que se pretende
deles coisa diversa do que eles deveriam ser e fazer; se levar em consideração a
vigente normativa legal que os institui e a decorrente missão político‐
institucional que devem cumprir. Alguns esperam que eles sejam instâncias da
sociedade civil, absolutamente autônomos, sem nenhuma vinculação com o
estado. Outros, em oposição, os vêem meramente como órgãos administrativos
92
do governo. De um lado, uns o entendem, como ʺtudoʺ. De outro lado, como
ʺnadaʺ. E no meio... a grande planície pasmacenta dos que nem os conhecem.
Natureza jurídica ‐ Juridicamente, nos termos da lei federal 6.089/90 ‐
Estatuto da Criança e do Adolescente, a aparente confusão se encontra resolvida
(pelo menos em termos da dogmática jurídica143), a depender muito pouco de
maiores exercícios de interpretações do texto legal que os institui (artigo 88, II –
Lei federal 8.069 de 13 de julho de 1990). Leis federais, estaduais e municipais
deveriam criar formalmente esses conselhos e dessa criação dependerá sua
estruturação, organização e funcionamento.
Natureza das leis de criação dos conselhos dos direitos ‐ Todavia,
importante se faz, que ‐ de logo ‐ se tenha como bastante claro o seguinte: o
Estatuto não esgota toda a possibilidade de regulação legal da estruturação,
organização e funcionamento dos conselhos dos direitos da criança e do
adolescente144. Ele dispõe sobre a ʺproteção integral de crianças e adolescentesʺ
(artigo 1º ‐ Estatuto cit.), isto é, estabelece ʺnormas gerais de proteção da criança e do
adolescente (artigo 23 – Constituição federal) – isto é, normas gerais nacionais.
Mas, em seu bojo encontramos também normas gerais penais e processuais
procedimentais, de organização administrativa, de organização judiciária e de
organização público‐ministerial – tanto como normas gerais nacionais, quanto
como normas especiais federais.145
Segundo a Constituição federal a competência para legislar sobre esses
campos enumerados é
9 concorrente da união e dos estados e do distrito federal no tocante à
legislação de proteção da criança/adolescente e juventude,
9 concorrente e/ou conjunta da união, estados e municípios no
tocante aos demais campos de organização146 e
9 privativa da união no campo penal e processual.
Na falta de norma especial local (quando se trata de legislação
concorrente) as normas da união poderiam ir além da sua abrangência genérica,
estabelecendo essas normas específicas, que prevalecerão em cada estado ou
município, até que esses entes públicos editem suas normas específicas, quando
143
Isto é: texto expresso de lei vigente
144
Ver adiante, neste texto, maior explicitação a respeito disso, quando se tratar das "atribuições" dos
conselhos dos direitos da criança e do adolescente, por partes
145
A federação é um ente nacional, formado pelos entes federados, união, estados, distrito federal e
municípios, daí a possibilidade de distinção entre esfera nacional e federal, em alguns momentos, refletindo
isso – cfr. CASALI JR..2000: "Tratados internacionais". Salvador.
146
DONIZETI LIBERATI, Wilson & CYRINO, Públio Caio B.: "Conselhos e Fundos do Estatuto da
Criança e do Adolescente"- São Paulo. Ed. Malheiros
93
então aquelas determinadas normas federais – ʺpermissivamente invasorasʺ ‐
teriam sua vigência suspensa, na forma da Constituição federal.
Talvez, o grande mal na luta pela efetividade político‐institucional e
eficácia jurídica do Estatuto da Criança e do Adolescente tem sido, nesses
últimos 10 anos, esse imobilismo do poder legisferante estadual e municipal,
complementando o Estatuto, tanto de relação a seus dispositivos ‐ formal e
substancialmente ‐ de proteção da infância, quanto de relação a seus dispositivos,
formalmente, de proteção, mas, substancialmente, de organização
administrativa, judiciária e público‐ministerial.
Mais das vezes, a insatisfação que surge, pressionando no sentido da
reforma do Estatuto, decorra disso: em lugar de reformá‐lo, ʺcompletá‐loʺ, dever‐
se‐ia regulamentá‐lo ‐ via legislativa ou administrativa 147.
Nota‐se uma incipiente tentativa nesse sentido, quando da elaboração das
leis municipais e estaduais de criação de conselhos, que diziam dispor também
sobre a ʺpolítica de atendimento dos direitos da criança e do adolescenteʺ, naquele
estado ou município. Lamentavelmente, elas ficaram presas a um modelo,
divulgado, com a melhor das intenções, por Escritórios locais da extinta
Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência ‐ CBIA, mas que o
legislador local não ousou ampliar e adaptar à sua realidade local, indicando
diretrizes para a formulação administrativa posterior dessa política.
Lamentavelmente, vozes as mais respeitáveis, aqui e ali, se levantam,
defendendo a impossibilidade de se dispor em caráter complementar sobre
determinados pontos estabelecidos no Estatuto, dificultando que se melhor
regule o chamado ʺsistema de garantia de direitosʺ.
Mas, na verdade, data venia, uma lei federal como o Estatuto não poderia
– sob pena de inconstitucionalidade – detalhar, por exemplo, o
organização/funcionamento da justiça da infância e da juventude, das suas
equipes multiprofissionais (artigos 149 e 150 do Estatuto cit.) e dos seus agentes
de execução148, dos conselhos de direitos, dos conselhos tutelares, dos serviços e
programas administrativo em regime protetivo ou socio‐educativo (artigo 90 –
Estatuto cit.).
Todavia, muitas vezes constata‐se o contrário: ameaça‐se ferretear como
inconstitucionais as normas estaduais e municipais (as últimas, principalmente)
que ousam complementar legitima e legalmente o Estatuto. Com isso não se quer
dizer que não há normas municipais e estaduais, nesse campo, inconstitucionais.
147
Poder normatizador amplo dos Conselhos dos Direitos, como se verá adiante ou do Presidente da
República, Governadores e Prefeitos, por decretos (funcionamento dos Fundos para os Direitos da Infância
e Adolescência, por exemplo)
148
Os antigos Comissários de Menores, que as leis estaduais de organização judiciária deveriam extinguir
ou transformar, à luz do Estatuto (artigo 149)
94
Existem! e pululam pelo país... contendo absurdos e heresias, a merecerem
repúdio.
Mas isso se corrige com a produção cada vez maior de boa doutrina e a
construção de uma jurisprudência comprometida com os princípios e diretrizes
da doutrina da proteção integral, acolhidos pela Convenção sobre os Direitos da
Criança.
Por que não se reconhecer que o Estatuto estabelece apenas normas gerais
sobre criação, estruturação, organização e funcionamento dos conselhos dos
direitos da criança e do adolescente; competindo às unidades federadas e aos
municípios disporem, de maneira complementar, sobre essa matéria.?
Na verdade, compete:
9 à União estabelecer normas gerais de proteção da infância e da
adolescência, de organização judiciária e público‐ministerial e de organização
administrativa
9 aos estados e ao Distrito Federal estabelecerem normas especiais de
proteção da infância e da adolescência
9 aos estados e ao Distrito federal estabelecerem normas especiais de
organização judiciária e público‐ministerial, inclusive também para possibilitar a
operacionalização dessa proteção (ʺsistema de garantia de direitosʺ) e
9 aos estados e municípios149, essas normas especiais de organização
administrativa, na mesma hipótese (idem).
Essa regra deveria se aplicar à criação de conselhos dos direitos da criança
e do adolescente e à regulação da sua organização e funcionamento
Os Conselhos enquanto órgãos públicos estatais ‐ Ora, entendendo‐se
que leis federais, estaduais e municipais podem criar e organizar conselhos tais, é
de se recordar que a lei só poderá instituir instâncias estatais, isto é, organizações
estatais. Ou mais amplamente, ʺespaços públicos institucionaisʺ.150
Não poderia assim fazê‐lo de relação a instâncias sociais: fóruns de
articulação não institucionais (Fórum DCA, Comitê de Enfrentamento da
Violência Sexual, Fórum de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil), ong.s,
associações, movimentos sociais, movimentos reinvidicatórios, pastorais e
ministérios eclesiais etc. ‐ isto é, organizações da sociedade. Não poderia criar
espaços públicos não institucionais, já que isso feriria o princípio constitucional
da livre associação e organização da sociedade. A lei (e portanto o Estado) não
pode criar entes privados, organizações sociais. No máximo, poderá regular o
149
Dispõe o artigo 30 da CF que compete ao Município "organizar e prestar, diretamente ou sob regime de
concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local".
150
Assim a lei federal 8.242 de 12 de outubro de 1991 denomina o CONANDA – Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente
95
funcionamento delas, nas suas relações com o poder público governamental:
registros públicos, convênios etc. .
Tanto assim é que se tem por inconteste hoje não poder a lei instituidora
desses conselhos – sob pena de inconstitucionalidade – estabelecer taxativamente
em seus dispositivos previamente quais as entidades sociais que os integrarão,
invadindo o papel da vida societária, usurpando a legítima representatividade
da organização social.
Donde se deduz que os conselhos dos direitos da criança e do adolescente
são órgãos estatais, isto é, instâncias públicas. E não, instâncias da sociedade
civil.
Enquanto órgãos administrativos, integrantes do Poder Executivo ‐ Mas,
em se tratando de órgão publico estatal, qualquer deles há que se enquadrar em
um dos três Poderes ‐ segundo o princípio constitucional da separação e
soberania dos Poderes constitucionais.
Salvo a exceção constitucional explícita referente ao ministério público, ao
qual a Constituição federal (artigos 157 a 159 – CF) reconhece status equiparado
ao de Poder, como ʺinstituição autônomaʺ e ʺfunção essencial à Justiçaʺ, mas sem
subordinação ou vinculação ao poder judiciário ‐ fora do capítulo próprio desse
Poder. Por exemplo, a Constituição federal considera crime de responsabilidade
do presidente da República atentar contra a autonomia do poder judiciário, do
poder legislativo e do ministério público. Ao chefe do ministério público se
assegura a competência para a iniciativa de leis e para nomear e exonerar seus
membros e servidores
Exatamente por se tratarem de órgãos públicos, integrantes da estrutura
do poder executivo e com atribuições para praticar atos de gestão pública ‐ tais
conselhos só podem ser criados através de leis cuja iniciativa do processo
legislativo seja da exclusiva competência do chefe do poder executivo151. Isso
valendo para qualquer lei posterior, modificativa da sua estruturação
organizacional ou do seu funcionamento.
Em face disso, é de se reconhecer que tais colegiados ‐ como órgãos
públicos estatais que são ‐ exercem funções administrativas que os fazem
incluídos na esfera do poder executivo: atribuições típicas de desenvolvimento
de políticas públicas. E não as funções judicantes e legisferantes, próprias e
peculiares dos poderes legislativo e judiciário. Esses, quando praticam atos
administrativos, o fazem na gestão dos negócios internos da esfera de cada
Poder, respectivamente, em face do princípio da sua autonomia administrativo‐
151
Presidente da República, Governadores das Unidades Federadas e Prefeitos Municipais- aplica-se aqui
por simetria o disposto no artigo 61, §1º, II da CF
96
financeira. Isto é, os conselhos dos direitos praticam atos administrativos de
execução das leis emanadas do poder legislativo ‐ regulamentando‐as,
deliberando sobre a formulação de políticas públicas, controlando as ações
públicas governamentais e não governamentais, potencializando
estrategicamente as políticas públicas (mobilização social etc. etc.)152.
Não há, todavia, previsão e permissão legal no Estatuto e na lei federal de
criação do CONANDA (e não deveria haver nas leis estaduais e municipais
correspondentes) para a prática de atos de coordenação e execução de políticas
públicas, da responsabilidade dos órgãos próprios, governamentais e não
governamentais. A coordenação de políticas públicas é típica de órgãos públicos
governamentais. A execução pode ser concorrente. Em que pese se encontrar em
todo país, inúmeros casos de conselhos dos direitos da criança e do adolescente
que coordenam e/ou executam diretamente ações públicas, de maneira
equivocada, salvo melhor juízo.
Em resumo: tais conselhos participam de determinada parte do processo
de desenvolvimento das políticas de estado153, o que implica em:
9 normatização/formulação dessas políticas;
9 controle das ações públicas governamentais e não governamentais;
9 potencialização estratégica dessas políticas (mobilização, p.ex.).
Órgãos especiais, funcionalmente autônomos e administrativamente
vinculados ‐ O mesmo registrado atrás, a respeito dos conselhos tutelares,
aplica‐se aqui aos conselhos dos direitos da criança e do adolescente.
Órgãos colegiados ‐ Outra peculiaridade que integra sua natureza
jurídica, faz do conselho dos direitos da criança e do adolescente (como
obviamente diz o nome) essencialmente um colegiado. Isto é, um órgão
integrado por vários agentes públicos, o que faz com que seus atos
administrativos sejam atos jurídicos complexos formais, emanados de uma
decisão colegiada e não de um agente singular. Em situações especiais (situações
emergenciais e urgentes ou atos protocolares de representação), sempre previstas
na própria lei e no seu regimento ou decorrentes de delegação expressa do
plenário colegial, esses atos podem ser praticados pela sua direção ou por
qualquer dos seus membros isoladamente (presidente, vice‐presidente ou
conselheiro‐relator) e referendados posteriormente pelo colegiado ou não, a
depender da definição jurídica ou da delegação.
152
Conferir, adiante, neste texto, os capítulos referentes às atribuições dos conselhos dos direitos da criança
e do adolescente
153
= políticas públicas, em oposição a políticas governamentais
97
Órgãos colegiados paritários ‐ Determina mais o Estatuto que tais
conselhos tenham composição paritária (art.88, II). E tal é repetido pelas leis
estaduais e municipais correspondentes.
Em primeiro lugar, isso significa paridade quantitativa entre
representantes do governo e das organizações sociais: meio a meio. Já no tocante
à chamada paridade qualitativa, a matéria é mais complexa e controversa.
Algumas questões, em todo o país, têm surgido a provocar polêmicas e mesmo
ações judiciais.
Questões polêmicas na composição da parcela governamental ‐ A
primeira delas diz respeito à participação de representação dos outros Poderes
(judiciário e legislativo) e do ministério público, integrando a parcela dita
ʺgovernamentalʺ. Como o próprio nome diz e entendendo‐se que se trata de um
ʺórgão deliberativo do poder executivoʺ, a participação dos demais Poderes e do
ministério público configura uma clara invasão de um Poder sobre outro.
No caso, teríamos parlamentares e magistrados154 praticando verdadeiros
atos administrativos, atos de gestão pública, como se viu acima: normatizando/
regulamentando, deliberando sobre a formulação de políticas públicas
controlando as ações públicas governamentais e não governamentais,
articulando e integrando essas ações, mobilizando a sociedade etc. etc. Os juizes
e representantes do ministério público não têm, por força da sua missão
institucional, essa atribuição controladora, nessa linha administrativa,
gestionária. Os parlamentares a têm, mas a serem exercidas no espaço do seu
colegiado próprio (parlamento) e na forma definida pela Constituição.
O Estatuto citado reconhece o impedimento dos conselheiros tutelares
(mutatis mutandi, analogamente, dos conselheiros de direitos), de relação à
autoridade judiciária e ao representante do ministério público (parágrafo único
do artigo 140).
Esse óbice à participação nos conselhos dos direitos não existiria se tal
integração dos Poderes citados, nesses colegiados especificamente, ocorresse com
previsão expressa na Carta Magna: ou com atribuições meramente consultivas
(conselhos penitenciários, onde há participação do ministério público – por
exemplo) ou para a prática dos chamados ʺatos de impérioʺ (por exemplo, o
Conselho de Segurança Nacional e o Conselho da República) e não aqueles de
ʺgovernoʺ ou gestão.
Tratando dessa matéria, em 1993, o CONANDA editou resolução nesse
sentido, solicitando mais à Procuradoria Geral da República que ajuizasse ações
diretas de inconstitucionalidade, em litisconsórcio ativo com o ministério público
154
Aqui incluídos os magistrados judiciais e os público-ministeriais
98
estadual, contra as leis estaduais e municipais que previssem tais participações –
indicação com êxito em uns lugares e nenhuma providência em outros.
De qualquer maneira, a questão se encontra ainda em aberto, para
discussão e produção de doutrina155, enquanto não se firma uma tendência
jurisprudencial clara, com decisões dos tribunais superiores, principalmente.
Tais razões podem ser invocadas igualmente para justificar a não inclusão,
na parcela governamental dos conselhos dos direitos citados, de representantes
de órgãos mesmo do poder executivo, mas de outras esferas: isto é, órgãos
estaduais e municipais no CONANDA, órgãos federais e municipais nos
conselhos estaduais e órgãos federais e estaduais nos conselhos municipais.
Aqui, seria a invasão de uma esfera da federação em outra, integrando órgãos
administrativos com poder deliberativo vinculante, participando da gestão
pública de outra esfera. Igualmente, essa questão se encontra em aberto.
Questões polêmicas na composição da parcela não governamental ‐
Outras questões dizem respeito à ʺparticipação direta da população através suas
organizações representativasʺ156, nesses colegiados. Ou ʺparticipação da comunidadeʺ,
na linguagem utilizada pela Constituição federal e pela legislação federal, na
instituição e regulação do sistema único de saúde e do respectivo Conselho
Nacional de Saúde.
A lei de criação do CONANDA e a maior parte das leis estaduais e
municipais exigem que sejam entidades sociais (ou organizações sociais) de
ʺatendimento dos direitos de crianças e adolescentesʺ157 ou de ʺatendimento direto e
defesa de direitosʺ.
Duas questões, neste ponto, precisam ser aprofundadas e aclaradas:
9 que se deve entender por ʺentidades sociaisʺ, ʺorganizações da
sociedadeʺ, ʺa população por suas organizações representativasʺ, ʺcomunidadesʺ ?
9 que se deve entender por ʺentidade de atendimento de crianças e
adolescentesʺ e expressões assemelhadas ?
Essa discussão não encontra solução no campo específico da composição
possível dos conselhos deliberativos e paritários. Seu locus é mais amplo: a
discussão sobre as categorias ʺsociedadeʺ, ʺsociedade civil organizadaʺ e o chamado
ʺterceiro setorʺ, nas suas relações com as de ʺestadoʺ e ʺmercadoʺ.
Na verdade, essa é uma discussão mais política que jurídica: a dimensão
jurídica que se dará a essas categorias, depende do seu conteúdo socio‐político
155
Em apoio a esse entendimento: DONIZETI LIBERATI, Wilson & CYRINO, Público Caio: op.cit.
156
Artigo 204, II – Constituição federal
157
Expressões mais próximas do Estatuto, considerando-se o consagrado no seu artigo 86
99
delas158. Uma discussão que nos leva ao terreno escorregadio e ainda pleno de
discussões a respeito dos conceitos de ʺpúblicoʺ e ʺprivadoʺ.
Quando a Constituição federal fala em participação direta da sociedade na
democracia brasileira, pressupõe‐se que admite uma esfera do público que não se
confunde com a meramente ʺgovernamentalʺ: admite um ʺpúblico não
governamentalʺ. E isso mais se reforça com o disposto no Estatuto da Criança e do
Adolescente, que prevê política de estado através de ʺações governamentais e não
governamentaisʺ (art.86).
É óbvio que tais leis não poderiam, nesse ponto, fechar mais do que fecha
o Estatuto em seus dispositivos próprios: além de se tratar de norma especial
federal, estruturadora de órgão público da União, o Estatuto igualmente é
norma geral nacional, reguladora de um sistema nacional de proteção dos
direitos humanos da criança e do adolescente159. Por exemplo, a exigência de que
só ʺentidade de atendimento diretoʺ ‐ como creches, abrigos, entidades de
promoção de direitos etc. ‐ poderiam integrar os conselhos não encontra respaldo
no Estatuto.
Equivocado seria também o entendimento de que não poderiam integrar
esses colegiados, as entidades sociais das categorias profissionais (sindicatos e
associações de classe) e do meio empresarial, que atendem direitos de crianças e
adolescentes.
Posteriormente, a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS torna isso
mais claro quando trata da composição do Conselho Nacional de Assistência
Social ‐ CNAS, definindo mais claramente os tipos de entidades sociais que
garantiriam essa participação direta da sociedade no colegiado em tela, não
deixando margem de dúvidas quanto a essas questões.
ʺO uso mistificado de ʹpopulaçãoʹ, ʹcomunidadeʹ, ʹgrupos sociaisʹ, é utilizado
como forma de negar a existência de classes, de interesses conflitivos, buscando
despolitizar as diferenças observadas nos grupos e tentando apresentar os mesmos como
uma coleção neutra, passivaʺ160 – isso parece bem claro quando se discute essa
legitimidade e legalidade da inclusão ou não de determinadas expressões do
movimento social.
Emblematicamente, quando da inicial composição do CONANDA, esta
matéria foi discutida na primeira assembléia geral para escolha dos
representantes das organizações sociais: discutia‐se o enquadramento de
determinadas entidades nos critérios legais (centrais trabalhistas, entidades de
158
Ver adiante neste texto o item seguinte: "Natureza político-institucional"
159
A Federação é um ente nacional, formado pelos entes federados, União, Estados, Distrito Federal e
Municípios – cfr. CASALI JR..2000: "Tratados internacionais". Salvador.
160
AROUCA, Sérgio apud DONIZETI LIBERATI, Wilson & CYRINO, Público Caio B.: "Conselhos e
Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente"
100
proteção jurídico‐social, núcleos de estudos e pesquisas, pastorais e ministérios
eclesiais etc.). Desde aquele momento ‐ com parecer favorável da Procuradoria
Geral da República que fiscalizava, então, o processo de escolha ‐ a assembléia
geral decidiu pela ampliação do conceito de ʺsociedade civil organizadaʺ,
especialmente para admitir a participação de representações das classes
trabalhadoras161.
Natureza político‐institucional ‐ A experiência dos conselhos dos direitos
da criança e do adolescente, no Brasil, se justifica ‐ politicamente ‐ como forma
de se garantir a participação popular na gestão do poder, no desenvolvimento
dos negócios públicos pelo estado162. Assim, as confusões maiores sobre a real
missão político‐institucional dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente
nascem de um entendimento também equivocado a respeito da democracia e do
estado.
Esse papel político dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente
(como de todos os conselhos deliberativos) depende muito da concepção de
democracia e de estado que se acolhe e que se pretende operacionalizar.
Visões da democracia e do estado. Conselhos deliberativos: um neo‐
corporativismo ? ‐ A compreensão da democracia precisa superar
dialeticamente (sem propriamente negar...) a tradicional concepção liberalista,
enquanto ʺmétodo de governarʺ163, para uma concepção mais atual e radical,
enquanto ʺforma e conteúdo de existência socialʺ164. Uma utopia verossímil e viável,
por se fazer, para realização paulatina e irreversível de seus princípios:
liberdade, igualdade, pluralidade e participação . Especialmente – a centralidade
na pluralidade. Democracia é respeito e tolerância pela diversidade.
A pluralidade é tanto de conteúdo (diversos interesses), quanto de sujeitos
políticos (movimentos sociais, igrejas, partidos, sindicatos, ong etc.). Mas, esse
respeito á ʺdiversidade de valoresʺ possui, como limites seus, certos paradigmas
éticos voltados para a convivência humana pacíficaʺ165: assim, a liberdade e a
igualdade são paradigmas limitativos pois para a pluralidade.
161
Cfr. Atas do CONANDA. Registre-se mais, a respeito, que o Autor secretariou esta primeira assembléia
geral para constituição do CONANDA, representando a Rede dos Centros de Defesa.
162
Constituição federal – artigos 227, §7º e 224, II.
163
BOBBIO, Norberto.1986: "O futuro da Democracia". Rio de Janeira Ed. Paz e Terra – "Conjunto de
regras primárias ou fundamentais que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com
quais procedimentos".
164
COUTINHO, C. N. 1992: "Gramsci, um estudo sobre o pensamento político". Rio de Janeiro. Ed.
Campus
165
LEVY, N. 1992: "Uma Reinversão da Ética Socialista" in NOVAES, A. (org.): "Ética". São Paulo. Ed.
Companhia das Letras
101
Enquanto isso, a participação ressurge como paradigma operativo para os
outros três. Ela é caminho privilegiado para se construir relações libertárias,
igualitárias e pluralistas.
Um outro aspecto a ser enfrentado nessa discussão sobre uma concepção
mais real de democracia e de suas possibilidades de realização histórica, diz
respeito aos aspectos de organização político‐institucional dela, principalmente
no que diz respeito ao estado. Diz respeito à visão que se tenha do estado –
decorrente daquela que se tem de democracia.
Para tanto, há que se abandonar as visões clássicas, tanto a liberal do
Estado do Bem Estar Social, quanto a marxista ortodoxa da “ditadura do
proletariado”, em favor de uma ʺvisão ampliada do estadoʺ166, adotada inclusive no
modelo político‐constitucional brasileiro (Constituição federal – parágrafo único
do artigo 1º) onde ʺsociedade políticaʺ (governo) e ʺsociedade civil organizadaʺ se
articulam e se integram, no espaço jurídico‐político do estado. O campo estatal
amplo que se erige ao lado do campo do mercado: o público em face do
eminentemente privado.
O Brasil, dogmático‐constitucionalmente, ficou sendo uma democracia
mista ‐ direta e indireta. Uma democracia tanto representativa, quanto
participativa. E isso foi uma conquista dos movimentos populares, na época do
funcionamento do Congresso Nacional como Constituinte167: teve‐se um processo
de luta social, marcado pela pluralidade, com construção de hegemonia no
interior do campo democrático‐popular – como reconhece SOUZA FILHO168.
Assim, preciso é que se aperfeiçoem hoje os espaços/mecanismos de
representação (sistema eleitoral, partidos políticos, funcionamento dos
parlamentos, p.ex.) e os espaços/mecanismos de participação (conselhos
paritários deliberativos, plebiscito, referendo, iniciativa popular do processo
legislativo p.ex.).
As instituições tradicionais da democracia representativa (parlamento,
processo eleitoral, governantes eleitos, justiça, segurança etc.) continuam com
papel fundamental a desenvolver.
Porém é de reconhecer hoje que elas se mostraram limitadas para
promover uma real democratização da sociedade e, por conseguinte, uma maior
ampliação daqueles seus princípios citados: liberdade, igualdade, pluralidade e
participação.
Atualmente estão nítidas as limitações existentes no sistema de
representação democrática. Autores dos mais diversos matizes ideológicos
166
GRAMSCI, Antônio. 1978 : "Concepção Dialética da História". São Paulo. Ed. Civilização Brasileira.
167
Através da "Plenária Pro-Participação Popular na Constituinte"
168
Loc. cit.
102
corroboram esta mesma visão (BOBBIO, 1986; COUTINHO, 1992, DAHL, 1991;
POULANTZAS, 1985; RIBEIRO FILHO, 1999 etc.).
Importante pois, que se promova à transformação do estado e a
radicalização da democracia, através do desenvolvimento aperfeiçoado da
democracia representativa e de novas formas de democracia participativa de
base. E, simultaneamente, através do ʺestímulo de redes e focos autogestoresʺ169
Interessa aqui a esta análise, em especial, a questão da democracia
participativa e dos espaços e mecanismos públicos de participação: isso porque
os conselhos dos direitos da criança e do adolescente (e todos os conselhos
estatais deliberativos) são reconhecidos e legítimos espaços públicos de
participação170.
ʺA legitimidade dos conselhos sustenta‐se na legitimidade da democracia
participativa como arranjo institucional que amplia a democracia política Por sua vez a
legitimidade da democracia participativa fundamenta‐se no reconhecimento de que o
arranjo neo‐corporativo possibilita a construção de espaço público de conflito/negociação,
baseado em ações estratégicas e discursivas complementares à ação parlamentar
representativa partidáriaʺ 171.
Isso implica em se reconhecer que, numa sociedade complexa como as dos
tempos atuais, as ʺorganizações sociais participantes do mercadoʺ (sindicatos, centrais
sindicais, associações profissionais, associações empresariais, instituições
filantrópicas organizadas e mantidas por empresas etc.) e as ʺorganizações sociais
produtoras/receptoras de políticas públicasʺ (movimentos de defesa dos direitos de
negros, mulheres, crianças, homossexuais, sem‐terra, associações de bairros, de
usuários da saúde, por exemplo) configuram‐se ambas como ʺorganizações
corporativas sociaisʺ172 ‐ base para o funcionamento dos espaços e mecanismos
públicos de participação democrática.
169
PULANTZAS, N. apud SOUZA FILHO, R. – op. cit.
170
NOGUEIRA NETO, Wanderlino. 1995: "Papel político dos Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente e dos Conselhos Tutelares, dentro de um modelo de democracia participativo-representativa.
Uma visão gramsciana". Porto Alegre. Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre.
171
SOUZA FILHO, Rodrigo.1999: "Conselhos deliberativos: neo-corporativismo brasileiro?"- in "Direitos
Humanos, Democracia e Senso de Justiça". Rio de Janeiro. Edição Fundação Bento Rubião. KROART
Editores.
172
Tem-se utilizado, de último, a expressão “terceiro setor”, mais ampla e mais ligada à linha do
voluntariado americano e canadense, que tem permitido incluir todo o tipo de organização corporativa
social, mesmo as que tradicionalmente não se incluíam na categoria consagrada de "sociedade civil
organizada" (enquanto expressões do movimento social, organizações comunitárias e assemelhadas). Nesse
chamado "terceiro setor" poder-se-ia incluir partidos políticos, sindicatos, pastorais e ministérios eclesiais,
fundações mantidas por empresas etc. Um "terceiro setor" em contraste com o Estado, como “primeiro
setor" (nessa concepção entendido apenas como Governo) e com o Mercado, como "segundo setor". De
qualquer maneira, a expressão permanece plurívoca, pois outros autores defendem um definição oposta,
fazendo do "terceiro setor" uma espécie do gênero "sociedade civil".
103
Essa idéia de participação da sociedade na formulação/controle das
políticas de estado, através das organizações corporativas sociais, estruturou‐se
com base em algumas ʺtesesʺ construídas principalmente pelo movimento social:
institucionalização de um espaço público, com representação do
estado‐governo e participação direta do estado‐sociedade173 (os conselhos
paritários deliberativos);
reconhecimento, nesses espaços, da autonomia da sociedade civil
em indicar ampla e conjunturalmente determinadas ʺorganizações corporativas
sociaisʺ, como suas expressões e seus instrumentos de participação direta;
obediência a critérios que garantissem a participação direta ‐
efetiva e preponderante ‐ nesses espaços, mais particularmente dos atores sociais
estatais não governamentais, que se expressam como ʺorganizações corporativas
sociais produtoras/receptoras de políticas públicasʺ;
indicação de orientação nacional, sem prejuízo das especificidades
locais, para o conjunto das políticas públicas, através da distribuição de
atribuições entre esses espaços.
Segundo SOUZA FILHO, ʺforjou‐se um arranjo corporativo setorial (pois,
próprio para cada área – saúde, assistência, criança) para negociar e construir hegemonia
na esfera das políticas públicas sociais, através de sistema formal, articulado
nacionalmenteʺ. Vê, o mesmo autor, nessa construção do que ele chama de
ʺengenharia institucional, uma base ʺneo‐corporativaʺ, isto é, ʺcorporativo‐societalʺ174,
fruto de luta dos setores mais progressistas da sociedade e que se configura como
estratégia concreta e legítima de luta social.
Através dessas ʺorganizações corporativas sociaisʺ e desses conselhos
deliberativos se torna possível a estruturação de uma ordem social alternativa ao
ʺcorporativismo‐estatalʺ e ao ʺliberal‐corporativismoʺ. O primeiro tem um escopo
nitidamente autoritário, onde as organizações são meros factóides, extensões do
poder estatal175. O segundo pretende promover a defesa de interesses puramente
privatistas, os quais seriam regulados pela lógica do ʺmercado políticoʺ, através da
implementação de lobbies junto aos poderes representativos tradicionais.
O corporativismo‐social baseia‐se numa ʺorganização societal orgânica, que
busca combinar hegemonia com pluralidadeʺ (...) ʺonde os institutos políticos com base
neo‐corporativa facilitam a organização e expressão dos diversos interesses em pautaʺ176
Em conclusão: a definição de atores sociais no processo de participação
direta na gestão pública, principalmente na escolha dos que integrarão os
173
Sociedade civil organizada
174
Em oposição aqui ao modelo do "corporativismo estatal" e do "corporativismo neo-liberal".
175
Como o que se teve no Brasil, nos períodos do Estado Novo (1937) e da Ditadura Militar (1964), por
exemplo
176
SOUZA FILHO, R. – loc. cit.
104
conselhos deliberativos (no caso, especialmente os conselhos dos direitos da
criança e do adolescente e os conselhos tutelares) nada tem com os processos que
legitimam a democracia representativa (processo eleitoral). Estes atores sociais,
no viés da democracia participativa, são legitimados, através seus processos de
escolha próprios, garantindo a participação direta das organizações corporativas
sociais.177
Decorrentes papéis político‐institucionais desses espaços públicos
participativos ‐ A partir dessa visão ampliada do “estado democrático de direito”,
esses espaços públicos da linha participativa, os conselhos paritários
deliberativos (e entre eles, em especial, os conselhos dos direitos da criança e do
adolescente) devem ser considerado, ao mesmo tempo:
organizações burocráticas; e
espaços políticos de poder.
E como espaços políticos de poder, esses Conselhos devem se tornar,
conseqüentemente:
aparelhos coercitivos e de integração;
instâncias de mediação para a práxis social; e
potencializadores estratégicos das políticas de estado;
Nessa ótica, os conselhos dos direitos da criança e do adolescente devem
construir um papel político‐institucional para si178, que os façam
espaços/instrumentos do poder estatal e possibilitem a participação direta da
população no exercício desse poder, de maneira operativa e efetiva.
Não são eles espaços únicos e exclusivos, para assegurar a participação
popular. Porém, importantes e estratégicos para a transformação do perfil estatal
brasileiro. A estrutura organizativa e a prática de funcionamento desses
conselhos podem fortalecer o estabelecimento da cultura democrática, que os
ajudou a criar.
Deles são e serão inimigos ferrenhos, obviamente, todos aqueles que se
opõem ao estabelecimento dessa cultura democrática: conselhos dessa natureza
não combinam com corruptos e autoritários.
Organizações burocráticas ‐ Os conselhos dos direitos da criança e do
adolescente precisam se fortalecer, preliminarmente, como ʺorganizações
burocráticasʺ.
177
Conferir adiante, neste texto: "Função Controladora dos Conselhos dos Direitos. (...) Procedimento de
escolha dos conselheiros tutelares".
178
Construção política, por não se tratar de uma definição normativo-jurídica. A lei não lhes pode dar esse
papel político, que extrapola a mera definição normativa, como fenômeno meta-jurídico.
105
A idéia de ʺequipamento burocrático estatalʺ não pode realmente esgotar
toda a potencialidade e a riqueza do papel político‐institucional de um conselho
dessa natureza. Mas, não se a pode desprezar como sem importância nesse
trabalho de construção geral desse papel, a fazê‐los instrumentos efetivos do
poder estatal.
O asseguramento de condições mínimas de estruturação e funcionamento,
dignos para o conselho é condição essencial para a construção do seu papel
político‐institucional. Um espaço público institucional, como esse colegiado, que
não seja eficiente administrativamente, muito dificilmente se torna eficaz: isto é,
sem bons resultados administrativos, difícil bom impacto social e político.
Aplica‐se aqui o expendido atrás a respeito dos conselhos tutelares, no
tocante ao seu papel burocrático.
O apoio administrativo aos conselhos: as chamadas secretarias‐
executivas ‐ O fortalecimento burocrático dos conselhos depende visceralmente
de que tenham, apoiando‐os, uma estrutura organizacional pública que lhe dê
apoio administrativo. Algo como uma secretaria‐executiva dos conselhos dos
direitos da criança e do adolescente.
Normalmente, as leis de criação desses conselhos trazem a previsão de
algo semelhante. Ou particularmente criando uma secretaria executiva do
conselho dentro da estrutura organizacional do órgão de vinculação (ver atrás),
ou especificando que determinada repartição preexistente funcione como
secretaria‐executiva ou determinando que o órgão público de vinculação do
conselho (ministério, secretaria de estado ou do município, gabinete do chefe do
poder executivo etc.) faça esse papel de maneira genérica, deixando a matéria
para ato regulamentador.
Espaço político de poder ‐ Mas, a autoconstrução como ʺespaço político de
poder ʺ deve ser a grande tarefa, no momento, dos conselhos dos direitos da
criança e do adolescente, dos seus conselheiros. E da sociedade civil organizada,
de maneira mais especial179. Estrategicamente, na atual conjuntura, esse é o
objetivo mais urgente e importante a ser alcançado!
Ele precisa construir urgentemente sua proatividade, sua participação
protagônica nas discussões e nas deliberações a respeito do atendimento dos
direitos de crianças e adolescentes: real e efetivo ʺespaço político de poderʺ. E não,
apenas fortalecedor e legitimador de outras instâncias públicas. Precisa ter luz e
brilho próprio!
179
Mais interessa conjunturalmente à sociedade civil, esse fortalecimento dos Conselhos, pois se tratam
eles de espaços e mecanismos de participação direta da população na gestão dos negócios públicos, na vida
do Estado.
106
E tal ʺpoder políticoʺ, ele adquire, quando se abre para a sociedade,
ouvindo‐a e possibilitando a sua participação, a explicitação dos conflitos de
interesses entre classes sociais, entre categorias, gerações, gêneros, orientações
sexuais, regiões, etnias, raças etc. Igualmente, tal poder ele adquire quando passa
a ser ouvido pelo governo, possibilitando a democratização real do regime
político, o respeito aos conflitos explicitados. SEDA lembra que os conselhos de
direitos são ʺexatamente onde o governante se encontra com os governados para, juntos,
conferirem se o ato de governar provoca desvios ou correção de desvios entre realidade e s
normas escolhidas pelo país para reger a infância e adolescência”.180
Estratégias! os conselhos dos direitos da criança e do adolescente precisam
assumir que é preciso se fortalecer como núcleo estratégico‐conceitual. Urge que
se torne, nesta estratégia de luta, mais “tanque‐pensanteʺ, que ʺtanque‐combatenteʺ.
Dentro dessa ótica, tais conselhos poderão exercer um rico papel na
potencialização estratégica das políticas públicas, valorizando a sua qualidade:
em termos concretos é isso que objetiva também o torna‐se ʺespaço de poder
políticoʺ. E essa “potencialização e valorização estratégica” ocorrem, quando ele
se faz ʺinstrumento de articulação e coerçãoʺ e ʺinstância de mediaçãoʺ.
Instrumentos de articulação e coerção ‐ Essa sua capacidade de ʺarticular
politicamenteʺ, de maneira ampla, os diversos atores sociais, com legitimidade
reconhecida, se torna uma importante estratégia. E a partir dessa ʺarticulação
políticaʺ efetiva, nasce‐lhe a capacidade de propor e fomentar ʺintegrações
operacionaisʺ para enfrentar determinadas situações emergentes e pontuais181.
Há que se construir, como decorrência desse processo de articulação/
integração, por meio desses conselhos principalmente, a necessária
intersetorialidade das políticas públicas, num corte transversal sobre todas elas
(institucionais, sociais e econômicas), para garantir a prioridade absoluta do
atendimento dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Além disso, o conselho dos direitos da criança e do adolescente precisa
fazer valer politicamente sua coercibilidade, isto é, a capacidade de fazer
respeitadas suas deliberações vinculantes, pelo estado. E isso não é apenas uma
questão técnico‐jurídica, é uma questão político‐institucional, a ser construída
dentro daquela correlação de forças e na conjuntura atual.
A terceira estratégia para se construir um conselho dos direitos da criança
e do adolescente, como ʺespaço político de poderʺ, é sua transformação em ʺinstância
de mediaçãoʺ, como se verá adiante. Essa, a mais importante das três.
180
"(SEDA, Edson. 1993: "Construir o Passado ou Como Mudar Hábitos, Usos e Costumes, tendo
Instrumento o Estatuto da Criança e do Adolescente". São Paulo. Ed. Malheiros)
181
DE ROUSSAN, Yves T. 1994: "Entidades de defesa de direitos: articulações e integrações". Salvador.
Unicef (mimeog.)
107
A esse respeito, leia‐se atrás o que se disse a respeito, quando se
analisavam os conselhos tutelares – perfeitamente aplicável aos conselhos dos
direitos, também.
Assim, da mesma maneira que os conselhos tutelares, os conselhos dos
direitos da criança e do adolescente podem perfeitamente se construir
politicamente como tais ʺinstâncias de mediaçãoʺ, pluralistas e hegemonizadoras,
em favor dos interesses priorizáveis da infância e da adolescência. Mas, só
teremos um conselho dos direitos da criança e do adolescente, com capacidade
real de ʺmediatizarʺ nesses moldes, se esses colegiados incorporarem, em
princípio, uma sociedade civil forte, organizada/mobilizada, política e
tecnicamente qualificada, realmente participativa. E nesse jogo, os fóruns, frentes
e demais instâncias não institucionais da sociedade têm um rico papel a exercer,
verdadeiramente de ʺdireção culturalʺ, de formação de quadros para as diversas
organizações sociais, fortalecendo principalmente aquelas que têm
compromissos reais com as lutas emancipatórias.
Para que seja possível essa ʺmediatizaçãoʺ apontada, a sociedade civil (na
vigente conjuntura, tentando modificar a correlação de forças estabelecida)
deverá :
9 fazer crescer seus níveis de organização/organicidade e de
mobilização;
9 qualificar suas demandas e
9 assumir politicamente os interesses da população infanto‐
adolescente, para fazê‐los valer como direitos (indisponíveis e exigíveis) e como
dever do Estado.
Além do mais, isso só acontecerá igualmente182, se esses colegiados
incorporarem, de outra parte, uma participação governamental preocupada em
construir um real estado democrático de direito, através da participação da
sociedade.
Para que seja possível essa ʺmediatizaçãoʺ apontada, da mesma forma, o
governo (na vigente conjuntura, tentando ser sensível a essa modificação na
correlação de forças estabelecida, em favor dos interesses dos mais necessitados)
deverá:
9 fazer crescer seus níveis eficiência, eficácia e efetividade político‐
administrativa;
9 qualificar e atender as demandas da sociedade e
9 incorporar politicamente os interesses da população infanto‐
adolescente, para fazê‐los valer como direitos e como dever seu.
182
Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente como "instâncias de mediação"
108
Um conselho de direitos da criança e do adolescente não é um fim em si
mesmo. Ele existe para :
9 satisfazer as necessidades básicas (saúde, educação, segurança
alimentar, assistência social etc.) da infância, atendendo‐as como direitos
fundamentais (sobrevivência, desenvolvimento e proteção);
9 elevar os índices de desenvolvimento humano de uma sociedade,
da população do estado e mais especificamente do seu segmento infanto‐
adolescente;
9 fortalecer o processo de fortalecimento da democracia, através
principalmente da descentralização político‐administrativa e da participação da
população.
Tendo esse quadro como pano‐de‐fundo, os conselhos dessa natureza
deverão exercitar, em concreto, suas funções políticas.
SEÇÃO 2
A FUNÇÃO DE POTENCIALIZAÇÃO ESTRATÉGICA DO SISTEMA
DE ATENDIMENTO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE E DE VALORIZAÇÃO DA QUALIDADE DO
DESENVOLVIMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Uma questão preliminar: a complementação das normas do Estatuto, no
que diz respeito às atribuições dos conselhos dos direitos da criança e do
adolescente183 ‐ Os conselhos dos direitos da criança e do adolescente, nos
termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, como se verá nos capítulos
próximos, têm como atribuições legais mínimas (artigo 88 ‐ Estatuto da Criança e
do Adolescente):
controlar as ações governamentais e não governamentais e
formular a ʺpolítica de atendimento dos direitos da criança e do
adolescenteʺ (artigo 86 – idem).
Todavia, tanto a lei federal que criou o CONANDA, quanto as leis
estaduais e municipais que criaram seus conselhos dos direitos da criança e do
adolescente instituem novas atribuições complementares ou explicitadoras, de
relação às atribuições mínimas estabelecidas exemplificativamente (não,
taxativamente) no Estatuto.
E poderiam fazê‐lo, uma vez que a Constituição federal estabelece que a
competência para legislar sobre ʺproteção da criança e do adolescenteʺ é da União e
183
Ver Capítulo 1 neste texto: a matéria foi tratada ali de maneira genérica
109
dos estado, concorrentemente; competindo á União apenas a expedição de
normas gerais.
Além do mais, por respeito ao princípio federativo, compete á União,
aos estados e aos municípios, respectivamente, legislarem autonomamente sobre
sua organização administrativa e à União e aos estados sobre sua organização
administrativa, judiciária e público‐ministerial.
Ora, realmente o conselho dos direitos da criança e do adolescente é um
dos órgãos responsáveis pela proteção integral, integrando o ʺsistema de garantia
dos direitos da infância e da adolescênciaʺ: matéria da legislação de proteção da
criança e do adolescente184.
E, ao mesmo tempo, um órgão público vinculado à administração pública,
federal, estadual e municipal: matéria da legislação administrativa.
Assim sendo a regulação da sua estruturação, organização e
funcionamento deverá ser através das leis respectivas, que inclusive poderá
estabelecer novas atribuições que não colidam com a missão institucional dos
conselhos, invadindo áreas de atribuições e competências de outros órgãos
públicos estabelecidas em lei próprias.
Dentro dessa linha, por exemplo, a lei federal 8.242, de 12 de outubro de
1991, amplia aquelas atribuições enumeradas no Estatuto, de relação ao Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ‐ CONANDA. O artigo 2°
dessa lei citada estabelece no seu inciso III que compete a esse colegiado federal
“dar apoio aos conselhos estaduais e municipais dos direitos da criança e do adolescente,
aos órgãos estaduais, municipais e entidades não governamentais para tornar efetivos os
princípios, diretrizes e os direitos estabelecidos na lei 8.6069, de 13 de julho de 1990ʺ .
No inciso VIII do mesmo artigo fala da competência para ʺapoiar a promoção de
campanhasʺ etc.
Igualmente, quando se trata, por exemplo, do Conselho Estadual dos
Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará ‐ CEDCA/CEARÁ, a lei estadual
11.889, de 20 de dezembro de 1991, cria novas atribuições para esse colegiado,
como a do inciso IX do artigo 2: ʺrealizar anualmente audiência pública para fins de
prestação de contas das atividades desenvolvidaʺ .
Essas citações exemplificativas, indicam que o Estatuto não esgota a
legislação de proteção á criança e ao adolescente, nem a legislação de
organização administrativa e judiciária da União, dos estados e dos municípios:
ele só podia dispor sobre normas gerais de proteção à infância e de organização
administrativa e judiciária. Fora disso, estaria invadindo a competência das
demais esferas se dispusesse sobre normas específicas. Só as leis estaduais e
184
Atentar para o fato de que a Constituição fala em "legislar sobre proteção da criança e do adolescente
(...)" e não "legislar sobre Direito do Menor" ou "Direito da Criança" etc.
110
municipais, 185, podem dispor sobre essas normas específicas, complementando o
Estatuto.
Algumas vezes, sente‐se ou uma ʺsacralizaçãoʺ ou uma “demonizaçãoʺ das
normas do Estatuto, por parte de alguns aplicadores do mesmo. Nem tanto ao
ar.. nem tanto ao mar...!
Politicamente, há que se lutar pela efetivação do Estatuto multicitado e da
Convenção sobre os Direitos da Criança, por consagrarem ambos os princípios
da doutrina da proteção integral. Mas, juridicamente, temos que aplicá‐lo,
levando em conta certas limitações suas, decorrentes do fato dele integrar a
ordem jurídica nacional, como uma lei ordinária federal que estabelece normas
gerais concorrentes e comuns, no tocante à legislação de proteção à criança e ao
adolescente e à legislação administrativa.
As atribuições complementares estratégicas: a potencialização de
políticas, com valorização de sua qualidade ‐ As leis estaduais e municipais de
criação dos conselhos dos direitos, em suas esferas respectivas, podem (e
devem!) atribuir aos colegiados de suas esferas, certas funções que chamaríamos
de:
9 potencialização estratégica do desenvolvimento de políticas públicas em favor da
infância e da adolescência e
9 valorização da qualidade das ações dessas políticasʺ.186
Ora, a chamada “potencialização e valorização estratégica” implica em se
construir e desenvolver estratégias políticas consagradas: mobilização social,
defesa política de interesses (advocacy), apoio institucional, ʺempoderamento do
usuárioʺ (empowerment), monitoramento e avaliação, articulação / integração,
parceria, construção de competências etc. etc.
Assim sendo, importante que essas leis estaduais, que estabelecem normas
especiais complementares das normas gerais do Estatuto, criem atribuições para
os conselhos dos direitos que contemplem essas linhas estratégicas, fazendo‐os,
não só (a) controladores de ações (como exclusivamente determina o Estatuto) e
(b) formuladores de políticas, mas também potencializadores estratégicos de
políticas (na forma que as leis estaduais e municipais dispuserem), valorizando a
qualificação dessas políticas.
185
Com base constitucional diversa
186
PONTES JR., Felício classificou em 3 categorias as atribuições dos Conselhos de Direitos:
"conscientizadoras, modificativas e administrativas" (in "Conselhos de Direitos da Criança e do
Adolescente"/ SP – 1993). Reconhece pois o autor que o Estatuto nesse ponto é meramente
exemplificativo, fixando um standard mínimo. As "atribuições potencialidadoras" que aqui se fala muito se
aproximam em alguns pontos das chamadas, por aquele autor, "atribuições conscientizadoras"
111
Características da potencialização estratégica ‐ Potencializar
estrategicamente uma ação pública, um programa/serviço, uma política pública,
não significa desenvolver (formular, coordenar, executar, controlar) essa ação,
essa política : são duas coisas distintas, mas articuladas, que quando confundidas
levam a maus resultados. Nessa linha da potencialização estratégica de políticas
e de valorização da sua qualidade, a intervenção dos conselhos dos direitos da
criança e do adolescente aparece como uma intervenção pontual, episódica,
conjuntural. E não uma intervenção sistemática, contínua e permanente, que
ocorre em decorrência do desenvolvimento de uma política em si, isto é, como
atividade da execução da própria política187.
Como potencializador estratégico, o conselho atua para deflagrar um
processo de reordenamento normativo, de reordenamento institucional e de
melhoria da atenção direta à criança e ao adolescente, de outras instâncias
públicas. Ele se torna um elemento catalisador externo: start‐line.
Articulações e integrações: parcerias ‐ Os conselhos dos direitos da
criança e do adolescente têm uma função política primordial como
potencializador estratégicos das políticas de estado: a construção de parcerias, em
nível amplo da articulação ou em nível pontual das integrações operacionais.
Típicos dessa linha são os pactos e as agendas‐mínimas, construídos a partir do
trabalho de articulação/integração dos conselhos dos direitos da criança e do
adolescente, junto aos órgãos governamentais, aos órgãos legislativos, judiciários
e público‐ministeriais, às entidades sociais, aos partidos políticos, às igrejas (suas
pastorais e ministérios), ao meio empresarial e sindical etc. Principalmente,
pactos e agendas temáticos: trabalho infantil, violências estrutural/social e
institucional, abusos sexuais, conflito com a lei, situação de marginalização na
rua, diversidade/tolerância, desenvolvimento infantil necessidades especiais,
aleitamento materno, qualidade da educação, protagonismo adolescente‐juvenil
etc. etc.
Valiosíssimos instrumentos de articulação são também as ʺconferências dos
direitos da criança e do adolescenteʺ, quando se cria espaço e momento para que um
número amplo de atores governamentais e não governamentais participe, se
articule amplamente: independentemente se do executivo, legislativo ou
judiciário, se da União, da unidade federada ou do município, se governamental
ou não governamental, se da área específica da ʺpolítica de atendimento dos direitos
da criança e do adolescenteʺ (Estatuto cit.) ou não.
187
O apoio institucional dentro do Sistema Unificado de Saúde – SUS é algo na sua própria essência, uma
forma de desenvolver a Política de Saúde Pública, no país, de maneira sistemática, contínua e permanente,
através órgãos próprios e competentes para tanto.
112
As conferências são o grande espaço para a construção de diagnósticos e
de cenários, os mais legítimos possíveis, da realidade do atendimento dos
direitos da criança e do adolescente, em qualquer área. são elas o rico espaço
para que daí surjam indicativos para o trabalho de normatização/formulação e de
controle de políticas públicas pelos conselhos dos direitos. se não tem essas
conferências poder deliberativo legal, como os conselhos estatais, têm elas esse
poder de potencializador estratégico, do qual aqui se fala.
Os conselhos dos direitos da criança e do adolescente precisam construir
seu protagonismo nesse campo da pactuação social, evitando que seja colocado
de lado no processo, como mais um ator secundário: a proatividade deve ser
dele.
Outro ponto onde podem eles exercitar esse seu papel potencializador
estratégico: no trabalho preliminar de negociação (articulação), com os atores
sociais responsáveis e potenciais, para possibilitar a posterior institucionalização
de ʺcentros integrados de atendimento inicialʺ. Por exemplo, espaços públicos
institucionais, para atendimento inicial do adolescente ao qual se atribui a prática
de ato infracional188, para atendimento das situações emergenciais de
vulnerabilidade e/ou desvantagem social (abandono, desaparecimento etc.)189 .
As possibilidades de desenvolvimento de ações estratégico‐
potencializadoras e valorizadoras da qualidade de políticas públicas, nessa linha
da construção de parcerias, são vastíssima. mas, dependendo elas de uma
ʺdefinição de estratégiasʺ, a análise da situação do município ou do estado, é que
melhor indicará os pontos nevrálgicos a serem enfrentados.
Mobilização social: imaginário e processo ‐ Mobilizar é “convocar
vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um
sentido também compartilhadosʺ190. Garantir prioritariamente que se nutra, se
atenda à saúde, se eduque e se proteja da violência, o público infanto‐adolescente
– esse o ʺpropósito comumʺ, a bandeira convocatória, agenda‐mínima pactuável
e mobilizadora.
A satisfação das necessidades básicas de crianças e adolescentes e de suas
famílias, enquanto direitos seus como cidadãos e como dever do estado, através
da promoção desses direitos por um conjunto articulado de ações públicas
(desenvolvimento de políticas públicas) e através da defesa desses direitos
188
Integração essa exemplificativamente enumerada no Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu artigo
88, V
189
Os serviços públicos chamados "SOS CRIANÇA", a serem criados por leis estaduais e municipais
190
TORO, J. Bernardo. 1997: "Mobilização Social – um modo de construir a democracia e a participação"
/ Brasília. Ed. Ministério da Justiça / SEDH.
113
(administração de justiça) – ʺa interpretação e o sentidoʺ, a serem compartilhados
por todo o povo brasileiro.
A elaboração dos ante‐projetos e do projeto de lei, referentes ao Estatuto
da Criança e do Adolescente e seu processo de elaboração legislativa no
Congresso Nacional são exemplos ricos do sucesso desse processo de
mobilização social, a serviço dessa causa, desse propósito, desse sentido191
Mas, como se estruturar e planejar um processo convocatório‐
mobilizatório desse tipo, construindo esse ʺpropósito comumʺ e fazendo
compartilhada tal ʺinterpretação e sentidoʺ? E que papel poderia desempenhar um
conselho dos direitos da criança e do adolescente nesse processo?
A formulação de um imaginário ‐ Os conselhos dos direitos da criança e
do adolescente, no desempenho desse seu papel político‐institucional192, precisa
fomentar a formulação de um imaginário convocante, no seio da opinião
pública, a respeito do ʺatendimento dos direitos das crianças e dos adolescentesʺ: uma
utopia histórica, verossímil e alcançável, que sintetize os grandes objetivos/metas
que se quer alcançar e os seus processos. Nesse ponto, não se deve ser apenas
racional, mas igualmente ser capaz de despertar a paixão: ‐ ʺA razão controla, a
paixão moveʺ193. Aliás, uma frase clássica melhor define tudo isso: ‐ ʺQuando um
sonha, é apenas um sonho, mas quando dois ou mais sonham, é começo de realidadeʺ.
Reconhecido que nos encontramos num processo de transição
paradigmática, como se está nesse campo da infância, passando‐se do modelo de
estado e direito ʺreguladorʺ, para um modelo ʺemancipatórioʺ194 – importa
provocar a ʺreconstruçãoʺ do imaginário da sociedade, para que abandonemos o
paradigma da tutela protetiva assistencialista/repressora do ʺmenor em situação
irregularʺ e assumamos como nosso (racional e passionalmente) o paradigma da
proteção integral e da garantia dos direitos da criança e do adolescente, enquanto
sujeitos de direitos e pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. É dentro
dessa ótica que se justifica por exemplo o aparente purismo em combater o uso
pela mídia principalmente da expressão ʺmenorʺ, pelo que de emblematicamente
negativo e perverso representa – é mais que uma questão meramente semântica!
é uma questão estratégica!
191
GOMES DA COSTA, Antônio Carlos. 1990: "De Menor a Cidadão" . Brasília. Ed. Fundação CBIA
192
Inclusive tem previsão legal: ex vi, artigo 88, VI do Estatuto citado.
193
TORO, J. Bernardo – op.cit.
194
SOUZA SANTOS, Boaventura de. 2000: "A crítica da razão indolente" . São Paulo Cortez Editora..
114
Por exemplo, nos seus inícios, o CONANDA sinteticamente propôs, como
slogan mobilizador: ʺLugar de criança é na escola e na famíliaʺ. E recentemente,
definiu como nova bandeira: ʺViolência é covardia; as marcas ficam na sociedadeʺ 195.
Os slogans são elementos comunicativos essenciais nesse processo de
mobilização social, mas não esgotam o processo de re‐elaboração e
compartilhamento do imaginário, que é mais complexo, pois deve levar a
opinião pública a se questionar também: ‐ ʺEm que medida o que estou fazendo
contribui para alcançar esse objetivo, para provocar essa transição paradigmática? O que
mais posso fazer ?ʺ
Atores de um processo de mobilização social: produtor social, reeditor
social e editor ‐ Nesse processo de formulação de um ʺimaginário convocanteʺ, na
mobilização social, atuam Produtores Sociais, Reeditores e Editores. O processo
depende do bom desempenho deles, cada qual exercendo bem e articuladamente
seus papéis próprios.
Entende‐se por ʺProdutor Socialʺ, num processo de mobilização social, a
instituição que tem a capacidade de criar condições econômicas, institucionais,
técnicas e profissionais para que esse processo ocorra. O ʺProdutor Socialʺ é
responsável por viabilizar o movimento, por conduzir as negociações que vão lhe
dar legitimidade social e política. É essencial que ele seja visto não como dono do
processo (da campanha, da publicação, do evento), mas como precursor e antena,
que reflete ele próprio uma preocupação e um desejo compartilhado por muitos.
Já o ʺReeditor Socialʺ é aquela instituição que, por seu papel social ou
atribuição legal, tem a capacidade de readequar a mensagem, segundo
circunstâncias e propósitos, com credibilidade e legitimidade. É uma instituição
que ʺtem público próprioʺ, que é reconhecida socialmente, que tem a capacidade
de negar, transformar, introduzir e criar sentidos novos, provocar transições
paradgmáticas. Por exemplo, a escola é uma ʺReeditoraʺ ativa e nata. Uma igreja,
uma associação comunitária, uma ong, determinadas empresas, um sindicato o
são, pela mesma razão. O ʺReeditor Socialʺ não é um multiplicador como nas
táticas/técnicas de “construção de competências” (estratégia de ʺapoio institucionalʺ a
ser analisada em seguida): ele amplia e interpreta o conteúdo que recebeu, o
transforma, adequando‐o ao seu público. Não se trata de repassar
conhecimentos, conteúdos, conceitos, habilidades, como na
capacitação/treinamento.
Por fim, o ʺEditorʺ, na mobilização social, é o profissional que faz com que
as mensagens se convertam em formas, objetos, símbolos, signos adequados ao
campo de atuação do ʺReeditor Socialʺ e adequados ao pensamento primal do
195
IV Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes / Brasília - 2001
115
ʺProdutor Socialʺ, para aqueles dois atores mobilizadores possam usá‐los,
codificá‐los, decodificá‐los segundo sua própria percepção.
Assim sendo, parece óbvio que quando se trata de potencialização
estratégica de políticas públicas (não desenvolvimento de políticas públicas),via
mobilização social, aos conselhos dos direitos da criança e do adolescente se deve
reservar o papel de ʺProdutor Socialʺ.
Como ʺReeditores Sociaisʺ deverão atuar os órgãos governamentais e não
governamentais, que tem legitimidade e competência naquele campo em que se
vai trabalhar.
E como ʺEditoresʺ, determinadas agências de publicidade, empresas
jornalísticas, editoras, gráficas, companhias teatrais etc. etc.
Figure‐se a seguinte hipótese: um determinado conselho dos direitos da
criança e do adolescente, estabelecendo em suas ʺDiretrizes Gerais para uma
Política de Atendimento Integral aos Direitos de Crianças e Adolescentesʺ
(normatização/formulação de políticas)196 que o ʺenfrentamento da violência sexual
contra crianças e adolescentesʺ é uma questão prioritária, decide ʺpotencializar
estrategicamente e valorizar a qualidade das ações públicasʺ que interagem nesse
campo.
E dentro dessa potencialização/valorização ele se define (dentre outras
estratégias) pela mobilização social , em favor da garantia dos direitos a uma
afetividade e sexualidade sadia de todas as crianças e adolescentes, protegendo
(prevenindo e atendendo) aqueles que sofreram abusos sexuais (violências,
explorações, assédios, discriminações etc.) e responsabilizando os violadores. E
para tanto, numa linha de prevenção, indica, apoia, assina uma campanha nesse
sentido de valorização do exercício do direito e de combate ao abuso do direito. E
o faz em parceria por exemplo com outros ʺProdutores Sociaisʺ típicos, como
UNICEF, POMMAR/USAID, Ministério da Justiça, CONANDA etc.
Essa campanha terá como ʺReeditoresʺ aquelas entidades públicas com
reconhecida competência técnica e legitimidade social, nesse campo da
sexualidade infanto‐adolescente: ANCED / CEDECAs, Pastoral do Menor,
Ordem dos Advogados do Brasil, Sociedade Brasileira de Pediatria, ABMP,
Poder Judiciário, Parlamentos (especialmente suas Comissões de Direitos
Humanos), Ministério Público, Ouvidoria Geral, Secretarias de Ação Social
(Assistência Social), de Educação, de Cultura, de Saúde, Segurança Pública,
Núcleos de Estudo e Pesquisa vinculados (ou não) a Universidades etc. etc.
Os ʺProdutores Sociaisʺ e ʺReeditoresʺ aqui citados, neste caso emblemático,
por sua vez, em conjunto, escolherão os profissionais que atuarão como
ʺEditoresʺ: a agência de publicidade que concretizará a campanha referida.
196
Ver Capítulo 3, seguinte: "Papel normatizador dos Conselhos"
116
O importante que não se misturem os papéis: que não se peça à bananeira
que dê uvas! E isso vale para eventos mobilizadores (encontros, conferências,
atos públicos etc.), publicações etc. etc.
Apoio institucional: formação de recursos humanos (formação,
capacitação / treinamento etc.), por exemplo ‐ O apoio institucional a órgãos
governamentais e não governamentais, na administração pública em geral, se
explicita ordinariamente (tanto como genericamente potencialização estratégica
de um serviço ou programa e de uma política, programa e serviço, quanto como
restritamente desenvolvimento dessa política, programa e serviço) nas formas
seguintes, exemplificativamente:
9 formação de recursos humanos;
9 instalação e equipamentação; e
9 fornecimento de material.
Esta questão da ação estratégica de apoio institucional, da parte dos
conselhos dos direitos da criança e do adolescente, beneficiando organizações
governamentais e não governamentais, nos remete a uma outra discussão de
fundo, que a precede, já tratada sucintamente atrás197 neste texto: os conselhos
dessa natureza não devem coordenar e executar ações públicas: isto é, não devem
ser os executores diretos de serviços/atividades e programas/projetos públicos.
Muitas das táticas, técnicas e procedimentos da estratégia de apoio
institucional correm o risco de induzir esses colegiados a irem até o ato de
execução direta de ações públicas, ultrapassando suas limitações legais e político‐
institucionais198. Assim sendo, o apoio institucional a organismos públicos
governamentais e não governamentais, a ser garantido pelos conselhos, deverá
ser na ótica da potencialização estratégica de políticas públicas e não do
desenvolvimento/execução de políticas públicas.
Formação de recursos humanos ‐ Por exemplo, a ʺformação de recursos
humanosʺ (no quadro maior do ʺdesenvolvimento de recursos humanosʺ), como uma
das formas mais usuais de “apoio institucional”, deve ter suas atividades
permanentes e seus projetos transitórios coordenados/executados por órgãos
governamentais e não governamentais próprios: universidades, centros/núcleos
de estudo e pesquisa, escolas corporativas de formação199, ong.s com esse perfil
197
Ver atrás, neste mesmo texto, Capítulo 1 : item 1.1.2. "Órgão do Poder Executivo"
198
Ver atrás, neste mesmo texto, Capítulo 1 ("ESSÊNCIA (...)"), especialmente os itens 1.1.2. ("Órgão
especial do Poder Executivo") e 1.4.1. ("Visões da Democracia e do Estado") e 1.4.2. ( "Papéis político-
institucionais de seus órgãos")
199
Por exemplo: Escola Superior da Magistratura, Academia de Polícia, Escola Superior de Administração
Fazendária etc.
117
etc. Os conselhos não se equiparam a esses citados: não deveriam desenvolver
atividades dessa natureza, em nível de coordenação e de execução.
Em resumo: os conselhos dos direitos da criança e do adolescente são os
mentores, os alavancadores, os mantenedores (quando se tratar de
financiamentos pelos fundos para os direitos da infância e adolescência).
Eles podem definir a direção de projetos de capacitação/treinamento ou de
reciclagem, aperfeiçoamento e especialização, que um órgão público
governamental ou não governamental lhe apresente, como executor. mas não
deveria desenvolvê‐lo diretamente200,como muitas vezes acontece, deformando a
natureza jurídica e o papel político‐institucional desses conselhos.
SEÇÃO 3
A FUNÇÃO CONTROLADORA DAS
AÇÕES PÚBLICAS
GOVERNAMENTAIS E NÃO GOVERNAMENTAIS
Acompanhamento / monitoramento & avaliação – Aqui está o coração
dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente: sua função controladora,
isto é, seu papel de monitoramento das ações públicas em favor da promoção
dos direitos humanos da infância e da adolescência.
Os conceitos de monitoramento & avaliação são bastante difundidos na
terminologia empregada na execução de projetos, especificamente. E de maneira
mais ampla, no desenvolvimento de políticas públicas. Eles significam que dada
ʺsituaçãoʺ é observada (monitoramento) para que posteriormente ou
simultaneamente no processo, possa ser efetuada uma apreciação detalhada e
uma validação dos dados obtidos (avaliação).
O monitoramento compreende a observação e documentação sistemática
da implementação de uma política, de um programa/serviço, de um
projeto/atividade, com base no planejamento.
A avaliação compreende a avaliação interna das informações e dos dados
colhidos na monitoria, considerando sua conformidade com os objetivos e
atividades planejados.
Essa apreciação acerca da adequação dos instrumentos e dos meios de
execução e da factibilidade de alcance dos objetivos é a base para a tomada de
decisão política no gerenciamento do projeto, no aperfeiçoamento do programa –
na potencialização estratégica e na valorização da qualidade das do
desenvolvimento políticas públicas.
200
Mas sim, apoiando, como fazem por exemplo, UNESCO, OIT, UNESCO, USAID/Partners (Programa
POMMAR), PNUD, BID, Save the Children Fund, Terre des Hommes etc. etc.
118
Assim sendo, monitoramento & avaliação podem ser vistas como
instrumentos de apoio ao processo contínuo de controle das ações públicas a ser
desempenhado
O registro de entidades e de programas ‐ Compete aos conselhos
municipais dos direitos, exclusivamente (a) proceder o registro de certas
entidades públicas e (b) proceder além do mais o registro da inscrição de
determinados programas públicos. Não se trata de mero registro cartorário,
formalista. E sim de um procedimento de controle.
De um lado, aos conselhos municipais dos direitos compete o trabalho de
acompanhar, avaliar e autorizar o funcionamento de entidades públicas não
governamentais que desenvolvam programas socioeducativos e de proteção
social, elencados no artigo 90 do Estatuto da Criança e do Adolescente: a
existência jurídica da entidade não depende dessa decisão do Conselho, mas o
reconhecimento dela como executora especificamente da política de atendimento
de direitos fundamentais da criança e do adolescente, sim. Já os órgãos públicos
governamentais, para sua instituição, dependem de lei autorizativa – decisão
adotada em nível de normatização superior ao do Conselho.
Por sua, de outro lado, aos conselhos municipais dos direitos compete
igualmente o trabalho de acompanhar, avaliar e autorizar o desenvolvimento de
programas socioeducativos e protetivos, tanto por parte de instituições públicas
governamentais, como não governamentais.
Correição e o dever de representação às instâncias próprias ‐ O papel
controlador dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente não deve se
esgotar com o monitoramento (acompanhamento e avaliação). Ele deve levar
esses Conselhos a um verdadeiro papel correicional, no seu sentido mais amplo:
9 Orientar e prover de dados, informes e análises
9 Indicar ou solicitar correções no desenvolvimento de ações
públicas;
9 Representar pela responsabilização de agentes públicos.
Constatada a ocorrência de uma violação aos direitos da criança, não
atuará o conselho dos direitos ‐ dentro no Sistema de Garantia dos Direitos da
Criança ‐ propriamente como atores sociais, na linha da Defesa de Direitos, como
fariam os conselhos tutelares, os órgãos do poder judiciário, do ministério
público e da segurança pública, os defensores públicos, as entidades de defesa201.
201
Por exemplo, os Centros de Defesa da Criança e do Adolescente ou mais genéricos de defesa de direitos
humanos.
119
Isto é, não atuariam diretamente garantindo a indisponibilidade, a
imprescindibilidade, a exigibilidade dos direitos de crianças e adolescentes,
ʺcredores de direitosʺ.
Constatada essa violação de direitos, como atividade administrativa
ainda, na linha da ʺPromoção de Direitosʺ, caberia aos conselhos dos direitos
encaminhar o caso às autoridades competentes, dando‐lhes notícias do fato
violador, que poderá, em algumas vezes, se configurar como crime ou como
infração administrativa (cf. Estatuto citado).
Muitos acusam o Estatuto de não ter ʺarmadoʺ os conselhos dos direitos
para garantir a exigibilidade de direitos da criança e do adolescente. Mas
esquece‐se que o Estatuto desenha uma verdadeira e salutar ʺrede de
incompletudes institucionaisʺ, onde um ator social complementa o outro: nos
salvando do perigo das ʺinstituições totaisʺ, que tanto mal causaram no passado.
Os conselhos dos direitos, como integram essa ʺredeʺ, têm que tomar
consciência de sua ʺincompletude institucionalʺ e, em casos desses, acionar outros
atores sociais que possam dar conta dessa tarefa. Eles precisam exercer mais essa
sua função controladora, ainda muito pouco explicitada na prática, muito pouco
explorada, lamentavelmente.
Controle dos procedimentos de escolha dos conselheiros tutelares ‐ Esta
ficou como uma atividade especial dos Conselhos Municipais dos Direitos da
Criança e do Adolescente202 de discutível definição de sua natureza jurídica e
política: organizar e presidir os procedimentos de escolha dos conselheiros
tutelares. E o faz, não tanto numa linha de gestão de meios203, mas de controle do
poder/atribuição do Poder Executivo municipal, de investir agentes públicos.
De ordinário, há certa dificuldade de se entender a natureza dessa
intervenção dos Conselhos dos Direitos, que a primeira vista parece discrepar
das suas demais atividades, dentro do espectro geral das atribuições desses
colegiados municipais.
Realmente, tem‐se reconhecido que – em função dos seus papéis jurídico‐
legal e político‐institucional, como visto atrás ‐ os conselhos dos direitos não
devem assumir nenhuma função de execução de política pública, isto é,
desenvolver atividades (através de um determinado serviço público) ou projetos
(no bojo de um programa público): isso ficou bastante claro!
202
Conferir, neste texto, no Capítulo 1, a questão da abrangência do Estatuto, como norma geral e das suas
relações com as normas especiais estaduais e municipais. E, no Capítulo 2, a análise da hipótese da
legislação estadual e municipal especificamente ampliar o campo de atribuições legais dos Conselhos dos
Direitos, respectivos
203
Exercício de atividade-meio administrativo-burocrática
120
Assim, essa sua função de organização e presidência do processo de
escolha dos conselheiros tutelares (que lhe foi atribuída posteriormente) precisa
encontrar seu nicho jurídico e político‐institucional.
E aqui se propõe que seja no campo do controle das ações públicas204, como
acima justificado – pelo menos de maneira didática, mesmo que se reconhecendo
que assim se fará de maneira bem pouco ortodoxa.
Histórico, justificativa e procedimentos – Esta matéria já foi tratada atrás
no capítulo referente aos conselhos tutelares.
SEÇÃO 4
A FUNÇÃO NORMATIZADORA DO
DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Generalidades – Para que os conselhos dos direitos da criança e do
adolescente possam exercer sua função primordial de controle (monitoramento)
das ações públicas de promoção dos direitos humanos importa que ele
previamente estabeleça certos paradigmas, certas diretrizes que sirvam como
matriz para o trabalho de monitoramento – o “contraste”. Para tanto, se torna da
máxima importância que esses conselhos normalizem, em determinado nível, a
política de promoção dos direitos humanos da infância e da adolescência e os
seus programas e serviços.
Natureza: atos administrativos regulamentares ‐ Compete em princípio
ao poder legislativo, através da lei, criar a norma jurídica ‐ normatizar, positivar
o Direito. Mas o papel normatizador do estado não se esgota com a atividade
legisferante. Existem outros níveis do poder normatizador que são exercidos,
inclusive, pelo Poder Executivo: por exemplo, o ato regulamentar.
Assim, o poder executivo não só aplica o Direito, mas o cria. Faz parte do
processo de desenvolvimento das políticas públicas, a normatização
administrativa, isto é, a formulação dessas políticas, a definição de diretrizes.
Os conselhos dos direitos da criança e do adolescente são parte nesse
processo de desenvolvimento das políticas de estado, ao normatizar o
desenvolvimento da chamada ʺpolítica de atendimento dos direitos de crianças e
adolescentesʺ 205
204
"Controle" aqui no sentido amplo, não se confundindo com "fiscalização", como se faz algumas vezes.
205
Artigo 86 – Estatuto cit.
121
O Estatuto lhe dá poder “deliberativo” e não consultivo. Seus atos têm pois
poder vinculante, como norma jurídica.
Conteúdo: diretrizes gerais para o desenvolvimento das políticas
públicas ‐ Quando o Estatuto vê os conselhos dos direitos da criança e do
adolescente como ʺdeliberativosʺ206, na verdade se refere ao seu poder de deliberar
a respeito de políticas públicas; como complementam as leis federal, estaduais e
municipais de criação desses colegiados.
E, dentro do processo de desenvolvimento das políticas de estado, quando
um órgão administrativo delibera a respeito, o faz formulando essa política,
regulando‐a, normatizando‐a administrativamente: formulação normativa de
diretrizes gerais para a garantia, com prioridade absoluta, dos direitos
fundamentais à sobrevivência, ao desenvolvimento e à proteção207 da criança e
do adolescente.
No tocante a esse poder deliberativo de formulação/normatização da
política de atendimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente208,
preliminarmente, há que se ressalvar e distinguir o seguinte: não compete aos
conselhos dos direitos o planejamento dessa política (ou de qualquer outra...),
como forma de desenvolvimento de políticas públicas, uma vez que o
planejamento já é parte da execução das políticas.
Essa sua intervenção está numa fase precedente, como ʺnormatizadorʺ: isto
é, numa linha de definição de diretrizes gerais para o planejamento,
coordenação, execução e controle.
A lei federal que criou o CONANDA estabelece que a ʺformulação de
políticaʺ é uma de suas funções básicas. E as leis estaduais e municipais que
criam, em suas esferas, os respectivos conselhos desse sistema repetem essa
orientação, melhor explicitando o Estatuto.
Normatizador/formulador de que ramo das Políticas de Estado? ‐
Todavia, a questão verdadeiramente polêmica, no tocante a esse papel específico
dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, reside na delimitação da
abrangência da intervenção normativa desse conselhos: isto é,
normatizador/formulador de que ramo das políticas de estado? de que tipos de
programas/projetos e serviços/atividades? Ou mesmo: normatizador/formulador
206
Conferir, atrás, neste texto, a respeito, no Capítulo 1, item 1.2.3. : "Natureza jurídica / Órgão público
administrativo"
207
Saúde, educação, saúde, assistência social, moradia, nutrição, trabalho etc. etc
208
Artigo 86 – Estatuto cit.
122
não só do desenvolvimento de políticas públicas, mas de outros campos da
atividade estatal (função judicante, por exemplo)?!
Ora, o Estatuto prevê, no seu artigo 86, o desenvolvimento de uma
ʺpolítica de atendimento de direitos da criança e do adolescenteʺ. Isto é, uma política de
promoção dos direitos e liberdades fundamentais da criança e do adolescente;
uma ação sistemática de proteção dos direitos humanos desse segmento social.
Assim sendo, em princípio, os conselhos referidos seriam responsáveis por essa
política nomeada.
Obviamente, não se trata aqui de nenhuma política setorial, como as
políticas sociais básicas (educação, saúde, assistência social, cultura etc.).
Mas sim de uma política intersetorial, a cortar transversalmente todas as
políticas públicas, para assegurar que a satisfação das necessidades básicas desse
segmento da população seja reconhecida e garantida como direitos
fundamentais, prioritariamente; obedecidos mais determinados princípios. Dessa
maneira, é realmente absurda a confusão que muitos ainda fazem entre essa
ʺpolítica de atendimento dos direitos da criança e do adolescenteʺ (Estatuto e conselhos
dos direitos, citados) e a ʺpolítica de assistência socialʺ.
Puro ranço da velha ʺdoutrina da situação irregularʺ, na qual se
fundamentava o revogado Código de Menores, onde o assistencialismo e a
repressão eram seus dois pilares. Só que a atual política de promoção dos direitos
se firma na doutrina agora da ʺproteção integralʺ. E enquanto isso a assistência
social constrói um novo caminho de negação do clientelismo, do primeiro‐
damismo, do assistencialismo. Novos paradigmas para ambas.
Alguns querem reduzir simplesmente o Estatuto e os conselhos dos
direitos da criança e do adolescente a meras ʺespecializaçõesʺ da Lei Orgânica da
Assistência e dos conselhos de assistência social. Como se os primeiros tratassem
apenas de um setor da assistência social: o das crianças e adolescentes
vulnerabilizados ou em situação de risco pessoal e social. Enquanto os conselhos
de assistência social seriam mais genéricos, mais abrangentes. Ora, o Estatuto da
Criança e do Adolescente não permite tal visão corporativa, reducionista e
equivocada da abrangência de ação dos conselhos dos direitos. Na verdade, não
se trata de um ter prevalência sobre o outro ou concorrer com o outro. E sim
realmente de abrangência.
Os conselhos intersetoriais (como os dos direitos da criança, o da mulher,
o da condição negra, o dos portadores de deficiência etc.) têm uma abrangência
bem maior que qualquer dos conselhos setoriais (saúde, educação, assistência
social) : existem em função de todas as crianças e todos os adolescentes, sem
cortes. Mas, não uma importância maior, pois suas funções são bastante
díspares, sem confusão, superposição e concorrência.
123
Programas de proteção a crianças e adolescentes que dela necessitem
(vulnerabilizados, por exemplo) existem em qualquer das políticas sociais e das
políticas institucionais209 – inclusive e principalmente no campo da política de
assistência social. Mas, programas e atividades não se confundem com políticas,
no seu sentido amplo e puro – e sim as integram como partes.
Desse modo, por exemplo, toda forma de exploração laboral da criança e
do adolescente 210 deverá se prevenida, erradicada, proibida e eliminada, através
de serviços/atividades e programas/projetos de proteção, articulada e
integradamente, umbicados nas políticas de saúde, de educação, de assistência
social, de defesa da cidadania211, de segurança pública, de agricultura, das
relações exteriores etc. A erradicação do trabalho infantil no Brasil não é uma
questão puramente de assistência social. Mas, o é também...
Essa concepção mais ampla, intersetorial, transversal e universalista do
Estatuto da Criança e do Adolescente e dos seus conselhos dos direitos tem
raízes históricas: quando da criação originariamente do CONANDA ele foi
vinculado ao Gabinete da Casa Civil da Presidência da República, nessa linha de
articulação. Posteriormente, foi vinculado por pouco tempo ao Ministério do
Bem Estar Social, por força da vinculação a esse ministério de estado da extinta
Fundação CBIA212. E quando esse ministério passou a assumir especificamente
apenas duas políticas da seguridade social (previdência e assistência social),
extinguindo‐se inclusive a Fundação CBIA ‐ foi ele transferido para o Ministério
da Justiça, enquanto espaço público federal, responsável pelas políticas
institucionais de defesa da cidadania 213.
Nos estados e municípios, essa vinculação administrativa dos conselhos
dos direitos da criança e do adolescente reflete o modo como, ali, concretamente,
todas essas políticas públicas se institucionalizam, se estruturam, se organizam:
os conselhos dos direitos estão ora em secretarias de justiça e cidadania ( ou
direitos humanos), ora em secretarias de segurança pública, ora em secretarias de
desenvolvimento ou ação social, ora nos gabinetes dos chefes do poder executivo
etc. etc. A conjuntura local dirá qual a melhor vinculação administrativa,
levando‐se em conta uma série imensa de variáveis: de qualquer maneira, a
melhor solução está na vinculação a um ministério, secretaria estadual ou
municipal ou outro órgão público que tenha maior abertura para as políticas
209
Saúde, Educação, Assistência Social, Habitação, Trabalho, Cultura, Previdência Social, Defesa da
Cidadania, Relações Exteriores, Segurança Pública etc.
210
Trabalho precoce, prostituição, narcotráfico, trabalho perigoso, insalubre e penoso, trabalho escravo etc.
211
Idem Nota 34
212
Responsável por um gigantesco trabalho de efetivação do novo Estatuto em todo o país.
213
Crianças, negros, mulheres, índios, minorias eróticas, portadores de necessidades especiais etc.
124
inter‐sectoriais, que tenha maior capacidade de articulação interinstitucional e
que tenha realmente força política.
O que interessa ‐ no caso da definição do campo de ação dos conselhos
dos direitos da criança e do adolescente, como normatizador/formulador de
política ‐ é que não se confunda esse campo com nenhum outro e se reconheça a
especificidade desses conselhos intersetoriais, no formular normativamente
diretrizes gerais para a garantia, com prioridade absoluta, dos direitos
fundamentais à “sobrevivência, ao desenvolvimento e à proteção especial” 214 da
criança e do adolescente.
Normatizador/formulador para além das Políticas de Estado? ‐ Fora
desse campo do desenvolvimento de políticas públicas, surgem algumas dúvidas
sobre a possibilidade dos conselhos dos direitos formularem/normatizarem a
prestação jurisdicional (ʺadministração de justiça à populaçãoʺ) e a organização e
funcionamento do poder judiciário ou o exercício da função de custos‐legis e a
organização e funcionamento do ministério público. há possibilidades desses
conselhos formularem/normatizarem outras atividades estatais fora do âmbito
da administração pública? isto é, possibilidade de estabelecerem regras,
diretrizes para o funcionamento do poder judiciário e do ministério público, por
exemplo !?
A tese, de início, encontra resistência nos princípios constitucionais,
especialmente, na regra maior da separação dos Poderes, da harmonia e
independência dos Poderes. Realmente, os conselhos de direitos não podem
estabelecer nenhuma diretriz que obrigue, de alguma forma, os órgãos dessas
citadas Instituições soberanas do estado.
Por exemplo, tais conselhos deliberativos podem estabelecer diretrizes
para regular administrativamente a execução por parte da administração pública,
de medidas socioeducativas aplicadas a adolescentes autores de ato infracional215.
Mas, não podem estabelecer nenhuma norma reguladora do procedimento
processual de aplicação essas medidas pelos juizes da infância e da juventude
(poder judiciário) ‐ pena de mera negativa de vigência dessa norma pela
Instituição ʺinvadidaʺ, como ato inexistente.
Por exemplo, seria estranho ao modo de ser, constitucional e legal, dos
órgãos judiciais e público‐ministeriais, que se tentasse ‐ por essa via ‐ definir uma
pretensa melhor interpretação para um determinado dispositivo do Estatuto,
para efeito de sentença, despacho ou parecer.
214
Cúpula Mundial pela Infância. 1990: "Declaração e Plano de Ação Mundial". Nova York. ONU
215
O CONANDA, com propriedade, isso fez com suas Resoluções 48, 49 e 50, estabelecendo critérios
mínimos para o funcionamento de unidades de internação e de semiliberdade.
125
Como seria também estranhável uma norma administrativa emanada de
conselhos tais, que pretendesse mais a ʺuniformização de condutas de magistradosʺ,
ou a aplicação judicial de medidas socioeducativas a adolescentes infratores, ou a
regulação do funcionamento das comissões estaduais judiciais de adoção, ou a
regionalização e a especialização de órgãos judiciais e de representações do
ministério público etc. São matérias a serem enfrentadas ou por atos
administrativos regulamentares dessas próprias Instituições ou por leis estaduais
(organização judiciária e público‐ministerial) e federais (direito processual,
direito civil, organização judiciária e público‐ministerial etc.).
Aos órgãos normativos e correicionais, internos, próprios e competentes
do poder judiciário e do ministério público (conselhos superiores, corregedorias
gerais, presidências de tribunais, procuradorias gerais – p.ex.), é que compete
cumprir seu trabalho de estabelecer diretrizes programáticas, de regulamentar o
exercício das funções jurisdicionais e público‐ministeriais, no âmbito de suas
instituições216 ‐ de ofício ou por provocação dos conselhos dos direitos, quando
for o caso217.
Mutatis mutandi, igualmente contrárias à lei – pelas mesmas razões – são
as invasões de atribuições dos juizes da infância e da juventude e dos promotores
de justiça correspondentes, quando resolvem formular/normatizar o
desenvolvimento de políticas públicas, através portarias e outros atos
administrativos – fora do âmbito estrito do permissivo do Estatuto218.
O velho paradigma da doutrina da situação irregular ainda influencia o
decisório de alguns membros do judiciário e do ministério público, fazendo‐os
ʺgestores públicosʺ e ʺlegisladoresʺ. Em função disso, emitem atos genéricos,
estabelecendo formas de ação pública social‐assistencial de relação a crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade social (ʺoperação‐arrastãoʺ dos
chamados meninos de rua, p.ex.). Intervêm como ʺsuperiores administrativos
hierárquicosʺ, na gestão de órgãos administrativos do poder executivo, (unidades
socioeducativas, abrigos, p.ex.). Praticam verdadeiros atos de supervisão
administrativa dos conselhos tutelares, fazendo‐os funcionar sob ordens ou por
216
Conferir atrás, neste texto, o item 2.3, sobre "Articulação & Integração".
217
Conferir adiante, neste texto, o item 4.2 , sobre "Função controladora dos Conselhos dos Direitos /.
Responsabilização"
218
O Estatuto ainda deixou a cargo dos juizes algumas funções regulamentadoras, que deveriam ter sido
transferidas para o Conselho dos Direitos ou ações fiscalizadoras que deveriam ter sido atribuídas aos
conselhos tutelares: freqüência de crianças e adolescentes em bares, espetáculos públicos, casa de diversão
etc. Seda vê nisso ainda retrocesso de relação à doutrina da proteção integral e conclui: "- Mas um dia
ainda chegaremos lá..." (SEDA, Edson. 1995: "A Proteção Integral". Campinas / São Paulo. Edição
AIDÊS. 3ª edição)
126
delegação, participando indevidamente do seu procedimento de escolha como se
fora um ʺprocesso eleitoralʺ etc.219
Uma coisa é o exercício de suas funções legais de controle judicial dos atos
administrativos e de custos legis, por exemplo, examinando esses atos sob os
aspectos da legalidade, economicidade, moralidade, publicidade e
impessoalidade. Outra coisa é a pura e simples supervisão ou coordenação
administrativa de serviços e programas administrativos.
O relacionamento dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente –
na qualidade de órgãos autônomos especiais do poder executivo ‐ com o poder
judiciário, com o poder legislativo, com o ministério público, não se faz via
normatização, regulamentação, supervisão, de ambos os lados. Mas sim numa
linha estratégica de advocacia política (advocacy) e de articulação, ambos
apresentando subsídios, indicativos, demandas.
Esse é um campo rico para se construir parcerias e não subordinações. A
idéia de um ʺsistema de garantia de direitos da criança e do adolescenteʺ, funcionando
como ʺredeʺ , exige isso: menos ʺchefesʺ e mais ʺprovedoresʺ, menos ʺfocos de
poderʺ e mais ʺfocos de serviçoʺ – parceiros, aliados.
Processos: metodologia, técnicas e procedimentos ‐ São típicas dessa ação
de formulação/normatização, pelos conselhos dos direitos:
a produção de análises da situação, com diagnósticos conjunturais
(avanços e desafios) e com projeção de cenários prováveis (possibilidades)
e
a definição de diretrizes programáticas, priorizadoras de determinados
direitos fundamentais.
Análise de situação ‐ A normatização de uma política pública deve ser
produzida a partir da análise do contexto social, da realidade social, onde se
tentará proporcionar conhecimentos para modificar a realidade, sendo essencial
para a elaboração de diretrizes e bases (normas), para o desenvolvimento de
políticas públicas, para a execução de planos, programas e projetos. Isso implica
primeiramente em se diagnosticar a situação, isto é, descrever, explicar e
predizer.
A descrição diagnóstica caracteriza a realidade que se pretende intervir,
modificar: apresenta‐a, desvela‐a . Para tanto há que se fugir dos reducionismos
científicos, com uso de taxinomizações de uma única ciência. Cada ramo da
219
Conferir adiante neste texto o item 4.3. – "Função controladora dos Conselhos dos Direitos.
Procedimento de escolha dos conselheiros tutelares"
127
ciência tem sua taxinomia220 própria e se reconhece pelos conceitos que utiliza.
Por exemplo, o “tráfico de pessoas para fins sexuais” pode ser descrito como um
tipo delituoso, a ser sancionado penalmente (taxinomia jurídica) ou como uma
reificação da relação afetivo‐sexual, tornada mercadoria (taxinomia econômica)
ou como um pecado a ser condenado e redimido (taxinomia teológica) ou o
resultado de uma relação hegemônica de dominação e exploração da mulher e de
outros segmentos sociais vulnerabilizados (taxinomia política) e assim por
diante. Nesse caso, na descrição do fenômeno tráfico de pessoas para fins sexuais
deve‐se contemplar todas essas categorias, descrevendo‐o como uma situação
multifacetária.
A explicação diagnóstica é realizada recorrendo‐se a relações causais entre
variáveis que condicionam a situação atual e cuja alteração permitirá alterá‐la.
Trata‐se de uma parte fundamental do diagnóstico, desde que na ausência de um
modelo causal fica impossível elaborar um projeto de mudanças. Há que se
incluir aqui todas as dimensões e variáveis que permitam explicar o fenômeno
ou processo que se estuda, que se analisa.
A predição diagnóstica (“cenários”) é resultante da capacidade de se
explicar. Se for possível explicar, também o será predizer. E isso se pode fazer
através de uma projeção das tendências observadas nas fases anteriores.
Definição de diretrizes gerais, programáticas e priorizadoras ‐ Em
princípio ‐ como da essência do processo de normatização/ formulação da
política de promoção dos direitos fundamentais da criança e do adolescente ‐ se
poderia considerar que ele visa estabelecer diretrizes, balizas, regras gerais,
normas regulamentares, para o desenvolvimento de tal política intersetorial, isto
é, para o planejamento, a coordenação, a execução e o controle‐de‐gestão dessa
política em favor da infância e da adolescência.
Através dessas diretrizes gerais programáticas, os conselhos dos direitos
da criança e do adolescente estabelecem os objetivos gerais, as metas prioritárias
e as macro‐estratégias, para essa política, pela qual têm responsabilidade. E
principalmente, devem procurar estabelecer as grandes linhas de articulação
política entre as diversas formas de intervenção política do Estado na questão da
infância e da adolescência, apontando também para os possíveis sítios de
integrações operacionais.
O ideal é que essas normas definidoras de diretrizes programáticas, em
concreto, busquem a sumulação, isto é, que busquem a essencialidade mínima:
220
Taxinomia é o grupo de categorias descritivas que constituem um esquema ordenado para a
classificação.
128
um número reduzido de objetivos, metas e ações e atividades. E principalmente,
estabeleçam indicadores de avaliação da sua eficácia e da efetividade.
Algo na linha das ʺmedidas vitaisʺ. Algo que tenha capacidade
mobilizadora e que permita um trabalho de advocacia política pelo conselho, no
tamanho de suas possibilidades. Algo que leve em conta questões, por exemplo,
como da governabilidade, que leve em conta os recursos orçamentários previstos
nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Algo mais, nessa linha.
Um trabalho desses de formulação/normatização/priorização não pode ser
um elenco desordenado e não avaliado de ʺdesejosʺ, de demandas surgidas de
verdadeiras ʺtempestades‐de‐idéiasʺ. Por exemplo, de um elenco de indicações
amplas que as conferências dos direitos das crianças e dos adolescentes façam e
de um elenco outro de medidas possíveis que levantem221 as análises de situações
do próprio colegiado ‐ os conselhos dos direitos da criança e do adolescente (no
exercício da sua função normatizadora administrativa, de caráter deliberativo)
precisam definir quais delas as prioritárias, para aquele período: na linha de 5 ou
10 diretrizes gerais programáticas, que sejam verdadeiros eixos estratégicos. A
depender do nível da formulação/normatização, esse número deverá ser o
mínimo possível no nível nacional, ampliando no nível estadual e podendo
chegar a minudências maiores no nível municipal222.
Via de regra, no país, atualmente ainda, a realidade não mostra esse
quadro de concentração e redução de objetivos/metas, aqui defendido. Os atos
dessa natureza dos conselhos deliberativos, pelo Brasil a fora, definem 50 ou
muito mais diretrizes! Difícil garantir eficácia e efetividade a tão grande número
de prioridades. Mas, é importante que isso seja considerado e valorizado como
um ʺexercício inicialʺ de normatização de diretrizes, a nos levar a um processo de
depuração e refinamento, cada vez maior – não ʺnegar‐seʺ acidamente, mas
ʺsuperar‐seʺ criticamente, com paciência histórica.
Outro ponto importante diz respeito à questão da multi‐setorialidade, da
inter‐institucionalidade, da transversalidade, que se deveria assegurar como
caráter dominante da política de promoção dos direitos humanos da criança e do
adolescenteʺ223 e que, por via de conseqüência, deveria contagiar o processo de
formulação/normatização de suas diretrizes programáticas.
Vive‐se muito preso aos esquemas tradicionais das políticas setoriais. E
quando se pretende formular uma política intersetorial/transversal, continua‐se a
garantir, internamente nessa política, a autonomia das áreas setoriais (saúde,
221
Ou de outros estudos dessa natureza elaborados com propriedade pela Academia e/ou por ONGs
especializadas.
222
Uma vez que no plano estadual são incorporadas diretrizes nacionais e no plano municipal, diretrizes
estaduais e nacionais.
223
Conferir atrás neste texto o item 3..2.1
129
educação, assistência social etc.), fazendo com que o trabalho de
articulação/integração se transforme em mera colagem, justaposição. Os modelos
de formulação para essa política específica prevista no Estatuto da Criança e do
Adolescente (art. 86) não são os usuais das políticas sociais setoriais. Dever‐se‐á
buscar referências metodológicas para essa formulação/normatização de
diretrizes programáticas, em outras políticas intersetoriais, como a indienígena,
a de meio ambiente, a de relações exeteriores etc. etc.
É preciso ousar nesse campo e se estabelecer diretrizes não para áreas de
políticas setoriais determinadas, aglutinadas num texto, mas levando‐se em
conta outros critérios: por exemplo, ciclos de vida224, focos situacionais225, eixos
estratégicos226, gerações de direitos fundamentais, cortes geográficos ‐ mesclando
critérios, de maneira menos ortodoxa.
O papel normatizador do CONANDA, como referência ‐ De maneira
referencial para todos os conselhos dos direitos da criança e do adolescente ‐ o
CONANDA, por resoluções, define em nível nacional as ʺDiretrizes gerais para a
política de atenção integral à infância e à adolescência nas áreas de saúde, educação,
assistência social, trabalho e para a garantia de direitosʺ, priorizando direitos
fundamentais desse segmento social.
O primeiro trabalho de formulação consumiu dois períodos de gestão do
CONANDA e teve como relatoras inicialmente as conselheiras Vanda Engels
Aduan227 e Maria do Rosário Leite Cintra (Ir.) 228 E posteriormente a Conselheira
Zilda Arns Neumann229, quando da sua versão final. Essas diretrizes foram
aprovadas em 04 de outubro de 1995, na 28ª assembléia ordinária do CONANDA
e promulgadas por resolução230.
Em outubro de 2000, o CONANDA reviu suas ʺDiretrizes Geraisʺ, através
de nova resolução, com vigência até 2005.
A parte inicial do documento, como uma “Introdução”, esboça‐se um
histórico do atendimento à criança e ao adolescente no Brasil, nos seus 500 anos.
E registra‐se mais a situação da criança e do adolescente na década de 90, a partir
da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por fim, esse capítulo
se encerra com uma análise sobre a “ institucionalidade democrática” onde são
224
Por exemplo, o UNICEF no momento está desenvolvendo seu planejamento a partir desse critério.
225
Por exemplo: violência, não-acesso ao serviço público, gênero/etnia, conflito com a lei, integrações
operacionais, prevenção, responsabilização, proteção jurídico-social etc.
226
Por exemplo: mobilização, apoio institucional, empowerment (protagonismo), advocacy, parceria,
pesquisas etc.
227
Rede dos Núcleos de Estudo e Pesquisa – Associação Roda-Viva
228
CNBB - Pastoral do Menor
229
CNBB – Pastoral da Criança
230
Resolução CONANDA – D.O.U. 13-10-1995.
130
lançadas as bases teóricas da nova “doutrina da proteção integral” e os
princípios básicos da nova normativa legal nacional, com menção expressa ao ao
chamado sistema de garantia de direitos, que o CONANDA assume como sua
tarefa a sua viabilização, em nível nacional.
Finalmente, traça o documento, em concreto, ʺdiretrizes para as políticas
públicasʺ, colocando‐as no contexto da ʺgarantia do direito à vida e ao
desenvolvimento integralʺ.
Essas diretrizes, em cada área especificada, por exemplo, versam sobre:
alojamento conjunto, cartão de gestante, anormalidades metabólicas do
recém‐nascido, permanência de pais junto a crianças e adolescentes internados,
vigilância nutricional, ampliação de recursos financeiros, implantar programas de
prevenção de acidentes no lar ou fora dele etc. (saúde);
articulação das áreas da saúde, educação e assistência social para
atendimento de crianças de 0 a 6 anos, garantia do acesso, regresso, permanência e
sucesso na escola, diminuição dos níveis de repetência nas 5 primeiras séries,
educação para o trabalho, saúde escolar, atendimento aos portadores de necessidades
educativas especiais, aumento progressivo da remuneração do magistério etc.
(educação);
erradicação do trabalho infantil, estímulo a programas de geração de renda
de caráter familiar, ratificação da Convenção 138 da OIT etc. (trabalho);
implantação e fortalecimento de serviços de apoio familiar para crianças e
adolescentes em situação de alto risco, entidades de abrigo etc. (assistência social).
Além disso, foram estabelecidas algumas diretrizes especiais para a ʺgarantia
dos direitosʺ, versando, por exemplo, sobre:
implementação de conselhos dos direitos da criança e do adolescente e de
conselhos tutelares, por meio de sistema de monitoramento;
atendimento a adolescentes autores de ato infracional e execução de
medidas socioeducativas, com reordenamento e reaparelhamento dos serviços e
programas respectivos;
implementação dos centros integrados operacionais de atendimento inicial
a adolescentes infratores e de juízos regionais da infância e da juventude;
implementação de defensorias públicas especializadas;
cadastros nas comissões estaduais judiciárias de adoção;
fortalecimento das entidades de defesa de direito, especialmente visando
diminuir a impunidade por crimes praticados contra crianças e adolescentes;
etc.
De qualquer maneira, continuam ainda em grande número as diretrizes
nacionais, dificultando sua efetivação e o controle sobre sua eficácia e
efetividade. E continuam ainda agrupadas ainda tradicionalmente por áreas
setoriais, dificultando o atendimento integral paradigmático.
131
Uma outra referência metodológica: o Conselho Municipal dos Direitos
da Criança e do Adolescente, de Belém (Pará) ‐ Por sua vez, pode‐se registrar
também como referência metodológica, o trabalho de normatização/formulação
da ʺPolítica Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescenteʺ, de responsabilidade
do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Belém
(Pará)231.
O texto original ‐ aprovado posteriormente pela plenária do conselho após
profunda discussão ‐ foi elaborado por uma comissão composta de conselheiros,
representando a Fundação Papa João XXIII, a Secretaria Municipal do Meio
Ambiente e o Conselho Regional de Serviço Social da 1ª Região; assessorados por
três consultores externos. Esse trabalho em esboço ʺconsolidava subsídios oferecidos
inicialmente pela I Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, em
consonância com as diretrizes elaboradas pelo CONANDA e estudos e reflexões
efetivados pelo próprio COMDACʺ. Finalmente, o texto final foi referendo durante a
II Conferência Municipal dos Direitos da Criança e finalmente aprovado
formalmente pela plenária do Conselho Municipal, em 1997, para vigorar até
2000.
Essa normatização referenciada vem precedida de uma análise de situação
que compreende uma apresentação e avaliação de um quadro sobre a situação
socio‐econômica de Belém; contendo
(a) um registro descritivo da situação física e da organização
administrativa da cidade;
(b) um registro descritivo‐avaliativo do processo de exclusão social
(processo excludente de ocupação do espaço urbano e processo excludente de
organização econômica), que ocorre no município e
(c) um registro descritivo‐avaliativo, bem particularizado, da situação
das crianças e adolescentes, frente às políticas sociais (assistência
social/proteção especial, saúde, educação, desporto/cultura/lazer).
No tocante à definição em concreto das ʺdiretrizes programáticasʺ
propriamente ditas, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente de Belém inicia, estabelecendo e explicitando seis (6) ʺprincípios
fundamentaisʺ, que servem de chave‐hermenêutica para essas diretrizes e
conseqüentemente para toda a política de promoção dos direitos humanos da criança e
do adolescente, em Belém, de 1997 a 2000:
ʺCrianças e adolescentes são sujeitos de direitosʺ;
231
COMDAC / BELÉM. 1997: "Política Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente". Belém.
Prefeitura Municipal.
132
ʺCrianças e adolescentes são pessoas em condição peculiar de
desenvolvimentoʺ;
ʺCrianças e adolescentes têm prioridade absolutaʺ;
ʺArticulação e compromisso político entre as esferas de governoʺ;
ʺArticulação entre os organismos executoresʺ; e
ʺArticulação dos Programas e Serviços de Proteção às demais Políticas
Sociaisʺ.
Finalmente, são estabelecidas as chamadas ʺdiretrizes programáticasʺ para
as áreas da ʺProteção Especialʺ, da Assistência Social, da Saúde, da Educação e da
Cultura/Deporto/Lazer; definindo‐se objetivos‐metas e ações‐atividades (ʺmedidasʺ),
para cada uma delas.
Essa formulação/normatização do Conselho Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente de Belém conclui definindo ainda:
Competência operacional;
Período de execução;
Recursos;
Acompanhamento e controle.
A experiência referencial do Conselho Estadual dos Direitos da Criança
e do Adolescente do Ceará ‐ Por sua vez, o Conselho Estadual dos Direitos da
Criança e do Adolescente do Ceará – CEDCA‐CEARÁ, em sua última reunião
especial de planejamento anual, se propôs a elaborar um ʺplano de promoção e
defesa dos direitos fundamentais da criança e do adolescente no Cearáʺ, estabelecendo
assim as diretrizes gerais para a política de atendimento dos direitos da criança e
do adolescente nesse Estado.
Essas Diretrizes Gerais foram aprovadas através da resolução nº 40/2002
do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará. Um
Grupo de Trabalho, paritário, elaborou uma minuta de ʺplanoʺ, que foi
submetido à IV Conferência Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente,
para sugestões. Em seguida, foi levado a outros espaços de discussão (secretarias
de estado, entidades de classe das categorias profissionais interessadas,
conselhos setoriais, entidades de direitos humanos, mídia etc.). Ao final do
processo, a plenária do CEDCA‐CEARÁ o aprovou formalmente, fazendo‐o
publicar no Diário Oficial do estado.encaminhando‐o ao Governador do Estado
para as providências cabíveis.
O texto define como missão maior do estado e da sociedade, no tocante
aos direitos fundamentais da infância e da adolescência, na atual conjuntura, no
Ceará:
ʺArticular o desenvolvimento de políticas públicas que priorizem o
desenvolvimento integral da criança e do adolescente, como direito e como dever do
133
Estado, da sociedade e da família. e igualmente defender esse direito em casos de
violaçõesʺ.
A partir daí, foram fixados cinco (5) ʺEixos Direcionais Estratégicosʺ, em
torno dos quais, governo e sociedade deverão priorizar a implantação /
implementação ou o fortalecimento de determinadas atividades permanentes ou
de projetos pontuais (serviços e programas), ali priorizados, garantindo‐se, desse
modo, a efetividade da Política de Promoção dos Direitos Fundamentais da
Criança e do Adolescente, no Ceará:
“Promover a priorização do desenvolvimento e da educação infantil
fomentando a articulação entre as políticas públicas, programas e projetos.
Acompanhar e fazer cumprir a obrigatoriedade constitucional de
escolarização da criança e pré‐adolescente na faixa etária de 6 a 14 anos de idade.
Promover a construção do protagonismo juvenil, fomentando fomentando
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