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Breves anotações pontuais sobre A câmara clara

Rodrigo Fontanari
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo
Este trabalho debruça-se sobre o pensamento de um dos mais importantes semiólogos
franceses do século XX, Roland Barthes. Está consagrado a abordar a teoria barthesiana
para a fotografia. Visa à apresentação e ao estudo crítico dessa inusitada teoria da
representação fotográfica, mais especificamente aos hoje clássicos conceitos de studium
e de punctum. O objetivo principal é o de fornecer subsídios para um entendimento do
livro ‘A Câmara Clara’, buscando fundamentar a ideia corrente de que também estamos
diante de um romance poético da fotografia.

Antes de analisar as reflexões barthesianas sobre a fotografia, introduziremos um


trabalho de escavamento arqueológico de seu livro, a começar pelo próprio título: A
câmara clara: nota sobre a fotografia.

O título joga com certo paradoxo, pois enquanto vários autores denominam o
aparelho fotográfico de: caixa preta (Vilém Flusser) e uma caixinha de noite (Michel
Tournier), Barthes fala de câmara clara. Ao escolher esse título, o autor rememorava o
ancestral do que atualmente entendemos por “câmera escura”, que originou o aparelho
fotográfico – poderia até certo ponto ser lido com uma homenagem a esse tipo
rudimentar de imagem.

Nesse momento, seria pertinente aprofundar a história das origens da fotografia,


sobretudo da câmera clara ou câmara lúcida. Pouco se fala delas em público, talvez por
tratar-se de um processo muito simples e rudimentar de representação, mas que parece
ter interessado muito a Roland Barthes. Em seu livro O fotográfico, Philippe Dubois
informa que a câmera clara foi inventada em 1807 por William Hyde Wollaston. O
invento de Wollaston não deixa de funcionar como a câmera escura, segundo a mesma
lógica indiciária, ou seja, é um processo ótico que obtém a imagem por cópia direta – a
imagem tem uma certa contigüidade com seu referente (índice). O princípio de
funcionamento é um pouco mais rudimentar que a da câmera escura: é um olho de
telescópio dotado de um prisma, um jogo de espelho e lente, tudo isso, fixado sobre
uma mesa de desenho. A representação revela-se à medida que o “pintor” coloca seu
olho no visor e “enquadra” o objeto a ser representado. Então, deve-se deixar que a mão

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percorra o papel, traçando simultaneamente sobre a folha o que é dado ao olho do
observador (pintor).

O diferencial desse ancestral da câmera escura12 é que a representação se dá de


forma direta: “Nada de tela, de projeção ou de decalque: nada de intermediário. Aquilo
passa diretamente do olho à mão. É como se o próprio corpo do pintor, ou pelo menos
seu cérebro, desempenhasse o papel de câmera (escura ou clara?) (...)” (Dubois,
2008:131).

A partir dessa fala de Dubois lançamos a seguinte hipótese a propósito da


inclinação de Barthes pela câmera clara contra câmera escura: o que o fascina é a co-
presença do corpo, do cérebro ou mesmo “da alma”, e, para recuperar um conceito de
Walter Benjamin, “aura” nesse tipo de imagem. E é essa essência de “aura”, algo quase
artesanal, da ordem da grande arte, que o autor persegue nessas imagens técnicas,
originadas pela câmera escura que em nosso tempo parece ter sido perdida ou mesmo
esquecida pelo inflacionamento de imagens. Para Barthes, contudo, essa essência ainda
pode ser encontrada em certas fotografias, nas quais o que se encontra não é uma
simples representação técnica, mas um algo a mais que as humaniza e que mantém
como referente um vínculo que pode ser revivido pelo olhar do observador. Esse
vínculo é estabelecido pela mão do “pintor”, pela presença do duplo do referente ou
mesmo pelo caráter quase artesanal dessas imagens.

A entrevista de Barthes à Laurent Dispot de Le Matin em fevereiro de 1980,


intitulada Do gosto ao êxtase, revela uma dimensão da fotografia sobre a qual o autor
havia refletido: “(...) tento dizer que o que há de mais terrível na foto é que ela é sem
profundidade, que é uma evidência clara da coisa que foi [existiu].” (2004b: 491).

O que realmente interessou a Barthes não foi o conceito ideológico que está no
próprio programa do aparelho, como pensa Vilém Flusser em Filosofia da caixa preta:
ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Pelo contrário, o autor quis refletir
acerca daquilo que está mais evidente nesse tipo de imagem antropologicamente nova.

12
Vale mencionar que a câmera escura é um processo mecanicamente mais refinado em que a imagem
formada por decalque ou contigüidade com seu referente (índice) se forma na parede oposta àquela em
que há o orifício (quanto menor for este, melhor é a definição da imagem). No entanto essa imagem se
faz, na parede oposta, de maneira inversa ao mundo real, para isso os “pintores” usavam espelho para
inverter a imagem. Esse é o princípio para as máquinas fotográficas, que foram, em larga medida,
aperfeiçoando sua forma de captação de imagem pelos dispositivos cada vez mais elaborados de lentes
que se colocavam no orifício da câmera.

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Até aquela data porém, ninguém havia falado desse ponto de vista: o que ali foi
registrado aconteceu, e isso é o mais traumático da foto.

No subtítulo “nota”, como afirma o próprio autor nessa entrevista, está colocado
o desejo de não ser uma “enciclopédia”, mas desenvolver uma tese, uma proposição em
relação à fotografia o que obriga o seu livro a ser uma obra breve.

No entanto, para uma reflexão analítica, foi necessário definir as noções que
serviram de paradigma para pensar seu objeto. Para isso, escolheu duas palavras latinas:
studium e punctum. Esta última refere-se àquelas fotos que o tocava “(...) mais
vivamente do que por seu interesse geral, por um pormenor que vem me prender, me
cativar, me acordar, me surpreender, de maneira bastante enigmática13.” (Barthes,
2004b: 492). Já a primeira palavra refere-se “ao interesse geral, cultural, civilizado, que
se tem por uma foto.” (Barthes, 2004b: 492). É, de maneira geral, o esforço por parte do
fotógrafo em agradar ao gosto de alguma maneira (studium14).

Os conceitos de A câmara clara: studium e punctum

13
A questão do conceito de punctum perpassa pela própria questão do signo lingüístico e da luta titânica
de Barthes em relação a essa diabrura que é a língua. Tomando a corrente de pensamento a que o autor
pertenceu (considerando todas as nuances de deslocamentos), a escola do signo arbitrário, de matriz
saussuriana, o conceito de punctum afugenta a arbitrariedade do signo. Para Barthes, diante de uma
representação punctuosa, temos o próprio objeto (é a luz que partiu do objeto e chamuscou os sais de
prata). Não há mais a arbitrariedade (injusta amarração) entre o objeto e sua representação (signo), e é aí
que a linguagem cessa. Eis o sinistro, no sentido freudiano do termo, da fotografia.
14
Cabe nesse momento, uma ressalva: durante a composição de A câmara clara, Barthes evidencia seu
repúdio pelo studium fotográfico, reconduzindo-nos à índole da crítica baudelariana a respeito da
fotografia, ou seja, a necessidade de agradar o gosto burguês e de tomar uma cópia do real (fotografia)
como arte. Seguindo os traços de pensamento de Baudelaire, Barthes não previa a inclusão da foto na arte
contemporânea, principalmente na Pop Art. Nas palavras de Baudelaire: “Nesses tempos deploráveis,
surgiu numa nova indústria, que muito contribuiu para confirmar a tolice na sua fé e para destruir o que
poderia restar de divino no espírito francês. Essa multidão idólatra postulava um ideal digno de si e
apropriado à sua natureza, isso é evidente. Em matéria de pintura e de escultura, o credo atual das pessoas
da alta sociedade, sobretudo na França (e não creio que alguém ousará afirmar o contrário), é este: ‘Creio
na natureza, e apenas na natureza (há boas razões para isso). Creio que a arte é e não pode ser senão a
reprodução exata da natureza (uma seita tímida e dissidente quer que os objetos repugnantes sejam
afastados, como, por exemplo, um urinol ou um esqueleto). Assim, o engenho que nos desse um resultado
idêntico à natureza seria a arte absoluta’. Um Deus vingador atendeu os pedidos dessa multidão. Daguerre
foi seu messias. E então ela diz para si mesma: “Já que a fotografia nos dá toda as garantias desejáveis de
exatidão (eles acreditam nisso, os insensatos), a arte é fotografia.’ A partir desse momento, a sociedade
imunda precipitou-se, como um único Narciso, para contemplar sua trivial imagem sobre o metal. Uma
loucura, um fanatismo extraordinário apoderou-se de todos esses novos adoradores do sol.” (1968: 394;
tradução do autor).

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De maneira geral, podemos afirmar que Roland Barthes tomou as imagens
fotográficas como fatos de linguagem, vendo nelas um fundo lingüístico, sendo fiel ao
seu pensamento de que há sempre por trás um signo da língua. Em virtude dessa
posição epistemológica, Barthes afirma que: “(...) como se vê, questiona-se hoje o que
se chamou a civilização da imagem; somos ainda, e mais do que nunca, uma civilização
da escrita, porque a escrita e a palavra são termos carregados de estrutura
informacional.” (1996: 37). Aí se revela a razão pela qual ele não mostra a foto do
jardim de inverno, mas a descreve, rejeitando a teoria fotográfica, pois ela vale mais por
aquilo que ela mostra e não pela maneira como ela mostra (enquadramento,
composição, pigmento, etc.). (Cf. Calvet, 1999).

Apresentado o que seria o mundo embrionário dos conceitos de studium e de


punctum, analisemos as idéias que Barthes desenvolveu a respeito disso. Vale ressaltar,
ainda, que para Barthes (2004) a fotografia é uma emanação do objeto e, assim, a
imagem e o objeto guardam entre si uma profunda relação. Porém, quando o autor faz
essa assertiva acerca da fotografia, interessando-se pelo grau de indicialidade das fotos,
ele estabelece uma clara diferença entre o studium e o punctum. A denominação
“studium” vem do verbo studare, que é um estudo do mundo: tudo aquilo que não tem
pungência. Já o punctum vem do verbo latino pungere, ‘picar’, ‘furar’, ‘perfurar’.
Conotativamente, aquilo que é pungente, que corta, fere, sensibiliza, alfineta e amortiza.
Quando o autor faz tal classificação ele não fecha as imagens exclusivamente em uma
única casa (studium / punctum): é possível encontrar os dois numa mesma foto, cabendo
aos olhos enxergá-los.

De maneira mais direta podemos dizer que o studium é aquilo que é da ordem da
câmara escura, aquilo que está inscrito no enquadramento fotográfico e que, geralmente,
está condensado numa imagem que se oferece ao olhar e, sobretudo, ao intelecto. A
fotografia se torna um campo de estudo. Uma representação através da qual se torna
possível reconhecer os signos, as mensagens que ela denota e conota. É um verdadeiro
terreno do saber e da cultura. O studium é a fotografia que me vem, enquanto sujeito
observador (espectador), informar e comunicar aquilo que se apresenta naturalmente ao
espírito: o óbvio.

O conceito de punctum advém da câmera clara. É nesse conceito que se pode


também justificar o próprio título de sua obra. É quando a imagem clareia, torna-se

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transparente ao olhar, mergulha num abismo profundo, que o enquadramento da
imagem é proposto. É quando, então, a imagem se oferece ao mundo da sensibilidade,
do afeto. No punctum, não é mais o intelecto que responde, mas o corpo que age e reage
àquilo que lhe é posto. “Como espectador, eu só me interessava pela Fotografia por
‘sentimento’; eu queria aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como uma
ferida: vejo, sinto, portanto, noto, olho e penso” (Barthes, 2004a: 42). Nesse sentido, o
punctum para Barthes é algo que fascina o corpo; é o campo do indizível da imagem:
aquilo que cala na alma do observador porque o olhar não é capaz de capturar. Ele
somente patina sobre essa superfície, pois o punctum se apresenta no campo cego da
imagem: “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é
sempre o invisível: não é aquilo que vemos” (2004a: 16).

Ainda é valido notar que Barthes acena, em vários momentos de sua obra, com a
possibilidade da existência do punctum. Na primeira parte, ele denomina punctum ao
“detalhe” da fotografia; algo “que parte da cena, e vem me transpassar” (2004a: 68). Na
segunda parte, esse conceito se expande e toma a dimensão da nostalgia, da
dramaticidade e da intensidade: é a idéia de “isso existiu” (noema). Há também um
terceiro sentido de punctum em A câmara clara, que é aquilo que ele denomina de
“suplemento”: é, num certo sentido, “aquilo que vem a mais” que o intelecto e os
sentidos não são capazes de perceberem, mas que o corpo reivindica. Esse sentido não é
decifrável pelo campo da fala da linguagem propriamente dito.

Em síntese, podemos dizer que o studium é um campo de estudo, enquanto o


punctum é o lugar das sentimentalidades, um ponto cortado no tempo e no espaço, onde
está depositado todo um momento de emoção. É essa última possibilidade de
entendimento de punctum que, nesse momento, torna-se interessante, pois esse se libera
do suporte imagético, no caso o papel fotográfico, e abre a possibilidade de pensar as
imagens e as diversas formas de linguagem, indiferentemente do seu suporte.

O corpus

O corpus eleito por Roland Barthes foi bastante restrito e retirado de alguns
álbuns e revistas, na medida em que as fotografias correspondem a momentos do livro.
Barthes utilizou com grande freqüência a revista Nouvelle Observateur Photo. É

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importante notar que a maioria das fotos escolhidas é bastante antiga porque, para ele, a
grande fase da fotografia, sua fase heróica, é apenas a primeira fase. No entanto, quando
escreve o livro, ele não descarta alguns fotógrafos contemporâneos que não foram
referendados com algumas fotos nessa obra.

A escolha não se deu para eleger as melhores fotos de cada fotógrafo, nem
aquelas que representassem forçosamente o gosto do autor, mas aquelas que serviram de
aparato para elaborar uma argumentação. Contudo, o autor mesmo lembra (cf.2004b)
que houve certo esforço da sua parte para que elas fossem de certa forma bonitas em si.

As fotos sobre as quais Barthes se interrogou foram os retratos fotográficos em


oposição clara àquelas de paisagens. Seu interesse de pesquisa se voltou para as fotos
privadas, pois para ele esse tipo de imagem técnica (retrato) assume uma relação de
amor com alguém.

O método

Diante de algumas fotografias arbitrariamente escolhidas, o autor procurou


refletir de tal modo a encontrar o que viria à sua consciência a respeito da essência da
fotografia. Portanto, o método seguido era inteiramente subjetivo, referendando a
fenomenologia como forma de análise.

O guia para compor essa obra foi o prazer ou desejo em relação a certas fotos,
reverberando, nesse olhar, certos reflexos da análise semiológica, para então procurar
saber por que algumas delas “(...) me intrigavam, me agradavam, me concerniam, e por
que outras não.” (Barthes, 2004b: 500).

A análise girou (cf. Barthes, 2007) principalmente em torno daquelas fotos que
provocavam nele um “tilt” ou choque, o qual não estava forçosamente entrelaçado ao
tema representado. São fotos que realmente tocaram o afeto do autor.

O prazer e o desejo tomados como paradigmas de análise levaram o autor a


certos resultados, porém não tão profundos que possibilitassem refletir o que o fazia
opor radicalmente a fotografia a todos os outros tipos de imagens.

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Para isso, Barthes pôs-se a se interrogar uma foto privada relacionada a um luto
recente, o de sua mãe. A partir da reflexão proporcionada pelo retrato de sua mãe é que
ele realmente avança em direção à elaboração de uma filosofia da fotografia, que
estabelece uma relação íntima entre a fotografia, de um lado, e a morte e o amor, de
outro): “(...) o futuro ideal da fotografia é a fotografia privada, isto é, uma fotografia que
assume uma relação de amor com alguém. Que só tem toda a sua força se tiver havido
um laço de amor, mesmo virtual, com a pessoa representada. Isso acontece em torno do
amor e da morte. É muito romântico.” (2004b: 501; grifo nosso).

As memórias da imagem, as imagens de memória: um romance

Diante do retrato fotográfico, o individuo (observador) é tomado de um vínculo


de amor. A partir desse disparo de emoção proveniente da idéia ainda inconsciente de
que aquilo não pode existir mais, mas “o amei”, desenvolvemos algo no estilo de um
romance. Em A preparação do romance, Barthes entende o romance como “(...) uma
‘obra’ que, por um lado, tem vínculo com a literatura, e por outro, com vida.” (2005:
226). Quando provocadora de um romance, uma foto é algo da ordem de um objeto
fantasmático (sentido psicanalítico do termo), que guarda com o imaginário do
observado e do sujeito representado uma profunda relação. A fotografia é um fantasma
que ronda o inconsciente do observador.

Ousaríamos dizer, considerando a hipótese de estar diante de uma poética da


fotografia, que A câmara clara lida pelo viés de uma possível filosofia da fotografia, e a
partir do próprio texto (história que ali se conta) seja talvez uma forma de escritura
romanesca, inconsciente ou não, por parte do próprio autor, ou mesmo, o cume de “A
preparação do romance”: o romance não mais nos moldes tradicionais, uma torrencial
de fatos, mas um agrupamento de fragmentos escriturários que testemunham, no sentido
religioso, ou seja, imortalizam o sujeito de que se fala.

Perseguindo a hipótese de uma poética (uma forma de romance) barthesiana da


fotografia, investigamos o que seriam para esse autor a matéria-prima e o romance
propriamente dito. Para Roland Barthes (cf. 2005a), a preparação do romance surge do
desejo, da “pulsão” do querer-escrever. Esse querer-escrever nasce de uma fantasia de
escritura, do desejo ardente de possuir (imortalizar) o objeto ou o sujeito sobre o qual se

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escreve, pois escrever, segundo o autor, é um verbo transitivo, na medida em que é
preciso haver um objeto/sujeito sobre o qual desenvolve a escritura: um caso de amor,
uma fantasia, que serve de motor simbólico, um guia para a produção da escritura. Nas
palavras do próprio autor, o romance é: “um objeto fantasmático que não quer ser
assumido por uma metalinguagem (científica, histórica, sociológica).” (Barthes, 2005:
23).

Ao contrário do que pensam alguns autores sobre a escrita – a vitória contra a


própria morte, uma forma de se eternizar – escrever um romance é uma forma de vencer
a morte daquele a quem se ama, sobre o qual se testemunha para além das formas
estruturais perpétuas da memória. Nesse sentido, o romance é tomado como “ato de
amor”, entendido não como amor-próprio, mas como um ato de “fala” a respeito do
outro amado. O ato da escritura é um meio de expressar a justiça em relação àqueles que
conhecemos e que amamos. O romance é uma pulsão de amor.

Porém, o romance fantasiado e desejado por Barthes (meu romance) não é


aquele que tenha como matéria-prima o passado, embora os romances a que ele tinha
maior apreço fossem aqueles em que a “pulsão romanesca” se volta para memória, que
são feitos de materiais (lembranças) evocados de um tempo qualquer da vida. Esse
desvio desejoso de libertinagem do romance em relação ao passado, não estaria
vinculado ao desgosto de Barthes com relação ao seu próprio passado, mas por que ele
não gosta do tempo passado: “Talvez porque ele me machuque (...) espécie de
resistência geral a narrar, a contar aquilo que não volta mais (...).” (Barthes, 2005: 35).
A matéria-prima que Barthes desejava para o seu romance seria o presente (meu
presente) com o qual manteria um vínculo afetivo e através do qual buscaria prescrever
o objeto/sujeito que se ama. Em uma certa medida seria permitir dizer o sujeito que
amamos que é diferente de simplesmente, dizer-lhes que o amamos. Aqui, é preciso
fazer alusão à conferência que Barthes pronunciou no Colégio de França em 19 de
outubro de 1978, intitulada: Longtemps Je me suis couché de bonne heure (Por muito
tempo eu me deitei cedo), em que ele aponta para aquilo que espera de um romance,
“uma espécie de transcendência do egotismo, na medida em que dizer aqueles que se
ama é dar testemunho de que eles não viveram (e freqüentemente sofreram) por nada.
(2002: 469).

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Se para Roland Barthes o romance é esse dizer aquele que se ama, a segunda
parte de A câmara clara é um romance. Com certas ressalvas, visto que ele não só fala
da Foto do Jardim de Inverno de sua mãe, mas dá a ela um alto grau de importância
(com pedra fundamental de sua filosofia poética da fotografia). Como dissemos
anteriormente, não nos moldes tradicionais de um romance, pois ele se utilizou da forma
fragmentária, mas por dar um testemunho daquela pessoa que ele amou e por quem ele
sofria o luto enquanto escrevia o livro. Essa foto tão especulada não está estampada no
livro para o público leitor, pois ela serviria apenas ao studium dos leitores enquanto para
o autor essa foto foi a mola impulsionadora (como fantasma) para a escritura do livro.
Não porque ela serviria ao autor com memória do passado, mas como memória
presente: a foto como prova documental de que ela existiu (Ça a été), aconteceu (raios
luminosos partiram do corpo dela e lá, naquela chapa metálica ficaram para sempre
aprisionadas: é a coisa real), viveu e sofreu não para o nada, mas para vivenciar e sentir
o intenso e profundo amor que Roland Barthes tinha por ela. Eis aí o sentido de
romance para Barthes: o próprio romance que ele (sem saber ou não) preparou para sua
mãe, seu amor pulsional.

O olhar

Todo trabalho sobre as fotografias do tipo retrato foram tomadas em sua


novidade absoluta na historia do mundo: o aprisionamento definitivo do duplo sobre
uma superfície. É sem dúvida, uma imagem icônica inteiramente nova. É essa novidade
que ele busca interrogar. Para isso, coloca-se como um homem ingênuo e não-cultural,
um selvagem que não conseguia deixar de se espantar diante de uma fotografia. Essa
postura retira o olhar barthesiano da avalanche de imagens tecnicamente evoluídas em
que vivemos na contemporaneidade avançada, das quais Barthes já estava cercado e
cuja tagarelice já o entediava.

Fotografia é ou não é linguagem?

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A fotografia pode e também não pode ser tida como linguagem. Se tomarmos a
foto como uma reprodução analógica15 da realidade (pura emanação do referente), e por
não conter nenhuma partícula descontínua que se denomina signo, ela não pode ser
considerada linguagem. Entretanto ela poderia ser encarada como linguagem, se
pensássemos que o estilo a composição funcionar como uma mensagem que informa
sobre a realidade e sobre o fotógrafo. Ou seja, estaremos no nível da linguagem
conotativa. Se tomarmos a foto como estilo, ela é linguagem.

Embora a escrita e a fotografia mantenham entre si uma íntima relação, já que a


fotografia é uma escrita da luz que emana do objeto e se fixa em uma superfície sensível
a essa luminosidade, a fotografia também não pode ser encarada simplesmente como
escrita técnica, pois o escritor trabalha com um material diferente (as palavras) que tem
uma significação anterior ao próprio escritor e à sua escritura, enquanto o fotógrafo lida
com algo mais complexo que não está no nível dos códigos da linguagem porque ele
mesmo não pode ser encarado como língua.

Arte ou ilusão de realismo?

A fotografia mantém em si uma relação complexa. Ela é ao mesmo tempo, como


pensa Barthes (cf.2004b), algo estranho à arte e ao “natural ilusório”. Há por detrás da
foto um jogo paradoxal ao buscar codificar a cultura. Diante de uma foto, o observador
pode ter a sensação de real. Com a pintura, esse espectador não terá a mesma sensação,
pois o processo de decodificação da imagem é bem diferente na fotografia e na pintura
e, portanto, seu produto final (o quadro ou o retrato fotográfico) tem uma ação diferente
sobre o individuo. A foto o perturba antropologicamente devido à sua ilusão de
realismo.

15
Ousaríamos dizer a partir dos próprios escritos de Barthes que, as artes analógicas (cinema, fotografia)
de certa forma, fizeram parte do cabedal de ferrenha crítica do autor. A analogia é pare ele uma forma de
ratificar o mundo: de efeito de “natural”, ou seja, as formas apreendidas pelas artes devem assemelhar a
algo da Natureza, como se as formas existentes nelas são fontes de verdade. Para Barthes se entregar ao
pensamento analógico não é senão estar em pleno imaginário: um verdadeiro encadeamento incessante de
signos, constituindo uma verdadeira armadura de significantes e significados. Se entregar ao imaginário e
ao analógico. E se deixar levar pela diabrura da linguagem que não permite cessar de querer significar.
Nas palavras do próprio autor temos: “Quando resisto à analogia, é de fato ao imaginário que resisto: isto
é: a coalescência do signo, a similitude do significante e do significado, o homeomorfismo das imagens, o
Espelho, o engodo cativante.” (2003a: 57)

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Esse falso giro de “ilusão natural” da fotografia não deixou, como pensam
muitos leitores apressados de A câmara clara, de ser apontado pelo semiólogo que em
tanto se debateu em torno da tentativa de naturalizar, no nível do discurso, aquilo que é
culturalmente construído.

Barthes denuncia esse falso realismo que está implicado na própria escolha do
sistema ótico de captação da imagem – a perspectiva renascentista –, que traz em seu
bojo uma escolha ideológica para “ler” o objeto (referente). Em suas próprias palavras,
“(...) a foto não pode ser transcrição pura e simples do objeto que se dá como natural, a
começar pelo fato de ela ser plana e não em três dimensões; e, por outro lado, ela não
pode ser uma arte, visto que copia mecanicamente.” (2004b: 497).

A fotografia, um objeto que povoou o cotidiano da vida, ainda impõe um


desconforto conceitual. Há em torno dela um embate teórico que não permite situá-la
nem no campo da arte, nem nodo puro realismo. Em sua essência, ela é um paradoxo de
paradoxos.

Para Barthes (cf. 2004b), a fotografia assume uma zona intermediária entre a
arte e a não-arte, provocando um deslocamento do conceito de arte, movimento que faz
parte do progresso do mundo.

A essência da obra

Fica, então, uma questão: o que Barthes, no momento da escritura do que viria a
ser sua derradeira obra em vida, questionava em relação à fotografia? Havia para ele
uma relação de amor com esse tipo de imagem técnica?

A possível resposta é que Barthes, ao pensar nas imagens técnicas, é um sujeito


que se entrega à subjetiva, diríamos um selvagem que se despe totalmente do método
estruturalista e que, por isso, parece desejar abandonar, a luta que armou durante toda a
sua vida contra a linguagem. Não se importando mais com aquilo que transpassa por
dentro dos jogos discursivos embutidos no próprio aparelho fotográfico (câmera
escura), ele conseguiu recusar a fotografia como produto da câmera escura, ainda que
com menor grau de corrosividade crítica que Charles Baudelaire (cf. 1968), para se
entregar à “evidência clara”, à superficialidade. Essas palavras não são impunes, pois

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nelas já estão implicados o processo e o produto final do ancestral mais rudimentar do
aparelho fotográfico, a câmera clara ou câmera lúcida.

O que Barthes debatia a respeito da fotografia não estava na atmosfera complexa


que se instaurava em torno das imagens técnicas, mas em algo mais banal, como dizia:
ela é o testemunho de algo que realmente aconteceu/existiu (noema da fotografia). Esse
foi o choque barthesiano da fotografia, o vínculo umbilical que esse tipo de imagem
guarda com a idéia da morte.

Estamos diante da essência de A câmara clara. Com a fotografia emerge um


duplo aprisionado que está vivo pela ilusão de um realismo natural, mas ao mesmo
tempo morto (por mais viva que a coisa representada esteja) porque aquilo que
aconteceu e que está impregnado na chapa metálica não pode mais se reproduzir
existencialmente.

Referências bibliográficas

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