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II

1. Conceito material de crime e doutrina


do bem jurídico; 2. Subsidiaridade da
tutela penal de bens jurídicos; 3.
Delimitação da pena, como meio de
tutela subsidiária de bens jurídicos,
perante outras sanções.

1. O conceito material de crime e a doutrina do bem jurídico

Do conceito formal de Direito Penal, que demos logo de início, não


resulta qualquer limitação ou directriz, para o legislador, quanto
aos factos que ele deve, ou não deve, sancionar penalmente - pois
essa definição tem em vista delimitar o âmbito da nossa disciplina
no plano do direito positivo e, portanto, não pode fornecer qualquer
critério para apreciação do próprio direito positivo -. Uma tal
limitação ou directriz só pode resultar de um conceito material de
crime anterior ao Direito Penal positivo e do conceito de bem
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jurídico que lhe serve de base, os quais estão indissociavelmente


ligados à função do Direito Penal (assegurar a protecção
subsidiária de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência da
sociedade). Essa função do Direito Penal retira-se da própria
função do Estado de direito democrático (das tarefas que a
Constituição lhe assinala) que, nos termos do art. 2º da C.R.P., se
funda no respeito pelos direitos individuais - os quais, segundo o
art. 18, nº 2, da C.R.P., a lei só pode restringir nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo essas restrições
limitar-se ao estritamente necessário para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos -.

É a partir do conceito material de crime que podemos encontrar


resposta para a questão de saber se o legislador está, ou não,
vinculado a respeitar determinadas limitações ou exigências, no
que respeita ao âmbito dos factos puníveis. Esta questão, muito
discutida, desdobra-se em dois aspectos:

a) por um lado importa saber se o legislador está proibido de


estabelecer a punibilidade de determinados factos;

b) por outro lado, há que averiguar se ele está obrigado a declarar


puníveis alguns outros.

Começaremos por examinar o primeiro aspecto mencionado.


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1.1. Apoiado no conceito material de crime, o movimento de


descriminalização (entendendo aqui "descriminalização" no sentido
lato da exclusão de condutas do âmbito do Direito Penal, quer por
deixarem de ser qualificadas como crimes, quer por deixarem de
lhes ser aplicáveis medidas de segurança) tem conhecido um
intenso desenvolvimento a partir dos anos sessenta do século
passado e tem-se manifestado, sobretudo, na exigência de redução
do âmbito dos crimes sexuais entre adultos, em que não haja
violência, e da substituição de numerosas infracções de natureza
penal - sobretudo contravenções - por simples contra-ordenações).

Expressão disso é, entre nós, no âmbito dos crimes sexuais, por


exemplo, a descriminalização, efectuada pelo legislador penal de
1982 e mantida no Código Penal revisto, da homossexualidade
entre adultos (que no art. 71, nº 4, do Código Penal 1886 estava
sujeita a medidas de segurança e actualmente apenas é incriminada
quando praticada com menor de 16 anos, cfr. arts. 175 e 172, nº.2
do Código Penal revisto) ou a prostituição (que, de acordo com o
art. 70, nº 5, do anterior Código Penal poderia dar lugar a medidas
de segurança) e, até certo ponto, a descriminalização do adultério,
que era punido como crime contra a honestidade, nos termos dos
arts. 401 ss. do Código Penal de 1886 e, embora não possa ser
enquadrado no âmbito dos chamados crimes sexuais, tem na base
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da sua descriminalização razões idênticas às da descriminalização


da homossexualidade e da prostituição.

No que respeita ao movimento de descriminalização que teve como


contrapartida a criação ou alargamento do âmbito das contra-
ordenações, podem referir-se, como reflexo ou expressão desse
movimento no nosso país, nomeadamente, a criação do Direito de
mera ordenação social, pelo Decreto-Lei 232/79, de 24 de Julho,
que, embora concebido como uma lei-quadro, continha uma
disposição (art. 1º, nº 3) que transformava em contra-ordenações
todas as contravenções puníveis com multa. Os nºs 3 e 4 do art. 1º
deste diploma viriam, no entanto, a ser revogados, pouco depois,
pelo Decreto-Lei 411-A/79, de 1 de Outubro, em cujo preâmbulo
se apontam àquele diploma dificuldades várias de aplicação prática,
bem como a sua duvidosa constitucionalidade (cfr., para maiores
desenvolvimentos, Teresa Beleza, Direito Penal, v.I, 2ª. ed., Lisboa, 1985, ps.
129 s. e 146 ss.). Em 1982 o Decreto-Lei 232/79 veio a ser revogado

e substituído pelo Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, o qual -


com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL 356/89 de
17 de Outubro, pelo DL 244/95, de 14 de Setembro, pelo DL
323/2001, de 17/12 e pela Lei 109/2001 de 24/12 - consagra o
actual regime do ilícito de mera ordenação social. Desde então
muitas contravenções têm sido transformadas em contra-
ordenações. Vejam-se, a título de exemplo, o Decreto-Lei 28/84, de
20 de Janeiro, relativo a infracções anti-económicas e contra a
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saúde pública, o Decreto-Lei 376 A/89, de 25 de Outubro, alterado


pelo Decreto-Lei 98/94, de 18 de Abril, que transforma todas as
contravenções fiscais aduaneiras em contra-ordenações (art. 2º), o
Decreto-Lei 20 A/90, de 15 de Janeiro, alterado pelo Decretos-Lei
394/93, de 24 de Novembro e 140/95, de 14 de Junho, que
transforma várias infracções fiscais não aduaneiras em contra-
ordenações, o novo Código da Estrada, contido no Decreto-Lei
114/94, de 3 de Maio, alterado pelo DL 214/96 de 20/11, pelo DL
2/98, de 3/1 e republicado pelo DL265-A/2001 de 28/11, etc..

A fundamentação normalmente invocada para as exigências de


descriminalização baseia-se num conceito material de crime, ou
seja, um conceito de infracção que congregue a indicação das
características que deve apresentar um comportamento humano
para que o Estado esteja legitimado a declará-lo punível. Como é
evidente, um tal conceito material de crime não pode extrair-se da
lei ordinária, tem que ser transcendente ao ordenamento jurídico-
penal. Terá que ser encontrado na ordenação axiológico-
constitucional, pois só a Constituição limita o legislador penal
ordinário.

O conceito material de crime subjacente ao movimento de


descriminalização, nomeadamente, nos dois domínios supra-
mencionados (crimes sexuais e matéria das contra-ordenações),
assenta em determinado entendimento da doutrina do bem jurídico,
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conjugado com a exigência de que o Estado só sujeite a sanções


penais condutas socialmente danosas, para tutelar bens jurídicos
indispensáveis ao livre desenvolvimento da personalidade de cada
homem e ao funcionamento do sistema-social global (e não, por
exemplo, para reprimir actos imorais, como a prostituição ou,
eventualmente, a homossexualidade praticada de livre vontade
entre indivíduos adultos, os quais, como já se viu, não são punidos
no Direito Penal português vigente; cfr., a respeito da
homossexualidade com menor entre os 14 e os 16 anos, o art. 175
e, com menor de 14 anos, o art. 172, nº2 (abrangendo entre os
casos nele previstos também o da homossexualidade), do Código
Penal revisto).

1.2. O conceito de bem jurídico, postulado pela primeira vez, em 1834,


por Birnbaum (“Über das Erfordernis einer Rechtsverletzung zum Begriff
des Verbrechens”, in Archiv des Criminalrechts, Neue Folge, Band 15, 1834,
p. 149 ss.), tem tido uma evolução histórico-dogmática acidentada,

que aqui não pode ser exposta. Importa apenas referir, para o
afastar como base possível de um conceito material de crime, o
conceito metódico de bem jurídico, propugnado por Honig (1919),
Grünhut (1930) e Schwinge (1930), que consideravam o bem
jurídico apenas uma forma abreviada de exprimir o sentido e a
finalidade de um conceito legal, ou seja: uma expressão sintética
do espírito da lei, da "ratio legis".
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Como é evidente, o conceito metódico de bem jurídico não pode,


em caso algum, servir de base à censura, dirigida ao legislador, por
ter cominado sanções penais para comportamentos que não
ofendem bens jurídicos. É que, entendendo-se o bem jurídico como
expressão sintética da ratio legis, nunca poderá haver preceitos
incriminadores que não protejam bens jurídicos, pois todo o
preceito, por mais criticável que seja, prossegue sempre um
determinado objectivo, tem sempre uma ratio legis. Assim, no
exemplo referido da homossexualidade entre adultos, poderia
dizer-se que o bem jurídico é a "diversidade de sexo dos parceiros
de actos sexuais" ou algo semelhante, o que tornaria impossível, à
partida, qualquer crítica ao legislador, com base no argumento de
que ele considerou punível um comportamento não ofensivo de
bens jurídicos.

O conceito metódico de bem jurídico é, em suma, imanente ao


Direito Penal positivo e apenas útil como instrumento da sua
interpretação. Mas só um conceito de bem jurídico transcendente
ao Direito Penal positivo pode servir de base a uma apreciação
crítica das soluções estabelecidas pelo legislador penal. Pois, como
nota Roxin (Strafrecht, Allg. Teil, Bd. I, 3ª ed., C.H.Beck, München, 1997, §
2 IV, nº 9 ss., cuja leitura se recomenda. Há tradução para espanhol, por
Miguel Díaz y Garcia Conlledo/Javier de Vicente Remesal, da 2ª ed. alemã,
com o título Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Civitas, Madrid, 1997. Na
nossa Doutrina cfr. no mesmo sentido, por todos, Figueiredo Dias, Temas
Básicos da Doutrina Penal, Coimbra, 2001, ps. (34-64) 42 ss.- cujo texto
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corresponde, com alguns desenvolvimentos e alterações, ao texto contido em


Figueiredo Dias/Costa Andrade, Direito Penal, Questões Fundamentais, A
doutrina geral do crime, Coimbra, 1996, ps. (43-73) 52 ss..- bem como Taipa
de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra, 2003, ps. (60-72) 66 ss.) se

o conceito material de crime visa fornecer ao legislador um critério


político-criminal limitativo do poder de punir, isto é, que limite o
poder punitivo do Estado e o vincule quanto às condutas a punir,
então o conceito material de crime terá que partir de um conceito
de bem jurídico-penal (ou bem jurídico com “dignidade penal),
dedutível da Constituição, que é a única limitação imposta ao
legislador num Estado de Direito, assente nos princípios
Constitucionais. Esta ideia é hoje absolutamente dominante, quer
na Doutrina estrangeira, quer na portuguesa (cfr., na Doutrina
portuguesa, além de Figueiredo Dias e Taipa de Carvalho, supra referidos, por
exemplo, Costa Andrade, "A Nova Lei dos Crimes contra a Economia ...", in:
Direito Penal Económico, C.E.J., 1985, p. 83 ss.; idem, Consentimento e
Acordo em Direito Penal, 1990, ps. 51 ss.; Karl Natscheradetz, O Direito
Penal Sexual, Conteúdo e Limites, 1985, p. 101 ss.; Maria da Conceição
Ferreira da Cunha, Constituição e Crime ..., 1995, p. 115 ss.; Taipa de
Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, Porto, 2003,
ps. 60 ss, cuja leitura recomendamos; idem, "Condicionalidade Sócio-Cultural
do Direito Penal", Estudos em Homenagem aos Profs. M. Paulo Merêa e G.
Braga da Cruz, 1985, p. 91 s.).
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1.3. Como já referimos, o movimento de descriminalização das últimas


décadas, apoiado num conceito material de crime donde resulta que
o Estado só pode incriminar condutas humanas para tutelar bens
jurídicos fundamentais à convivência pacífica entre os cidadãos,
tem-se feito sentir, nomeadamente, na exigência de redução do
âmbito dos crimes sexuais. A este respeito, há a assinalar o
aparecimento na literatura penalista, há quase quatro décadas (cfr. a
monografia de Jäger, Strafgesetzgebung und Rechtsguterschutz bei
Sittlichkeitsdelikten, 1957), de uma corrente de opinião, que hoje conta

numerosíssimos defensores no estrangeiro e em Portugal (entre os


quais se contam entre nós, por exemplo, Anabela Rodrigues, Cortes
Rosa, Costa Andrade, Costa Pinto, Fernanda Palma, Figueiredo
Dias, Karl Natscheradetz, Lopes Rocha, Maria da Conceição
Ferreira da Cunha, Sousa e Brito, Taipa de Carvalho, Teresa
Beleza), segundo a qual não é legítimo ao Estado declarar puníveis
actos com significado sexual que, por muito imorais que sejam, não
violam a liberdade sexual de ninguém nem são praticados em
público ou noutras circunstâncias de que possa resultar qualquer
ofensa de interesses atendíveis de terceiros, numa sociedade
pluralista.

1.4. A outra exigência, também já antes referida, feita com particular


intensidade pelo movimento de descriminalização das últimas
décadas, consiste na criação e ampliação do âmbito de aplicação
das contra-ordenações (com a consequente redução do âmbito do
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Direito Penal, sobretudo quanto à matéria das actuais


contravenções). Os pioneiros desta exigência foram Goldschmidt,
com a sua obra sobre "O Direito Penal Administrativo", publicada
no princípio do presente século ("Das Verwaltungsstrafrecht",
1902) e Erick Wolf, com um artigo de 1930 sobre "A posição dos
delitos administrativos no sistema do Direito Penal" ("Die Stellung
der Verwaltungsdelikte im Strafrechtsystem", Festgabe für Frank,
Bd. II, 1930, p. 516 ss). Estes dois autores - bem como, mais tarde,
Eberahrd Schmidt - assentavam na ideia de que o Direito Penal só
deve punir condutas ético-socialmente relevantes e tutelar bens
jurídicos cuja existência seja anterior aos comandos estaduais que
visam a sua protecção - como acontece com a vida ou a integridade
física e a generalidade dos bens que são objecto dos direitos
individuais. Já não deveriam, porém, ser abrangidas pelo Direito
Penal condutas cuja relevância ético-social é consequência das
próprias injunções que as proíbem e não atingem quaisquer bens
que já existam anteriormente a essas injunções: pense-se, por
exemplo, na violação da proibição de parquear um veículo em
determinado local. Em casos como este último, estar-se-ia perante
simples actos de desobediência aos comandos estaduais, que
deveriam ser excluídos do âmbito do Direito Penal, e sujeitos a
sanções de outro tipo, menos graves e que não envolvessem uma
estigmatização comparável à que está ligada à pena.
34

Nesta linha de orientação, surgiram na Alemanha - já em 1949,


com a lei penal da Economia (Wirtschaftsstrafgesetz), bem como,
com âmbito mais largo, em 1952 e 1968, com a lei das contra-
ordenações (Ordnungswidrigkeitsgesetz) - diplomas legais que
criaram e regularam a figura da contra-ordenação, que veio a ser
introduzida em Portugal pelo Decreto-Lei 232/79, de 24 de Julho,
revogado e substituido pelo Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro,
o qual (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 356/89, de
17 de Outubro e pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro)
constitui a lei-quadro, actualmente em vigor, do direito de mera
ordenação social.

1.5. Está, porém, longe de ser pacífica, na literatura penalista actual, a


resposta a dar à questão de saber se os crimes se distinguem das
contra-ordenações de acordo com um critério qualitativo - como o
de Goldschmidt e Erick Wolf, que, no essencial, é o que vem sendo
sustentado entre nós, desde 1969, por Figueiredo Dias (in: Jornadas
de Direito Criminal, edição do Centro de Estudos Judiciários, Fase
I, 1983, p. 315 ss., 328) e, embora com fundamentação diversa,
também por Eduardo Correia (Boletim da Faculdade de Direito, nº
49, 1973, p. 266 ss.) e Teresa Beleza, (Direito Penal, v.I., 2ª. ed.,
1985, p. 133) -, ou com base num critério puramente quantitativo,
estabelecido em função da gravidade do ilícito e/ou da sanção -
como defendem, por exemplo, Schmidhäuser e Stratenwerth, ou,
por vias entre si diferentes, na Doutrina portuguesa, Beleza dos
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Santos (Revista da Ordem dos Advogados, Ano 5 (1945), p.39 ss.),


Costa Andrade (Revista de Direito e Economia, Anos VI e VII
(1980/81), p. 116 ss.) e Cavaleiro de Ferreira (Lições de Direito
Penal, 1992, p.92) -, ou, por último, de um critério misto,
propugnado, em termos divergentes entre si, por Jakobs, Jescheck e
Roxin, entre numerosos outros autores.

1.6. Estamos inteiramente de acordo quanto à necessidade de se


excluirem do âmbito do Direito Penal actos como, por exemplo, a
homossexualidade praticada entre adultos, de livre vontade e sem
ofensa dos interesses atendíveis de terceiro, ou qualquer conduta
imoral não lesiva de bens jurídicos, tal como estamos de acordo em
que, por exemplo, a categoria das contravenções deve ser eliminada
do nosso Direito Penal, logo que possível, transformando-se a
maior parte das actuais contravenções em contra-ordenações, sem
prejuízo de algumas contravenções passarem, eventualmente, a
constituir crimes (cfr., como realização prática destas ideias, entre
outros, os diplomas indicados supra, em 1.1.) e ainda outras
poderem deixar de ser, pura e simplesmente, sancionadas, tudo
com base num estudo sistemático das contravenções vigentes (cfr.,
neste sentido, Figueiredo Dias, in: Jornadas de Direito Criminal,
ed. do Centro de Estudos Judiciários, Fase I, 1983, p. 315 ss. e 325
s.). Mas será isto vinculativo para o legislador?
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1.7. A resposta terá de procurar-se na Constituição, à qual o legislador


penal, como legislador ordinário, está sujeito. É a Constituição que
fornece o quadro de valores fundamentais da ordem jurídica,
nomeadamente através da definição dos direitos, liberdades e
garantias, no respeito dos quais se funda o Estado e que só podem
ser limitados na medida do estritamento necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos. Esses valores fundamentais são a base dos princípios de
política criminal que hão-de inspirar a actividade do legislador
penal e, ao mesmo tempo, servir de critério delimitador do Direito
Penal. As opções axiológicas expressas na Constituição terão de ser
respeitadas pelo legislador quando decide incriminar ou
desincriminar comportamentos. Só delas pode ser retirado um
conceito de bem jurídico em que se apoie um conceito material de
crime vinculativo para o legislador. O conceito material de crime
terá de resultar, pois, de um conceito de bem jurídico prévio ao
Direito Penal positivo, mas não prévio à Constituição.

Ora, dos princípios acolhidos na nossa Constituição e das


valorações a ela subjacentes - mais concretamente de preceitos
como os dos arts. 1º, 2º, 13º, nº.2 e 18, nº.2 - pode retirar-se um
conceito de bem jurídico capaz de servir de suporte a um conceito
material de crime vinculativo para o legislador ordinário. Esse
conceito de bem jurídico pode ser definido nos seguintes termos:
bens jurídicos são entes (individualizáveis no plano ôntico e/ou
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no plano axiológico) ou objectivos (finalidades), úteis á livre


expansão da personalidade dos indivíduos, no âmbito de um
sistema social global orientado para essa livre expansão, ou ao
funcionamento do próprio sistema.

Esta definição de bens jurídicos, como base de um conceito


material de crime, está muito próxima da proposta por Roxin
(Strafrecht Allg. Teil, Bd.I, 2ª. ed. 1994, § 2, nº 9) em face da
Constituição alemã, cujos princípios e valorações fundamentais,
nos domínios que aqui nos interessam, não divergem dos acolhidos
pelo legislador constitucional português.

De tal definição retira-se que é vedado ao legislador incriminar um


comportamento, quando a incriminação, à partida, não possa ser
útil à livre expansão da personalidade dos indivíduos nem ao
funcionamento de um sistema social em que a livre expansão da
personalidade de cada um deva co-existir com a da personalidade
dos outros. Isto exclui, desde logo, incriminações arbitrárias (por
exemplo, comportamentos que consistam na recusa de prestar
reverência a determinado símbolo) ou incriminações que
prossigam objectivos meramente ideológicos (por exemplo, as
incriminações de casamentos que possam pôr em perigo a "pureza"
de uma raça), ou incriminações de actos que, apesar de imorais
não afectam a liberdade de ninguém (por exemplo, a sodomia, ou
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a homossexualidade, praticada de livre vontade entre adultos, em


local não público).

2. A subsidiaridade da tutela penal de bens jurídicos

2.1. A exigência de que a incriminação de um comportamento se destine


a tutelar bens jurídicos, no sentido apontado, é apenas uma das
consequências do conceito material de crime que podem extrair-se
da Constituição.

2.2. A outra consequência, que se infere, sobretudo do art. 18, nº2, da


nossa Lei Fundamental, corresponde ao princípio da
subsidiaridade do Direito Penal, também denominado princípio da
mínima intervenção do Estado em matéria penal ou da máxima
restrição das penas. Binding (Lehrbuch BT, Bd. I, 2ª. ed., 1902, p.
20 ss.) falava a este respeito no carácter fragmentário do Direito
Penal. Todas estas expressões têm como conteúdo a asserção de
que a cominação de sanções penais há-de constituir sempre a
"ultima ratio" da política social. Ou, por outras palavras: só é
lícito ao legislador incriminar um comportamento quando a tutela
do bem ou bens jurídicos que ele tem em vista proteger com a
incriminação não puder ser conseguida através do recurso a outros
meios menos gravosos, nomeadamente a meios próprios do Direito
Privado ( por exemplo, obrigação de indemnização), ou de Direito
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Administrativo (por exemplo, injunções policiais), ou do Direito


das Contra-Ordenações (coima), etc.. Como diz Figueiredo Dias
(Direito Penal Português, 1993, § 41) "o direito penal só pode
intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições
comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização
da personalidade de cada homem". É que as sanções penais
(sobretudo, mas não só, as penas privativas da liberdade)
constituem a mais grave intromissão do Estado na esfera de
liberdade dos indivíduos e são também aquelas que têm efeitos
estigmatizantes mais intensos (atingindo, portanto, em regra, mais
marcadamente do que quaisquer outras formas de intromissão
estadual, o bom nome e a reputação das pessoas a que são
aplicadas). O art. 18, nº2, da Constituição, ao estabelecer que as
restrições aos direitos, liberdades e garantias, devem limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, consagra, implicita, mas
claramente, o carácter subsidiário da tutela jurídico-penal.

Este princípio da subsidiaridade do Direito Penal ou da mínima


intervenção do Estado em matéria penal implica ainda que mesmo
aqueles bens jurídicos que devem ser protegidos pelo Direito Penal,
não o devem ser contra quaisquer agressões, mas apenas contra as
formas mais graves de agressão. Manifestação disso, no nosso
ordenamento jurídico-penal, é, por exemplo, a não punição do dano
negligente (cfr. arts. 212 ss. ), ou a não punição do furto do uso de
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quaisquer objectos, mas apenas veículos motorizados, barcos,


aeronaves e bicicletas (cfr. art. 208).

Além disso, o princípio de subsidiaridade ou da mínima


intervenção do Direito Penal determina que a gravidade da pena
seja proporcional à gravidade da ofensa e aos valores protegidos
pela incriminação. Implica, portanto, um princípio de
proporcionalidade. Afloramento deste princípio encontramo-lo em
várias disposições do nosso Código Penal. Sirva de exemplo,
quanto aos valores protegidos, o confronto entre o art. 131 (onde se
pune o homicídio doloso simples com uma pena de prisão de 8 a 16
anos) e o art. 143 (onde se punem as ofensas corporais dolosas
simples com uma pena de prisão até 3 anos ou multa); quanto à
gravidade da ofensa compare-se, por exemplo, o art. 143 com o art.
144 (ofensa à integridade física grave, cuja pena pode ir de 2 a 10
anos de prisão) ou o art. 203 (onde se pune o furto simples com
uma pena até 3 anos de prisão ou multa) com o art. 204 (onde se
pune o furto qualificado com penas que podem ir até 5 anos de
prisão ou multa até 600 dias, no caso do nº 1, e pena de prisão de 2
a 8 anos, no caso do nº 2).

2.3. É neste requisito do conceito material de crime, reflectido no


princípio da subsidiaridade do Direito Penal - e não na ideia de
que as contra-ordenações não ofendem qualquer bem jurídico - que
se funda, a nosso ver, a legítima reivindicação de que sejam
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excluídos do âmbito do Direito Penal os comportamentos ilícitos


que puderem ser eficazmente combatidos como contra-ordenações
(cujas sanções, como já referimos, nunca podem ser privativas da
liberdade, e não têm efeito estigmatizante). Claro que a margem de
actuação livre do legislador, quanto a este segundo requisito do
conceito material de crime, é forçosamente maior do que em
relação ao primeiro requisito, que impõe a existência de um bem
jurídico a tutelar. Isso deve-se a que, em regra, é bem mais fácil e
seguro detectar, por exemplo, uma incriminação arbitrária, ou uma
incriminação de actos imorais que não ofendem qualquer bem
jurídico, do que afirmar com segurança que determinados
comportamentos ilícitos, lesivos de bens jurídicos, poderiam ser
eficazmente combatidos por meios menos severos do que os do
Direito Penal.

2.4. É agora altura de retomarmos a segunda questão que colocámos de


início (cfr. supra, II, nº 1, b): estará o legislador vinculado a punir
determinados comportamentos ?

O tema ultrapassa o Direito Penal e, como nota Roxin (Strafrecht,


Allg. Teil, Bd.I, 2ª ed., 1994, p. 23, n. 24), só pode ser cabalmente
tratado em conexão com a problemática dos deveres de protecção
constitucionalmente impostos ao Estado (cfr. art. 9º da nossa
Constituição). (Para maiores desenvolvimentos sobre os deveres de
protecção constitucionalmente impostos ao Estado, veja-se, entre
42

nós, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição


Portuguesa de 1976, 1983, p. 43 ss. e 193 ss.).

A questão de saber se o legislador está constitucionalmente


obrigado a incriminar determinados comportamentos tem sido
discutida, sobretudo, a propósito do aborto, mas pode,
evidentemente, colocar-se relativamente a outros comportamentos
gravemente lesivos de bens jurídicos fundamentais à sobrevivência
da sociedade. (Para maiores desenvolvimentos cfr., na literatura
portuguesa, M. Conceição Ferreira da Cunha, «Constituição e
Crime», 1995, p. 271 ss.. A autora analisa a questão de saber se, e
em que medida, está o legislador constitucionalmente obrigado a
tutelar penalmente bens jurídicos fundamentais, abordando o
problema tanto da perspectiva da obrigatoriedade de incriminar
condutas lesivas de bens jurídicos fundamentais, como de manter
incriminações já existentes para protecção desses mesmos bens.
Veja-se, também, Costa Andrade, "O Novo Código Penal e a
Moderna Criminologia", in: Jornadas de Direito Criminal, O Novo
Código Penal Português e Legislação Complementar , C.E.J., 1983,
p. 227 s., n. 34).

Em nosso entender - e tendo presente que o Direito Penal deve


limitar-se à protecção subsidiária de bens jurídicos fundamentais à
sobrevivência da sociedade - pode dizer-se que, de um modo geral,
o legislador deverá incriminar aqueles comportamentos tão
43

gravemente lesivos de bens jurídicos fundamentais que impedem as


condições minímas essenciais de vida em sociedade, desde que não
possam ser combatidos eficazmente através do recurso a meios
menos gravosos do que os que são próprios do Direito Penal. Se o
não fizer, estará a violar (por omissão) o dever de assegurar a
coexistência pacífica dos indivíduos na comunidade estadual.
Poderá afirmar-se então, com Baptista Machado (Introdução ao
Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p. 59), "que a ideia de
estado de Direito se demite da sua função quando se abstém de
recorrer aos meios preventivos e repressivos que se mostrem
indispensáveis à tutela da segurança, dos direitos e liberdades dos
cidadãos".

3. Delimitação da pena como meio de tutela subsidiária de bens


jurídicos perante outras sanções (coima e sanções disciplinares)

3.1. Do que acima fica exposto (2.2. e 2.3.) resulta já que -


contrariamente ao que defende o Prof. Figueiredo Dias - não se nos
afigura possível fazer uma delimitação rigorosa das contra-
ordenações perante os crimes, em função de um critério puramente
qualitativo. A justificação desta posição exigiria, porém, que
entrássemos agora em alguns domínios do Direito Penal (como o
dos crimes de perigo abstracto, ou o das normas penais em branco),
cuja exposição não nos parece conveniente antecipar.
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Limitar-nos-emos, por agora, a acentuar, que é, fundamentalmente,


através da diversidade de sanções - pena, por um lado, e coima por
outro - que o crime se distingue da contra-ordenação: a coima
nunca tem carácter privativo da liberdade e o seu efeito
estigmatizante, se alguma vez existe, é incomparavelmente menor
do que o da pena, nomeadamente da pena pecuniária, que é a pena
de multa.

Uma confirmação do carácter quantitativo (ou predominantemente


quantitativo) da distinção entre crimes e contra-ordenações é, a
nosso ver, por exemplo, a razoabilidade das propostas feitas pelos
penalistas alemães autores do "Projecto alternativo de uma lei
contra o furto em estabelecimentos", de 1974, no sentido de ser
considerado simples contra-ordenação o furto de objectos de
pequeno valor, cometido num supermercado por um delinquente
primário.

3.2. As sanções disciplinares destinam-se a assegurar o bom


funcionamento de organizações estaduais de particular importância
(funcionalismo público, Forças Armadas, pessoas detidas em
estabelecimentos prisionais), ou de certas profissões (médicos,
advogados, etc.).
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As normas de Direito Disciplinar aplicáveis aos funcionários


públicos estão contidas, fundamentalmente, no Estatuto Disciplinar
dos Funcionários e Agentes da Administração, aprovado pelo
Decreto-Lei 24/84 de 16 de Janeiro, em cujo art. 1º se estabelecem
sanções que vão desde a repreensão escrita até à demissão. A pena
de demissão da função pública estava também prevista como pena
acessória no art. 66º da versão originária do Código Penal de 1982,
tendo sido substituída, no Código Penal revisto, pela pena acessória
de proibição do exercício da função por um período entre 2 a 5
anos (art. 66º).

Sustenta-se, em regra, a existência de uma diferença qualitativa


entre o ilícito penal e o ilícito disciplinar. No entanto, esta posição,
que é posta em causa por penalistas de nomeada, como Jakobs
(Strafrecht, Allg. Teil, 2ª ed., 1991, Cap.3, nºs 15 ss.), Roxin
(Strafrecht, Allg. Teill, Bd. I, 2ª ed., 1994, § 2, nº 43 ss.), etc., não
convence. É o princípio da subsidiaridade da tutela penal, e só ele,
que deve nortear o legislador na opção entre cominar uma sanção
disciplinar ou uma pena. Em regra, tudo estará em "pesar" o alarme
social provocado pelo acto ilícito, fora dos quadros da organização
em que o agente se integra: assim, o funcionário corrupto abala de
tal modo a confiança da generalidade das pessoas na Administração
Pública que a sanção disciplinar se afigura insuficiente, tornando-se
necessária a incriminação. Noutros casos, será bastante a aplicação
da sanção disciplinar.
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A concepção que deixamos esboçada não esquece as diferenças


consideráveis do regime aplicável ao crime, por um lado, e ao
ilícito disciplinar, por outro, desde logo no que respeita ao
princípio da tipicidade, à extensão do princípio da legalidade e ao
princípio da jurisdicionalidade.

Por outro lado, ela abre o caminho para a solução a dar à questão
de saber se podem ser aplicadas uma sanção disciplinar e uma pena
a um agente, pelo mesmo facto, sem ofensa do princípio "ne bis in
idem". É certo que a garantia contida no art. 29, nº5, da
Constituição, literalmente só proíbe que alguém seja julgado mais
do que uma vez "pela prática do mesmo crime". Mas a simples
diversidade de denominações - "crime", por um lado, e "falta
disciplinar" ou "ilícito disciplinar", por outro - não pode ser
decisiva para afastar a aplicação desse preceito constitucional. O
que importa são as valorações materiais a ele subjacentes.

Em princípio, têm razão os autores que sustentam existir violação


do princípio "ne bis in idem" quando são aplicadas uma pena
criminal e uma sanção disciplinar ao mesmo facto (assim, entre
nós, Teresa Beleza, Direito Penal, v. I, 2ª ed., 1985, p. 104 ss.).
Não se diga, em contrário, que o Direito Disciplinar é um "aliud"
em relação ao Direito Penal, ocupando-se este da repercussão
externa, sobre a comunidade, da violação dos deveres funcionais,
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enquanto aquele versaria sobre a repercussão interna, na ordem da


Administração, da infracção de tais deveres (assim Silva Dias,
Apontamentos de Direito Penal - P.G., U.L., 1992/93, p.47). A
verdade é que, por exemplo, a pena de prisão de 1 a 8 anos,
aplicável ao crime de corrupção passiva para acto ilícito (art. 372
do C.P. revisto) não visa repercutir-se apenas, nem se repercute
somente, sobre a comunidade, em geral, relegando para a sanção
disciplinar a dissuasão dos funcionários públicos da prática de tais
actos. Pelo contrário: aquela pena é cominada pelo legislador
também para ter eficácia dissuasória em relação aos funcionários
públicos. Por isso, aplicar, pela prática de um mesmo facto, a pena
do art. 372 do C.P. e uma sanção disciplinar, corresponde a violar,
materialmente, o princípio "ne bis in idem". E o mesmo se diga
"mutatis mutandis" da aplicação paralela de penas criminais e
sanções disciplinares à generalidade dos factos que constituem
crimes cometidos no exercício das funções públicas, mesmo que se
trate de crimes patrimoniais cuja única particularidade é serem
cometidos por funcionários em exercício de funções. Em todos
estes casos, o juízo de desvalor traduzido na sanção disciplinar
está já contido na pena criminal e, por isso, a aplicação de ambas as
sanções viola o disposto no art. 29, nº5, da Constituição.

Só excepcionalmente é que a aplicação de uma sanção disciplinar a


um facto que é punido como crime poderá justificar-se. Isso
acontecerá quando a aplicação da sanção disciplinar reflectir um
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juízo de desvalor específico, não abrangido pela aplicação da pena


criminal. Jakobs (ob. cit., ed. cit., Cap. 3, nº19, alínea b)) dá a este
respeito o exemplo de um funcionário dos correios que, por
negligência, conduz em estado de embriaguez o veículo automóvel
onde transporta a correspondência e as encomendas que tem por
missão distribuir. Observa Jakobs, com razão, que a punição deste
funcionário, exclusivamente nos termos do Código Penal (entre
nós, pelo crime do art. 292 C.P. revisto) não reflectiria o específico
desvalor que consistiu em ter sido posta em perigo a distribuição da
correspondência e das encomendas aos respectivos destinatários.
Tal desvalor só pode ser devidamente sancionado através da pena
disciplinar. Por isso, a aplicação desta, ao lado da pena criminal,
não viola, no caso concreto, o princípio "ne bis in idem".

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