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NOVINSKY, Anita. A Igreja no Brasil colonial: agentes da Inquisição. Anais do Museu
Paulista. São Paulo: USP, 1984, pp. 17 – 34.
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LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao
Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 117.
Esta oração encontra-se presente em três casos de confissão: a de
Manoel Pacheco3, de Manoel Nunes da Silva4 e de Lourenco Rodrigues5.
Invocado como Sam Marcos de Veneza, o 34º papa católico, São
Marcos, do ano de 336, é um santo italiano canonizado do qual temos muito
pouco acesso a sua história oficial, já que pertencia ao cristianismo antigo
carente de fontes.
Sua história foi certamente reinterpretada, sendo subentendido nas
orações como alguém que acalmou leões com a palavra divina, provavelmente
porque foi confundido com um mártir ou ao menos, com alguém que tivesse
enfrentando um risco real de martírio. Contudo, a sua história oficial em nada
menciona tais acontecimentos, mas sim o de ser o primeiro papa a
documentalmente arquivar e divulgar os cristãos que morreram mártires, por
meio do Depositio martyrum6.
A oração herética era recitada sempre com um objetivo em comum:
abrandar o coração de uma mulher, fazendo-a apaixonar-se pelo orante. Mas
qual era a relação entre a invocação do santo casto e o abrandamento do
coração de uma mulher?
Provavelmente a questão central esteja focada na crendice popular
colonial que não se pautava tanto na história real do santo, mas sim em um
imaginário que foi criado, perante a força de sua palavra, para então, interceder
para o sucesso amoroso do pedinte.
Foi assim que aconteceu com Manoel Pacheco de Madureyra XV, aos
quatro dias do mês de novembro de 1765, que, ao apresentar-se a mesa
inquisitorial, confessou que um índio forasteiro havia lhe ensinado a oração de
Sam Marcos, da seguinte forma:
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LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao
Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 236.
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LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao
Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 239.
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LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao
Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 242.
6
A vida do Papa São Marcos. Disponível em http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/papas-
catolicos/marcos.php. Acesso em 28/09/09.
Entretanto, Manoel Pacheco ao perceber que a oração não surtira efeito
algum, buscou compatibilizar-se novamente a ortodoxia da fé católica por meio
da confissão.
Da mesma forma aconteceu aos três dias do mês de abril de 1766, na
confissão de Manoel Nunes da Silva, que cometeu o mesmo pecado,
tangenciando uma blasfêmia, já que pronunciara heresias. Instigado, o
confessor afirmou que após aprender a oração, não hesitou em recitá-la:
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LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao
Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 237.
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LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao
Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 240.
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LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao
Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978, pp. 243-244.
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LARA, Sílvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: Livro V – Título XVIII – Do que dorme per
força com qualquer mulher, ou trava della, ou leva per sua vontade.
no entanto, a gravidade parece residir mais na deturpação doutrinal pela
oração do que no desejo de adultério.
É neste sentido que se evidencia nossa abordagem, partindo do
simbolismo pelo qual comungava a mentalidade setecentista brasileira, uma
vez que a observância pelas práticas adúlteras era impossível diante do
tamanho da colônia, contudo, a vigilância e repressão sobre matérias de fé,
como era o caso de orações, feria diretamente a base catequética e doutrinal
da evangelização.
Logo, o ato da cobiça e do desejo carnal em ter uma mulher não era o
centro do pecado herético, mas sim, a utilização de uma oração para atingir
este objetivo, principalmente invocando um santo, de forma intolerável para
Igreja pós Concílio de Trento que posicionou-se, conforme afirma Ronaldo
Vainfas, como uma “cidade sitiada”11, reafirmando regidamente os dogmas,
como forma de responder a Reforma, e por isso, a oração a São Marcos, como
uma releitura popular de um artigo de fé, participa de uma gravidade simbólica
inaceitável aos olhares inquisitoriais, somente passível de remissão, pela
contrição da confissão e aceitação de penitência purgatória.
Referências bibliográficas:
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo: Companhia das letras,
1997.
11
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo: Companhia das letras, 1997, p. 19.