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REVISTA BRASILEIRA DE

SAÚDE
RBSO OCUPACIONAL
ISSN 0303 - 7657

RBSO Vol.32 • nº 115


jan/jun 2007

Acidentes do trabalho e sua prevenção


Work accidents and their prevention
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro do Trabalho e Emprego
Carlos Lupi

FUNDACENTRO

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REVISTA BRASILEIRA DE

SAÚDE
RBSO OCUPACIONAL
ISSN 0303 - 7657

Editores Científicos Vilma Sousa Santana – UFBA, Salvador-BA

RBSO
Eduardo Algranti – Fundacentro, São Paulo-SP Victor Wünsch Filho – USP, São Paulo-SP
José Marçal Jackson Filho – Fundacentro, Rio de
Janeiro-RJ Secretaria Executiva
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Editores Associados Vol.32 • nº 115
jan/jun 2007

José Prado Alves Filho – Fundacentro, São Paulo-SP Secretaria


Mina Kato – Fundacentro, Salvador-BA Rúbia Rosa Gomes Veríssimo
Rose Aylce de Oliveira Leite – Fundacentro, Estagiários
Florianópolis-SC Karla Machado
Editor Executivo José Gomes Pedrosa Neto Acidentes do trabalho e sua
prevenção
Eduardo Garcia Garcia – Fundacentro, São Paulo-SP Equipe de produção gráfica
Work accidents and their
prevention

Editores do número temático Elisabeth Rossi – coordenação


Ildeberto Muniz de Almeida – Unesp, Botucatu-SP Mina Kato/Elena Elisabeth Riederer – revisão de inglês
José Marçal Jackson Filho – Fundacentro, Rio de Glaucia Fernandes – criação capa, design capa e miolo
Janeiro-RJ Karina Penariol Sanches – revisão de textos
Dorival Barreiros – Fundacentro, São Paulo-SP Marcos Rogeri – impressão gráfica

Conselho Editorial Indexação


Ada Ávila Assunção – UFMG, Belo Horizonte-MG • CIS/ILO - International Occupational Safety and
Carlos Minayo Gomez – Fiocruz, Rio de Janeiro-RJ Health Information Centre/International Labor
Dalila Andrade de Oliveira – UFMG, Belo Horizonte- Organization
MG • REPIDISCA / BVSDE - Red Panamericana de Infor-
Francisco de Paula Antunes Lima – UFMG, Belo mación en Salud Ambiental / Biblioteca Virtual en
Horizonte-MG Desarrollo Sostenible y Salud Ambiental
Ildeberto Muniz de Almeida – Unesp, Botucatu-SP
Leny Sato – USP, São Paulo-SP Copyright
Maria Elisa Pereira Bastos Siqueira – Unifal, Alfenas-MG Os direitos autorais dos artigos publicados na Revista
Mário César Ferreira – UnB, Brasília-DF Brasileira de Saúde Ocupacional pertencem à
Raquel Maria Rigotto – UFC, Fortaleza-CE Fundacentro e abrangem as publicações impressa, em
Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel – UECE, formato eletrônico ou outra mídia.
Fortaleza-CE A reprodução total ou parcial dos artigos publicados
Renato Rocha Lieber – Unesp, Guaratinguetá-SP é permitida mediante menção obrigatória da fonte e
Selma Borghi Venco – Unicamp, Campinas-SP desde que não se destine a fins comerciais.

Política Editorial

A RBSO é uma publicação científica da Fundacentro. Com freqüência semestral, des-


tina-se à difusão de artigos originais de pesquisas sobre Saúde e Segurança no Trabalho
(SST) cujo conteúdo venha a contribuir para o entendimento e a melhoria das condições
de trabalho, para a prevenção de acidentes e doenças do trabalho e para subsidiar a dis-
cussão e a definição de políticas públicas relacionadas ao tema.
A RBSO publica artigos de relevância científica no campo da Saúde e da Segurança no
Trabalho. As contribuições de pesquisas originais inéditas são consideradas prioritárias
para publicação. Com caráter multidisciplinar, a revista cobre os vários aspectos da SST
nos diversos setores econômicos do mundo do trabalho, formal e informal: relação saú-
de-trabalho; aspectos conceituais e análises de acidentes do trabalho; análise de riscos,
gestão de riscos e sistemas de gestão em SST; epidemiologia, etiologia, nexo causal das
doenças do trabalho; exposição a substâncias químicas e toxicologia; relação entre saúde
dos trabalhadores e meio ambiente; comportamento no trabalho e suas dimensões fisio-
lógicas, psicológicas e sociais; saúde mental e trabalho; problemas musculoesqueléticos,
distúrbios do comportamento e suas associações aos aspectos organizacionais e à reestru-
turação produtiva; estudo das profissões e das práticas profissionais em SST; organização
dos serviços de saúde e segurança no trabalho nas empresas e no sistema público; regu-
lamentação, legislação, inspeção do trabalho; aspectos sociais, organizacionais e políticos
da saúde e segurança no trabalho, entre outros.
A revista visa, também, incrementar o debate técnico-científico entre pesquisadores,
educadores, legisladores e profissionais do campo da SST. Nesse sentido busca-se agregar
conteúdos atuais e diversificados na composição de cada número publicado, trazendo
também, sempre que oportuno, contribuições sistematizadas em temas específicos.
O título abreviado da revista é Rev. bras. saúde ocup., forma que deve ser usada em
bibliografias, notas de rodapé, referências e legendas bibliográficas.
RBSO Vol.32 • nº 115
jan/jun 2007

Sumário
Editorial 4 A Saúde do Trabalhador como problema público ou a ausência do Estado
como projeto
José Marçal Jackson Filho, Eduardo Garcia Garcia, Ildeberto Muniz de Almeida

Apresentação 7 Acidentes e sua prevenção


Ildeberto Muniz de Almeida, José Marçal Jackson Filho

Artigos 19 A persistência da noção de ato inseguro e a construção da culpa: os discursos


sobre os acidentes de trabalho em uma indústria metalúrgica
Fábio de Oliveira

29 Acidente do trabalho investigado pelo CEREST Piracicaba: confrontando a


abordagem tradicional da segurança do trabalho
Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela, Renata Wey Berti Mendes, Carmen Aparecida H. Gonçalves

41 Os limites da abordagem clássica dos acidentes de trabalho: o caso do setor


extrativista vegetal em Minas Gerais
Guilherme Ribeiro Câmara, Ada Ávila Assunção, Francisco de Paula Antunes Lima

53 Novas tecnologias construtivas e acidentes na construção civil: o caso da


introdução de um novo sistema de escoramento de formas de laje
Eduardo Diniz Fonseca, Francisco de Paula Antunes Lima

69 Análise de um acidente por contaminação fúngica em uma biblioteca pública


no município do Rio de Janeiro
Maria Cristina Strausz, Jorge Mesquita Huet Machado, Leila de Souza Rocha Brickus

79 A abordagem sociotécnica na investigação e na prevenção de acidentes


aéreos: o caso do vôo RG-254
Vitor Alexandre de Freitas Cardoso, Henrique Luiz Cukierman

99 Contribuições da Clínica da Atividade para o campo da segurança


no trabalho
Maria Elizabeth Antunes Lima

109 Acidentes com material biológico em hospital da Rede de Prevenção de Aci-


dentes do Trabalho – REPAT
Maria Helena Palucci Marziale, Everaldo Jose da Silva, Vanderley José Haas, Maria Lúcia do C. C. Robazzi

121 Saúde do trabalhador no SUS: desafios e perspectivas frente à precarização


do trabalho
Edvânia Ângela de Souza Lourenço, Íris Fenner Bertani

135 A utilização de serviços de saúde por acidentados de trabalho


Vilma Sousa Santana, Gustavo Ribeiro de Araújo, Jônatas Silva do Espírito-Santo, José Bouzas de Araújo-Filho, Jorge Iriart

145 Regulamentação das cadeias de fornecedores para proteger a saúde e segu-


rança de trabalhadores vulneráveis
Michael Quinlan, Richard Johnstone, Phillip James, Igor Nossar

Ensaio 153 Elementos para uma nova cultura em segurança e saúde no trabalho
Jussara Maria Rosa Mendes, Dolores Sanches Wünsch

Resenha 165 Vida e morte no trabalho


Ildeberto Muniz de Almeida
Vol.32 • nº 115
jan/jun 2007 RBSO
Contents
Workers’ Health as a public problem or the absence of the state as a policy 4 Editorial
José Marçal Jackson Filho, Eduardo Garcia Garcia, Ildeberto Muniz de Almeida

Work accidents and their prevention 7 Foreword


Ildeberto Muniz de Almeida, José Marçal Jackson Filho

The persistence of the notion of unsafe act and the construction of blame: 19 Articles
the discourses on work accidents at a metallurgic industry
Fábio de Oliveira

Work related accident investigated by CEREST Piracicaba: confronting the 29


traditional approach of safety at work
Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela, Renata Wey Berti Mendes, Carmen Aparecida H. Gonçalves

The limitations of the traditional approach to work accidents: the case of 41


timber exploitation in Minas Gerais, Brazil
Guilherme Ribeiro Câmara, Ada Ávila Assunção, Francisco de Paula Antunes Lima

Modern building technologies and construction accidents - the case of the 53


introduction of a new slab mould propping system
Eduardo Diniz Fonseca, Francisco de Paula Antunes Lima

Analysis of a fungal contamination accident at a public library 69


in Rio de Janeiro
Maria Cristina Strausz, Jorge Mesquita Huet Machado, Leila de Souza Rocha Brickus

Sociotechnical approach to investigation and prevention of aircraft 79


accidents: the case of flight RG-254
Vitor Alexandre de Freitas Cardoso, Henrique Luiz Cukierman

Clinic of Activity contributions to safety at work 99


Maria Elizabeth Antunes Lima

Accidents involving biological material in a hospital from the Network on 109


Work Accident Prevention – REPAT
Maria Helena Palucci Marziale, Everaldo Jose da Silva, Vanderley José Haas, Maria Lúcia do C. C. Robazzi

Workers’ health at the Public Unified Health System – challenges and 121
perspectives facing precarious work
Edvânia Ângela de Souza Lourenço, Íris Fenner Bertani

Health services utilization by occupational injured workers 135


Vilma S. Santana, Gustavo Ribeiro de Araújo, Jônatas Silva do Espírito-Santo, José Bouzas de Araújo-Filho, Jorge Iriart

Supply chain regulation to protect the occupational health and safety of 145
vulnerable workers
Michael Quinlan, Richard Johnstone, Phillip James, Igor Nossar

Elements for a new culture in labor safety and health 153 Essay
Jussara Maria Rosa Mendes, Dolores Sanches Wünsch

Vida e morte no trabalho 165 Book review


Ildeberto Muniz de Almeida
Editorial

A Saúde do Trabalhador como problema público ou


José Marçal Jackson Filho
a ausência do Estado como projeto
Eduardo Garcia Garcia
Ildeberto Muniz de Almeida Workers’ Health as a public problem or the absence of the state
as a policy

Este número temático da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional trata de


assunto central para o campo da Saúde do Trabalhador: acidentes do trabalho
e sua prevenção.
A prevalência de acidentes e doenças do trabalho é mais um indicador
de desigualdade social e cultural e, portanto, de injustiça. Morre-se mais de
causas associadas ao trabalho nas classes de trabalhadores assalariados do que
nas de profissionais liberais, assim como são variadas as proporções de aciden-
tes do trabalho nas diversas sociedades (WOODING, J.; LEVENSTEIN, C. The
point of production. Work environment in advanced industrial societies. New
York: The Guilford Press, 1999. p. 12-13). Por isso, pode-se dizer que a “saúde
do trabalhador” é um problema público, no sentido proposto por John Dewey
(The public and its problems. Athens: Swallow Press, 1991 [1927]), isto é, que
exige ações mediadoras e reguladoras do Estado.
A manutenção de mecanismos de alocação de responsabilidade baseados
na “culpabilização das vítimas”, descritos já há algum tempo pelas Ciências
Sociais (DOUGLAS, M. Risk acceptability according to the social sciences. New
York: Rusell Sage Foundation, 1985), certamente contribui de forma relevante
para esse problema e, no caso do Brasil, aponta para a insuficiência da ação do
Estado no campo da saúde do trabalhador atestada pelo grande número de aci-
dentes de trabalho notificados. A despeito de todas as evidências da influência
de fatores sistêmicos, a predominância do enfoque que culpabiliza as vítimas
por seus “atos inseguros”, muitas vezes, também é sustentada por agentes pú-
blicos, perpetuando-se, assim, a impunidade nos acidentes do trabalho e a
injustiça social (VILELA, R. A. G.; IGUTI, A. M.; ALMEIDA I. M. Culpa da víti-
ma: um modelo para perpetuar a impunidade nos acidentes do trabalho. Cad.
Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 570-579, 2004).
Por meio desses mecanismos, dificulta-se questionar a responsabilidade
das organizações e instituições públicas e se favorecem o controle e a coer-
ção social (DOUGLAS, 1985). Tal quadro é agravado pelo “enfraquecimento
e pouca capacidade de pressão dos movimentos sociais e dos trabalhadores”
(GOMEZ, C. M.; LACAZ, F. A. C. Saúde do trabalhador: novas-velhas questões.
Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 797-807, 2005. p. 797).
Embora esse modelo de análise de acidentes – baseado na dicotomia entre
atos e condições inseguras – sirva de regra profissional, prevista até em norma
brasileira (ABNT. NBR 14280. Cadastro de acidente do trabalho: procedimento
e classificação, fev. 2001), ele se fundamenta em referencial teórico e metodo-
lógico limitado sob vários aspectos, sem considerar, por exemplo, achados atu-
ais sobre a ação e a cognição humanas no trabalho (ASSUNÇÃO, A. A.; LIMA,
F. P. A contribuição da Ergonomia para a identificação, redução e eliminação

4 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 4-6, 2007


da nocividade do trabalho. In: MENDES, R. [Org.]. Patologia do trabalho. 2. ed. v. 2. São
Paulo: Atheneu, 2005. p. 1767-1789).
Douglas (1985, p. 56), que considera o mecanismo de culpabilização da vítima um
“meio de iludir” para se “lavar as mãos”, ilustra: “quando o piloto morto pode ser culpado
pelo erro que levou seu avião ao acidente, não há necessidade de se investigar profun-
damente a adequação do controle de tráfego aéreo ou o estado do avião”. Por analogia,
refletindo sobre o acidente aéreo recente com o avião da GOL do vôo 1907, será que ao
procurar restringir a responsabilidade a controladores aéreos e pilotos não se está ten-
tando omitir questões relativas às más condições de trabalho, à pouca confiabilidade do
sistema de controle, à alta carga de trabalho ou ao seu modo de organização?
Esse “método” para análise de acidentes é, de acordo com a idéia de Douglas (1985),
um meio que permite aos atores sociais que determinam de fato as condições de execu-
ção do trabalho “se desresponsabilizar” pelas conseqüências dos acidentes. Protegem-se
os empregadores e seus prepostos, ao mesmo tempo em que se encobre a insuficiente
ação do Estado e das instituições públicas envolvidas. Se, de um lado, os acidentes resul-
tam de construção social com tonalidades próprias à nossa cultura, a culpabilização da
vítima como “método” de análise de acidentes hegemônico no Brasil é um impedimento
para a construção técnica e social de ações e políticas efetivas de prevenção.
Diante da re-estruturação da economia e da produção, a situação tende a se agravar,
como mostram as recentes pesquisas européias sobre condições de trabalho e saúde (PAO-
LI, P.; MERLIE, D. Troisième enquête européene sur les conditions de travail - 2000. Du-
blin: Fondation européenne pour l’amélioration des conditions de vie et de travail, 2001):
o número de trabalhadores expostos a riscos tradicionais (levantamento e carregamento
de cargas pesadas, substâncias tóxicas, ruído, calor, dentre outros) permaneceu no mes-
mo patamar enquanto aumentou o número de trabalhadores expostos a fatores de risco
psicossociais (pressão da clientela e da produção, formas de intimidação e de controle).
Novas formas de adoecimento estão associadas a processo evidente de intensificação do
trabalho.
Por outro lado, com o avanço das políticas neoliberais, assiste-se ao enfraquecimento
do Estado, que se fundamenta em “processo de subjetivação da desnecessidade do públi-
co” (OLIVEIRA, F. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o to-
talitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M.C. [Orgs.]. Os sentidos da democracia,
políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 55-81), e, conseqüen-
temente, à sua menor intervenção no campo da segurança e saúde dos trabalhadores,
com a transferência das questões de SST para o “controle interno” das empresas, com um
agravante: para este controle interno, estão sendo propostos novos sistemas de gestão da
SST baseados no velho princípio de que acidentes resultam de desvios do comportamen-
to e faz-se necessária a gestão do comportamento dos trabalhadores.
O Estado Brasileiro está se ausentando das questões que envolvem a relação entre
saúde e trabalho? A ausência do Estado constituir-se-á como norma para os tempos vin-
douros?
Este número especial, ao tratar deste tema crucial, procurou ir além da abordagem
tradicional, que tende a separar as disciplinas de cunho técnico dos construtos sociais e
políticos na explicação e compreensão dos fenômenos associados ao “meio ambiente do
trabalho”, conforme evidenciado nos dizeres de Wooding e Levenstein (1999, p.12-13.):
“a medicina ocupacional, a higiene industrial, a epidemiologia ocupacional – a economia
– são ensinadas e praticadas sob a ficção de que as políticas e os construtos sociais são
considerações separadas da, e periféricas à, ciência dura”.
Nesta coletânea, que agrupa trabalhos de pesquisadores e atores de diversas insti-
tuições públicas, procurou-se, explicitamente, enfrentar “a fragmentação e dispersão da
produção científica na área” que têm prejudicado “a importante colaboração que a Aca-

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 4-6, 2007 5


demia poderia oferecer para fundamentar as necessidades dos agentes políticos, movi-
mentos sociais, gestores e profissionais de saúde” (GOMES & LACAZ, 2005, p. 797).
Os leitores da RBSO estão convidados a participar deste espaço de discussão, cujo
objeto envolve temas ligados ao “problema público” da segurança e da saúde dos tra-
balhadores.

6 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 4-6, 2007


Apresentação

Acidentes e sua prevenção Ildeberto Muniz de Almeida


José Marçal Jackson Filho
Work accidents and their prevention

Este número da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO) é dedicado a


estudos sobre acidentes do trabalho e aspectos afins da segurança do trabalho.
Ao longo das últimas décadas, cresceu entre nós o número de estu-
diosos que exploram o tema dos acidentes do trabalho. Boa parte de seus
estudos1 pode ser encontrada em sítios da internet que, embora de acesso
gratuito, não parecem ter sido descobertos pelos profissionais de segurança
1
Está fora do objetivo desta
apresentação a indicação de lista
que atuam em empresas, instituições e organismos externos às universi-
da produção científica brasileira
dades e instituições de pesquisa. Três aspectos nos parecem relacionados deste período. No entanto, os
com o crescimento desse tipo de estudos. interessados no tema não podem
deixar de acessar o endereço
O primeiro é o movimento realizado no âmbito de universidades bra-
www.scielo.br e pesquisar com
sileiras em busca do aprimoramento da qualidade de sua produção cientí- uso de expressões como acidente
fica, incluindo exigência de titulação de seu corpo docente, com aumento do trabalho, acidentes maiores ou
do intercâmbio com instituições de outros países e a abertura de cursos de ampliados, erro humano, investi-
pós-graduação que passam a desenvolver colaboração com empresas, orga- gação de acidentes, segurança do
nismos governamentais, e serviços especializados que atuam nos campos da trabalho, prevenção de acidentes
segurança e da saúde do trabalhador, criando oportunidades para aumento: ou assemelhadas. Também é
a) da difusão de novas formas de pensar a segurança, o risco e a prevenção; possível fazer busca com o nome
de autores de seu interesse.
b) do diálogo entre pesquisadores e interessados de diferentes áreas afins ao
estudo de acidentes; e c) do desenvolvimento de estudos centrados em múl-
tiplos aspectos dos acidentes.
O segundo, menos evidente, parece associado com o crescimento da oferta
de serviços ditos de saúde do trabalhador em, praticamente, todos os estados
do país. A procura de profissionais desses serviços por cursos de pós-gradua-
ção em áreas afins à saúde do trabalhador parece fenômeno estabelecido entre
nós e diretamente relacionado com o aumento da produção acima referida. Al-
guns poucos serviços já realizam movimento visando à sua própria constitui-
ção e reconhecimento como centro de pesquisa e produção de conhecimento.
O terceiro aspecto situa-se no mundo do trabalho propriamente dito e nas 2
Correndo o risco de cometer
transformações por que tem passado nosso país com reflexos nas áreas de se- injustiças, é possível afirmar que já
gurança e saúde no trabalho na esfera governamental e também em centros de temos número importante de bons
pesquisa. Nas últimas décadas, é crescente o número de sistemas para os quais estudos sobre acidentes oriundos
a ocorrência de acidentes, desastres ambientais, eventos de grande impacto e de serviços e profissionais com
formação em Epidemiologia, Ergo-
incômodo social e político assumiram destaque de preocupação estratégica.
nomia – Engenharia de Produção,
Esse movimento não só incentiva o surgimento de questionamentos no Saúde do Trabalhador, Saúde
interior desses sistemas acerca dos limites da abordagem tradicional de aci- Pública / Saúde Coletiva, Ciências
dentes, como também a busca de novos caminhos, seja na direção de novas Sociais, Psicologia Social, dentre
outras. Felizmente, já é possível
roupagens a serem assumidas pelas abordagens que insistem em explicar os
identificar exemplos desses
acidentes como eventos decorrentes de comportamentos faltosos de trabalha- profissionais e estudos em muitos
dores descritos como elos fracos dos sistemas, seja na busca de maior aproxi- estados do país, embora o maior
mação com explicações centradas em enfoques sistêmico, sociotécnico ou psi- número ainda se concentre em
co-organizacional. Esse último caminho tende a aumentar a aproximação entre São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
esses sistemas e as universidades e centros de pesquisa2 existentes no país. Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 7-18, 2007 7


Enfim, é possível afirmar que o chamado desafio da gestão de segurança em sociedade
dinâmica mostra reflexos também entre nós (RASMUSSEN, 1997). No entanto, é preciso
destacar que esse movimento ainda está longe de derrotar e substituir o paradigma tradi-
cional que permanece hegemônico no país, inclusive na maior parte do aparelho forma-
dor que oferece cursos de especialização em Engenharia de Segurança3, Medicina do Tra-
3
O que explica a dificuldade dos balho, Enfermagem do Trabalho ou de formação de técnicos de segurança do trabalho.
especialistas da segurança de
compreenderem a realidade do Além disso, é preciso destacar que resistências às novas abordagens também apare-
trabalho e sua complexidade (ver, cem na forma de obstáculos ao livre acesso a informações, ao desenvolvimento de diálogo
por exemplo, JACKSON & AMORIM, com pesquisadores e à abertura de portas para pesquisas coordenadas por setores inde-
2001; LIMA, 2002).
pendentes a esses sistemas e, enfim, ao estabelecimento de mecanismos democráticos de
controle social de sistemas cujo funcionamento implica em riscos à saúde de populações
de usuários, mas não só, e também em possíveis impactos adversos ao meio ambiente.

A necessidade da construção de um novo olhar para estudos de


acidentes: desafio para a prevenção

De um lado, o grande número de acidentes do trabalho é grave problema social em


nosso país4. De outro, os estudiosos do tema no Brasil e no mundo têm criticado forte-
4
Em 2004, no Brasil, houve mais mente as conclusões de várias análises de acidentes conduzidas no âmbito de empre-
de 371 mil acidentes do trabalho
sas e de algumas instâncias governamentais e as concepções teóricas e metodológicas
típicos e 2801 óbitos (BRASIL,
2007).
que lhes dão suporte.
Sem pretender esgotar a amplitude dessas críticas, vale lembrar que, entre outros,
elas destacam os seguintes aspectos: o número médio de fatores apontados como en-
volvidos nas origens de acidentes é muito pequeno. Na maioria das situações, os fato-
res identificados como mais importantes nas conclusões dessas “análises” se referem
a comportamentos de trabalhadores, em especial, ações ou omissões situadas pouco
antes do desfecho do acidente. Esses comportamentos costumam ser descritos e discu-
tidos com o uso de categorias como atos e condições (ambientes) inseguros ou fora de
padrão, falhas humanas ou técnicas ou outras abordagens de formato dicotômico que
adotam como pressuposto a idéia de existência de um jeito certo, ou seguro, de realizar
aquela ação que seria previamente conhecido do operador envolvido e que, na situação
do acidente, teria deixado de ser usado como resultado de uma escolha consciente,
originada em aspectos do próprio indivíduo, quiçá, de sua personalidade descuidada,
indisciplinada ou equivalente.
De acordo com essas conclusões, esses acidentes também são vistos como fenômenos
individuais ou, no máximo, restritos a um dos componentes do sistema sociotécnico
aberto envolvido na atividade que era desenvolvida. Esse componente é o alvo das reco-
mendações de prevenção. Compreendida como um sistema, a organização em que se dá
esse evento é diagnosticada como sem problemas. O acidente deixa de ser compreendido
como sinal de disfunção sistêmica ou como revelador, seja de situações com potencial
acidentogênico, seja como fonte de aprendizado organizacional e caminhos para aperfei-
çoamento desse sistema (CTL, 1991; LLORY, 1999a, 1999b; REASON, 1997; REASON &
HOBBS, 2003; WOODS & COOK, 2002).
Essa forma de conceber o acidente como fenômeno simples foi chamada de abor-
dagem ou paradigma tradicional por diversos autores (CATTINO, 2002; LLORY,
1999b; DWYER, 2000).
Infelizmente, enquanto o usuário desse modelo de investigação vê a conclusão cen-
trada em aspectos do componente ou fator humano como mero produto de um trabalho
5
Aliás, mecanismos com a finali- técnico, no mundo real, esses resultados acabam alimentando práticas de atribuição de
dade de alocação da culpa já são culpa típicas da abordagem tradicional de acidentes (VILELA et al., 2004), como temos
conhecidos há algum tempo nas visto nas declarações de algumas autoridades da área e deputados da CPI criada para
Ciências Sociais (DOUGLAS, 1985). investigar a crise do setor aéreo no país.5
Apesar da relativa difusão alcançada pela crítica a esse olhar tradicional6, os interes-
6
Que inclusive fundamenta a sados na utilização de novas ferramentas disponibilizadas para a análise de acidentes,
prática profissional da Engenharia
seja no campo do ensino, seja no terreno das práticas desenvolvidas em instituições
de Segurança por meio de norma
da ABNT de 2001.
governamentais e empresas, ainda encontram dificuldades no acesso a publicações cons-
truídas com base nesse novo olhar sobre falhas, erros e segurança.

8 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 7-18, 2007


Novas concepções para a compreensão dos acidentes

Na literatura internacional, acidentes como o do vôo 1907, mas não só, suscitam es-
tudos que exploram diferentes aspectos. De forma didática, recorrendo a Llory (1999b) é
possível recomendar a divisão do acidente em três períodos e distribuir os estudos segun-
do o tipo de aspectos que exploram como relacionados aos períodos: a) pós-acidental; b)
acidental ou do acidente propriamente dito; e c) pré-acidental.
O período pós-acidente já foi denominado como período de crise social em ca-
sos de dimensões catastróficas, em que a situação é vista como ameaça à forma e à
estrutura do sistema. Se existem, as estruturas sociais são incapazes de resolver os
problemas econômicos, sociais, culturais e políticos evidenciados no pós-acidente
e ameaçam a integridade do sistema (SHRIVASTAVA, 1987). Entre estudos relativos
a esse período, podemos citar aqueles que exploram conseqüências psíquicas e so-
ciais de acidentes, seja para as próprias vítimas, seja para seus familiares; ou os que
exploram a resposta de emergência tanto no que se refere à interrupção do processo
acidental em si, como na minimização de seus impactos ambientais, danos materiais
e custo humano. Há ainda estudos que exploram custos financeiros, descrição de re-
cursos mobilizados na assistência de saúde, efeitos tardios, de instalação crônica ou
que atingem descendentes das populações atingidas no acidente, como nos casos de
contaminação química ou radioativa etc.
Os estudos relacionados a aspectos dos períodos chamados de acidente propria-
mente dito e pré-acidental são aqui abordados rapidamente e de modo conjunto. Entre
eles estão incluídos aqueles que detalham aspectos técnicos do processo de descontro-
le ou liberação de fluxo de energia envolvido no acidente. Atualmente, há maior divul-
gação de abordagens sustentadas na noção de modelo de acidente que usam princípios
como os de análise de barreiras e análise de mudanças na descrição desses eventos e
recomendam a continuidade dessa análise no período pré-acidental, evitando inter-
rupções precoces da busca de aspectos que participam do acidente (ALMEIDA, 2006;
HOLLNAGEL, 2004; KLETZ, 2006).
Outros estudos apontam para a contribuição de propriedades de sistemas, como
a complexidade interativa e a convivência com situações de incerteza nas origens de
acidentes (PERROW, 1999). Também há autores que lidam com a relação entre pro-
jeto (design) de subsistemas técnicos e a segurança ou, ainda, aqueles que exploram
comportamentos humanos nessas situações, procurando descrever aspectos dos modos
de gestão psíquica/cognitiva e mobilizações afetivas presentes na atividade e rompidos
pelo acidente (AMALBERTI, 1996).
Nos primórdios da introdução desse tipo de estudo, estão as abordagens que ex-
ploram isoladamente os componentes humano, técnico e operacional dos sistemas
sociotécnicos em questão. Em seguida, sob a influência de ergonomistas e psicólo-
gos cognitivistas, surgem críticas à idéia de que a confiabilidade humana seja uma
propriedade invariável do ser humano. Ela passa a ser estudada como “propriedade
do funcionamento humano dentro de determinadas condições, para um determinado
tipo de tarefa” (LEPLAT, 2006, p. 27). Daí a preferência pela expressão componente
humano da confiabilidade.
Esses pesquisadores enfatizam a necessidade de conhecer o trabalho real com ênfase
em aspectos de sua variabilidade e nas estratégias usadas no cotidiano pelos operadores
para resolver problemas, superar dificuldades e manter o funcionamento do sistema. De
modo assemelhado, para Rasmussen (1997), a análise do trabalho real mostra a variedade
das situações vividas pelos operadores e não previstas nas normas de segurança vigen-
tes, assim como as tentativas de desenvolvimento de modos operatórios que reduzam os
custos humanos e aumentem a eficiência do trabalho. As ações desenvolvidas para gerir
a variabilidade do trabalho são descritas por Rasmussen como adaptações locais. Elas
podem resolver ou não o problema enfrentado. Muitas vezes, nessas situações, os ope-
radores precisam fazer escolhas entre, de um lado, ações que visam retomar a produção,
porém contrariam normas de segurança, e, de outro, ações que privilegiam a segurança e
implicam em atraso na retomada dos trabalhos.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 7-18, 2007 9


Essas adaptações locais implicam em tomadas de decisão e adoção de práticas que
tanto podem criar riscos como segurança. Por isso, risco e segurança podem se consti-
tuir como propriedades emergentes de sistemas.
Segundo Neboit (2003), nessas situações, o trabalhador lida com uma abordagem de
risco e perigo diferente daquela tradicional centrada na idéia de liberação de fluxo de
energia a ser controlado. Nessa segunda abordagem, o operador é ator de interações numa
situação que, na gestão de riscos, privilegia o papel do seu conhecimento sobre o trabalho
real e sua utilização na compreensão da atividade que desempenha no sistema.
Relatando discussão sobre vazamento de substância inflamável desencadeado por
tentativa de correção autorizada por supervisor, Kletz (2006) destaca:
[o ...] supervisor não atuava no vácuo. Seu julgamento foi influenciado
por sua avaliação sobre as reações de seus chefes e pela atitude em rela-
ção à segurança na companhia, como demonstrado pelas ações realiza-
das ou observações feitas em outras situações. Declarações sobre políti-
cas oficiais têm pouca influência. Nós julgamos as pessoas pelo que elas
fazem, não pelo que elas dizem. O gerente da fábrica tem grande carga de
responsabilidade no estabelecimento de um clima [...] em que seu staff
sente que correr risco é legítimo. (p. 73)

Outros estudos enfatizam as relações sociais estabelecidas nas instituições, por


exemplo, sistemas de recompensas e práticas de controles como origens socialmente
construídas de erros que levam a acidentes (DWYER, 2007). Sob essa ótica, os acidentes
são “construtos sociais” (WOODING & LEVEINSTEIN, 1999; MACHADO et al., 2000).
No conjunto de estudos citados, os comportamentos humanos no trabalho passam a ser
vistos de modo absolutamente distinto daquele que predomina na abordagem tradicional.
Por sua vez, o enfoque clássico ressurge em estudos que reiteram a importância de
erros humanos como principais “causas” dos acidentes e defendem a adoção de estra-
tégias de segurança comportamental como caminho a ser seguido pelos interessados
na gestão de segurança. A busca desse objetivo seria baseada em recenseamentos de
“atos inseguros” que ensejariam intervenções de devoluções individuais ou coleti-
vas direcionadas à redução de comportamentos indesejados. Entre os adeptos deste
enfoque também se defende a criação de uma cultura de segurança, entendida como
equivalente da soma de comportamentos (seguros) dos integrantes do sistema como
estratégia central para a gestão de segurança.
Esse é, talvez, o mais controverso dos múltiplos sentidos atribuídos à expressão cul-
tura de segurança. No âmbito deste texto, fica registrada a crítica ao reducionismo dessa
visão e à necessidade de explicitação do seu sentido quando a expressão é utilizada.
A construção de uma cultura de segurança também é defendida por Reason (2000).
Ele destaca três aspectos que caracterizariam sua existência: a) uma cultura de infor-
mação, ou seja, a existência de atmosfera de confiança que permita a implementação de
sistema de informações de eventos adversos e memória do sistema; b) uma cultura de
justiça, ou seja, ambiente de acordo e compreensão sobre atos passíveis e não passíveis
de culpa; e por fim c) uma cultura de aprendizagem caracterizada pela existência de
medidas reativas e pró-ativas usadas para criar melhorias contínuas do sistema. Mais
recentemente, há esboço de diálogo entre essa forma de pensar a cultura de segurança
e abordagens originadas das correntes das organizações de alta confiabilidade, da ergo-
nomia da atividade e da psicologia cognitiva (REASON, 2000; BOURRIER, 2001).
Esses tipos de estudos apontam a importância da alta hierarquia nos esforços de
modificação de aspectos das diversas subculturas de segurança existentes no sistema
e minimizam a importância das conclusões de análises que atribuem o acidente a
falhas de trabalhadores.
Em março de 2007, nos Estados Unidos, o Chemical Safety Board (CSB) publicou
sua conclusão sobre a análise de acidente que destruiu a planta da Formosa Plastics:
“A companhia e seu proprietário anterior não planejaram adequadamente como lidar
com os erros humanos” (CSB, 2007). A página do CSB apresenta outros exemplos de
relatórios com conclusões assemelhadas. Até o momento do fechamento deste número

10 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 7-18, 2007


da RBSO, os autores não tinham notícias da existência, entre nós, de análise de aci-
dentes com esse tipo de conclusões.

A colisão entre os aviões Gol-Legacy: fatos e reflexões

O texto da chamada de artigos para este número da Revista Brasileira de Saúde Ocu-
pacional (RBSO) citava os acidentes do Fokker 100, da plataforma P-36 e da base de Al-
cântara como exemplos de ocorrências que desafiavam os interessados na prevenção.
Infelizmente, entre o lançamento daquela chamada e o fechamento da Revista, o
país foi abalado por novos acidentes que, no mínimo, não só atestam a atualidade do
desafio destacado naquele texto, como produziram novos exemplos de manifestações
públicas típicas da busca de bodes expiatórios e do reducionismo presentes nas aborda-
gens tradicionais de acidentes. Vários exemplos poderiam ser citados, mas pelo encami-
nhamento recentemente assumido, inclusive com abertura de Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI), a colisão no ar do avião da Gol (vôo 1907) e do jato Legacy, ocorrida em
outubro de 2006, assumiu lugar emblemático.
Neste texto, aspectos da dimensão pública assumida por esse caso ensejam comen-
tários que procuram ilustrar críticas ao chamado paradigma tradicional de modo a mos- 7
Um dos aspectos que permite a
trar possibilidades de interpretações alternativas aos “fatos” citados e dar exemplos dos identificação entre a abordagem
conceitos que vêm sendo usados nesse tipo de situações já há alguns anos, embora ainda tradicional e o modelo de três fato-
pouco difundidos entre nós. res separados usado na análise de
acidentes no setor aéreo é o fato
No caso da aviação, há anos se utiliza concepção e modelo de análise que explora desses dois enfoques adotarem os
separadamente fatores “humanos”, “técnicos” e “operacionais”7. É a aceitação acrítica mesmos pressupostos, ou seja, a
dessa abordagem fragmentada8 que leva integrantes de equipes de análise a considera- mesma compreensão sobre o que
rem natural conclusão de investigação centrada em falhas do “componente humano”, é o ser humano e sobre comporta-
mentos humanos no trabalho. Nos
por exemplo, de controladores de vôo ou pilotos, na análise desse acidente. Uma vez que
dois casos, os comportamentos
a exploração conduzida não identifique falhas “técnicas” nem “operacionais”, a conclu- dos trabalhadores continuam
são enfatizando falha humana ganha força. sendo vistos como produtos de
escolhas livres e conscientes,
A cobertura da mídia sobre o acidente Gol-Legacy mostrou grande número de re-
independentemente dos demais
portagens centradas na idéia de rápida definição de responsáveis, pilotos ou contro- componentes do sistema sociotéc-
ladores, cujos erros explicariam o acontecido. Ao mesmo tempo, houve acúmulo de nico e do contexto em questão.
notícias revelando que a situação do controle aéreo no país convivia com bem conhe-
cidos problemas crônicos, seja de atraso na reposição ou substituição de equipamen- 8
Vale a pena registrar também o
tos, seja na carência de recursos humanos, seja na área de gestão do setor, ensejando fato de que equipes de análises
sobrecarga de trabalho e lenta e progressiva degradação das condições do sistema. formadas para a utilização desses
modelos de investigações nem
E isso tudo num contexto de grandes dificuldades de acesso a informações tratadas
sempre são informadas sobre os
como “segredos” de estado. Algumas dessas informações são contestadas, sobretudo pressupostos que eles assumem e,
por autoridades da área. por isso mesmo, tendem a assumi-
los como a única forma possível
Mas não foram apenas esses os problemas. É praticamente certo que, no momento do
e não como escolha dentro do
choque, o sistema anticolisão (TCAS) do Legacy não estivesse funcionando. As razões leque de alternativas explicitadas e
para esse fato estão sendo buscadas na investigação. Foi grande o número de referências comparadas.
a problemas no sistema de comunicações entre pilotos e controladores na região do aci-
dente. Uma das principais redes de TV do país colocou no ar imagens realizadas sema-
nas após o acidente da sala de controle aéreo que confirmariam a existência de “pontos
cegos”, ou áreas em que os radares deixariam de detectar a presença de aeronaves, e de
imagens de naves inexistentes (“alvos falsos”) nas telas de radares que cobrem a mesma
região da colisão. Parte dessas informações tem sido contestada.
De acordo com a imprensa, a região do acidente, na Serra do Cachimbo, está situada
no equador magnético que pode interferir nas ondas eletromagnéticas que se propagam,
degradando, inclusive, os sinais transmitidos pelos satélites GPS. Isso poderia interferir
nas comunicações entre controladores e tripulações e também no funcionamento de ou-
tros equipamentos necessários ao bom funcionamento do sistema de navegação aérea.
Também essas informações são contestadas por autoridades da área.
Houve profusão de notícias em relação a aspectos da formação e dos comportamen-
tos da tripulação do Legacy e também de controladores das torres de Brasília e São José
dos Campos que teriam levado ao acidente. Imediatamente após o acidente, uma ex-au-

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 7-18, 2007 11


toridade do setor aéreo, atualmente ocupando cargo de direção da empresa fabricante
de um dos aviões, afirmou que o acidente só podia ser explicado por falhas humanas.
Os registros acima mostram a persistência de opiniões que entendem como su-
postas causas do acidente eventos proximais ao desfecho, sobretudo comportamentos
atribuídos aos controladores do Cindacta 1, de Brasília, e da tripulação do Legacy.
Essa forma de ver o acidente tende a concordar com explicações que encerrem a aná-
lise sem explorar a fundo aspectos dos períodos pré-acidental e do acidente propria-
mente dito. Por outro lado, os fatos apontados também indicam que o funcionamento
do sistema em questão é marcado por intensa e extensa troca de informações entre
diferentes atores situados a centenas ou milhares de quilômetros de distância. Essas
trocas são mediadas por equipamentos aparentemente sensíveis a influências diver-
sas, inclusive do ambiente.
As notícias também indicam que pressões exercidas depois do acidente, em especial
sobre controladores de vôo, estiveram associadas ao desencadeamento de reações de
estresse agudo e de outras manifestações de mal-estar ou transtornos psíquicos e de
comportamento entre os trabalhadores. Por sua vez, a cobertura dos trabalhos das equi-
pes de busca e salvamento na região do acidente também mostra indícios de ausência de
suporte psíquico aos militares e demais trabalhadores envolvidos em tarefa que há anos
é reconhecida como de grande potencial nocivo para a saúde mental dos trabalhadores.
Mais recentemente, com a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do
“apagão aéreo”, surgiram acusações abertas contra controladores de vôo que atuavam
em Brasília no dia do acidente. No início das atividades da CPI, o seu presidente de-
clarou sua convicção de que a responsabilidade pelo acidente era dos controladores e
que um deles seria acusado de homicídio doloso. Nesse caso, uma intervenção, iniciada
com gesto de oportunismo político óbvio, encontrou repercussão na mídia e, com isso,
potencializou os prejuízos latentes que trazia em seu bojo.
Em entrevista a uma das principais redes de TV do país, interrogado sobre o signifi-
cado que atribuía às dificuldades de comunicação com a tripulação do Legacy, um dos
controladores acusados afirmou tratar-se de situação comum, que estranhara ao iniciar
na atividade, mas que logo fora orientado pelos colegas mais experientes que era assim
mesmo. Em síntese, disse que no dia do acidente agira da mesma maneira que estava
acostumado a agir e que nunca antes houvera problema. O relato sugere ainda que essa
situação era conhecida dos superiores hierárquicos.
Dias mais tarde, o Ministério Público denunciou por crime de “atentado contra se-
gurança de vôo” os pilotos do jato Legacy e quatro controladores, sendo que um dos
controladores foi denunciado por crime doloso (LOPES, 2007).
Embora a veracidade ou a eventual contribuição de alguns dos fatos citados possa
ser alvo de questionamentos, as reflexões a seguir nos parecem pertinentes.
Não é difícil perceber que, nesses casos, o número de atores sociais e de recursos
técnicos que interagem na operação dos sistemas em questão, por si só, já podem ser
tomados como indicadores de complexidade.
A acusação formulada aos controladores de vôo é um bom exemplo de situação que
explica o acidente de modo centrado no indivíduo e nos acontecimentos que antecedem
imediatamente o desfecho da situação, regra geral com base na idéia de que o operador
cometeu algum ato faltoso ou erro humano, identificado com uso da noção de desres-
peito às regras, normas e preceitos de segurança.
Uma das primeiras críticas aos limites desse enfoque descreve os acidentes como
eventos multicausais, resultados de seqüências lineares de eventos e, posteriormente,
de rede de fatores em interação.
Nas últimas décadas, é crescente o número de estudos que mostram que as origens
dos acidentes localizam-se na própria história do sistema, na interação de aspectos
como decisões estratégicas, desenho e escolhas de tecnologias, definições políticas,
práticas organizacionais e formas habituais de respostas a momentos de variabilidade
normal e incidental da atividade desenvolvida no sistema (WISNER, 1994). De acordo
com esses estudiosos, diferentemente daqueles que se referem aos operadores como

12 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 7-18, 2007


“elos fracos”, a intervenção deles é a principal responsável pela segurança dessas orga-
nizações (DE KEISER, 2005).
Em sistemas que funcionam com recursos técnicos defasados, como parece ser o
caso do nosso controle aéreo, ou melhor, de nossa segurança aérea, graças ao acúmulo
de problemas instala-se, lentamente, estado ou situação de fragilização da segurança.
Em outras palavras, proliferam e permanecem incubadas formas de funcionamento e
condições que, apesar de isoladamente não serem facilmente reconhecidas como sinais
ou avisos de perigo iminente e de não afetarem o desenvolvimento habitual das ativida-
des, podem interagir entre si ou com fatos novos e ultrapassar as capacidades de defesa
instaladas no sistema, levando a acidentes.
Esses últimos acontecimentos representam gatilhos que disparam ou desencadeiam
o acidente e, com freqüência, tendem a ser considerados como causas desses eventos.
Essa forma de entender o acidente e o papel desses gatilhos desconsidera que, na maio-
ria dos casos, eles só desencadeiam o acidente na vigência da condição de fragilização
historicamente construída e incubada no sistema.
É exatamente por isso que, nesses sistemas, cresce a importância da contribuição do
seu componente humano, ou seja, de seus trabalhadores de todos os níveis para a segu-
rança, uma vez que o número de situações que passam a exigir diagnóstico e correções
tende a ser maior. Os ajustes realizados pelos operadores em resposta à variabilidade
dos sistemas, nas diferentes condições de seu funcionamento, tendem a ser responsá-
veis pela sua segurança real.
O acúmulo de problemas técnicos e organizacionais capazes de interagir de múl-
tiplas formas e contribuir para as origens de acidentes foi descrito por Reason como
condições latentes. Sua mudança seria crucial para os interessados na prevenção de
acidentes e muito mais importante do que aquelas dirigidas a comportamentos de
trabalhadores que tenham “disparado” o acidente.
A detecção e correta interpretação de eventos (incidentes, disfuncionamentos etc.)
que surgem no funcionamento dos sistemas e antecedem o acidente não são coisa fácil
como costuma ser afirmado por integrantes de equipes de “investigação” que chegam
aos cenários já sabendo o que aconteceu e acreditando que tudo está explicado ao evi-
denciar exemplo de comportamento ou acontecimento que contraria normas de segu-
rança vigentes.
Todavia, os comportamentos humanos em situação de trabalho não se reduzem a se-
guir procedimentos ou normas, ao contrário, envolvem interações permanentes com re-
cursos dos sistemas técnicos e materiais colocados à sua disposição, assim como com
outros colegas e chefias num determinado ambiente e contexto organizacional. Aliás, em
determinadas situações, a adoção de modo operário baseado em procedimento de segu-
rança pode não evitar acidentes ou incidentes (DECKER, 2003).
O uso desses recursos e as trocas intersubjetivas realizadas em situação de traba-
lho são influenciados, entre outros, por aspectos como: os objetivos definidos pelas
chefias; as releituras desses objetivos pelos próprios trabalhadores; as características
da interface dos sistemas, inclusive no tocante ao feedback que oferece aos operadores
de modo a favorecer ou dificultar a construção e a manutenção da compreensão sobre
o desenvolvimento do trabalho; o estado de funcionamento dos sistemas técnicos. Ele
também é influenciado por aspectos temporais, fisiológicos (vigília, fadiga etc.), psíqui-
cos (cognitivos e afetivos) e da história do coletivo de trabalhadores que realiza aquele
trabalho (ASSUNÇÃO & LIMA, 2003).
Vejamos mais um exemplo:
No domingo, 18 de fevereiro de 2007, os jornais do país dedicaram longas reporta-
gens sobre o que seria a transcrição de diálogos da caixa-preta do Legacy. Chamada de
notícia da Folha de São Paulo (CANTANHÊDE, 2007) destacava que “Controladores não
sabiam que aeronaves estavam na mesma altitude”. A matéria tratava de controlador de
vôo que, no dia do acidente, trabalhava no Cindacta-1, de Brasília, e que em depoimento
à Polícia Federal teria informado que [por ocasião do acidente] “estava ocupado ‘com
outros tráfegos’ [aviões]”. E acrescenta:

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O sargento não percebeu que o sistema corrigiu automaticamente o plano
de vôo virtual do Legacy quando este passou por Brasília, mostrando al-
titudes previstas e não as que estavam efetivamente sendo voadas (CAN-
TANHÊDE, 2007, p. C9).

Os autores não puderam checar a veracidade dessa afirmação, mas a literatura de


acidentes já relata vários exemplos em que dispositivos automáticos agem de modo que
tende a criar armadilha cognitiva para seus operadores9. Diante desse fato é que con-
9
Por exemplo, o acidente de Three sideramos importante refletir sobre as questões a seguir. Será que, em condições nor-
Miles Island (DANIELLOU, 1986).
mais, esse tipo de correção poderia influenciar a compreensão de controlador de vôo
em relação à real situação do avião, levando-o a achar que ele estava na altura mostrada
na tela e a não se comunicar com a tripulação de modo a checar a altura real? E se a
mesma pergunta for feita em situações ou momentos de sobrecarga de trabalho? Ou em
que a atenção do controlador se volta para a compreensão de dificuldades e tentativas
de solucioná-las? E de pressão de tempo? E de estresse emocional? Ou, como freqüen-
temente se vê no cotidiano desses operadores, de somação desses tipos de eventos ou
ainda a necessidade de partilhar sua atenção entre diferentes objetos? Enfim, será que
esse tipo de reflexão pode ser útil às equipes de análises, inclusive em relação às de-
mais situações de interações entre operadores e meios técnicos que utilizam?
As abordagens que se resumem à identificação e classificação de comportamentos
como certos ou errados e que os entendem como produtos de escolhas conscientes
dos operadores envolvidos não conseguem oferecer suporte às equipes de análise na
discussão dos diversos eventos e aspectos que antecedem os acidentes. Elas tendem a
ser incapazes não só de enxergar a profusão e a complexidade das interações presentes
na operação desses sistemas, como de compreender o fato de que, nesses processos, o
operador influencia e é influenciado pelo sistema em que está inserido, enfim, pelas
relações que estabelece no seu trabalho.
Nesta breve reflexão, pretendeu-se apontar nova forma de abordar os acidentes
que enfatiza a importância da análise de condições latentes nas origens de acidentes,
sem descuidar da exploração de contribuições do componente humano da confiabili-
dade entendida no conjunto de relações estabelecidas nas situações de trabalho. Essa
nova forma é usada em contraposição às versões que tentam explicar acidentes, como
o da colisão dos aviões – mas não só –, como produtos isolados de falhas humanas,
frutos do acaso ou eventos totalmente imprevisíveis, sem a participação de elementos
incubados na história desses sistemas. Enfim, parece-nos essencial desconstruir a
abordagem tradicional de acidentes, o que não é tarefa simples, pois, o senso comum,
malgrado todas as evidências, tende a ressaltar o “comportamento improcedente, ina-
dequado ou imprudente”, como indica a fala contraditória do relator da CPI do “apa-
gão aéreo”: “Parece que o sistema tem falhas. Neste caso, embora o sistema seja falho,
a causa do acidente foi humana.” Ainda segundo ele:
Não tenho dúvidas de que J. cometeu a falha mais grave. Ficou bem eviden-
te que, como técnico, ele falhou. Ele teve uma falha decisiva. Acho que foi
negligente, imprudente e cometeu imperícia. Mas não tinha a intenção de
provocar o acidente. (LOPES, 2007, p. c3)

Assim, no caso da colisão Gol (vôo 1907)-Legacy, o grave é que a leitura tradicional
persiste e, aliada ao discurso político de ocasião, sugere desfecho em que, mais uma vez,
as muitas falhas identificadas deixam de ser interpretadas como sinais de fragilidades do
sistema em questão e como janelas de oportunidade para o aprendizado organizacional.
Esse quadro é agravado pela falta de transparência na condução das investigações. É
hora da sociedade exigir a instalação de mecanismos que aumentem as possibilidades de
controle público e de democratização do setor.

Apresentação dos textos

Felizmente, como poderemos observar nos artigos que compõem esta coletânea,
há indícios de que, entre nós, o tema dos acidentes de trabalho já é tratado, em vários
centros, com metodologias e abordagens que podem ajudar a melhor compreender

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as causas dos acidentes e que podem contribuir para aumentar a confiabilidade e a
segurança de sistemas.
Os doze artigos desta coletânea podem ser divididos em dois grupos: no primeiro,
o traço comum aos oito trabalhos é a crítica ao modelo tradicional de análise de aci-
dentes e a proposição de novas formas para abordar e compreender os acidentes; no
segundo, os quatro artigos apresentados tratam de novas perspectivas e questões sobre
a atuação dos agentes públicos no âmbito da saúde e da segurança dos trabalhadores.
Oliveira, ao analisar o discurso de trabalhadores em indústria metalúrgica, mostra
a difusão entre os trabalhadores do discurso dominante que imputa a causa dos aci-
dentes aos atos inseguros e para o qual os riscos fazem parte do processo de trabalho
e são, portanto, “naturais”. Aponta, também, para falas que propõem a ruptura e que
seriam formas de resistência ao processo de culpabilização dos trabalhadores e de “na-
turalização dos riscos”. A difusão deste contra-discurso depende da ação conjunta de
trabalhadores, sindicalistas e técnicos do campo da SST.
Vilela et al. apresentam caso de investigação e análise, realizada pelo CEREST de
Piracicaba, de acidente sofrido por operador em máquina fresadora semi-automática.
Contrariando os laudo feitos pelo Instituto de Criminalística (IC) e pelo Serviço Espe-
cializado de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) da empresa, que apontaram
a imprudência e a negligência dos operadores envolvidos como causa do acidente, os
resultados da análise do CEREST evidenciaram aspectos associados à organização do
trabalho, ao projeto do equipamento na origem do acidente e, sobretudo, à fragilidade
conceitual que embasou os laudos do IC e do SESMT.
Câmara et al., em estudo no setor extrativista vegetal baseado em análise documen-
tal, observações e entrevistas no setor de derrubada de árvores, descrevem as atividades
e o saber prático dos operadores para lidar com a variabilidade e os determinantes das
situações de trabalho (externos aos trabalhadores) e para evitar os riscos presentes, con-
trariando a visão simplista proposta pela abordagem clássica dos acidentes, que atribui
ao comportamento inseguro dos trabalhadores a causa principal dos mesmos.
Fonseca e Lima analisam o efeito da introdução de nova tecnologia na construção
civil – novo tipo de escoramento de lajes – no surgimento de acidentes por quedas dos
trabalhadores. Os resultados da análise ergonômica realizada mostraram que o modo
de introdução da tecnologia levou a uma ruptura entre a experiência dos trabalhadores
desenvolvida na situação anterior e aquela desenvolvida na nova situação de trabalho.
Strausz et al. analisam um acidente por contaminação fúngica em biblioteca pública. A
aplicação da metodologia de Análise Interdisciplinar e Participativa de Acidentes (AIPA),
concebida inicialmente para explicar acidentes de alta complexidade, mostrou-se eficaz,
trazendo à tona os problemas gerenciais na origem do acidente e o descontrole ambiental
que gerou exposições múltiplas a agentes físicos e biológicos.
Cardoso e Cukierman propõem novo entendimento para o acidente ocorrido em
1989 no vôo RG-254 baseado em enfoque sociotécnico e no conceito de “acidente nor-
mal”. Analisando as relações entre os atores-rede envolvidos no sistema de aviação em
que ocorreu o acidente, mostram que ele não foi provocado por falha humana, mas pelo
rompimento das relações entre os atores envolvidos.
Lima apresenta as contribuições do método da Clínica da Atividade, proposto por
Yves Clot, para a compreensão de acidentes do trabalho. Para ilustrar o interesse pelo
método, discute-se estudo realizado no setor petroquímico (coordenado por Ferreira),
que mostrou a relação entre a gestão de pessoal da empresa, caracterizada pela diminui-
ção dos seus efetivos e o aumento de contratos com empreiteiras, e seu funcionamento e
sua segurança. Os acidentes graves ocorridos na empresa entre os anos de 2000 e 2001
podem ser explicados como decorrência da fragilização do “gênero profissional” estabe-
lecido pelas equipes de operação e sua influência no funcionamento coletivo diante das
medidas adotadas pela empresa.
Marziale et al. realizaram estudo transversal a fim de descrever os acidentes en-
volvendo exposição a material biológico em um hospital universitário, entre os anos

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de 2003 e 2004. Dos 107 acidentes ocorridos, a maioria envolveu mulheres com lesões
perfurantes nas mãos e trabalhadores que pertenciam às unidades de clínica médica e
de pronto atendimento.

Lorenço e Bertami abordam os desafios e as perspectivas atuais para o campo da


saúde do trabalhador e para o Sistema Único de Saúde. A partir da análise e do relato
de três situações – um acidente de trabalhador no meio rural, a sobrevivência de famí-
lia que vive da coleta de lixo, o trabalho de crianças guardando carros – evidencia-se
o sofrimento dos “trabalhadores” que se submetem a condições insalubres e precárias
para sobreviver. Concluem que as ações e as políticas públicas devem considerar não
apenas “novas”, mas também velhas questões que envolvem as relações entre trabalho
e saúde.
Santana et al. apresentam resultados oriundos de estudo de coorte de base comunitária
sobre saúde e trabalho iniciado em 2000. Neste trabalho, caracterizam a utilização dos
serviços de saúde por trabalhadores que sofreram acidentes do trabalho. Mostram que a
maioria dos entrevistados foi atendida pelo SUS, independentemente de possuir plano de
saúde privado ou não. As características de utilização dos serviços por trabalhadores aci-
dentados são necessárias para potencializar as ações de prevenção pelo SUS.
Quinlan et al. apresentam e discutem esforços recentes, na Austrália e no Reino Uni-
do, para proteger a saúde e a segurança de trabalhadores vulneráveis nas cadeias de
fornecedores. As regulamentações propostas nestes países, viabilizadas pelos dispositi-
vos gerais contidos na legislação em SST e baseados no princípio de cadeia de respon-
sabilidades, visam combater os efeitos da precarização do trabalho em diversos setores:
transporte rodoviário, construção, vestuário e produtos agrícolas.
Mendes e Wünsch refletem sobre o cenário contemporâneo das relações entre saúde
e trabalho e mostram a importância de constituir nova cultura em saúde e segurança
no trabalho. Para superar o que chamam de viés prevencionista – modelo hegemônico,
centrado no biológico e no individuo –, alertam para a necessidade de consolidar social-
mente os avanços obtidos no campo da saúde do trabalhador.
O conjunto desses textos contribui certamente para uma melhor compreensão dos
acidentes do trabalho e de suas causas e, portanto, para a elaboração de ações e políticas
de prevenção mais eficazes. Os textos mostram que as novas abordagens para análi-
se das causas dos acidentes podem ser aplicadas, sendo necessárias não apenas para a
compreensão de acidentes envolvendo sistemas sofisticados, mas também nas diversas
situações de trabalho de diversas formas de produção. Enfim, partilham de paradigma
comum, no qual homens e mulheres na produção não são o elo fraco dos sistemas de
produção e o “fator de risco”, ao contrário, são considerados agentes essenciais para o
funcionamento seguro dos sistemas.

Comentário final: a invisibilidade dos acidentes do cotidiano

No Brasil, todos os anos, de forma silenciosa, milhares de trabalhadores morrem ou


sofrem mutilações no trabalho. O impacto desses agravos que ocorrem “no varejo” é
muito maior que o desses grandes acidentes, mas apesar disso permanece quase invisível
para a sociedade brasileira.
Neste número da RBSO procuramos mostrar que as nossas possibilidades de apren-
dizado com base em análises de acidentes são ameaçadas todas as vezes que se ali-
menta conclusão que assume o formato de revelação da “causa” – assim mesmo, no
singular – do acidente. Ou seja, aquelas que tendem a reduzir o acontecido a uma falha
de componente do sistema ou, no máximo, a algumas falhas de componentes tratados
como segmentos isolados ou seu mero ajuntamento. E, conseqüentemente, perde-se a
oportunidade de analisar esse evento como sinal de fragilidade do subsistema de gestão
de saúde e segurança do trabalho – ou por exemplo do sistema de segurança aérea nos
acidentes recentes – em nosso país.
O leitor desavisado tende a prender-se na explicação simplista, em especial quando
anunciada com pose doutoral ou ênfase típica de dono da verdade. O subsistema de

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gestão de saúde e segurança no trabalho (SGSST), assim como o sistema de segurança
aérea do país, precisa ser entendido como o organismo sociotécnico cujo funcionamento
articulado depende e é produzido por todos os seus componentes, em particular pelas
interações que estabelecem, pelas funções que só desempenham quando atuam como
integrantes desse sistema.
Aparentemente, intervenções, como a da CPI do apagão aéreo, representam mais um
passo infeliz. Ao insistir na idéia de identificar culpado a receber punição exemplar, como no
caso do controlador do Cindacta 1, elas “jogam água no moinho” da explicação simplista.
A discussão está lançada. As abordagens de acidentes apresentadas neste número
da RBSO destacam a importância da identificação dos fatores sociotécnicos que desen-
cadeiam tais eventos e, ao mesmo tempo, a necessidade de identificar as condições pré-
existentes no sistema sem as quais não aconteceriam. Entre nós, historicamente, essa
última etapa tem sido sistematicamente obstruída e inviabilizada. Continuará tudo como
dantes no reino de Abrantes?
Eventos complexos não têm respostas simples. Não há um remédio ou solução mági-
ca para a situação da segurança no trabalho no país hoje. É hora de iniciar a caminhada
necessária no rumo da construção do sistema que rompa de vez com o paradigma tra-
dicional, com seus prejuízos em termos de inibição da prevenção, e estabeleça as bases
necessárias à construção de novos olhares sobre os acidentes.

Referências

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18 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 7-18, 2007


Artigos

A persistência da noção de ato inseguro e a construção


da culpa: os discursos sobre os acidentes de trabalho
em uma indústria metalúrgica1
Fábio de Oliveira2
The persistence of the notion of unsafe act and the
construction of blame: the discourses on work accidents at a
metallurgic industry

1
Artigo baseado na dissertação Resumo
de mestrado A construção social dos
discursos sobre o acidente de trabalho, Acidentes de trabalho (ATs) são conseqüências das formas pelas quais as so-
defendida em 1997 no Departa-
ciedades produzem suas condições de existência e constituem-se como objetos
mento de Psicologia Social e do
Trabalho do Instituto de Psicologia sociais a partir de construções teórico-práticas. Tem-se constatado a existência
da Universidade de São Paulo, São de concepções calcadas em fatores pessoais ou psicológicos que responsabili-
Paulo-SP. zam os trabalhadores pelos ATs. Investigou-se a presença dessas concepções
2
Doutor em Psicologia Social.
nas práticas discursivas de trabalhadores, procurando identificar os repertó-
Psicólogo do Centro de Psicologia rios interpretativos e seus aspectos retóricos e argumentativos via análise de
Aplicada ao Trabalho do Instituto discurso. Realizou-se estudo de caso de empresa metalúrgica com base em
de Psicologia da Universidade de observações, conversas informais, levantamento de documentos e entrevistas
São Paulo. Docente da Faculdade confrontativas com 20 operários. Constatou-se a presença marcante, nos mo-
de Psicologia da Pontifícia Univer- dos de compreensão dos ATs, da Teoria dos Dominós e a predominância das
sidade Católica de São Paulo. Co- explicações pelos atos inseguros, sustentadas pela naturalização dos riscos e
editor dos Cadernos de Psicologia por práticas institucionalizadas de difusão. No entanto, a construção discur-
Social do Trabalho, São Paulo-SP. siva dos ATs acontece de maneira dilemática, existindo contradições entre os
Apoio financeiro da Fapesp: pro- diferentes repertórios interpretativos e a presença de eventos desnaturalizado-
cessos 95/1718-2 e 1996/2062-6 res que produzem rupturas semânticas e manifestações de resistência. Assim,
(bolsa de mestrado) a pesquisa revelou aspectos polissêmicos e retóricos das práticas discursivas
que atribuem significados aos ATs.
Palavras-chaves: análise de acidentes, ato inseguro, culpabilização, discurso,
psicologia social.

Abstract
Work accidents (WA) are outcomes of the ways societies produce the conditions
for their existence and become social objects by means of theoretical-practical
constructions. Conceptions based on personal or psychological factors have been
presented to blame workers for WA. We have investigated these conceptions in the
workers’ discursive practices in an attempt to identify interpretative repertoires
and their rhetoric and argumentative features. We conducted a case study at
a metallurgic company. It was based on observations, informal conversations,
evaluations of document, and interviews involving twenty workers. A pervasive
presence of the Heinrich’s Dominoes Theory was observed in the patterns of
understanding WA, and the predominance of explanations for unsafe acts
supported by naturalization of risks and by institutionalized transmission practices.
Nevertheless, the discursive construction of the WA occurs in a dilemmatic way.
We found contradictions among the different interpretative repertoires, as well as
the presence of denaturalizing events; both of them produce semantic ruptures
and manifestations of resistance. Thus, this research revealed polyssemic and
rhetoric features of the discursive practices that attribute meanings to WA.
Keywords: accident analysis, unsafe act, blaming, discourse, social psychology.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 19-27, 2007 19


Introdução

O império heinrichiano venção de Acidentes do Trabalho, ocorrido


no ano de 1976:
Apesar dos avanços no campo da aná-
lise acidentológica (ALMEIDA, 2006; BIN- As raízes do problema residem na forma-
DER, ALMEIDA & MONTEAU, 1995; OSÓ- ção imperfeita dos homens. Os acidentes
RIO, MACHADO & MINAYO-GOMEZ, não acontecem, são causados. Por falta de
comunicação, por falta de supervisão, por
2005), as concepções que responsabilizam
planejamento defeituoso, por erros huma-
os próprios trabalhadores pelos acidentes nos, tais como agressão, distração, fadiga,
de que são vítimas mantém-se com vigor indisciplina, arrogância ou avareza. Os
no dia-a-dia das fábricas (OLIVEIRA, 1997; planejadores têm feito e estão fazendo
SANTOS, 1991). Como veremos adiante, o tudo que podem para eliminar as causas
binômio atos inseguros-condições insegu- físicas e ambientais. Já sabemos como eli-
ras mantém seu poder de sedução. minar os riscos, ao preparar os planos das
fábricas, máquinas e processos, ao organi-
Ato inseguro e condição insegura são os zar os locais de trabalho e ao estruturar
conceitos centrais da “teoria dos dominós” os métodos de trabalho. Podemos recorrer
elaborada na década de 1930. Para Hein- à ergonomia, para que a segurança acom-
rich (1959), o acidente seria causado por panhe as máquinas e fábricas, ainda no
uma cadeia linear de fatores, como uma se- estágio de plantas e projetos. Mas, devido
ao fator humano, os acidentes continuam
qüência de dominós justapostos, que cul-
a acontecer. (LIMA, 1976, p. 67)
minaria na lesão. A primeira peça do do-
minó seria os “fatores sociais e ambientais Hoje, embora seja patente o descrédito
prévios” responsáveis pela formação do científico dessas concepções, ainda é notá-
caráter dos operários. A segunda peça, os vel sua difusão no senso comum de empre-
comportamentos inadequados dos traba- sários, profissionais da área e trabalhadores.
lhadores, frutos de características herdadas
ou adquiridas. Esses comportamentos ina- A principal conseqüência desse modo
dequados poderiam vir a constituir-se em de compreender o fenômeno é a culpabi-
atos inseguros, isto é, em comportamentos lização dos próprios trabalhadores pelos
de risco que, juntamente com a presença acidentes de que são vítimas (BINDER et
de condições inseguras (atos e condições al., 1994; COHN et al., 1985; HIRANO, RE-
inseguros são a terceira peça do dominó), DKO & FERRAZ, 1990), o que pouco con-
levariam à ocorrência do acidente e, por tribui para sua efetiva prevenção. Szasz
fim, à lesão (respectivamente a quarta e a (1984) e Bertolli-Filho (1993), por exemplo,
quinta peças da seqüência de dominós). discutem a culpabilização dos acidentados
e apontam o caráter ideológico do conceito
Santos (1991) aponta como o Estado de propensão a acidentes.
brasileiro acabou por difundir as idéias
heinrichianas ao longo das décadas de Os discursos sobre o acidente
1970 e 1980, durante o chamado “milagre O acidente de trabalho é produto da
econômico”. O período foi marcado pela ação humana sobre o mundo, isto é, ele
intensa formação de técnicos nas áreas ocorre a partir de relações sociais e con-
de higiene e segurança e a concepção di- dições materiais determinadas (DWYER,
cotômica sobre atos inseguros e condições 1989). Por outro lado, o fenômeno do aci-
inseguras foi alçada à condição de discur- dente de trabalho também é uma constru-
so oficial, fazendo parte daquilo que era ção discursiva, na medida em que é objeto
ensinado aos profissionais responsáveis de interpretação e precisa ser explicado.
pelas ações de prevenção de acidentes nas
empresas do país. Tudo isso contribuiu, se- Grimberg (1988) sintetiza da seguinte
gundo a autora, para o forte enraizamento maneira essa dupla produção de um fe-
dessas idéias no imaginário social brasilei- nômeno relacionado à saúde ao distinguir
ro sobre os acidentes. analiticamente duas dimensões:

As idéias psicologizantes desse perío- as condições estruturais de produção dos


do – presentes nas preocupações com fa- processos de saúde-doença e as condições
de representação e ação social e institu-
tores humanos, seleção e treinamento, por
cional dos mesmos. Isso é propor que a
exemplo, e que marcaram fortemente a for- saúde e a doença não só são [1] emergen-
mação dos profissionais da área – são bem tes estruturais das condições de trabalho e
ilustradas pelo discurso de um engenheiro de vida de uma formação social, mas tam-
durante o XV Congresso Nacional de Pre- bém que [2] constituem, ao mesmo tempo,

20 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 19-27, 2007


uma construção teórico-prática social e de compreender os acidentes de trabalho,
historicamente produzida, resultante de considerando suas implicações para as
diferentes práticas sociais (de hegemonia, práticas de prevenção e de reivindicação.
subordinação e questionamento). Consi-
derada nessa dimensão, a saúde-doença Método
aparece como um processo de construção
social no qual se vão constituindo modos
A pesquisa consistiu-se em um estudo
de representação, assim como respostas de caso (YIN, 2001) no qual foram inves-
sociais e institucionais. Isso supõe então, tigados os contextos institucional e discur-
primeiro, reconhecer que o mesmo pro- sivo de uma empresa através de análise de
cesso implica, tanto a configuração das documentos, observações, conversas infor-
categorias conceituais e os recursos práti- mais, registros em diário de campo, além de
cos da teoria e da prática médica, como vinte entrevistas semi-estruturadas de cará-
dos modos de percepção-representação e ter confrontativo3, gravadas e transcritas.
as práticas dos distintos setores de uma 3
O momento confrontativo da en-
sociedade. Segundo, definir o caráter das A análise dos dados tomou como base trevista (POTTER & MULKAY, 1985)
relações sociais nas quais essa construção as considerações de Spink (2004), sobre a consiste basicamente no debate
sustenta-se. (p. 34, itálico meu) produção de sentidos, e a psicologia retóri- com o depoente a respeito de suas
próprias idéias após elas terem
ca de Michael Billig (BILLIG, 1987 e 1991;
Objetivo sido detalhadamente expostas.
BILLIG et al., 1988). Guiou a análise a bus- Ele tem como objetivo explicitar
O objetivo da presente pesquisa foi jus- ca pelos argumentos e contra-argumentos argumentos e contra-argumentos
tamente compreender como são construí- que sustentam os modos de interpretação na defesa de opiniões.
das, no cotidiano de uma fábrica, as formas dos acidentes de trabalho.

Resultados e discussão

Contexto institucional do estudo que discutiremos adiante, e por restrições


de ordem econômica.
A empresa-caso é uma metalúrgica de
grande porte da Grande São Paulo perten- Encontramos também uma ampla di-
cente ao ramo de autopeças. Contava na fusão do uso de equipamentos de proteção
época da pesquisa com cerca de mil e qui- individual (EPIs) por parte dos trabalha-
nhentos funcionários. Os setores da pro- dores e de práticas voltadas para a sua
dução incluíam: forja, usinagem, retífica educação e “conscientização”, o que inclui
e montagem. A área de produção passava não só a tentativa de criação do hábito de
naquele momento por um processo de re- utilização dos EPIs, mas também outras
novação de suas instalações e por uma gra- intervenções sobre o comportamento dos
dual redução de seus postos de trabalho. trabalhadores em relação aos acidentes
orientadas para a eliminação do que se
Os riscos para acidentes eram de di-
compreende como atos inseguros.
versas ordens, começando pela manipu-
lação de peças pesadas, que ocasionavam A atuação da CIPA4 da empresa-caso, 4
Comissão Interna de Prevenção
prensamentos das mãos ou queimaduras, por sua vez, é vista pelo sindicato dos me-
de Acidentes.
no caso das peças fundidas ou recém-sol- talúrgicos da região como modelo. É con-
dadas. O transporte e o armazenamento siderada ativa e combativa. Suas ações
de materiais também apresentavam ris- voltam-se para as correções ambientais,
cos semelhantes. As máquinas ofereciam mas também para a ação disciplinar, isto
os riscos mais graves, principalmente nas é, para a mudança de comportamento dos
ações de ajuste, limpeza, manutenção, ali- trabalhadores.
mentação ou operação, durante as quais o
Quanto à análise propriamente dita
contato com o equipamento ou com peças
dos acidentes, ela é orientada pelo modelo
em movimento, cantos vivos, rebarbas ou
heinrichiano, o que se evidencia, por exem-
cavacos podiam ocasionar ferimentos.
plo, pela ficha de registro dos acidentes de
A empresa-caso desenvolve várias prá- trabalho. Essa ficha, além do campo desti-
ticas de gestão de riscos e de prevenção nado à descrição do acidente, inclui ainda
de acidentes que englobam ações voltadas três outros campos: “condições inseguras
para a detecção e a eliminação de riscos presentes”, “atos inseguros cometidos” e
no ambiente de trabalho. Deve-se notar, um campo complementar onde o próprio
no entanto, que essas ações são limitadas acidentado declara a “razão” pela qual teria
pela “naturalização” dos riscos, assunto praticado um ato inseguro.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 19-27, 2007 21


A análise quantitativa das fichas de re- Olha, rapaz, o acidente, pra mim, é o que
gistro dos acidentes realizada pela própria eu falei pra você: falha humana mesmo.
equipe de segurança sugeriu haver predo- Porque toda relação, relatório que faz
do acidente, em qualquer firma, você
mínio dos atos inseguros como supostas
vai, é constatado falha humana. [E você
causas dos acidentes ocorridos, conforme acha que é isso mesmo?] É isso mesmo,
a distribuição a seguir (os dados referem- não tem outra... [Não tem outra causa?]
se às 250 fichas de registro dos acidentes ...não tem outra causa não. [...] Todos os
ocorridos ao longo do ano anterior ao da acidentes... você pode por na cabeça que
realização da pesquisa): atos e condições a máquina não falha [Mas, às vezes, não
simultaneamente (39,2%), exclusivamen- falha?] Não [Às vezes não quebra alguma
te atos inseguros (32,4%), exclusivamente coisa?] Não, ela pode quebrar, mas, você,
condições inseguras (2,8%), Não classifi- veja bem, a maioria, 99% é falha huma-
na. O acidente é falha humana. (Paulo5,
5
Todos os nomes de trabalhado- cados (25,6%).
operador de máquinas)
res utilizados neste artigo são
Pode-se apreender dessa breve apresen-
fictícios. Essas explicações seguem basicamente
tação que as concepções sobre os aciden-
o seguinte modelo: o ato inseguro, como
tes de trabalho predominantes na empresa
uma das explicações correntes para o aci-
na época da pesquisa eram as do modelo
dente, é sempre um evento inesperado da
heinrichiano. Esse modelo orienta as práti-
parte do indivíduo e que antecede imedia-
cas referidas acima e faz com que se iden-
tamente o evento. Por sua vez, outro tipo
tifiquem as causas dos acidentes de forma
de causa dos acidentes nesse arcabouço de
dicotômica. Embora tenham sido encontra-
explicações do senso-comum, as condições
das diferenças, técnicos e gestores compar-
inseguras são eventos inesperados das má-
tilham desse modelo.
quinas (ou de outros elementos do ambien-
Explicando os acidentes no cotidiano te de trabalho). Eventos inesperados de um
ou outro elemento de um binômio sólido,
Os acidentes são tema de muitas das
quase inescapável, que definiriam a ação
conversas travadas dentro da fábrica e en-
decisiva para a ocorrência do acidente.
sejam discussões acaloradas entre os traba-
lhadores. Ao se falar sobre as causas dos Reconhecemos nos discursos a existên-
acidentes de trabalho, vários debates são cia de dois repertórios interpretativos que
trazidos à baila. sustentam cada uma dessas possibilidades
explicativas. Isto é, ao se decidir entre um
Primeiro, aparecem dilemas gerais da
ou outro tipo de explicação, decide-se tam-
definição e da natureza dos acidentes. Por
bém por um conjunto de interpretações
exemplo, a definição do que é acidente e
tácitas que as sustentam. O dilema vivido
do que não é. Incidentes com ferimentos
pelos que se envolvem nas conversas sobre
leves seriam acidentes? Também se discute
os acidentes é decidir, então, se os aciden-
o acidente de trabalho em sua relação dire-
tes foram causados pelos atos inseguros ou
ta ou indireta com a atividade de trabalho:
pelas condições inseguras.
um acidente ocorrido no chão de fábrica,
mas causado por um evento não relaciona- Embora haja a predominância do re-
do ao trabalho (infarto, assalto), seria um pertório dos atos inseguros, falar e dialogar
acidente de trabalho? sobre os acidentes envolve um debate en-
tre duas posições opostas, de modo que a
Um outro dilema presente nos discur-
construção das explicações ocorre em um
sos refere-se ao determinismo causal: en-
contexto argumentativo. Nesse contexto, a
tram em disputa opiniões que sustentam a
dicotomia heinrichiana é uma espécie de
imprevisibilidade dos acidentes e aquelas
lugar-comum (BILLIG, 1991) a partir do
que supõem a possibilidade de identifica-
qual são construídos os argumentos para
ção antecipada de suas causas. Um outro
defender qualquer uma das duas posições
ainda diz respeito à intencionalidade ou
em confronto. Utilizam-se, a todo instante,
à involuntariedade do acontecimento, o
argumentos e contra-argumentos: na defe-
que remete às categorias jurídicas de dolo
sa de uma posição, formulam-se argumen-
e culpa.
tos contra a posição contrária, o que revela
Quanto à explicação das causas pro- o constante debate e os modos de conven-
priamente ditas, temos mais uma vez a ree- cimento em um contexto discursivo argu-
dição da teoria dos dominós de Heinrich. mentativo e dialógico.
Assim como nas fichas de acidentes Neste trecho de entrevista, por exem-
apresentadas anteriormente, a explicação plo, o depoente descarta a existência de
pelos atos inseguros é hegemônica: condições inseguras para, em seguida, afir-

22 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 19-27, 2007


mar os atos inseguros como causa para os naquilo que você tá fazendo, pensando
acidentes da empresa-caso: numa outra coisa, ou, então, é uma con-
dição insegura que você, que, apesar de
A [nome da empresa] tem condições por- você, muitas vezes, você tá consciente
que ela tem um almoxarifado, tem a porca que tem uma condição insegura naquele
lá, tem o parafuso, cabe a nós operador, determinado equipamento, e você insiste
preparador ir lá requisitar. Se ela não ti- ou, às vezes, desconhece, né? Não procura
vesse aquilo no almoxarifado, então, tudo ajuda de alguém pra solucionar. (Caetano,
bem, ela não tá dando condições, mas tem operador de máquinas)
lá! Então a maioria dos acidente acontece
por uma imprudência nossa [...] mas eu Do mesmo modo, as ações dos trabalha-
acho que se todos nós trabalhar com cui- dores podem ser encaradas como produto-
dado, atenção e determinação, o acidente ras de condições inseguras:
elimina bastante, que a maioria dos aci-
dentes são descuido nosso mesmo. (Hele- O cara tá trabalhando num lugar, não or-
no, operador de máquinas) ganiza nada, tropeça, bate a cabeça numa
bica de uma máquina, alguma coisa, ou
Há, no entanto, diferentes formas de passa a mão em alguma coisa que corta
construção discursiva dos acidentes a par- a mão dele lá. A limpeza, a organização,
tir dessas duas posições, o que imprime às tudo isso aí é condição insegura. Só que é
diversas explicações construídas caracte- uma condição insegura da própria pessoa
rísticas polissêmicas. Observam-se, como que trabalha lá. (Geraldo, montador)
veremos a seguir, variações, confrontos e Essa relação entre os trabalhadores e o
rupturas desses repertórios. reconhecimento das condições de traba-
Em alguns casos, a explicação é feita a lho como inseguras é atravessada por um
partir de uma posição, embora apareçam, sério dilema vivido cotidianamente pelos
em segundo plano, referências à outra. trabalhadores da fábrica. Por um lado,
Neste diálogo, por exemplo, embora o tra- muitos entrevistados falam da obrigação
balhador aponte a existência de condições que todos os trabalhadores têm de verifi-
inseguras (falta de equipamento e de in- car as condições de trabalho e de não acei-
formação), ao final sua conclusão é que se tar condições inseguras. Por outro, reve-
acidentou por ter se distraído: lam o medo de recusarem-se a trabalhar,
de “ficarem marcados” pelas chefias e de
Eu acho que... é um pouco de descuido serem alvos de retaliações.
do operador, e no caso também não tinha
nada pra mostrar, no caso lá da empilha- Mecanismos institucionais de circulação
deira, se tivesse uma luva apropriada lá de concepções sobre os acidentes
pra... [com uma placa dizendo] ‘isso aqui
é pra trocar oxigênio da empilhadeira’, Se as concepções heinrichianas sobre
então, na própria empilhadeira. Mas não os acidentes de trabalho circulam inten-
tinha nada, né? Eu já tinha trocado ou- samente pelos espaços informais, como
tras vez e nunca tinha sofrido isso... e nas conversas cotidianas, elas também são
esse dia aconteceu. Se tivesse lá uma luva objeto de mecanismos institucionais, que
apropriada pra fazer esse tipo de servi-
ativamente buscam interferir naquilo que
ço, talvez isso não aconteceria [Mas, por
exemplo, esse acidente em que você se
se pensa sobre o fenômeno. Esses mecanis-
queimou, você achou que foi distração mos são os mais variados: campanhas, car-
sua ou foi a falta dessa luva que causou o tazes, cartilhas, palestras, filmes, organiza-
acidente?] Foi distração minha [Distração ção de SIPATs6, peças de teatro, “reuniões
sua?] Distração minha. (Ubiratan, instala- de segurança” etc.
6
Semana Interna de Prevenção de
dor de manutenção) Acidentes de Trabalho.
A cartilha A vida é frágil, evite acidentes
No caso abaixo, o uso de um repertó- – manual geral de segurança, distribuída
rio revela-se como justificativa da posição aos trabalhadores pela equipe de seguran-
defendida pelo outro repertório. Embora as ça, oferece uma pequena amostra do dis-
condições inseguras compareçam ao seu curso que é veiculado por essas práticas e
discurso, o entrevistado atribui a causa dos materiais didáticos:
acidentes à atitude dos trabalhadores em
...a prevenção de acidentes não depen-
relação a essas condições:
de somente de boas condições materiais,
Na minha, no meu modo de pensar o aci- mas, principalmente, do elemento huma-
dente só pode acontecer por isso, não tem no, ou seja, você [...] Grande parcela de
outra maneira de ocorrer acidente. Ou é responsabilidade na prevenção de aciden-
por um problema psicológico seu, o que tes cabe ao empregado não ao dirigente
você tá pensando, você tá operando uma pois, devido à natureza de seu trabalho, é
máquina sem realmente tá concentrado quem corre maior risco de acidentes, por

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estar fazendo trabalhos que exigem mo- A naturalização dos riscos significa a ine-
vimentos físicos, estar em contato direto xistência de um horizonte próximo de
com máquinas, equipamentos etc. [...] possibilidades de mudanças das condi-
Para o seu benefício não seja igual a um ções de trabalho e expressa-se na lingua-
destes: distraído, imprudente, gozador, gem através da nomeação dos riscos como
curioso, sabido, ingênuo, exibicionista, ‘inevitáveis’ ou ‘inerentes ao trabalho’. A
displicente, teimoso. conseqüência mais visível da naturaliza-
ção é a limitação das possibilidades de
Sobre a predominância das explicações prevenção, pois, não podendo o micro-
calcadas nos atos inseguros e sua relação ambiente da fábrica ser outro, não restaria
com as referidas práticas e materiais didá- outra alternativa, a não ser intervir sobre
ticos, um trabalhador afirmou: a única dimensão do trabalho aparente-
mente passível de modificação: os pró-
Eu acho que é tipo, é matéria de conscien- prios trabalhadores, através de seleção ou
tização, sabe? Se você, igual à palestra treinamento. (p. 81, itálicos do autor)
deles... tipo a palestra deles, a matéria é
sobre isso [Sobre o quê?] Sobre ato in- Trata-se de um processo que é anterior
seguro... Sabe, eles só falam isso. Então, ao debate entre atos inseguros ou condi-
uma pessoa que, tipo, trabalha aqui ou ções inseguras e que retira do horizonte
sempre fica vendo isso, fica bitolado, por- discursivo estas últimas.
que a pessoa não vê o outro lado, sabe?
[...] Então, o que você vê é que a firma, O que ocorre na empresa estudada é a
ela sempre é que fala que é o operário que restrição da definição de “risco” aos defei-
faz ato inseguro... e, eu acho, é uma coisa tos e eventos inesperados, isto é, aos acon-
que a pessoa fica bitolada: ‘é ato inseguro, tecimentos que escapam ao rotineiro. Nota-
é ato inseguro, é ato inseguro’... [...] mas
se em alguns casos o reconhecimento dos
também tem muita gente que vai só pra fi-
riscos em um primeiro momento para, logo
car mais descansado, né, nessas reuniões
aí. Porque são uns vídeo muito ultrapassa- em seguida, serem definidos como “inevi-
do, não são as coisas de hoje em dia. Pô! táveis”. Ou, ainda, observam-se situações
Tem máquina aí, se você não pisar, não em que há o reconhecimento da existência
fecha, não trava, não liga, não vai fazer a de riscos, mas eles são definidos como es-
operação. Ou seja, tem quatro sistema de tando “sob controle”. Nas palavras de Ar-
proteção do operário e aqui, você vê, não lindo, um operador de máquinas:
tem muitas. Se escapa, tipo, uma tampa
aqui... Tu morre, cara! Então, é isso, eu É... agora, no caso do forno, você colo-
acho que o pessoal, em matéria de ato in- ca uma peça do outro lote, aí tem que
seguro, é por causa dessa palestras, essas ter atenção porque num tem como você
coisas visando sempre culpar o operador. colocar um dispositivo pra evitar aqui-
(Marcelo, operador de máquinas) lo, como é que você vai colocar? [Como
assim? Explica melhor...] Porque, você...
O que há de mais marcante nessas prá- naquilo que eu falo que é falta de aten-
ticas é a construção do consenso em torno ção, você pega uma peça pra colocar em
dos lugares-comuns da explicação dicotô- cima da outra, você deixa os dedo debai-
mica dos acidentes. Isso implica na difusão xo e prensa os dedo. Não tem como você
colocar... como se diz... um dispositivo
da dicotomia heinrichiana, da concepção
ali pra evitar aquilo ali... [Pra evitar...] Aí
de atos inseguros e da naturalização dos que eu acho que é atenção.
riscos (que discutiremos a seguir). Impli-
ca também na reunião de elementos que Algo semelhante também foi dito por
colaboram – não sem dificuldades e resis- um engenheiro de segurança em uma con-
tências – para a construção da consciência versa informal:
culposa dos trabalhadores. Porque, assim, o risco existe, disso eu
não tenho dúvida. Agora, tem risco que
Naturalização dos riscos
não tem jeito, sabe, que é inerente à ati-
Os argumentos que sustentam o re- vidade... [...] então a pessoa tem que ter
pertório interpretativo dos atos inseguros consciência [...] Então, eu não colocaria
como explicação para os acidentes rece- lá dentro um cara sem experiência ne-
nhuma pra trabalhar.
bem respaldo de um processo que deno-
minamos como naturalização dos riscos. Se os riscos são inevitáveis, o que res-
Do modo como aparecem nos discursos, ta fazer a não ser mudar o comportamento
os riscos ambientais são compreendi- das pessoas? A questão é: em que medida
dos como parte do processo de trabalho, os riscos são realmente inevitáveis? Explo-
como naturais e inevitáveis. Segundo remos um pouco as fissuras dessa realida-
Oliveira (1997): de naturalizada.

24 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 19-27, 2007


Rupturas e formas de resistência Primeiro, o discurso sindical que, pela sua
ênfase na eliminação de riscos, faz con-
Se existem mecanismos de construção
traponto à sua naturalização. Segundo, as
de consenso na empresa estudada, encon-
concepções sistêmicas presentes no méto-
tramos também rupturas de sentidos pos-
do das árvores de causas. Embora apenas
sibilitadas pela composição dilemática das
circulando entre alguns membros da equi-
explicações. Essas rupturas desafiam os lu-
pe de segurança, as idéias que embasam o
gares-comuns, isto é, apontam para possi-
método das árvores de causas têm desafia-
bilidades de compreensão do acidente que
do duramente as idéias heinrichianas.
escapam da dicotomia heinrichiana e da
naturalização dos riscos. Deve-se notar, no entanto, que a intro-
dução de novas formas de compreensão
Um primeiro tipo de ruptura discursiva
dos acidentes é limitada pelo próprio po-
é a oposição frontal. Alguns poucos entre-
der estruturante do modelo heinrichiano.
vistados manifestaram-se de forma direta e
O que se observou na empresa-caso foi
contrária às idéias culpabilizantes:
uma espécie de “sincretismo teórico”, isto
Eu falei ‘ato inseguro’ porque muitas vezes é, idéias sistêmicas convivendo com a teo-
não é, e os técnicos só coloca ato insegu- ria dos dominós, algo como “construir a
ro [Ah, Entendi! Tá!] Eu não sei se é uma árvore de causas para descobrir o que pro-
matéria de ludibriar alguém, algum rela- duziu o ato inseguro do trabalhador”.7
tório que vai pro Estados Unidos... [...] ou 7
Oliveira (1997) chama esse fenô-
alguma coisa, porque não é possível, tudo, Além das rupturas de sentidos originá- meno de modulação.
tudo, tudo é ato inseguro! O cara cai de lá, rias dos dilemas da construção das próprias
ato inseguro... [Tá, entendi] Cê tá enten- explicações e pela introdução de outros dis-
dendo? [Certo] Eu questionei muito esse
cursos, foram recolhidos diversos exemplos
negócio de ato inseguro, nunca assinei
nada. Porque, cipeiro tem que assinar tam- de acontecimentos com efeito desnaturaliza-
bém. (Marcelo, operador de máquinas) dor, isto é, acontecimentos que alteraram as
condições de produção dos discursos e que
Ou com algumas nuances: apontam para a possibilidade de mudança
[Mas com relação a esse, esse acidente das condições de trabalho.
por que, por que você acha que aconteceu Quer dizer, ele pra terminar o serviço
esse acidente com você? O que que cau- logo, ele colocou tudo de uma vez na ban-
sou esse acidente?] Ah, na verdade acho deja. Onde cabia vinte peças, ele colocou
que, pode ser um descuido meu, pode ser trinta. Ele puxou... ele fala também que
uma falha também dá, dá... desse gancho, essa bandeja tem que ter um limite pra ela
né, inclusive eu cobrei depois do pessoal bater e parar, não tinha também, aí colo-
que ele era muito curto. Na verdade, ele caram agora. Agora, às vez alguém bate,
joga sempre a culpa no operador, mas nem mesmo que tiver cheia de excesso de peso,
sempre é, porque... [Quem joga a culpa no ela bate e pára. Depois que aconteceu isso
operador?] Aí seria, no caso, o encarrega- colocaram, sempre depois que acontece
do. (Caetano, operador de máquinas) essas coisa eles colocam. Agora ela bate
Do mesmo modo, também observamos ali e pára, num tem perigo. (Arlindo, ope-
rador de máquinas)
questionamentos nas fichas de acidentes
no campo destinado às justificativas dos Um outro exemplo de acontecimento
trabalhadores por seus supostos atos inse- com efeito desnaturalizador foi a introdu-
guros. Indignados, vários trabalhadores es- ção de talhas8 no setor de montagem. As
creveram discordando da responsabilidade talhas diminuíram muito os acidentes en-
8
Talhas são equipamentos que,
que lhes fora imputada ou apontando con- volvendo prensamento de dedos e de mãos por meio de ganchos, cabos e
dições inseguras que seriam as verdadeiras motores elétricos, permitem
e mostrou aos trabalhadores que certos
suspender e transportar objetos
causas, em sua opinião, dos acidentes. riscos que pareciam fazer parte da nature- pesados.
za de sua atividade de trabalho poderiam
Rupturas mais sutis ou resistências
ser eliminados com a simples introdução
silenciosas aparecem também no próprio
de melhorias técnicas. Tanto é que, reco-
processo de construção das explicações.
nhecendo as talhas como forma de pre-
Por exemplo, como visto acima, quando
venção de acidentes, elas passam a ser
alguns trabalhadores afirmam ser um ato
reivindicadas por setores nos quais ainda
inseguro aceitar trabalhar quando há con-
não estavam presentes. Do mesmo modo,
dições inseguras presentes e cobram pela
muitos acidentes ocorridos foram capazes
obrigação de recusar-se a trabalhar.
de revelar riscos até então naturalizados
As idéias hegemônicas na fábrica tam- e conduziram a ações de reivindicação de
bém são desafiadas pela introdução de dis- melhores condições de trabalho e até mes-
cursos estranhos ao discurso hegemônico. mo à recusa a trabalhar.

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Conclusões

A principal conclusão a se tirar é que a através da historicização das condições de


teoria dos dominós de Heinrich, difundi- trabalho, da divulgação de exemplos de
da durante o “milagre econômico” por ór- intervenções e da elaboração de propostas
gãos oficiais e por outros meios, estrutura consistentes de mudanças.
o pensamento e as ações relacionados aos
Essas ações devem levar em conside-
acidentes de trabalho na fábrica estudada.
ração as modulações produzidas pelo con-
As explicações baseadas nos atos inseguros texto institucional sobre as novas concep-
predominam em função da naturalização ções que são introduzidas, explorando as
dos riscos e de mecanismos institucionais contradições das concepções hegemônicas
que as reafirmam cotidianamente. e elaborando argumentos e contra-argu-
As práticas discursivas sobre os aci- mentos a serem amplamente difundidos.
dentes acontecem em um contexto argu- A difusão desse contra-discurso depende
mentativo, o que aponta caminhos para a da ação conjunta de trabalhadores, sindi-
contestação das idéias hegemônicas, tendo calistas e técnicos na formação de agentes
em vista que não são monolíticas e que multiplicadores atuando nas bases.
apresentam fissuras. As rupturas de senti- Além disso, considerando-se os aspec-
dos, as ações de resistência e os aconteci- tos argumentativos dos discursos, a análise
mentos desnaturalizadores apresentados de acidentes deveria criar condições para
são exemplos disso. que as falas dos trabalhadores fossem con-
Esse, portanto, deve ser o ponto de par- textualizadas, de modo que as nuances pu-
dessem ser percebidas.
tida para o planejamento de ações trans-
formadoras do quadro atual. Essas ações Finalmente, é simplista dizer que os
deveriam: a) difundir modelos que se opo- trabalhadores aderiram às concepções cul-
nham à perspectiva heinrichiana; b) ques- pabilizantes, pois as nuances de suas nar-
tionar duramente o conceito de ato inse- rativas revelam as fissuras desse discurso e
guro; c) minar a naturalização dos riscos os caminhos para sabotá-lo.

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Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 19-27, 2007 27


Acidente do trabalho investigado pelo CEREST Pira-
Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela1 cicaba: confrontando a abordagem tradicional da se-
Renata Wey Berti Mendes2 gurança do trabalho
Carmen Aparecida H. Gonçalves3
Work related accident investigated by CEREST Piracicaba:
confronting the traditional approach of safety at work

1
Engenheiro de Segurança do Tra- Resumo
balho do Centro de Referência em
Saúde do Trabalhador de Piracica- Partindo de exploração das diferentes concepções acerca dos acidentes do
ba. Professor Doutor da Universi-
trabalho e pretendendo discutir suas implicações sobre a prevenção, este ar-
dade Metodista de Piracicaba.
tigo apresenta o caso de investigação de acidente de trabalho (AT) realizado
2
Psicóloga do Centro de Refe- pelo Sistema de Vigilância de Acidentes do Trabalho (SIVAT) do Centro de
rência em Saúde do Trabalhador
Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) de Piracicaba, que utiliza a
de Piracicaba. Mestre em Saúde
Pública.
notificação a partir de todos os pronto-socorros e hospitais do município. A
metodologia de investigação do AT utilizada pelo CEREST inclui entrevistas,
3
Engenheira de Segurança do
análise de documentos, fotografias, observação e estudo da situação do tra-
Trabalho do Centro de Referên-
cia em Saúde do Trabalhador de
balho. Por outro lado, a empresa, com auxílio de laudo do Instituto de Crimi-
Piracicaba. Mestre em Engenharia nalística (IC), usando uma abordagem tradicional do ato inseguro, apresenta
de Produção. explicações simplistas das causas dos acidentes de trabalho, o que resulta
na atribuição de culpa às vítimas desses eventos, deixando de identificar os
aspectos da organização do trabalho, a concepção dos equipamentos; fatores
que, explorados, apontariam caminhos para a melhoria da segurança e da
confiabilidade dos sistemas. Concluiu-se pela necessidade de mudanças cul-
turais na área de segurança com investimentos permanentes na capacitação
e na difusão dos novos conceitos sobre acidentes junto aos atores sociais, aos
profissionais e ao poder judiciário.
Palavras-chaves: acidente do trabalho, conceitos, investigação de causas,
vigilância.

Abstract
Exploring different concepts of work-related accidents and intending to discuss
their implications on prevention, this article presents a case-study on work
related accident (WRA) investigation conducted by the System of Surveillance
of Accidents at Work (SIVAT) at the Center of Reference on Worker’s Health
(CEREST) in Piracicaba, using cases notified by all emergency rooms and
hospitals of the Municipal district. The methodology of investigation of
WRA used by CEREST includes interviews, analysis of documents, pictures,
observation, and investigation of the situation at worksite. On the other
hand, companies present simplistic explanations of WRA occurrences, using
the traditional approach based on individual unsafe action, facilitated by
reports issued by the State Criminalistics Institute (IC). Consequently victims
are blamed for the events, and aspects of work organization or equipment
conception are ignored. Such factors, if properly analyzed, could point
out solutions for improvements in safety and reliability of the systems.
Authors concluded that cultural changes in the safety field are necessary,
with continuous investments in training and diffusion of new concepts on
accidents among social actors, professionals, and the Judiciary.
Keywords: occupational accident, concepts, investigation of causes, surveillance.

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Introdução

Pretende-se com este artigo apresentar ser adotadas para prevenção de fenôme-
caso de investigação de acidente de traba- nos semelhantes.
lho realizado pelo Centro de Referência
Nos resultados, a investigação do
em Saúde do Trabalhador (CEREST) de
CEREST é confrontada com a investigação
Piracicaba a partir de notificação no con-
da empresa e do Instituto de Criminalística,
texto do Sistema de Vigilância em Aciden-
que se baseiam na visão tradicional de que
tes do Trabalho (SIVAT). O artigo mostra o acidente ocorre por falhas humanas dos
a parcialidade da análise e a redução do operadores.
campo de ações preventivas ao se adotar o
modelo tradicional confrontado com uma O SIVAT é operado pelo CEREST Pi-
investigação orientada por uma aborda- racicaba na tentativa de instalar processo
gem sistêmica. A concepção adotada pelo ágil de investigação de acidentes graves
CEREST possibilita a adoção de medidas e fatais. Foi instalado a partir do ano de
preventivas tanto para a empresa estudada 2001 e tem as seguintes características: (1)
como para máquinas por meio de negocia- as informações que alimentam o sistema
ção com os fabricantes. são obtidas nos locais de atendimento ao
acidentado do trabalho – hospitais e Pron-
Na investigação do AT, foi utilizada a to Socorros (PS) – por meio de Relatório
metodologia que inclui entrevistas com o de Atendimento do Acidentado do Traba-
trabalhador acidentado e os membros da lho (RAAT). Foram notificados, em 2006,
equipe de trabalho; observação e estudo 6.649 acidentes do trabalho em todos lo-
“da situação de trabalho”; análise de do- cais de pronto atendimento na cidade de
cumentos, como planta da máquina, dese- Piracicaba (CEREST, 2006); (2) o sistema
nho da peça que estava sendo usinada, fo- tem abrangência universal dentro do mu-
tografias para identificação de fatores que nicípio, compreendendo todos os aciden-
deram origem ao acidente. A abordagem tes do trabalho ocorridos em Piracicaba,
parte da tentativa de recompor, compreen- independentemente da existência e da
der e descrever a situação de trabalho no natureza do vínculo empregatício do tra-
momento do acidente, isto é, por meio das balhador, de sua sede de trabalho e de seu
entrevistas e das observações após o acon- local de moradia; (3) as ações de vigilân-
tecimento do acidente, listar os fatores que cia e promoção à saúde são desencadeadas
determinaram a atividade do trabalhador pela identificação de eventos sentinela,
e da equipe (seu comportamento, sua mo- que são aqueles graves e fatais. Esses casos
bilização cognitiva, física e social) e carac- são objeto de investigação em profundida-
terizar/explicar o sentido das suas ações de, visando, por meio de entrevistas com o
até o evento-acidente. Dessa forma, os pos- acidentado e a equipe, à análise documen-
síveis erros de projeto ou de supervisão tal, à análise do processo e das condições
também podem ser explicados por meio da de trabalho, à notificação da empresa, às
recomposição das “situações de trabalho” reuniões e negociações, a identificar e
respectivas. Na tentativa de recomposição estabelecer medidas corretivas/preventi-
da situação de trabalho, o método busca vas para evitar a ocorrência de acidentes
a compreensão da atividade real desen- similares; (4) o sistema opera tendo como
volvida pelos operadores de modo a não pressuposto a necessária articulação inte-
se limitar ao estudo da atividade supos- rinstitucional, a participação conjunta do
tamente desenvolvida por estes (trabalho Ministério do Trabalho e Emprego, do SUS
prescrito), utilizando-se dos conceitos da e de representantes da sociedade por meio
Ergonomia da Atividade (WISNER, 1993). dos sindicatos e das associações e visa a
diminuir o elevado índice de ATs no mu-
O acidente é visto como fenômeno nicípio. A operação sistemática do SIVAT
complexo e multicausal. A partir da lesão, constitui uma importante política pública
busca-se recompor a situação de trabalho de caráter preventivo trazendo avanços na
que deu origem ao acidente, identificando saúde do trabalhador e dados epidemio-
aí fatores causais situados na sua origem. lógicos importantes para o município e a
A correta investigação possibilita visua- região (VILELA, RICARDI & IGUTI, 2001;
lizar as medidas preventivas que devem VILELA, 2003; CORDEIRO et al., 2005).

30 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 29-40, 2007


Novas concepções para análise de acidentes de trabalho

O campo das análises de acidentes do Muitas são as críticas a essa corrente


trabalho tem se desenvolvido nos últimos teórica. Lieber (1998) já chamava a aten-
anos em direção à sua ampliação concei- ção para o caráter ideológico da teoria dos
tual. Esse desenvolvimento apóia-se nos dominós de Heinrich quando assegurava,
diferentes entendimentos acerca do que baseado em premissas não explicitadas
seja um acidente e dos fatores relaciona- em seu método, que a maioria dos aciden-
dos com sua origem. Os fundamentos des- tes ocorriam for falhas humanas.
ses entendimentos, Almeida (2003) deno-
No Brasil, essa concepção tradicional,
minou “concepções de acidentes”.
ao fundamentar/embasar os interesses
A concepção mais tradicional sobre inerentes à defesa jurídica das empresas,
acidente do trabalho é a que teoriza sobre torna-a útil nos processos para descarac-
o erro humano ou atos inseguros. Essa terizar a responsabilidade civil ou penal
corrente teórica caracteriza-se por apre- (VILELA, IGUTI & ALMEIDA, 2004). Esse
sentar um modelo unicausal, em que o ser modelo amplamente utilizado no Brasil
humano é o elo fraco do sistema e por isso torna-se então um modelo operante, útil
deve ter seu comportamento controlado e, portanto, de difícil superação. Cabe des-
por mecanismos de estímulos e respostas, tacar que nossa teoria jurídica na área de
com premiações e punições. É considera- saúde e segurança do trabalho assenta-se
da tradicional por ter suas bases na teoria na responsabilidade subjetiva, baseada na
do dominó de Heinrich (1959) e encontrar necessidade de demonstração de culpa do
ainda hoje muitos apoiadores. Estudos que empregador. Segundo os Códigos Civil e
exploram as diferentes concepções mos- Penal brasileiros, não cabe reparação civil
tram que a idéia de acidente causado por ou processo penal quando o acidente tiver
descuidos, falta de atenção, erros huma- ocorrido “por culpa exclusiva da vítima”
nos ou atos inseguros dos operadores de ou nas hipóteses de caso fortuito ou de for-
linha de frente está presente na maioria ça maior (OLIVEIRA, 1998).
das análises realizadas por empresas e Podemos então afirmar que, ao invés de
também nas representações e discursos estarmos diante de uma teoria, o “modelo
dos próprios trabalhadores acidentados brasileiro de ato inseguro” se enquadra
(BINDER, AZEVEDO & ALMEIDA, 1997; mais como senso comum que, ao contrário
ACHCAR, 1990; MENDES, 2006). Atual- de explicar, pretende esconder e ocultar a
mente, os defensores dessa concepção têm realidade, ou seja, configura-se como uma
buscado dar-lhe uma roupagem renovada. modalidade de alienação social caracterís-
A idéia ainda é de segurança comporta- tica da ideologia. Segundo Chauí (1997):
mental. As causas dos acidentes ainda es-
tão atribuídas aos operadores, em geral aos a alienação social se exprime numa “teo-
ria” do conhecimento espontânea, forman-
acidentados, mas o controle sobre o com-
do o senso comum da sociedade. Por seu
portamento dito inseguro não é mais base- intermédio, são imaginadas explicações
ado em punições, mas sim em mobilização e justificativas para a realidade tal como
do coletivo de trabalhadores para que eles é diretamente percebida e vivida. Um
mesmos sejam seus fiscalizadores. Cooper exemplo desse senso comum aparece no
(2005) defende que o medo das punições caso da “explicação da pobreza, em que o
pode afastar o trabalhador do programa de pobre é pobre por sua própria culpa (pre-
prevenção em segurança, portanto, as me- guiça, ignorância) ou por vontade divina
ou por inferioridade natural”. (p. 249)
lhores estratégias são as que eles mesmos
se vigiem e reportem o comportamento Esse senso comum social, na verdade, é
inseguro do colega. O denunciado deverá o resultado de uma elaboração intelectual
passar por programa de conscientização sobre a realidade feita por alguns pensado-
dos riscos, já aqueles que mantiverem res ou intelectuais da sociedade que descre-
comportamentos seguros deverão ser pre- vem e explicam o mundo a partir do ponto
miados. A identificação dos atos deve ser de vista dos interesses que representam.
baseada nas normas, nos procedimentos e Segundo a autora, essa elaboração intelec-
nos padrões de segurança que pressupõem tual incorporada pelo senso comum social
a forma correta de exercer a atividade. é a ideologia:

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 29-40, 2007 31


A função principal da ideologia é ocultar e tomadores de decisão, construtores do sis-
dissimular as divisões sociais e políticas, tema e cujas conseqüências ficam latentes
dar-lhes a aparência de indivisão e de di- por muito tempo no sistema.
ferenças naturais entre os seres humanos.
(CHAUÍ, 1997, p. 250) Ele defende que a forma de conceber o
acidente como tendo origem em ações ou
Lima e Assunção (2000) apontam,
omissões no trabalho pressupõe que tais
sobre a concepção tradicional, seu redu-
comportamentos são frutos de escolhas li-
cionismo racionalista que compreende o
vres e conscientes dos trabalhadores den-
comportamento humano como determi-
tro de um conjunto de tantas outras opções
nado exclusivamente pela consciência e
possíveis e em contexto de total controle
desconsidera aspectos da própria ativi-
da situação. Ele critica que o julgamento
dade, contexto em que o trabalhador está
sobre as ações ou as omissões desconsidera
inserido, bem como as variabilidades com
o contexto em que elas se dão, a historici-
as quais tem que lidar. Llory (1999) alerta
dade das decisões tomadas pela empresa,
para a impossibilidade de se antecipar to-
a natureza da tarefa e as variabilidades
das as situações a serem enquadradas nos
presentes durante a atividade, além da pre-
procedimentos e nas normas de seguran-
sença ou não de barreiras no sistema que o
ça. Portanto, basear a prevenção em cima
protege diante dos riscos.
das prescrições é torná-la frágil. Almeida
(2006) afirma que as principais e mais per- O modelo de análise de acidentes de
versas conseqüências dessa abordagem é Reason, também conhecido por modelo
a culpabilização da vítima de um lado e a do acidente organizacional, ou modelo da
inibição da prevenção de outro. análise de barreiras, enfatiza a busca por
aspectos da organização (história, deci-
Estudos recentes mostram que esta
sões, mudanças) que possam ter deixado
concepção, além de estar cristalizada nas
latente o risco de acidente. Segundo o au-
análises das empresas, encontra eco e es-
tor, um erro ativo pode combinar-se com
paço de reprodução em organismos ofi-
outros fatores presentes no sistema e este
ciais, como o Instituto de Criminalística
encontro pode desencadear a liberação de
de São Paulo, órgão da Secretaria de Se-
energia que ultrapasse as falhas nas bar-
gurança Pública que investiga os aciden-
reiras de proteção do sistema. O acidente,
tes do trabalho graves e fatais emitindo
portanto, seria decorrente do encontro de
laudos favoráveis aos interesses jurídicos
diversos fatores capazes de desencadeá-lo.
das empresas e de profissionais dos servi-
Nessa abordagem, a ausência de barreiras
ços especializados de segurança e medici-
de proteção é considerada “a priori” um
na do trabalho (VILELA, 2002; VILELA,
fator de acidente e é enfatizada a necessi-
IGUTI & ALMEIDA, 2004). Esses estudos
dade de que existam múltiplas barreiras de
confrontaram a metodologia tradicional
proteção do sistema.
com a metodologia da árvore de causas
(ADC) demonstrando a fragilidade da aná- Para esse autor, os seres humanos não
lise tradicional, seu caráter tendencioso e são considerados nas decisões e no contro-
as repercussões negativas destas análises le baseado em supervisões. Ele afirma ter
nas políticas preventivas, pois escondem encontrado em suas investigações que os
as causas reais dos acidentes. operadores arcam com as conseqüências
dos defeitos originados em instalações
Em contraposição às abordagens tradi-
incorretas e decisões administrativas
cionais, novos modelos de análise ou no-
ruins. Os erros ativos de operadores es-
vas concepções acerca dos acidentes têm
tressados devem, então, ser considerados
ganhado força e reconhecimento por parte
como originados nas falhas de concepção
dos estudiosos do tema. A noção de aciden-
do sistema. Os programas de prevenção
te organizacional desenvolvida por James
de acidentes devem atentar para essas fa-
Reason (1999) compreende que as origens
lhas e atuar sobre as condições materiais
de comportamentos devam ser buscadas
e sociais de trabalho.
em circunstâncias materiais e sociais do
contexto de trabalho. Esse autor introduziu Outra perspectiva inovadora no quadro
as noções de erros ativos como sendo aque- atual das concepções é a noção de acidente
les cometidos pelos executantes ou opera- psicoorganizacional apresentada por Mi-
dores, cujas conseqüências são imediatas, chel Llory (1999). Ela vem no mesmo cami-
e de erros latentes como aqueles cometidos nho do modelo proposto por Reason, mas
por responsáveis pelos planejamentos, por contribui acrescentando a dimensão subje-

32 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 29-40, 2007


tiva das organizações. Para Llory, o aciden- Llory defende que as investigações
te deve ser compreendido como fator que de acidentes devem contemplar as des-
esteve não só adormecido ou latente, mas crições subjetivas, incluindo as inten-
incubado no sistema. Devem ser conside- ções dos atores, as palavras usadas, as
rados e analisados, durante a investigação discussões e os elementos presentes nos
momentos que antecedem às tomadas de
dos acidentes, aspectos da história da or-
decisões. Afirma ser preciso estender as
ganização, tanto no nível das dimensões
análises também para os incidentes, os
particulares de cada um dos sujeitos que quase acidentes e as situações de ativida-
a compõe, quanto nos níveis das relações des habituais sem acidentes.
interpessoais, horizontais e verticais que
A prevenção eficaz só é conseguida se
se formaram e se estabeleceram historica-
todos os atores da empresa tiverem espaço
mente nas situações de trabalho. Ele afir-
garantido e efetivo de discussão, debate,
ma, ainda, que é preciso buscar e corrigir explanação dos problemas e das dificulda-
as falhas nas comunicações por serem es- des vividas na rotina de trabalho normal e
tas capazes de contribuir para o desenvol- participação na busca por resoluções dos
vimento de situações perigosas ou atrapa- problemas encontrados e também nas to-
lhar o controle e a correção destas. madas de decisão.

Apresentação do estudo de caso

Trata-se de acidente notificado pelo Re- produtivas conforme orientação do su-


latório de Atendimento ao Acidentado do pervisor da área. TO por sua vez é um
Trabalho (RAAT) reportado ao CEREST Pi- operador ainda inexperiente, pois opera
racicaba. Conforme previsto no Sistema de a máquina fresadora há cerca de 10 me-
Vigilância em Acidentes do Trabalho (SI- ses. Diante da percepção de ruído estra-
VAT), a investigação tem início a partir da nho ocorrido na máquina fresadora, TA
notificação dos casos graves e fatais quan- foi convocado pelo supervisor a opinar
do o RAAT chega ao CEREST. O primeiro sobre a operação de desbaste da peça na
passo adotado é a realização, quando pos- máquina fresadora (funil de aço carbono)
sível, de entrevista com o acidentado, que em processo de usinagem que apresentara
ocorre normalmente na residência do aci- ruído anormal. Trata-se de uma máquina
dentado ou no hospital quando o paciente fresadora nova de grande porte fabricada
já se encontra em condições e disposto a no Brasil. A máquina é operada por TO e
colaborar com a elucidação do caso. Após executa operações de usinagem. As pe-
a entrevista, a equipe de investigação se ças são afixadas por hastes e artefatos em
dirige ao local de trabalho e procede ao uma mesa plana denominada campo de
levantamento da situação de trabalho, uti- placas. A mesa é fixa e a ferramenta faz
lizando ainda entrevista com a equipe de os deslocamentos com movimentos nos 3
trabalho, com supervisores, área técnica eixos: X – Y – Z, obedecendo a programa-
e outras testemunhas do evento. É feito o ção de acordo com o desenho definido no
registro fotográfico da situação e efetuado setor de engenharia.
estudo documental (planta da máquina,
A máquina é semi-automática de co-
desenho da peça etc.). São também anali-
mando numérico (CNC). A ferramenta usa-
sados a organização do trabalho, a supervi-
da no caso de desbaste da solda do tampo
são, a jornada, a capacitação, o treinamen-
traseiro avança no sentido do eixo Z apro-
to e outros elementos que possam interferir
ximadamente 1,30 m (Figura 1). O opera-
na geração do caso.
dor TO executa os comandos de programa-
Os funcionários envolvidos no aci- ção em um painel que fica do outro lado do
dente são: Trabalhador Acidentado (TA), campo de placas. O painel fica sobre uma
Trabalhador Supervisor (TS) e Trabalha- plataforma situada no lado oposto da fer-
dor Operador (TO). O TA é registrado na ramenta cujo acesso normal se dá por um
empresa há dez dias como torneiro me- percurso longo, contornando-se o campo
cânico. No dia do acidente, TA realiza de placas, descendo no fosso de movimen-
atividades de rotina, como limpeza do tação do leito do eixo X e subindo uma es-
ambiente de trabalho, enquanto aguar- cada. O painel de acionamento da máquina
da a chegada de um novo equipamento é giratório e pode-se posicionar em angula-
(torno vertical) para iniciar as atividades ção, de modo que o operador da máquina

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 29-40, 2007 33


fique de lado ou de costas para a área de Durante a inspeção, segundo depoimento
operação da ferramenta. O posicionamento do TA, para visualizar o local onde se lo-
do painel pode dificultar a visualização da caliza a operação de desbaste, TS coloca a
zona de operação da ferramenta. As peças cabeça, o tronco e os braços no interior da
são afixadas no campo de placas por has- peça, através da abertura circular (d = 68
tes metálicas que podem ser de grandes cm) e detecta o defeito no desbaste (Figura
dimensões. 1). TS aciona TA para verificação do fato.
TA coloca só o braço e alcança o ponto com
A peça que está sendo usinada no dia
defeito. Neste momento TO já se encontra
do acidente tem grandes dimensões, com
no painel de operação e dá a partida na má-
diâmetro de 1,43 m, comprimento de 1,90
quina. A ferramenta giratória que executa
m e com furo nos fundos de 68 cm de di-
desbaste circular (Figura 1) é acionada e
âmetro. A sustentação da peça no campo
vem a amputar o braço do TA um pouco
de placas é efetuada com hastes em forma
abaixo da altura do ombro. Se a inspeção
de L, com largura de 1,10 m por 3,00 m
do TA fosse análoga à de TS, ou seja, co-
de altura. A base do L é fixada ao piso da
locando o tronco e a cabeça no interior do
mesa plana. As hastes impedem a visão do
furo, o acidente provavelmente seria fatal.
operador do lado oposto da peça, ou seja,
o perímetro do campo de placas fica sob Observa-se que a máquina não possui
risco contra acesso de pessoas, pois o ope- sistema de segurança tipo scanner para
rador não consegue visualizar a entrada identificar a presença e o ingresso de pes-
de pessoas junto ao ponto de operação da soas junto ao campo de placas, onde se
ferramenta. situa a zona de operação da ferramenta
– zona principal de risco.
Durante a operação de usinagem feita
para desbastar a junta de solda do tampo Destaca-se o fato de a mesa de susten-
traseiro da peça, o operador nota a emissão tação das peças (campo de placas) situar-se
de ruído estranho e aciona o supervisor de em nível baixo com facilidade de acesso de
produção TS. Em função do incidente, TO pessoas (degrau de aproximadamente 30
desliga a máquina para a inspeção na peça. cm) e da não existência de dispositivos de

Figura 1 Croqui da disposição da peça em relação à mesa:


1. Haste de fixação da peça impede a visualização do operador dos demais membros da equipe.
2. Rebarba da solda é usinada com ferramenta de desbaste. Local onde os operadores inspecionam o
defeito.
3. Campo de placas onde a peça é afixada. Local onde o trabalhador acidentado sobe para inspecionar o
defeito.
4. Abertura circular da peça onde os operadores acessam o local com defeito.

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segurança, como tapetes, scanner, cercas - fazer o isolamento da área onde está
ou outros dispositivos que provoquem a sendo trabalhada a peça.
parada do funcionamento da máquina caso
haja acesso de pessoas na zona de perigo. O relatório de análise de investigação é
assinado pelo técnico de segurança do tra-
A empresa, em sua ficha de análise balho e pelo médico do SESMT, constando
de investigação das causas do acidente, também de 2 testemunhas: o operador da
descreveu o evento em 5 linhas: O que o máquina e o supervisor da área.
funcionário fazia: “estava verificando a
usinagem da peça que estava sendo traba- Após a investigação do AT, a empre-
lhada na referida máquina, onde a mesma sa foi notificada pelo CEREST Piracicaba
estava parada”; como ocorreu o acidente: por meio do artigo 34 do Código Sanitário
“O acidentado estava observando a peça na do Estado de São Paulo, Lei 10.098/1998,
4
Trata-se de uma fresadora. A
mandrilhadora4 parada e, quando em fun- a Norma Regulamentadora 12 do Minis-
designação de mandrilhadora
cionamento, ocorreu o acidente”. Quanto tério do Trabalho e Emprego e as Normas foi extraída do documento da
aos fatores que causaram o acidente, diante da ABNT (NBR 14.153, 1998; NBR 14.009, empresa.
de uma lista de verificação que versa sobre 1997). Além de notificar a empresa usuá-
ambiente, máquinas e ferramentas, busca ria do equipamento, notificou-se também a
uma classificação: boa, regular ou má; bom, empresa fabricante do equipamento, tendo
regular ou deficiente. Esta análise aponta: em vista o objetivo de implantar as possí-
- arrumação e limpeza: boa; veis mudanças no projeto do equipamento
- iluminação: boa; de modo a evitar novas ocorrências. Se-
- ventilação: boa; gundo o Código Sanitário do Estado de São
Paulo, artigo 122, p. X da Lei 10.083/1998,
- sinalização: boa;
fabricar, operar, comercializar máquinas ou
- ruído: forte;
equipamentos que ofereçam riscos à saúde
- manutenção da máquina: boa; do trabalhador implicam em penalidades
- proteção da máquina: total5; de: “prestação de serviços à comunidade, 5
Grifo dos autores.
- ferramenta manual: boa; interdição parcial ou total do equipamento,
- piso: normal. máquina, setor, local, estabelecimento e/ou
Quanto aos fatores pessoais que teriam multa” (SÃO PAULO, 1998). Cabe destacar
causado o acidente, o relatório aponta: que a Lei Estadual de São Paulo 9.505/1997
especifica que, na inexistência de normas
- imprudência.6 ou padrões próprios, o SUS pode adotar 6
Idem.
As providências indicadas para preve- de pronto, com a devida divulgação, o uso
nir novas ocorrências: de normas já consagradas e existentes em
âmbitos nacional ou internacional (SÃO
- ligar a máquina sempre com o painel PAULO, 1997), o que possibilita a notifica-
virado para frente;
ção das empresas com base nas normas da
- antes de ligar a máquina, cientificar-se ABNT, nas Normas Regulamentadoras do
de que não há ninguém próximo à mesma; Ministério do Trabalho e outras.

Resultados e discussão

Ao analisarmos este acidente a partir A decisão do supervisor de chamar o


de uma concepção mais ampla e diferente recém-contratado para participar da veri-
da tradicional, podemos observar vários ficação não foi discutida com o operador
aspectos envolvidos na origem do even- da máquina nem justificada. Esse fato
to. O ruído identificado pelo operador da pode ser analisado sob a ótica do modelo
máquina já pode ser considerado uma va- psicoorganizacional de Llory (1999) como
riabilidade na atividade e, portanto, uma uma patologia das comunicações, caracte-
alteração no modo de funcionamento ha- rizada pela tomada de decisão dos gestores
sem participação efetiva dos executores da
bitual. A presença do operador contrata-
atividade. Segundo esse autor, tais patolo-
do há 10 meses e que ainda não exercia a
gias favorecem a incubação do acidente.
função para a qual foi contratado também
é outra variante que coloca o sistema em Diante do não-saber-fazer do operador
situação desconhecida. (novato por estar nessa função há 10 me-

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 29-40, 2007 35


ses) em relação ao defeito da máquina, ele Em consideração à análise do SESMT
a desliga, o supervisor é consultado e sua da empresa, verifica-se a sua fragilidade e
decisão aguardada. O supervisor dirige- a visão unicausal da origem do evento. O
se acompanhado do recém-contratado e descritivo não se atém minimamente à ati-
do operador até o campo de placas onde vidade de trabalho do operador e da equipe
ocorreu o defeito, adentrando a zona de que o auxiliou no diagnóstico do defeito. A
operação da ferramenta. Nesse local não listagem de verificação se restringe aos fa-
há nenhuma barreira de proteção contra tores ambientais e ao equipamento ou má-
riscos de acidente, o que pode ser consi- quina usada, sem se preocupar com a tare-
derado, segundo Reason (1999), um perigo fa e com a atividade dos operadores. Não
potencial de acidente. Os erros latentes fo- explica por que a máquina estava parada,
ram: a decisão incubada na fabricação e na nem por que a equipe se mobilizou na iden-
operação do equipamento de não utilizar tificação do defeito. Existia campo de visão
barreira de proteção, a decisão de designar do operador junto à zona de operação da
operador de máquina que não dominava ferramenta? Segundo a análise, a proteção
completamente seus procedimentos em da máquina é total, no entanto, o relatório
caso de incidentes e intervenção, a deci- termina por recomendar que o painel da
são de convocar o recém-contratado para máquina deveria sempre ficar virado para a
participar da verificação sem, contudo, frente, reconhecendo que sua posição pode
informar devidamente o operador sobre ser um fator potencial de risco ao dificul-
essa decisão e sobre os procedimentos que tar o campo de visão para a zona de risco.
deveriam ser adotados. Recomenda ainda o isolamento das peças
quando estas estiverem sendo usinadas, o
Após verificação realizada pelo super- que atesta ainda a existência de campo de
visor que colocou seu braço e tronco dentro operação da ferramenta em zona de risco
da peça para tal, o supervisor aparentemen- fora do controle do operador.
te comunica seu diagnóstico ao operador
concluindo ser possível continuar o traba- Chama atenção o formulário de análise
lho por mais algumas horas. O operador se de acidente usado pelo SESMT da empre-
dirige até o painel e aciona a máquina a fim sa, com sua extensa lista para classificar os
de acatar a sugestão de continuar o traba- possíveis fatores pessoais que teriam cau-
lho. O recém-contratado, apesar de ter sido sado o acidente. Entre as possibilidades de
chamado a participar da verificação, não “ato inseguro” podem se enquadrar: falta
tem conhecimento da decisão do operador de EPI, imprudência, negligência, deficiên-
de dar partida à máquina e ainda está com cia auditiva, descuido, idade avançada,
seu braço no interior da peça a fim de co- distração, hábito, indecisão, nervosismo,
lher dados sobre o problema e participar da velocidade excessiva, lentidão, posição
discussão sobre o seu controle e resolução. defeituosa, deficiência visual, fadiga, igno-
A ferramenta giratória, ao ser acionada, rância, imperícia, indisciplina, provocação
atinge o braço do operador recém-contrata- voluntária, doença.
do, amputando-o. Repete-se aqui a fantasia ou concep-
Acionar a máquina foi o erro ativo, segun- ção do ser humano ideal, do “operário
do a concepção de Reason (1999). Novamen- padrão”, do “normal”, que não erra, que
te, o projeto da máquina não prevê qualquer não se cansa, que não fica doente, que não
barreira que impeça seu funcionamento com envelhece, que não pode se apressar, nem
a presença de pessoas na zona de operação se manter lento. Se a pessoa está cansada,
da ferramenta. O controle possível sobre o não caberia uma análise básica da causa
acesso de pessoas é feito pelo operador, no deste cansaço? Se a posição é defeituosa,
entanto, a peça que estava sendo usinada é não cabe perguntar o que determina esta
de grandes dimensões e impede a visão do postura? Ela não pode ser ocasionada por
operador sobre o que ocorre na zona de ope- exigências das tarefas ou da própria con-
ração da ferramenta. cepção do equipamento? A lista extensa
só não se atém ao trabalho real, em como
A combinação dos erros latentes com os trabalhadores fazem para dar conta do
o erro ativo mais a ausência completa de que precisa ser feito, como define a boa
qualquer tipo de barreira de proteção ma- Ergonomia francesa, a Ergonomia da Ati-
terial ou imaterial favorecem o surgimento vidade. O esquema, portanto, fica inten-
da energia liberada no sistema, provocan- cionalmente na superfície, deixando de
do danos ao operador. lado a essência: a atividade humana no

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trabalho, suas condições e exigências re- inseguro favorecem o que eles descreve-
ais. Além do preconceito explícito con- ram como ciclo de atribuição de culpa: as
tra os idosos e os diferentes, essa visão é pessoas são vistas como responsáveis por
também contrária à natureza humana e à escolhas erradas no curso de suas ações;
variabilidade da ação humana em situa- ações deliberadas merecem sanções; há
ções de trabalho. “Errar é humano”... e os advertências e/ou punições aos que er-
processos de trabalho seguros são aqueles ram gerando pouco ou nenhum efeito na
que abrigam possíveis erros com mecanis- taxa de erros; a gerência crê em descum-
mos de proteção, de modo a impedir que primento deliberado dos avisos, como se
tais erros não resultem em lesões. Nesta esse descumprimento fosse uma escolha
abordagem, o erro é reconhecido como individual; e assim fecha o ciclo.
possível, devendo as organizações dialo-
gar sobre as ocorrências e aprender com O laudo considera que o acidentado
os erros – o aprendizado organizacional possuía as qualificações profissionais ne-
de Llory (1999). cessárias para a função, listando os co-
nhecimentos e as habilidades prescritas
A empresa, em sua defesa jurídica ante para o operador de máquina CNC. No en-
a autuação do CEREST, apresenta o laudo tanto, os treinamentos, as qualificações e
do IC. Este laudo avalia que a máquina fre- as habilidades teóricas e práticas, mesmo
sadora operava em condições normais no quando plenamente atendidas, infelizmen-
momento do acidente de trabalho. Ele des- te não são suficientes para cobrir todos os
considera o incidente detectado pelo ope- incidentes e as variabilidades que ocorrem
rador ao perceber o ruído “estranho”, ou no trabalho real, especialmente em casos
seja, diferente do habitual. Desconsidera complexos nos quais interagem vários fa-
ainda que, no momento de entrada do ope- tores, como a participação e a interferência
rador e do supervisor à zona de operação de outras pessoas; campo aberto de placas
da ferramenta, a máquina estava desligada sem proteção ou barreiras; campo de visão
para possibilitar a tarefa de verificação do do operador obstruído por hastes de gran-
defeito. Considera, o laudo do IC, que, por des dimensões; comunicação truncada en-
ser a máquina de funcionamento automá- tre pessoas presentes na tarefa.
tico, a falta de visão da zona de atuação de
ferramenta não é impedimento para a exe- Os treinamentos, a experiência e as
cução dos trabalhos. No entanto, se a falta habilidades são reconhecidamente limita-
de visão não impede a realização da exe- dos como prática exclusiva de prevenção,
cução mecânica do trabalho da ferramen- como afirma a norma de segurança em má-
ta, este fato, na medida em que a máquina quinas da ABNT:
não possui dispositivo de segurança para
Treinamento, experiência e habilidade
impedir acesso de pessoas na zona de ope- podem afetar o risco; entretanto, nenhum
ração, torna a segurança do equipamento desses fatores deve ser usado como um
extremamente vulnerável, implicando a substituto para a eliminação do perigo e
perda de controle do operador sobre o que redução do risco, pelo projeto e proteções,
ocorre na zona de risco. onde essas medidas puderem ser imple-
mentadas. (ABNT, 1997)
Ainda segundo o laudo do IC, o aci-
dentado adentrou a zona de operação da Constatamos, ainda, contrariando a
ferramenta por livre iniciativa, o que não análise do SESMT da empresa, que o pro-
condiz com os depoimentos colhidos du- jeto e a concepção da máquina não aten-
rante a investigação realizada no presente dem aos objetivos de segurança previstos
caso, quando apuramos que o trabalhador pelas normas da ABNT. Segundo o item
foi chamado pelo supervisor da área para 4.1, Anexo D, p. 22 da NBR 14153 (ABNT,
auxiliar na tarefa de diagnosticar a falha 1998), os objetivos da segurança no proje-
ocorrida no processo de usinagem. Essa to dos equipamentos devem assegurar que
visão de que os trabalhadores atuam por as partes de um sistema de comando, que
livre iniciativa também foi discutida por proporcionam as funções de prevenção de
Reason (1999). Ele alerta para esse fato acidentes, devem ser projetadas e construí-
denominado-o de ilusão da vontade livre, das de tal forma que os princípios da NBR
pois desconsidera a situação como contex- 14009 (ABNT, 1997) sejam integralmente
tualizada sócio-historicamente. Carthey, considerados, incluindo a construção de
De Leval e Reason (2001) advertem que barreiras que atuem em situação de falhas
análises realizadas sob a noção de ato de várias naturezas: falhas durante toda a

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utilização prevista e utilização incorreta dicotômica e monocausal da década de 30
previsível; falhas na ocorrência de defei- já está bastante ultrapassada em países de-
tos; falhas quando erros humanos previ- senvolvidos, mas infelizmente ainda con-
síveis forem cometidos durante a utiliza- tinua prevalecendo no interior da grande
ção planejada da máquina como um todo maioria das empresas brasileiras.
(ABNT, 1998).
Existe uma indução para a localização
O laudo do IC conclui que o acidente de uma única causa para o acidente, in-
ocorreu por: duzindo quem analisa o acidente a in-
vestigações superficiais de fenômenos
ato inseguro por parte da vítima, que seria complexos, o que reforça a concepção
dotada de qualificação técnica pertinente, monocausal ultrapassada. (BINDER, AL-
caracterizado por imprudência e negli- MEIDA & MONTEAU, 1995)
gência, face ao seu comportamento e posi-
cionamento indevido, em área de risco de Essas análises com explicações sim-
reconhecimento notório, face à presença plistas, atribuindo causa e culpa às vítimas
de ruídos e vibração perceptíveis e sensi- desses eventos, deixam de contribuir para
bilizadas durante sua movimentação. a identificação de aspectos relacionados,
Rebatendo, portanto, a conclusão do por exemplo, à organização do trabalho, à
laudo do IC e do SESMT da empresa de que concepção dos equipamentos, que, se ex-
o acidente de trabalho ocorreu por conta de plorados, poderiam apontar caminhos para
ato inseguro – imprudência e negligência7 a melhoria da segurança e da confiabilida-
7
Grifo dos autores do acidentado segundo o SESMT –, temos de dos sistemas (VILELA, IGUTI & ALMEI-
a considerar que a possível falha de comu- DA, 2004).
nicação que possa ter ocorrido entre o ope-
No caso específico, mesmo com a gra-
rador e os demais membros que inspecio-
vidade do AT ocorrido, a empresa só veio
navam a peça, as decisões tomadas e não
a adotar medidas de segurança com a in-
comunicadas nem discutidas, a ausência
tervenção do CEREST Piracicaba, por meio
de barreiras de proteção, a obstrução e o
de notificação legal estabelecendo prazos
impedimento existente no campo visual do
para a empresa usuária e o fabricante da
operador em relação ao ponto de operação
máquina adotarem medidas de segurança
da ferramenta, todos esses são fatores pre-
de modo a prevenir novas ocorrências.
sentes na origem do acidente, o que carac-
teriza a existência de risco, implicando em Mediante a notificação do CEREST, as
perigos e eventos perigosos8, conforme defi- empresas envolvidas se comprometeram a
8
Grifo dos autores
nido no Anexo A, item 21.5 da NBR 14009 implantar medidas de segurança.
(ABNT, 1997).
À empresa usuária da máquina fresado-
A NBR 14153 define a segurança de ra onde ocorreu o acidente foi solicitado:
uma máquina como sendo:
1) Proteção do perímetro do campo de
sua habilidade em desempenhar sua fun-
placas de modo que impeça o acesso de
ção, ser transportada, instalada, ajusta-
da, sofrer manutenção, ser desmontada e pessoas junto à zona de operação da fer-
desativada de suas condições de utiliza- ramenta;
ção previstas, especificadas em seu ma-
nual de instruções (e, em alguns casos, 2) Instalação de proteção física com cerca
durante um determinado período de tem- dotada de portão monitorado por relê de se-
po, indicado no manual de instruções), gurança, de modo que sua abertura implica
sem causar ferimentos ou danos à saúde. em paralisação dos movimentos de risco;
(ABNT, 1998)
3) Proteção junto ao fosso da fundação
A empresa e o seu SESMT, auxiliada da máquina onde ocorre a movimentação
pelo laudo do IC, reproduzem mais uma do eixo x e da esteira de cavacos.
peça que compõe o cenário predominante
no universo da segurança do trabalho no O fabricante da máquina fresadora se
Brasil, onde ainda prevalece hegemônica comprometeu a expedir correspondência
a visão simplista e preconceituosa de que a todos os seus clientes que possuem má-
os acidentes de trabalho têm como causa quinas semelhantes à fresadora, orien-
a falha humana, denominada como ato in- tando para a necessidade de medidas de
seguro, ou uma falha material, conhecida proteção das zonas de risco anteriormen-
como condição insegura. Essa concepção te apontadas.

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Considerações finais
O princípio da precaução e da falha inseguro” como o causador dos acidentes
segura que deveria nortear a concepção e do trabalho.
o funcionamento de máquinas perigosas,
como a máquina fresadora em questão, A ocorrência desta mudança cultural
aponta para a necessidade de medidas de depende de investimento permanente para
segurança incorporadas no funcionamento capacitar e difundir os novos conceitos so-
do equipamento de modo que a segurança bre acidentes junto aos atores sociais en-
não dependa exclusivamente do comporta- volvidos, os profissionais e o poder judici-
mento humano. No entanto, mais do que ário. A Rede Nacional de Atenção Integral
nunca é necessária uma mudança cultural à Saúde do Trabalhador (RENAST), através
na área da segurança de modo a superar a dos CERESTs, pode ser mais um aliado para
barreira ideológica que representa o “ato contribuir neste processo de mudanças.

Referências

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40 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 29-40, 2007


Os limites da abordagem clássica dos acidentes de
Guilherme Ribeiro Câmara2
trabalho: o caso do setor extrativista vegetal em Mi-
Ada Ávila Assunção3 nas Gerais1
Francisco de Paula Antunes Lima4
The limitations of the traditional approach to work accidents: the
case of timber exploitation in Minas Gerais, Brazil

1
Artigo baseado na dissertação de Resumo
mestrado de Guilherme Ribeiro
Câmara, intitulada O saber prático Este estudo, baseado na literatura e no estudo de caso que será apresentado,
dos trabalhadores florestais para
discute as análises clássicas dos acidentes de trabalho, tendo como foco o setor
evitar acidentes do trabalho durante
o corte de madeiras com motosser- extrativista vegetal, o qual vem registrando elevadas taxas de mortalidade de
ras, apresentada ao Programa de trabalhadores em todo o mundo. O estudo articulou duas técnicas: pesqui-
Pós-Graduação de Saúde Pública sa documental e observações de campo. Os documentos analisados estavam
da Faculdade de Medicina da Uni- disponíveis em Comissão Parlamentar de Inquérito. Foram observados os tra-
versidade Federal de Minas Gerais balhadores organizados em equipes para cortar as árvores de uma empresa
em 2004. do setor foco. Estudou-se o processo de trabalho por meio de técnicas de ob-
2
Médico do trabalho e mestre em servação direta dos trabalhadores. Viu-se predominar nos relatórios técnicos
Saúde Pública. Médico da Secre- consultados a ideologia do ato inseguro como causa dos acidentes analisados.
taria Municipal de Saúde de Belo No entanto, as observações do trabalho evidenciaram determinantes externos
Horizonte, Minas Gerais. dos riscos ocupacionais. Foi possível, ao final, identificar modos operatórios
3
Médica do trabalho e doutora em de proteção contra os riscos implementados pelos próprios operadores. Os re-
Ergonomia pelo Laboratório de sultados indicam alguns limites das análises clássicas que não consideram o
Ergonomia Fisiológica e Cognitiva, desenvolvimento da tarefa nas zonas de risco, sendo fonte de idéias preconcei-
Paris, França. Pesquisadora do tuosas sobre o comportamento inseguro dos operadores.
CNPq. Professora do Departa-
mento de Medicina Preventiva e Palavras-chaves: acidentes de trabalho, ato inseguro, extrativismo vegetal,
Social da Faculdade de Medicina saúde do trabalhador.
da Universidade Federal de Minas
Gerais.
4
Engenheiro e doutor em Ergono- Abstract
mia pelo Centro de Artes e Ofícios,
Paris, França. Professor da Escola Based on publications and on a study of a case, the present article discusses
de Engenharia de Produção da traditional analyses of work accidents, focusing on timber exploitation
Universidade Federal de Minas industry, an activity that has been registering increasing mortality rates all
Gerais. over the world. Two techniques were employed: document research and field
observation. The documents analyzed were available from the Parliamentary
Investigation Commission. The workers observed for this study were divided
into teams to cut down trees for a timber company. Their work method was
studied by means of direct observation. In the technical reports consulted for
the research, causality analyses were led primarily by the unsafe act ideology.
However, field observations evidenced external determinants of occupational
risks. Final analyses were able to identify methods of protecting against risks
implemented by the workers themselves. Results indicate some limitations to
traditional analyses that do not take into consideration the performance of tasks
within risk zones, leading to biased ideas regarding workers’ unsafe behavior.
Keywords: occupational accidents, unsafe act, timber exploitation, worker’s
health.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007 41


Introdução

A indústria florestal apresenta as maio- equilíbrio e podem cair sobre a motosserra


res taxas de mortalidade associada ao tra- (SLAPPENDEL et al., 1993). Kirk e Parker
balho no mundo, as quais diminuíram em (1994) citam estudo realizado na Nova Ze-
um ritmo menos acelerado do que as doen- lândia que identificou, no período de seis
ças registradas no setor (POSCHEN, 1993; anos (1985-1991), a ocorrência de aciden-
CÂMARA, 2004). tes com perda de tempo (17,5% dos casos),
nos quais os mecanismos descritos foram:
A literatura consultada assinala que fa-
tropeção, escorregão e queda associados à
tores aleatórios do ambiente na indústria
umidade já citada, mas, também, às condi-
extrativista podem determinar riscos para
ções do terreno.
acidentes, pois se constituem situações nas
quais, de maneira dinâmica, a interação de Além dos fatores ambientais, determi-
diversos fatores pode transformar situações nadas atividades na colheita de madeira
controladas em não controladas. são realizadas sem as devidas técnicas e
O número de trabalhadores expostos e isso favorece a ocorrência de acidentes.
o volume de produção são fatores prediti- A implementação de técnicas inadequa-
vos positivos para a ocorrência de aciden- das se deve ao fato de o trabalhador não
tes nas atividades de corte com uso de mo- ter um treinamento para o corte de árvo-
tosserra. Entretanto, ainda restam dúvidas res. Os operadores nem sempre possuem
quanto às reais causas de acidentes que as habilidades necessárias para definir o
acontecem na atividade cotidiana dos tra- tipo de motosserra a ser usada, para usar
balhadores. Apesar dos achados epidemio- motosserras pesadas ou dominar a situa-
lógicos, a atividade real, geralmente pouco ção quando houver “efeito dominó” (KA-
estudada, deixa obscuros os efeitos da inte- WACHI apud SLAPPENDEL et al., 1993;
ração dos mecanismos causais dos aciden- CROWE apud SLAPPENDEL et al., 1993).
tes do trabalho (LAFLAMME, 1998). No entanto, os problemas de segurança
As atividades da colheita de árvo- não podem ser atribuídos exclusivamente
re são realizadas, predominantemente, a ao tipo de formação do trabalhador. Basta
céu aberto, submetendo os trabalhadores lembrar que os manuais de manutenção
a todas as condições climáticas. Fatores nem sempre são acessíveis e os padrões
ambientais como a temperatura média na internacionais para o projeto dos equipa-
região, as condições geográficas (terreno, mentos, às vezes, mostram-se incoerentes.
relevo e vegetação) e o vento são os ele- Mais de 40 tipos de configurações para uso
mentos que representam os fatores de ris- de equipamentos na indústria florestal da
co para os acidentes do trabalho no setor Alemanha são apresentados na literatura
florestal conforme descrição da literatura (DYKSTRA & POSCHEN, 1993). As máqui-
citada a seguir. nas adquiridas podem não estar adequadas
às características antropométricas dos usuá-
As temperaturas no inverno, em estudo rios e aos diferentes terrenos onde serão
realizado na Finlândia, foram identificadas implantadas. Vale lembrar que os projetos
como o principal fator de risco nas ativida- das máquinas são destinados a locais espe-
des de manutenção. A umidade é um fator cíficos e as máquinas acabam sendo utili-
que aumenta o risco para os trabalhadores zadas em locais diferentes daqueles para
florestais, pois, ao tornar escorregadio o os quais foram projetadas. Muitas vezes,
solo, cria condições de deslizamento (SLA- a concepção das máquinas resulta da in-
PPENDEL et al., 1993). Ambientes com corporação de diferentes componentes que
baixa luminosidade podem comprometer a
são aproveitados de outros projetos indus-
segurança, especialmente em atividades de
triais. As condições ambientais (terreno e
manutenção (VAYRYNEN, 1982).
tipo de floresta) deveriam ser, mas não são,
As diferenças do terreno e o tamanho parâmetros para os projetos das máquinas.
das árvores podem explicar as diferenças Além disso, a manutenção preventiva das
da taxa de mortalidade entre trabalhado- máquinas não é a regra, pois existem difi-
res florestais do Estado de Washington culdades de seguimento de rotinas de ma-
quando comparados aos trabalhadores de nutenção, faltam ferramentas adequadas,
Ontário (SLAPPENDEL et al., 1993). Em as oficinas de reparo são impróprias e não
terrenos mais irregulares e com vegetação especializadas, além do limite de investi-
mais densa, os trabalhadores perdem o mento financeiro (LAFLAMME, 1998).

42 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007


A engenharia de segurança é essencial- nismos psicológicos do tipo: o trabalhador
mente fundada em normas e prescrições “aplicou a lei do menor esforço”, adotou
de atos seguros. Essa abordagem clássica uma conduta individualista, é teimoso e
dos acidentes dificulta e não aprofunda preguiçoso etc.
as análises habitualmente realizadas que
O limite das abordagens clássicas é
consideram o acidente como o resultado
classificar os acidentes em geral e identi-
de um ato inseguro, substituem a causa
pela culpa ou pela responsabilidade penal ficar como semelhantes as situações que
e o inquérito policial, conseqüentemente, lhes deram origem, mas que, na verdade,
substitui a análise das circunstâncias e do são casos particulares e complexos. Gene-
processo de produção. ralizando, fica difícil esclarecer os fatores
humanos e provocam-se reducionismos
Llory (1999) aponta quatro grandes que levam a desfalcar, a lascar, a simplifi-
problemas derivados das abordagens clás- car a humanidade dos indivíduos nos dize-
sicas de acidentes. São eles: 1) a posição res de Llory (1999).
metodológica e teórica onisciente daqueles
que estão realizando uma avaliação; 2) as O autor chama atenção para a forma
explicações “psicologizantes”; 3) as assimi- abstrata da descrição do acidente e dos fa-
lações, agregações e generalizações; e 4) o tos a ele relacionados. A realidade fica mas-
modo de apresentação dos atores envolvi- carada por ambigüidades, obscuridades,
dos com o acidente. conjecturas e dúvidas. Ora, o evento fatal
não pode ser considerado simples, mas sim
A primeira crítica é sobre a posição dos resultado de causalidades complexas e ra-
avaliadores, que se colocam no lugar das mificadas. Vale dizer que os próprios atores
vítimas de acidentes e são munidos, em do acidente podem esconder explicações
tese, de uma bagagem de conhecimentos ou trazer incompreensões, mal-entendidos
práticos que elas não tinham. Essa posi- ou inibições quando o evento é analisado
ção perturba a compreensão e a descrição de forma abstrata.
mais completa e detalhada das circuns-
tâncias, dos antecedentes, dos papéis, das No lugar de análises superficiais que
funções, dos deslocamentos e das ativida- procuram culpados, o reconhecimento dos
des dos atores etc. Assim posicionados, os determinantes de acidentes pode ter como
analistas dos acidentes não compreendem base uma concepção global que incorpore
o funcionamento da organização humana as relações dinâmicas entre fatores e não
em situação de trabalho (ALMEIDA, 2003; mais somente um determinismo causal
DINIZ, 2003). mecânico (NEBOIT, 1999).
A abordagem psicologizante busca Este estudo de caso busca trazer ele-
explicações já prontas, em termos gerais, mentos para elucidar os fatores envolvidos
com referencial a uma atitude psicológica na origem de acidentes fatais ocorridos nas
de um determinado “tipo”, um comporta- empresas de extrativismo vegetal e registra-
mento humano “habitual”, “natural”, até dos na Comissão Parlamentar de Inquérito
mesmo “universal”. Nesse referencial, ca- (CPI) instalada na Assembléia Legislativa
bem explicações como a presença de meca- de Minas Gerais (ALMG).

Materiais e Métodos

Delineamento do estudo Análise documental


O estudo articulou duas técnicas: pes- Analisaram-se os documentos disponí-
quisa documental e observações de campo. veis no arquivo público da ALMG e resul-
Os documentos analisados estavam dispo- tantes da CPI. Foi analisado o conteúdo dos
níveis na CPI. Foram observados os traba- depoimentos registrados e colhidos nas
lhadores organizados em equipes para cor- audiências, tendo como foco os casos de
tar as árvores de uma empresa do setor de acidentes do trabalho fatais no setor.
extrativismo vegetal. Estudou-se o processo Os documentos citados representam
de trabalho por meio de técnicas de obser- uma coleção de textos de diferentes es-
vação direta dos trabalhadores utilizando- truturas que registram os depoimentos de
se dos procedimentos da escola francesa de testemunhas e anexam documentos junta-
ergonomia (GUÉRIN, 2001). dos pelos entrevistados e encaminhados

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007 43


por instituições públicas durante os traba- pesquisador deslocou-se seis vezes para o
lhos da CPI. campo situado a 180 quilômetros da sede
do estudo.
Além dos documentos arquivados na
ALMG, foram solicitados à Delegacia Re- O pesquisador pôde acompanhar a re-
gional do Trabalho de Minas Gerais (DRT) alização de todas as tarefas das equipes de
os registros de acidentes fatais ocorridos corte durante a permanência em campo.
no setor de extrativismo vegetal, sem cri- Esse período compreendeu o início de uma
tério de seleção por empresa, região ou jornada de trabalho, desde a saída do acam-
data da ocorrência. Procedeu-se à análise pamento central da empresa, até a chegada
dos temas presentes nos documentos for- nos respectivos locais de corte de árvores.
necidos e do conteúdo relativo à causa atri-
buída ao acidente em tela presente no Re- Durante as observações, registraram-se
latório da Comissão Interna de Prevenção as comunicações intra e interequipes e os
de Acidentes e no relatório preparado pelo modos operatórios implementados. Foram
auditor fiscal que investigou o caso. Sele- registradas em fotografias as operações e as
cionaram-se, pelo critério de qualidade de atividades da equipe de corte. Utilizou-se
preenchimento do relatório, quatro casos de registros em vídeo para analisar alguns
para apresentação neste artigo. procedimentos realizados pelos trabalha-
Análise do processo de trabalho dores. Posteriormente, os resultados das
observações foram apresentados aos traba-
Entre as empresas convocadas pela CPI lhadores.
que investigava, por denúncia sindical, os
acidentes fatais ocorridos em 2001, uma Entrevistas
delas aceitou o estudo em seu ambiente Foram entrevistados os dirigentes sin-
de trabalho. Buscou-se conhecer as princi- dicais e os supervisores de campo. Os or-
pais características da empresa e dos seus ganizadores da produção foram entrevista-
métodos de gestão. As informações sobre a dos individualmente, visando a conhecer o
empresa foram obtidas por meio de entre-
processo de trabalho.
vistas com os supervisores de campo, além
de consulta a documentos disponibilizados Foram realizadas três reuniões em cam-
em seu sítio da Internet. Sobre o processo po com os trabalhadores, sendo a primei-
de trabalho, realizou-se observação direta ra com 15 trabalhadores, a segunda com
dos trabalhadores em campo na realização cinco operadores de motosserra e a última
das suas tarefas. com cinco ajudantes florestais. Nessas reu-
Observações das tarefas niões, entrevistaram-se os trabalhadores.
Procedeu-se à autoconfrontação dos dados
Na empresa estudada, há duas turmas obtidos visando a aprofundar pontos espe-
de corte, sendo ambas compostas por 20 cíficos e permitir a palavra livre do trabalha-
equipes, constituídas, cada uma, por dois dor a fim de captar o sentido atribuído por
trabalhadores. Para cada sessão de obser- eles mesmos às suas tarefas (ASSUNÇÃO
vação do trabalho, selecionou-se aleatoria- & LIMA, 2003). Para isso, apresentaram-se
mente uma equipe. Ao todo, foram obser- os arquivos digitais, expondo o resultado
vadas dez equipes.
das gravações de vídeo das equipes em ati-
As observações abertas totalizaram vidade. As entrevistas foram gravadas para
71 horas e 30 minutos de observação. O registro com posterior desgravação.

Resultados da análise dos relatórios de investigação dos acidentes

Os resultados da análise do registro dos a árvore toca em outra árvore, provocando


casos de quatro vítimas de acidentes fatais sua fratura, cujo pedaço vai em direção ao
no setor de exploração vegetal da madeira operador, atingindo a sua cabeça. A descri-
em tora relacionados com a queda de árvo- ção do acidente encontrada nos documen-
res serão apresentados a seguir. tos oficiais é sumária. Menciona a insegu-
O acidente de trabalho fatal do aju- rança do ato da vítima que se localizava tão
dante florestal A.R.C., 49 anos, aconteceu próximo à zona de risco. Explicita que o
quando ele estava próximo ao operador de ajudante foi mobilizado para ajudar na der-
motosserra. Após o início do corte, ao cair, rubada da árvore sem explorar as razões da

44 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007


proximidade entre os dois trabalhadores da esconder atrás de outra árvore, mas não
equipe de corte. deu tempo, a árvore atingiu sua cabeça.

Como o trabalhador florestal poderia Entretanto, a análise não focaliza as


estar fora da área dita de risco e executar operações do ajudante (suposto distraído)
a sua tarefa, que, exatamente, só pode ser no momento, nem quais seriam os fatores
realizada na área de risco? Se a presença que poderiam comprometer a queda da ár-
do trabalhador na área de risco pode levar vore, além do vento, tampouco se interessa
aos acidentes, então, como garantir a reali- pela maneira de a equipe lidar com os fato-
zação do trabalho? res ambientais.
No caso do ajudante S.G.C., 49 anos, re- O acidente do trabalho fatal com o ope-
gistra-se o depoimento sumário do operador rador de motosserra E.M.M., 34 anos, é ou-
de motosserra sem investigar as suas razões tro exemplo de uma situação em que uma
para realizar o corte de árvores estando o árvore cai em direção contrária à previsão
seu ajudante no terreno, mas fora da sua do corte, atingindo diretamente o operador
zona de visão. Encontra-se nos autos: de motosserra. O relato colhido pelos au-
ditores é claro ao expor que a árvore corta-
Informou-nos que havia derrubado e tra-
çado todas as árvores que estavam parale-
da não cai de imediato, permanecendo em
las à beira da estrada, e logo em seguida, sua posição até que termina por cair fora
saltou 05 (cinco) árvores e seguiu derru- do tempo e do espaço previstos, acertando
bando duas linhas de árvores em sentido o operador de motosserra. E a análise dos
vertical à estrada, após terminada a derru- autos pára por aí, contentando-se com uma
bada, desceu traçando, e, no momento, o fatalidade da natureza.
ajudante estava observando o traçamento
e, ao começar a derrubada do restante das Note-se que os dados coletados e des-
árvores que estavam de pé, o operador critos acima são frutos de uma análise do
disse, nos seus termos: “avisei ao ajudan- acidente realizada por pessoas que não es-
te que iria começar a derrubar, entalhei e tavam presentes no local e no momento do
direcionei a árvore sentido estrada, ao efe-
acidente. Os relatórios estudados não ci-
tuar a derrubada vi que o ajudante, estava
caído”. tam as normas de segurança ou a variabi-
lidade da produção que determinariam o
No caso do acidente com J.R.A., 33 surgimento de fatores aleatórios e fora do
anos, associa-se o sinistro à distração do domínio dos operadores. A complexidade
ajudante florestal que não estaria obser- da interação entre os fatores envolvidos
vando a queda da árvore: na derrubada de uma árvore e sua relação
O vento mudou a direção da árvore corta- com outras árvores não foi analisada. As
da, o operador gritou alertando o ajudan- questões elaboradas ficam sem os devidos
te, este último estava distraído e tentou esclarecimentos.

Resultados do estudo do processo de trabalho em uma empresa


extrativista
O setor estudado minado traçamento, e, depois, o empilha-
mento, iniciado quando outras equipes
O processo produtivo de colheita de
especializadas fazem pilhas dos toretes
madeira é dividido em diversas fases, sen-
da madeira. As pilhas serão organizadas
do elas: plantio, roçamento, derrubada, no terreno ou nas margens das estradas de
traçamento, empilhamento, baldeio, carre- acesso aos locais de corte.
gamento e transporte. O roçamento é a fase
de preparação das áreas que receberão em Finalizado o empilhamento, inicia-se
seguida as equipes de corte. São retirados o baldeio, por meio de veículo motor, das
os feixes de galhos espalhados no terreno pilhas até a margem da estrada para faci-
e ocorre a preparação da zona em torno da litar o transporte pelos caminhões. A fase
árvore que será cortada. As irregularidades de carregamento consiste na colocação das
e os eventuais buracos no terreno são repa- pilhas de toretes em caminhões e a fase
rados visando a facilitar o trabalho do corte de transporte inclui o deslocamento até o
pátio das plantas industriais que irão be-
e melhorar a segurança na área.
neficiar a madeira. Essa fase acontece após
Após a derrubada, ocorrerá o corte do o desgalhamento, cuja finalidade é retirar
tronco da árvore caída em toretes, deno- galhos e folhas do tronco principal.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007 45


Os conhecimentos e as habilidades mobi- muito acidentada por exemplo você tem
lizadas pelos trabalhadores que olhar primeiro ali. Eu vou jogar as ár-
vores em qual posição que ela vai parar
As verbalizações e os comportamentos com apoio melhor para serrar, mais fácil
observados em campo permitem afirmar para cortar.
que os trabalhadores, na elaboração e na
O operador de motosserra conta com
implementação dos seus modos operató-
o vento para fazer a derrubada da árvo-
rios, levam em conta os constrangimentos
re, ou seja, mesmo que o fator vento cause
de natureza ambiental, como a potencia-
dificuldades e constrangimentos para a
lidade do vento e as irregularidades do
derrubada da árvore no sentido desejado
terreno. O Quadro 1 permite uma síntese
pelo operador, ele pode também ser utili-
das exigências da produção, da ação de-
zado para direcionar a árvore. Ele corta a
sencadeada ou do modo operatório e da
árvore no momento exato que o vento em-
competência necessária para a realização
purra a mesma na direção desejada. Nos
da tarefa. Um indicador relevante para a
seus dizeres:
organização real do trabalho é a condição
da árvore de corte: contato entre as copas, ver a posição que o vento está ajudando...
o estado do tronco da árvore, a provável Você espera o vento, um pouco, às vezes,
direção de queda. o vento ajuda. Naquele momento não está
ventando, daí uns dois ou três minutos, o
Identificaram-se pelos menos três es- vento pega ela e ajuda.
tratégias desencadeadas pelos trabalhado-
é igual o lugar que nós estamos lá, lugar
res para evitar acidentes: realizar o corte a que nós estamos lá não vale a pena em-
partir de seqüência que evite aproximação purrar, porque o serrador está trabalhando
entre as equipes, deixar algumas árvores a favor do vento. Se estiver caindo bem,
como estacas para evitar que a árvore der- você não fica tão naquela situação.
rubada deslize velozmente pelo terreno
Modos operatórios levam em conta os ris-
após o corte (“chiar” segundo os operado-
res) e mobilizar, com uso de uma vara im- cos de acidentes no trabalho
provisada, a árvore “engaiolada”, ou seja, Os trabalhadores usam as expressões:
aquela árvore que, após o corte, ficou presa “pega boa” ou “pega ruim”. A “pega” é uma
entre as copas das outras. divisão da área, delimitada pela empresa
Os trabalhadores florestais elaboram e que será trabalhada pelo conjunto das
uma representação específica dos riscos equipes. Em cada “pega” ficarão dois traba-
presentes em sua atividade. Um operador lhadores. As “pegas” são mensuradas pelos
de motosserra expressa sua maneira de organizadores da produção que se utilizam
avaliar precocemente as características do de medidas geométricas para estimar a pro-
terreno e planejar sua ação integrando os dutividade.
indícios de riscos: As características das “pegas” são for-
você tem que olhar a posição melhor que tes determinantes da carga de trabalho. A
as árvores vão cair. Por exemplo, você empresa sorteia a “pega” a ser destinada a
pega uma grota muito ruim, uma área cada equipe, desvencilhando-se de acusa-

Quadro 1 Descritivo de exigências da produção, ações desencadeadas pelos trabalhadores e competências utilizadas

Ação desencadeada
Exigência da produção Competências necessárias
(modo operatório)

não trabalhar próximo às outras realizar o corte numa seqüência contrária à identificar a tendência de queda das
equipes de corte. aproximação entre as equipes. árvores.

preservar a árvore derrubada,


ter uma representação do pro-
garantir a organização, no terreno, deixar algumas árvores como estacas
cedimento de traçamento e os
das árvores derrubadas e preservar para evitar árvore que “chia”.
constrangimentos para realizá-lo.
condições de segurança do terreno.

determinar com precisão a posição identificar dinamicamente durante


mobilização do ajudante florestal com
da árvore no terreno a partir da a atividade momentos de cons-
uso de vara.
derrubada. trangimento para derrubada.

46 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007


ções de favorecimento de uma equipe em uma organização das árvores derrubadas
detrimento de outra. no terreno e implementa-se uma medida
de segurança contra deslizamentos e cho-
Ora, o sorteio de “pegas” tem o poten-
ques contra os ajudantes florestais ou tra-
cial de gerar situações acidentogênicas,
balhadores de equipes mais próximas ao
pois as equipes sem experiência para lidar
operador de motosserra.
com as situações de variabilidade ficariam
expostas a situações de trabalho com maior Como os trabalhadores devem atuar
exposição a fatores de risco ou vice-versa. em relevos inóspitos devido à irregulari-
Fica claro: os organizadores da produção dade, proximidade com estradas, áreas de
reconhecem o risco, entretanto, não elabo- grotas ou áreas de reservas, eles ficam vi-
ram medidas de proteção ou de controle, gilantes e passam a planejar as suas ações
deixando ao acaso a solução do problema. incluindo a mobilização de estratégias
para realizar o corte da árvore com segu-
Considerando os parâmetros citados é
rança quando podem. Um operador de mo-
que os trabalhadores batizam as “pegas”
em boa e em ruim: “a gente até brinca, tosserra comenta:
tem o costume de brincar, é fulano você ter dificuldade traçar aqui, na hora que
foi premiado. Todo mundo fica de olho em você chegar no meio dela, ai, certinho, a
pega boa”, sendo aquela mais limpa, com árvore vai estar toda alta. Você vai ter que
menos irregularidades no relevo, cujas ár- trabalhar com a serra mais alta do que o
corpo. Não pode, é perigoso.
vores não têm as suas copas entrelaçadas.
Para a “pega” ruim, o contrário é verdadei- Os trabalhadores desenvolveram mo-
ro, um operador de motosserra expressa dos operatórios para atuar nos terrenos
o seu temor em ser escalado para a dita considerados mais difíceis, escolhendo um
zona: “já fica de botuca, vamos ver quem ponto que permita o acesso e a visualiza-
vai cair ali”. ção a fim de desenovelar a vegetação, como
Existem diversos fatores relacionados eles dizem:
com a atividade que determinam uma primeiro coisa que eu chego, eu olho, os
maior ou menor proximidade do ajudante galhos mais ruim, o risco de acidente,
florestal ao operador de motosserra. A equi- penso primeiro o que eu vou fazer, vou
pe de corte identifica as áreas seguras para cortar aqueles paus primeiro, vou caçar
sua permanência durante o trabalho. No um meio mais fácil para trabalhar. Por
mais ruim que a pega seja, ela tem um
prescrito, cabe ao operador de motosserra e
lado bom para trabalhar. No meio mais
ao ajudante florestal identificarem suas ro- fácil, por exemplo. Um meio mais limpo,
tas de fuga após o início do corte da árvore uma área mais limpa.
no caso de ter identificado os elementos de
variabilidade. Note-se que a área de risco Existe um substrato de competências
pode ultrapassar a zona prevista pelo mé- para identificar a “pega” difícil que são as
todo formal de corte da árvore, que supõe o bases para os modos operatórios que o ope-
controle total da direção da queda. rador irá implementar. Nos seus dizeres:

A área de risco prevista seria aquela você tem que procurar facilitar ela, cortar
aquelas árvores engaioladas, macacadas
correspondente à direção da queda da ár-
primeiro... aqueles riscos de acidentes
vore. O real subverte a expectativa, pois tem que tirar ele primeiro... não cortar de
elementos aleatórios, como a extensão das qualquer maneira, é perigoso.
copas das árvores vizinhas àquela que está
sendo derrubada, determinam a direção A interação ajudante-operador-ajudante
efetiva da queda da árvore no terreno. Na Como medida de segurança na área, o
realidade do trabalho, a área de risco é toda início do trabalho leva em consideração a
a circunferência, tendo como diâmetro o proximidade de outra equipe, interferindo
tamanho da árvore cortada e as interações, na escolha do direcionamento das árvores.
em tempo real, com as demais. Uma equipe começa a cortar as árvores
O operador de motosserra deixa algu- que serão derrubadas em um sentido para
mas árvores no terreno parcialmente cor- que, no momento da aproximação de outra
tadas (altura superior à cepa de corte) para equipe, a primeira esteja cortando em posi-
fazer barreira para as árvores que, uma vez ção oposta. O trabalhador relata:
derrubadas, rolam velozmente pelo terre- Quando o serrador de lá começar a tra-
no, “chiam”, nos dizeres dos trabalhadores. balhar, nós não estamos mais aqui em
A estratégia evita que os troncos sejam da- embaixo, aí as árvores de lá que estão pu-
nificados após a queda. Mantém-se assim xando para lá, ai ele vai poder jogar para

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007 47


cá tranqüilo, não vamos estar por baixo, ele está em situação difícil. Se você ava-
não tem perigo, pode trabalhar sossegado. lia você usa a vara. Você vê que ele está
Nossas árvores também que estamos jo- fazendo força.
gando para lá, ele vai trabalhar sossegado
que não vai árvore nele. Para explicitar as competências reque-
ridas no diagnóstico da dificuldade de der-
Os trabalhadores mobilizam a sua rubada da árvore, o pesquisador pergun-
competência para evitar aproximação das tou: “Em que hora você vê que a situação
equipes em campo que poderia expor os é difícil para o operador de motosserra?”
colegas às quedas ou a rolamentos de ár- A resposta do ajudante florestal foi no se-
vores derrubadas pela equipe vizinha. Um guinte teor:
operador de motosserra expressa o sentido
como exemplo quando ele está numa bai-
do seu modo operatório:
xa, aí você repara quando ele joga a serra
se chegar perto, o que tem que fazer. Um para outro lado e quando ele puxa, ele tira
tem que atrasar, procurar outra coisa a mão esquerda da alça da serra e já abre
para fazer ou até parar, esperar o outro ela em cima da árvore, ele já está fazendo
derrubar. força. O braço já está em cima da árvore
fazendo força.
A referida situação necessita, para o seu
controle, de uma grande interação entre aju- O ajudante é capaz de diagnosticar as
dante florestal e operador de motosserra. perturbações durante a derrubada das árvo-
res e antecipar-se para evitar que as árvores
É imperativo controlar a árvore derru- caiam em sentidos não desejados pela equi-
bada. Qualquer dificuldade no seu posi- pe. Ele analisa a trajetória possível daquela
cionamento no terreno, após a sua derru- árvore ao cair, o seu efeito sobre as árvores
bada, pode perturbar toda a atividade dos já derrubadas e como faria para realizar o
trabalhadores. Um operador de motosserra desgalhamento e o traçamento dela de uma
explicita: “Uma árvore que cai errado atra- forma eficaz e com segurança.
palha o serviço da gente bastante. Atrasa se
cai errado”. A mobilização pode acontecer vo-
luntariamente pelo ajudante florestal ou
Note-se que os trabalhadores mobilizam pela convocação do próprio operador de
conhecimentos que permitem a elaboração motosserra. Há situações em que os dois
de modos operatórios para controlar as ár- membros da equipe de corte dialogam so-
vores durante a queda, nos seus dizeres: bre a sua melhor forma de posicionamento
Se tiver alguém para ajudar perto a gente no terreno e a direção da árvore que será
dá uma força para o ajudante. Tentar em- empurrada. Uma estratégia de derrubar a
purrar. Se não conseguir. Eu pratico desse árvore “enroscada” é provocar um “efeito
jeito. Sempre eu procuro procurar uma dominó”, em que uma árvore em pé é jo-
árvore próxima para cima e jogar em cima gada em direção à árvore alvo. Para essa
para ver se eu consigo jogar no lugar certo
operação, o ajudante florestal toca a outra
que eu to querendo cair, que eu estou que-
rendo derrubar, mas se de toda maneira
árvore com auxílio de uma vara improvi-
não tiver jeito, o lugar que ela virou, você sada para este fim. O operador relata: “a
mete uma outra “boca” para cima e joga árvore, igual assim, eu estava empurran-
para cima mesmo. do, a árvore que vai gastar eu fazer muita
força nela”.
Existirão equipes com maior ou menor
interação. Os trabalhadores considerados Do ponto de vista formal, ajudante flo-
mais experientes procuram identificar as restal é um cargo genérico. Entretanto, ele
situações em que a sua atuação e interação exerce um papel ativo na equipe de corte
são de vital importância para efetivar uma e não assume uma postura passiva. Como
adequada derrubada da árvore. Um aju- pôde ser observado várias vezes, ele intera-
dante florestal verbaliza: ge com o operador de motosserra verbal ou
fisicamente, empurrando as árvores a se-
Aí vai da equipe né, o ajudante um pouco
rem derrubadas. A interação entre os traba-
mais ligado, exemplo, ele tem sincronis-
mo com o serrador que está baleado, ele lhadores florestais permite a proximidade
nem espera o serrador pedir, porque ele dos integrantes da equipe de corte e ambos
ver a precisão e vai empurrar a árvore e estarão atuando ao mesmo tempo numa
vai empurrar já. Você consegue ver que mesma árvore e próximos um do outro.

48 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007


Discussão

A prática hegemônica de análise de aci- que objetivaria entender a rede dinâmica


dentes, incluindo a descrição dos acidentes de fatores múltiplos que originam as con-
foco deste estudo, encontra respaldo nos dições para os acidentes. Menciona-se a
resultados de alguns estudos disponíveis debilidade técnica de alguns trabalhado-
na literatura consultada. res, no entanto, os resultados obtidos nesta
investigação evidenciam a elaboração de
Segundo estudos citados por Sant’Anna
estratégias finas por parte dos operadores,
e Malinovski (2002), cerca de 80% dos aci-
os quais estariam buscando interferir sobre
dentes com operadores de motosserra têm
mecanismos complexos e não conhecidos
origem em falhas. Trabalhadores que res-
da gestão.
ponderam aos questionários preparados
para avaliar o peso da falha atribuem 62,5% Contrariamente às idéias tradicionais
das causas de acidentes florestais à falta de sobre causas de acidentes, Poschen (1993)
responsabilidade do próprio operador. Wa- ressalta que, no geral, os trabalhadores
sterlund e Kufakwandi (1993) afirmam que têm pouco controle sobre as circunstân-
a principal causa de acidentes do trabalho cias do trabalho, restando-lhes a possibi-
é o próprio trabalhador. lidade de domínio apenas sobre a sua ati-
Evanson (2001) identifica 22% dos aci- vidade. Os resultados apresentados acima
dentes devidos a erro humano ou à viola- esclarecem que os operadores nem sempre
ção de normas, principalmente na operação podem dominar os fatores climáticos e ge-
de derrubada da árvore. O autor identifica ográficos, mas nem por isso ficam inertes.
as práticas consideradas “atos inseguros”: Eles elaboram estratégias, desenvolvem
utilização de veículos em áreas com sina- habilidades, criam instrumentos, tendo a
lização para atividades de derrubadas de vara para facilitar a queda da árvore a dis-
árvores; técnicas inadequadas para a der- tância como exemplo.
rubada, como derrubar próximo a outros Sendo estreitas as margens para contro-
trabalhadores; deixar árvores “engaiola- lar os fatores aleatórios ligados à geografia,
das”. Vê-se assim que os resultados das ao clima e à exuberância do objeto do tra-
análises dos acidentes em Minas Gerais, balho, árvores que se entrecortam em flo-
que motivaram este estudo, encontram eco restas densas, as características sociais da
em parte dos estudos que prosseguem afir- produção são cruciais como suporte para
mando as causas sem procurar entender os a implementação de medidas de conforto
seus determinantes. e de segurança. No entanto, os métodos
Ostberg (1980), estudando a percepção de gestão não oferecem suporte aos modos
dos riscos pelos trabalhadores da indústria operatórios desenvolvidos. Nota-se que o
florestal da Suécia, identificou a seguinte tratamento das situações mais adversas,
hierarquia de fatores de risco: liberar uma como árvores “engaioladas”, pode ser fei-
árvore a partir de uma árvore que a suporta to com segurança, caso seja possível a in-
(“enroscada”), trabalhar com distância in- teração dos membros da equipe de corte,
ferior à distância de três árvores entre equi- pois o trabalhador estará atualizado sobre
pes, liberar uma árvore derrubando outras a posição do outro e, além disso, estarão in-
na direção de outras (“efeito dominó”), in- teragindo para determinar a maneira mais
terromper a tarefa para realizar uma pausa, segura de realizar a queda da árvore.
deixando uma árvore com corte iniciado
Os resultados apresentados acima in-
sobre outras, não realizar os cortes de aba-
dicam que o trabalho realizado durante o
te e direcional, iniciar corte da árvore sem
corte de madeira tem suas especificidades
limpar o local no pé da mesma, realizar os
e é uma atividade complexa. Um exemplo é
cortes para derrubada, mas sem preservar a
o “engaiolamento”, que dificulta as etapas
linha de ruptura, derrubar uma árvore con-
de desgalhamento, de traçamento e o seu
tra um vento forte, empurrar uma árvore
arranjo, pois as toras, ficando dispostas em
após ter feito os cortes para derrubada.
várias direções, exigirão maior esforço físi-
A lista explicita os agentes, mas não co dos operadores para deslocá-las. O ma-
busca tecer uma análise mais profunda, nuseio da árvore engaiolada pode danificar

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007 49


o equipamento, diminuir o rendimento da seria reduzido para um a quatro minutos
operação e aumentar o risco de acidentes. (SLAPPENDEL et al., 1993).
A movimentação da equipe no terreno À semelhança dos dados colhidos nes-
não é aleatória. Existe cooperação entre te estudo, os autores (op. cit., 1993) citam
as equipes de diferentes áreas de trabalho que, em sistemas de pagamento por peças
que sincronizam cada etapa da derruba produzidas, o trabalhador utiliza-se de
de árvores, tentando evitar a aproxima- métodos proibidos para economizar sua
ção das equipes nas fronteiras das suas energia, aumentar a produção e por não
respectivas áreas, o que poderia expor os haver nenhum outro método mais práti-
colegas às árvores derrubadas pela equipe co. Ou seja, o trabalhador, em geral, que-
vizinha. braria as normas de segurança, apesar do
seu conhecimento sobre os riscos exis-
Além disso, quando existe a possibi-
tentes. O sistema de produção não apenas
lidade da aproximação, as equipes mo-
bloqueia as iniciativas de atenuação dos
bilizam estratégias específicas para evi-
riscos, mas assume uma atitude toleran-
tar o contato, ou seja, dinamicamente,
te com os comportamentos considerados,
constroem-se modos operatórios visando
por eles próprios, inseguros. Vale lembrar
a aumentar a segurança das equipes du-
que, no caso estudado, eles sorteiam o
rante o corte das árvores, contrariando a
risco. Ao invés de proceder à elaboração
tese do trabalhador despreparado e des-
de estratégias de prevenção baseada nos
cuidado presente nos relatórios citados.
conhecimentos dos trabalhadores, a em-
As estratégias identificadas neste estudo
presa prefere sortear entre as equipes as
fragilizam a ideologia da falha humana
áreas perigosas.
e a idéia de uma adesão ao risco. Parado-
xalmente, vê-se o peso da “falha humana” No caso citado, identifica-se que a estra-
nas análises efetivadas que constam dos tégia do trabalhador para realizar a sua ativi-
relatórios como explicação para as mortes dade é violar a norma de segurança de “não
ocorridas. realizar efeito dominó”. Entretanto, não se
apresentam os determinantes de tal proce-
As regras de segurança são efeito de
dimento, os quais, se reconhecidos, pode-
idiossincrasias. Por exemplo, a distância
riam orientar as medidas de prevenção.
mínima entre uma equipe de corte e ou-
tra, em 1991, era 60 metros, diminuiu para Ostberg (1980) comenta que provavel-
40 metros em 1997 e, atualmente, é de 30 mente os trabalhadores estejam cientes de
metros (!). O que teria acontecido para a inúmeros riscos, mas, apesar disso, per-
nítida diminuição da zona de controle e manecem impossibilitados de evitar as
de proteção? A concorrência no mercado e lesões quando o risco se materializa, por-
a fratura da organização sindical em tem- que a organização do trabalho é tão rígida
pos de políticas sociais desidratadas ex- que a prática de evitar o risco é inviável.
plicariam a intensificação da exploração Os trabalhadores teriam consciência do
no trabalho? risco a que estão expostos e não estariam
“alienados” em relação ao mesmo (SLA-
Ostberg (1980) relata que dois terços
PPENDEL et al., 1993).
dos trabalhadores utilizam, às vezes, mé-
todos proibidos, por exemplo: tratar ár- Baseado nos resultados descritos ante-
vores “enroscadas” cortando a árvore de riormente, é razoável supor que as análi-
apoio, jogar uma árvore sobre aquela que ses clássicas deixam escapar que, muitas
está “enroscada” (efeito dominó). A justi- vezes, a realização da tarefa depende do
ficativa para o modo operatório de risco é operador subverter a norma de seguran-
aumentar o número de árvores cortadas, ça. Sem analisar o trabalho, haverá pouca
reduzir o gasto de energia e o fato de os chance de o especialista da segurança não
operadores não encontrarem, no contexto incorrer nas idéias pré-concebidas sobre
técnico-organizacional dado, forma mais o comportamento de risco do operador.
operacional e segura de fazer a derrubada. Algumas situações que podem represen-
Os trabalhadores admitem correr riscos e tar riscos para a atividade do operador de
justificam que quebram regras, pois o tem- motosserra são descritas em manuais de
po disponível para cumprirem suas metas segurança da própria empresa. Trata-se
é insuficiente, ou seja, para derrubar uma de prescrições de procedimentos seguros
árvore segundo a prescrição habitual, le- para serem executados pelos trabalhado-
vam-se cerca de 14 minutos, no entanto, se res, entretanto, são contraditórias para a
forem usados métodos proibidos, o tempo realização dos objetivos da produção.

50 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007


Conclusão

Os resultados obtidos nesta investiga- a variabilidade das situações de trabalho,


ção, tendo como foco os acidentes na fase tampouco o saber prático dos trabalhadores
de derrubada de árvores, permitem criticar tanto na elaboração de estratégias para fa-
a superficialidade das abordagens clássi- zer as tarefas do sistema produtivo quanto
cas dos acidentes que não levam em conta para evitar os riscos presentes.

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Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 41-51, 2007 51


Novas tecnologias construtivas e acidentes na cons-
trução civil: o caso da introdução de um novo siste-
Eduardo Diniz Fonseca2
ma de escoramento de formas de laje1
Francisco de Paula Antunes Lima3
Modern building technologies and construction accidents - the
case of the introduction of a new slab mould propping system

1
Artigo baseado na dissertação Resumo
de Mestrado de Eduardo Diniz
Fonseca intitulada Segurança em Este artigo analisa em que medida a introdução de novas tecnologias no pro-
canteiros de obras e inovações tec-
cesso produtivo da construção civil pode ser geradora de acidentes. No es-
nológicas, apresentada em 28 de
março de 2007 ao Departamento tudo de caso, procura-se demonstrar como a introdução de um novo tipo de
de Engenharia de Produção da escoramento para lajes nervuradas, utilizado para aumento da qualidade e da
Universidade Federal de Minas produtividade, produz novos riscos para os trabalhadores, causando aciden-
Gerais. Uma versão simplificada tes. A origem desses acidentes está na ruptura entre a experiência do trabalho
deste artigo ( Inovação tecnológica desenvolvida na situação anterior e a experiência ainda não plenamente de-
e acidentes na construção civil) foi senvolvida na nova situação de trabalho. Um novo sistema de escoramento
apresentada no XIV Congresso para laje pré-fabricada é introduzido imaginando-se ser necessário apenas um
Brasileiro de Ergonomia, Curi- saber técnico específico (aprumar, alinhar, etc.), entretanto, a análise ergonô-
tiba-PR, 29 de outubro a 02 de mica do trabalho mostra que os acidentes acontecem porque os trabalhadores
novembro de 2006.
ainda não desenvolveram os saberes de prudência necessários para dominar
2
Analista em Ciência e Tecnologia os novos riscos.
da Fundacentro. Belo Horizonte,
Minas Gerais. Palavras-chaves: novas tecnologias, acidentes de trabalho, análise ergonômica
3
Professor Doutor do Departa- do trabalho, construção civil, saberes de prudência.
mento de Engenharia de Produção
da Universidade Federal de Minas Abstract
Gerais. Belo Horizonte, Minas
Gerais.
The article analyzes to what extent the introduction of a new building technology
in a construction production process can cause accidents. Through a case study
the authors demonstrate how the introduction of a new kind of propping for
ribbed concrete slabs, used to improve quality and productivity, exposes workers
to new risks and may cause accidents. The gap between the workers’ experience
acquired in a previous situation and the new work experience, which has not
been fully developed, originates these accidents. The new slab mould propping
system was introduced presuming it would demand only specific technical
knowledge (straighten up, lining up etc.) However, work ergonomic analysis
has shown that accidents happen because workers have not yet developed the
necessary caution awareness to face new risks.
Keywords: new technologies, work injuries, work ergonomic analyses, civil
construction, caution awareness.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007 53


Introdução

Na sociedade moderna, industrial, o quinas e organizar a produção em mol-


senso comum associa eficiência e segu- des industriais. O processo de produção
rança ao progresso tecnológico. De tempos continua sendo semi-artesanal ou de base
em tempos, um acidente abala provisoria- artesanal, como na manufatura do início
mente essa convicção, fazendo-nos pensar da Revolução Industrial (MARX, 1994).
sobre os limites e os riscos tecnológicos. A Segundo Fleury e Vargas (1983), a indús-
introdução de inovações tecnológicas é um tria da construção civil sempre procurou
momento privilegiado para analisar o risco implantar a racionalização do trabalho, se-
tecnológico e os acidentes, pois a relação guindo o modelo taylorista, na tentativa de
homem-técnica ainda não está estabiliza- obter um maior controle sobre o trabalho.
da, como ocorre com tecnologias já ma- No entanto, como os métodos de trabalho
duras. Com o passar do tempo, os homens são bastante variáveis, sem repetição nas
desenvolvem competências e habilidades suas operações, as tentativas de “raciona-
para dominar as técnicas, dando a impres- lização” acabam se frustrando e a alta rota-
são, para olhares menos atentos, de que as tividade da mão-de-obra no setor dificulta
máquinas e os instrumentos “funcionam o treinamento nesse novo método de tra-
bem”, como se a funcionalidade lhes fosse balho. Também os produtos na construção
algo inerente e independente dos trabalha- civil são pouco padronizados e produzidos
dores que os operam. Nos momentos de em pequena escala, quando não únicos, o
transição, as inadequações das interfaces que impede a adoção de técnicas desen-
entre os homens e as técnicas tornam- volvidas na produção industrial em larga
se mais visíveis, precisamente porque as escala baseadas na padronização, na repe-
competências humanas, que permitem às tibilidade e na modularização.
máquinas desempenhar adequadamente
suas funções, ainda não estão plenamente Essas características peculiares do setor
desenvolvidas e cristalizadas em compor- da construção civil condicionam também o
tamentos automáticos. Este artigo trata de processo de aprendizado que se dá dentro
um caso em que foi possível acompanhar a dos canteiros de obras, onde se desenvol-
introdução de uma nova técnica de formas vem as competências dos trabalhadores:
pré-moldadas em obras civis (FONSECA & a aprendizagem pela prática por meio de
LIMA, 2006). processos informais, semelhantes em al-
guns aspectos do artesanato, mas sem a
A incontestável importância da indús-
organização tradicional dos ofícios. A edu-
tria da construção civil para a economia
cação formal, prévia à prática profissional,
do Brasil (DIEESE, 2002) contrasta com a
elevada taxa de acidentes (SANTANA & tem poucos efeitos no desenvolvimento
OLIVEIRA, 2004; PIRES, 2005; FARIAS, de qualificações nesse setor. Isso também
2006). Otimista quanto à mudança desse determina o desenvolvimento dos saberes
quadro, o presidente do SINTRACON/SP de prudência que permitem o domínio das
afirma que, nos últimos 10 anos, “o bom situações de risco.
uso da tecnologia foi um grande aliado de Neste estudo, procura-se demonstrar
toda esta evolução com uma maior segu- que a introdução de novas tecnologias nos
rança das obras” (PIRES, 2005). No en- canteiros de obras – no caso, a introdução
tanto, as mudanças tecnológicas, se têm de um novo sistema de escoramento de for-
beneficiado a produtividade, nem sempre mas de laje – não produz necessariamente
causam efeitos positivos significativos so- um efeito benéfico direto sobre a redução
bre a taxa de acidentes. Ao contrário, cer- de acidentes, assim como acontece com a
tas inovações tecnológicas trazem novos qualidade e a produtividade. A hipótese
riscos para os trabalhadores. defendida neste texto é que a nova tecnolo-
De modo geral, a indústria da constru- gia pode provocar uma ruptura nos saberes
ção civil tem resistido às inovações tecno- dos trabalhadores, desestruturando mo-
lógicas e organizacionais que, nos últimos mentaneamente as estratégias e os saberes
séculos, marcaram a face de quase todos de prudência desenvolvidos e transmitidos
os setores produtivos. Grande parte do pela prática e, em conseqüência, gerando
processo de trabalho na construção civil acidentes/incidentes que somente poderão
continua inteiramente dependente do tra- ser evitados mediante o desenvolvimento
balho manual, ou seja, do trabalho vivo e de novos saberes adquiridos em suas ativi-
de suas habilidades, sem poder usar má- dades com os novos processos.

54 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007


Modelos de análise de acidentes

Crítica dos modelos tradicionais consideração todo um contexto que indu-


ziu o trabalhador a praticar o ato (DWYER,
No Brasil, ainda predomina a concep-
1989). Entendendo ser o trabalhador dota-
ção de que os “atos inseguros” ou “condi-
do de livre-arbítrio na tomada de decisão
ções inseguras” se antepõem aos acidentes,
em uma determinada situação, não se bus-
conduzindo as análises a uma única causa,
ca a compreensão das circunstâncias do
embora, nas últimas três décadas, a teoria
acidente inserido em um contexto tempo-
multicausal venha ampliando os horizon-
ral (ALMEIDA & BAUMECKER, 2004).
tes e reduzindo a importância das causas
imediatas dos acidentes (ALMEIDA, 2001). Na construção civil, várias são as narra-
Tal concepção acentua as violações de tivas que possibilitam a constatação dessa
procedimentos do trabalhador na linha de predominância de responsabilização do
frente, indicando que os atos inseguros são trabalhador acidentado. Quando um pe-
provenientes de processos mentais, como o dreiro, por “estar trabalhando em um an-
esquecimento, a desatenção, a negligência daime mal colocado, se distraiu e caiu...”, a
etc., o que transforma os acidentes em fe- culpa é atribuída ao acidentado por falta de
nômenos essencialmente psicológicos. atenção (SANTANA & OLIVEIRA, 2004).
As interpretações, em termos de um Essas análises de acidentes em termos
suposto erro, sempre são possíveis quando de falhas humanas e condições inseguras
se analisa o acidente relacionando-o com padecem de um defeito congênito. Como
o comportamento do operador, que comu- toda máquina é cultural (WISNER, 1991),
mente deixa de adotar, em algum momento, contrapondo-se “erro humano” e “falha
um comportamento normatizado. Confron- técnica”, não se consegue, também, com-
ta-se uma situação real com uma situação preender os acidentes e atuar na prevenção
imaginada possível, exterior em relação à pelos seguintes motivos: (1) quando se ex-
atividade concreta de trabalho, encontran- plica o acidente em termos de erros huma-
do-se ao final da análise a culpa já pressu- nos, deixam-se de fora outras causas nele
posta na noção de desvio em relação à nor- envolvidas. É falso pensar que o operador
ma de segurança. Explicar o acidente por seja o único responsável pelo acidente,
culpa, desvio ou erro do operador não per- embora sempre existam falhas humanas na
mite entender por que o operador falhou rede de causas de um acidente; (2) supõe-
em situação real (WISNER, 1991). se serem as máquinas infalíveis, de confia-
Debitando as causas dos acidentes ao bilidade superior à do homem, e o sistema
erro humano, as estratégias de prevenção técnico, um apoio infalível ao operador.
passam a ter como foco exclusivo o “fa- Assim, o homem seria a última barreira a
tor humano” e as medidas de prevenção ser transposta para um funcionamento sem
procuram eliminar as variabilidades não falhas dos sistemas técnicos.
desejadas no comportamento humano Segundo Cru e Dejours (1987), no setor
(REASON, 1990). As análises simplificam da construção na França, os prevencionis-
a compreensão do trabalho humano e as tas, questionando os fracos resultados dos
medidas decorrentes impõem a forma de métodos precedentes e favoráveis à intro-
trabalhar, engessando o desenvolvimento dução de novas tecnologias, anunciam sua
da atividade pelo operador para alcançar aspiração em reduzir ao máximo o fator
a máxima redução da influência do fator humano por uma organização do trabalho
humano no desempenho global do sistema mais rigorosa. Para tanto, teriam como re-
(AMALBERTI, 1996). Esses objetivos são
ferência a indústria mecânica. A prevenção
compreensíveis desde que se conclua que
seria, assim, a introdução de procedimen-
o homem é o elo frágil dos sistemas ho-
tos de segurança a serem adotados pelos
mem-máquina.
trabalhadores, postos como um conjunto
Porém, os acidentes de trabalho decor- de medidas técnicas elaboradas por espe-
rem de “relações e não de fator ou de uma cialistas exteriores ao trabalho e transmiti-
condição em si” (ASSUNÇÃO & LIMA, das aos operários “supostamente ignorantes
2003, p. 1774). A análise centrada na cau- ou inconscientes dos riscos”. Essa forma de
sa imediata do acidente não proporciona prevenção está profundamente relaciona-
uma compreensão das circunstâncias da da com os novos modos de organização do
situação real do trabalhador no desenvolvi- trabalho no setor da construção, que tem
mento de sua tarefa, deixando de levar em como pretensão programar e controlar,

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“nos mínimos detalhes, os gestos e modos que garantem um compromisso eficaz na
operatórios de cada operário”. O coletivo execução de uma dada tarefa pelo opera-
de trabalhadores prefere, no entanto, re- dor, geralmente composta de três objetivos
nunciar aos modos de prevenção vindos do contraditórios: garantir sua segurança pes-
exterior e basear-se na “prevenção espon- soal e a do sistema; ter um bom desempe-
tânea nascida dos saberes das profissões e nho no desenvolvimento da tarefa imposta
das tradições operárias do setor da constru- e também almejada; e procurar minimizar
ção” (CRU & DEJOURS, 1987, p. 31). as conseqüências fisiológicas e mentais
que poderiam levá-lo a um estado de fadi-
Novas abordagens de acidentes ga ou de sobrecarga. O erro tem papel fun-
Com o rápido processo de inovação damental na regulação desse compromisso
tecnológica no último século, principal- e é subestimado ou mal-interpretado nas
mente na aviação, a partir dos anos 70 o concepções tradicionais, que vêem os erros
progresso da segurança tem se orientado apenas como manifestações negativas do
por dois caminhos (AMALBERTI, 1996): 1) comportamento humano. Não é a ausência
aperfeiçoamentos técnicos para diminuir de erros que garante a segurança de um sis-
panes e impedir erros humanos (fool proof tema, mas sim a capacidade de recupera-
systems); 2) desenvolvimento do retorno de ção dos operadores quando percebem seus
experiências que proporcionem uma me- erros (AMALBERTI, 1996).
lhor avaliação do risco de falhas e adoção A análise dos acidentes, pela natureza
de medidas para impedi-las. desses eventos, permite apenas compreen-
Porém, esses esforços para beneficiar a der a ruptura do compromisso cognitivo,
segurança dificilmente têm êxito. É inegá- isto é, quando as estratégias e as compe-
vel a contribuição da técnica na evolução tências colocadas em prática pelo operador
dos níveis de segurança, mas as escolhas não foram suficientes para evitar o aci-
técnicas são ambivalentes: contribuem dente. Somente com o estudo de situações
para reduzir a freqüência dos acidentes, habituais, analisando-se as atividades de
mas, ao mesmo tempo, geram outros aci- trabalho no máximo levemente inciden-
dentes, criando obstáculos às atividades tais, é que se compreende como o operador
dos operadores. Os métodos de retorno, até mantém o compromisso cognitivo. Essa
o presente momento, produzem resultados compreensão é a chave para o projeto de
decepcionantes: pouco contribuem para a instrumentos de assistência eficazes para
prevenção, servindo mais para uma análise o operador e, em geral, para a concepção
após a ocorrência do acidente. No caso do de novas tecnologias. De outro modo, as
Airbus A-320, que se chocou contra o mon- inovações podem modificar as condições
te Sainte Odile, existiam vários incidentes dos compromissos cognitivos tal como efe-
antecedentes, mas, como em todos eles não tivados pela experiência dos operadores
houve acidente, os organismos responsá- (AMALBERTI, 1996).
veis pelo retorno das informações não os Explicar o acidente supondo o erro do
divulgaram (AMALBERTI, 1996). operador não possibilita entender o que
Percebe-se que as análises de acidentes leva ao insucesso do operador em situação
estão voltadas para gerir panes ao invés real. As dificuldades que esses operadores
de manter um funcionamento sem falhas, encontram são, também, frutos da divisão
como confirmado nos acidentes da famí- social do trabalho, que separa projetista
lia Airbus. É necessário entender que as de operadores. É necessário ter em mente
que cada um possui saberes diferentes e
análises dos acidentes devem ampliar seus
representações diferentes que não podem
horizontes e ir além das situações em que
ser desprezados quando se deseja alcan-
o operador reage às panes e deixar de con-
çar uma maior segurança. Na operação e
fundir a origem dos acidentes com os erros
no projeto de sistemas técnicos é neces-
que o operador comete quando tenta detec-
sário um intercâmbio desses saberes, res-
tar e solucionar essas panes em situações
peitando-se seus respectivos limites; mas
desfavoráveis. Assim, é indispensável uma
quando se contrapõe erro humano à falha
nova forma de abordagem que possibilite
técnica, não se possibilita a cooperação de
compreender os compromissos cognitivos
saberes entre operadores e engenheiros
criados pelos operadores, sua inteligên-
(WISNER, 1991).
cia e sua fragilidade, os quais garantem a
segurança em situação real de trabalho. Segundo Assunção e Lima (2003, p.
Por “compromisso cognitivo”, Amalberti 1769), o trabalho se torna perigoso pelo seu
(1996) designa os mecanismos cognitivos engessamento, pelo não reconhecimento

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das estratégias ou modos operatórios que (fisiológicas, psicológicas e cognitivas). As-
o trabalhador desenvolve para atingir os sim, só se pode aumentar a confiabilidade
objetivos impostos com os meios de pro- dos sistemas técnicos pelo aumento da cul-
dução que lhe são fornecidos, pela redução tura humana (WISNER, 1991).
das possibilidades do trabalhador exercer
Esse limite é constatado no acidente
suas competências, “que sustentam as es-
com o trem rápido ICE (InterCityExpress),
tratégias de regulação dos riscos”.
quando a notícia repercutiu profundamen-
Inovação e acidentes te na Alemanha, principalmente no que
diz respeito à técnica, a qual a população
Segundo Amalberti (1996), o que se
alemã acreditava ser infalível:
busca nos tempos atuais, na gestão de “sis-
temas”, não é novidade. Desde a Antiguida- Tal evolução dos acidentes paradigmá-
de, esse tipo de atividade (gerir “sistemas”) ticos mostra como a sociedade moderna
torna-se a sua própria catástrofe natural,
já se apresentava quando a humanidade
já sem necessidade de terremotos e fura-
buscava o domínio das águas e o transpor- cões. Hoje, na terceira revolução indus-
te de materiais pesados. Porém, esse tipo trial, essa tendência agrava-se ainda mais:
de atividade muda de natureza quando as catástrofes tecnológicas concentram-se
considerados três itens causadores de múl- desde o início dos anos 80 e são respon-
tiplos efeitos: um distanciamento da con- sáveis por um número maior de mortos e
dução manual do sistema, a busca por uma feridos do que as ‘autênticas’ catástrofes
produtividade sempre superior e a busca naturais e as contendas militares juntas.
(KURZ, 1998, p. 3)
pela segurança (excelência na proteção dos
riscos e suas responsabilidades). Os dois No longo prazo, as inovações têm dado
primeiros se relacionam e é historicamente uma contribuição positiva quando passam
demonstrado que o ganho de produtivida- por sucessivos aperfeiçoamentos. Todavia,
de depende do progresso tecnológico4. a “fase de aprendizagem e de domínio de 4
Para aumentar a produtividade,
Implicitamente, os ganhos de produti- um novo processo” é desprezada e as ino-
o valor a mais que o trabalhador
vações tecnológicas são introduzidas, mes-
vidade trazem conseqüências à segurança, cria além do valor da sua própria
clando-se atividade produtiva e experimen- força de trabalho – a mais-valia –,
elevando o risco consentido. Atualmente,
tos, preocupando-se mais com o aumento “é mister que se transformem as
os aviões transportam 500 passageiros em
da produtividade, o que a torna incompa- condições técnicas e sociais do
vez de 100, como nos anos 70. Em vez de
tível com o processo de aprendizagem e o processo de trabalho, que muda o
controlar alguns aviões, como nos anos 60, próprio modo de produção, a fim
domínio da nova técnica, deixando-se de
os controladores atuais, às vezes, têm que de aumentar a força produtiva do
lado a questão da segurança dos trabalha-
controlar 25 ao mesmo tempo. O que se trabalho” (MARX, 1994, p. 362).
dores ou não lhe dando a devida importân-
verifica é uma situação paradoxal: otimi- Para tal, o capital poderá fazê-lo
cia (ASSUNÇÃO & LIMA, 2003, p. 1788). de duas maneiras: aumentando
za-se a produtividade e desregulam-se os
Eliminam-se os mecanismos de regulação o número de horas trabalhadas
mecanismos “naturais” (no sentido de an-
tradicionais, que deixam de ser úteis nas (mais-valia absoluta) ou introdu-
teriormente desenvolvidos e estabilizados)
novas situações de trabalho, e não se criam zindo inovações tecnológicas,
de equilíbrio do compromisso cognitivo que impliquem aumentar a
condições para o desenvolvimento de no-
(AMALBERTI, 1996). produtividade sem alterar o salário
vos sentidos e estratégias de percepção e
(mais-valia relativa). “Chamo de
Como a evolução tecnológica é cultura controle dos riscos. Nem mesmo a expe- mais-valia absoluta a produtivida-
humana objetivada, no limite do avanço da riência dos trabalhadores, que servem de de pelo prolongamento do dia de
tecnologia, as falhas revelam o limite da “cobaias” ou que “resistem” às inovações, é trabalho, e de mais-valia relativa
cultura humana diante da natureza. O de- considerada para aperfeiçoar as inovações, a decorrente da contração do
senvolvimento tecnológico cria situações o que permitiria diminuir os acidentes em tempo de trabalho necessário e
que ultrapassam as capacidades humanas momentos de transição. da correspondente alteração na
relação quantitativa entre ambas
as partes componentes da jornada
de trabalho” (MARX, 1994, p.
Por uma análise alternativa para entender o surgimento 363). A peculiaridade do processo
de acidentes capitalista é a transformação do
trabalho em processo fundamental
de valorização, especificamente
A metodologia aplicada neste estudo tor que orienta a análise à proporção que
a força de trabalho que pode ser
foi a Análise Ergonômica do Trabalho. Essa ela vai se desenvolvendo, trazendo consigo fornecida além do necessário para
metodologia permite desvendar as circuns- as informações sobre os modos de agir – o reconstituir o seu valor, que se ma-
tâncias que levam a um acidente por não trabalho real – para o desenvolvimento de terialize em produto excedente,
analisar os fatos isoladamente, por procu- uma determinada tarefa e a inter-relação o lucro do capitalista, a mais-valia
(NAPOLEONI, 1981).
rar analisá-los em relação a um saber-fazer, com outros fatores que influenciam no de-
a uma atividade. A atividade é o fio condu- senvolvimento dessa tarefa. A atividade é

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a mediação entre o homem e o que ele vai vimentos, sendo: 14 tipos, 4 apartamentos
produzir e é por meio dela que se procura por andar, 2 andares de garagem e 1 pilotis
descobrir o paradoxo entre as exigências – localizado na zona sul de Belo Horizonte.
da produção e os efeitos sobre o trabalhador
(FERREIRA, s/d). A duração do estudo foi de aproxima-
damente 8 meses, de maio a dezembro de
Por intermédio da análise da atividade, 2005. Foram acompanhadas as fases de
evidencia-se a natureza dos compromissos execução das duas lajes de garagem e das
que intervêm na elaboração dos modos 13 lajes tipo, durante 2 meses e 6 meses,
operativos e identifica-se como esses com- respectivamente.
promissos podem vir a fracassar, atingindo
a segurança dos trabalhadores. Possibilita- Na fase de execução das duas lajes de
se, assim, uma melhor contribuição para a garagem, o efetivo da subempreiteira era
convergência entre os critérios de produti- de 18 carpinteiros, 3 serventes e 1 encar-
vidade e de segurança dos trabalhadores, regado. Durante a realização dos serviços
sempre que isso for possível, procurando das lajes tipo, o efetivo da subempreiteira
determinar os fatores que contribuem para foi reduzido para 6 carpinteiros e 6 ser-
uma sobrecarga de trabalho e avaliando ventes, sendo que 1 carpinteiro e 1 ser-
como os trabalhadores se ressentem dessa vente ficaram responsáveis apenas pela
sobrecarga (GUÉRIN et al., 2001). Em mo- execução da escada.
mentos de mudanças, tecnológicas ou or- As observações foram realizadas, em
ganizacionais, esses compromissos podem média, duas vezes na semana, com dura-
ser particularmente perturbados. ção de três horas. A partir da segunda fase
A partir dos relatos de “pequenos aci- de observações – execução das 13 lajes tipo
dentes ou incidentes”5 ocorridos durante a –, foram acompanhadas as atividades de 10
5
Pequenos acidentes ou inciden- execução dos serviços de forma para con- trabalhadores (5 carpinteiros e 5 serventes)
tes são, de fato, acidentes conside- de execução das tarefas de forma e monta-
cretagem das lajes, procurar-se-á uma ex-
rados de menor importância pelos
plicação para tais ocorrências – por meio gem de pilares, vigas e lajes.
responsáveis da obra.
da observação dos trabalhadores no desen- Para descrever o processo de produ-
volvimento de sua atividade de trabalho ção e as atividades dos trabalhadores, bem
em situação de normalidade – e, em segui- como compreender as “situações inciden-
da, uma explicação das circunstâncias que tais e acidentais”, devido às restrições pró-
levam a esses pequenos acidentes ou inci- prias ao trabalho nos canteiros de obras,
dentes de modo a conhecer as condições algumas técnicas foram adotadas:
que os geram, isto é, “tudo o que vela os
riscos sob a capa da normalidade cotidiana - observações livres das atividades;
e cria condições propícias aos erros laten-
- filmagens, gravações e fotografias para
tes” (LIMA & ASSUNÇÃO, 2000, p. 84).
posterior análise;
Procedimentos
- entrevistas e verbalizações dos tra-
O estudo foi realizado em obra de cons- balhadores nos seus postos de trabalho
trução de um prédio residencial – de aparta- de forma simultânea ao desenvolvimento
mentos com 3 quartos, 56 unidades, 17 pa- da atividade.

Resultados e discussão
A introdução de novo sistema de esco- Antes de expor a análise que explica
ramento para lajes nervuradas não foi in- a ocorrência dos incidentes e pequenos
teiramente descuidada quanto aos possí- incidentes evocados pelos trabalhadores,
veis riscos de acidentes. Os trabalhadores a nova tecnologia de escoramento e o pro-
receberam informações de como proceder blema tratado no estudo ergonômico serão
corretamente à montagem do sistema, apresentados.
inclusive para evitar certos riscos. No
entanto, essas ações de prevenção se fun- A nova tecnologia de escoramento
damentam nos modelos tradicionais da
segurança, cujos limites se tornam mais O novo sistema de escoramento e re-
evidentes em situações que exigem apren- escoramento surge no mercado com a se-
dizagem organizacional, como durante a guinte proposta, segundo o seu material
introdução de nova tecnologia. de propaganda:

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- retirada das formas mantendo o po- Muito melhor, como na segurança, como
sicionamento das escoras, economizando na... na rapidez. E também é um tipo de
tempo na execução da estrutura; forma que não utiliza prego, não utiliza
madeira. Quer dizer, ficou muito mais rá-
- economia de mão-de-obra na mon- pido e mais segurança.
tagem e na desmontagem por não exigir
Todavia, as contradições relativas à in-
mão-de-obra especializada ou ferramentas
trodução no novo sistema são explicitadas
especiais;
por meio de duas verbalizações sobre que-
- impedimento de deformações na laje, das de trabalhadores terceirizados durante
uma vez que a desforma é feita sem retirar a montagem das lajes:
o escoramento;
Já tinha quebrado a mão, é. Essa laje ali
- permite um perfeito nivelamento da (...) o trem daquela chapa de ferro, ali, ó,
estrutura; aquilo ali é perigoso demais... É nisso aqui
que ela apóia, naquela tria de ferro. Colo-
- estabilidade do escoramento pelos tra- quei ela falsa, ali, o camarada vinha e não
vamentos vertical e horizontal; tava vendo ela falsa, ali por baixo. Chega
e pisa, vara lá em baixo. Eu já caí duas ve-
- economia de material com a utilização zes nessa laje, um dia eu caí lá, que eu
de vigas e treliças de aço; fui lá pro João XXIII, lá tirei chapa disso
aqui tudo. Esse dedo meu veio pra trás.
- fácil acesso sob a laje para trânsito de Cheguei lá, a mulher falou: ‘Não quebrou
pessoas e materiais e maior segurança para não’. Passou remédio e tá roxo até hoje.
os operários, evitando os acidentes existen- (encarregado da empreiteira responsável
tes em outros sistemas através de ajustes pela armação)
feitos com rosca para desforma e nivela-
Segundo informação, o trabalhador da
mento da laje. empreiteira de formas, ontem, por volta de
Verifica-se que todas as vantagens se 14:00 horas, 14:30, mais ou menos, segun-
do relato do próprio trabalhador, quando
referem ao desenvolvimento da performan-
se locomovia sobre a forma, que está em
ce, à redução da mão-de-obra em termos
execução, a forma da 3ª laje, ele pisou na
quantitativos e qualitativos (uso de mão- extremidade de uma das formas pré-mol-
de-obra sem qualificação especial), à eco- dadas, de laje de forma pré-fabricada. A
nomia de material, à melhoria nos proces- mesma forma acabou virando, porque pi-
sos técnicos etc., ou seja, a tudo que possa sou indevidamente, pisou de uma forma
contribuir para um aumento da qualidade errada, ele pisou na beirada da forma, em
e da produtividade e, conseqüentemente, uma das extremidades da forma, e com
para um maior lucro. No que diz respeito à isso a forma veio a virar, porque está num
processo de montagem ainda, não estava
segurança, uma única referência é feita ao
ainda fixa. Veio a virar, e a perna do referi-
processo para nivelamento e desforma da do profissional desceu no vão aberto dei-
laje, que passa a ser feito com sistemas de xado pela forma. Com isso, ele teve uma
rosqueamento, diferentemente dos outros luxação na perna, de pequena gravidade,
sistemas, que utilizam madeira e pregos. felizmente. Hoje ele continua até traba-
Imagina-se, assim, que os conhecimentos lhando. (técnico de segurança da obra)
anteriores dos trabalhadores com o anti-
Do primeiro relato, pode-se inferir a
go sistema são suficientes para a execução
existência de um primeiro momento, em
dos serviços com o novo sistema, sem a ne-
que o trabalhador não tem experiência an-
cessidade de qualquer atenção especial no
terior com o novo sistema de escoramento,
processo de adaptação ao novo sistema.
como condição originária das ocorrências
A demanda do estudo ergonômico de quedas durante a montagem das lajes.
Na busca de maior produtividade e No segundo relato, pressupondo ter o
lucratividade e imaginando-se ganho na trabalhador total domínio da situação no
segurança por evitar o uso de pregos e ma- momento do acidente e que a decisão de
deiras – causa de um grande número de pisar de uma forma errada é uma decisão
pequenos acidentes na construção civil –, consciente do trabalhador dentre outras
é introduzido um novo sistema de escora- possíveis quando anda sobre a laje, o técni-
mento no processo de produção da obra. co de segurança, impregnado pela concep-
Como se verifica nas palavras do mestre- ção tradicional, responsabiliza o trabalha-
de-obras sobre a introdução do novo pro- dor: “porque pisou indevidamente, pisou
cesso de forma: de uma forma errada”.

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No entanto, com essa visão impregnada armador, que estava ao seu lado, sobre uma
pela concepção tradicional, o técnico deixa queda sofrida por ele.
de perceber as variabilidades do processo
Pergunta: Ninguém caiu mais?
que determinaram a ação do trabalhador
no momento do acidente, não vê que “a Resposta: Sei lá, eles não sabiam traba-
forma de pisar corretamente” nem sempre lhar com o material, ainda, né? Deixava
é possível de ser efetivada, dadas as con- ela bamba, não amarrava com o arame
dições reais de trabalho, no caso, o deslo- direito. Eu mesmo caí duas vezes. Você,
também, caiu, não caiu? [Perguntando ao
camento sobre as formas: dificuldade de
armador que estava ao seu lado].
visualização, rapidez nos deslocamentos
para agilizar uma tarefa etc. Resposta: Caí.

Portanto, contradizendo o pressupos- Pergunta: Quantas vezes?


to pelo técnico de segurança, que procura Resposta: Uma vez.
atribuir a culpa ao trabalhador por negli-
gência, pode-se verificar a existência de um O rodízio de trabalhadores entre as
segundo momento, em que o trabalhador obras permitiu evidenciar a falta de expe-
desenvolve competências para trabalhar riência como origem dos acidentes. A tran-
com o novo sistema de escoramento – o sitoriedade do trabalho, característica do
que se pode chamar de “saber de prudên- setor, implica uma constante adaptação do
cia” (CRU & DEJOURS, 1987, p. 31). É esse trabalhador: na construção civil, em cada
saber desenvolvido pelos trabalhadores, obra e a cada novo local de trabalho, o tra-
não reconhecido pelas empresas (constru- balhador se depara com situações extrema-
tora, fornecedores, subempreiteiros), que mente variáveis – nesse caso acrescidas de
garante a sua segurança frente aos riscos uma tecnologia que eles não dominam e do
provenientes desse novo processo de pro- rodízio de trabalhadores que as subemprei-
dução. teiras promovem para reduzir custos. Sob
A falta de experiência com o novo sistema a alegação da necessidade de evitar gasto
de escoramento com vale-transporte, a subempreiteira da
armação, procurando melhor distribuir
Conforme anteriormente analisado no seus trabalhadores nas obras e racionali-
relato do encarregado da subempreiteira de zar a distribuição do vale-transporte a ser
armação, trabalhar pela primeira vez com
fornecido, na semana de preparação para
esse tipo de sistema de escoramento para
a concretagem da nona laje, permutou dois
formas pré-fabricadas é o fator principal
armadores da obra com dois outros de uma
para a ocorrência de quedas dos trabalha-
outra obra. Por conseqüência, como era
dores. Em seguida, ao se confrontar o mes-
novo o sistema de escoramento utilizado
tre-de-obras com as ocorrências de quedas
de cima das lajes durante a montagem das na obra para laje de forma pré-fabricada,
formas, ele relata que: um desses “novatos” veio a cair da laje du-
rante o desenvolvimento de sua tarefa de
É a primeira obra, é uma experiência que montagem da armação. Na entrevista sobre
eles estão tendo, eles começaram a fazer,
a ocorrência, um deles relatou que, por ser
já faz alguma obra, obra pequena, obra
grande, mesmo, é a primeira. a primeira vez que trabalhava com esse sis-
tema de escoramento, ele não conhecia a
O mestre-de-obras lembra que o lança- maneira correta de andar em cima da laje e
mento desse sistema de escoramento foi acabou caindo:
feito na feira da construção civil em 2004.
Também para ele, as quedas sofridas pe- Pergunta: Tu já aprendeste a andar?
los trabalhadores durante a montagem das Resposta: Eu aprendi, não tem como não
formas estão relacionadas ao fato de ser a aprender, se pisar em falso arrebenta.
primeira vez que eles trabalham com esse
Pergunta: Como é esse pisar em falso?
novo sistema de escoramento.
Resposta: Tem alguma que é mal coloca-
Posteriormente, questionado mais uma da, se pisar na beirada vira [a forma pré-
vez sobre alguma outra ocorrência, o encar- fabricada] e desce.
regado da subempreiteira de armação rea-
firma que a introdução de um novo sistema Pode-se concluir que, num primeiro
de escoramento é o fator determinante, pois momento, as quedas de trabalhadores de
os carpinteiros ainda não sabiam trabalhar cima das lajes durante a montagem têm a
com o material. E, logo em seguida, aponta origem na introdução de um novo sistema
mais uma ocorrência quando questiona o de escoramento para formas pré-fabricadas

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com o qual os trabalhadores não possuem cultural que gerava conflito entre ele e os
experiência anterior. trabalhadores. A lâmpada de Davy serve
como exemplo de ferramenta que rompe
Dwyer (2006), analisando como em um
com as formas de segurança apropriadas,
processo de expansão tão rápido – entre
no duplo sentido de eficazes e incorpora-
1800 e 1840, a força de trabalho na mine-
ração inglesa aumenta de 40 mil para 143 das à prática dos trabalhadores: antes eram
mil (BENSON, 1980, apud DWYER, 2006) os próprios mineiros que desenvolviam
– os trabalhadores desenvolvem conheci- sentidos para o perigo. A lâmpada substi-
mentos para executar suas tarefas, constata tuiu o julgamento feito pelos trabalhadores
que, trabalhando e trocando informações, (DWYER, 2006, p. 40).
esses trabalhadores desenvolvem saberes Evidentemente, o sentido para o peri-
que os auxiliam quanto ao perigo: qual é o go desenvolvido pelos trabalhadores não
cheiro de um gás explosivo, teoricamente é apropriado em toda e qualquer situação.
inodoro, ou a existência de camadas de ro- Mas o caso da lâmpada de Davy e de outras
chas estratificadas e filões escondidos pelo inovações nos questionam: até que ponto
gosto da água. Esses saberes podem ser a introdução de um novo tipo de disposi-
classificados como o “sentido do poço”, um tivo técnico de segurança, que rompe com
“sexto sentido” em relação à segurança. a “segurança ecológica” (AMALBERTI,
Tomando um acidente como exemplo, 1996, p. 191), é mais eficaz para a segu-
o autor destaca a importância do “sentido rança dos trabalhadores?
do poço” – “para reconhecer, de imediato,
O “osso”: conseqüência da nova tecno-
os sinais de advertência, os sons e os odo-
logia
res” (DOUGLAS, 1997 apud DWYER, 2006,
p. 33) – como uma forma de comunicar aos Analisando o novo sistema de escora-
trabalhadores o momento de se retirarem mento com a substituição da madeira por
da mina. Esses conhecimentos, quando treliças metálicas de apoio à forma pré-fa-
consolidados, tornam-se uma tradição de bricada, imagina-se ser desnecessário fazer
“ofício”, produzindo um senso de verdade. amarração no encontro da laje com as vigas
Esse senso de verdade, quando rompido, externas. Entretanto, durante a concreta-
quando trabalhadores aceitam incentivos gem das primeiras lajes, foi verificada uma
oferecidos para agir de forma contrária em tendência de deslocamento da forma late-
determinada situação que seu senso de ral da viga quando se vibrava o concreto,
verdade alerta ser perigosa, resulta em aci- e por isso os trabalhadores, com os meios
dentes. Portanto, “o capitalismo do século de que dispunham, faziam a amarração da
XIX cria muito mais habilidades do que viga na estrutura metálica de escoramento
destrói” (DWYER, 2006, p. 33). da laje com arame, solucionando o proble-
O caso da lâmpada de Davy6 possibili- ma de deslocamento e desalinhamento da
ta a compreensão de como as práticas de viga. No sistema tecnológico mais usual, 6
Na lâmpada de Davy, a chama de
quando a forma pré-fabricada se apóia em um queimador a querosene era
gestão da segurança originárias do final
sarrafos de madeira, essa amarração é feita rodeada por um cilindro de uma
do século XIX contribuem para o aumento peneira de arame de 28 mesh por
dos acidentes, quando mais destroem do com sarrafos pregados no fundo da viga e polegada. A chama era alimentada
que criam habilidades. A introdução desse na peça de madeira de apoio da forma. pelo ar que passava pelo mesh da
novo sistema técnico rompe com os sabe- A forma simplesmente não estava tendo peneira; quando dentro de uma
res dos trabalhadores e outros fenômenos uma convergência de uma forma com ou- mina de carvão, poderia haver a
a eles relacionados, produzindo novos aci- formação de uma mistura detonan-
tra. Como foi o primeiro prédio que foi
te de ar e gás metano: nesse caso,
dentes (DWYER, 2006). feito aqui, de grande obra, então essas in-
a mistura queimaria apenas dentro
terferências não estavam bem projetadas,
Antes de existir esse dispositivo técni- da peneira, a chama não ultrapas-
teve que fazer umas adaptações. Agora eu
co de segurança – a lâmpada de Davy –, os saria da peneira para detonar o gás
creio que o fabricante vai evoluir. do ambiente. Disponível em http://
trabalhadores desenvolviam competências
Pergunta: A viga fica amarrada em quê? inorgan221.iq.unesp.br/quimge-
que os auxiliavam em uma dada situação ral/combustao/combust_13.html.
na tomada de decisão de trabalhar ou não. Resposta: Fica só apoiada. O que aconte- Acesso em: 22 set. 2006.
Com a introdução desse novo sistema téc- ce, os esforços na viga e na laje é só verti-
nico de prevenção para tratar os riscos cal por causa do concreto... Então a viga,
tecnicamente visíveis e mensuráveis, os ao vibrar ela tentou deslocar um pouco
trabalhadores e os empregadores passaram da forma, não existe um engaste. Era para
a depender dele para a confirmação do pe- funcionar, a forma, tipo um monobloco,
um conjunto...
rigo. O capitalismo industrial é agora mes-
tre na maneira de romper com a tradição Pergunta: E na madeira?

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007 61


Resposta: O processo tem os pontaletes, as fazendo com que a forma pré-fabricada fi-
cruzetas. Aí, tudo bem, a pessoa prende a que em falso, conforme pode ser observado
lateral da viga no assoalho da laje. (enge- nos detalhes das Figuras 2 e 3.
nheiro da obra)
Um outro tipo de causa do “osso” sur-
Assim, para resolver os problemas que giu durante a execução da laje do nono pa-
surgem durante o processo de produção, vimento, fazendo com que um dos arma-
oriundos de inadequações do projeto, os dores novatos, proveniente de outra obra,
trabalhadores, com os meios de que dis- caísse durante a montagem da armação.
põem, fazem adaptações para garantir a
Pergunta: Ele caiu por quê?
continuidade do processo de produção e
viabilizar a utilização desse novo sistema Resposta: Ele pisou falso na concha e caiu.
de escoramento para laje pré-fabricada. Pergunta: Aquele mesmo problema?
Surge, assim, o “osso”.
Resposta: Às vezes, na barra de ferro deles
Ela fica com... tem um osso que fica meio lá, eles desformam ela e fica concreto na
falso, você tá caminhando aqui, aquele barra, aí eles têm que tirar, se eles não ti-
negócio tá tudo encaixado, e você não tem rar, a concha fica falsa, aí você pisa nela,
como olhar por baixo. Você pisa ali, é na tomba de lado. (encarregado da subem-
hora que você desce para baixo. (encarre- preiteira de armação)
gado da empreiteira da armação)
Para o encarregado da subempreiteira
Saber o que era o “osso” – metáfora responsável pela armação, os carpinteiros
criada pelo encarregado da subempreitei- não estavam limpando a forma pré-fabri-
ra de armação para explicar o fato da for- cada, ou seja, não tiravam a argamassa
ma pré-fabricada ficar apoiada em falso do concreto que ficava agarrada na treliça
na sua estrutura de sustentação – exigiu de apoio à forma pré-fabricada. Devido à
certo tempo do pesquisador. Primeiro, pressa para entrega da laje ao armador no
pelo fato de os trabalhadores terem ver- tempo previsto e a algum outro fator que
gonha de relatar esses pequenos aciden-
intensificava o constrangimento de tempo,
tes ou incidentes, devido a brincadeiras e
eles deixavam para “fazer depois”, o que
chacotas por parte dos colegas. Segundo,
não acontecia, causando o mesmo tipo de
por serem esses pequenos acidentes ou
problema do arame e deixando em falso a
incidentes considerados de pouca impor-
forma pré-fabricada.
tância pelos responsáveis pela segurança
da obra, que não lhes dão atenção ou não É descuido do carpinteiro, né? Às vezes
têm interesse em registrá-los ou analisá- falou assim, fez o serviço e falou assim:
los, principalmente por acontecerem com depois eu volto aqui e conserto isso aí.
trabalhadores terceirizados. Os acidentes Isso aí! A pessoa às vezes vai e passa na
com trabalhadores terceirizados somente hora que ele deixou para consertar depois,
aí a pessoa vai e cai. (encarregado da su-
são analisados pelos responsáveis da obra
bempreiteira de armação)
nos casos de maior gravidade.
O “fazer depois” não se explica pela ne-
Durante a observação da atividade de
gligência dos trabalhadores em relação à
um dos ajudantes de carpinteiro, que fazia a
limpeza, mas pela maneira como o processo
amarração das laterais das vigas, desvelou-
de trabalho é organizado. A divisão do tra-
se o que seria o “osso”. Confrontado com a
ocorrência do “osso” e questionado se sa- balho faz com que cada equipe (geralmente
beria explicar o que ocasionava o “osso”, o um carpinteiro e um ajudante) se respon-
trabalhador explicou que, para fazer a amar- sabilize por uma tarefa. No caso da treliça,
ração da lateral da viga, é necessário passar antes de sua montagem, é necessário, após
um arame na peça metálica que sustenta a a concretagem de algumas lajes, tirar a arga-
forma pré-fabricada de modo a puxar a la- massa do concreto que nela fica agarrada.
teral da viga para o alinhamento, conforme Quando alguma outra variabilidade (chuva,
pode ser observado na Figura 1. Esse proce- retrabalho, falta ao trabalho etc.) reduz o
dimento não é prescrito, mas é uma varia- tempo para a execução dessa tarefa, pula-se
bilidade que surge durante a concretagem essa etapa ou se a executa de forma precária,
das primeiras lajes, quando foi verificada deixando-a para ser corrigida no momento
uma tendência da forma lateral da viga de do encaixe da forma pré-fabricada. Como as
balançar e se deslocar quando o concreto tarefas de colocação da forma pré-fabrica-
era vibrado. O deslocamento da forma pré- da são feitas por outros trabalhadores, se o
fabricada do local de encaixe, para passar o problema não for detectado, ou melhor, não
arame, cria um obstáculo para o encaixe da interferir na sua colocação, a forma fica em
forma pré-fabricada, originando o “osso” e falso, produzindo o “osso”.

62 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007


Figura 1 Trabalhador passando o arame para amarração do escoramento da laje com a forma das vigas
externas. Belo Horizonte, 2006

Figura 2 Detalhe do arame passando pelo local de fixação da forma pré-fabricada na estrutura metálica
- o “osso”. Belo Horizonte, 2007

Figura 3 Detalhe do local de apoio da forma pré-fabricada sobre treliça metálica. Belo Horizonte, 2007

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007 63


Pergunta: Quando vocês estão limpando a Resposta: Uma laje a gente limpou por
treliça e vocês deixam para fazer depois, cima, mas aí, como viu o perigo, era pe-
como é esse fazer depois? rigoso você ficar andando por cima, dan-
do martelada nela. Aí, agora a gente já
Resposta: Você vai limpar ela quando ela
limpa ela antes de entregar pro cara que
já tiver ali montado, você vai só andando
tá montando. Um pelotinho de concreto
ali por cima e batendo com um martelo. que agarrar, a bacia já não apóia direito,
Como às vezes tá apressado demais, a a bacia fica em falso, você não consegue
gente deixa para fazer depois. (ajudante colocar a bacia sem limpar. (ajudante de
de carpinteiro L) carpinteiro L)
Essa tarefa – ter que limpar a treliça O saber do trabalhador
– surge no curso da evolução do processo
de produção: quando da concretagem das Apesar de trair a ideologia do ato inse-
primeiras lajes, ou melhor, da quarta laje guro – quando ele atribui a culpa do aci-
em diante, os trabalhadores constatam a dente ao próprio trabalhador, por ele “pi-
necessidade de retirar a argamassa que fica sar de forma errada” –, a fala do técnico
agarrada na treliça e não possibilita o devi- de segurança revela implicitamente que os
do encaixe da forma pré-fabricada. Verifi- trabalhadores ainda estão desenvolvendo
ca-se então que, bem distante de se tratar um saber para evitar a queda da laje devido
de negligência, ao contrário, a limpeza que ao “osso”. A “maneira errada de pisar”, pi-
os trabalhadores fazem na treliça é uma sar na extremidade da forma, faz com que
correção imediata das inadequações para a forma vire e o trabalhador caia pelo vão
geração de um trabalho bem-feito e de al- aberto pelo deslocamento da forma pré-fa-
terações na maneira mais perigosa ou mais bricada. A maneira correta de pisar seria no
arriscada de trabalhar. No processo con- meio da forma pré-fabricada, fazendo com
vencional, essa limpeza não é necessária, a que ela se encaixasse de maneira correta
no vão da treliça, que iria apoiá-la e evi-
peça de madeira que serve de apoio é mais
taria o tombamento causado pelo possível
robusta, conforme pode ser observado na
desnivelamento proveniente do “osso”.
Figura 4, sofrendo pouca ou nenhuma in-
fluência da argamassa que fica retida, não Ele pisou na extremidade de uma das for-
prejudicando a segurança do encaixe da mas pré-moldadas de laje, forma pré-fa-
forma pré-fabricada. bricada. A mesma forma acabou virando,
porque pisou indevidamente, pisou de
Pergunta: Essa limpeza começou quando? uma forma errada, ele pisou na beirada da
forma, em uma das extremidades da for-
Resposta: As lajes de baixo [garagem],
ma, e com isso a forma veio a virar...
ela não tava agarrando, ela veio agarrar
depois de umas quatro lajes pra cima, aí Explicitar como é esse andar dos tra-
que veio começar a agarrar o concreto nas balhadores não é uma tarefa simples; cada
treliças. um tem sua forma peculiar de andar sobre
Pergunta: Aí vocês estavam limpando por a laje, dependendo de sua fisiologia e ex-
cima? periência – de forma análoga, assim como

Figura 4 Detalhe do apoio da forma pré-fabricada sobre sarrafo de madeira. Belo Horizonte, 2007

64 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007


cada indivíduo desenvolve a sua própria pouco [demonstra esticando o braço para
maneira de andar ao longo da vida, assim é afastar o material do corpo e poder olhar]
a sua forma de andar sobre a laje. As formas e andar devagar.
pré-fabricadas são separadas por nervuras Para os trabalhadores, “a pressa e a cor-
com largura média de 15 cm, dando uma reria” são os principais determinantes para
forma de tabuleiro de xadrez à forma da não conseguirem andar “de forma correta”
laje. E, para andar em cima dela, pisando sobre a laje, conforme se verifica na entre-
no meio da forma pré-fabricada, cada um vista do carpinteiro vítima de queda quan-
desenvolve seu próprio saber em conformi- do perguntado por que ele pisava em falso:
dade com o seu passo para poder pisar no “Difícil [de falar]. É pressa”.
meio do quadrado do tabuleiro. Verifica-se
que alguns dão passos mais longos, outros Além da maneira de pisar, os traba-
esticam um pouco as pernas e os mais ágeis lhadores desenvolvem capacidades para
chegam a andar como se estivessem pulan- perceber que local oferece risco de queda.
do de quadro em quadro. Para melhor com- Olhando a laje, eles procuram identificar o
preender essa forma de andar, entende-se desnível existente na forma e evitam tran-
ser mais didático comparar a laje com um sitar pelo local ou aumentam a atenção
compartimento de piso cerâmico. Assim, quando ali transitam:
imaginando-se que, para poder se deslocar Você olha, se ela estiver meio caída, é
nesse compartimento, o indivíduo é obri- mais perigoso de você escorregar. Se ela
gado a pisar no meio de cada cerâmica para tá com buraco, se ela não tá nivelada, com
não cair, pode-se constatar que cada um buraco... (meio-oficial de carpinteiro Ro)
desenvolverá uma maneira peculiar de an-
Segundo vários estudos voltados para
dar para pisar no centro das cerâmicas. O
as fontes de variabilidades em todos os
ajudante de carpinteiro explica e demons-
setores de atividade, estas fazem de toda
tra como é essa forma de andar, essa forma
situação de trabalho uma combinação
“correta” de pisar, inclusive como fazem
de normas antecedentes (procedimen-
quando, por exemplo, transportam mate-
tos) e materiais, de objetos técnicos, de
rial, um peso:
entidades coletivas (cada trabalhador e
A gente pisar certo é você saber que tem sua própria experiência), cujo encontro é
sempre que pisar no meio da bacia, você constituído de situações nunca idênticas a
não pode se descuidar, se você pisar na outras, produzindo e reproduzindo histó-
beirada dela ela vai virar, entendeu? En- ria (SCHWARTZ, 1998).
tão você tem que estar sempre procuran-
do, olhando para você pisar no meio da É esse encontro que proporciona os no-
bacia... O cara está com pressa ou às ve- vos saberes que serão desenvolvidos pelos
zes está com um peso, ali, que está atra- trabalhadores durante a execução do servi-
palhando ele de não olhar [demonstra ele
ço das formas, não só na busca da qualida-
carregando uma escora], ele está com um
peso, como ele carrega ferragem lá pra de e da produtividade, mas também para
cima [aqui se referindo aos armadores], evitar acidentes. São saberes desprezados
aí ele vai e acontece dele cair... Tem que e, às vezes, alheios aos preconizados pelos
dar um jeito ali, de chegar para frente um responsáveis da segurança, que se baseiam

Nível 4: “competências sociais”


Nível 3: competências de gestão da atividade do
coletivo de trabalho
Nível 2: competências de cooperação, coorde-
nação no tempo real
Nível 1: competências técnicas aplicáveis

Figura 5 Os quatro níveis de competência


Fonte: Duraffourg et al., 1993.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007 65


na concepção tradicional para analisar o Ao contrário de uma idéia corrente, a
acidente, na busca de culpados, no compor- construção de competências não se rea-
tamento do trabalhador que “pisa errado”. liza através de ampliações sucessivas do
centro para a periferia. No entanto, os
Outros modelos nos parecem mais apro- programas de formação o deixam enten-
priados para compreender esses momentos der como se o ofício resultasse unicamen-
de transição e de ruptura. Duraffourg et al. te da aplicação de competências técnicas
(saber fazer a massa, usar o prumo...). Em
(1993) identificam quatro níveis de compe-
verdade, a aprendizagem começa antes
tências na atividade de trabalho, conforme mesmo de chegar ao canteiro. Ela prosse-
pode ser observado na Figura 5, sugerindo gue, no momento da entrada, através da
como os saberes técnicos e sociais se inter- aquisição de referências espaciais e tem-
penetram (LIMA, 2001). porais necessárias aos atos de cooperação,
de colaboração e de trocas de experiências
Os autores se servem desse modelo (de trabalho e de vida), elas mesmas indis-
para explicar a aquisição de competências pensáveis para a eficácia das ações técni-
por trabalhadores da construção civil: cas. (DURAFFOURG et al., 1993, p. 39)

Conclusão

Pode-se concluir, por meio do nosso es- setor da construção civil, ao se implan-
tudo, que alguns acidentes de trabalho são tarem novas tecnologias, imagina-se que
determinados pela introdução do novo sis- as competências necessárias se limitam à
tema de escoramento no processo de pro- simples aplicação técnica de como fazer
dução. A distância entre o conhecimento uma forma, enquanto, na realidade, elas
teórico e o saber-fazer gera dificuldades e se desenvolverão inseridas em um contex-
inadequações que serão encontradas pelos to de imposições feitas ao trabalhador no
trabalhadores na execução das tarefas e que desenvolvimento de sua tarefa. Na tarefa
por eles serão resolvidas com os meios de modificada, as experiências anteriores não
que dispõem – que podem, por exemplo, re- mais servirão de base para o desenvolvi-
correr à amarração com arame na lateral da mento de novos saberes nesse novo campo
viga no novo processo de forma de modo a de referências.
alinhar a viga e dar mais rigidez ao conjun-
to, criando o “osso” e colocando em risco os É necessário compreender que as va-
trabalhadores que se deslocam sobre as for- riabilidades dentro de uma mesma ativi-
mas. O “osso” é, assim, uma conseqüência dade são bastante elevadas no setor: di-
da nova tecnologia, decorrente das inade- ferenciam-se de uma obra para outra, de
quações e variabilidades originadas da in- um local de trabalho para o outro, de um
trodução do novo sistema de escoramento. sistema construtivo para outro, durante o
desenvolvimento de uma mesma atividade
A introdução de uma nova tecnologia em tempo e local distintos etc., entrando
construtiva cria uma ruptura nos saberes em conflito com os objetivos a serem alcan-
dos trabalhadores que é desprezada. São çados.
introduzidos novos processos imaginan-
do-se um simples saber-fazer técnico (sa- O trabalhador, ao executar suas tarefas,
ber montar a forma, nivelar a laje, alinhar levando em consideração suas característi-
a viga etc.), enquanto, na realidade, esse cas, suas competências, a variabilidade dos
aprendizado se fará ao longo do processo equipamentos e dos materiais, as inovações
de desenvolvimento da atividade, criando- tecnológicas, a (in)adequação às regras im-
se situações que possibilitem a execução postas e as especificidades de cada momen-
da tarefa, não só em termos de qualidade e to, desenvolve saberes – por exemplo, para
produtividade, como também de segurança poder andar sobre a laje – que garantem
dos trabalhadores. tanto a sua segurança como a do sistema.
Verifica-se, assim, que os acidentes São esses novos saberes, desenvolvidos
ocorrem não porque os riscos sejam desco- pelos trabalhadores e voltados não apenas
nhecidos ou os trabalhadores não tenham para a busca da qualidade e da produtivi-
sido devidamente treinados nos novos pro- dade, que ajudam os trabalhadores a evitar
cedimentos. Este é o limite do modelo de acidentes. O mais contraditório é que, em-
formação baseado estritamente em normas bora fundamentais, são saberes despreza-
e procedimentos técnicos transmitidos aos dos ou, no mínimo, desconhecidos pelos
trabalhadores via educação formal. No responsáveis da obra e de sua segurança.

66 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007


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Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 53-67, 2007 67


Análise de um acidente por contaminação fúngica
Maria Cristina Strausz2 em uma biblioteca pública no município do Rio de
Jorge Mesquita Huet Machado2 Janeiro1
Leila de Souza Rocha Brickus3
Analysis of a fungal contamination accident at a public library
in Rio de Janeiro

1
Artigo baseado na dissertação de Resumo
mestrado de Maria Cristina Strausz
intitulada Análise de um acidente Partindo de um acidente de contaminação por fungos ocorrido em dezembro
fúngico em biblioteca: um caso de
de 1997 em uma biblioteca pública no município do Rio de Janeiro, foi testada
síndrome do edifício doente, apresen-
tada à Escola Nacional de Saúde a aplicabilidade de uma proposta metodológica de análise sociotécnica de aci-
Pública, Fiocruz, Rio de Janeiro. dentes, que foi desenvolvida pelo Centro de Estudo de Saúde do Trabalhador
2001. Apresentado no I Seminário e Ecologia Humana (CESTEH/Fiocruz), para análise de acidentes industriais
Nacional de Saúde e Ambiente no ampliados. O acidente foi conseqüência de um fato anunciado meses antes,
Processo de Desenvolvimento, quando os trabalhadores da biblioteca denunciaram, através de um abaixo-as-
Rio de Janeiro, 2000, sob o título sinado, os problemas de descontrole da temperatura ambiente, que se traduzia
Análise de um acidente fúngico em em desconforto, sintomas respiratórios e afastamento do trabalho, decorrentes
biblioteca: um caso de síndrome do daquelas condições. O evento foi caracterizado como um caso de Síndrome
edifício doente; e no V Congresso do Edifício Doente, que é um problema decorrente da má qualidade do ar de
Brasileiro de Epidemiologia, Curiti-
interiores, especialmente em ambientes climatizados artificialmente. Nesse
ba, 2002, sob o título Contribuição
sentido, despertou a atenção dos profissionais de bibliotecas do Brasil para um
de ferramentas epidemiológicas na
análise de um acidente de contamina- problema bastante comum, embora pouco estudado, especialmente no campo
ção fúngica em biblioteca. da saúde pública e, dentro dela, o campo da saúde do trabalhador.
2
Coordenação de Saúde do Traba- Palavras-chaves: análise de acidentes, Síndrome do Edifício Doente, saúde do
lhador da Fundação Oswaldo Cruz. trabalhador.
Rio de Janeiro. Brasil.
3
Escola Nacional de Saúde Pública
Sérgio Arouca da Fundação Oswal- Abstract
do Cruz. Rio de Janeiro. Brasil.
The applicability of a methodology to analyze large industrial accidents using
social-technical analysis developed by the Center of Studies on Worker’s Health
and Human Ecology (CESTEH/Fiocruz) was tested in a fungal contamination
accident occurred in December 1997 at a public library in Rio de Janeiro. The
accident was due to problems in controlling the ambient temperature, which
resulted in discomfort, breathing symptoms, and sick leave. The library workers,
through a signed petition, had already brought the problem forward. It was
characterized as a case of Sick Building Syndrome, which is caused by bad
indoor air quality, especially in acclimatized environments. The event made
Brazilian librarians aware of an issue which, in spite of being rather ordinary,
is still not very well known within the field of Public Health, particularly in the
area of Worker’s Health.
Keywords: accident analysis, Sick Building Syndrome, worker’s health.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 69-78, 2007 69


Introdução

Historicamente, os acidentes de traba- trouxe a necessidade de desenvolver me-


lho têm sido vistos como eventos de res- todologias de análise de acidentes em ou-
ponsabilidade dos trabalhadores envolvi- tros setores da economia, com ênfase no
dos. A cultura de culpabilização da vítima setor de serviços. Contudo, a transposição
perpetua-se até os dias de hoje e a Saúde das metodologias do setor industrial para
do Trabalhador, enquanto campo interdis- outros setores freqüentemente esbarra nas
ciplinar, vem trazendo um novo enfoque limitações inerentes a todo tipo de adap-
sobre os acidentes de trabalho e as doenças tação.
dele decorrentes. As Ciências Sociais trou-
xeram como contribuição uma abordagem O crescimento do setor de serviços,
sociotécnica dos acidentes de trabalho, en- aliado à flexibilização dos contratos e à
quanto a Ergonomia moderna trouxe uma precarização das relações de trabalho, tem
nova visão do posto de trabalho. trazido um incremento de exposições a no-
vos riscos ocupacionais e doenças relacio-
A indústria vem sendo privilegiada nadas ao trabalho. Os Distúrbios Osteoarti-
como campo de investigação eleito para o
culares Relacionados ao Trabalho (DORT)
desenvolvimento de metodologias de aná-
ou as Lesões por Esforços Repetitivos (LER)
lise dos acidentes de trabalho. Afinal, os
e a Síndrome do Edifício Doente (SED) são
acidentes nela ocorridos são conseqüências
alguns exemplos de síndromes modernas
de necessidades trazidas pela revolução in-
relacionadas diretamente à organização e
dustrial, que transformou o mundo trazen-
ao ambiente de trabalho. As LER/DORT,
do não só o desenvolvimento, como novos
padrões de doenças e acidentabilidade. mundialmente estudadas, já se configuram
Mas há outras razões: acidentes industriais como epidemia. A SED ainda carece de es-
adquirem importância epidemiológica por tudos mais profundos em climas tropicais,
sua gravidade e abrangência. Além de sua como no Brasil, embora já seja estudada há
complexidade e sua importância econômi- mais de vinte anos nos países dependen-
ca, o setor conta com a demanda dos traba- tes de climatização artificial (MOLHAVE,
lhadores organizados. Dentre outras áreas 1992; SKOV, 1992).
onde se desenvolvem estas metodologias Nesse contexto, este estudo analisa um
estão a aeroespacial, de transportes em caso de Síndrome do Edifício Doente uti-
geral e de energia nuclear, com influência lizando como base metodológica uma pro-
direta sobre as metodologias de análise de
posta de análise de acidentes desenvolvida
acidentes em geral.
pelo Centro de Estudo de Saúde do Traba-
A mudança do perfil da atividade eco- lhador e Ecologia Humana (CESTEH) da
nômica no decorrer dos últimos anos nos Fundação Oswaldo Crua (Fiocruz).

O acidente

Durante as festas de Ano Novo de de que as condições ambientais estavam


1996/7, uma biblioteca pública localizada influindo negativamente sobre a saúde dos
no município do Rio de Janeiro foi alvo de trabalhadores (BARCELLOS et al., 1996).
intensa proliferação de fungos. O evento
Strausz (2001) relata que as baixas
havia sido precedido por outros proble-
temperaturas tinham como justificativa a
mas, como as constantes queixas relativas
preservação do acervo. No entanto, o sis-
à saúde dos funcionários, o que, por sua
tema de refrigeração era costumeiramente
vez, já tinha justificado a criação de uma
desligado durante a noite, fins de semana
comissão de saúde.
e feriados. Deste modo, o aumento da tem-
Tal comissão tinha como objetivos mo- peratura ambiental, provocado pelo fecha-
nitorar a temperatura ambiental e mobili- mento da biblioteca e o desligamento do
zar os trabalhadores para que se tomassem seu sistema de refrigeração por vários dias
providências com relação a seu provável consecutivos, em pleno verão, por ocasião
desajuste. O monitoramento revelou que a do feriado prolongado do fim do ano de
temperatura encontrava-se muito abaixo do 1996, conjugado ao alto grau de umidade
nível de conforto térmico, chegando a 14ºC relativa do ar decorrente da intensa chuva
no decorrer do dia, um indicativo seguro no período, forneceram as condições pro-

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pícias para que os fungos, já presentes no além do apoio das unidades técnico-cien-
ambiente, proliferassem-se intensamente, tíficas. O diagnóstico inicial indicou que o
contaminando todo o ambiente. acidente foi provocado por problemas liga-
dos à climatização da biblioteca.
Assim, o acidente aconteceu como um
fato anunciado meses antes, quando os Este evento foi caracterizado como aci-
funcionários denunciaram, através de um dente pelo fato de ter sido um fenômeno
abaixo-assinado, as péssimas condições agudo de contaminação ambiental, com
de trabalho, traduzidas em desconforto, risco potencial à saúde dos trabalhadores.
dores musculares, de garganta e de ouvi- As ações desenvolvidas a partir de en-
do, alergias respiratórias, sinusite, gripe e tão visaram preservar a saúde dos traba-
pneumonia. lhadores, recuperar o acervo e restabelecer
O acidente desencadeou ações de vi- condições ambientais que fossem satisfató-
gilância em saúde do trabalhador na ins- rias para o conforto dos trabalhadores e dos
tituição, com o envolvimento de diversos usuários.
atores sociais, como presidência da insti- Os problemas relativos ao funciona-
tuição, direção da biblioteca, sindicato de mento do sistema de ar-condicionado fo-
trabalhadores, comissão interna de saúde ram muitos e se arrastaram ao longo dos
e setores ligados à saúde do trabalhador, anos subseqüentes.

Metodologia

Segundo Strausz (2001), foi utilizado um acidente de contaminação ambiental


para a análise do acidente o referencial provocado por fatores gerenciais e tecno-
metodológico da Análise Interdisciplinar lógicos, envolvendo as relações sociais do
e Participativa de Acidentes (AIPA). Des- trabalho, com reflexo sobre a saúde dos tra-
ta forma, pode-se identificar e discutir os balhadores.
componentes estruturais disciplinares e
Strausz (2001) informa que foi utiliza-
seus fatores causais, segundo os seus vá-
do pelo órgão responsável pela saúde do
rios estratos: macroestrutural, no nível da
trabalhador um inquérito epidemiológico
política de administração pública; local,
para detecção de queixas relacionadas à
onde se analisa os componentes gerencial,
exposição que serviu como base para en-
organizacional e tecnológico; e o estrato
caminhamentos ao serviço médico. A po-
epidemiológico, onde se revela o impacto
pulação em estudo foi dividida em dois
do acidente sobre o ambiente e sobre a saú-
grupos, de acordo com a localização do se-
de dos trabalhadores.
tor de trabalho no prédio: mais expostos e
A AIPA é uma proposta metodológica menos expostos. O grupo de trabalhadores
criada pelo Centro de Estudos de Saúde mais expostos foi composto de pessoas que
do Trabalhador e Ecologia Humana base- desenvolviam suas funções diretamente no
ada na análise sociotécnica de acidentes acervo, como bibliotecários, estagiários e
industriais desenvolvida por Paté-Cornell, higienizadores do acervo, ou que circula-
na França, como uma tentativa de supe- vam por estes ambientes desenvolvendo
ração das atuais abordagens de análise de as atividades de apoio, como recepção de
acidentes industriais, buscando vincular usuários, limpezas prediais e vigilância. O
os eventos aos aspectos sociais e gerenciais grupo de trabalhadores menos expostos foi
ou organizacionais na geração dos mesmos composto de funcionários da área de admi-
(FREITAS & PORTO, 1997; FREITAS, POR- nistração e de informática. Os trabalhado-
TO & MACHADO, 2000). res destes setores foram considerados como
menos expostos por não terem contato di-
Essa proposta metodológica foi desen-
reto e permanente com o acervo, apesar do
volvida para análise de acidentes químicos
sistema de refrigeração propiciar a troca de
ampliados, ou seja, acidentes de alta com-
ar entre os diversos ambientes do prédio,
plexidade. Porém, utilizamo-na em outro
sem distinção. O período em estudo foi de
campo de estudo: a análise de um acidente
janeiro a setembro de 1997.
em biblioteca, no setor de serviço. A nossa
hipótese é de que, no caso do acidente em Foram colhidas amostras do ar am-
questão, a AIPA é aplicável devido ao ní- biente por uma pesquisadora da institui-
vel de complexidade envolvido nesse caso: ção, com a finalidade de identificar os

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 69-78, 2007 71


microrganismos e compostos químicos uma empresa de controle microbiológico
presentes, e contratada uma assessoria de contratada; e da comissão de funcionários
controle microbiológico para identificar e constituída meses antes do acidente, além
quantificar os fungos do ambiente, assim
de pareceres técnicos ligados às áreas de
como fornecer orientações quanto à sua
patogenicidade e aos métodos de higieni- engenharia, micologia médica, pneumo-
zação do acervo. logia e dermatologia ocupacional e, final-
mente, da avaliação clínica e laboratorial
O estudo do acidente se deu a partir da
análise dos seguintes relatórios: do serviço dos trabalhadores e de entrevistas com al-
de saúde do trabalhador; da avaliação am- guns atores institucionais que vivenciaram
biental realizada dentro da instituição; de os momentos pré e pós-acidente.

Resultados da análise

A contaminação fúngica que determi- A instituição pública em questão busca


nou o acidente vinha tomando espaço no estruturalmente a democratização das rela-
decorrer de 1996 por problemas no siste- ções de trabalho através da eleição inter-
ma de ar-condicionado. Segundo relatos na de seus dirigentes e gestores, além de
de funcionários, desde setembro daquele contar com um sindicato de trabalhadores
ano, algumas coleções começaram a apre- engajado na luta por melhores condições
sentar focos de contaminação, havendo de trabalho. Eventualmente, a organização
necessidade de intensificar a rotina de dos trabalhadores se dá de forma descen-
higienização do acervo, apesar das limi- tralizada através de comissões de saúde
tações impostas pela carência de pessoal formadas livremente, que fazem interlocu-
para a execução desta tarefa (BARCELLOS ção com o órgão de saúde do trabalhador.
et al., 1996; STRAUSZ, 2001). Segundo Strausz (2001), no período
que antecedeu ao acidente, foi criada uma
É importante ressaltar que, no proces-
Comissão de Saúde do Trabalhador na bi-
so de trabalho em bibliotecas, há um risco
blioteca a fim de negociar junto à direção
biológico controlado devido à presença de
alguma solução para o problema de baixas
fungos e ácaros, principalmente, que têm o
temperaturas no decorrer do período de
papel, o couro, o tecido e a madeira como trabalho. A comissão solicitou a compra
seu habitat. Este risco pode ser maior ou de equipamentos para o monitoramento
menor, dependendo de medidas de con- de temperatura e umidade relativa do ar
trole ambiental, como a higienização perió- nos diversos ambientes do prédio e pas-
dica dos volumes e do ambiente em geral e sou a recomendar que os trabalhadores se
monitoramento da temperatura e da umi- recusassem a trabalhar em temperaturas
dade relativa do ar (VALENTÍN et al., 1998; abaixo de 20ºC. A alternativa à recusa foi
GAMBALE et al., 1989; CROCE, 1989). a adoção de estratégias, como a abertura
O edifício que abriga a biblioteca, em- de janelas, vedação das saídas de ar-con-
dicionado, até mesmo o desligamento do
bora tenha sido concebido com a finali-
sistema de refrigeração do prédio.
dade de acolher o acervo bibliográfico da
instituição, teve seu projeto inicial altera- Ao se deparar com a suspeita de cres-
do para se tornar um centro de informação cimento de fungos nas estantes do acervo
científica, com necessidades diferenciadas e em seus volumes, a comissão colheu
de climatização (SICT, 1991). amostras e enviou para análise. O resulta-
do confirmou a presença de fungos e fez
A AIPA se baseia fortemente na análise com que a comissão solicitasse à direção
sociotécnica dos acidentes, em que o com- um incremento no contingente de traba-
ponente social se refere à vulnerabilidade lhadores para a higienização do acervo, o
social do contexto e dos indivíduos en- que não foi possível devido às limitações
volvidos, à organização sindical, ao nível para contratação de pessoal na instituição.
de democratização ou hierarquização das A comissão levou o problema ao órgão de
relações de trabalho, às políticas de geren- saúde do trabalhador, solicitando sua me-
ciamento de riscos e, mais globalmente, às diação junto aos setores de engenharia e
políticas sociais e econômicas implemen- arquitetura da instituição (BARCELLOS et
tadas no país ou região (PORTO, 1994). al., 1996).

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A vertente tecnológica da AIPA entende dade vinda do exterior se distribuía indis-
o acidente como conseqüência: criminadamente junto com o ar frio.
de uma ou mais disfunções do processo, Segundo Strausz (2001), aliados aos
em que a característica patológica do sis- problemas no projeto, estavam alguns fato-
tema tende a se manifestar de forma ime- res gerenciais, que podem ser descritos de
diata e abrupta, em oposição às situações forma hierarquizada:
“normais” de poluição crônica (...) a isso
somadas as contínuas exposições às car- - no mecanismo de controle da tem-
gas de trabalho (...) podendo vir a gerar no peratura, havia válvulas elétricas que es-
futuro, doenças graves. (FREITAS et al., tavam queimadas, tornando o ambiente
2000, p. 55) interno extremamente frio no decorrer do
Como disfunção no processo, identifi- ano. O contrato de manutenção não previa
camos o descontrole da temperatura como a compra de peças e componentes, o que
um fator mais evidente que encobria altas ficava a cargo do setor de manutenção da
instituição e dependente de um lento pro-
taxas de umidade relativa do ar, trazendo
cesso licitatório de compras.
um incremento no desconforto térmico.
- operação inadequada do sistema de
Ao contrário da oscilação da tempera-
refrigeração. O desligamento do sistema de
tura, a umidade relativa do ar permane-
refrigeração ao final do dia e nos finais de
cia constantemente alta, em torno de 90%
semana provocava choque térmico e con-
a 100%, o que facilitava a proliferação de densação dentro dos armazéns. Desde a
fungos no seu habitat: o papel. As altas sua implantação, não foram estabelecidas
taxas de umidade no ambiente interno normas e procedimentos de regulação do
tinham diversas causas, que foram elimi- sistema de ar-condicionado. A operação do
nadas uma a uma nos meses que sucede- sistema era feita por um funcionário da área
ram ao acidente, sendo que grande parte administrativa sem conhecimento técnico,
delas estava associada a erros no proje- pois, naquela ocasião, a Portaria nº 3.523/
to ou em sua execução (CONTROLBIO, GM de 1998 (BRASIL, 1998), que recomen-
1998; STRAUSZ, 2001): da a presença de um técnico para a opera-
- ausência de calhas de escoamento ção do sistema de ar-condicionado, ainda
não estava em vigor. Além do mais, como
junto ao telhado, o que fazia com que a
o ambiente atingia temperaturas muito bai-
água da chuva escorresse pelas paredes
xas a partir de metade do expediente, havia
externas;
muita pressão interna por parte dos funcio-
- as janelas do prédio não eram total- nários para que o sistema fosse desligado.
mente vedadas, o que possibilitava a en-
trada da umidade do meio externo; A AIPA defende a mudança de foco de
análise, com uma abordagem que consi-
- as janelas de tomada de ar do exterior dera a organização do trabalho e seu pa-
foram instaladas muito baixas, captando, pel no evento. Esta mudança implica em
também, toda a umidade proveniente da ampliar o foco de análise para todo o pro-
evaporação do solo. cesso de trabalho, incluindo aí os aspectos
O prédio fora construído sobre solo pan- gerenciais e organizacionais, deslocando
tanoso, que não foi impermeabilizado em as investigações de como aconteceu para
torno do prédio e, portanto, o ar não deveria porque aconteceu. Dentro desse contexto,
ser captado nesta altura. O projeto do ar- inclui-se a participação dos trabalhadores
condicionado provavelmente se baseou em não mais como geradores, mas como atores
tabelas padronizadas de climatização, não no processo de análise do acidente. Daí a
denominação “participativa”. No acidente
levando em conta a localização do prédio:
em questão, vemos os fatores ambientais
- má localização da central de água ge- interferindo negativamente no processo de
lada ao lado do prédio, propiciando que a trabalho. A participação dos trabalhadores
umidade gerada seja levada com o vento ao em todas as etapas, quer seja em discussões
seu encontro; de grupos organizados ou como comissão
- a existência de um jardim interno que de saúde e associação de funcionários, in-
se comunicava diretamente com o interior duzindo uma resposta institucional, foi de-
cisiva para a compreensão do acidente.
do edifício, cuja base não estava isolada do
solo. O projeto original do sistema de ar- A introdução de uma abordagem de
condicionado permitia a comunicação do análise interdisciplinar enriquece a com-
ar entre os ambientes. Desta forma, a umi- preensão dos acidentes, abrangendo uma

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 69-78, 2007 73


gama de fatores que buscam sistematizar em licença médica por mais de 30 dias e 1
uma hierarquia condicionante do evento. solicitou transferência de unidade.
A incorporação das dimensões social, polí-
Foi calculado o risco atribuível (RA) de
tica e ideológica permite ver o trabalhador
queixas dermatológicas entre os grupos de
e seu corpo historicamente determinado e
diferentes graus de exposição, sendo este
implica na articulação com saberes ante-
de 25%. O mesmo indicador de relação
riores, reconstruídos sob uma ótica social
entre exposição e efeito para as queixas
(FREITAS, PORTO & MACHADO, 2000). respiratórias apresentou um resultado rela-
Machado (1997, p. 37) afirma que a: tivamente de menor significância, ou seja,
um RA de 5%, representando um número
intervenção interdisciplinar em vigilân-
menor de casos de doenças respiratórias
cia tem um potencial de superação das
restrições técnicas das abordagens disci-
que podem ser atribuídos ao diferencial de
plinares. Os componentes tecnológicos, exposição decorrente do acidente.
epidemiológicos e sociais dessa ação in- A contagem de eosinófilos no sangue foi
terdisciplinar atuam como mediadores da
destacada por ser um indicador de reação
relação entre processo de trabalho e saúde.
Logo, ao levarmos em consideração esses
alérgica muito sensível, porém inespecífico.
três componentes estruturais e a dinâmica A Tabela 1 revela uma agregação dos casos
dessa relação, somos obrigados a pensar e de eosinofilia com a presença de queixas res-
agir interdisciplinarmente. piratórias, o que pode estar associado a qua-
dros de alergia respiratória em decorrência da
O impacto dos fatores relacionados à exposição fúngica (MACHADO, STRAUSZ E
organização do trabalho aliado aos fatores TOSCHI, 1997; STRAUSZ, 2001).
tecnológicos é percebido sobre o corpo e a
mente dos trabalhadores, manifestando-se A eosinofilia foi observada em 18
como sintomas de doenças já conhecidas (18,9%) dos 97 trabalhadores avaliados, dos
ou não, intoxicações agudas e crônicas, to- quais 4 apresentaram exame parasitológico
dos eles dificilmente reconhecidos institu- de fezes positivo, o que também contribui
cionalmente como acidente de trabalho. para o aumento dos eosinófilos. Destes,
apenas 1 permaneceu com a alteração na
Segundo Freitas, Porto e Machado contagem de eosinófilos após o tratamen-
(2000, p. 59): to de parasitose, podendo-se concluir que
A geração histórica dos acidentes con- 15 (15,8%) trabalhadores sofreram algum
figura uma relação hierárquica entre os processo alérgico na ocasião do aciden-
elementos interdisciplinares múltiplos, te. Registramos que a grande maioria dos
dependendo dos setores, empresas e tec- trabalhadores que apresentaram eosinofi-
nologias analisados, que reorganizam a lia no primeiro exame negativaram após
estrutura de relações entre os elementos afastamento das atividades e das medidas
sociais, tecnológicos e de saúde. de aeração do ambiente (BLUMENTHAL,
O componente epidemiológico do aci- 1984a e 1984b).
dente em questão é dado pelas avaliações Foi também realizada a avaliação imu-
de saúde e ambiental executadas. nológica específica para aspergillus, apre-
A avaliação de saúde foi realizada a sentando 100% de negatividade. Essa ava-
partir do inquérito epidemiológico uti- liação é fundamental devido ao potencial
lizado como ponto de partida para o le- patogênico do aspergillus e sua negativação
vantamento de queixas para posterior en- é bastante importante no sentido da estima-
caminhamentos a médicos generalistas e tiva da gravidade dos achados clínicos que
especialistas, à avaliação laboratorial e a encontraríamos (PENNINGTON, 1986).
outros exames complementares. Uma vez constatada a contaminação
Segundo Strausz (2001), dentre os 97 fúngica, foram tomadas diversas medidas
trabalhadores examinados, 68 (71,1%) fo- de controle, como a aeração dos ambien-
ram considerados saudáveis ao exame clí- tes através da abertura das janelas, fumi-
gação para eliminação dos fungos e ações
nico e 14 (14,4%) com outras alterações
de vigilância ambiental, como monitora-
não relacionadas à exposição. Apenas 6
mento de umidade e temperatura e análise
pessoas (6,2%) apresentaram alterações
da qualidade do ar para fungos e contami-
possivelmente relacionadas à exposição
nantes químicos.
fúngica (manifestações alérgicas respira-
tórias ou dermatológicas). Cabe ressaltar Segundo o relatório de Rocha (1998),
ainda que 2 trabalhadores mantiveram-se foram realizadas três amostragens do ar

74 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 69-78, 2007


Tabela 1 Freqüência de eosinofilia em trabalhadores de biblioteca pública no muni-
cípio do Rio de Janeiro expostos à contaminação fúngica, segundo relato de
queixas respiratórias, no período de janeiro a março de 1997

Queixas respiratórias Eosinofilia Percentual


Sim 11 61,2%
Não 7 38,8%
Total 18 100%

interno e externo da biblioteca de Man- mesmo com todas as medidas de engenha-


guinhos durante o ano de 1997. Todos os ria adotadas, o sistema de condicionamen-
valores de umidade relativa do ar encon- to do ar da biblioteca não conseguia man-
trados no ambiente interno estavam acima ter a temperatura e a umidade relativa do
de 60%. Na primeira amostragem, durante ar adequadas para este tipo de ambiente.
a infestação de fungos na biblioteca, foi ob- Esse problema de refrigeração foi detecta-
servado que tanto a umidade relativa do ar do desde a inauguração da biblioteca.
elevada como a oscilação da temperatura
Vários gêneros de fungos foram identi-
no interior da biblioteca foram fatores de
ficados na biblioteca durante a infestação.
riscos para o acervo e favoreceram a proli-
Sua distribuição entre os pontos de amos-
feração de fungos. Os valores de umidade
tragem foi bastante similar. Dos 10 gêne-
relativa do ar no interior da biblioteca che-
ros identificados, por ocasião da primeira
gavam a ser maiores do que no ar externo.
amostragem, os mais comuns foram As-
Foi observada uma séria umidificação de
pergillus sp. (96,4-164,3 ufc/m3), Aspergil-
papéis nas salas de pesquisa e nos arma-
lus niger (67,9-153,6 ufc/m3) e Penicillium
zéns do acervo (ROCHA, 1998).
sp. (78,6-246,4 ufc/m3). Os componentes
Os valores aceitos como mais conve- restantes tiveram uma contribuição mode-
nientes à conservação de acervos biblio- rada onde foram detectados. Os valores de
gráficos são 55% de umidade relativa do fungos totais estiveram na faixa de 600,0-
ar e temperatura entre 20 e 22ºC (ABNT, 960,7 ufc/m3.
1980). Mais recentemente, a Agência Na-
Em junho/97, após a higienização do
cional de Vigilância Sanitária estabeleceu
acervo e do prédio, os níveis de fungos to-
valores de 40% a 55% de umidade relativa
tais caíram consideravelmente. O gênero
do ar e 20 a 23ºC para ambientes de arte,
mais comum encontrado foi Cladosporium
onde se pode incluir acervo bibliográfico
sp. (61,9-183,3 ufc/m3). Os principais fun-
(BRASIL, 2000).
gos identificados em janeiro/97 tiveram um
As amostragens de junho/97 e setem- declínio significante: Aspergillus sp. (11,9-
bro/97, após o conserto do sistema de ar- 21,9 ufc/m3), Aspergillus niger (não detecta-
condicionado, mostraram claramente que, do) e Penicillium sp. (14,3-26,2 ufc/m3).

1200

1000

800
ufc/m3

janeiro
600
junho
LT

400

200

0
BM1 BM-2 BM-3 BM-4 BM-5 BM6

Abreviações: BM-1: Saguão da recepção; BM-2: sala de leitura de periódicos; BM-3: sala de referência;
BM-4: armazém A; BM-5: armazém B; e BM-6: sala de informática.
Gráfico 1 Avaliação quantitativa de fungos totais presentes no ar ambiental de biblio-
teca pública no município do Rio de Janeiro em janeiro e junho de 1997

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 69-78, 2007 75


Nessa avaliação foi observado que os 1. Problemas no projeto arquitetônico
níveis estavam abaixo do limite máximo
- pouca experiência das empresas bra-
aceitável, indicando que a contaminação
sileiras em construção de bibliotecas e
por fungos estava sob controle. O Gráfico
prédios onde há grande número de publi-
1 demonstra a distribuição quantitativa de
cações e a necessidade de conservação de
fungos totais em seis pontos de amostra-
acervo;
gem na biblioteca estudada em janeiro e
junho de 1997. - capacidade relativa de instância pú-
blica em acompanhar o desenvolvimen-
Com relação à avaliação de contami-
nantes químicos, foram realizadas ava- to de projeto desse porte, principalmente
liações dos teores de partículas totais em quanto ao item de refrigeração e de exaus-
suspensão (PTS), dos compostos orgânicos tão do ambiente;
voláteis totais (COVT) e dos aldeídos. A de- - o local escolhido é extremamente su-
terminação do teor de partículas inaláveis jeito a variações intensas de temperatura e
em suspensão é de extrema importância umidade, exigindo um mecanismo de con-
para avaliar os possíveis efeitos adversos à trole de alta complexidade.
saúde humana devido à presença de ma-
terial particulado. As amostragens foram 2. Problemas gerenciais
feitas para partículas totais em suspensão - é priorizado o controle de umidade via
devido ao fato de se possuir ciclones su- redução de temperaturas, desencadeando
ficientes para realizar a amostragem em desconforto para as pessoas;
vários pontos simultaneamente naquela
ocasião (BRICKUS e NETO, 1999). - há uma demora de resposta institu-
cional na intervenção, embora tenha ha-
Normalmente, a maior fonte de PTS no vido queixas ambientais e mesmo clínicas
ar de interiores é a atividade humana, as- dos trabalhadores.
sim como a incursão do ar externo. Anali-
sando-se os pontos internos amostrados de 3. Problemas ambientais
PTS, foi observado que o BM-1, referente - temperatura e umidade descontrola-
ao saguão de recepção da biblioteca, apre- das;
sentou valor máximo, seguido por BM-2,
referente à sala de leitura de periódicos, - proliferação de fungos;
também bastante freqüentada pelos usuá-
- desconforto térmico generalizado.
rios. Esse dado comprova a idéia de que,
em recintos fechados, as atividades huma- 4. Problemas epidemiológicos
nas são uma das fontes principais de PTS.
- há uma situação de aumento na inci-
Ao mesmo tempo, reduz a importância da
dência de casos de doenças respiratórias
influência poluidora externa sobre o am-
leves e alergias respiratórias e de pele. Esse
biente interno.
efeito dermatológico é considerado especí-
Síntese das situações evidenciadas pela fico para esse tipo de contexto de contami-
análise: nação fúngica.

Discussão

O estudo nos mostra que a AIPA é uma A aplicabilidade da AIPA neste aciden-
proposta metodológica perfeitamente apli- te também se deu por tratar-se de uma si-
cável a este acidente ao possibilitar elencar tuação de descontrole ambiental, gerando
os seus fatores condicionantes de forma exposições múltiplas a agentes físicos e
sistematizada e hierarquizada. biológicos, levando a efeitos de complexi-
dade variável.
Além disso, podemos inferir sobre a
sua aplicação em outros acidentes com o A infestação fúngica da biblioteca ocor-
mesmo nível de complexidade, indepen- rida em dezembro/96 foi um evento ca-
dentemente do setor da economia. A AIPA racterizado como “Síndrome do Edifício
traz à tona os problemas gerenciais como Doente” e despertou o interesse de outras
geradores potenciais de acidentes de traba- bibliotecas do Rio de Janeiro e de outros es-
lho, enquanto as metodologias tradicionais tados por apontar para um tipo de proble-
de análise de acidentes apontam o fator hu- ma pouco discutido entre os trabalhadores
mano como seu principal gerador. desta atividade. Apesar de haver uma vasta

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bibliografia sobre conservação de acervos e ser tema de particular atenção por ser uma
arquitetura de bibliotecas, poucos estudos população de trabalhadores exposta ocu-
discutem a saúde desses trabalhadores. pacionalmente a riscos físicos, químicos
e biológicos decorrentes de climatização
Embora tenha sido observado empirica-
artificial. Ao contrário da biblioteca em
mente que os trabalhadores que realizam
questão, muitas vezes as bibliotecas estão
suas atividades em bibliotecas são com
instaladas em áreas adaptadas, em subso-
freqüência acometidos por problemas de
los de edifícios, com problemas crônicos
saúde relacionados ao ambiente de traba-
de manutenção.
lho, ainda não há estudos que comprove
o que a prática evidencia. Estudar o tema A publicidade adversa desta infestação
e divulgar os resultados dá visibilidade às fúngica gerou não apenas solidariedade de
questões de saúde desses trabalhadores e outras bibliotecas brasileiras como tam-
ambientes. Dessa forma, a vigilância à saú- bém pedido de ajuda de diferentes partes
de dos trabalhadores de bibliotecas passa a do país.

Referências

ABNT. Associação Brasileira de Normas São Paulo: Universidade de São Paulo,


Técnicas. NBR 6401: Instalações centrais 1989.
de ar-condicionado para conforto FREITAS, C. M.; PORTO, M. F. S. Aspectos
– parâmetros básicos de projeto. Rio de sociais e qualitativos nas análises de
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BARCELLOS, C. et al. Relatório de sistemas tecnológicos complexos. Revista
diagnóstico e propostas de solução para Produção, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 33-55,
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do prédio da Biblioteca Central de FREITAS, C. M; PORTO, M. F. S.;
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78 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 69-78, 2007


Vitor Alexandre de Freitas A abordagem sociotécnica na investigação e na pre-
Cardoso2
Henrique Luiz Cukierman3
venção de acidentes aéreos: o caso do vôo RG-2541
Sociotechnical approach to investigation and prevention of air-
craft accidents: the case of flight RG-254

1
Artigo baseado na Dissertação Resumo
de Mestrado de Vitor Cardoso,
orientada por Henrique Cukier- Este artigo apresenta estudo de caso do acidente ocorrido com o vôo RG-254 da
man, intitulada O estudo sociotécnico
Varig, em setembro de 1989. Partindo de informações de investigações oficiais,
da interface “ser humano-máquina”
envolvendo computadores: o caso de publicações, material audiovisual, entrevistas com envolvidos no acidente e
um acidente aéreo, apresentada especialistas em segurança de vôo, os autores re-analisam o acidente com en-
à Coordenação dos Programas de foque sociotécnico referenciado na teoria ator-rede e no conceito de acidente
Pós-Graduação de Engenharia da “normal”. O texto apresenta novo entendimento para a investigação de aciden-
Universidade Federal do Rio de tes na aviação criticando a tradicional repartição de causas entre os chamados
Janeiro em 2004. fatores “humanos”, “técnicos” e “operacionais” e sugere aplicação do conceito
2
Universidade do Estado do Rio de de multicausalidade que não se restringe à mera listagem de “fatores contri-
Janeiro, Diretoria de Informática buintes”, mas que analisa as relações entre atores-redes envolvidos no sistema
(Dinfo). Rio de Janeiro, Brasil. de aviação em que ocorreu o acidente. O acidente do RG-254 é descrito como
3
Universidade Federal do Rio de Ja- sintoma do rompimento de relações entre os atores que atuam no sistema.
neiro, Coordenação dos Programas
Palavras-chaves: acidentes aeronáuticos, teoria ator-rede, acidente “normal”.
de Pós-Graduação de Engenharia
(Coppe), Centro de Tecnologia. Rio
de Janeiro, Brasil.
Abstract
This article presents a case study of the accident with Varig flight RG-254
in September 1989. Using as starting point the official investigation data,
publications, audiovisual material and interviews with those involved in the
accident as well as flight safety specialists, the authors re-analyze the accident
through a sociotechnical focus, which is based on the actor-network theory and
concepts of “normal” accident. The text presents a new understanding of aviation
accident investigation and it reviews the traditional terms of investigation
based on a rigid division between “human”, “technical” and “operational”
factors. It also suggests the application of the multi-causality concept, which
is not restricted to a mere list of “contributing factors”, but which analyzes the
relationships among the actor-networks involved in the aviation system where
the accident occurred. The RG-254 accident is described as a symptom of the
rupture of relationship among those acting in the system.
Keywords: aviation accidents, actor-network theory, “normal” accidents.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 79


Introdução: a investigação de acidentes aeronáuticos no Brasil

O objetivo deste artigo é rever as inves- De acordo com o Código de Ética do


tigações do acidente ocorrido no dia 3 de SIPAER, a separação de suas atividades
setembro de 1989, no trecho entre Marabá das investigações jurídicas e criminais
e Belém, com o vôo RG-254 da Varig. In- confere-lhe isenção e eficácia. Sua análise
vestigações prévias do evento são re-anali- seria “técnica”, desvinculada do juízo de
sadas como fonte de possível aprendizado valor que apura a culpa ou a responsabi-
e, portanto, de novas contribuições para a lidade. Por essa razão, o relatório final da
prevenção de acidentes. De acordo com o investigação das causas do pouso forçado
Anexo 13 à Convenção de Aviação Civil In- do PP-VMK foi remetido à Polícia Federal
ternacional de Chicago, intitulado “Investi- com o seguinte esclarecimento:
gação de Acidentes Aeronáuticos”:
V - Pelo exposto, concluímos que os tra-
o único objetivo da investigação de um balhos desenvolvidos pelo CENIPA não se
acidente ou incidente será a prevenção assemelham às diligências desenvolvidas
de acidentes e incidentes. Não é propósito pelos organismos de Segurança Pública,
desta atividade atribuir culpa ou respon- como também não possuem caráter judi-
sabilidade. cial com vistas à apuração de responsabi-
lidade civil ou criminal. É competência do
O Serviço de Investigação e Prevenção CENIPA a orientação, a supervisão, o con-
4
Em http://www.cenipa.aer.mil.br/ de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER) foi trole, o planejamento e a atualização do
paginas/historico.htm (revisitado criado em 1951. Vinte anos depois, surgiu o Sistema com a finalidade de incrementar
em julho de 2007). Obs.: Em 2007, e desenvolver os mecanismos de Preven-
CENIPA como seu órgão central. No Depar-
os endereços de páginas do ção de acidentes e de incidentes aeronáu-
CENIPA voltaram a ser como eram tamento de Aviação Civil (DAC), o elo com
o CENIPA é a Divisão de Investigação e Pre- ticos, visando o aumento da Segurança de
em 2003: “www.cenipa.aer.mil. Vôo no País.
br/...”. Ao menos em setembro de venção de Acidentes Aeronáuticos (DIPAA),
2006, porém, eram: “www.cenipa. que tem a função de investigar os acidentes É importante dizer que, transcorridos
aer.mil.br/port/...”, (língua portu- da aviação civil e emitir as recomendações quase vinte anos desde o acidente com o
guesa), indicando que poderiam vir de segurança aplicáveis, além de outras RG-254, o arcabouço das investigações
a existir versões em outras línguas. atividades que previnam os acidentes aero-
Caso essa iniciativa venha a ser
permanece baseado em três grupos de fa-
retomada, os endereços poderão
náuticos. Por força do decreto nº 87.249, de tores: técnicos, humanos e operacionais.
vir a ser alterados novamente. 7 de junho de 1982, o CENIPA passou a ser Em 2006, foi concebido o novo Sistema de
uma organização autônoma. As autoridades Gerenciamento Integrado da Prevenção
5
Norma NSCA 3-12 – Código de da Aeronáutica substituíram o caráter poli- de Acidentes Aeronáuticos (SIGIPAER)
Ética do SIPAER, 3 de junho de cial dos trabalhos pelo objetivo de aprender para atender:
2002. com os acidentes:
a necessidade crescente de trabalhar com
(...) uma nova filosofia foi então criada o maior número de informações possível
6
Em http://www.cenipa.aer.mil. e começou a ser difundida. Os aciden- e a oportunidade de se empregar toda a
br/sigipaer/sigipaer.htm (revisitado tes passaram a ser vistos a partir de uma modernidade da TI em favor da segurança
em julho de 2007). perspectiva mais global e dinâmica. A da atividade aérea.6
palavra inquérito foi incondicionalmente
7
Em http://www.cenipa.aer.mil. substituída. As investigações passaram a Dentre os documentos normativos que
br/paginas/trm.htm (revisitado em ser realizadas com um único objetivo: a o consubstanciam, está a norma NSCA 3-6
julho de 2007). ‘prevenção de acidentes aeronáuticos’.4 – Investigação de Acidente Aeronáutico, In-
cidente Aeronáutico e Ocorrência de Solo,
Portanto, de acordo com sua missão
na qual não houve qualquer alteração, ou
declarada, a investigação do SIPAER busca
seja, o modo de investigar mantém-se basea-
apurar um acidente única e exclusivamen-
do nas mesmas divisões em fatores pré-es-
te para prevenir futuras recorrências:
tabelecidos e com as mesmas restrições de
Todo procedimento judicial ou admi- abrangência que apontaremos adiante.
nistrativo para determinar a culpa ou
responsabilidade deve ser conduzido de Em 2007, em seu sítio oficial7, o CENIPA
forma independente das investigações do continua afirmando que “o homem ainda é
SIPAER. Esta natureza sui generis de in- o grande ‘vilão’, responsável pelo sucesso
vestigação, que é conduzida pelo SIPAER, ou insucesso da aviação”. Diz, ainda, que
é conseqüência da aplicação e observância os profissionais que desempenham as ati-
do estabelecido no Anexo 13 à Convenção
vidades inerentes ao sistema complexo do
de Chicago sobre Aviação Civil Internacio-
nal, recepcionada pelo ordenamento jurí- mundo aeronáutico “têm participado ativa-
dico brasileiro e nas normas de sistema do mente como um dos fatores contribuintes
Comando da Aeronáutica, bem como na para a ocorrência de inúmeros acidentes
Legislação que as precede e autoriza.5 aeronáuticos”.

80 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007


Entre os aspectos destacados neste ar- queda do Boeing da Gol parece ter reitera-
tigo estão as críticas à maneira “fatorada” do o insólito das circunstâncias do acidente
com que a investigação oficial lida com a com o Boeing da Varig (ambas as circuns-
noção de multicausalidade e à atribuição tâncias parecem “impossíveis” de ocor-
de culpa. A investigação oficial permane- rer), as primeiras reações das autoridades
ce estruturada em grupos de fatores técni- aeronáuticas e da imprensa infelizmente
cos, humanos e operacionais que acabam coincidem nos mesmos erros. Só podemos
limitando o seu alcance. A abordagem so- nos lamentar de que, passados 17 anos do
ciotécnica adotada neste estudo introduz acidente da Varig, as explicações das altas
novos termos a serem considerados em in- autoridades requentem a mesma cantilena
vestigações de acidentes. dos “fatores técnicos e humanos”, enquan-
to a imprensa se repete na busca de um “vi-
No momento em que era concluída a
lão” a ser oferecido à execração pública.
revisão deste artigo, aconteceu outro aci-
dente na mesma região do ocorrido com o Esse novo acidente mostra a atualidade
RG-254, dessa vez, envolvendo o vôo 1907 de muitas das reflexões apresentadas neste
da Gol. Essa não é a única coincidência. O texto e indica a necessidade de urgente am-
leitor poderá perceber que, se a tragédia da pliação do debate sobre esse tema.

Elementos metodológicos para a investigação sociotécnica de um


acidente

Os autores desenvolveram estudo de mero de referências a documentos oficiais


caso de acidente com o vôo RG-254, em e páginas da internet dedicados à seguran-
setembro de 1989 no Brasil. São múltiplas ça na aviação.
as razões que justificam a escolha do caso.
As informações coletadas foram organi-
Entre outras, vale destacar: a) a enorme
zadas e re-analisadas com o apoio de enfo-
repercussão do acidente, respaldada seja
ques teóricos da teoria ator-rede e do con-
no número de aspectos envolvidos cita-
ceito de acidente “normal” do sociólogo
dos como inusitados, seja no número de
Charles Perrow (1999). Essas abordagens
vítimas fatais e de sobreviventes de pouso
são apresentadas a seguir:
realizado em plena selva amazônica; b) a
profusão de documentos e material infor- O foco nas relações: a teoria ator-rede
mativo disponível sobre o acidente, c) as
Segundo John Law (1992):
características adotadas na investigação
oficial do acidente no setor aéreo, fragmen- ...os agentes sociais nunca estão localiza-
tando a exploração da contribuição dos dos unicamente em corpos mas, ao con-
múltiplos fatores identificados como parti- trário, um ator é uma rede moldada por
cipantes do acidente. relações heterogêneas, ou um efeito pro-
duzido por este tipo de rede. O argumento
Os materiais ou as fontes de informação é que pensar, agir, escrever, amar, traba-
explorados neste estudo incluem relatórios lhar por um salário – todos os atributos
de investigação do acidente elaborados por que normalmente atribuímos a seres hu-
manos, são gerados em redes que atraves-
organismos oficiais e profissionais da área,
sam e se ramificam, ao mesmo tempo, no
publicações e materiais audiovisuais divul- corpo e além do corpo. Daí o termo ator-
gados na imprensa especializada e leiga, rede – um ator é também, e sempre, uma
entrevistas com sobreviventes do acidente rede. (p. 384)
e especialistas em segurança de vôo, acesso
a fontes de informações especializadas dis- Portanto, a teoria considera reducionis-
ponibilizadas em meio eletrônico. A lista tas as versões segundo as quais as relações
detalhada de fontes consultadas e os res- materiais determinam as relações humanas
pectivos endereços pode ser encontrada no ou vice-versa. Supõe, ainda, que o humano
texto completo da dissertação de mestrado e o técnico são inseparáveis e que não há
(CARDOSO, 2004) que serve de base a este uma diferença fundamental entre pessoas
artigo. O estudo original inclui notas indi- e objetos. John Law (1992) argumenta que
cativas das fontes (declarações pessoais, pessoas são o que são por serem uma rede
publicações, relatórios oficiais, entrevistas ordenada de materiais heterogêneos:
etc.) de todas as afirmações apresentadas Se você levasse de mim meu computador,
no relato do caso, assim como grande nú- meus colegas, meu escritório, meus livros,

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 81


minha mesa de trabalho e meu telefone, A pontualização
eu não seria um sociólogo que escreve
artigos, ministra aulas e produz ‘conhe- Se explicamos um vôo sem incidentes
cimento’. Eu seria uma outra coisa, e o como o resultado da estabilidade de uma
mesmo é verdade para todos nós. Portan- rede obtida pela associação entre humanos e
to, a questão analítica é essa: um agente não-humanos, que a mantêm e a expandem,
é primariamente um agente porque habi- a queda do avião deve ser explicada como
ta um corpo que carrega conhecimentos, conseqüência do enfraquecimento e da rup-
habilidades, valores e tudo o mais? Ou
tura dessas associações e, portanto, da de-
porque habita um conjunto de elementos
(incluindo, obviamente o corpo), mas que sestabilização e do colapso da rede. Mas que
se estende por uma rede de materiais, so- rede é essa? Afinal, o que as pessoas fazem é
máticos ou não, que envolvem cada cor- apenas “pegar um avião”. O que mais há por
po? (p. 383-384) trás disso? Para responder a essa pergunta, é
preciso recorrer ao conceito de “pontualiza-
Em uma rede, cada ator é diferente do
ção”. John Law (1992) explica:
que era antes de se associar a outros atores,
ou seja, um ator é modificado por suas rela- Por que apenas de vez em quando toma-
ções. Portanto, um piloto-sem-avião é dife- mos consciência das redes que estão por
rente de um piloto-com-avião e, da mesma trás dos atores, objetos e instituições?
Por exemplo, para a maioria de nós, e na
forma, um avião-sem-piloto é diferente de
maior parte do tempo, a televisão é um ob-
um avião-com-piloto. Essa atitude analítica jeto simples e coerente com relativamente
que obriga a não considerar em separado o poucas partes aparentes. No entanto quan-
piloto (o campo das “falhas humanas”) do do ela deixa de funcionar, rapidamente,
avião (o campo das “falhas técnicas”) ou, ela se torna para esse mesmo usuário – e
melhor ainda, que tem de apreender de mais ainda para o técnico de manutenção
um mesmo “golpe” esse “quase sujeito”, – uma rede de componentes eletrônicos e
o “piloto-avião”, ou esse “quase objeto”, intervenções humanas (...). (p. 384)
o “avião-piloto”, aplica-se a todos os ato- …se uma rede age como um bloco único,
res da rede. Ao discutir a relação entre o então ela desaparece, para ser substituída
humano e a arma de fogo, Bruno Latour pela própria ação e pelo autor aparente-
(1999) esclarece com muita propriedade mente simples daquela ação. Ao mesmo
tempo, o modo como o efeito é gerado
a respeito desses híbridos de humanos e
também é apagado: para aquele momento,
não-humanos, desses “quase sujeitos” e isso não é visível nem relevante. Ocorre
“quase objetos”: então que algo muito mais simples – uma
...quem é o ator: a arma ou o cidadão? televisão funcionando, um banco bem ge-
Outra criatura (uma arma-cidadão ou um renciado ou um corpo sadio – surge, por
cidadão-arma). Se tentarmos compreen- um tempo, para mascarar as redes que o
der as técnicas presumindo que a capaci- produzem. Os estudiosos da teoria ator-
dade psicológica dos humanos está fixada rede falam de tais efeitos simplificadores
para sempre, não conseguiremos perceber precários como pontualizações (...) (p.
como as técnicas são criadas ou, sequer, 385, grifo nosso)
de que modo são usadas. Você, com um
Alguns tipos de ordenamento de redes
revólver na mão é uma pessoa diferen-
te. (...) essência é existência e existência
tornam-se mais abrangentes, mais robustos
é ação. Se eu definir você pelo que tem e são executados mais amplamente. For-
(um revólver) e pela série de associações a mam “pacotes” aos quais podem ser atri-
que passa a pertencer, então você é modi- buídas, de maneira sempre precária, carac-
ficado pelo revólver – em maior ou menor terísticas que parecem “inerentes”, todavia
grau, dependendo do peso das outras as- mais ou menos estáveis, constituídas por
sociações que carrega. (p. 206) um processo de “engenharia heterogê-
À luz da teoria ator-rede, o que tem de nea”. A partir desse ponto, se esses orde-
ser analisado são as relações entre os di- namentos podem tornar-se, por exemplo,
versos atores humanos e não-humanos “agentes, dispositivos, textos, conjuntos de
que, combinados, justapostos, associados relações organizacionais relativamente pa-
e, principalmente, indissociáveis, se pro- dronizados – qualquer um ou todos esses”
punham a levar a cabo a missão de partir (LAW, 1992, p. 385), igualmente podem ser
de Marabá e chegar a Belém com conforto, desfeitos. Ao chamar a atenção para a pre-
economia e segurança em aproximadamen- cariedade desses efeitos ordenadores, John
te quarenta e cinco minutos. Algumas des- Law (1992) acaba por enunciar as condi-
sas relações não se mantiveram estáveis, ções de possibilidade de um acidente:
sofreram modificações, enfim, desfizeram- (...) a engenharia heterogênea não pode
se, e a missão fracassou. estar certa de que todos [os ordenamen-

82 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007


tos] funcionarão conforme previsto. A é a pontualização escolhida. Não é um ator,
pontualização é sempre precária, enfrenta é a própria rede. Ao mesmo tempo, afirma-
resistência e pode degenerar em uma rede ções de que o “piloto aterrissou”, “o avião
falha. (p. 385)
sobrevoou” ou “a Varig informou” são o re-
Voltemos à pergunta: quem voa? Quais sultado da necessidade do uso de metoní-
os atores (ou melhor ainda, os atores-re- mias com a finalidade de evitar repetições
des) que se tornam “invisíveis” com a pon- de palavras e, portanto, são pontualizações,
tualização da rede? O avião é montado a pois quem aterrissa é o conjunto formado
partir de uma infinidade de componentes. por piloto, co-piloto, avião com combustí-
Por sua vez, a empresa de aviação possui vel, pontos fixos sinalizadores, operadores
prédios, licenças, funcionários de vários em terra, aeroporto etc.
tipos, passageiros, aviões, ferramentas de Apenas para exemplificar, o CENIPA é
manutenção, fornecedores de refeições e um dos atores-redes que emergem da “invi-
uma lista interminável de outros “compo- sibilidade” que gozava enquanto a rota aé-
nentes”, parceiros e relações. Os pilotos rea funcionava sem problemas. O fracasso
(piloto e co-piloto) foram capacitados, têm de um vôo torna “visíveis” os atores-redes e
habilidades específicas, licenças para pilo- as relações de uns com os outros. A Boeing,
tar determinados tipos de aeronave, víncu- os operadores de vôo, o Sindicato Nacional
los empregatícios e muitas outras relações. dos Aeronautas e a própria Varig, dentre
Latour (1999) explica: outros, surgem em cena e passam a ser per-
A atribuição a um ator do papel de primei- cebidos somente após o acidente.
ro motor de modo algum cancela a neces-
sidade de uma composição de forças para Crítica à “neutralidade” e à “objetivida-
explicar a ação. É por engano ou improprie- de” dos fatos
dade que nossas manchetes proclamam:
Após o acidente, são produzidas histó-
‘Homem voa’ ou ‘Mulher vai ao espaço’.
Voar é uma propriedade de toda a associa- rias, seja por parte dos órgãos oficiais rela-
ção de entidades, que inclui aeroportos e cionados à aviação civil, seja por instâncias
aviões, rampas de lançamento e balcões de da justiça ou pela imprensa, que visam con-
venda de passagens. O B-52 não voa, a For- tar / espelhar “a verdade”. Por ora, para ilus-
ça Aérea Americana voa. A ação não é uma trar a “objetividade” dos fatos, vamos nos
propriedade de humanos, mas de uma as- ater ao relatório final oficial elaborado pelo
sociação de actantes8. (p. 209-210) órgão de investigação e prevenção de aci- 8
Bruno Latour (1987) utiliza a no-
Portanto, quem voava não era o Boeing dentes. O relatório é aguardado pelas partes ção de ator no sentido semiótico
envolvidas no acidente como o documento – e por isso mesmo algumas vezes
737, mas a Varig (evidencia-se sua recente ele fala em actantes: um ator ou
quase falência). Por outro lado, este artigo técnico-científico produzido por experts ca- actante se define como qualquer
não se refere ao fato genérico de essa orga- paz de dirimir todas as dúvidas sobre o aci- pessoa, instituição ou coisa que
dente e suas causas. Bruno Latour (1987), tenha agência, isto é, que produza
nização manter aviões tripulados trafegan- efeitos no mundo. Na acepção
do entre aeroportos, mas a uma instância ao se referir a textos que constituem fatos de Latour, um actante é caracte-
específica da atividade de transporte de científicos, oferece subsídios para avaliar rizado pela heterogeneidade de
suas certezas com mais cautela: sua composição: ele é uma dupla
passageiros dessa operadora. Tudo é espe- articulação entre humanos e não-
cífico: o avião, o trajeto, a data (e, portanto, O objetivo de convencer o leitor não é humanos e sua construção se faz
por exemplo, as condições climáticas), os em rede.
atingido automaticamente, mesmo que
operadores em terra, os tripulantes e todos o escritor goze de alto prestígio; as refe-
os demais atores da rede. Até mesmo o fato rências têm de ser bem arranjadas, e as
de estar ocorrendo um jogo de futebol de evidências contrárias inteligentemente
interesse de boa parte da população brasi- desqualificadas. Nem mesmo todo esse
trabalho é suficiente, por uma boa razão:
leira naquela data pode ter tido sua parcela
seja o que for que um artigo faça à literatu-
de contribuição para o desfecho do vôo. ra anterior, a posterior lhe fará o mesmo.
Uma passagem de avião identifica a (…) uma afirmação é fato ou ficção não
por si mesma, mas apenas pelo que outras
instância de “deslocar-se de A até B” pelo
fazem delas posteriormente. (p. 38)
número do vôo e pela data. RG-254 era
uma classe de vôos, isto é, de operações Por analogia, pode-se afirmar que o re-
de transporte aéreo de passageiros, partin- latório final do CENIPA não é constituído,
do de São Paulo e chegando a Belém, com em si mesmo, de “fatos científicos”. Ele
escalas. A parte alfabética do código, RG, é entendido como tal justamente porque
significa rio-grandense e identifica a opera- os que o aguardam lhe atribuem essa ca-
dora Varig (Viação Aérea Rio-Grandense). racterística. Assim, ao citá-lo fartamente
O vôo RG-254 de 3 de setembro de 1989 é a em processos administrativos e judiciais,
instância que estamos estudando, ou seja, usando suas afirmações como sendo “ver-

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 83


dades constatadas”, as partes contenciosas e organismo, somos todos cyborgs. Nossa
as tornam ainda mais “constatadas”. cultura, a cultura das tecnologias da infor-
mação de uma forma mais ampla e a dos
Os objetivos declarados do órgão de
computadores em particular, é uma cultura
investigação são a neutralidade e a busca
cyborg, na qual não há diferenças práticas
da fidelidade ao ocorrido, mas os partici-
entre pessoas e objetos.
pantes de sua elaboração e os elementos de
análise considerados relevantes são alista- Por meio da ligação provida pela inter-
dos por meio de negociações complexas, face humano-máquina, entendemos que o
muitas vezes nem sequer percebidas como piloto, o co-piloto e o avião são imbrica-
uma negociação. Por exemplo: quem é de- dos uns aos outros, conectados por meio
signado para a investigação? O conteúdo e de emissores e receptores de mensagens,
as conclusões do relatório surgem do es- provendo informações ou decodificando-
clarecimento de opiniões contrárias umas as, reagindo ou não a elas. São botões,
às outras, de análises em laboratório e de olhos, teclas, alavancas, ouvidos, pedais,
sua interpretação por especialistas que telas, narizes, visores de cristal líquido,
informam os resultados obtidos. Enfim, o mãos, braços, pernas e todo o corpo, fo-
conteúdo do relatório oficial não é a óbvia nes de ouvido, alto-falantes, microfones,
realidade dos fatos. É o resultado do desfe- sinais sonoros, vibrações, bocas, odores,
cho de uma série de controvérsias resolvi- temperaturas e diversos outros “conecto-
das ao longo da investigação, ou seja, é o res”. A bordo, o piloto e o co-piloto são
resultado das forças de argumentação de cyborgs, com capacidade de transportar,
humanos e não-humanos e, portanto, o re- voando. O avião, por sua vez, tornou-se
latório não é “naturalmente técnico” (nem mais semelhante à Discovery “governa-
“neutro”). A respeito do texto técnico, La- da” por HAL, o computador do filme 2001
tour (1987) esclarece:
– Uma Odisséia no Espaço. Embora não
A distinção entre literatura técnica e a seja uma “mente”, o computador de bor-
restante não é obra de fronteiras naturais; do também tem “responsabilidade”, pois
trata-se de fronteiras criadas pela despro- toma decisões sobre o vôo – automatica-
porcional quantidade de elos, recursos e
mente – a partir da informação de uma
aliados disponíveis. (p. 62)
direção, de uma distância e dos demais
O cyborg parâmetros necessários. O elemento “pu-
ramente” humano passou a interagir (e a
Para alguns autores, uma nova ordena-
confundir-se!) com um computador.
ção social, científica e tecnológica emerge
como uma nova condição, a condição “pós- Acidente “normal”
humana”, na qual o humano se constitui
como um híbrido de organismo e máqui- As definições de sistema, na teoria ge-
na: o cyborg. ral de sistemas, utilizam expressões como
“unidades inter-relacionáveis” “de partes e
O termo cyborg consagrou-se na área elementos interdependentes” e “inter-rela-
acadêmica graças ao artigo de Donna Hara- ção das partes”9.
9
Dicionário Eletrônico Houaiss. way (1991), The Cyborg Manifesto, até hoje
uma das mais influentes contribuições da Charles Perrow (1999) afirma que tec-
área. Em 1963, pesquisando as maneiras nologias de alta complexidade, como as
de “engenheirar” o ser humano para o vôo plantas de energia nuclear, armas nuclea-
espacial tripulado, a NASA publicou um res, produção de DNA recombinante ou
relatório no qual cunhou o termo cyborg a navios transportando cargas altamente
partir das sílabas iniciais de cybernetic or- tóxicas ou explosivas, por exemplo, têm
ganism. Donna Haraway (1991) aproveitou alto risco potencial para catástrofes. Se-
para conferir surpreendente dimensão po- gundo ele, esses sistemas têm o potencial
lítica e conceitual ao termo. O cyborg, defi- de apresentar interações complexas, ou
nido como um híbrido de máquina e orga- seja, aquelas em que um componente pode
nismo, constitui-se como uma criatura tão interagir com outros componentes em se-
socialmente real quanto ficcional, a quem qüência não esperada ou não planejada e,
cabe habitar um mundo ambiguamente na- também, não visível ou não imediatamente
tural e construído. No mundo do terceiro compreensível. Por isso, acidentes nesses
milênio, no mundo da alta tecnologia, ain- sistemas são inevitáveis ou “normais”. Essa
da segundo Donna Haraway (1991), somos possibilidade é descrita como característi-
todos quimeras, somos todos teorizados ca desses sistemas e não de uma peça ou de
e fabricados como híbridos de máquina um operador em particular. Perrow a deno-

84 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007


mina “complexidade interativa” e a explica Charles Perrow afirma que, a despeito
conforme se segue: de toda a segurança obtida com a alta qua-
Se complexidade interativa e forte aco-
lidade dos equipamentos dos aviões, com a
plamento – características dos sistemas – redundância10 e com os projetos razoavel-
mente sensíveis aos problemas dos “fatores
10
Como é sabido pelos conhece-
produzirão inevitavelmente um acidente,
dores do assunto, diversos equipa-
acredito que se justifica que o chamemos humanos”, os acidentes aéreos irão acon-
mentos de interação humana com
de acidente normal, ou acidente de sis- tecer. Estudos tradicionais indicam que de a máquina são duplicados. Dessa
tema. A estranha denominação acidente 50 a 70 por cento dos acidentes originam-se forma, piloto e co-piloto têm a
normal tem a intenção de indicar que, da- de erro humano. Ao criticar um desses es- oportunidade de confirmar (ou
das as características dos sistemas, múl-
tudos, Perrow aponta seu ceticismo quanto não) as interações um do outro.
tiplas e inesperadas interações de falhas
à classificação das causas dos acidentes Além disso, sistemas que, em caso
são inevitáveis. Esta é uma expressão de
aéreos em “erro do piloto”, pois reconhece de falha, impossibilitariam a nave-
uma característica integral de um sistema,
gabilidade são também duplicados
e não uma declaração de freqüência. Mor- que a expressão engloba convenientemen-
para que o sistema de reserva
rer é normal para nós, mas só morremos te todos os percalços cuja verdadeira causa possa entar em funcionamento
uma vez. Acidentes de sistemas são inco- é incerta, complexa ou “embaraçosa” para em qualquer momento que se faça
muns, até mesmo raros; mas, se eles po- o sistema. Afirma ainda que a incerteza e necessário.
dem produzir catástrofes, isso não é assim a complexidade são causas identificadas e
tão tranqüilizador. (PERROW, 1999, p. 5)
que “embaraçosa” é uma forma alternativa
O reconhecimento da complexidade in- de dizer “culpem a vítima” ao invés de cul-
terativa dos sistemas permite uma melhor par os donos do sistema:
compreensão sobre acidentes: Portanto, podemos concordar (…) que a
É possível analisar essas características atribuição de erro ao piloto é um conve-
especiais e, ao fazê-lo, ganhar uma com- niente ‘saco-de-gatos’. Erros de pilotos ou
preensão muito melhor do porquê dos de tripulantes com certeza existem. Pilo-
acidentes nesses sistemas, e do porquê tos não são mais infalíveis do que proje-
eles sempre acontecerão. Se sabemos tistas ou empreiteiros. Mas a complexida-
disso, então ficamos em melhor posição de e o acoplamento do sistema parecem
para argumentar que certas tecnologias responder por um significativo número de
deveriam ser abandonadas, e que outras, acidentes. (ibidem, p. 134)
as quais não podemos abandonar porque
construímos muito de nossa sociedade em Enfim, se o acidente é “normal”, con-
torno delas, deveriam ser modificadas. O forme preconiza Charles Perrow (1999),
risco nunca será eliminado de sistemas de temos que aprender a conviver com ele.
alto risco e, na melhor das hipóteses, não Como aprender a conviver com um ar-
eliminaremos mais do que alguns poucos tefato gigantesco que “por um bit” pode
desses sistemas. No entanto, deveríamos produzir uma catástrofe? A cada acidente
no mínimo parar de culpar as pessoas
ocorrido, é preciso que haja uma investiga-
erradas e os fatores errados, bem como
parar de tentar consertar os sistemas de
ção que traga, efetivamente, os elementos
uma maneira que só os torna ainda mais de aprendizado. É importante não lançar
perigosos. (ibidem, p. 4) mão do artifício simplório de se culpar a
vítima. Além disso, para que esse apren-
Perrow (1999) chama a atenção para dizado possa ser apropriado pelo maior
processos cujo desenrolar é rápido, que número possível de pessoas às quais cabe
não podem ser desligados, e nos quais os contribuir para a prevenção de acidentes,
componentes que falharam não podem é preciso que a investigação seja “aberta”
ser isolados dos demais. É o que Perrow e, portanto, não deve ser tratada como
chama de “acoplamento forte”, típico de questão de segurança nacional.
sistemas em que os processos não podem
esperar, pois seus resultados ou produtos Convivemos, num passado recente,
sofrem alteração com o passar do tempo ou com acidentes ambientais causados por
têm um tempo de transformação definido vazamentos de óleo de dutos e terminais
(como no caso de uma reação química, de derivados de petróleo, com “apagões” e,
por exemplo) e a seqüência de operações especificamente em relação aos artefatos
a serem efetuadas é mais rígida (como no que voam, com o acidente no lançamen-
caso de uma instalação nuclear) do que em to do VLS-1 (Veículo Lançador de Satéli-
sistemas cujo acoplamento é mais fraco. tes), ocorrido em Alcântara em 2003, de
Além disso, de forma geral, são processos cuja investigação a sociedade civil pouco
cujo projeto permite apenas uma forma de ou nada participou. A despeito de todo o
atingir o objetivo (por exemplo, uma ins- avanço que se tenha alcançado, ainda te-
talação nuclear não pode utilizar carvão mos muito a aprender sobre como apren-
nem óleo combustível). der com os acidentes.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 85


Resultados e discussão

O Acidente tipo de referencial para navegação. Uma


outra referência para a orientação do vôo
O vôo RG-254 ia de São Paulo a Belém
teria sido o sinal emitido em Tucuruí com
com escalas em Uberaba, Uberlândia, Goiâ-
o propósito de orientar aviões. Localiza-
nia, Brasília, Imperatriz e Marabá. O pilo-
do à esquerda na rota de Marabá a Belém,
to e o co-piloto assumiram a aeronave, de
naquele fim de tarde, por conta do erro de
matrícula PP-VMK, em Brasília. No último
navegação, postou-se à direita da aeronave.
trecho, Marabá-Belém, a operação da ae-
No entanto, o piloto não confirmou esse si-
ronave foi assumida pelo piloto, que leu o
nal porque Tucuruí não era um ponto mar-
Rumo Magnético na Folha de Planejamento
cado na navegação da Varig para aquele tre-
de Vôo: 0270. Ele ajustou o valor no equi-
cho. Também se costuma verificar o rumo
pamento do avião para 270, sentido leste-
a adotar em cartas de navegação existentes
oeste. O co-piloto ajustou o equipamento
a bordo das aeronaves e que se classificam,
no seu lado do painel do avião para o mes-
quanto à altitude do vôo, em cartas de “bai-
mo valor. O rumo correto a ser ajustado se-
xa” ou de “alta”. Para o vôo RG-254 estava
ria 027, sentido sudoeste-nordeste (se fosse
estabelecida uma altitude que determinava
zero, seria sul-norte).
o uso destas últimas. Todavia, o trecho Ma-
A Varig havia mudado o sistema com- rabá-Belém, não constava das cartas de na-
putadorizado (em terra) e a representação vegação de alta altitude (tais mapas eram
do rumo no documento usado pelos pilo- confeccionados para atender os interesses
tos (impresso por esse sistema) incluía um da navegação aérea internacional, cujas ro-
zero a mais à direita do número, em verda- tas não abrangiam esse trecho, de interesse
de uma casa decimal usada sem a vírgula unicamente doméstico).
que lhe antecederia e que, portanto, deve- Às 17h58, o piloto pediu permissão
ria ser desprezada. Começava aí uma sé- para pousar em Belém e a obteve11, mas
11
Depoimento registrado no rie de pequenos eventos que, justapostos, permaneceu sem contato pela freqüência
mesmo processo. combinados e interagindo entre si de forma de longo alcance (HF) durante aproxima-
inesperada iriam resultar no acidente. damente 20 minutos. Às 18h20, informou
Donald Mackenzie (1996) se refere que continuava sem contato pela freqü-
aos efeitos de pequenas diferenças desse ência de menor alcance (VHF) e solici-
tipo sobre “máquinas inteligentes” quan- tou permissão para prosseguir descendo,
do discute a introdução de computadores sendo novamente autorizado. Às 19h06, o
digitais ou, mais genericamente, de dispo- RG-254 informou estar com 01h40 de au-
sitivos eletrônicos programáveis em siste- tonomia e o Centro de Controle de Área
mas complexos: (ACC)12 quis saber se a aeronave estava re-
12
“Area Control Center”(ACC): tem cebendo marcações (sinais emitidos para
sob sua jurisdição o espaço aéreo Sistemas digitais são caracterizados pela
orientação) de Belém. A resposta foi que
controlado a partir de um limite descontinuidade de efeitos como função
inferior sobre o solo. O de Belém de suas causas. Há uma amplificação não somente as radiodifusoras locais estavam
é localizado no aeroporto interna- usual dos efeitos de pequenas mudanças. sendo recebidas. O Centro Belém autori-
cional Val-de-Cans. A mudança de um bit de informação pode zou a descida para 2000 pés (aproximada-
ter efeitos devastadores. (p. 209) mente 600 metros). Embora não houvesse
sequer um sinal da aproximação do avião,
Algumas medidas de redução de custos
a autorização foi concedida porque:
por parte da Varig sobrecarregavam os pilo-
tos, tais como fazer com que os aviões per- quando o piloto solicita autorização de
manecessem em torno de apenas quinze início de descida, a aeronave ainda está
a uma distância tal que os tripulantes não
minutos nos aeroportos, bem como reduzir
podem ver as luzes da cidade.13
13
Depoimento no mesmo processo. o pessoal de apoio em terra. Como tinham
que cuidar de várias tarefas, a recomenda- Perguntado se havia algum problema
ção da empresa para que os pilotos reali- técnico com a aeronave14, o piloto respon-
14
Depoimento no mesmo processo. zassem uma checagem do plano de vôo em dia apenas “aguarde”.
relação a uma carta de navegação acabou
O relatório final do Centro Nacional
não sendo cumprida naquele dia.
de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos
Às 17h35, hora local, o PP-VMK deco- (CENIPA), órgão do governo responsável
lou. Nem o piloto nem o co-piloto verifica- pela investigação, não se refere a nenhum
ram a posição do sol naquela hora. Afinal, contato entre Belém e o avião entre 19h06
já havia muito tempo que não se usava esse e 19h42. Foram aproximadamente 40 mi-

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nutos sem contato direto com um avião Todo mundo estava escutando o jogo,
autorizado a voar a 600 metros de altitude, inclusive eu. Cheguei a comentar com o
que deveria ter pousado havia 25 minutos! co-piloto que a aviação naquele dia estava
um perigo. Até o controlador de vôo estava
Durante o tempo em que ficou sem travar
ouvindo o jogo. (grifo no original)
contato, o piloto tentou localizar-se por
mapas de navegação, pelo radar na função Além disso, um pouco depois das 18h,
mapeamento, e pela sintonia com as esta- o Brasil marcou um gol e, em torno de
ções comerciais de rádio de Belém. Não 18h30, uma torcedora lançou um foguete
conseguiu. Passou, então, a tentar identifi- sinalizador que explodiu próximo ao golei-
car alguma pane nos instrumentos de rá- ro chileno, o que causou a interrupção do
dio-navegação. Às 19h42, um Coordenador jogo. A seguir, a seleção chilena deixou o
de Busca e Salvamento assumiu a posição campo e, próximo às 19h, o juiz deu o jogo
no Centro Belém e estabeleceu contato com por encerrado. Na época, as emissoras de
o RG-254. rádio comerciais eram obrigadas, por lei, a
informar, em intervalos regulares de tem-
Como o PP-VMK havia decolado às po, seu prefixo, a freqüência em que trans-
17h35 e o tempo de vôo estimado era de mitiam e sua localização, justamente para
aproximadamente 45 minutos, deveria ter poderem ser utilizadas como auxílios na
chegado às imediações do aeroporto por orientação de navegantes. E, de fato, essa
volta das 18h20. Como não chegou nos trin- foi uma das formas pelas quais o piloto e
ta minutos subseqüentes à hora prevista, foi o co-piloto tentaram localizar-se. Sintoni-
declarado pelo ACC de Belém em situação zaram o equipamento do avião na freqüên-
de “Incerteza”. Por mais que o piloto qui- cia de determinadas emissoras, mas, em
sesse esconder que estava perdido, já estava função de um fenômeno chamado “propa-
claro para todos os que haviam estabelecido gação ionosférica”, receberam sinais de ou-
contato que havia algo muito estranho com tras, que transmitiam na mesma freqüência
aquele vôo. Somente quatro horas após a das que eram procuradas, mas a partir de
decolagem, foi declarada a fase de “Perigo”. municípios muito mais distantes do que
O Centro de Belém não conseguiu con- aqueles dos quais deveriam ter recebido
tato por VHF. Soube que a aeronave não as transmissões. Além disso, essa mesma
estava recebendo marcações dos auxílios reflexão de ondas, provocada pelas condi-
de Belém e não obteve resposta a várias ções meteorológicas, fazia crer que o sinal
chamadas para a aeronave. Então, acionou vinha de uma direção (e sentido), quando,
o Sistema de Chamada Seletiva (SELCAL15) na verdade, vinha de outra. E, como se não
com sucesso e se satisfez com a informa- bastasse, muitas das rádios estavam trans- 15
Selective Calling: sistema de
mitindo o jogo de futebol e, no calor da comunicação de rádio de aero-
ção do comandante de que o vôo prosse-
emoção causada pelo incidente em campo, naves comerciais alocado a uma
guia para Santarém, muito distante da rota aeronave em particular, usando
original, inexplicavelmente. seus locutores esqueceram-se de informar
abreviatura de quatro dígitos: por
seu prefixo e todas as demais informações. exemplo, o Boeing 777-200 da
Por sua vez, a Varig também acompa- Por causa disso, a tripulação não pode se Saudi Arabian, de prefixo HZ-AKA,
nhava sua programação de vôos através de assegurar de que havia conseguido locali- tem o SELCAL PS-BF (Disponível
um setor então conhecido por “Coordena- zar o sinal esperado. Finalmente, depois de em: http://www.jetsite.com.
ção”, que, eventualmente, acionava as ae- longa busca por dados que pudessem me- br/2006/busca_terminologia.
ronaves, via sistema de comunicação de lhor orientá-los, o co-piloto consultou uma asp?termo=todos. Acesso em:
longo alcance conhecido pela sigla HF. En- carta de navegação e verificou que o rumo jul. 2006).
tretanto, naquele dia, a aeronave ultrapas- de chegada em Belém era 027 e não 270, o
sou o tempo de vôo estimado pelo piloto que confirmou com um segundo mapa.
no seu contato inicial sem que o setor res-
ponsável efetuasse qualquer chamada para Durante seus últimos trinta minutos de
alertar, informar ou auxiliar a tripulação. vôo, o RG-254 recebeu diversas marcações
de rádio emitidas continuamente por equi-
Naquele mesmo domingo, com início pamentos em terra, chamados NDB’s (Non-
marcado para as 17h, a seleção brasileira Directional Beacon), com o objetivo especí-
de futebol jogava uma partida decisiva em fico de orientar aeronaves. Esses emissores
sua classificação para a Copa do Mundo de geram também um sinal de identificação
1990, contra a seleção do Chile, no estádio em código Morse que consiste em duas ou
do Maracanã. No domingo seguinte ao do três letras, repetidas três vezes a cada 30 se-
acidente, em 10 de setembro de 1989, liam- gundos. Os pilotos do PP-VMK, esperando
se no jornal O Globo as palavras de um pi- receber o sinal de Carajás, captaram o sinal
loto a respeito do que podia ser relevante emitido em Barra do Garças, no Mato Gros-
em relação ao futebol: so. Procuraram também sinais emitidos de

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 87


Marabá, mas os receberam de Goiânia, que já havia descoberto que ele e o co-piloto ha-
emitia na mesma freqüência e cuja identifi- viam introduzido um valor errado para esse
cação em código Morse não era recebida de parâmetro de vôo. A bússola simplesmente
forma contínua. Por mais de uma vez, a fre- mostrava que o avião seguia em direção e
qüência procurada com vistas à localização sentido ajustados pelos tripulantes16.
16
A despeito de toda a oposi- foi encontrada, mas, em todos os casos, a
ção dos pilotos à divulgação do As conclusões da investigação oficial e a
origem do sinal era diferente da suposta e,
conteúdo do gravador de voz, “neutralidade” técnica
nesse caso, assim como em outros, portanto, se considerada, só poderia levar a
ocorreu um “vazamento”, pois conclusões erradas. Coincidências! O relatório final da análise do acidente
um trecho foi ao ar no programa
Em entrevista ao jornal O Globo, em 10 do vôo RG-254 apresenta os “fatores contri-
Fantástico da TV Globo em 1997. buintes”, divididos em “humano”, “mate-
Esse mesmo trecho e mais outros de setembro de 1989, o comandante do RG-
254 revelou que duas semanas antes havia rial” e “operacional”. Na primeira das três
dois podem ser encontrados na
se envolvido em pequeno acidente, em Pa- classificações, foram identificados nove fa-
Internet. A semelhança da voz em
meio digital com a da televisão e o ramaribo, no Suriname. Naquela ocasião, tores concernentes a erros cometidos pelos
fato de não haver nenhuma contes- de acordo com suas palavras, à noite, no pilotos, todos de ordem psicológica. A pes-
tação nos permitem concluir pela pátio dentro da área de manobra, a ponta quisa concluiu pela não existência de “fato-
veracidade das gravações. da asa da aeronave que conduzia raspou res materiais” e, por fim, na terceira catego-
uma escada que seria utilizada pelos ocu- ria, com sete itens, cinco foram atribuídos
pantes de uma outra aeronave que estava aos pilotos, um ao plano de vôo computa-
pousando. Afirmou também que, em con- dorizado e outro à falta de um contato por
seqüência das pressões que a Varig vinha rádio por parte da coordenação de vôo da
exercendo sobre os pilotos, ficou receoso Varig. Em suma, de um total de dezesseis
quanto à possibilidade de a companhia vir “fatores contribuintes”, concluiu-se que
a demiti-lo caso revelasse novo problema, quatorze correspondiam à forma de pensar
dessa vez, o de um avião perdido entre Ma- ou de agir dos pilotos. Os outros dois fo-
rabá e Belém. Teria sido esta a razão pela ram atribuídos à Varig, um pela má repre-
qual havia tentado a todo o custo resolver o sentação do rumo magnético (com quatro
problema sozinho. Porém, o que ele não sa- dígitos em vez de três) e outro pela falta de
bia é que vários eventos, os quais individu- contato com os pilotos mesmo após o signi-
almente poderiam ser considerados insig- ficativo atraso do pouso em Belém. Todos
nificantes, se combinariam de tal maneira os “fatores contribuintes” são apresentados
que ele e seu co-piloto, sem alternativa, associados a quem os originou, isto é, aos
acabariam sendo obrigados a efetuar ma- pilotos ou à Varig. Dessa forma, o CENIPA
nobra inusitada para um Boeing 727. Para expede o certificado de posse das obras
aquele gigante automatizado, não existiam (causas) a seus obreiros (culpados).
instruções a respeito de procedimento tão É digno de nota mencionar que um
excepcional quanto uma tentativa de pou- exemplar do relatório encontra-se integral-
so controlado sobre as copas das imensas mente anexado ao processo iniciado pelo
árvores amazônicas. Ministério Público Federal contra o piloto
O pouso forçado na floresta amazôni- e o co-piloto17. Portanto, como se vê, ape-
17
O Ministério Público Federal sar do esforço para ser apenas “técnico”,
(MPF) de São Paulo apresentou
ca ocorreu em São José do Xingu, estado
denúncia contra os pilotos. O juiz do Mato Grosso, a 1.100 quilômetros do leia-se “neutro”, o conteúdo do relatório é
federal de São Paulo que recebeu destino pretendido. O desconhecimento apropriado até mesmo pelos tribunais, sen-
a denúncia declarou a incompe- sobre sua rota era tal que o avião só foi lo- do traduzido (ou traído!) de acordo com os
tência de sua Seção para julgar o calizado cerca de 44 horas após o acidente. objetivos de quem o cita. Suas conclusões
caso e o encaminhou a seu colega Dentre os 54 ocupantes, 12 faleceram, 17 foram utilizadas como argumentos tanto
do Mato Grosso, que a acatou. O ficaram gravemente feridos e 25 tiveram pela defesa quanto pela acusação no pro-
processo é o de nº 91.1227-0, da cesso judicial movido contra o piloto e co-
ferimentos leves.
Justiça Federal, Seção Judiciária de
piloto. Foi também utilizado pelos próprios
Mato Grosso. Os diálogos registrados na caixa-preta juízes em suas decisões.
revelam a dramaticidade dos últimos mo-
mentos antes do impacto do pouso for- Apesar da insistência do CENIPA na
çado. Ao comunicar aos passageiros que “neutralidade” de seu relatório final, a teo-
havia ocorrido uma pane dos sistemas de ria ator-rede nos fornece subsídios para
bússola, o piloto dava a entender que o(s) afirmar que ela não é possível. Primeira-
problema(s) era(m) técnico(s). Mas, ao res- mente, porque a neutralidade faria supor
ponder a um colega de profissão da mesma uma separação apriorística entre o técnico
companhia, foi evasivo, afirmando que a e o social. Mais ainda, a suposta “neutrali-
bússola indicava uma proa diferente da de dade” também fica em xeque pelo fato de
Belém, e omitiu que, embora tardiamente, que o órgão não tem controle sobre as apro-

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priações do seu texto por advogados, promo- envolveu o primeiro da nova geração do
tores e juízes. E estes últimos são produto- altamente computadorizado avião ‘fly-
res de textos jurídicos que têm efeito social, by-wire’, o Airbus A320, um dos quais se
isto é, sobre a vida das pessoas. O CENIPA chocou contra um terreno montanhoso
após uma descida rápida demais, à noite,
não tem como separar o “técnico” do poli-
com mau tempo, no Aeroporto de Stras-
cial e do jurídico. Ironia, neste caso, é que as bourg-Entzheim. (...) a hipótese central
autoridades aeronáuticas insistem em infor- dos investigadores é de que o piloto e o
mar que existe uma clara divisão entre seus co-piloto, ambos mortos no acidente, po-
órgãos ou procedimentos. Há os que podem dem ter tentado instruir o sistema de con-
punir (Inquérito Administrativo) e os que trole-de-vôo para que efetuasse a descida
não o fazem em hipótese alguma (CENIPA). a um ângulo suave de 3,3º mas, por enga-
Mas é com base no que conclui o segundo no, instruíram-no a descer à taxa extrema-
que a justiça criminal condena. mente elevada de 3300 pés por minuto.

Reducionismo para culpar versus desva- As causas de acidentes são pesquisadas


necimento de fronteiras para aprender na busca de explicação linear, seqüencial,
com fronteiras bem definidas. Os investi-
Ao longo dos processos tradicionais de gadores usam sistematicamente forma as-
identificação de causas e da conseqüente simétrica de analisar fatores, atribuindo
atribuição de culpas, os atores da rede que diferentes graus de influência a cada um
mantinha o vôo funcionando tornam-se deles, dividindo-os em humanos e técni-
partes estanques umas em relação às ou-
cos. Mackenzie (1996, p. 202) acrescenta
tras e se envolvem em controvérsias, em
de forma esclarecedora:
um esforço de se livrarem da imputação de
penas. Nos casos em que houve falha na in- Essas disputas de atribuição de culpa
teração entre o humano e a máquina, esses turvam aquele que é tipicamente o ponto
contraditórios procuram estabelecer fron- chave. Muitos dos sistemas envolvendo
computadores, que sejam críticos quanto à
teira entre “fatores técnicos” e “fatores hu-
sua segurança, baseiam seu funcionamen-
manos”, procuram estabelecer traçado que
to seguro na correção do comportamento
exclua cada um dos oponentes da “área de tanto de seus componentes técnicos quan-
culpa”. Essa preocupação leva cada parte a to de seus componentes humanos. Assim
excluir algumas das causas ou a lhes atri- como a falha de componentes técnicos é
buir gradações de importância, dando ên- tipicamente esperada como uma contin-
fase às que lhes convêm, o que pode fazer gência previsível (contra a qual se criam
com que se deixe de identificar algumas defesas duplicando ou triplicando suas
delas. Por outro lado, as causas eleitas pe- partes chave), a falha humana também
los contenciosos são minuciosamente ana- deveria ser esperada e, tanto quanto pos-
sível, permitida.
lisadas e discutidas.
O acidente brasileiro de 1989 com o Em um vôo estão associados os pas-
Boeing 737-200 tem semelhanças extra- sageiros, a empresa de aviação e o Estado
ordinárias com o acidente ocorrido em (por meio de regulação e infra-estrutura).
1992, na França, envolvendo um A320 da O avião e os tripulantes são parte da em-
Airbus, no qual parece também ter havido presa de aviação. A empresa construtora
problema de interação entre o homem e a da aeronave está associada à aeronave até
máquina e não de mau funcionamento de pela forma como a denomina: um Boeing,
algum equipamento. No caso francês, o jato um Airbus etc. Assim, um passageiro voa
chocou-se contra uma montanha quando num Boeing da Varig, uma empresa que
efetuava os procedimentos de aproxima- “prima pela segurança, tem ótimos pilotos,
ção do aeroporto à noite. A provável causa e efetua serviços de manutenção em aero-
foi a introdução de um valor errado pelos naves estrangeiras em solo brasileiro”18. E
se um piloto da Varig falhar? Afinal, quem
18
Entrevista pessoal concedida em
pilotos nos sistemas computadorizados do
19 de setembro de 2003.
avião. A descrição de Mackenzie (1996, p. voa? Latour (1999, p. 221-222) surpreende
204) evidencia as semelhanças com o aci- a este respeito ao afirmar que:
dente do RG-254: os artefatos reais são sempre partes de
Incidentes aéreos também são casos em instituições, hesitantes em sua condição
que tipicamente não há evidência de mau mista de mediadores, a mobilizar terras
funcionamento técnico, mas onde os pro- e povos remotos, prontos a transformar-
blemas parecem advir da interação do se em pessoas ou coisas, sem saber se são
humano com um sistema automatizado. compostos de um ou de muitos, de uma
O mais recente desses acidentes foi foco caixa-preta equivalente a uma unidade ou
de intenso e minucioso exame porque de um labirinto que oculta multiplicida-

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des (MACKENZIE, 1990). Os Boeings 747 no acidente, “nada há a fazer”. Se sobrevi-
não voam, são as linhas aéreas que voam. veu e foi eliminado da aviação, o “mal foi
O fato de haver uma rede sustentando sanado” e, de novo, nada mais há a fazer
a execução do vôo não implica na diluição ou aprender. Especificamente sobre o pi-
da responsabilidade e, portanto, que não se loto, na semana do acidente, o jornalista
deva punir ninguém por princípio. Ao con- Franklin Martins afirmou, em tom de re-
trário, todos devem assumir sua responsa- preensão, pelo Sistema Brasileiro de Tele-
bilidade perante a sociedade e responder visão (SBT):
por seus erros. As diversas causas devem O Ministério da Aeronáutica podia ado-
ser entendidas de forma sistêmica, com en- tar uma providência, mandar incluir no
foque na interdependência entre os compo- currículo das escolas que formam pilotos,
nentes do sistema e na interação entre as fa- uma nova matéria: humildade. Quando
lhas. Em suas conclusões do capítulo sobre um piloto se sentir perdido lá em cima
com um avião de passageiros, o melhor é
morte acidental relacionada a computador,
reconhecer o erro, dar a mão à palmatória
Mackenzie (1996, p. 210) afirma que: e pedir socorro. Afinal, modéstia e água-
Mortes acidentais relacionadas com com- benta nunca fizeram mal a ninguém.
putador parecem ser causadas mais por
interações de fatores técnicos e cogniti-
O CENIPA declara que “é da análise
vos/organizacionais do que apenas por técnico-científica de um acidente ou inci-
fatores técnicos; acidentes relacionados dente aeronáutico que se retiram valiosos
com computador podem, portanto, fre- ensinamentos” e que “esse aprendizado,
qüentemente ser melhor entendidos como transformado em linguagem apropriada, é
acidentes de sistema. traduzido em Recomendações de Seguran-
Vale a pena apontar uma aparente con- ça”. Porém, vale a pena abordar sociotecni-
tradição na lógica corrente do alcance das camente como se constitui a absoluta con-
investigações. Se, por exemplo, um piloto fiabilidade da análise técnico-científica na
arremessa propositalmente um avião con- medida em que seus resultados são tidos
tra um edifício, parece não haver o que dis- como “neutros” e “objetivos”. Bruno Latour
cutir. Não é óbvio que a culpa é do piloto? (1987) esclarece-o quando, ao referir-se ao
Pouco há que se investigar, além do fato trabalho de cientistas e engenheiros, mos-
de seus problemas psicológicos não terem tra que “Natureza” e “Ciência” só podem
sido identificados a tempo. No entanto, no ser compreendidas como construções,
caso da tragédia do World Trade Center, como resultados de longos embates ocor-
parte da complexidade do sistema de avia- ridos em meio a inúmeras controvérsias.
ção foi claramente apontada. Os aeropor- Somente quando elas se encerram, graças
tos, por exemplo, foram destacados como à mobilização de inúmeros aliados na for-
parte do sistema e as falhas em sua segu- mação de uma rede cujas relações sejam
rança emergiram na discussão com conse- fortes o suficiente para consolidarem-na
qüências em todo o mundo. Pouco se falou e manterem-na estável, é que a “verdade
dos pilotos que tomaram as aeronaves de científica” se estabelece. Mais especifica-
assalto e as conduziram contra os prédios. mente, Latour (1987, p. 258) propõe duas
Por outro lado, nesse caso emblemático, as regras metodológicas a respeito de Nature-
relações “institucionais” da organização za e Sociedade:
terrorista com seus “pilotos” (clandestinos) Como a solução de uma controvérsia é a
foram amplamente explicitadas. E as in- causa da representação da Natureza, e não
vestigações tiveram abrangência suficiente sua conseqüência, nunca podemos utili-
para alcançar outro continente, onde pos- zar essa conseqüência para explicar como
sivelmente estava a pessoa apontada como e por que uma controvérsia foi resolvida.
Como a solução de uma controvérsia é a
responsável pelo evento.
causa da estabilidade da sociedade, não
Enquanto o aprendizado coletiviza, a podemos usar a sociedade para explicar
acusação individualiza. O estabelecimento como e por que uma controvérsia foi diri-
de fronteiras bem definidas entre “fatores mida. Devemos considerar simetricamen-
te os esforços para alistar recursos huma-
humanos” e “fatores materiais (ou técni-
nos e não-humanos.
cos)” e a atribuição de culpa exclusiva-
mente ao(s) piloto(s) constituem uma forte Ao refletirmos sobre essas regras, aper-
ameaça à oportunidade de aprendizado, cebemo-nos de que, ao contrário do que
isto é, de obtenção de condições de maior Latour adverte e de acordo com nossa for-
segurança na aviação. Com base nessa di- mação tradicional, tem-se a impressão de
visão, se o piloto foi “o culpado” e morreu que a natureza é a causa óbvia da conclu-

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são a que chegam os cientistas. Dessa for- tos”. Envolvem hibridismo, relações (e não
ma, não notamos que suas representações, apenas actantes), forma de pensar (atitude)
que nos vão sendo transmitidas ao longo diante da assunção de que os sistemas, ine-
da vida, uma vez assimiladas, passam a ser vitavelmente, sofrerão acidentes em decor-
percebidas como uma “essência”, algo que rência de interações inesperadas entre seus
sempre existiu, mas que apenas ainda não componentes, desconstrução de fronteiras,
havia sido descoberto ou inventado pelo relativização da “certeza obtida cientifica-
cientista/engenheiro. É assim que funciona mente”, impossibilidade de neutralidade (a
o senso comum: entendemos que há uma despeito da busca da imparcialidade). São
natureza e que ela é aquilo que os cientis- um chamado à adoção de visão muito mais
tas conseguem exprimir. A Ciência, por sua ampla do que a preconizada pelas normas
vez, baseia-se nas leis dessa natureza. E, se de investigação. Nesse sentido, parece-nos
é a Ciência que vai explicar quais foram as que os clamores de aproximadamente vinte
causas de um acidente, então, aos cientis- anos atrás de pouco ou nada adiantaram.
tas – no caso, técnicos e engenheiros espe-
cialistas – é concedido todo o poder. Em depoimento no inquérito adminis-
trativo, outro piloto da Varig, enumerou
Mas não é difícil compreender o que “fatores causais” relacionados com ques-
diz Latour quando se acompanha a marcha tões administrativas da Varig como a pre-
das investigações, ao longo das quais sur- valência da Diretoria de Tráfego sobre a
gem várias controvérsias. Para superá-las, Diretoria de Operações, exercendo pressão
são construídos argumentos baseados em para que o piloto cumprisse o horário “a
“fatos científicos” e em representações pro- qualquer preço”. Um de seus colegas re-
duzidas por instrumentos. Esse processo se forçou esses alertas declarando também
desenvolve até que não haja mais nenhum ao DAC que considerava um dos “fatores
ataque a uma determinada formulação principais” o modo como a empresa vinha
sobre as causas do acidente que, por isso estabelecendo a jornada de trabalho de
mesmo, se torna sua explicação formal. seus pilotos. Em carta do SNA ao CENIPA,
Essa descrição oficial é elaborada por meio um comandante, Diretor de Segurança de
de um esforço monumental, mas, ao final, Vôo do sindicato à época do acidente, es-
ela própria é assimilada como a causa do clarece que o comportamento individual
término das controvérsias. Por que hoje dos pilotos ocorre “dentro de um contex-
não se questionam as causas da queda do to organizacional”, em um clima criado e
PP-VMK? Porque, acredita-se, a causa fez
afetado pelas ações e decisões de outros
terminarem as discussões.
indivíduos. O missivista refere-se ainda à
Este texto não pretende “reabrir” o caso, necessidade e, muitas vezes, à dificuldade
mas quer, sim, questionar o modo de pen- de se investigar os procedimentos adota-
sar e de interpretar convenções internacio- dos pela administração de uma companhia
nais e, a partir daí, mostrar a necessidade aérea envolvida em um acidente de avião.
de se discutir e avaliar o arcabouço teórico, Questiona se o que está escrito correspon-
o enfoque utilizado, os métodos e a estru- de ao que é executado e, por fim, chama a
turação organizacional da rede incumbida atenção para o fato de que, nos meses que
de investigar cada caso. Quer instigar es- antecederam o acidente, alguns pilotos co-
pecialistas a identificarem a necessidade meteram o mesmo engano, o de interpretar
de adoção de mudanças na sistematização erroneamente o Rumo Magnético tendo,
das investigações de acidentes aéreos (e porém, corrigido o erro, e conclui:
outros envolvendo sistemas complexos) e
Como se pode observar das questões aqui
a implementarem processos mais sociotéc- levantadas, a investigação se limitou até
nicos, inclusive analisando e pesquisando o momento em delinear basicamente as
um recorte da rede que mantém o sistema causas do acidente sem, contudo, fazer
em funcionamento tão amplo quanto a via- uma análise mais profunda dos fatores
bilidade e a objetividade o permitam. contribuintes que já estavam presentes
em uma forma latente.
Por fim, insiste em reafirmar que o con-
ceito de “multicausalidade” não pode e não Esse comandante, especializado em se-
deve ser usado como um “saco-de-gatos”, gurança de vôo, problematizava não só as
um “termo coringa” que fundamenta todo fronteiras da Varig, mas também os limites
o processo de investigação. Todos os ele- temporais, pois as investigações iniciavam-
mentos metodológicos aqui apresentados se a partir da decolagem de Marabá quan-
e sugeridos se relacionam com o conceito do, para investigar riscos latentes, seria
de “mais do que um e menos do que mui- necessário recuar no tempo. É certo que a

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verificação da manutenção da aeronave e A interface humano-máquina
da aptidão dos pilotos também faz parte da
Os computadores dos aviões dotados
investigação, mas, para isso, basta consul-
de sistemas de navegação automatizados
tar certificados no presente.
são alimentados com os parâmetros neces-
A questão vai ainda mais longe do que sários à realização do vôo. A introdução
perguntar se, na prática, “fatores contri- desses dados cabe aos pilotos e, por isso,
buintes” múltiplos são perseguidos: como eles costumam dizer que “voam números”.
deve ser feito o recorte da rede? Na medida Por serem profissionais altamente qualifi-
em que cada “fator contribuinte” identi- cados – quiçá não será demasiado consi-
ficado pode ter diversas causas para sua derá-los gerenciadores de sistemas –, recai
ocorrência, até que nível de detalhe a in- sobre eles a responsabilidade de garantir a
vestigação deve descer? Obviamente, não qualidade da “conexão” entre o computa-
propomos buscas de razões numa cadeia dor que gera os dados da viagem, localiza-
interminável de relações, uma “hemorra- do na sede da companhia aérea, e o com-
gia” interminável. A Associação de Pilo- putador de bordo. Podemos ir mais longe
tos da Varig (APVAR) reivindicava que se e afirmar que os pilotos são essa conexão
aprofundasse a análise da cadeia causal e, por isso, não se admite que errem. Mas,
até o nível do funcionamento interno da
eventualmente, eles erram.
companhia aérea e que os resultados da
investigação pudessem tornar a fiscaliza- A automação do vôo introduziu os pi-
ção sobre a Varig mais efetiva de modo a lotos na era da informação. O vôo é coman-
evitar que fossem criadas condições que, dado por computador e o piloto não mais
em conjunto com suas conseqüências, se insere heroicamente no meio em que o
pudessem resultar em acidentes. Se a pes- avião se desloca, de forma que, ao contrá-
quisa do que ocorreu entre o momento em rio dos pioneiros da aviação, não precisa
que os tripulantes assumiram a aeronave mais usar casaco de couro nem gorro, não
e o momento em que o acidente ocorreu sente cheiro de óleo lubrificante nem de
permite extrair ensinamentos, é impor- combustível queimado. O comandante e
tante, ao mesmo tempo, verificar outras o co-piloto realizam poucos (ou nenhum)
possibilidades de aprendizado através dos movimentos com manches e manetes e,
eventos dessa cadeia causal (e que por ve- em algumas aeronaves – produzidas pela
zes antecedem, e muito, o episódio do aci- Airbus, por exemplo –, esses ingredientes
dente), como, por exemplo, a de encontrar de trabalho “braçal” sequer existem, subs-
evidências de problemas nas relações da tituídos que foram por pequenas alavan-
companhia que realiza o vôo. cas semelhantes aos joysticks para jogos
Por sua vez, o fabricante do avião, a de computador.
Boeing, em seu sítio sobre segurança de Em seu livro Knowing Machines, Do-
jatos comerciais, explica que é necessário nald Mackenzie (1996) problematiza a esse
um enfoque mais pró-ativo, pois os dados
respeito:
sobre “eventos operacionais” são limita-
dos, o que restringe o aprendizado quanto a informatização traz benefícios inegá-
à melhoria das operações de vôo. Ainda se- veis, mas certamente há riscos também.
gundo a empresa, é difícil obter dados cri- Que evidências existem sobre esses ris-
cos? Qual é sua natureza? (p. 4)
teriosos em um sistema de aviação caso se
esteja focado apenas em atribuição de res- Em um dos capítulos desse livro, seu
ponsabilidades. Tripulantes de vôo e pes- objetivo é indicar o que pode estar envolvi-
soal de manutenção – prossegue a Boeing do numa investigação empírica de aciden-
– são freqüentemente responsabilizados tes fatais envolvendo sistemas de compu-
de forma indevida porque são a última li- tador partindo do princípio de que muitos
nha de defesa quando surgem condições dos riscos associados ao computador têm
de insegurança. Por fim, a multinacional a ver com a relação homem-máquina. Por
conclui que é preciso superar a cultura da isso mesmo, Mackenzie (1996) desconfia
“culpa” e encorajar todos os envolvidos em do excessivo tecnicismo de boa parte da in-
operações de vôo a relatar qualquer inci- vestigação de acidentes.
dente, além de encorajar a comunidade
de aviação para que continue a promover Em seus estudos, além do interesse no
e a implementar programas de relato não comportamento errado e não desejado de
punitivos voltados à coleta e à análise de sistemas de computador, estão incluídos
informação sobre segurança na aviação. casos em que:

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(...) Não há erro técnico evidente, mas pessoal de funcionamento sem falhas no
houve um enguiço ou erro na interação do equipamento automatizado de vôo, pilo-
homem com a máquina. (p. 188) tos começarem a acreditar demais nesse
equipamento e depois falharem na verifi-
No caso do piloto e dos co-pilotos do Vôo cação de outras informações que lhes es-
254, se utilizado o critério de Mackenzie tejam disponíveis.
(1996), ocorreu um problema típico de inte-
ração com a máquina. O autor inclui, dentre Diversos sistemas integrados foram
os acidentes relacionados com computador, propostos ou projetados para situações em
aqueles nos quais a: que um humano precisa ser considerado
como parte necessária da operação. Nesses
(...) Falsa confiança em sistemas de com-
casos, a interface humano-máquina é um
putador ou entendimentos equivocados
sobre eles parecem ter sido os fatores do- componente crítico do sistema. Esses siste-
minantes dentre os que levaram operado- mas tipicamente geram mais dados do que
res a adotar ou persistir em cursos de ação um humano é capaz de assimilar numa si-
que, se não fosse por esses fatores, teriam tuação de tempo crítico. Portanto, os prin-
abandonado ou evitado. (p. 188) cipais requisitos da interface referem-se à
A convicção do comandante de que apresentação de dados de forma a serem
estava no rumo certo foi manifestada por facilmente entendidos e providos através
seu pedido de permissão para pousar em da interação com o sistema.
Belém, quando estava a centenas de qui- Aprender com os acidentes
lômetros do Val-de-Cans, o aeroporto in-
ternacional daquela cidade. O fato de não Qual foi a causa “primária” desse aci-
terem sido efetuados procedimentos de dente? A redução de custos da empresa e
verificação da rota com base em mapas de a pressão que estava exercendo sobre seus
navegação caracteriza a confiança exces- pilotos? O plano de vôo? O ajuste errado
siva no sistema de computador do avião. do rumo magnético pelos pilotos? O jogo
Acrescente-se ainda o fato de que foi a re- de futebol? O incidente no jogo? A falta de
presentação inadequada do rumo magnéti- providências dos operadores de Belém? A
co no plano de vôo impresso pelos compu- omissão do pessoal de apoio da Varig? O
tadores da Varig que ocasionou um engano não cumprimento da legislação pelas emis-
sobre o valor a ser ajustado no sistema de soras comerciais de rádio? A propagação
navegação do avião, por sinal “um siste- ionosférica que fez com que ondas transmi-
ma ou dispositivo eletrônico programável” tidas por essas rádios comerciais, a grande
(MACKENZIE, 1996, p. 187). distância, fossem recebidas? A coincidên-
cia de freqüências entre os pontos referen-
O excesso de confiança dos pilotos nos
ciais fixos, no solo, procurados na rota e
sistemas automatizados pode fazer com
que deixem de executar procedimentos outros muito distantes? A não existência
obrigatórios de verificação. Diante da re- do trecho Marabá-Belém nas cartas de na-
petição de operações bem-sucedidas con- vegação de alta altitude?
troladas pelo computador, pode-se acabar A forma como o conceito de multicau-
reduzindo ou negligenciando os procedi- salidade continua sendo entendido poderia
mentos de verificação. Mackenzie (1996, fazer parecer óbvia a resposta de que todos
p. 211) exemplifica: esses foram “fatores contribuintes” para
(...) À medida que a informatização se a ocorrência do acidente. Mas, de acordo
torna mais intensa, sistemas altamente com Charles Perrow (1999), a melhor res-
automatizados tornam-se cada vez mais posta a essas perguntas não é “tudo isso”. É
básicos. O controle humano, na condição menos uma soma, ou uma seqüência lógica
de último passo de uma cadeia – tal como de causas, e muito mais uma justaposição
a decisão humana de ativar o disparo de
um sistema automatizado de armas –,
imprevista e indeterminada de incidentes.
está atualmente sob a responsabilidade, A possibilidade de ocorrência de interações
na maioria dos casos, de sistemas desse complexas entre as falhas e a forte interde-
tipo. Mas os seres humanos responsáveis pendência dos componentes do sistema de
por esses sistemas podem ter perdido aviação apontam para a existência de res-
os benefícios cognitivos intangíveis que postas que permitem um aprendizado mais
advêm de terem que constantemente in-
abrangente e eficaz. As interações impre-
tegrar e entender os dados que recebem.
Em tal situação, o perigo pode vir tanto
vistas são, também, uma característica dos
do estresse quanto da rotina. (...) Nem de- sistemas complexos e ocorrem tanto entre
veríamos nos surpreender se, após cente- humanos e não-humanos quanto entre ele-
nas ou milhares de horas de experiência mentos de cada um desses conjuntos.

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Se a causa do desvio do rumo fosse to a partir do acidente de forma a otimizar
uma “pane geral do sistema de navegação”, as medidas preventivas e compensatórias
como alegou inicialmente o piloto em sua existentes, assim como desenvolver novas
conversa com o comandante que estava e melhores medidas quando necessário.
a bordo de outro vôo da Varig, o RG-231, Procuramos analisar os processos de inves-
pousado no aeroporto de Santarém, então tigação de causas e os de atribuição de cul-
estaria caracterizada uma “falha técnica”. pa com o objetivo de mostrar quão difíceis
Porém, eis a questão, a divisão entre “falha são a separação em “fatores” e o empenho
humana” e “falha técnica” emerge de uma em encontrar “culpados”. Seguimos aqui
separação extraordinariamente problemá- as lições de Sheila Jasanoff (1994, p. xi):
tica entre ciência e sociedade, que a an-
(...) para romper com hábitos retrospec-
tecede e é mais abrangente. Em verdade, tivos de pensamento que acidentes e in-
trata-se de uma separação que, sob as mais fortúnios tão freqüentemente produzem:
diversas formas, já se encontra arraigada parar de perguntar o que causou a tra-
no senso comum, tanto que, ao desembar- gédia ou a quem culpar, e considerar, ao
car no Rio de Janeiro, após o resgate dos invés disso, como seres humanos e suas
sobreviventes, uma das comissárias de instituições com pré-disposição a falhas
bordo declarou a um repórter da emissora podem aprender a fazer melhor. Mirar à
de televisão do Sistema Brasileiro de Tele- frente, segundo esta orientação, demanda
obviamente que se tenha primeiramente
visão (SBT):
olhado para trás; eventos passados têm
Se não foi falha humana, que eu acredito que ser dotados de significado e receber
que não tenha sido, só pode ter sido falha estruturas causais antes que se possam ti-
técnica e eu não sei que tipo de falha foi. rar deles lições persuasivas sobre o futuro
Não gostaria de comentar isso. Eu só sei (...). O propósito desses relatos, contudo,
dizer que o comandante fez o que ele ti- não é fixar responsabilidade pela conjun-
nha de melhor para fazer. ção de falhas (...)

Em entrevista apresentada no mesmo Esse aprendizado não é apenas indi-


noticiário, o Chefe do Estado Maior da Ae- vidual, é coletivo. Não é apenas técnico,
ronáutica, à época do acidente, reiterou a é sociotécnico. Podem aprender as insti-
mesma divisão de mundo ao declarar, con- tuições, as pessoas e as técnicas. Pode-se
victa e peremptoriamente: igualmente aprender sobre as relações que
Falha material ou falha humana. Esses
se estabelecem entre instituições, entre
são os dois fatores que contribuem para pessoas, entre técnicas e entre instituições,
o acidente aeronáutico. Às vezes os dois pessoas e técnicas – antes e depois dos aci-
simultaneamente. dentes. Como exemplo, tome-se o acidente
em que os pilotos deixaram de efetuar um
Dessa forma, o Estado, por meio de sua
procedimento necessário e um dispositivo
autoridade máxima no assunto, afirmou a
de segurança do avião deixou de atuar. Em
existência de uma rígida e bem definida
31 de agosto de 1988, em Dallas, no Fort
fronteira entre o humano e o maquinal.
Worth International Airport (DWF), um
O que se aprendeu com o acidente? Que 727-232 da Delta caiu ao decolar porque
necessidades de mudanças ficaram caracte- os flapes não foram devidamente posicio-
rizadas após o acidente com o PP-VMK da nados. O sistema de alarme na decolagem
Varig? Algumas das respostas poderiam ser não se ativou provavelmente por causa de
encontradas a partir de mudanças da legis- alguma chave defeituosa. Onze passageiros
lação, das políticas públicas, dos processos e duas comissárias morreram e a aeronave
organizacionais das empresas de aviação sofreu perda total. O National Transporta-
e das formas de organização das vítimas. tion Safety Board (NTSB), o órgão governa-
19
Disponível em: http://www.airli- Analisam-se as cadeias causais porque um mental norte-americano de investigação de
nesafety.com/editorials/editorial3. dos aspectos do aprendizado consiste em se acidentes, afirmou:
htm. Acesso em: ago. 2003. poder evitar que ao menos o encadeamento Contribuíram para o acidente a lenta im-
identificado se repita em uma outra situa- plementação pela Delta das modificações
20
Federal Aviation Administration: ção (embora, como já vimos, a “normali- necessárias em seus procedimentos ope-
a FAA tem por objetivo prover um dade” dos acidentes preveja o permanente racionais, manuais, checklists, programas
sistema aeroespacial global seguro
surgimento de novas e imprevistas cadeias de treinamento e verificação de tripulan-
e eficiente que contribua com a
causais em sistemas complexos e de forte tes, exigidos por mudanças significativas
defesa nacional e a promoção da
acoplamento). Com base no aprendizado, naquela companhia aérea...19
segurança aeroespacial dos EUA.
Disponível em: http://www1.faa. devem ser promovidas mudanças nas con- Contribuíram para o acidente a falta de
gov/aboutfaa/Mission.cfm. Acesso dições que propiciaram a ocorrência do ação suficientemente agressiva da FAA20
em: ago. 2003. acidente. É preciso produzir conhecimen- para fazer com que deficiências conheci-

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das fossem corrigidas pela Delta e a insu- A Organização de Aviação Civil Inter-
ficiência de transparência no âmbito do nacional (OACI) define CRM como:
processo de inspeção de empresas aéreas
pela FAA.21 o uso efetivo de todos os recursos disponí-
veis, isto é, equipamento, procedimentos 21
Disponível em: http://www.airli-
Retornando ao acidente do RG-254, e pessoas, para atingir operações do vôo nesafety.com/editorials/editorial3.
como explicar – e não justificar – o com- seguras e eficientes. htm. Acesso em: ago. 2003.
portamento do piloto (considerado bas-
A Federal Aviation Administration
tante atípico e causador de reações hostis (FAA) acrescenta:
como a de parte expressiva da imprensa)?
Se estivéssemos diante de um caso caracte- O treinamento de CRM foi concebido para
rizado como “falha técnica”, talvez a tarefa prevenir acidentes por meio da melhora
do desempenho da tripulação, por meio
se mostrasse menos complexa e delicada.
de sua melhor coordenação.
Mas, ao contrário, a investigação de aci-
dentes tende cada vez mais a superestimar O CRM foi criado por especialistas em
o funcionamento adequado das máquinas, “Fatores Humanos”, dentre os quais John
ou seja, a desconsiderar “fatores técnicos” Lauber, Bob Helmreich e Clay Foushee.
e, portanto, a classificar acidentes como ca- Reinhert (1994) afirma que, de acordo com
sos típicos de “falha humana”. a OACI, fatores humanos são:
Sheila Jasanoff (1994, p. 2) apresentou (...) essencialmente um campo multi-
crítica contundente a este respeito. O texto disciplinar, que inclui, dentre outros:
engenharia, psicologia, fisiologia, medi-
abaixo da autora foi refeito substituindo-
cina, sociologia e antropometria (...). Isso
se as palavras originais pelas palavras em inclui comportamento e desempenho
destaque de forma a melhor discutir o caso humano, tomada de decisão e outros pro-
do vôo RG-254 (enquadrado como caso de cessos cognitivos, o projeto de controles
“falha humana”): e displays (...)

As políticas corretivas têm que ser endere- A OACI adotou o modelo SHELL para
çadas não apenas à formação e ao treina- explicar o relacionamento entre essas di-
mento do piloto, mas também (na verdade, versas disciplinas. Esse modelo explicita o
talvez ainda mais) às práticas humanas e trinômio mente-máquina-meio, clássico na
pressuposições que determinam seu ge-
aviação. A sigla é composta das iniciais de:
renciamento e condições de trabalho. Vis-
to dessa perspectiva, um grave erro huma- Software (procedimentos, simbologia etc.),
no deixa de ser meramente acidental, uma Hardware (maquinário, equipamento etc.),
vez que abre janelas sobre fraquezas ante- Environment (ambiente interno e externo)
riormente insuspeitas na rede a que o pi- e Liveware (elemento humano). As rela-
loto pertence e que mantém o vôo RG-254. ções consideradas no modelo se referem
Esforços para explicar o que saiu errado e, às interfaces LH (Liveware-Hardware), LS
mais especialmente, para encontrar medi- (Liveware-Software), LL (Liveware-Livewa-
das de prevenção conduzem a uma crítica re), e LE (Liveware-Environment). Segundo
social mais ampla; ao buscarmos entender
Reinhart (1994): “todos os elementos de fa-
os erros de nossos pilotos, simultaneamen-
te aprofundamos nosso entendimento das tores humanos e CRM podem ser expressos
sociedades que habitamos (e da Varig). considerando-se essas interações” (Figura
1). O Liveware representa os operadores
Portanto, para se aprender com o com- humanos no sistema de aviação. Qualquer
portamento do piloto, as investigações de- pessoa desempenhando um papel na exe-
veriam se aprofundar na análise das rela- cução de um vôo é considerada Liveware.
ções do piloto com a Varig, com os demais O anel externo é composto por todas as
tripulantes, com a diretoria de vôo, com a pessoas com as quais um indivíduo dentro
diretoria de operações, enfim, com tudo e do sistema interage. Para um piloto, pode-
todos que trabalhavam para manter o vôo ria incluir os controladores de tráfego aé-
RG-254 funcionando. reo, despachantes, outros membros da tri-
O CRM (Crew Resource Management) e o pulação, pilotos de outras aeronaves e até
modelo SHELL passageiros. O anel interno representa um
piloto individual no sistema de aviação.
Criado na década de 70, quando en- Esta é a parte mais importante do mode-
tão a sigla representava Cockpit Resources lo e, por isso, é o centro focal de todos os
Management, o CRM foi apresentado como outros aspectos do SHELL. Algumas das
um programa que “veio preencher uma la- variáveis dessa categoria são: saúdes física
cuna nos esforços para a prevenção de aci- e mental, educação, nível de treinamento e
dentes aeronáuticos”. processos de tomada de decisão.

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H ARDWARE

S OFTWARE L IVEWARE E NVIRONMENT

L IVEWARE
Figura 1 Representação das relações do modelo SHELL.

da máquina, embora essa fronteira seja


Por sua vez, se levada em conta a abor-
imprecisa, caso se pense a questão a partir
dagem sociotécnica, a rede de relações en-
do conceito de cyborg. Uma desvantagem
tre os atores (e não “fatores”) heterogêneos
do modelo SHELL reside no fato de não
é entendida como um “tecido sem costura”,
contemplar as transformações ocorridas
não se considerando nenhum deles mais em cada um dos atores em função de suas
importante ou mais determinante do que relações; parte da preexistência de cada
os demais e mostrando que são as relações um deles, atribuindo-lhes uma essência
entre esses atores, tornadas estáveis, que intrínseca. Na contramão desse modelo,
constroem um fato científico ou um ar- a abordagem sociotécnica ressalta que, na
tefato tecnológico. Nesse sentido, o olhar sala de treinamento, o piloto é um ator, di-
sociotécnico contrapõe-se à assimetria ferente daqueles que é no simulador e na
do conceito do CRM, no qual o Liveware situação real de vôo. Essa diferença decor-
exerce um papel privilegiado em relação re da natureza distinta das relações que
aos demais atores, uma vez que o modelo estabelece em cada local. Outros actantes
SHELL considera central o papel do piloto – o instrutor, o simulador e a aeronave
comandando a aeronave (Figura 1). – pertencem a redes diferentes e, portanto,
transformam o piloto quando com ele se
O modelo SHELL define fronteiras e
associam. Da mesma forma, cada um de-
privilegia o comandante e suas relações.
les é igualmente modificado por suas rela-
Introduz mais complexidades do que a di-
ções. Dito de outra forma, ninguém/nada
visão em “fatores humanos” e “fatores téc-
escapa “íntegro” de uma relação.
nicos”, mas continua separando o humano

Considerações finais
Diante do conhecimento das comple- romperam e não os atores que falharam.
xidades e interações de sistemas de alta Ao invés de se iniciar uma luta para
sofisticação sociotécnica, da “normali- salvaguardar as “partes” de culpa, iria
dade” dos acidentes e dos enredamentos se providenciar uma nova configuração
que configuram um vôo, um acidente das relações para recompor a rede, subs-
de avião poderia ser mais propriamente tituindo as relações fracas por outras,
investigado como um sintoma do rom- mais fortes, mais estáveis.
pimento de relações. Dessa forma, de- À época do acidente com o vôo RG-254,
veriam identificar-se as relações que se já havia a declaração de intenção de não

96 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007


se investigar para punir, mas ainda se luta- Em favor da cidadania, as fronteiras en-
va, no Brasil, para que não se pesquisasse tre deveres e direitos devem ser mais clara-
a (principal) causa do acidente. Há anos, o mente definidas. Referimo-nos aos deveres
conceito da existência de “múltiplos fatores das empresas aéreas e dos órgãos do Estado
contribuintes” foi adotado pelo CENIPA. Na responsáveis pelo apoio à aviação. Quanto
prática, recentemente, as declarações das aos direitos, são aqueles que dizem respei-
autoridades brasileiras relativas ao aciden- to aos cidadãos vitimados direta ou indi-
te mais grave ocorrido no Brasil, o acidente retamente por acidentes aéreos, inclusive
da Gol, em nada mudaram. os que possam fazer parte da sua cadeia
causal. Acima de tudo, é preciso respeitar
O caso estudado desvela aspectos do os direitos dos cidadãos, sejam eles víti-
reducionismo embutido na elaboração de mas entre os passageiros ou entre os fun-
lista de causas associadas a algumas pou- cionários da empresa de aviação. Quando
cas pessoas, sem a aplicação de mecanis- houver entre essas vítimas uma ou mais
mos que forcem mudanças visando à oti- pessoas que tenham feito parte da cadeia
mização das relações entre os actantes do causal que levou ao colapso da rede, então,
sistema estudado. Essa redução parte de que se lhes atribuam as conseqüências de
conceitos estanques, fatorados. suas responsabilidades, mas não se perca
Na teoria ator-rede, cada ator é molda- de vista que elas também estão entre as
do por suas relações na rede e, portanto, vítimas do acidente. É necessário, de acor-
as divisões, a priori, mantidas até hoje, em do com Sheila Jasanoff (1994), aprender a
fatores humanos, materiais, operacionais respeito de reparação com base também no
e ambientais perdem em compreensão do que acontece após o acidente, isto é, nos
acidente e constituem, também, reduções anos posteriores.
de complexidade. Por isso mesmo, deixam As investigações devem ser estendidas,
de ser consideradas as interações comple- no mínimo, até às empresas aéreas envol-
xas do acidente “normal”. No caso estu- vidas, posto que existe uma rede, um com-
dado, cada uma das falhas, por si só, foi plexo organizacional, no qual os tripulan-
trivial, de tal forma que sua eventual ocor- tes estão imbricados. É a companhia aérea
rência seria até mesmo esperada. Todavia, que sofre o acidente e não apenas sua aero-
ocorreram interações completamente ines- nave. Portanto, parece no mínimo estranho
peradas entre elas. que as investigações não se aprofundem
Falhas imprevistas e inesperadas ense- na verificação das condições na empresa
jam acidentes inevitáveis. Essa é a chave capazes de propiciar a ocorrência de even-
para que se evite tratar pilotos/operadores tos que, associados a outros, numa cadeia
como criminosos. imprevista, produzem o acidente. Os ór-
gãos de investigação aprendem com o que
Este estudo critica a suposta “neutra- ocorreu durante a realização do vôo, mas
lidade” do CENIPA e de instituições ou Sheila Jasanoff apresenta a proposta de se
organismos encarregados da condução aprender com o que acontece após o aci-
das análises de acidentes, assim como a dente. A APVAR sugeriu que a prevenção
pretensa “objetividade” de suas descrições devesse estudar o que acontece antes dos
e das conclusões do relatório final da in- acidentes, por meio do aprendizado sobre
vestigação. A ciência não é neutra, os fatos o que ocorre nas companhias aéreas.
científicos também são construções socio-
técnicas. É importante investigar de modo Não se defende que, no limite, configu-
menos tecnicista. re-se situação paralisante, na qual, em meio
a tantas responsabilidades, resvala-se na
Cabe às autoridades brasileiras, espe- pusilanimidade, prostração e perplexida-
cialmente ao CENIPA e às demais instâncias de diante da inimputabilidade do que quer
do SIPAER, refletir a respeito da “interna- que seja. Lembrando John Law (1992) em
cionalização” da investigação e das difi- sua recorrência a metáforas matemáticas,
culdades decorrentes para estabelecer um as responsabilidades são mais que uma,
conhecimento local acerca da investigação porém menos que muitas. Pugnamos aqui
de acidentes aeronáuticos. As caixas-pre- não pela complacência, mas pela busca de
tas são levadas diretamente a laboratórios melhor enfrentamento das causas de um
internacionais, nos quais são examinadas acidente. Por melhor enfrentamento com-
à revelia dos investigadores brasileiros, fa- preendemos um melhor entendimento das
zendo desta parte da investigação também diversas falhas e da interação entre elas,
uma caixa-preta. incluindo-se aí as falhas organizacionais;

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007 97


enfim, que se procure distribuir responsa- trabalhos do CENIPA estarão envolvidas
bilidades entre as diversas entidades, hu- em contendas judiciais e, portanto, tam-
manas e não-humanas, possibilitando uma bém não são neutras.
contribuição para o melhor aprendizado e,
Apontados os erros, o que fazer? Qual
portanto, tornando mais responsável o re-
é a solução? Apontamos subsídios para
lacionamento entre humanos e máquinas.
investigação mais adequada à complexi-
Mudanças precisam e devem ser provi- dade de um acidente aéreo. Temos cons-
denciadas. É chegada a hora de o CENIPA ciência de que deixamos mais perguntas
repensar sua posição em relação aos termos do que respostas, mas entendemos que
do Anexo 13 da convenção de Chicago (con- atingimos o objetivo de apresentar uma
venção de Navegação Aérea Internacional, tentativa de enriquecer essa discussão no
em novembro de 1944). Seu relatório não meio acadêmico e, quiçá, no próprio meio
é neutro. As partes com representação nos da aviação civil.

Referências

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1987. 1994.

98 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 79-98, 2007


Contribuições da Clínica da Atividade para o campo
Maria Elizabeth Antunes Lima1 da segurança no trabalho
Clinic of Activity contributions to safety at work

1
Universidade Federal de Minas Resumo
Gerais, Brasil.
A partir da análise de um estudo realizado no setor petroleiro, em 1996, o
artigo expõe os fundamentos da Clínica da Atividade (Clinique de l’Activité)
- método de análise e compreensão do trabalho desenvolvido por Yves Clot,
na França -, trazendo uma reflexão sobre suas possíveis contribuições para o
campo da segurança no trabalho. A autora conclui que os conceitos de gênero
de atividade e estilo (genre et style professionel), propostos por Yves Clot, são
essenciais para a compreensão dos acidentes e suas causas.
Palavras-chaves: clínica da atividade, segurança no trabalho, acidentes
industriais.

Abstract
Based on the analysis of a study held at the oil sector in 1996, the article
presents the principles of the Clinic of Activity (Clinique de l’Activité) – a method
for analyzing and understanding work developed by Yves Clot in France –,
reflecting on its possible contribution to the field of safety at work. The author
concludes that the concepts of professional framework and style (genre et style
professionels) proposed by Yves Clot are essential for the comprehension of work
related accidents and its causes.
Keywords: clinic of activity, safety at work, industrial accidents.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007 99


Introdução

Inicialmente, cabe esclarecer que Clíni- sentam, no nosso entender, as contribui-


ca da Atividade é a denominação escolhida ções mais relevantes de Clot para o campo
por Yves Clot para o método desenvolvi- da segurança no trabalho.
do por ele e sua equipe no Conservatoire
Gênero e estilo de atividade5
National des Arts et Métiers (CNAM), em
Paris, onde é professor e responsável pelo Para Clot, gênero de atividade é um
Laboratório de Psicologia do Trabalho2. Por sistema de instrumentos, coletivamente
ser um teórico ainda pouco conhecido no construído e que se encontra no interior da
Brasil, tentaremos expor brevemente sua atividade individual. É uma gama de ativi-
trajetória e os conceitos centrais que com- dades encorajadas, proibidas ou interditas.
põem seu campo de atuação. Um repertório disponível que pré-organiza
2
Sobre as questões teórico-meto- Clot teve uma formação inicial em Fi- a atividade. Ou seja, trata-se de técnicas,
dológicas em torno da Clínica da losofia, formando-se em Psicologia após formas de fazer estabelecidas, uma reor-
Atividade, recomendamos a leitura seu doutoramento. Uma de suas maiores ganização do métier pelo coletivo e, dessa
de CLOT, Y. A função psicológica do fontes de inspiração foi o trabalho de I. forma, pode ser compreendido como a par-
trabalho. Petrópolis: Vozes, 2006. te subentendida da atividade, um estoque
Oddonne, na Itália, na década de 1970,
mas a base de suas reflexões tem sido as de possibilidades conhecido somente por
3
Para o leitor interessado em
contribuições da chamada Psicologia Só- aqueles que participam da mesma situa-
conhecer melhor sobre a trajetória
de Yves Clot e suas fontes de ins- cio-Histórica de Vygotski, Leontiev e Lu- ção. Trata-se, portanto, de um instrumento
piração, recomendamos a leitura ria, além daquelas advindas dos estudos coletivo da atividade individual.
de Le travail sans l´homme - pour une do lingüista russo M. Bakhtin em torno da Ele ressalta a necessidade constante de
psychologie des mileux de travail et análise do discurso. Entre seus antecesso-
de vie. Paris: La Découverte, 1995, se recriar nos contextos de trabalho, dizen-
res, na França, apóia-se, sobretudo, em H. do que essa recriação é sempre única e que
e o posfácio “Un autre regard
sur les usines”. In: ODDONE, I.; Wallon, I. Meyerson e L. Le Guillant.3 o gênero auxilia nesse processo. Mas aos
RE, A.; BRIANTE, G. Rédécouvrir Ele faz uma rica apropriação das obras que identificam gênero e cultura, esclarece
l´expérience ouvrière. Paris, Editions que não está se referindo à cultura como
desses teóricos, propondo uma abordagem
Sociales, 1981.
original e, ao mesmo tempo, eficaz da ativi- idéia, pois esta seria uma visão instrumen-
4
Cf. A função psicológica do trabalho dade. Dessa abordagem, extraiu elementos tal do gênero. Trata-se, segundo ele, da cul-
(op. cit.), na qual Clot constata, de importância fundamental para compre- tura como prática, isto é, de um instrumen-
inclusive, um aumento da fadiga endermos o lugar da subjetividade na análi- to genérico da ação individual.
do trabalhador em função da se do trabalho, propondo alguns conceitos
intensidade do esforço que este O gênero seria, portanto, uma espécie
importantes, dos quais três serão tratados
tem de fazer para conter seus atos, de senha para se saber o que é possível ou
aqui: o real da atividade, o gênero de ativi-
isto é, para deixar de realizar suas não esperar de uma situação. Aquilo que é
dade e o estilo da ação. O primeiro se refere
atividades da forma que julga mais permitido ou que é proibido em um métier.
adequada. Ou seja, segundo ele, à atividade do indivíduo sobre si mesmo,
Trata-se de uma memória que não se refe-
a fadiga não decorre tanto do que uma vez que, para nosso autor, a atividade
re apenas ao passado, mas que serve para
se faz, mas do esforço para não se do trabalhador não é jamais uma mera rea-
fazer o que deveria ser feito, para
prever o futuro, para antecipar, permitindo
ção. Ela é uma espécie de filtro subjetivo
recalcar a atividade. evitar possíveis erros no exercício da ativi-
que proporciona um sentido para a vida do
dade, ou seja, é um:
sujeito bem diverso daquele que lhe depo-
5
Todo esse item é baseado na obra
sitam as atividades de concepção. Assim, (...) sistema aberto de regras impessoais,
de Y. Clot, A função psicológica do
às atividades prescrita e real, já previstas não escritas, que definem num meio dado,
trabalho, já citada no início deste
na Análise Ergonômica do Trabalho, ele o uso dos objetos e o intercâmbio entre as
artigo. Assim, serão citadas apenas
acrescenta o real da atividade, que consiste pessoas; uma forma de rascunho social
as páginas dessa obra da qual
que esboça as relações dos homens entre
foram extraídas as citações. naquilo que pode ser feito, mas não se faz:
si para agir sobre o mundo. (p. 50)
as atividades suspensas, contrariadas, sem
possibilidades de realização. Ele distingue, Em suma, pode-se definir gênero:
dessa forma, a atividade realizada do real (...) como um sistema flexível de variantes
da atividade: a primeira é o que se faz e o normativas e de descrições que compor-
segundo consiste no que não se pode fazer, tam vários cenários e um jogo de indeter-
no que se gostaria de fazer, no que poderia minação que nos diz de que modo agem
ter sido feito e mesmo no que se faz para aqueles com quem trabalhamos, como
não fazer aquilo que deve ser feito.4 agir ou deixar de agir em situações preci-
sas; como bem realizar as transações entre
Mas é sobre as noções de gênero e de colegas de trabalho requeridas pela vida
estilo que pretendemos nos deter um pou- em comum, organizada em torno de obje-
co mais neste artigo, uma vez que repre- tivos da ação. (p. 50)

100 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007
É o gênero, enfim, que: viver de forma plurivocal. É quando ele
mobiliza a variabilidade e faz circular as
(...) organiza a reciprocidade dos lugares e
funções ao definir as atividades indepen- variantes. Portanto:
dentemente das propriedades subjetivas (...) situa-se sempre no âmbito do gênero,
dos indivíduos que as realizam num mo- ou, para ser mais precisos, no ponto de co-
mento específico. (p. 50) lisão entre as variantes do gênero, às quais
recorre, alternativamente, de variadas ma-
Portanto, ele:
neiras, a depender do momento. (p. 50)
(...) não regula diretamente as relações en-
tre as pessoas, mas antes as relações entre Dessa forma, o estilo se concretiza
profissionais, ao fixar o ‘espírito’ dos lu- quando se cria a possibilidade de colocar
gares como instrumento de ação: diz, sem em xeque o espírito categórico, sempre
o dizer, o que deve fazer em tal ou qual espreitado pela seriedade, pois, segundo
situação o suposto desconhecido que ja- Clot, esta passa a ser perigosa quando en-
mais iríamos conhecer. (p. 50) carcera o gênero numa verdade, ou seja,
Mas, adverte Clot, não é o gênero que quando impede o desenvolvimento do mé-
explica a atividade e sim esta que explica tier. Em outras palavras, um dos perigos
o gênero. Além disso, ele não pode ser “en- que se apresentam é quanto ao excessivo
sinado”, pois é na atividade, ao lidar com estreitamento do gênero em relação à ri-
os obstáculos, que o gênero é transmitido. queza da atividade, pois quando ele se en-
Sua transmissão, portanto, é sempre indi- rijece, a atividade necrosa. É por isso que
reta e ela se dá pelo exercício das ativida- se deve sempre evitar que ele se torne um
des e pelo enfrentamento das dificuldades. clichê e que não possa transitar para um
outro gênero, pois é nesse trânsito que os
Isso significa que é, muitas vezes, no fra-
diferentes gêneros se contaminam e ocor-
casso que se mostra como fazer e o que as
re a estilização. E o que é mais importante
pessoas aprendem.
para o tema central deste artigo: quando há
Nesse sentido, o gênero é fundamen- degenerescência do gênero, há degeneres-
tal e estruturalmente inacabado. Por isso, cência da atividade, o que pode favorecer o
nosso autor alerta também para o perigo de desenvolvimento de patologias e também a
que seja percebido como um molde, dizen- ocorrência de acidentes no trabalho.
do que, assim, ele pode necrosar.6 O fecha-
Gênero de atividade e segurança no tra- 6
Ele ilustra como isso se dá nos
mento do gênero, portanto, é percebido por
balho contextos de trabalho, citando
ele como algo perigoso, pois impede que
uma situação bastante comum
seja utilizado não apenas pelos novatos que Após o que foi dito a respeito de gêne- nas empresas que consiste em
chegam ao local de trabalho, mas também ro e estilo, não é difícil perceber a relação se dizer: “aqui se faz assim e não
pelos antigos, pois, para continuar a ser um entre essas noções propostas por Clot e a se discute”, ao invés de se dizer:
instrumento, deve variar, permanecer vivo. segurança nos contextos de trabalho. Ou “aqui se faz assim, mas podemos
Além disso, ao debater o gênero, os indi- seja, fica claro que se o gênero degenera, discutir para ver se estamos no
víduos o recriam e, se ele é um sistema de o desenvolvimento da atividade fica blo- melhor caminho”.
variantes, quanto mais choques ocorrerem queado, configurando uma situação de
entre as variantes, mais flexibilidade ele risco, pois a atividade passa a ser, sobretu-
terá e menos ingênuo será o sujeito. do, uma fonte de sofrimento. Além disso,
com a degenerescência do gênero, deixa de
Ainda de acordo com Clot:
existir um coletivo para amparar o sujeito
O gênero social, ao definir as fronteiras e relançar esse desenvolvimento. O sujeito
móveis do aceitável e do inaceitável no tende, então, a ficar isolado, impossibilita-
trabalho, ao organizar o encontro do do de mobilizar o recurso genérico e sem o
sujeito com seus limites, requer o estilo suporte do coletivo.
pessoal. (p. 49)
O coletivo serve para interpor as for-
Este, seria, então:
mas de fazer estabilizadas entre o sujeito
(...) a transformação dos gêneros, por um e ele mesmo. Ou seja, ele não é meramente
sujeito, em recursos para agir em suas ati- uma soma ou uma “coleção” de indivíduos.
vidades reais. Em outros termos, é o mo- É, acima de tudo, a fonte de uma história 7
Segundo Clot, quando o trabalha-
vimento mediante o qual esse sujeito se comum partilhada, momentaneamente es- dor diz: “a gente faz assim”, o que
liberta do curso das atividades esperadas,
tabilizada e que protege o indivíduo de si está em jogo não é apenas a tarefa
não as negando. (p. 50)
mesmo. Assim, cada trabalhador apela ao e sim toda a história da fábrica e,
Mas desenvolvendo-as. coletivo para tomar decisões.7 de certa forma, do métier.

Assim, o estilo emerge quando o tra- No entanto, nem toda equipe funciona
balhador pode falar do métier, fazê-lo como um coletivo e, sobretudo, nos dias

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007 101
atuais, o risco de degradação dos gêneros mo, que, infelizmente, ainda está presente
é bem maior, pois as empresas começam a nas análises sobre o assunto.
comprometer sua história através das de-
No Brasil, tudo indica que o problema
missões em massa, dos Planos de Demissão
da terceirização é mais grave, dadas as
Voluntária (PDVs) ou das formas contem-
características ainda mais perversas as-
porâneas de gerenciamento, muitas vezes
sumidas pelos processos de terceirização.
acompanhadas do enxugamento dos qua-
É sabido que, entre nós, esse recurso tem
dros (Programas de Reengenharia) ou da
sido adotado pelas empresas como um ar-
intensificação dos processos de terceiriza-
tifício para redução de custos com a mão-
ção e subcontratação (Programas de Qua-
de-obra. Dessa forma, elas se concentram
lidade Total). Em todas essas situações, os
apenas nas suas atividades-fim, transfe-
trabalhadores se vêem vítimas daquilo que
rindo para as subcontratadas a execução
Clot chama de “amputação de sua história
das outras atividades (consideradas menos
coletiva” (CLOT, 2006, p. 50).
importantes), além da responsabilidade
Além disso, nosso autor constata que com a saúde e a segurança de um número
a atividade contrariada está no âmago da crescente de empregados. Estes, por sua
organização do trabalho contemporâneo, já vez, são obrigados a aceitar salários redu-
que a responsabilidade é convocada e, ao zidos, contratos temporários, condições de
mesmo tempo, posta de lado. São grandes risco, jornadas dilatadas e perda de bene-
8
Curso sobre Clínica da Ativida- os conflitos em torno do que é qualidade, fícios importantes.11
de, ministrado por Yves Clot, na por exemplo, ao se impor autoritariamente
Assim, diversas pesquisas apontam
Unicamp, em maio de 2006. os programas e desconsiderar a perspecti-
para uma estreita relação entre terceiriza-
va do trabalhador sobre o tema. E, o mais
9
Idem. ção e aumento de acidentes de trabalho,
importante, em decorrência dessas novas
trazendo evidências contundentes de que
estratégias gerenciais, os coletivos se desfa-
10
Idem. os trabalhadores terceirizados se aciden-
zem e não têm sido recompostos, o que re-
tam mais e com maior gravidade do que
presenta um risco considerável, pois, como
11
Em alguns casos, a empresa aqueles que possuem formas estáveis de
já foi dito, eles têm, dentre outras funções,
chega a demitir seus empregados, contratação (SAMPAIO, 2000; FERREI-
aquela de auxiliar os indivíduos na sua to-
recontratando-os, em seguida, RA & IGUTI, 1996). No entanto, ao tentar
nesses novos termos. Ou seja,
mada de decisões.8
explicar esse dado, os pesquisadores, em
aquele empregado que, ontem, Mas devemos ressaltar também que, se geral, não conseguem ir além da constata-
fazia parte do núcleo de contrata- o coletivo permite que o indivíduo se de- ção de que as empresas não oferecem aos
dos estáveis, amanhã poderá fazer
senvolva, ele lhe impõe, ao mesmo tempo, terceirizados as mesmas condições ofere-
parte do grupo dos terceirizados,
submetido a contratos precá- certos limites, pois, como diz Clot, o tra- cidas ao pessoal diretamente contratado
rios e salários bem mais baixos, balho comporta imensas possibilidades de por elas. Suas análises não esclarecem o
embora executando basicamente engano e trabalhar é sempre correr o ris- verdadeiro motivo dessa estatística que
as mesmas tarefas. Sobre esses co de errar.9 Nesse sentido, o coletivo atua se repete com regularidade. É exatamen-
aspectos perversos da terceiriza- também como protetor e é por isso que, se te nesse aspecto que a contribuição de Y.
ção no Brasil, veja Sampaio (2000) ele degenera, os “erros” tornam-se mais Clot nos parece relevante. Ele consegue
e Hazan (2001) tocar, no nosso entender, em um ponto
freqüentes. As portas tornam-se abertas
para os acidentes, conforme atesta o autor crucial: a degradação dos gêneros de ati-
ao falar do aumento recente de acidentes vidade, provocada por essas novas formas
entre trabalhadores da construção civil na de organização da produção, pode ser a
França, ocorrendo, paralelamente, ao in- chave para a compreensão do problema.
cremento da terceirização no setor.10
Análise de uma situação à luz das contri-
É claro que, ao falar dessa possibilidade buições da Clínica da Atividade
de erro, Clot não está se situando na mes-
A título de ilustração, gostaríamos de
ma perspectiva dos autores que aderem às
trazer aqui um estudo que nos parece par-
teses simplistas baseadas no “fator huma-
ticularmente revelador dessa relação esta-
no” e na sua antinomia em relação ao “fa-
belecida por Y. Clot entre coletivo, gênero
tor técnico”, cujo pressuposto maior é o da
de atividade e acidentes no trabalho. Ele
execução isolada da tarefa, além da crença
foi realizado na Petrobrás (nos terminais
na confiabilidade do último e na não con-
de São Sebastião e de Alemoa/Santos e na
fiabilidade consubstancial do primeiro (cf.
Refinaria de Cubatão), entre abril de 1993
MANDEL, 1999). Basta ler a análise de um
e maio de 1994, sob a coordenação de Leda
acidente que ele realiza no primeiro capítu-
Leal Ferreira (FERREIRA & IGUTI, 1996).
lo do seu livro (CLOT, 2006) para constatar
que sua perspectiva não pode ser absoluta- Nesse estudo, os pesquisadores desta-
mente associada a esse tipo de reducionis- caram dois aspectos que diferenciavam a

102 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007
política de pessoal e a gestão da mão-de- Você fica treinando pessoas da empreitei-
obra adotadas pela empresa na época e no ra (...) O pessoal que você treinou, no pró-
passado: a terceirização dos serviços e a ximo contrato, não está mais lá. (...) (id.,
p. 123-124)12
diminuição do efetivo operacional, sendo 12
Estes e todos os grifos subse-
que esses dois fenômenos aconteciam si- É interessante ver os depoimentos da- qüentes são meus.
multaneamente. Ou seja, ao mesmo tempo queles que conheceram o sistema anterior,
em que a empresa diminuía seus efetivos, isto é, quando a equipe de manutenção era
aumentava a contratação das empreiteiras. especializada e pertencia à Petrobrás. Em
De modo que, na Refinaria de Cubatão, ha- um deles, o trabalhador fala das “paradas”
via, naquela ocasião, quase dois emprega- da refinaria antes e depois da transferência
dos de empreiteiras para cada funcionário para as empreiteiras:
da Petrobrás, sendo que nos terminais essa
(...) No primeiro momento, havia duas
proporção era ainda maior.
equipes de manutenção própria da re-
Embora a presença das empreiteiras finaria e é lógico que esse pessoal tinha
fosse um fenômeno antigo na Petrobrás, um carinho maior de lidar com as coisas,
mesmo porque era a mão dele que estava
o que se constatava naquele momento era
sendo colocada. Quem arrumou essa bom-
sua intensificação, além de uma mudança
ba? Foi o Queixada, foi o seu Pedro, foi o
no perfil dos trabalhadores terceirizados. Maurício Negão, foi o Mineiro. Era a mão
Ou seja, eles apareceram, segundo um dele que estava ali. Ele tinha um carinho e
dos entrevistados: fazia questão de saber: ‘olha, onde eu pus
a mão ficou bom’. Não tem rateio, era um
primeiro, dentro do serviço de pátio; de-
negócio pessoal mesmo, de amor-próprio...
pois, dentro do serviço de restaurante....
A empreiteira vem e ela não tem compro-
depois, foram ocupando espaços dentro
misso nenhum com aquilo. O compro-
da manutenção propriamente dita e ocu-
misso dela é cumprir o contrato. O cara
pando de tal maneira que já tem até uma
chega lá, pega uma junta velha mesmo,
empreitópolis lá dentro, já tem uma cida-
não a junta daquela espessura, coloca ali
de de empreiteiras, de escritórios de em-
no lugar; então, é esse relaxamento que,
preiteiras, de vestiários. (id., p. 122)
muitas vezes, ocasionou acidentes sérios
Assim, a maioria dos serviços de manu- lá dentro. (id., p. 124-125)
tenção foi transferida para as empreiteiras
Tudo indica que a falta de continuida-
onde trabalhavam cerca de três mil pessoas
de das equipes impossibilitava o acúmu-
na Refinaria de Cubatão e mais de mil nos
lo de conhecimento ou, na perspectiva
terminais de São Sebastião e de Alemoa.
de Clot, impedia o desenvolvimento e a
O aumento das aposentadorias, soma- consolidação do gênero de atividade. Isso
do à proibição da contratação de pessoal, aumentava as chances de ocorrência de
explica, em grande medida, o problema. acidentes, sobretudo se levarmos em conta
Ou seja, as empreiteiras apareceram como que estamos lidando com um processo de
a única alternativa para assegurar a conti- trabalho complexo, envolvendo enormes
nuidade dos trabalhos. No entanto, os pes- riscos e que, por isso mesmo, exige muita
quisadores constatam que tudo isso se deu experiência acumulada para se alcançar
de forma precária, ressaltando algumas certo domínio:
conseqüências nefastas dessa prática: o Quando o quadro de manutenção é da
aumento das desigualdades, a maior expo- refinaria, ele é especializado. Trabalham
sição aos riscos e, em decorrência do cará- com aqueles equipamentos dez, quinze,
ter temporário dos contratos, o surgimento vinte anos, conhecem a manha do equipa-
de certas barreiras, impedindo o acúmu- mento. (id., p. 125)
lo de conhecimentos e a consolidação de Na empreiteira, o que acontece? Um dia,
compromissos entre os membros das equi- vem um e conserta. Não fica bom. Passa
pes. Alguns depoimentos são reveladores uns tempos, vem outro. Então, embora a
a esse respeito: gente oriente, eles não têm a mesma capa-
cidade. Porque não pode ter a mesma ca-
O serviço é temporário. Fazem e vão em-
pacidade aquele que trabalha com aquela
bora. Deu problema, quem vai responder?
máquina um ano e um que trabalha vinte
(...) (id., p. 123)
anos. Essa é a diferença. (id., p. 125)
A Petrobrás tem preocupação de dar cur-
sos para você ter cada vez mais segurança Além disso, como já foi dito, ao mesmo
e ficar aperfeiçoado. Agora, eu pergunto: tempo em que era intensificado o processo
qual é a empreiteira que vai dar curso para de terceirização, ocorria a redução dos efe-
o cara trabalhar lá? (id., p. 123-124) tivos operacionais da empresa, afetando ne-

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007 103
gativamente a rotina. Um operador de pro- observar que esse “quadro mínimo” dimi-
cesso expôs assim sua visão do problema: nuía progressivamente:
Minha maior apreensão dentro da refina- Esse quadro mínimo foi diminuído dras-
ria é o seguinte: com a redução do quadro ticamente. Nós começamos com onze,
mínimo, cai a qualidade da rotina. A ro- quando saí de lá nós éramos oito. Depois
tina é uma coisa importantíssima, porque disso, eles foram cortando, chegou a seis
durante as rotinas feitas todos os dias, e eles estavam querendo colocar cinco ou
você vai detectando problemas futuros e quatro. Veja bem: eles começaram a com-
agravamento de problemas. (id., p. 131) parar a UGAV com a unidade que tinha
lá nos EUA. Só que lá o computador faz
Ou seja, como parte da “modernização” tudo, os nossos equipamentos aqui não
da empresa, ocorria, na época, uma redu- são iguais àqueles (....) (id., p. 133)
ção importante dos efetivos, sendo que, na
Refinaria de Cubatão, por exemplo, eles Portanto, a qualidade dos equipamen-
haviam passado de 2.270, em 1987, para tos disponíveis não correspondia aos no-
1.608, em junho de 1993. A razão disso, vos padrões adotados para calcular os
de acordo com os autores da pesquisa, é o efetivos, conforme fica claro no seguinte
fato de que a empresa não estava contra- depoimento:
tando funcionários para repor aqueles que Lógico que não dá para manter o efetivo
se aposentavam, mas, ao contrário, incen- reduzido como fizeram... Essa questão
tivava a aposentadoria. Tudo indica que da automação e tecnologia moderna que
ela pretendia adotar um efetivo operacio- importaram, colocaram painéis computa-
nal tão reduzido quanto o de algumas refi- dorizados para olhar caldeira, mas a cal-
deira está velha, obsoleta... Então, tem um
narias de países mais desenvolvidos, mas
painel, computador e tal, bonitinho, mas
sem apresentar as mesmas condições tec-
a caldeira está caindo aos pedaços, meu
nológicas e organizacionais. Havia também Deus!... (id., p.133)
uma “orientação de corte de gastos” (id., p.
132) a fim de se alcançar o padrão de efi- O problema da redução dos efetivos foi
ciência vigente, como se pode perceber no percebido pelos pesquisadores sob dois
seguinte depoimento: ângulos fundamentais para o tema tratado
neste artigo: o do desgaste pessoal e o da
Como a Petrobrás está com uma orien-
segurança, que é garantida, sobretudo, pela
tação de corte de gastos por causa da tal
idéia de eficiência, ela corta tudo. Só que rotina. O depoimento a seguir integra bem
para cortar em matéria-prima, não dá e a esses dois ângulos:
matéria-prima é a grande parte do custo É lógico que o que vai agravando o nervo-
da empresa. Para cortar em contrato de sismo, me deixando mais apreensivo, é o
empreiteira, é uma coisa que eles não me- corte de pessoal de operação e manuten-
xem. Cortar em peças e em equipamentos, ção. Mais da operação porque, na minha
eles zeraram praticamente o almoxarifa- opinião, o que determina que a unidade
do... Agora, o que eles têm para cortar? É tenha uma continuidade operacional é
só mão-de-obra. (id., p. 132) uma rotina perfeita. E uma rotina exige
De acordo com os pesquisadores, essa número suficiente de operadores, para
que eles tenham disponibilidade de perder
diminuição dos efetivos operacionais era
tempo com a rotina. (id., p. 134)
um dos maiores problemas relatados pe-
los trabalhadores, surgindo em pratica- Vale a pena ver a maneira como alguns
mente todas as reuniões. Foi criada, in- trabalhadores interpretam essa medida
clusive, a terminologia “quadro mínimo” adotada pela empresa:
para indicar:
A tarefa do operador é mais de observação
o menor número de elementos por grupo do que física, a não ser em determinados
de turno efetivamente necessário para a momentos. Eles consideram que você está
execução de tarefas sistematizadas que a toa. Só que você não está a toa. Primeiro,
leve certa unidade a uma condição segura você está pensando no que está acontecen-
em caso de emergência. (id., p 132) do. Não dá pra chegar lá e simplesmente
desligar como se nada estivesse aconte-
A adoção desse sistema gerou, dentre cendo. Segundo, sua tarefa é de observa-
outras coisas, uma sobrecarga de trabalho, ção, se variar... variou, você tem que atu-
uma vez que cada equipe de turno só pode- ar. Mas eles – a chefia, o corpo gerencial
ria trabalhar se tivesse seu quadro mínimo da empresa – trabalham muito com essa
completo. Isso significa que um trabalha- idéia de que você está a toa. (id., p. 135)
dor do turno anterior poderia ser obrigado Quando a empresa reduz o efetivo, no ra-
a substituir o colega que faltou, devendo, ciocínio dela passa o seguinte: ‘bom, eu
portanto, “dobrar” o turno. É interessante tenho a probabilidade de, vamos supor,

104 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007
um para cem de acontecer um acidente teriormente, mas que vale a pena retomar
no momento em que o pessoal está ocu- sinteticamente:
pado com outra tarefa’. Então, para eles,
vale mais a pena contar com essa proba- - a atividade do petroleiro é bastante
bilidade de um para cem, esperando que complexa e perigosa, exigindo dele
em cem vezes vai acontecer isso, do que se um alto grau de competência e res-
precaver, prevenir essa única vez. Só que ponsabilidade;
para a gente que está lá.... Se a gente espe-
rar essa única vez.... Essa é que é a grande - a segurança da refinaria decorre, fun-
verdade. (id., p. 135-136) damentalmente, dessa competência e
dessa responsabilidade, pois são elas
Independentemente dos verdadeiros mo-
que se contrapõem “ao perigo que está
tivos que levaram a empresa a adotar essa
em toda parte” (id., p. 142);
medida, o que realmente importa é a con-
clusão dos pesquisadores de que “o número - o trabalho do petroleiro é, basica-
de funcionários ‘dobrando’ turno” era mui- mente, um trabalho de equipe;
to grande, sendo esta “uma prova objetiva
de que o número de efetivos” estava “mal - o coletivo de trabalho tem um papel
dimensionado”, repercutindo gravemente fundamental, isto é, um coletivo bem
“na segurança e na saúde dos trabalhado- constituído “(...) é a melhor garantia
res” (id., p.136). Isso fica claro nos seguin- para o bom funcionamento e a segu-
tes depoimentos: rança de complexos industriais” (id.,
p. 143).
Quando dobra... não dá pra explicar. Che-
ga um ponto em que o cara vira um zumbi. Ou seja, o estudo deixou claro que a
Começa a falar nada com nada. Fica doi- política adotada pela empresa, ao privi-
do. E pior: ele traz aquele problema para legiar a terceirização e a redução dos
dentro de casa também. Ele briga com a efetivos, estava colocando em perigo seu
mulher, briga com os colegas, é uma bar- próprio funcionamento e potenciali zando
ra! (id., p. 136)
os riscos, já que afetava direta mente
São Sebastião é abençoado. Porque pelo todos os aspectos considerados pelos
número de funcionários que já se apo- pesquisadores como sendo a chave para
sentou e não colocaram outros para tra- a reali zação do trabalho em condições de
balhar.... esse terminal hoje em dia é uma
segurança. Em outras palavras, pela sua
bomba. (...) (id., p. 136-137)
riqueza e pela pertinência dos seus acha-
Nas conclusões do estudo, seus autores dos, ele acabou representando um alerta
reforçaram alguns pontos já tratados an- para aquilo que estava por vir.

Considerações finais

O que torna o estudo relatado acima dentes com perdas materiais ocorridos nos
particularmente interessante é o fato de trinta anos anteriores em refinarias, petro-
seus resultados representarem uma espé- químicas, usinas de processamento de gás
cie de antevisão do que viria em seguida. e terminais, dizendo que apenas um acon-
Ou seja, ele se tornou um marco entre as teceu no Brasil. É claro que, entre 1989 e
investigações realizadas sobre a Petrobrás, 1997, que é o intervalo entre a divulgação
ao descrever um momento de transição en- da estatística acima e a publicação dos re-
tre uma empresa que conseguia controlar sultados do estudo, ocorreram acidentes
relativamente bem seus processos de tra- importantes na empresa, mas, ao que tudo
balho, apresentando um índice reduzido indica, houve uma aumento progressivo,
de acidentes graves, para uma empresa na em quantidade e gravidade dos mesmos
qual esse controle seria, em um curto pe- após esse período. Isso significa que, pou-
ríodo de tempo, posto em questão. Na con- co tempo após a divulgação dos resultados
clusão do estudo, os autores constataram desse estudo, a Petrobrás passou a viver
que, em comparação com o que ocorria em um difícil período de sua história durante
outras partes do mundo, a Petrobrás era o qual diversos acidentes graves ocorre-
ram, culminando no trágico afundamento
uma empresa na qual os grandes acidentes
da Plataforma P36, em 2001.
eram raros. Para melhor fundamentar essa
informação, citaram um levantamento, rea- Não é nossa intenção fazer um levan-
lizado em 1989, sobre os cem maiores aci- tamento minucioso de todos os acidentes

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007 105
ocorridos na Petrobrás desde 1997, ocasião a maior do mundo, em março de 2001. O
em que a pesquisa acima foi divulgada. Na mais grave acidente da história da empresa
verdade, o que interessa aqui é registrar o teve repercussão mundial e obrigou seus
aumento progressivo dos acidentes mais dirigentes a repensar suas políticas, inclu-
graves, sobretudo a partir de 18 de janei- sive aquela relativa à terceirização.14 Isso
ro de 2000, quando ocorreu o grande va- não impediu que, apenas um ano depois,
zamento na Baía da Guanabara. Logo em em 2002, ocorresse um incidente grave, fe-
seguida, ocorreram, sucessivamente, seis lizmente, sem vítimas: o adernamento da
vazamentos importantes: em Tramandaí Plataforma P34, na Bacia de Campos (RJ).
(Porto Alegre), em 11 de março de 2000; Novamente, as críticas recaíram sobre a
no Terminal Almirante Barroso, em São política de contratação intensiva de mão-
Sebastião (Norte de São Paulo), em 16 de de-obra terceirizada pela Petrobrás, que foi
março de 2000; novamente na Baía da acusada de contratar serviços de empresas
Guanabara, em 26 de junho de 2000; na que não adotavam os mesmos critérios de
Refinaria Getúlio Vargas, em Araucária, segurança. Ou seja, o problema persistia,
no Paraná, em 16 de julho de 2000; em embora fosse constantemente denunciado
13
http://www.ambientebrasil.com. pelos trabalhadores e seus representantes,
Paracambi, na Baixada Fluminense, em 31
br/composer.php3?base=./agua/
de julho de 2000; e no Rio Grande do Nor- pela mídia e por parlamentares.15
salgada/index.html&conteudo=./
agua/salgada/vazamentos.htm. te, em 11 de agosto de 2000.13 Acreditamos que as evidências expos-
Na realidade, desde 1997, já é possível tas acima são suficientes para ilustrar o que
14
O relatório da Agência Nacional
registrar acidentes importantes, como o pretendíamos, ou seja, que a dupla medida
de Petróleo (ANP) sobre esse aci-
dente concluiu que ele foi causado rompimento de um duto da Petrobrás que adotada pela Petrobrás (redução dos efeti-
por erros de projeto, manutenção liga a Refinaria de Duque de Caxias (RJ) ao vos e contratação de um número maior de
e operação. Algum tempo após, terminal DSTE-Ilha D’Água, provocando o empreiteiras) pode ter sido o fator prepon-
a direção da empresa admitiu a vazamento de 2,8 milhões de óleo combus- derante para explicar o aumento de aciden-
necessidade de reduzir o número tível em manguezais na Baía da Guanabara tes graves ocorridos na empresa. Na reali-
de empregados terceirizados, dade, isso já estava posto, pelo menos como
assumindo ser este um importante
(RJ), em 10 de março de 1997; o vazamento
de FLO (produto usado para a limpeza ou possibilidade, na análise feita pela equipe
fator na origem do grande número
selagem de equipamentos) no rio Cubatão de pesquisadores, em cujo relato nos inspi-
de acidentes que estava ocorrendo.
(SP), em 21 de julho de 1997; o vazamento ramos para levantar essa hipótese.
15
A Federação dos Petroleiros, por de 2 mil litros de óleo combustível, atin- Evidentemente, não é possível ir além
exemplo, denunciou, em reporta- gindo cinco praias na Ilha do Governador
gem da Revista Época de 17/10/2002, disso, ou seja, o máximo que podemos nos
(RJ), em 16 de agosto de 1997; o vazamento permitir é levantar uma hipótese sobre o
as péssimas condições de trabalho
a que eram expostos os trabalhado- de 1,5 milhão de litros de óleo combustí- papel dessas medidas na gênese dos aci-
res das empreiteiras, dizendo que, vel no rio Alambari, em 13 de Outubro de dentes ocorridos na Petrobrás, uma vez
entre 1998 e 2002, morreram 124 1998, provocado por uma rachadura de que não fizemos uma análise detalhada
petroleiros, sendo 94 terceiriza- cerca de um metro no trecho que liga a re- sobre os mesmos e nem tivemos acesso
dos. Em um boletim, datado de finaria de São José dos Campos ao Termi- aos relatórios completos sobre suas cau-
15/03/2006, ela abordou nova- nal de Guararema (ambos em São Paulo), sas. Além disso, não se pode negligenciar
mente o problema, qualificando-o,
sendo que o duto estava há cinco anos sem o fato de que os acidentes são fenômenos
acertadamente, como “tragédia
anunciada”. Um parlamentar que manutenção; vazamento de 3 mil litros de complexos para os quais muitos fatores
tem se pronunciado a esse respeito óleo no oleoduto da refinaria da Petrobrás concorrem, devendo, todos eles, ser consi-
é Fernando Gabeira, em entrevistas que abastece a Manaus Energia (Reman), derados ao nos debruçarmos sobre sua gê-
à imprensa e no seu site. atingindo o Igarapé do Cururu (AM) e o Rio nese. No entanto, nada disso afeta o peso
Negro, em 6 de agosto de 1999; vazamen- das evidências trazidas neste artigo, uma
to de 3 metros cúbicos de nafta de xisto, vez que a redução dos efetivos e a intensi-
produto que possui benzeno, na Repar (na ficação da terceirização têm sido os dois
grande Curitiba), em 24 de agosto de 1999; fatores mais apontados pelos analistas
menos de um mês após, em 29 de agosto (mas também pelos trabalhadores e seus
de 1999, ocorreu um novo vazamento de representantes) para explicar o aumento
óleo combustível na Reman, contaminan- dos acidentes graves nessa empresa. Fi-
do o Rio Negro (AM) com pelo menos mil nalmente, a própria direção da Petrobrás
litros de óleo; e, finalmente, em novembro parece ter reconhecido o problema ao to-
de 1999, em Carmópolis (SE), ocorreu um mar medidas que revelam claramente sua
vazamento de óleo e água sanitária no Rio decisão de mudar essas políticas.
Siriri (SE), sendo que a pesca no local aca-
Ao considerarmos as teses defendidas
bou após o acidente.
por Y. Clot, fica fácil compreender o peso
Tudo isso culminou, conforme já foi que possui qualquer medida suscetível de
dito, no afundamento da Plataforma P36, afetar o funcionamento de um coletivo de

106 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007
trabalhadores, sobretudo quando se está li- para ser eficazes, elas são econômicas
dando com processos complexos e perigo- e, freqüentemente, não são nem mesmo
enunciadas. Elas entram no sangue dos
sos, como são os do setor petroquímico.
profissionais, pré-organizam suas opera-
Vale a pena trazer aqui algumas con- ções e sua conduta (...) (id., p.11)
siderações feitas pelo autor a respeito do E é exatamente por isso que “não re-
gênero de atividade e do seu papel em si- querem necessariamente formulações ver-
tuações incidentais. Ele inicia reafirman- bais”. Portanto, para Clot “o gênero como
do que gênero é: interposto social, é um corpo de avaliações
compartilhadas que organizam a atividade
a parte subentendida de atividade, aquilo
pessoal de forma tácita”, sendo por isso
que os trabalhadores de um dado meio co-
qualificada por ele como “a ‘alma social’ da
nhecem e vêem, esperam e reconhecem,
atividade” (id., p.11).
apreciam e temem; aquilo que é comum a
eles e que os reúne sob condições reais de Ora, as evidências acima reportadas,
vida; aquilo que sabem que devem fazer sobretudo aquelas advindas dos testemu-
graças à comunidade de avaliações pres- nhos dos próprios trabalhadores, seriam
supostas, sem que seja necessário especi- reveladoras de que a atividade do petro-
ficar novamente a tarefa a cada vez que leiro foi atingida na sua essência ou, para
ela se apresenta. (CLOT, 2006, p. 11) retomar a feliz expressão de Clot, na sua
Trata-se, portanto, de uma espécie de “alma social”? Se a resposta for positiva,
“senha” conhecida apenas “por aqueles então a hipótese de que esse problema es-
taria no cerne da compreensão dos graves
que pertencem ao mesmo horizonte so-
acidentes enfrentados pela empresa no
cial e profissional” (id., p.11). Em seguida,
decorrer dos últimos anos não nos parece
estabelece uma relação entre essa noção frágil. Ao contrário, ela deveria, no nosso
e a segurança no trabalho, ao dizer que entender, ser levada a sério e aprofundada
“essas avaliações comuns subentendidas pelos analistas e responsáveis diretos pela
assumem, nas situações incidentais, um segurança dessa e de outras empresas,
significado particularmente importante”, cujos processos são igualmente “comple-
uma vez que: xos”, “perigosos” e “coletivos”.

Referências

CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. em saúde e segurança no trabalho. Belo


Petrópolis: Vozes, 2006. Horizonte: Instituto de Relações do
CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genres et styles en Trabalho, Fundacentro e Segrac, 2001.
analyse du travail: concepts et méthodes. MENDEL, G. Prefácio. In: LLORY. M.
Travailler: Revue Internationale de Acidentes industriais: o custo do silêncio.
Psychopathologie et de Psychodynamique Rio de Janeiro: MultiMais Editorial, 1999.
du Travail, Paris, n. 4, p. 7-42, 2000.
SAMPAIO, M. R. O processo de
FERREIRA, L. L.; IGUTI, A. M. O trabalho qualificação real e o perfil de
dos petroleiros: perigoso, complexo, acidentabilidade entre trabalhadores
contínuo e coletivo. São Paulo: Scritta, efetivos e terceirizados: o caso dos
1996. pedreiros refrataristas de uma indústria
HAZAN, H. M. F. Terceirização: a de aço. 2000. Dissertação (Mestrado em
subordinação das empresas terceiras Engenharia de Produção) – Escola de
às tomadoras de serviços. In: NETO, A. Engenharia, Universidade Federal de
C.; AMORIM, C. (orgs.). Novos desafios Minas Gerais, 2000.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007 107
Maria Helena Palucci Marziale1
Acidentes com material biológico em hospital da Rede
Everaldo Jose da Silva2 de Prevenção de Acidentes do Trabalho – REPAT
Vanderley José Haas3
Accidents involving biological material in a hospital from the
Maria Lúcia do C. C. Robazzi4
Network on Work Accident Prevention – REPAT

1
Enfermeira. Professora Titular Resumo
da Escola de Enfermagem da Uni-
versidade de São Paulo, Ribeirão Estudo transversal com objetivo de descrever os acidentes do trabalho com
Preto-SP, Brasil.
exposição a material biológico ocorridos no Hospital Universitário de Brasí-
2
Enfermeiro do Trabalho do Hos- lia e analisar as ações preventivas utilizadas na instituição. Para a coleta dos
pital Universitário de Brasília-DF, dados, foi utilizado o formulário eletrônico da Rede de Prevenção de Aciden-
Brasil.
te do Trabalho (REPAT). Os dados foram coletados nos anos de 2003 e 2004 e
3
Físico. Doutor em Ciências. analisados estatisticamente por meio de cálculos de freqüência. Dentre 2.000
Professor Prodoc da Escola de En- a 2.011 trabalhadores atuantes no período, foi constado o registro de 107 aci-
fermagem da Universidade de São
dentes. O maior número de acidentes ocorreu entre mulheres, no período da
Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil.
manhã, com lesão perfurante nas mãos com agulhas e cateteres, nas unida-
4
Enfermeira. Professora Titular des de Clínica Médica e Pronto Atendimento. As ações preventivas adotadas
da Escola de Enfermagem da Uni-
são: treinamento, visitas aos locais de trabalho e orientações individuais,
versidade de São Paulo, Ribeirão
Preto-SP, Brasil.
as quais, diante das características dos acidentes encontrados, precisam ser
revistas e ampliadas.
Palavras-chaves: acidentes do trabalho, saúde ocupacional, saúde do trabalha-
dor, risco biológico.

Abstract
This transversal study is aimed at diagnosing work accidents involving exposure
to biological material occurred at the Brasília University Hospital, as well as
at analyzing institutional preventive actions. The REPAT – Work Accident
Prevention Network – electronic form was used for data collection. Data were
collected during 2003 and 2004 and the statistical analysis was performed
through computation of frequencies. Among the 2.000 to 2.011 workers in
action at that time, 107 accidents were evidenced. The highest amount of them
occurred in the morning, among women, and involved perforating lesion in
hands, caused by needles and catheters in the Medical Clinic and emergency
units. Due to the characteristics of these accidents, the preventive actions, which
included training, visits to work places and individual orientation, need to be
revised and expanded.
Keywords: work accidents, occupational health, workers’ health, biological risk.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007 109
Introdução

A exposição ocupacional a material bio- O meio eletrônico foi selecionado pela


lógico representa um risco para os traba- valiosa contribuição que oferece à pesqui-
lhadores das instituições de saúde devido sa científica, sendo que a Internet tem sido
à possibilidade de transmissão de patóge- considerada uma ferramenta vital para
nos, como o vírus da hepatite B (HBV) e da colaboração na comunidade de pesquisa
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (PERINE, 2000). Os pesquisadores podem
(HIV). As conseqüências dessa exposição explorar problemas complexos e interdis-
podem afetar diretamente os trabalhado- ciplinares, ter acesso a bancos de dados
res, atingindo-os em seus aspectos físico e consultar colegas de todo o mundo. A
e psicológico e ainda pode repercutir nas rede permite ainda ao pesquisador pensar
relações familiares e sociais (CDC, 2001; globalmente e gerar, com maior eficiência
MARZIALE, 2003). e rapidez, produtos de valor para a comu-
nidade, acelerando a difusão do conheci-
Acidentes ocasionados por picadas de mento científico e o fortalecimento dos pa-
agulhas são responsáveis por 80% a 90% radigmas dominantes (MEDEIROS, 2003).
das transmissões de doenças infecciosas
Assim, através da via eletrônica, bus-
entre trabalhadores de saúde e o risco de
camos estudar os acidentes do trabalho
transmissão de infecção de uma agulha
com exposição a material biológico em
contaminada é de um em três para a He-
hospitais de diferentes estados com a fi-
patite B, um em trinta para hepatite C e
nalidade de: identificar sua ocorrência e
um em trezentos para o HIV (GODFRE,
possíveis casos de sub-notificação com o
2001). Nos Estados Unidos, estima-se que
objetivo de elaborar medidas preventivas;
aproximadamente 8 milhões de trabalha- identificar a ocorrência destes acidentes; e
dores de saúde são anualmente vítimas estimular o registro e o controle dos mes-
de acidentes com material perfurocortan- mos nos hospitais.
te e os estudantes de Medicina, Odonto-
logia e Enfermagem também conformam A existência provável de subnotificação
um grupo muito atingido por esse tipo de de acidentes de trabalho entre profissionais
injúria. Dos 16.922 acidentes documen- da saúde tem sido apontada na literatura
tados nos Estados Unidos no período de (NAPOLEÃO, ROBAZZI & MARZIALE,
1995 a 2001, cerca de 44% vitimou enfer- 2000; MARZIALE, NISHIMURA & FERREI-
meiras, 28% médicos, 15% técnicos de la- RA, 2004) devido à falta de conscientização
boratório, 4% estudantes e 3% pessoal de do risco por parte dos trabalhadores e ges-
tores de hospitais, ao medo de desemprego
limpeza (CDC, 2005).
ou perda de emprego pelo trabalhador, à
No Brasil, embora os Acidentes do Tra- culpabilidade que sente em relação a esse
balho (AT) com exposição a material bio- evento, à falta de organização adequada das
lógico sejam freqüentes, não existe ainda ações do serviço de atendimento ao traba-
um real diagnóstico do número de traba- lhador, às dificuldades do sistema de infor-
lhadores acidentados e das conseqüências mação e, ainda, à descrença da importância
causadas por essas injúrias, o que tem do acidente do trabalho desta natureza.
dificultado o planejamento e a adoção de Nesse sentido, questiona-se nesta pes-
medidas preventivas. quisa:
Neste contexto, foi criada a Rede de - Quais as dificuldades que levam os
Prevenção de Acidentes do Trabalho com profissionais/alunos da área de saúde a não
Material Biológico em hospitais brasilei- registrarem os acidentes envolvendo mate-
ros (REPAT). Trata-se de uma rede cola- riais biológicos durante suas atividades em
5
Os registros dos acidentes de
trabalho são inseridos eletroni- borativa de pesquisas e intercâmbio de um dos hospitais da REPAT?
camente no formulário on-line informações envolvendo 14 hospitais de
disponível no URL: http://repat. várias regiões do país, integrando pes- Objetivo geral
eerp.usp.br, acessando o link quisadores e especialistas em saúde do - Descrever a ocorrência de acidentes
“coleta de dados”. Os dados são
trabalhador, que tem como meta o con- do trabalho com exposição a material bio-
registrados pelo integrante da
REPAT responsável em cada um trole e a prevenção de acidentes de tra- lógico ocorridos no hospital universitário
dos hospitais por meio de senha balho com exposição a material biológico de Brasília e as estratégias adotadas para a
de acesso individual. (REPAT, 2007)5. sua prevenção.

110 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007
Objetivos específicos - Identificar o número de acidentes do
- Descrever as características do hos- trabalho com exposição a material bioló-
pital e da organização do serviço de segu- gico;
rança e medicina do trabalho em relação
- Identificar os locais de trabalho e as
às condutas de registro e prevenção dos
acidentes do trabalho com exposição a categorias profissionais com maior coefi-
material biológico; ciente de acidentes do trabalho.

Material e método

Trata-se de um estudo de campo de ca- tado, do local/setor de trabalho, descrição


ráter retrospectivo com desenho transver- da atividade realizada e do acidente (objeto
sal desenvolvido em um hospital universi- causador, motivos/causas do acidente), me-
tário da cidade de Brasília (HUB). didas adotadas quando da ocorrência do
acidente (condutas e tratamento), situação
Os casos foram constituídos por tra-
vacinal do trabalhador.
balhadores do HUB que sofreram aciden-
tes do trabalho envolvendo exposição a O estudo é parte integrante do projeto
material biológico ocorrido no período de REPAT, que foi aprovado pelo Comitê de
2003 a 2004 e registrados, pelo enfermei- Ética em Pesquisa da Escola de Enferma-
ro do trabalho do hospital, diretamente gem de Ribeirão Preto da Universidade de
no formulário REPAT on-line usando o São Paulo, obedecendo às recomendações
micro computador de sala do Serviço de da Resolução 196 (BRASIL, 1997).
Saúde Ocupacional.
Para descrever as características do
O formulário REPAT foi constru- hospital e da organização do serviço de
ído com base no instrumento propos- segurança e medicina do trabalho em re-
to pela Occupational Safety and Health lação às condutas de registro e prevenção
Administration (OSHA, 2001), no protocolo dos acidentes do trabalho com exposição
de coleta de dados do EPINET (JAGGER & a material biológico, foi realizada uma en-
PERRY, 2001). Este formulário contém da- trevista semi-estruturada com o enfermeiro
dos de identificação do trabalhador aciden- do trabalho do hospital.

Resultados e discussão

Caracterização do hospital O hospital atende pacientes do Distrito


Federal e de cidades dos Estados de Goiás e
O Hospital Universitário de Brasília
Minas Gerais, assim como índios de várias
é um hospital geral que atende diversas
tribos do Brasil, que são encaminhados pela
especialidades. Possui 370 leitos e 2.011
Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), e
funcionários no seu quadro6 distribuí-
dos da seguinte forma: 810 pertencentes pacientes de convênios particulares. 6
Dados da Diretoria de Recursos
Humanos do Hospital Universitário
ao quadro permanente da Fundação Uni- Serviço especializado de segurança e me- de Brasília de 2004.
versidade de Brasília (FUB), 391 cedidos dicina do trabalho (SESMT)
pelo Ministério da Saúde para a prestação
de serviço no hospital e 800 prestadores O serviço foi iniciado em 1992 com a
de serviços com contratos de trabalho participação de apenas um técnico de se-
temporários renovados a cada semestre. gurança do trabalho e um enfermeiro do
Somados a estes, embora não se tenham trabalho, mas, com o passar do tempo, o
números exatos, o HUB concentra, ain- quadro foi se completando, atendendo
da, servidores cedidos pela Secretaria de à Norma Regulamentadora 4 (BRASIL,
Estado de Saúde do Governo do Distrito 2005), que define os profissionais que de-
Federal e por outras instituições. Do total vem atuar no SESMT no território nacio-
deste contingente, 598 trabalhadores estão nal. Atualmente, o serviço é composto por
diretamente subordinados à Divisão de três médicos do trabalho, dois enfermeiros
Enfermagem (enfermeiros, auxiliares de do trabalho, uma enfermeira especializada
enfermagem, auxiliares operacionais de em Saúde Pública, um engenheiro e cinco
serviços diversos (AOSD) e secretários). técnicos em Segurança do Trabalho. Esses

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007 111
profissionais são subordinados diretamen- Considerando-se que existem reco-
te à Secretaria de Recursos Humanos, que mendações sobre a adequada terapia anti-
é responsável pelo serviço de segurança do retroviral após acidentes com material
trabalho do hospital. biológico (SÃO PAULO, 2002), sugere-se
que a instituição estudada deva seguir
Dentre as várias atribuições do enfer-
meiro do trabalho, estão o acompanhamen- essas recomendações com a finalidade de
to do AT e o preenchimento da Comunica- uniformizar as suas condutas.
ção de Acidente de Trabalho (CAT) para Diagnóstico dos acidentes do trabalho
os profissionais com contrato de trabalho com exposição a material biológico
regulamentado pela Consolidação das Leis
do Trabalho. Para os servidores com con- Em 2003, estavam alocados no hospital
trato de trabalho regidos pelo Estatuto dos 2.000 trabalhadores e, em 2004, o estafe au-
Funcionários Públicos, não cobertos pelo mentou para 2.011. Investigando os aciden-
seguro acidente do trabalho do Instituto tes registrados no biênio, foi constatada a
Nacional do Seguro Social (INSS), os re- ocorrência de 107 AT com exposição a mate-
gistros são feitos na Comunicação Interna rial biológico: 54 ocorridos em 2003 e 53, em
de Acidentes de Trabalho (CIAT), cujo for- 2004. Observou-se que 83,3% dos trabalha-
mulário foi recentemente reformulado e dores acidentados eram do sexo feminino e
ampliado (BOSI, 2002). 16,7% eram do masculino e que 79,21% dos
AT ocorridos em 2004 foram entre mulheres
A rotina estabelecida para registro e
e 20,85%, entre homens. A predominância
acompanhamento em casos de AT no hos-
de trabalhadores do sexo feminino em hos-
pital é descrita a seguir.
pitais é confirmada na literatura principal-
1º. O trabalhador acidentado é avalia- mente devido ao grande contingente de mu-
do por um médico plantonista, no Setor de lheres na equipe de enfermagem, população
Pronto Atendimento, onde lhe são solicita- esta de trabalhadores exposta à ocorrência
dos os exames sorológicos, bem como do de AT com material biológico (MARZIALE,
paciente-fonte (se for conhecido e desde NISHIMURA & FERREIRA, 2004; NISHIDE,
que este autorize a coleta de sangue), e são BENATTI & ALEXANDRE, 2004).
prescritos, se necessário, medicamentos
anti-retrovirais (Zidovudina, Lamivudina, A Tabela 1 mostra o dia da semana em
AZT, 3TC, Indinavir). Geralmente os me- que os acidentes ocorreram e a Tabela 2
dicamentos são prescritos por quatro dias, qual o turno de ocorrência dos AT.
tempo necessário para que os resultados Os resultados revelaram que os aci-
dos exames laboratoriais sejam liberados. dentes ocorreram predominantemente às
No serviço, há condutas diferentes adotadas
segundas-feiras (27,7% em 2003 e 24,6%
pelos médicos quanto à duração do trata-
em 2004) e no período da manhã (63%
mento com anti-retrovirais: alguns médicos
em 2003 e 54,8% em 2004). Constatou-se
interrompem o tratamento se os resultados
queda acentuada da ocorrência dos AT aos
da sorologia para HIV forem negativos; ou-
sábados e domingos bem como no período
tros, mesmo diante deste resultado, conti-
da noite, fato que pode estar relacionado à
nuam os tratamentos por 30 dias;
redução de atividades e do número de tra-
2º. O acidentado deve dirigir-se à far- balhadores expostos ao risco, uma vez que
mácia para retirar as medicações e iniciar o as equipes de trabalho são reduzidas nos
tratamento em até duas horas após a expo- finais de semana e no período noturno.
sição ocupacional;
No período da manhã, nos hospitais,
3º. O trabalhador acidentado compare- geralmente são efetuadas atividades nas
ce ao laboratório para a coleta do sangue e, quais há manuseio de material perfuro-
a seguir, o laboratório se responsabiliza em cortante, entre os quais cateteres intrave-
coletar os exames do sujeito-fonte; nosos, agulhas, lâminas de bisturis entre
4º. O último passo é comparecer ao outros. Considera-se que, devido à rotina
SESMT para efetuar o registro do acidente. adotada, o trabalhador, no período da ma-
Neste momento, o enfermeiro do trabalho nhã, está mais exposto a riscos acidentais.
orienta o trabalhador sobre a necessidade Os dados obtidos neste estudo coincidem
do uso de Equipamentos de Proteção Indi- com os achados de uma pesquisa realizada
vidual (EPI) e a necessidade de continui- em hospitais públicos de Rio Branco-Bra-
dade dos exames subseqüentes por meio sil (PEREIRA, 2004). A Tabela 3 mostra os
de retornos agendados no período de três e dados relativos ao objeto causador dos aci-
seis meses após o acidente. dentes registrados.

112 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007
Tabela 1 Distribuição dos acidentes do trabalho com exposição a material biológico
no Hospital Universitário integrante do REPAT, no biênio 2003-2004, se-
gundo os dias da semana. Brasília-Brasil

Ano 2003 2004


Dia da semana n % n %
Domingo 3 5,6 4 7,5
Segunda-feira 15 27,7 13 24,6
Terça-feira 9 16,7 8 15,1
Quarta-feira 10 18,5 9 17
Quinta-feira 6 11,1 6 11,3
Sexta-feira 9 16,7 9 17
Sábado 2 3,7 4 7,5
Total 54 100 53 100
Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília.

Tabela 2 Distribuição dos acidentes com risco de exposição a material biológico no


Hospital Universitário integrante do REPAT, no biênio 2003-2004, segundo
o turno da ocorrência. Brasília-Brasil

Ano 2003 2004


Turnos n % n %
Manhã 34 63 29 54,8
Tarde 13 24 20 37,7
Noite 7 12,9 4 7,5
Total 54 100 53 100
Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília.

Tabela 3 Distribuição dos acidentes com risco de exposição a material biológico no


Hospital Universitário integrante do REPAT, no biênio 2003-2004, segundo
o objeto causador. Brasília-Brasil

Ano 2003 2004


Objeto causador n % n %
Agulha e cateter endovenoso 42 77,7 47 88,8
Sangue/secreção em mucosa/pele 6 11,2 2 3,8
Lima usada na Odontologia 1 1,8 - -
Lâmina vidro/bisturi 3 5,6 1 1,8
Tubo de vidro 2 3,7 2 3,8
Porta enferrujada - - 1 1,8
Total 54 100 53 100
Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília.

Observa-se que, em 2003, agulhas e período de julho de 2002 a julho de 2003,


cateteres endovenosos foram responsáveis identificou-se que 62,8% dos acidentes
por 77% das lesões com exposição do aci- ocorridos envolviam objetos perfurocor-
dentado a material biológico, sendo consi- tante (GOMES, 2005). A distribuição dos
derados potenciais veículos transmissores acidentes segundo parte do corpo atingida
de infecções. Em 2004, a freqüência de AT encontra-se na Tabela 4.
com agulhas e cateteres aumentou para Pela própria natureza do trabalho, as
88,8%. Em estudo realizado no mesmo mãos e os quirodáctilos foram as partes
hospital sobre a ocorrência acidentária no do corpo mais atingidas, com freqüências

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007 113
semelhantes nos dois períodos estudados. 2003, houve maior ocorrência de acidentes
Constatou-se que os trabalhadores estão nos meses de março e outubro e, no ano de
sofrendo injúrias também nos pés e nas 2004, nos meses de janeiro e outubro.
pernas e essas estão ocorrendo em função
No período estudado, os serviços com
do descarte inadequado de material perfu-
rocortante, resultante do posicionamento maior ocorrência das injúrias foram os
não adequado dos recipientes de descarte, setores de clínica médica e pronto aten-
que devem estar em bancadas em altura de dimento. Esses locais são considerados os
fácil acesso para seus usuários. setores de maior concentração de pacientes
e trabalhadores do hospital estudado. No
Na Figura 1, apresentam-se os resulta- primeiro local, onde há 66 leitos ativados,
dos relativos ao mês de ocorrência dos AT estão expostos 102 trabalhadores, enquan-
por meio da análise temporal. to que, no segundo, com 31 leitos, há 89
Observa-se, nos resultados apresen- trabalhadores expostos, sem computar os
tados na Figura 1, que, embora não exis- alunos, cuja rotatividade é grande. Na Ta-
ta tendência ascendente ou descendente bela 5, são apresentados os AT segundo os
para incidência acumulada de AT, durante setores do hospital.

Tabela 4 Distribuição dos acidentes com risco de exposição a material biológico no


Hospital Universitário integrante do REPAT, no biênio 2003-2004, segundo
partes do corpo atingidas. Brasília-Brasil

2003 2004 Total


Parte do corpo atingida
n % n % n %
Mãos e quirodáctilos 46 85,4 47 88,8 93 86,9
Olho(s) 4 7,4 2 3,8 6 5,7
Lábios 1 1,8 - - 1 0,9
Antebraço 1 1,8 2 3,8 3 2,9
Pé 1 1,8 1 1,8 2 1,8
Perna 1 1,8 1 1,8 2 1,8
Total 54 100 53 100 107 100
Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília.

Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília


Figura 1 Evolução temporal do número de acidentes de trabalho com exposição a material biológico /
1.000 trabalhadores por mês no Hospital Universitário integrante do REPAT nos anos de 2003
e 2004, segundo os meses do ano

114 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007
Tabela 5 Distribuição dos acidentes com risco de exposição a material biológico no
Hospital Universitário integrante do REPAT, no biênio 2003-2004, segundo
os locais de trabalho. Brasília-Brasil

Ano 2003 2004


Locais de trabalho n % n %
Clínica médica 10 18,6 10 19,1
Centro cirúrgico 10 18,6 3 5,6
Setor de pronto atendimento 8 14,8 15 28,5
Clínica odontológica 7 13 4 7,5
Centro obstétrico/maternidade 6 11,1 2 3,7
Laboratórios 4 7,4 6 11,2
Clínica cirúrgica 4 7,4 4 7,5
Pediatria 2 3,7 3 5,6
Setor de diálise 1 1,8 1 1,8
UTI 1 1,8 5 9,3
Sala de vacinas 1 1,8 - -
Total 54 100 53 100
Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília

Tabela 6 Distribuição dos acidentes com risco de exposição a material biológico no


Hospital Universitário integrante do REPAT, no biênio 2003-2004, segundo
a ocupação. Brasília-Brasil

Ano 2003 2004


Ocupação n % n %
Estagiários 24 44,4 21 39,7
Trabalhadores de enfermagem 19 35,2 20 37,72
Trabalhadores do setor de limpeza 4 7,4 2 3,8
Trabalhadores do setor de laboratório 4 7,4 4 7,55
Médicos 1 1,8 3 5,66
Outros 2 3,8 3 5,66
Total 54 100 53 100
Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília

Embora os números sejam pequenos médica, laboratório de análises clínicas e


e impossibilitem uma análise estatística odontologia foram os locais onde foram re-
mais ampla dos dados e a interpretação de gistrados 64,5% dos AT em 2004.
diferenças estatisticamente significativas,
os achados mostram a realidade do hos- A literatura evidencia que os serviços
pital estudado e merecem ser destacados, de urgência e centros cirúrgicos são locais
pois podem ser indicativos dos setores do onde frequentemente ocorrem os maio-
hospital para a implantação de novas es- res índices de AT com material biológico
tratégias preventivas à ocorrência de AT. devido aos numerosos procedimentos re-
No entanto, estudos complementares serão alizados com manuseio de material per-
realizados para esclarecer o significado das
furocortante e ao grande número de pa-
diferenças encontradas. As unidades de
clínica médica, centro cirúrgico, pronto cientes/clientes assistidos (MARZIALE,
atendimento e odontologia foram os locais NISHIMURA & FERREIRA, 2004). A Tabela
onde ocorreram 65% dos AT em 2003 e as 6 mostra a freqüência dos acidentes ocorri-
unidades de pronto atendimento, clínica dos no biênio estudado.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007 115
Nos registros, observa-se que 45 aciden- sangue e outros fluidos corporais com a
tes, no biênio, ocorreram com estagiários pele, é extremamente importante na prote-
de Medicina, Odontologia e Enfermagem, ção dos profissionais durante a realização
os quais representaram 24 (44,44%) dos de procedimentos com material perfuro-
episódios acidentais de 2003 e 21 (39,7%) cortante, dado que os fatores de risco para
das ocorrências de 2004. Embora com inci- aquisição de vírus depois da exposição
dências menores, constatou-se, no ano de ocupacional dependem da quantidade e
2003, a ocorrência de acidentes entre ci- do grau de contato do trabalhador com o
rurgiões-dentista (1,8%) e trabalhadores do sangue inoculado.
setor administrativo (1,8%) e, em 2004, en-
tre farmacêuticos (3,8%) e trabalhadores de No entanto, muitas vezes os trabalhado-
lavanderia (1,8%). Cabe destacar que traba- res de saúde desconhecem essas informações
lhadores de diferentes categorias profissio- e acreditam que o uso deste EPI não diminui
nais foram vítimas de acidentes com expo- a inoculação de sangue, o que tem sido uma
sição a material biológico, os quais também barreira para a adequada utilização de luvas
merecem atenção quando do planejamento principalmente na administração de medi-
de estratégias preventivas. Outro dado que cações por via endovenosa (ZAPPAROLI,
merece destaque é o pequeno número de MARZIALE & ROBAZZI, 2006).
acidentes ocorridos entre trabalhadores do Para cálculos dos coeficientes de in-
serviço de limpeza (3,8%), uma popula- cidência acumulada de acidentes de tra-
ção exposta ao risco devido ao manuseio e balho por 100 trabalhadores por ano de
transporte de lixo e dos recipientes de des- exposição, foram considerados, no estudo
carte de material perfurocortante. ora apresentado, apenas os trabalhadores
Estudo realizado na Faculdade de Me- formais do hospital. Os resultados encon-
dicina de Minas Gerais comprovou que os trados são descritos na Tabela 7.
estudantes apresentam alto risco de expo- Observa-se que, embora, em 2004, o
sição a sangue, conseqüentemente, risco risco estimado para os farmacêuticos e bio-
potencial de exposição ao HIV e baixo ní- químicos tenha sido de 33,33 acidentes por
vel de conhecimento das medidas univer- 100 trabalhadores, esses resultados não
sais de biossegurança (TOLEDO JUNIOR, são estatisticamente significativos devido
1999). Assim, sugere-se que o referido tema ao pequeno número de sujeitos expostos e
seja abordado em futuras pesquisas. merecem ser tema de futura investigação.
Em estudo realizado também no Hos- No entanto, para fins preventivos, mere-
pital de Brasília, foi constatado que, entre cem ser mencionados neste estudo. Sendo
os médicos vítimas de acidentes do traba- assim, observa-se ainda que os trabalhado-
lho com exposição a material biológico, a res de laboratório consistentemente apre-
maioria não estava utilizando EPI quan- sentam os maiores coeficientes e, como
do da ocorrência do acidente e apresenta- conseqüencia, a probabilidade de sofrer
vam resistência principalmente ao uso de um sinistro nesta categoria é mais do que
luvas na realização de punções venosas duas vezes superior do que nas demais ca-
(REPAT, 2007). tegorias nos anos de 2003 e 2004.

O uso de luvas é recomendado inter- Os resultados obtidos mostram que


nacionalmente por meio das Precauções 77,8% dos trabalhadores acidentados em
Padrão e é considerada uma medida pre- 2003 e 83% em 2004 referiram usar EPI
ventiva à exposição a material biológico. quando da ocorrência dos AT. No entanto,
Apesar de não impedir a perfuração, elas 22,2% em 2003 e 17% em 2004 não usa-
funcionam como uma barreira mecânica vam os equipamentos de segurança.
auxiliar para diminuir o risco de contato Ações e estratégias preventivas utilizadas
com patógenos transportados pelo sangue. para a prevenção dos AT
Estudos evidenciaram que o uso de luvas
pode reduzir o volume de sangue injeta- As estratégias usadas pelo hospital
do por agulhas de sutura em 70% (MAST, para a prevenção de AT, segundo dados
WOOLWINW & GERBERDING, 1993) e a informados pelo enfermeiro do trabalho,
inoculação de sangue por agulhas para o são: treinamento em serviço, realização
tratamento intravenoso em 35% a 50%, de visitas de rotina do enfermeiro do tra-
considerando que parte deste fluido pode balho às unidades de trabalho, orienta-
permanecer no bisel da agulha (ROSE, ções individuais realizadas na consulta
1994). Assim, o uso de luvas, além de im- de enfermagem por ocasião dos exames
pedir o contato de maior quantidade de periódicos de rotina. Não existe um pro-

116 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007
Tabela 7 Distribuição dos coeficientes de incidência acumulada de acidentes de trabalho por 100 trabalhadores
por ano de exposição, com vínculo empregatício, no Hospital Universitário integrante da REPAT, no
biênio 2003-2004, segundo a ocupação. Brasília-Brasil

Número de 2003 Número de 2004


Categorias trabalhadores expostos Coeficiente de ocorrência trabalhadores expostos Coeficiente de ocorrência
2003 de AT 2004 de AT

Trabalhadores de laboratório 30 13,33 29 10,34

Trabalhadores de enfermagem 500 9,11 525 7

Cirurgiões-dentista 13 7,69 09 0

Trabalhadores do setor de limpeza 100 4 112 1,78

Trabalhadores do setor administrativo 30 3,33 26 0

Médico 199 0,5 201 1,49

Farmacêutico/bioquímico 09 0 06 33,33

Trabalhadores do setor de lavanderia 48 - 42 2,38

Fonte: Ambulatório de Saúde do Trabalhador, Hospital Universitário de Brasília

grama preventivo direcionado a cada um UnB nesse projeto. Trata-se de informa-


dos setores do hospital considerando as ções que poderão orientar futuras ações
peculiaridades das atividades realizadas, de prevenção de acidentes do trabalho.
das características dos trabalhadores e
das condições do ambiente de trabalho. O intercâmbio de informações entre
enfermeiro do trabalho e pesquisadores
Contribuições da REPAT da REPAT possibilitou a elaboração des-
Os resultados deste estudo, obtidos ta pesquisa e, à equipe do SESMT, reava-
por meio de análise do banco de dados da liar a forma de registro dos AT e as ações
REPAT, apontam para a importância da empregadas no hospital para prevenção e
participação do Hospital Universitário da controle dos AT com material biológico.

Considerações finais

Considera-se que as estratégias pre- tados encontrados mostraram a realidade


ventivas usadas (treinamento, visitas de do hospital e indicaram a necessidade de
inspeção aos locais de trabalho e orienta- implantação de novas estratégias preven-
ções individuais) devam ser reformuladas tivas à ocorrência de AT e a necessidade
e embasadas em métodos educativos e de da realização de estudos complementares
promoção à saúde ocupacional centrados visando esclarecer o significado das dife-
não só na prevenção de acidentes, mas na
renças encontradas.
melhoria da qualidade de vida no traba-
lho. Para isso, há necessidade de atenção Considerando-se, ainda, o elevado
às formas de organização do trabalho e número de AT sofrido por estagiários, su-
às condições de trabalho oferecidas pelo gere-se que o tema seja objeto de futuras
hospital a seus trabalhadores. pesquisas, bem como a inserção do con-
Embora os dados obtidos impossibi- teúdo de segurança no trabalho nos currí-
litassem a interpretação de diferenças culos de graduação dos cursos da área da
estatisticamente significativas, os resul- saúde, capacitando os alunos a identifica-

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007 117
rem riscos ocupacionais e principalmente seria complementar à CAT, documento le-
como preveni-los. galmente exigido.
De acordo com o contrato de trabalho, Diante da realidade identificada, a RE-
os acidentes são registrados no hospital PAT propõe a implantação de estratégias
em diferentes formulários e muitas vezes preventivas a serem efetuadas por meio da
de forma incompleta, o que pode dificultar educação permanente, visando à identifi-
o planejamento de estratégias preventivas cação dos riscos ocupacionais relacionados
mais elaboradas. Assim, o formulário da à maneira como o trabalho é organizado e
REPAT pode ser adotado pelo hospital por executado em cada setor de trabalho, com
possibilitar a reunião de todas as infor- implantação inicial nas unidades de clíni-
mações em um único documento, o qual ca médica e pronto-socorro.

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Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 109-119, 2007 119
Saúde do trabalhador no SUS: desafios e perspecti-
Edvânia Ângela de Souza Lourenço1 vas frente à precarização do trabalho
Íris Fenner Bertani2
Workers’ health at the Public Unified Health System – challenges
and perspectives facing precarious work

1 Doutoranda em Serviço Social Resumo


da Universidade Estadual Paulista
(Unesp). Assistente Social do Refletir sobre o campo saúde do(a) trabalhador(a) é o objetivo deste estudo.
Centro de Referência em Saúde do
Busca-se sublinhar o significado das condições de trabalho para o ser huma-
Trabalhador (CRST) de Franca-
SP. Docente do curso de Serviço no do ponto de vista da saúde. A premissa não é quantificar, mas inferir que
Social do Instituto Municipal de as condições de trabalho podem gerar danos à saúde, mas nem sempre apre-
Ensino Superior-SP. Membro do sentam de imediato a sua relação com o trabalho. São discutidas, a partir da
QUAVISSS. Franca-SP. abordagem qualitativa, três situações, as quais contemplam os trabalhos rural,
2 Professora Adjunta da Graduação informal e infantil e, como resultado, verifica-se a contradição da categoria
e da Pós-Graduação em Serviço trabalho, que, se por um lado é sinônimo de sociabilidade, por outro, contradi-
Social da Universidade Estadual toriamente, constitui-se em mecanismo de exclusão social na medida em que é
Paulista (Unesp) e Coordenadora realizado sem o reconhecimento dos direitos sociais e trabalhistas. Verifica-se
do QUAVISSS. Franca-SP. a expansão de formas de trabalho sem regulamentação, tais como o domiciliar
e o familiar e os realizados em locais como a rua e o lixo. Encerra-se a reflexão
com destaque ao papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na “assistência inte-
gral” à saúde dos(as) trabalhadores(as) e ao desafio de atuar na perspectiva de
prevenção e promoção da saúde do trabalhador de modo integrado e articula-
do aos demais órgãos públicos que atuam nesta área.
Palavras-chave: saúde do trabalhador, acidentes de trabalho, doenças do tra-
balho, saúde pública e políticas públicas.

Abstract
The objective of this study is to ponder on occupational health, searching for
the meaning of work to workers’ health. The premise is not to quantify, but
to infer that the work conditions can generate damages to health, although
this relationship is not always immediately apparent. Three situations that
contemplate rural and informal work, as well as child labor are discussed, using
a qualitative approach. As a result, the contradiction of work is verified. It could
be a synonym for sociability, but on the other hand, it is a mechanism for social
exclusion, when conducted without the recognition of the workers’ social and
labor rights. The expansion of jobs without regulation have been observed such
as the ones conducted at home or within families, or on the streets and at the
waste landfills. The article ends by discussing the role of the Public Unified
Health System (SUS) in the “integral assistance” to workers’ health and the
challenge of acting with a preventive perspective and towards occupational
health promotion, in a joint effort with other public organization in this field.
Keywords: occupational health, work accidents, occupational diseases,
public health and public policy.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 121
Introdução

O SUS e o campo saúde do trabalhador proteção do meio ambiente, nele compre-


endido o trabalho”.
As ações de saúde do trabalhador têm
as suas raízes no processo histórico das lu- Na década de 1990, diversas portarias
tas sociais deflagradas no Brasil a partir da e leis foram criadas com o objetivo de ga-
década de 1970, mas ações inusitadas co- rantir os princípios básicos e a efetivação
meçaram a ganhar corpo apenas na década do SUS. No decorrer dos últimos 15 anos,
de 1980 nos governos municipais de ênfase apesar dos limites marcados pelo cliente-
política democrática. lismo, populismo e paternalismo presen-
tes na administração pública, o SUS tem
Pode-se perceber uma relação entre a
conseguido solidificar as bases para o di-
redemocratização do Estado brasileiro no
reito à saúde com ênfase na gestão demo-
decorrer dos anos de 1980 e a mudança
crática e participativa.
de postura política no enfrentamento dos
eventos agressivos à saúde no trabalho. Os protagonistas sociais e políticos
Segundo Vilela (2003), nessa época foram envolvidos na II Conferência Nacional de
constituídas as primeiras ações de saúde Saúde do Trabalhador (II CNST) debateram
do trabalhador no âmbito do SUS por meio e reafirmaram a responsabilidade do SUS
dos Programas de Saúde do Trabalhador frente aos acidentes de trabalho. O relató-
(PST) em vários municípios. rio final do II CNST garantiu “[...] à unifica-
ção no SUS de todas as ações de saúde do
Segundo Lacaz (1996), a década de
trabalhador” (LACAZ, 1997). É reconheci-
1980 representa um marco histórico para
da também pela continuidade das discus-
a saúde do trabalhador, pois este passa a
sões técnicas e políticas na constituição do
ser reconhecido como sujeito possuidor de
campo saúde do trabalhador e, portanto,
saber e não mero consumidor de serviços
para a observância da responsabilidade da
de saúde. O campo Saúde do Trabalhador,
política de saúde pública nos processos
segundo o autor, tem como pressuposto
de produção. Dias e Hoefel (2005, p. 820),
a participação dos(as) trabalhadores(as)
apontam que esta conferência também foi
no processo de avaliação e controle dos
marcada pela “[...] acirrada disputa quanto
acidentes de trabalho e não se restringe à
aos espaços de atuação entre os Ministérios
concepção de riscos profissionais e agentes
do Trabalho e da Saúde”.
causadores (físicos, biológicos, químicos,
mecânicos e ergonômicos), mas reconhece No final de 1990, em cumprimento a
outras determinações para os sofrimentos Lei Orgânica da Saúde (BRASIL, 1990b),
físico e mental, relacionando-as com o que delega ao SUS a revisão periódica da
processo produtivo. listagem oficial de doenças originadas no
processo de trabalho, foi editada a nova
Em seu estudo, Lacaz (1996) enfatiza
Lista de Doenças Relacionadas ao Traba-
ainda o papel substancial da Constituição
lho (BRASIL, 1999). Ressalta-se que, ao
Federal de 1988, precedida pela VIII Con-
estabelecer a relação entre doenças e tra-
ferência Nacional de Saúde, em 1986, e na
balho num conceito mais amplo e prever
continuidade pela 1ª Conferência Nacional
a sua revisão anualmente com vistas à
de Saúde do Trabalhador (I CNST), na as-
inclusão de novas doenças, propiciou um
sistência universal ao trabalhador acompa-
avanço para novas práticas e políticas no
nhada da prevenção e da intervenção nos
campo saúde do trabalhador.
ambientes de trabalho.
Outro aspecto positivo possibilitado
A Carta Constituinte (BRASIL, 1988)
pela edição da Lista de Doenças Relacio-
estabelece parâmetros legais para a cons-
nadas ao Trabalho é o fato de ter sido ado-
tituição do campo saúde do trabalhador no
tada também
Sistema Único de Saúde (SUS). Seu artigo
200 estabelece a ampliação do atendimento pelo Ministério da Previdência e Assistên-
do SUS para além da intervenção no corpo cia Social, regulamentando o conceito de
ou suas partes; evolui para a intervenção Doença Profissional e de Doença Adqui-
rida pelas condições em que o trabalho é
nas causas e, inclusive, nos ambientes
realizado [...]. (DIAS, 2001, p. 20)
de trabalho, como verificado no inciso II
“executar as ações de vigilância sanitária e Desse modo, a doença relacionada ao
epidemiológica, bem como as de saúde do trabalho para fins de benefícios pode ser
trabalhador” e no inciso VIII “colaborar na equiparada ao acidente de trabalho (BRA-

122 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
SIL, 1991). Assim, a legislação utiliza a uma questão de saúde coletiva, fruto das
expressão acidentes de trabalho para se condições e da organização do trabalho.
referir também às doenças relacionadas ao
Lacaz (1996, p. 54) indica que no cam-
trabalho. Contudo, optou-se por utilizar
o termo agravos à saúde por considerá-lo po saúde do trabalhador:
mais abrangente. [...] o coletivo de trabalhadores é percebi-
do como produtor e não mais consumidor
A participação política de trabalha- de condutas, prescrições/orientações, me-
dores e demais atores sociais é responsável dicamentos etc.
pelas definições dos elementos de incen-
tivo, tanto econômicos como ideológicos, Portanto as ações devem ser sociali-
do Ministério da Saúde (MS) para implan- zadas e integradas a quem mais interessa
tação concreta dessa área do conhecimento melhorar as condições de saúde: os pró-
e de intervenção, a qual passa a ter condi- prios trabalhadores.
ções concretas de ser efetivada a partir da
Neste aspecto, os CRST têm envolvido
publicação da Portaria 1679/2002 (BRASIL,
a sociedade com a discussão da questão
2002), que normatiza a “habilitação” e o
convênio entre os municípios, o Estado e o saúde/trabalho. A habilitação do CRST
MS para a implantação dos Centros de Re- exige a formação de um Conselho Gestor
ferência em Saúde do Trabalhador (CRST) e, neste, as entidades representativas da
em âmbito regional. classe trabalhadora e patronal, dentre ou-
tras, são convidadas a pensar-agir sobre
A incorporação da saúde do traba- as questões locais referentes à saúde do(a)
lhador pelo SUS reconhece, nos ambientes trabalhador(a).
e processos de trabalho, as condições para
os eventos agressivos à saúde “de quem Além da participação dos(as) traba-
trabalha” na perspectiva epidemiológi- lhadores(as), Lacaz (1996) aponta a abor-
ca. Não se restringe a atender o lesionado dagem multi e interdisiciplinar presente
individualmente, mas busca quantificar no campo saúde do trabalhador. A análise
o número de pessoas expostas à insegu- e o enfrentamento cotidianos da complexi-
rança e qualificar essas condições para dade dos processos de trabalho para a saú-
posteriores mudanças. de passam a contar com novas categorias
profissionais, o que representa um avanço,
Saúde do trabalhador: por quê?
à medida que se distancia do diagnóstico/
Não há uma resposta única para de- ação restrito à engenharia e à medicina.
fender a emergência e a solidificação do
campo saúde do trabalhador no SUS, mas Assim, a Rede Nacional de Atenção In-
a legitimidade desta proposta se constitui tegral à Saúde do Trabalhador (RENAST),
por meio de vários pressupostos, como, por meio dos CRST, tem implantado uma
por exemplo, que os serviços de saúde já nova lógica de trabalho nos vários muni-
prestam atendimentos aos agravos, sen- cípios brasileiros baseada na construção
do necessário buscar as suas causas e ne- de ações intersetoriais entre os serviços de
las intervir, ou seja, transcender as ações saúde, como a rede básica e as vigilâncias
curativas para as de prevenção, promoção epidemiológica, ambiental e sanitária, e
e vigilância em saúde do trabalhador. Ou- prevê ações coordenadas com os órgãos de
tros fatores relacionam-se à abrangência atuação nos ambientes de trabalho (Posto
territorial do SUS e ao número de equipes de Atendimento ao Trabalhador (PAT), De-
profissionais capazes de desenvolver ações legacia Regional do Trabalho (DRT), Fun-
voltadas à saúde do trabalhador. Inúmeras dação Jorge Duprat Figueiredo de Seguran-
outras questões poderiam ser elencadas, ça e Medicina do Trabalho (Fundacentro),
mas frisa-se, além dessas, a questão da Ministério Público (MP), Instituto Nacional
democracia e da epidemiologia, as quais de Previdência Social (INSS) e outros).
têm materializado avanços para as ações
de saúde. Então, defende-se a inclusão, no A atualização permanente de conheci-
contexto do SUS, das ações relativas aos mentos da equipe técnica dos CRST tam-
agravos à saúde de quem trabalha por acre- bém faz parte da diretriz da política na-
ditar-se que favorece a redução do vácuo cional de saúde do trabalhador, bem como
entre o indivíduo que sofre o acidente de a participação dos(as) trabalhadores(as),
trabalho e as condições em que é realiza- considerada essencial para o diagnóstico
do, ou seja, deixa de ser uma “suscetibili- dos riscos e, concomitantemente, para in-
dade” individual para ser situado como tervenção e mudança.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 123
Dias e Hoefel (2005) expõem que é saúde dos(as) trabalhadores(as). Os autores
também proposta da RENAST coletivizar reforçam o avanço que representa a insti-
a questão dos acidentes e adoecimentos tucionalização das ações de saúde do tra-
relacionados ao trabalho por meio do re- balhador no âmbito do SUS, mas criticam
gistro desses eventos no sistema de infor- a falta de êxito relativa à proposta inicial
mação, o que possibilita a identificação quanto à articulação com a rede básica e
dos fatores de risco e a orientação das o suporte técnico e especializado oferecido
ações de vigilância. pelos CRST no projeto original do Progra-
ma de Saúde do Trabalhador (PST).
Contudo, na prática, há uma enorme
contradição entre ações assistenciais aos(às) Às dificuldades culturais, ideológicas e
trabalhadores(as) que sofreram acidentes políticas no estabelecimento de ações efi-
de trabalho e a nova proposta da RENAST. cazes no campo da saúde do trabalhador
Isto é, a discussão sobre a responsabilidade somam-se as mudanças do mundo do tra-
do SUS na intervenção sobre os processos balho e a opção do Estado pelo projeto neo-
de trabalho, debatida na II CNST (1994) e liberal de governo.
ampliada na III CNST (2005), ainda não
A precariedade das condições de tra-
foi esgotada, especialmente no que tange à
balho manifestada na violação dos di-
inspeção, o que não pode ser tratado como
reitos trabalhistas, na insegurança do
algo desprezível na efetivação do campo
posto e do ambiente de trabalho, no au-
saúde do trabalhador.
mento do ritmo da produção e das exigên-
O que se verifica nos dois anos de fun- cias (pressão) interfere na saúde dos(as)
cionamento do CRST de Franca-SP, ao se trabalhadores(as) e também no modo de
considerar a realidade regional, é o início agir, pensar, sentir e fazer ou, nas pala-
da práxis no campo saúde do traba lhador. vras de Antunes (1999, p. 15), na “subjeti-
Há um esforço para construir dados fide- vidade da classe trabalhadora”.
dignos sobre os acidentes e as doenças re-
Antunes (1999) mostra que houve uma
lacionadas ao trabalho e, a partir destes,
processualidade contraditória, ou seja, a
estabelecer as ações. Porém, ainda ocorre
mudança radical na organização do sistema
uma dificuldade de entendimento sobre
de produção, marcada pela reestruturação
“de quem é a responsabilidade de fisca-
produtiva, pela terceirização e pela flexibi-
lizar, inspecionar, conter e prevenir os
lização, resultou, por um lado, na redução
acidentes de trabalho, o que resulta em
do operariado industrial e fabril e, por ou-
visível omissão de ação” (LOURENÇO &
tro lado, na subproletarização do trabalho
BERTANI, 2006, p. 50).
expressado nas formas de trabalho parcial,
Apesar do campo saúde do trabalhador precário, temporário, informal, entre tantas
ter sido construído com a participação de modalidades existentes.
vários atores sociais e políticos e de ter
Tudo isso corrobora a inflexão do movi-
sido reconhecido no plano legal, não foram
mento sindical e a pulverização da classe
efetivadas novas práticas para além da as-
trabalhadora que, no início do século XXI,
sistência médica, salvo algumas ações inu-
trava esforços para manter o emprego e gera
sitadas, mas ainda focais.
um retrocesso histórico ao se distanciar da
Refletir sobre a saúde do trabalhador melhoria das condições de trabalho.
no SUS significa sublinhar uma área de
Desse modo, o fenômeno dos acidentes
conhecimento em construção e que se pro-
de trabalho passa a representar uma nova
põe a compreender as manifestações das
demanda à medida que não se restringe
condições de trabalho para a saúde não
ao setor formal de caráter industrial, mas
apenas na esfera dos acidentes de trabalho
atinge o informal, com forte predomi-
no âmbito industrial, mas também a sua re-
nância do setor de serviços. Os desempre-
percussão, do ponto de vista da saúde, no
gados, os aposentados e, ainda, crianças
campo da agricultura e dos serviços (MI-
e adolescentes trabalhadores constituem
NAYO-GOMES & LACAZ, 2005).
“novos” problemas de saúde. Este fenôme-
Trata-se de um modelo, como aborda no está imbricado com uma contraditória e
Lacaz (1996), em construção, mas que, se- complexa estrutura presente nas diferentes
gundo Minayo-Gomes e Lacaz (2005), ao formas de produção e perpassa a economia
longo de vinte anos, desde as primeiras familiar, a formal, as empresas arcaicas e
experiências, apresentou um impacto de até as mais modernas. Portanto, é neces-
pouca visibilidade frente à complexidade sária uma ação coordenada que busque as
do modo de produção e seus efeitos para a causas e que nelas interfiram.

124 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
A forma fenomênica de apresenta- efetivar o campo saúde do trabalhador com
ção dos agravos relacionados ao trabalho atendimentos centrados apenas no caráter
não trazem à tona, de imediato, as con- das esferas biológica e individual. Há de se
dições concretas a que a maioria dos(as) considerar o processo de trabalho e as re-
trabalhadores(as) está inserida. Assim, a lações por ele estabelecidas no tocante às
terminologia “saúde do trabalhador” está incapacidades permanentes e temporárias.
envolta pela compreensão mais ampla da
realidade, considerada aqui como um todo O olhar epidemiológico deve ser co-
que tem uma estrutura construída com locado em prática e o SUS, pela sua ca-
partes que se relacionam entre si, dinâmi- pilaridade, pode avançar na questão da
ca e mutável. O olhar para a realidade está saúde/trabalho. O sistema de informação
sujeito a várias interferências. Assim, a ne- pode dar visibilidade teórica e empírica às
gação da aparência inicial e as mediações reais condições de trabalho e, assim, re-
tornam-se importantes no processo de in- verter a cultura de que o trabalho é bom
vestigação e ação. independentemente das condições em
que é realizado.
Apreender as condições de trabalho
de modo interdisciplinar e coletivo para Ao indagar sobre o campo saúde do
reconstruí-las racionalmente é um desa- trabalhador como área de intervenção do
fio dialético, materialmente necessário SUS, pretendeu-se evidenciar o papel dos
para qualificar a questão dos acidentes serviços de saúde não apenas na assis-
de trabalho, caracterizando-os como ele- tência ao problema de saúde apresentado
mentos constitutivos da lógica reproduti- pelo(a) trabalhador(a), mas, sobretudo, na
va do sistema capitalista e jamais como intervenção das causas a partir dos princí-
uma questão individual ou como “fatali- pios do SUS: universalidade, integralida-
dade do destino”. de, descentralização e participação.
Para Minayo-Gomez e Lacaz (2005), o Acidentes de trabalho: uma forma de ex-
uso da expressão “saúde do trabalhador” clusão social
está norteado pela compreensão mais am-
pla da realidade que – na acepção marxista Consideram-se os acidentes de trabalho
– tem como núcleo básico o “processo de como um modo de exclusão social. Salien-
trabalho”. Explicitam o alto poder explica- ta-se que o uso do termo “exclusão social”
tivo do processo de trabalho na gênese dos não é usado para designar a pobreza e a de-
agravos à saúde: sigualdade, mas cunha-se à linha adotada
por Ammann (2003), a qual não se preocu-
[...] A análise dos processos de trabalho pa em estabelecer uma conceituação fecha-
é uma ação teórico-prática potente, pois
da da exclusão social e faz uso de estudos
permite identificar as transformações ne-
cessárias a serem introduzidas nos locais atuais acerca da temática para justificar
e ambientes para a melhoria das condi- que tal expressão sugere um estado de pri-
ções de trabalho e saúde. (Minayo-Gomes vação, mas não recupera, historicamente,
& Lacaz, 2005, p. 799) os processos que a engendram. Assim, Am-
Minayo-Gomez e Lacaz (2005) acrescen- mann (2003) discute algumas linhas que
tam que a análise da saúde do trabalhador demarcam o tema e adota a postura mar-
nas dimensões do “processo de trabalho” xista de centralidade ontológica do traba-
requer um tratamento interdisciplinar que lho, na qual sublinha o papel fundante do
dê conta de abranger as relações de produ- trabalho na afirmação do ser social e sua
ção e a subjetividade dos vários atores so- determinação nos processos históricos que
ciais nelas envolvidos. Isso ajuda a romper geram ou não a exclusão social.
as análises positivistas e simplificadas de A aproximação dos acidentes de tra-
causa e efeito hegemônicas na medicina do balho como uma forma de exclusão social
trabalho e na saúde ocupacional. se dá à medida que estes favorecem a rup-
Os avanços, contidos na Constituição tura e a desagregação social, como apon-
Federal de 1988 e nas legislações subse- tam Cohn, Karsch e Sato (1985) no estudo
qüentes, que garantem a saúde e a segu- sobre os acidentes de trabalho como uma
rança no trabalho, chocaram-se com as forma de violência. Os autores expõem que
mudanças do mundo do trabalho, amplia- as incapacidades permanentes direcionam
das a partir da década de 1990, que reper- o trabalhador rumo à miséria, “ao estatu-
cutiram, entre outras coisas, em agravos to de inválido e, portanto, de força de tra-
à saúde humana. Portanto, não é possível balho sucateada no mercado” (p. 12).

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 125
Exclusão social se dá não apenas pelo tes de trabalho. As precárias condições
desemprego ou pelos baixos salários, mas de trabalho acompanhadas de perto pela
no sentido da inacessibilidade aos direitos ameaça do desemprego geram instabili-
sociais. Um tipo de exclusão foi denunciado dade, insegurança e risco social e de aci-
por Engels (1985) como “exército indus- dentes que, imbricadas com o aumento da
trial de reserva”, referente ao desemprego pobreza e da desigualdade social, agravam
provocado sobretudo pela substituição do a exclusão social.
homem pelas máquinas no final do sécu-
lo XIX. O autor mostra que o desemprego Assim, a saúde do trabalhador deve se
no início da Revolução Industrial tornou-se aproximar das condições de trabalho não
funcional ao sistema capitalista e nocivo apenas do mercado formal, mas, sobretudo,
para aqueles que estavam inseridos no dos autônomos, das produções indepen-
mercado de trabalho, pois as pessoas de- dentes, familiares ou de cooperativas. Nas
sempregadas se viam obrigadas a aceitarem palavras de Minayo-Gomes e Lacaz (2005,
qualquer trabalho por um valor ínfimo. p. 806): “faz-se urgente conhecer, diferen-
ciar e atender o setor informal e o mundo
A exclusão social da atualidade expõe difuso e desprotegido dos desempregados”.
pessoas como “desprezíveis” do ponto de
vista da concorrência do mercado de tra- Dejours (2005), no estudo sobre a ba-
balho, vive-se a “era tecnológica” e suas nalização da injustiça social, aponta que
mudanças são tantas que se torna difícil pode haver uma dualidade do sofrimento
acompanhá-las. Assim, aqueles que não pelo trabalho. Por um lado, há os que so-
têm acesso, mesmo que minimamente, à frem os efeitos da exclusão do mercado de
educação e à cultura, também não encon- trabalho, que refletem na degradação das
tram chances para concorrer no competi- condições de vida, expressa, entre outros,
tivo mercado, em que trabalho (formal) é no aumento de moradores de rua, de peri-
uma raridade. ferias, e nos holofotes da violência, da mar-
ginalidade, da desnutrição, da subnutrição
Pochmann (2006) mostra o aumento do e dos mais diversos conflitos e doenças so-
desemprego: “[...] Em 2002, por exemplo, o ciais. Por outro lado, estão aqueles inseri-
país registrou a quarta posição no ranking dos precariamente no mercado de trabalho
mundial do desemprego” (p. 60). Aponta e expostos às condições insalubres, insegu-
também que o número de ocupações cria- ras e de risco para as saúdes física e mental.
das, inferiores às extintas e ainda mar- São estes últimos os enfoques deste estudo,
cadas pelo processo de reestruturação e
uma vez que, a rigor, as condições de traba-
flexibilização do setor produtivo, não ga-
lho podem ser retratadas na história das in-
rantem os direitos trabalhistas previstos,
capacidades permanentes ou temporárias e
pois “[...] nos anos 1990, a cada dez empre-
pela miséria social provocada e reafirma-
gos criados, somente quatro foram assala-
da por este processo. Assim, lança-se mão
riados” (p. 61).
da descrição e da análise de três situações
O desemprego, a reestruturação e a fle- que, além do acidente de trabalho em si,
xibilização da produção são particularida- representam a relação das condições do
des em constante relação com os aciden- trabalho com a saúde.

Metodologia

Busca-se, com o relato das situações a seus reflexos para a saúde, materializa-
seguir, identificar a origem da manifesta- das, neste estudo, por meio de entrevistas
ção dos agravos à saúde humana relacio- abertas sem roteiro prévio, mas com refe-
nados ao trabalho. Distancia-se da causa rencial temático definido. A escolha das
natural da doença ou dos agentes causado- situações privilegiou os possíveis efeitos
res. Da mesma forma, não se trata de apre- das condições adversas de trabalho, nem
sentar dados estatísticos, mas discutir as sempre transparentes, como uma questão
condições de trabalho que interferem na de saúde pública.
saúde dos(as) trabalhadores(as) e o papel
Desse modo, uma das situações apre-
do SUS neste processo.
sentadas refere-se à questão do acidente
O método utilizado foi a observação da de trabalho propriamente dito, ocorrido
realidade empírica de três situações que em 26/06/1996, explicitado pela história do
versam sobre as condições de trabalho e trabalhador rural, Aparício da Silva (nome

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fictício), em acompanhamento social no deficiência física provocada pelo trabalho e
CRST de Franca-SP, que se prontificou a também pela conseqüente exclusão deste.
ser sujeito desta reflexão a partir do Con-
Aparício refere que no dia do aciden-
sentimento Livre e Esclarecido.
te trabalhou durante o período noturno
Na continuidade da reflexão, enfoca- “arando” terra e parou por volta das 4 ho-
se o trabalho informal realizado em um ras da manhã. Ao guardar o maquinário
depósito de catadores de lixo, situado em (trator), foi abordado pelo empregador que
Brasília-DF, em condições de possíveis lhe pediu para moer o “trato” do gado, uma
agravos à saúde. Este foi escolhido, exa- vez que o funcionário responsável por essa
tamente, por representar a flexibilidade função havia faltado. Segundo ele, tentou
do mercado de trabalho acompanhada da argumentar que estava cansado, mas dian-
precarização das condições em que é rea- te da insistência, assumiu a função. Lem-
lizado e seus possíveis reflexos, ainda no bra que o tempo estava chuvoso e o chão
anonimato, para a saúde. escorregadio, estava sozinho manuseando
a máquina de moer “trato” para o gado
Assim, a escolha da segunda situação se quando escorregou e teve a sua perna pu-
deu, justamente, por representar a comple- xada pela máquina:
xidade das mudanças no mundo do traba-
lho em um momento de avançada discus- Não sei direito o que aconteceu, mas gra-
ças a Deus que a máquina travou. Eu ten-
são sobre a relação entre trabalho e saúde
tei não dormir, porque estava sozinho,
ocorrida na III CNST, em novembro de fui socorrido por um colega por volta das
2005. Nesse período, realizou-se visita ao 8 horas e isso aconteceu a pouco mais das
local, depósito de lixo coletado por catado- 4 horas, então não sei como não morri.
res, e entrevistou-se uma das famílias que (Aparício)
concordou em fazer parte desta reflexão.
O trabalhador foi socorrido e levado
Reforça-se que a preocupação com o pelo Serviço de Resgate à Santa Casa de
aumento da informalidade, do trabalho Franca. Lá recebeu todos os cuidados e
autônomo, “por conta”, e as possíveis re- orientação quanto à Comunicação de Aci-
percussões para a saúde presente e fu- dente de Trabalho (CAT). Mas, ao solicitar
tura dos(as) trabalhadores(as) norteou a a CAT ao empregador, foi convencido de
escolha da situação do trabalhador que, que não era necessário, pois eles (empre-
junto com a sua família, residia no local gadores) lhe dariam tudo o que precisasse.
em que se depositava lixo recolhido para Na época residia com a sua mulher e os três
posterior seleção do que poderia ser co- filhos em casa de propriedade da fazenda
mercializado por eles. onde era funcionário: “Achei por bem se-
guir a orientação do patrão e não mexi mais
Na seqüência, aborda-se outro aspecto com isso, com a CAT” (Aparício).
degradante, que é o trabalho infantil como
uma forma de violência social. A escolha Aparício foi periciado inúmeras vezes
desta questão se deu por observar que, ape- no Instituto Nacional de Seguro Social
sar da avançada legislação brasileira, o tra- (INSS) e, segundo ele, sempre relatou o
balho infantil ainda faz parte das particu- motivo da perda da perna. Após ter conse-
laridades do mercado de trabalho nacional, guido, em 1998, a perna mecânica via SUS
controlado no setor industrial, mas real no (Programa de Órtese e Prótese do Núcleo
mercado informal, conforme observado em de Gestão Assistencial - NGA), deixou de
festividades em locais públicos no muni- receber do INSS um salário mínimo inte-
cípio de Franca e também em praias da re- gral e passou a receber apenas uma parte,
gião norte do Estado de São Paulo durante equivalente, atualmente, a R$119,00 (cen-
o segundo semestre de 2006. to e dezenove reais) por mês, uma vez que,
na visão do seguro social, ele teria con-
Apresentação dos casos dição de trabalhar.
Situação 1: A invisibilidade social dos Contudo, para o empregador, ele não
acidentes de trabalho servia mais para trabalhar em nenhuma
função. Após um tempo do ocorrido, foi
Aparício trabalhava numa importante
dispensado. Os empregadores venderam
fazenda de criação de gado em um muni-
a fazenda e se mudaram para a região de
cípio próximo a Franca-SP. O mesmo per-
Mato Grosso do Sul.
deu a perna esquerda durante o exercício
do seu trabalho, aos 25 anos de idade. O O fato é que, mesmo sendo jovem, a
trabalhador enfrenta a situação dolorosa da deficiência física associada à falta de edu-

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 127
cação formal limitou as possibilidades de ou outros materiais recicláveis, enquanto
inserção no mercado de trabalho: seus pais permanecem no local – um ter-
Ficou muito difícil porque fui criado na
reno baldio – onde depositam o material
roça e é só isso que sei fazer. Eu andei arrecadado para posterior seleção.
arranjando alguns serviços, mas logo não
Trata-se de um trabalho degradante
me pegavam mais, alegavam que era pe-
rigoso e que eu poderia me machucar de realizado no meio do lixo. O que foi des-
novo. (Aparício) cartado por outrem é aproveitado por eles
por uma questão de sobrevivência. Obser-
O desemprego, a falta de moradia, a va-se que Dona Cleuza, enquanto sepa rava
deficiência física (desencadeada pelo aci- o lixo, amamentava a filha mais nova, de
dente de trabalho) levaram Aparício a en- 2 anos, que estava completamente nua. A
frentar sérias dificuldades econômicas e outra filha, de 5 anos, tentava saborear
sociais que, dentre outros, favoreceram a os farelos de resto de um pacote de salga-
dissolução familiar. Sua esposa mudou-se dinhos encontrado no lixo. Outros dois
para Franca, com seus três filhos, em busca filhos com idades ente 6 e 7 anos perma-
de emprego e melhores condições de vida. neciam ao lado do pai observando a lida.
Aparício passou a residir de favor com o
pai, que é idoso. Não há uma separação entre a casa e o
ambiente de trabalho. Ergueram barracos
Situação 2: A informalidade e a invisibi-
de plástico para permanecerem junto ao
lidade social dos possíveis acidentes de
“lixo” e evitarem roubos ou destruição do
trabalho
material arrecadado:
A informalidade entrelaça as pessoas
Às vezes, alguém pode destruir por ba-
no mundo do trabalho sem muitas condi-
gunça mesmo ou roubo, mas os homens
ções de questionamentos e mudanças do
(do governo) destroem para a gente ir em-
que está posto e pode conferir aos seus
bora daqui, mas não podemos ir porque
trabalhadores extrema vulnerabilidade de
não teria como sobreviver. (Manoel)
saúde e de vida.
Ao se considerar que há uma relação
A análise da situação da família de Dona
intrínseca entre trabalho, meio ambiente
Cleuza e Seu Manoel (nomes fictícios) traz
à tona a precariedade das condições de tra- e saúde, talvez este seja o retrato da degra-
balho e também de vida das várias famílias dação socioecológica. O ambiente estava
brasileiras que sobrevivem do lixo. carregado pelo mau cheiro dos restos de
comida e sujeiras próprias do lixo que
Um breve sumário da sua história atraía uma nuvem de mosquitos, infes-
mostra um lado do trabalho totalmente tando o local. A casa improvisada (barra-
inseguro do ponto de vista de possíveis co de plástico) não oferecia proteção nem
contaminação, ferimentos, adoecimentos, conforto aos seus habitantes. Do lado de
da saúde mental no trabalho e, ainda, do fora, um pequeno fogão, também impro-
trabalho infantil. visado, feito com tijolos, trazia as panelas
O casal está em Brasília há 15 anos. postas com restos de alimentos sujeitos à
Oriundos da Bahia, vieram em busca de deterioração devido ao armazenamento e
melhores condições de vida, mas, devido à à conservação inadequados, misturando-
ausência de documentos, de escolaridade, se ao lixo. O ser humano encontra-se aí,
de profissão e de condições financeiras, no seu ambiente de trabalho, vulnerável
não conseguiram emprego ou outro modo a possibilidades de contaminação e aqui-
de sobrevivência. A família não conta sição de doenças e acidentes. Contudo, a
com nenhuma documentação, inclusive relação com o trabalho permanece na in-
dos filhos; por esse motivo, segundo eles, visibilidade social.
não estão cadastrados em nenhum pro- Outra questão observada nessa situa-
grama social federal, como bolsas escola, ção é o trabalho infantil e a falta de pro-
família ou alimentação. Sobrevivem com teção do trabalho do adolescente. Há um
os filhos juntando e separando lixo (or-
processo cultural instalado pela própria
gânico, contaminado etc.) para a seleção
convivência diária das crianças com esse
de materiais (papel, plástico etc.) a serem
modo de trabalho que representa, entre
comercializados.
outros, elementos configuradores para o
O filho mais velho, 15 anos, percorre trabalho infantil e para a naturalização
as ruas de Brasília empurrando um “carri- da cultura do trabalho independente-
nho de mão” da família, em busca de papel mente das condições em que é exercido.

128 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
Situação 3: Trabalho infantil ampliada pelo fato de serem realizadas, ge-
ralmente, no período noturno.
Apesar de contar com uma legislação
que proíbe o trabalho infantil e que protege A violência a que crianças e adoles-
o trabalho do adolescente, é comum en- centes inseridos precocemente no merca-
contrar crianças “ajudando” no orçamento do de trabalho estão sujeitos raramente é
familiar, como o caso do filho de 15 anos revelada nas estatísticas oficiais, pois di-
de Dona Cleuza e Seu Manoel. A questão ficilmente essas atividades se configuram
do trabalho infantil deve ser analisada a como trabalho. Estão forjadas na “ajuda”.
partir de um contexto mais amplo que in- A sociedade “ajuda” a criança e o adoles-
clua a questão da cultura, da política e das cente pobres oferecendo-lhes um trabalho
condições socioeconômicas. e esses, por sua vez, “ajudam” no orçamen-
to familiar, trabalham oito horas diárias,
Evidencia-se, neste estudo, o trabalho às vezes mais, e recebem um salário de
de crianças que exercem funções como a “ajuda”, inferior ao do adulto que exerça a
de “guardador de carros” (para designar a mesma função. Outra questão é que, dian-
função de olhar, “vigiar” enquanto o dono te da situação de base socioeconômica e
se ausenta, situação comum nos estacio- de insuficiência das políticas públicas, o
namentos públicos), “vendedor ambulan- trabalho adquire um caráter disciplinador
te” (designação para a venda de produtos para crianças e adolescentes pobres (BRA-
como água, latinhas de cerveja, balas, cho- SIL, 2005). E, ainda, há de considerar que
colates etc., situação comum no trânsito e muitas doenças relacionadas ao trabalho
em festividades) e catador de produtos re- só irão se manifestar na vida adulta, dis-
cicláveis (papel, latinhas de alumínio e ou- tanciando-se da relação com o trabalho,
tros). As crianças nas condições de traba- além de se configurar como forma de in-
lho referidas, quando questionadas sobre a justiça social banalizada cotidianamente.
atividade, mudaram de assunto e de lugar, As diferenças entre a infância no co-
despistando o nosso olhar, com exceção do letivo e as infâncias podem ser particula-
menino de 6 anos “guardador de carros”. rizadas em situações que envolvam o tra-
balho infantil, como abordado por Moreira
A fala do menino de 6 anos de idade,
e Vasconcelos (2003), que desconstroem a
“guardador de carro”, quando pergunta-
imagem idílica da criança – inocência, vi-
do sobre a atividade, respondeu: “Estou vida em um mundo onírico, quimérico. A
trabalhando para ajudar minha avó”. De- infância, no sentido coletivo, é um direito
monstra uma imagem de preocupações de todos, independentemente das circuns-
travestidas na responsabilidade de manu- tâncias socioeconômico-culturais; con-
tenção da vida, ocorrendo a “adultotização tudo, as espacialidades e os cotidianos em
da infância”, como abordado por Silva que as crianças estão submersas definem o
(2002, p. 151). tipo de infância que estas podem ter, indi-
Trata-se de funções marcadas pela vidualizando-as.
absoluta falta de proteção, segurança ou Verifica-se que essas crianças estão
fiscalização, que expõem essas crianças a imersas em condições inseguras para o seu
todo tipo de adversidades e de violência desenvolvimento biopsicossociocultural.

Discussão

Ao analisar as situações, evidencia- Apenas a partir da Constituição de 1988,


se o sofrimento de trabalhadores que, art. 7º, é equiparado ao trabalho urbano.
em decorrência do trabalho realizado em
Mas, apesar da Carta Constituinte, as
condição precária e sem qualquer tipo de
diferenças de tratamento entre os trabalhos
proteção social ou legal, submetem-se a
urbano e rural, nos planos teórico e prá-
condições insalubres e perigosas por uma
tico, ainda persistem, como é o caso da edi-
questão de subsistência.
ção das Normas Regulamentadoras Rurais
Quanto à primeira situação, importa (NRR), específicas para a área rural. Mas
enfatizar que, historicamente, o trabalho salienta-se que as Normas Regulamentado-
rural foi garantido no patamar dos direitos ras (NR) e as legislações complementares
sociais, trabalhistas e previdenciários de contemplam esta categoria profissional,
modo retardatário em relação ao urbano. como defende Araújo (2005).

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 129
Muitas das exigências contidas nas NR do trabalhador, contava com dispositivo
também estão presentes nas NRR, como de fácil acesso para a interrupção do seu
é o caso dos Serviços Especializados em funcionamento e também apresentava pro-
Prevenção de Acidentes do Trabalho Ru- teção mecânica no ponto de operação, per-
ral – SEPATR. Conforme o artigo 2º da mitindo apenas a introdução do produto
NRR-2, toda propriedade com 100 (cem) ou a ser moído; estava dentro dos prazos de
mais trabalhadores é obrigada a organizar manutenção preventiva?
e manter em funcionamento o SEPATR,
As questões sobre a disposição da má-
que, diferentemente da NR-4, não tem uma
quina no espaço físico, a proteção das in-
classificação de grau de risco.
tempéries, a organização do posto de traba-
A explicação é que esta é uma norma es- lho e a área de estocagem da cana ou outro
pecífica para a atividade rural; logo, todos produto usado no feitio do alimento “trato”
os graus de riscos são estimados como para o gado também devem ser ressaltadas,
iguais. (ARAUJO, 2005, p. 1352)
bem como as condições de instalação e do
Outra exigência da NRR a ser explici- ambiente (“chão escorregadio”).
tada é a necessidade de formação e manu-
Questões relacionadas à organização do
tenção da Comissão Interna de Prevenção
trabalho, como a devida capacitação do tra-
de Acidentes do Trabalho Rural (CIPATR)
balhador para desempenho da função, tam-
pelo empregador que mantenha a média de
bém devem ser consideradas. Além disso,
20 ou mais funcionários, conforme previs-
o fato de ter saído de um posto de traba-
to na NRR-3, artigo 3º (ARAUJO, 2005).
lho diferente do assumido sem o uso de
Contudo, tanto a CIPATR quanto a SE- Equipamento de Proteção Individual (EPI),
PATR não são comuns no plano prático e como botas de PVC de solado antiderra-
um dos fatores que pode estar associado pante e protetores auditivos para operar o
é a falta de fiscalização na área rural, bem trator (usado para arar terra) e a máquina
como a ausência de dados estatísticos fi- (para moer o “trato” do gado), também é
dedignos quanto aos acidentes de trabalho um fator contribuinte.
dessa área.
A discussão do acidente de trabalho
Apesar de existirem instrumentos le- no âmbito rural precisa ser alvo de estu-
gais referentes à proteção da saúde dos(as) dos e ações sistemáticas devido ao grande
trabalhadores(as) rurais, muitos fatores in- número de acontecimentos, conforme le-
terferem na falta de aplicação, como, por vantamento feito na região de Franca por
exemplo, a distância geográfica e/ou física meio do Relatório de Atendimento aos Aci-
dos órgãos públicos responsáveis pela sua dentes de Trabalho – RAAT (LOURENÇO &
efetivação. O elevado número de trabalha- BERTANI, 2006). Ressalta-se que, em julho
dores safristas e temporários, por sua vez, de 2006, acidente semelhante ocorreu no
diminui a capacidade de organização do(a) município de Buritizal, circunvizinho a
trabalhador(a) rural agravada pela baixa Franca-SP, deixando deficiente um jovem
escolaridade e também pela falta de infor- de 21 anos.
mação dos seus direitos.
Verifica-se que a falta de articulação
Verifica-se que Aparício realizava tra- dos serviços públicos, especialmente aque-
balho noturno, no âmbito agrícola, e, ao les relacionados aos Ministérios do Traba-
término da sua jornada, recebeu uma nova lho, da Saúde e da Previdência, contribui
tarefa e não usufruiu o direito ao descanso para que essas condições se mantenham
preconizado na Legislação como garante o na invisibilidade social. As precárias con-
artigo 66 da Consolidação das Leis do Tra- dições de trabalho ficam mascaradas e
balho (BRASIL, 1943), o que pode ter se forjadas na insuficiência institucional do
constituído em um dos fatores preponde- Estado frente à questão, especialmente na
rantes para a ocorrência. fragmentação das ações que, na situação
analisada, consistem apenas na concessão
Trata-se de uma situação muito com-
de benefícios compensatórios insuficien-
plexa, inclusive porque as condições de
tes, como o previdenciário, uma vez que
trabalho atualmente são outras, o que im-
o trabalhador era contribuinte, e de saúde,
pede uma análise mais aprofundada. Mas
por meio de tratamento e reconstituição
questionam-se fatores que poderiam ter
do membro, no caso, a perna.
evitado o acidente ou não, por exemplo,
a máquina dispunha de sistema de segu- O tipo de acidente de trabalho sofrido
rança adequado para o desligamento au- por Aparício é um tipo “clássico” e que
tomático; no caso de mudança de posição traz à mostra a perda do membro inferior

130 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
(perna) e, em decorrência desta, a ruptura Verificou-se nas situações que a infân-
familiar, a exclusão do mercado de traba- cia e a adolescência, tão importantes para
lho e a supressão de perspectivas de vida. a formação social e emocional da vida hu-
Mas, além desse tipo de acidente de traba- mana, são vividas por muitos sem usufru-
lho, há também a violência presente nos to dos direitos e privilégios próprios dessa
impactos das mudanças do mundo do tra- faixa etária. A obrigação de “ajudar” no
balho, sobretudo na precarização das con- orçamento familiar deixa a escola para um
dições de trabalho, que a nosso ver afeta período posterior e talvez inatingível, bem
a saúde dos(as) trabalhadores(as) de modo como o lazer e as brincadeiras. A sua mar-
oculto e silencioso. ca é a exploração, que, reforçada pela desi-
gualdade social, adquire um caráter de algo
Ao se refletir sobre a situação de uma “natural”, pois, após conversar e observar o
família que sobrevive da atividade de ca- trabalho das crianças por horas, num local
tar lixo para posterior seleção e venda de movimentado, ninguém questionou ou de-
materiais recicláveis, pretende-se eviden- nunciou a presença delas e o seu trabalho.
ciar os riscos biopsicossociais inerentes à
situação e sensibilizar sobre a importân- O trabalho projeta o ser humano para
cia de pesquisas e ações intersetoriais e perspectivas profissionais, sociais e para
interdisciplinares nesta área, como já des- a realização pessoal, mas quando há a
tacado pela Organização Internacional do inserção precoce, além dessas perspecti-
Trabalho (OIT, 2006). vas ficarem tolhidas, pode ocorrer o que
Martins (1993) chamou de supressão da
Nesse tipo de trabalho, os riscos po- infância. O trabalho infanto-juvenil tor-
dem ser muitos. A OIT (2006), ao discutir nou-se um fenômeno social da pobreza e
o trabalho de crianças e adolescentes em geralmente ocorre em condições insalu-
lixão, aponta que se trata de uma ativida- bres e danosas para o desenvolvimento
de insalubre, perigosa e penosa, o que se biopsicossociocultural de crianças e ado-
aplica à situação apresentada, pois, além lescentes, como já abordado por Garbin,
da atividade de coleta do lixo, a família, Santos e Carmo (2004).
inclusive crianças, residia no local, em
meio ao lixo, propensos a: Asmus et al. (2005) discutem que mui-
tas atividades, apesar de seguras para os
[...] possibilidades acentuadas de aciden- adultos, não o são para as pessoas em cres-
tes, intoxicações alimentares e químicas cimento que têm maiores chances de de-
por metal pesado; infecções respiratórias,
senvolver doenças ocupacionais, tanto de
cutâneas, digestivas; desidratações, ane-
mias por má nutrição, fadigas por esforço
forma mais precoce quanto com maior gra-
intenso e exposição a altas temperaturas vidade. Chamam a atenção para o fato de
do ambiente. (OIT, 2006, p. 69) que o dano pode não ser evidente até um
estágio bastante posterior da vida (ATSDR,
O fórum “Lixo e Cidadania” aponta 2001 apud ASMUS et al., 2005).
que, em 1998, quando houve intoxicação
alimentar de crianças devido à possível As situações apresentadas a partir de
ingestão de carne humana proveniente de observações do cotidiano revelam que o
lixo hospitalar, num lixão em Olinda-PE, trabalho infantil ainda persiste revestido
iniciou-se o esforço de várias instituições de uma nova roupagem: a informalidade.
na busca de resolver a questão, constituin- Os dados da Pesquisa Nacional por Amos-
do inclusive o “Fórum Nacional Lixo e Ci- tragem de Domicílios (PNAD), referentes
dadania” (FÓRUM, 2006). ao período de 1992 a 2002, mostram que o
número de trabalhadores infantis reduziu
Outros riscos, como a contaminação do de 4,1 milhões em 1992 (12,1%) para 2,1
ambiente (solo, ar e água), devem ser con- milhões em 2002 (6,5%), na faixa etária de
siderados, pois se observou que o local era 5 a 14 anos (BRASIL, 2004).
propício para diversos vetores causadores
de enfermidades, como ratos, moscas, ba- Reconhece-se a avançada legislação 3
Redação dada pela Emenda Cons-
ratas, só para citar alguns. voltada à redução e à erradicação do tra- titucional n. 20 de 15/12/1998.
balho infantil vigente em nosso país, como 4
Capítulo IV – Da proteção do tra-
Na terceira situação, evidenciou-se o o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA balho do menor: Art.403 (redação
trabalho infantil inserido no mercado de (BRASIL, 1990a), a Constituição Federal3 dada pela lei n. 10097/2000); Art.
trabalho, no modo da economia considera- e a Consolidação das Leis Trabalhistas 404; Art. 405 (redação dada pela
do informal, que, diante da sua proibição (CLT)4. Destaca-se que ao adolescente só é Lei n. 10097/2000).
legal, assume também o caráter clandesti- permitido trabalhar dos 14 aos 16 anos na
no, além da questão cultural da “ajuda”. condição de aprendiz e deve ser respeitada

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007 131
a proibição em situações e condições inse- algo natural e, como tal, oferecem poucas
guras capazes de provocar acidentes. perspectivas de mudanças.

Contudo, as situações ilustradas mos- O fato é que, diante das desigualdades


tram que o trabalho infantil ainda persiste sociais vinculadas ao desemprego e à exclu-
e que também se verifica, no nosso coti- são, acaba ocorrendo o que Dejours (2005)
diano profissional, em relação à incidên- denominou de “banalização da injustiça
social”. Há uma “aceitação” social do que
cia de acidentes de trabalho com adoles-
está posto. Esta conivência se dá pela com-
centes (LOURENÇO, 2006).
preensão da realidade como algo natural
As condições de saúde podem ser con- que, somado ao aspecto cultural do traba-
sideradas como expressões da questão lho infantil como elemento disciplinador
social, representada, neste caso, pelo tra- e preventivo da marginalidade, quando se
balho sem nenhuma regulamentação e se- trata dos mais pobres, constitui elementos
gurança que expõe crianças à situação de mantenedores desta (triste) realidade.
riscos. Além dos riscos eminentes, consi- Nobre (2003) pontua que o trabalho in-
deram-se os riscos sociais, como a exclusão fantil deve se tornar objeto da saúde coleti-
social, marcada pelo distanciamento dos va e sublinha algumas limitações do setor
direitos sociais básicos: educação, saúde e saúde frente a esta questão: evidencia a fal-
habitação. Não se trata apenas de apontar ta de reconhecimento do trabalho infantil
situações, do ponto de vista da saúde, into- como um problema de saúde pública; in-
leráveis, capazes de causar danos físicos e dica que o trabalho infantil é invisível para
as práticas de saúde, quando o reconhece,
psíquicos, mas de situar no âmbito da ex-
situa-o no patamar de resolução para o pro-
ploração do trabalho e das ordens social,
blema da miséria social.
econômica e política vigente e, portanto,
passíveis de transformação. Para que a relação entre saúde e trabalho
não caia na invisibilidade social, é necessá-
Verifica-se que as precárias condições rio reunir esforços para estudos e ações sis-
de trabalho, ora apresentadas, fazem parte temáticos que contemplem o mercado de
da histórica desigualdade social brasileira trabalho na sua totalidade e considerem os
e, neste contexto, assumem um caráter de trabalhos rural, informal e infantil.

Conclusões e considerações finais

Verifica-se que, apesar do avanço das A saúde pública já presta o atendimen-


políticas públicas, dos direitos sociais, tra- to ao trabalhador vítima de doença ou de
balhistas e políticos, das exigências para acidente relacionado ao trabalho e conta
a troca, especialmente, no âmbito inter- com serviços especializados de vigilân-
nacional, caracterizadas pelos Programas cia sanitária e epidemiológica. Contudo,
de Qualidade Total e pelas International há necessidade de romper com as ações
Standard Organization (ISO) nesse início focais e fragmentadas na assistência à saú-
de século (XXI), novas e velhas questões
de do(a) trabalhador(a) e avançar na cons-
relativas à saúde e ao trabalho (MINAYO
trução de dados fidedignos para subsidiar
GOMES & LACAZ, 2005) se põem no coti-
ações mais amplas.
diano dos(as) trabalhadores(as).
Posto o desafio, o campo ampliado da
Análises da realidade que busquem es-
clarecer os efeitos das formas de trabalho saúde do trabalhador no SUS constitui um
associadas à informalidade, velhas ques- novo paradigma de atenção à saúde, trans-
tões como as condições de trabalho rural, cende a abordagem individual curativa tra-
a erradicação do trabalho infantil e, ainda, dicional e propõe abordagens interdiscipli-
a proteção do trabalho do adolescente, as- nares, intersetoriais e de fortalecimento da
sumem caráter de urgência em que pese a sociedade rumo a mudanças eficazes para
relação entre trabalho/saúde. a promoção da saúde de quem trabalha.

132 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
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134 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 121-134, 2007
Vilma Sousa Santana1 A utilização de serviços de saúde por acidentados de
Gustavo Ribeiro de Araújo1
trabalho
Jônatas Silva do Espírito-Santo1
José Bouzas de Araújo-Filho1 Health services utilization by occupational injured workers
Jorge Iriart1

1
Programa Integrado de Saúde Resumo
Ambiental e do Trabalhador (PI-
SAT), Instituto de Saúde Coletiva Neste estudo descrevem-se as características da utilização de serviços de saú-
(ISC), Universidade Federal da
de por trabalhadores que sofreram acidentes de trabalho. Os dados provêm das
Bahia (UFBA), Salvador-BA.
três primeiras fases de um estudo de coorte de base comunitária sobre saúde
e trabalho, iniciado no ano 2000, e conduzido com todos os trabalhadores
Fontes de financiamento: Minis-
tério de Ciência e Tecnologia, de 2.512 famílias selecionadas por amostragem aleatória de conglomerado, de
Conselho Nacional de Desenvol- estágio único, residentes na cidade de Salvador, Bahia. Entrevistas individuais
vimento Científico e Tecnológico foram empregadas para a coleta de dados. Nesta pesquisa analisaram-se os
CNPq/Proc. 521226-98-8, Projeto trabalhadores (n = 628) que referiram ter sofrido acidente de trabalho nos
Nordeste de Pesquisa e PIBIC/ 12 meses antes da entrevista. Observou-se que cerca de metade dos casos de
UFBA; Secretaria de Planejamento acidentes recebeu primeiros socorros e tratamento médico. A maioria (71%)
do Estado da Bahia, Superinten- foi atendida em unidades do SUS. Cerca de 15% tiveram o atendimento pago
dência de Apoio ao Desenvolvi- por planos de saúde privados. Observou-se também que a maioria referiu alta
mento Científico e Tecnológico satisfação com o atendimento, tanto em serviços públicos como privados. En-
(CADCT) nº 68/2000. Ministério da
tre os usuários do SUS, predominaram os trabalhadores sem carteira assinada,
Saúde, Área Técnica da Saúde do
Trabalhador.
mas trabalhadores segurados também utilizaram os serviços públicos em sua
maioria. Concluiu-se que o SUS tem expressiva participação no atendimento
de acidentados do trabalho, independentemente da condição de cobertura por
planos de saúde.
Palavras-chaves: acidentes de trabalho, acidentes ocupacionais, acesso e utili-
zação de serviços, atenção à saúde de acidentados do trabalho.

Abstract
This study describes the characteristics of health services utilization by workers
reporting work-related injuries. Data comes from the three first phases of a
community-based cohort study about health and work that started in the year
2000, carried out with all workers from 2,512 families living in the city of
Salvador, Bahia, that were selected by one-stage cluster area random sampling.
Individual interviews were used for data collection. In this study, cases of work
injuries reported during the 12 months before the interview (n=628) are analyzed.
The majority (71.0%) of injured workers received medical treatment in facilities
from the Unified Health System, SUS, a public health care system of universal
coverage. Around 15% received treatment from private health insurance plans.
Among SUS customers most workers have no formal job contracts, although
insured workers also utilized public health care services. In sum, the SUS has
expressive participation in the health care of injured workers independently of
their entitlement for private health care.
Keywords: work injuries, occupational injuries, health care access and
utilization, health care for injured workers.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007 135
Introdução

No Brasil, os serviços de saúde se or- país. Com dados do Instituto Nacional de


ganizam em torno do Sistema Único de Seguridade Social (INSS), sabe-se que os
Saúde (SUS), de cobertura universal, sob acidentes de trabalho representam mais
a responsabilidade do Estado com a par- da metade dos benefícios pagos pela Pre-
ticipação da atenção suplementar a cargo vidência Social (62,8%) para afastamentos
de empresas privadas. Os serviços de saú- do trabalho por enfermidades e agravos
de caracterizam-se também por diferen- ocupacionais no Brasil (SANTANA et al.,
ças marcantes no acesso e na utilização 2006). Infelizmente não é conhecido o
de serviços (PAIM, 2002). Como a saúde montante dos custos com o tratamento de
é importante fator de produtividade eco- acidentes do trabalho, embora, com dados
nômica, apesar da existência do SUS e de das Autorizações de Internações Hospita-
sua cobertura universal, algumas empresas lares (AIH), os agravos por causas externas
fornecem planos de seguro-saúde para os alcançaram o 1º lugar dentre as despesas
seus trabalhadores, que permitem o aces- hospitalares no SUS (BRASIL, 2002).
so a serviços ambulatoriais, hospitalares
Pessoas acometidas por acidentes de
ou assistência domiciliar (homecare) com
trabalho constituem uma parte significa-
cobertura total ou parcial das despesas,
tiva dos atendimentos em serviços médi-
algumas vezes com uma contribuição do
cos, especialmente nos serviços de emer-
trabalhador no pagamento das mensalida-
gência. Com dados desses serviços, em
des. O acesso a esses planos de saúde é res-
Salvador, Bahia, Conceição et al. (2003)
trito a trabalhadores formais, com contrato
verificaram que 31,8% dos atendimentos
formal de trabalho na empresa. Algumas
devidos a causas externas eram aciden-
empresas de médio ou grande porte ofere-
tes de trabalho. Analisando-se dados de
cem serviços ambulatoriais ou de pronto
toda a rede municipal, Vilela et al. (2001)
atendimento nas suas próprias instalações.
estimaram que, em Piracicaba, cerca de
Para os trabalhadores informais, comuns
59,7% dos acidentes e doenças do traba-
em empresas não registradas ou na econo-
lho eram atendidos diretamente pelo SUS,
mia informal, e também para os autônomos
enquanto que a rede privada e filantrópica
ou conta-própria, a cobertura por serviços
se responsabilizava por aproximadamente
de saúde se dá pelo SUS ou com o paga-
40,3% dos casos. Em estudo com metodo-
mento do próprio bolso, seja por meio de
logia parecida, com dados de um estudo
planos privados individuais de saúde ou
de base populacional realizado em Botu-
consulta e procedimentos específicos. Em
catu, São Paulo, Cordeiro et al. (2005) es-
geral, esses serviços são empregados para
timaram que a maioria (80,7%) dos traba-
agravos ou enfermidades, independente-
lhadores recebeu atendimento médico em
mente da sua natureza, se ocupacional ou
unidades do SUS.
não (BEDRIKOW et al., 1997).
São poucas as informações disponí-
Os acidentes ocupacionais são respon-
veis, de base populacional, sobre o aces-
sáveis pelo maior número de mortes e in-
so e a utilização de serviços de saúde por
capacidades graves causados pelo trabalho
parte de trabalhadores acidentados, ape-
em todo o mundo, embora muitos países
sar da sua importância. O conhecimento
não diferenciem as estatísticas dos aciden-
acerca dessa realidade é especialmente
tes em relação às enfermidades ocupacio-
relevante para o processo de implanta-
nais (TAKALA, 1999). Em uma revisão dos
ção da Rede Nacional de Atenção à Saúde
estudos sobre acidentes de trabalho no
do Trabalhador (RENAST) e a participa-
Brasil, verificou-se que a mortalidade anu-
ção do Programa de Saúde da Família na
al por acidentes de trabalho é estimada em
atenção à saúde do trabalhador. Este estu-
13,2/100.000 trabalhadores segurados e
do pretende reduzir essa lacuna, descre-
que a incidência cumulativa anual para os
vendo as características da utilização de
acidentes não-fatais, com base em dados
serviços de saúde por trabalhadores que
da população geral, varia entre 3% a 6%.
sofreram acidentes de trabalho com base
Esses agravos têm uma expressiva nos dados de um estudo de coorte de base
participação nos custos com a saúde no populacional.

136 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007
Métodos

Os dados analisados compreendem grupo de idade (18-30, 31-45, 41-65), cor


os casos de acidentes de trabalho iden- da pele (negros e não negros), escolarida-
tificados nas três primeiras fases de um de (baixo = até o nível elementar; médio
estudo de coorte prospectivo, de base = elementar completo; e alto = superior
comunitária, iniciado no ano 2000 na completo ou incompleto). A variável “ní-
cidade do Salvador, capital do estado da vel socioeconômico” foi criada a partir
Bahia. Este estudo vem sendo conduzido do número de bens da família ou equi-
com todos os membros de 2.512 famílias
pamentos disponíveis no domicílio, es-
selecionadas por amostragem aleatória
pecificamente: automóvel, computador,
de conglomerado, por estágio único, ten-
máquina de lavar, videocassete, toca-
do sido entrevistados todos os trabalha-
dores em 2000 e 2004. Em 2002, apenas discos a laser, microondas, máquina de
uma subamostra foi re-entrevistada. A lavar louça, telefone e casa de praia. A
população do estudo compreende todos soma dos itens foi categorizada em: bai-
os casos de acidentados que tinham ida- xo = menos de 3 itens; médio = 3 a 5
de entre 18 e 65 anos, identificados em itens; e alto = acima de 5 itens. O tipo
cada uma das fases mencionadas, res- de vinculação ao mercado de trabalho
pectivamente, 258, 38 e 368, com um to- foi definido como informal e formal para
tal de 628 registros. Todas as residências os contratados formalmente, com car-
selecionadas foram visitadas. Após a ob- teira de trabalho assinada. As variáveis
tenção de consentimento informado, da- relativas à utilização de serviços foram:
dos sociodemográficos de cada um dos recebimento de primeiros socorros, o
membros da família foram registrados. local onde recebeu esse tipo de atendi-
Para os que se identificavam como tra- mento, se recebeu atendimento médico
balhadores remunerados, realizaram-se após os primeiros socorros, duração do
entrevistas individuais para o registro
tratamento em dias e a instituição/fonte
de dados sobre características ocupacio-
pagadora. A satisfação com o atendimen-
nais e hábitos de vida; e para os aciden-
to recebido foi registrada mediante notas
tes, características das lesões, condições
de ocorrência, tratamento recebido, du- de 1 a 10 atribuídas pelos entrevistados
ração do afastamento do trabalho e do e obtidas com a marcação feita pelo pró-
tratamento e escore de satisfação com o prio trabalhador em uma escala com as
atendimento, dentre outras informações respectivas indicações. Essas notas fo-
(SANTANA et al., 2003). ram analisadas em três grupos: baixo =
abaixo de 7,0; médio = entre 7,1 e 8,0; e
Considerou-se como acidente de tra-
alto = entre 8,1 e 10).
balho “qualquer dano infligido ao cor-
po por transferência de energia durante Freqüências simples e relativas em
o trabalho, ou deslocamento até o local porcentuais foram estimadas e inferên-
do trabalho que envolvesse uma curta cias estatísticas realizadas com o teste
duração entre exposição e efeitos iden- do Qui Quadrado de Pearson, quando in-
tificáveis após a ocorrência do evento/ dicado. As análises foram realizadas uti-
circunstância” (HAGBERG et al. 1997). lizando o software de análise de dados
Para garantir que todos os casos seriam estatísticos SAS, versão 9.0. O protocolo
reconhecidos independentemente do
de pesquisa foi submetido e aprovado
vínculo com o trabalho, não se formula-
por uma Comissão de Ética em Pesquisa
va pergunta direta sobre acidente de tra-
da Universidade Federal da Bahia, tendo
balho, mas sim sobre acidentes em geral.
A vinculação com o trabalho era iden- sido atendidas todas as recomendações
tificada com base nas circunstâncias legais. O anonimato e a confidencialida-
descritas na narrativa feita pelo próprio de das informações foram mantidas nos
trabalhador. Os acidentes foram classifi- registros dos dados e nas publicações.
cados em “de trajeto” ou “típicos”. Para Toda a equipe da pesquisa foi instruída
a descrição da população, utilizaram-se sobre os dispositivos e as responsabili-
variáveis sociodemográficas, como sexo, dades éticas do estudo.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007 137
Resultados
Dos 628 trabalhadores que referiram e 10, sendo que o atendimento se concen-
acidentes de trabalho ao longo do segui- trou em unidades do SUS (71%). Planos de
mento do estudo, predominaram as mulhe- saúde foram responsáveis por 15,1% (n =
res (64%), pessoas mais jovens entre 18-30 23), enquanto a empresa empregadora par-
anos (41,6%), negros (66,4%), pessoas de ticipou com apenas 4% dos tratamentos (n
baixa escolaridade (51,4%), de mais baixo = 6). Cerca de 5,3% (n = 8) dos trabalha-
nível socioeconômico (NSE) (55,1%) e tra- dores pagaram suas próprias despesas com
balhadores com contrato informal de traba- o tratamento.
lho (54,3%) (Tabela 1). A maioria dos aci-
dentes (89%) foi classificada como típico e Na Tabela 3 observa-se que pessoas
apenas 11% ocorreram no trajeto. mais jovens e as que sofreram acidentes
de trajeto receberam mais comumente tra-
Apenas metade dos casos (49,5%, n = tamento médico do que as de mais idade
311) recebeu primeiros socorros imediata- ou que referiram acidente típico, respecti-
mente após o acidente (Tabela 2). Destes, a vamente, p<0,05. Não houve diferenças no
maioria foi levada para serviços de emer- recebimento de tratamento por sexo, esco-
gência médica (47,6%, n = 148), enquanto laridade, cor da pele, nível socioeconômico
uma parte substancial dos casos referiu ter e informalidade do contrato de trabalho. O
recebido tratamento médico após os pri- alto grau de satisfação com o tratamento
meiros socorros (48,9%, n = 152). Este últi- foi menor entre os trabalhadores infor-
mo tratamento teve uma duração média de mais (38,5%) do que entre os contratados
duas semanas e foi, em sua maioria, con- formais (60,6%, p<0,001). Nenhuma das
siderado altamente satisfatório. Aproxima- outras diferenças relativas ao grau de sa-
damente 51,3% atribuíram notas entre 8,1 tisfação foi estatisticamente significante.

Tabela 1 Características socioeconômicas dos acidentados entrevistados em Salva-


dor/BA no período de 2001 e 2004

Variáveis N = 628 %
Sexo
Feminino 402 64,0
Masculino 226 36,0

Idade
18-30 261 41,6
31-40 162 25,8
41-65 205 32,6

Escolaridade
Baixa 323 51,4
Média 269 42,8
Alta 36 5,8

Cor da pele
Negra 417 66,4
Não negra 211 33,6

Nível socioeconômico
Baixo 346 55,1
Médio 191 30,4
Alto 91 14,5

Trabalho informal
Sim 248 54,3
Não 209 45,7

Tipo do acidente
Típico 559 89,0
Trajeto 69 11,0

138 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007
A mais comum instituição prestadora/ trabalho informal, com maior proporção de
financiadora de atendimento médico para clientes do SUS entre os trabalhadores sem
os indivíduos que sofreram acidente de contrato quando comparados aos formais
trabalho foi o SUS (Tabela 4). A proporção (p<0,001). Embora a alta satisfação com
de casos atendidos/financiados pelo SUS o tratamento recebido tenha predominado
variou de 50%, estimada entre os traba- para os usuários do SUS (48,2%) e de ou-
lhadores de alto nível socioeconômico, a tras instituições/fontes de financiamento,
82,7% entre os trabalhadores sem contrato a proporção foi maior entre estes últimos
formal de trabalho. Não houve variações (60,5%), que também ficou com a menor
significativas na distribuição das propor- cifra de baixa satisfação (20,9%), conforme
ções de usuários do SUS, exceto para o Tabela 5.

Tabela 2 Utilização de serviços de saúde pelos trabalhadores acidentados entrevista-


dos em Salvador/BA no período de 2001 e 2004

Variáveis N %
Você precisou de primeiros socorros? (N = 628)
Sim 311 49,5
Não 317 50,5

Onde recebeu os primeiros socorros? (N = 311)


Em casa 48 15,4
No local de trabalho por colegas 31 10,0
No serviço médico da empresa 24 7,7
Serviço de emergência 148 47,6
Serviço médico ambulatorial 48 15,4
Ambulância 1 0,3
Outros 11 3,6

Após esse atendimento, recebeu tratamento médico? (N = 311)


Sim 152 48,9
Não 152 48,9
Não informou 7 2,2

Duração do tratamento em dias (N = 152)


0-6 45 29,6
7-15 52 34,2
> 15 37 24,3
Não informou 18 11,8

Nota atribuída ao tratamento (N = 152)


Baixa (0-7,0) 43 28,3
Média (7,1-8,0) 31 20,4
Alta (8,1-10) 78 51,3

Instituição/financiamento do tratamento (N = 152)


SUS 108 71,0
Empresa empregadora 6 4,0
Plano de saúde privado 23 15,1
Próprio bolso 8 5,3
Seguro acidente (privado) 1 0,8
Outros 5 3,3
Não informou 1 0,8

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007 139
Tabela 3 Características dos trabalhadores acidentados entrevistados em Salvador/BA no período de 2001 e 2004 que
receberam tratamento e a satisfação destes com o atendimento recebido

Recebeu tratamento
Grau de satisfação com o tratamento
Variáveis médico
N = 304 % 0a7 8a9 10
N % N % N %
Sexo
Feminino 157 49,7 24 30,8 13 16,7 41 52,6
Masculino 147 50,3 19 25,7 18 24,3 37 50,0

Idade
18-30 124 46,0* 16 28,1 14 24,6 27 47,4
31-40 81 44,4 11 30,6 5 13,9 20 55,6
41-65 99 36,2 16 27,1 12 20,3 31 52,5

Escolaridade
Baixa 154 52,6 25 30,9 16 19,8 40 49,4
Média 131 46,6 16 26,2 13 21,3 32 52,5
Alta 19 52,6 2 20,0 2 20,0 6 60,0

Cor da pele
Negra 189 51,9 27 27,6 22 22,5 49 50,0
Não negra 115 47,0 16 29,6 9 16,7 29 53,7

Nível socioeconômico
Baixo 161 50,4 23 28,8 15 18,8 42 52,5
Médio 102 53,0 13 24,1 11 20,4 30 55,6
Alto 41 38,7 7 38,9 5 27,8 6 33,3

Trabalho informal
Sim 139 51,1 15 28,9 17 32,7 20 38,5**
Não 110 47,3 19 26,8 9 12,7 43 60,6

Tipo do acidente
Típico 259 47,9* 33 26,6 27 21,8 64 51,6
Trajeto 45 62,6 10 35,7 4 14,3 14 50,0
* p<0,10; **p<0,05; *** p<0,001

140 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007
Tabela 4 Utilização e satisfação relatada pelos acidentados que receberam trata-
mento, de acordo com o nível socioeconômico

Instituição/financiamento
Variáveis SUS Outros
N % N %
Sexo
Feminino 56 72,7 21 27,3
Masculino 52 70,3 22 29,7

Idade
18-30 56 75,0 14 25,0
31-40 26 72,2 10 27,8
41-65 40 67,8 19 32,2

Escolaridade
Baixa 62 76,5 19 23,5
Média 41 68,3 19 31,7
Alta 5 50,0 5 50,0

Cor da pele*
Negra 65 67,0 32 33,0
Não negra 43 79,6 11 20,4

Nível socioeconômico
Baixo 62 77,5 18 22,5
Médio 36 66,7 18 33,3
Alto 10 58,8 7 41,2

Trabalho informal***
Sim 43 82,7 9 17,3
Não 42 59,2 29 40,9

Tipo do acidente
Típico 88 71,5 35 28,5
Trajeto 20 71,4 8 28,6
* p<0,10; **p<0,05; *** p<0,001

Tabela 5 Grau de satisfação dos trabalhadores acidentados entrevistados com o aten-


dimento por instituição

Instituição/financiamento
Nota atribuída
SUS Outros
ao tratamento
N = 108 100% N = 43 100%
Baixa (0-7,0) 34 31,5 9 20,9
Média (7,1-8,0) 22 20,4 8 18,6
Alta (8,1-10 ) 52 48,2 26 60,5

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007 141
Discussão

Verifica-se, com os dados deste estu- isso, pode-se pensar, a partir da cobertura
do, que cerca de metade dos casos de aci- universal do SUS, superar a grande divisão
dentes de trabalho recebeu algum tipo de entre segurados e não segurados em rela-
primeiros socorros, na maioria serviços de ção à prevenção de riscos ocupacionais,
emergência, seguido de tratamento médico fundamental para reverter as tendências
com duração média de 15 dias. A mais ex- demonstradas de aumento da letalidade
pressiva instituição financiadora ou pres- dos acidentes de trabalho (SANTANA et
tadora do atendimento a esses casos foi o al., 2005). A natureza universalista do SUS
SUS. Verificou-se também que é muito pe- ficou nítida nos resultados, que não reve-
quena a participação das empresas empre- laram diferenças no acesso ao tratamento
gadoras no financiamento do atendimen- referentes aos estratos sociais considera-
to, salvo os custos com os planos de saúde dos, exceto aquelas que podem estar indi-
para os trabalhadores, que não foram re- cando gravidade do problema. Exceção foi
gistrados na pesquisa. Embora reduzida, o achado de maior proporção de não ne-
houve a participação dos trabalhadores no gros atendidos no SUS, o que precisa ser
pagamento de atendimentos prestados por examinado com mais cuidado, pois pode
clínicas privadas, tanto por trabalhadores ser resultante das múltiplas comparações
com carteira assinada como pelos infor- realizadas.
mais. Houve uma concentração de pessoas
A alta satisfação com o atendimento
com tratamento entre os acidentados mais
recebido não é surpreendente, consideran-
jovens e para os casos classificados como
do que outros estudos têm apresentado re-
“de trajeto”. Ser jovem e sofrer acidente de
sultados semelhantes no Brasil (KOTAKA,
trajeto foram categorias com maior propor-
PACHECO & HIGAKI, 1997; KLOETZEL et
ção de casos mais graves, com a severida-
al., 1998). Vale ressaltar que a compara-
de baseada na duração do tratamento (re-
ção dos resultados especificamente para
sultados não apresentados). A maioria dos
trabalhadores acidentados ficou limitada
trabalhadores relatou alto nível de satisfa-
por não terem sido encontrados estudos
ção com o atendimento, seja no SUS, seja
específicos. Sabe-se que o SUS ainda passa
nas clínicas privadas, que apresentaram
por uma etapa de intensos investimentos
maior proporção de indivíduos com alta
na melhoria da qualidade da atenção, em
satisfação em comparação com os atendi-
especial na humanização do atendimento,
dos no SUS. Entre os trabalhadores infor-
em que pesem as conhecidas dificulda-
mais, a proporção de alta satisfação com o
des do acesso (PAIM, 2002). Entretanto, a
tratamento foi também menor do que entre
satisfação é elevada, o que deve ser visto
os trabalhadores com carteira (p<0,001).
com precaução, considerando que pode
Os resultados relativos à dimensão do possivelmente expressar uma reação à gra-
uso dos serviços do SUS por trabalhadores tuidade e à disponibilidade universal da
acidentados, neste estudo, comparam-se assistência. Há que se observar que houve
aos encontrados por outras pesquisas de grande satisfação tanto por parte de tra-
base populacional no Brasil (VILELA et balhadores de alto nível socioeconômico,
al., 2001; CORDEIRO et al., 2005), embora quanto nos estratos pobres, sem diferenças
sejam plausíveis diferenças na oferta e no expressivas do ponto de vista estatístico.
acesso de serviços de saúde entre um esta- Isso não ocorreu com trabalhadores infor-
do do Nordeste e cidades do interior de São mais, menos comumente satisfeitos que os
Paulo. Isso ocorre para todas as categorias contratados com carteira, algo a merecer
sociais e tipo de vinculação previdenciá- investigações mais aprofundadas. Em um
ria, revelando a importante responsabi- estudo realizado em Feira de Santana por
lidade do SUS na resposta às necessida- Assis, Vilela e Nascimento (2003), de me-
des de saúde da população trabalhadora. todologia qualitativa, relatou-se uma ten-
Reforça a concepção da RENAST (DIAS dência à avaliação negativa em relação aos
& HOEFEL, 2005), que assume a respon- serviços oferecidos pelo SUS por parte dos
sabilidade não só do atendimento médico usuários. Resultados com alta satisfação
pelo SUS, mas também a de organização como os encontrados neste estudo reve-
da oferta de serviços de vigilância à saúde, lam que o SUS merece atenção especial na
com o diagnóstico dos problemas de saúde efetivação das políticas de proteção e segu-
do trabalhador, e a proposição de medidas rança do trabalhador, na medida em que é,
adequadas e viáveis de prevenção. Com reconhecidamente, o principal serviço res-

142 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007
ponsável pela demanda de trabalhadores (PENA & COSTA, 2005). Espera-se que esta
acidentados. investigação inaugure uma série de estudos
que tratem de informações que contribuam
Como a pesquisa original não estava
para uma mais ampla participação do SUS
focalizada em padrões de utilização dos
serviços, os dados são limitados, não se no atendimento das necessidades de saú-
dispondo de informações sobre aspectos de da população trabalhadora, voltando-se
específicos do tratamento que poderiam prioritariamente para a prevenção dos ris-
ser empregadas para a melhoria de compo- cos ocupacionais e desse modo permitindo
nentes do processo de funcionamento dos uma melhor condição de vida e bem-estar
serviços. Todavia, permitem o conhecimen- dos trabalhadores. A 8ª Conferência Nacio-
to de algumas importantes características nal de Saúde estabeleceu como concepção
sobre o uso dos serviços de saúde e a sa- de saúde a satisfação das necessidades bási-
tisfação com o tratamento, importantes es- cas de acesso à alimentação regular e nutriti-
pecialmente pelo momento de implantação va, moradia adequada, transporte, educação
da RENAST, o qual deverá incorporar às e serviços de saúde eficientes. Portanto, o
responsabilidades do SUS a identificação acesso a esses serviços não é apenas uma di-
dos riscos nos locais de trabalho e assim mensão importante para o alcance da saúde
potencializar as ações de prevenção e não e do bem-estar das pessoas, mas um direito
apenas de atendimento a casos já ocorridos de todos os cidadãos brasileiros.

Referências

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144 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 135-143, 2007
Michael Quinlan1 Regulamentação das cadeias de fornecedores para
Richard Johnstone2
proteger a saúde e segurança de trabalhadores vul-
Phillip James3
Igor Nossar4 neráveis
Supply chain regulation to protect the occupational health and
safety of vulnerable workers

1
School of Organisation and Mana- Resumo
gement, University of New South
Wales, Sydney, Australia. Um grande número de pesquisas recentes evidencia que as estratégias de sub-
2
Law School, Griffith University, contratação de serviços e produtos e a contratação de trabalhadores contingen-
Nathan, Queensland, Australia. tes, nas chamadas cadeias de fornecedores, afetam os processos de planejamen-
to e tomada de decisão de maneira a solapar seriamente a Segurança e Saúde
3
Business School, Middlesex
University, London, UK.
dos Trabalhadores (SST). Complexas cadeias de fornecedores apresentam um
desafio para a ação de regulamentação, pois a responsabilidade legal pela SST
4
Textile, Clothing and Footwear está difusa dentre um maior espectro de atores sociais, com mais dificuldades
Union, Campsie, Australia.
para focalizar os principais tomadores de decisão, e as agências de governo en-
contram maiores dificuldades logísticas na tentativa de proteger legalmente os
trabalhadores contingentes, como os temporários e terceirizados. Em certo nú-
mero de indústrias, esses problemas têm instigado novas formas de intervenção
regulamentadora, incluindo mecanismos para alocar a responsabilidade legal
no topo das cadeias de fornecedores, dispositivos de acompanhamento contra-
tual e crescente envolvimento da indústria, dos sindicatos e da comunidade na
fiscalização do cumprimento da lei. Depois de descrever os problemas acima
referidos, este artigo examina recentes esforços para regulamentar as cadeias de
fornecedores para salvaguardar a SST no Reino Unido e na Austrália.
Palavras-chaves: cadeias de fornecedores, terceirização, saúde e segurança
dos trabalhadores, regulamentação, ergonomia.

Abstract
The last two decades have witnessed a fragmentation of previously integrated
systems of production and service delivery with the advent of boundary-less,
networked and porous organisational forms. This trend has been associated
with the growth of outsourcing and increased use of contingent workers. One
consequence of these changes is the development of production/service delivery
systems based on complex national and international networks of multi-tiered
subcontracting increasingly labelled as supply chains. A growing body of
research indicates that subcontracting and contingent work arrangements affect
design and decision-making processes in ways that can seriously undermine
occupational health and safety (OHS). Elaborate supply chains also present a
regulatory challenge because legal responsibility for OHS is diffused amongst
a wider array of parties, targeting key decision-makers is more difficult, and
government agencies encounter greater logistical difficulties trying to safeguard
contingent workers. In a number of industries these problems have prompted
new forms of regulatory intervention, including mechanisms for sheeting legal
responsibility to the top of supply chains, contractual tracking devices and
increasing industry, union and community involvement in enforcement. After
describing the problems just alluded to this paper examines recent efforts to
regulate supply chains to safeguard OHS in the United Kingdom and Australia.
Keywords: supply chains, subcontracting, health and safety, regulation,
ergonomics.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 145-152, 2007 145
Introdução

Cadeias de fornecedores referem-se a com a subcontratação de fornecedores


múltiplas camadas verticais de relaciona- ou contratação de serviços ou produtos
mentos ou de redes envolvidas no forneci- de locais remotos ou diversos (incluindo
mento de produtos ou serviços. Freqüen- de outros países). Desse modo, não é por
temente implícita no uso do termo, está a acaso que o crescente discurso sobre as
noção de que essa complexa rede de rela- cadeias de fornecedores e sua administra-
cionamentos é articulada ou está sendo ge-
ção tem coincidido com o crescimento das
renciada usualmente por e para benefício
subcontratações5 e/ou o deslocamento da
5
Ou das “terceirizações”. de um ator-chave dessa cadeia (como um
produção (e uma correspondente redução
grande varejista que obtém produtos agrí-
colas de qualidade a baixo custo) (CHRIS- de emprego em grandes companhias e o
TOPHER, 2005). Cadeias de fornecedores crescimento deste em pequenas e médias
contêm a reação organizacional para as empresas) e o crescente uso de trabalhado-
demandas logísticas complexas ou outras res contingentes6 (incluindo trabalhadores
6
Optou-se em usar a expressão autônomos e temporários ou contratados
(por exemplo, as de qualidade ou custo),
“trabalho contingente”, originada
nos Estados Unidos e muito uti- emergentes da fragmentação associada por curta duração).
lizada na América do Norte, mas
contendo também o significado
de “emprego precário”, originado Os problemas da SST ligados à cadeia de fornecedores
na França e utilizado na Europa.
O termo “precário” associa-se à Com algumas exceções, existe pouca nas cadeias de fornecedores não é fre-
insegurança no trabalho e não
pesquisa sobre os efeitos à SST provoca- qüentemente acompanhada por qualquer
pressupõe permanência, continui-
dade ou estabilidade no emprego; dos por cadeias de fornecedores (WRIGHT articulação paralela da gestão da SST e da
o termo “contingente” refere-se a & LUND, 1998). No entanto, um grande obediência às leis e regulamentações. De
formas variadas de emprego por número de pesquisas internacionais re- fato, algumas cadeias de fornecedores pa-
períodos de tempo específicos, centes evidencia que esses padrões com- recem ter sido preconizadas, ao menos em
quando necessários. (LOUIE et al., plexos de subcontratação e o aumento no parte, devido às vantagens econômicas de
2006). uso de trabalhadores contingentes – am- se evitar as obrigações relativas à regula-
bos elementos-chave em muitas cadeias mentação em SST. A qualidade do produto
de fornecedores – afetam os processos de e seu custo são controlados por rigorosos
planejamento e o processo de tomada de instrumentos de verificação, mas os resul-
decisão dentro dos sistemas de produção tados quanto à SST não o são, ao menos
e de prestação de serviços contratados de na base da cadeia. Grandes empresas ma-
maneira a poder causar graves efeitos ad- nufatureiras e de comércio de países de-
versos à SST (QUINLAN et al., 2001a). Por senvolvidos têm cada vez mais realocado
exemplo, o curto ciclo e a volatilidade das sua produção para países em desenvolvi-
relações de trabalho contingente podem mento (geralmente via firmas subsidiárias
minar os procedimentos de treinamento e ou satélites e subcontratadas) que possuem
de admissão, as regras informais de segu- regulamentações de SST e de trabalho me-
rança e a comunicação entre trabalhadores. nos rigorosas (e fracamente fiscalizadas)
A terceirização freqüentemente envolve a (QUINLAN et al., 2001b). Mesmo aquelas
transferência de atividades para pequenas atividades de produção e serviços que não
empresas com recursos menores para gerir são transferidas ao estrangeiro devido ao
a SST. Estão associadas à intensificação do seu ciclo de tempo ou a outras considera-
trabalho (às vezes ignorando considerações ções (como o efeito da moda na indústria
ergonômicas em termos de carga, limites de do vestuário) podem ser afetadas. Consi-
exposição e interfaces homem/máquina), derações ergonômicas no projeto do local
às mudanças sutis em tarefas prescritas de trabalho podem ser negligenciadas ou
(por exemplo, desconsiderando procedi- enfraquecidas quando as atividades de
mentos de segurança ou o uso de sistemas
produção são transferidas das grandes fá-
de proteção e eliminando rotinas de manu-
bricas para as pequenas empresas ou de
tenção), à utilização de equipamentos em
“fundo de quintal” e para os domicílios
estado de uso não-ótimo e à fragmentação
de trabalhadores. Deste modo, há evidên-
de toda a supervisão em SST.
cia de que o deslocamento da fabricação
Outras evidências fragmentadas suge- de vestuário e atividades similares para
rem que a articulação estreita entre os sis- os domicílios implica freqüentemente no
temas de produção e de entrega de serviços uso de equipamentos inferiores ou em pior

146 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 145-152, 2007
estado de conservação, planejamento defi- do frete tem sido comprimido ao mesmo
ciente do posto de trabalho, treinamento tempo em que as mais severas exigências
inadequado, pagamento inadequado que têm sido impostas com relação à progra-
encoraja a realização de excessivas horas mação de entrega (via uso do Just in Time).
de trabalho, o mau planejamento temporal Respostas para essa pressão têm incluído
na programação das tarefas e o uso de tra- pagamentos reduzidos e mais pagamentos
balhadores menores de idade, até mesmo para motoristas em situação precária (por
em países desenvolvidos, como a Austrá- exemplo, pagamento por viagem realiza-
lia (MAYHEW & QUINLAN, 1999). O pre- da e uso de motoristas com salários mais
domínio de imigrantes recém-chegados baixos provenientes do leste europeu),
na produção de roupas tem exacerbado jornadas de trabalho mais longas (espe-
os problemas, pois eles têm conhecimen- cialmente quando não são pagas as horas
to limitado de seus direitos e são vulne- de espera nos depósitos etc.) e transferên-
ráveis às explorações de intermediários cias dos valores de frete mais baixos das
(MAYHEW & QUINLAN, 1999). mais importantes transportadoras para
No transporte rodoviário, a competi- pequenas firmas e motoristas autônomos
ção entre transportadoras (já significante por meio das, cada vez mais complexas,
devido ao freqüente e grande número de camadas de subcontratações (MAYHEW &
pequenas empresas e de motoristas autô- QUINLAN, 2006). Grande número de evi-
nomos) tem sido intensificada por políti- dências recentes comprova que a pequena
cas governamentais de competição e de margem no prazo de entrega, o baixo re-
desregulamentação (como nos Estados torno, a pressão para corte de custos (que
Unidos, a liberalização do transporte ro- levam a mais horas de trabalho, a cortes
doviário de cargas) e por práticas de gestão na manutenção etc.) e o pagamento even-
das cadeias de fornecedores pelos clientes, tual têm comprometido a SST, com efeitos
especialmente os grandes e influentes ex- mais pronunciados entre os motoristas lo-
pedidores (como cadeias de varejo e afins) calizados na base da cadeia de subcontra-
(PLEHWE, 2003; BELZER, 2000). O valor tações ou da cadeia de fornecedores.

Desafios para a regulamentação

Complexas cadeias de fornecedores po- que para os empregados e as empresas sub-


dem apresentar um desafio particular para contratadas) e a culpabilidade, relativa. Em
as agências de regulamentação encarrega- razão disso, o projetista ou fabricante serão
das de salvaguardar a saúde e segurança responsabilizados por qualquer peça da
dos trabalhadores. maquinária que é comprovadamente peri-
gosa devido ao seu projeto ou fabricação
De um lado, a legislação para SST em
países como Austrália, Inglaterra e Cana- (no caso do empregador ter feito todos os
dá parece ser bem apropriada para abor- esforços possíveis para operar a máquina
dar complexas cadeias de fornecedores. com segurança e de acordo com as especi-
Os dispositivos gerais contidos nessas leis ficações do fabricante). De forma similar, o
estabelecem obrigações não simplesmente fornecedor pode também ser responsabili-
para empregadores e trabalhadores, mas zado se a máquina não estiver defeituosa,
também para o amplo espectro de outros mas tiver sido entregue sem as adequadas
atores cujas ações podem afetar a SST. Isso medidas de proteção ou quando a máquina
inclui projetistas, fabricantes, fornecedores não está de acordo com as exigências legais
e importadores de equipamentos usados requeridas pelas regulamentações de segu-
nos processos de trabalho, assim como os rança da jurisdição.
ocupantes dos locais de trabalho. As exi- Além disso, a subcontratação das ati-
gências legais presumem que há múltiplos vidades não remove as obrigações civis le-
responsáveis em dada situação de trabalho gais de uma organização para manter um
(com potencial para múltiplos processos sistema de trabalho seguro. Os empregado-
judiciais nos casos de violação da lei).
res têm o dever de proteger não somente
O grau de responsabilidade e de obriga- os empregados em suas instalações, mas
ção legal é proporcional ao grau de contro- “outros”, como os funcionários de emprei-
le exercido por cada parte envolvida (desse teiras, os autônomos subcontratados por
modo, as obrigações são mais onerosas para eles, os visitantes dos locais de trabalho e
o empregador e o principal contratante do os clientes. Inclusive, na maior parte das

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 145-152, 2007 147
jurisdições da Austrália e da Inglaterra, fornecedores fora de seu escopo) e havia
os deveres dos empregadores para com poucas tentativas das agências de fiscaliza-
“outros” estendem-se para além do local ção em SST de rastrear as cadeias de forne-
de trabalho dos empregadores (JOHNS- cedores ou de tratar com redes complexas
TONE, 1999). Essas obrigações valem de múltiplas camadas de empresas sub-
para cada trabalhador individualmente. contratadas. Em anos recentes, tem havido
Isso significa, por exemplo, que se houver mais esforço para se abordar esses aspectos
uma modificação no sistema de trabalho, com campanhas orientadas, mas o movi-
a saúde e a segurança de um trabalhador mento tem sido fragmentado, parcial e re-
não podem ser comprometidas, mesmo se ativo – mantendo-se atrasado em relação
outros trabalhadores se beneficiarem sufi- às mudanças nas estruturas corporativas e
cientemente, levando à melhora clara para nos diversos arranjos de trabalho.
sua saúde e segurança. Outras obrigações
exigem que os empregadores realizem ava- Segundo, enquanto tem havido crescen-
liações de riscos e consultem trabalhado- te atividade de fiscalização para demons-
res ou seus representantes quando, no pro- trar as obrigações legais devidas pelos múl-
cesso de trabalho, mudanças que possam tiplos detentores de responsabilidades (tais
afetar a SST são propostas. como os empreiteiros principais e subem-
preiteiros ou agências de contratação de
Essas obrigações legais de amplo esco- temporários e “tomadores de serviços”8), o
po relacionadas com as linhas de respon- efeito de dissuasão ou do aprendizado des-
sabilidade horizontais e verticais parecem sa fiscalização parece limitado devido ao
fornecer a base de uma abordagem inte- elevado número de pequenas empresas e
grada para assegurar o cumprimento da considerável rotatividade da mão-de-obra.
regulamentação pela maioria ou, se não, Ademais, não obstante a legislação, há evi-
por todas as partes envolvidas numa ca- dências de uma confusão persistente e de
deia de fornecedores. Em resumo, as obri- transferência de culpa entre os envolvidos,
gações legais estabelecem uma cadeia de algo agravado por tentativas abertas ou ve-
responsabilidades. ladas de ofuscar obrigações legais através
7
Call centers. Uma limitação óbvia é que o alcance de redes de modalidades contratuais, ma-
legislativo dessas obrigações não pode nipulação das modalidades legais de vín-
8
Host employers. culo empregatício (quem é empregado ou
estender-se além da jurisdição (a não ser
que algum acordo formal tenha sido feito autônomo e quem é o empregador) e re-en-
com outras jurisdições). Onde as cadeias genharia coorporativa (para tirar vantagem
de fornecedores estendem-se além das do véu corporativo, o que também torna a
fronteiras jurisdicionais (do estado ou da identificação dos principais tomadores de
província, na Austrália ou no Canadá, e decisão mais difícil). Visitas aos locais de
nacionais na maioria dos outros países), trabalho com inspetores de SST têm indica-
uma lacuna na lei é criada. Dessa forma, a do que tentativas de abordar os detentores
terceirização de atividades de fabricação de responsabilidades de alto-nível numa
ou de prestação de serviços (tais como cadeia de fornecedores são freqüentemen-
as centrais de atendimento7) para a Ásia te complexas, difíceis e muito demoradas e
rompe o alcance da regulamentação (es- enfrentam alta probabilidade de que as de-
pecialmente onde os vínculos são ofusca- cisões serão contestadas. Mesmo ignoran-
dos por ulteriores arranjos de subcontra- do as barreiras jurisdicionais, aqueles que
tação estabelecidos dentro desses países) se encontram no topo das cadeias – inques-
(QUINLAN et al., 2001a). tionavelmente os principais beneficiários
– tendem a argumentar que eles não têm
Deixando essa situação anterior à parte, controle sobre os que se encontram bem
mesmo dentro da mesma jurisdição, a efe- abaixo na cadeia, mesmo onde as prescri-
tiva regulamentação de complexas cadeias ções, que eles, com êxito, impuseram com
de fornecedores tem-se mostrado difícil de relação à qualidade do produto, aos prazos
assegurar. Há diversas razões para isso. Pri- de entrega etc., os contradigam.
meiro, até bem recentemente, a despeito da
legislação geral, o restante da legislação re- Finalmente, por uma variedade de ra-
lacionada à SST e suas respectivas práticas zões logísticas e outras, é mais difícil, para
de fiscalização estavam focalizadas, prin- as inspetorias já sobrecarregadas, prote-
cipalmente, para os empregados contrata- ger trabalhadores contingentes, tais como
dos diretamente por grandes empresas. Os temporários e trabalhadores domiciliares,
empregadores eram os alvos primários da porque a força de trabalho é provisória e
fiscalização (deixando os projetistas e os volátil, móvel e, como acontece com os tra-

148 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 145-152, 2007
balhadores domiciliares, difícil de localizar mochileiros e “trabalhadores terceirizados
e muito mais de inspecionar (JOHNSTONE de empresas prestadoras de serviço”9) em 9
Guestworkers.
et al., 2001; QUINLAN, 2004; JOHNSTO- trabalhos contingentes (inclusive aqueles
NE et al., 2005). O desafio para as agên- associados com complexas cadeias de for-
cias tem sido exacerbado pelo crescente necedores na produção de alimentos, de
uso de imigrantes (inclusive de imigrantes construção, de manufatura e de transporte,
ilegais) e de trabalhadores temporários es- na Europa, na América do Norte e na Aus-
trangeiros ou nativos (estudantes, turistas- tralásia) (GUTHRIE & QUINLAN, 2005).

Tentativas recentes de regulamentação de cadeias de fornecedores

Na Grã-Bretanha e na Austrália, os controle que eles exercem, na prática, so-


problemas com o cumprimento das regu- bre os projetos de construção (HSC, 1994).
lamentações relacionadas com as cadeias Além disso, enquanto as regulamentações
de fornecedores em certo número de in- ligadas ao projeto e à gestão da construção
dústrias (como construção, transporte ro- esclareceram a distribuição de responsabi-
doviário, colheita e produção de vestuário) lidades entre as várias partes envolvidas
estimularam novas formas de intervenção no planejamento e na execução de proje-
regulamentadora. Essas iniciativas incluem tos de construção, a Comissão Britânica
mecanismos para identificar as responsabi- de Saúde e Segurança não apoiou nenhum
lidades legais nas diversas camadas até o movimento para estender a lei que regula 10
CDM Regulations 1994: Cons-
topo das cadeias de fornecedores e dispo- as contratações nessas cadeias para outras truction, Design and Management
sitivos de rastreamento de contratos e pro- indústrias, argumentando que isso já esta- Regulations (Great Britain).
cessos de fiscalização para se contrapor aos va incluído na “Regulamentação da Gestão 11
Gangmaster significa agenciador
contratos comerciais evasivos, associados em Saúde e Segurança no Trabalho” de de trabalhadores.
com as grandes cadeias de fornecedores. 1999. Parece que há alguns problemas com
Em certo número de casos (mais notada- essa reivindicação. Mais recentemente, o 12
O que é fato digno de nota, pois
governo britânico reagiu ao afogamento de se trata de um Private members Bill,
mente nas facções para confecção de vestu-
19 mergulhadores chineses, que eram cata- que é um projeto de lei apresenta-
ário, mas também com motoristas proprie- do ao parlamento por um membro
tários e empreiteiros de serviços florestais), dores de conchas de moluscos, e a outros
individualmente e não pelo gover-
isso também acarretou novos sistemas re- abusos, lançando uma coordenada campa- no ou pelo partido de oposição.
gulamentadores que integram a legislação nha de fiscalização, integrada por muitas Este membro do parlamento pode
do trabalho (SST, salários, horas e assim agências de governo, chamada “Operação também não ser filiado a nenhum
por diante) e o crescente envolvimento da Gangmaster11”, e apoiando o desenvolvi- partido político. Na Austrália e
mento de um “Código de Práticas para em- no Reino Unido, projetos de lei
indústria, de sindicatos e da comunidade
preiteiros de mão-de-obra para a produção propostos por parlamentares
na fiscalização. Em diversas jurisdições individualmente não são freqüen-
australianas, as obrigações legais ligadas e comercialização de produtos agrícolas
tes e dificilmente tornam-se leis.
às cadeias de fornecedores foram introdu- frescos” envolvendo todos os atores da ca- Quando isso acontece é porque os
zidas com relação aos casos de homicídios deia de fornecedores (TLWG, 2004). Um partidos políticos decidiram apoiar
industriais culposos e na legislação voltada projeto de lei proposto por um parlamentar a proposta ou porque permitiram
à compensação aos trabalhadores. individualmente12 sobre a matéria – “Lei que seus membros utilizassem
de (Licenciamento) do Gangmaster”13 – foi o “voto de consciência”, isto é,
Na Grã-Bretanha, as regulamentações promulgado pelo parlamento. permitiram a eles votar de acordo
na área de Projeto e Gestão da Construção10 com a sua posição individual, em
de 1994 impuseram um conjunto de obri- No sistema federal da Austrália, a le- vez de votar seguindo a orientação
gações sobre os clientes de construções, gislação referente à SST é atualmente do partido.
incluindo responsabilidades relacionadas responsabilidade primária do Estado/Ter- 13
The Gangmasters (Licensing) Act,
com a nomeação de um supervisor de pla- ritório. Iniciativas recentes na Austrália
2004.
nejamento e de um empreiteiro principal, incluem cláusulas na “Lei sobre Homicí-
dios Culposos na Indústria” do território 14
New South Wales (NSW).
que devem ser razoavelmente competen-
da capital australiana para as cadeias de
tes, e de obrigações ligadas a informações
fornecedores e revisões na legislação so-
relevantes acerca da SST e a adequados
bre compensação aos trabalhadores em
recursos para a proteção da saúde e da se-
Nova Gales do Sul14. Outras duas iniciati-
gurança dos trabalhadores. Embora vistas
vas também merecem atenção.
como benéficas, as regulamentações não
atenderam as expectativas e uma emenda Primeiro, a introdução de legislação re-
foi recentemente proposta para aumentar o gulamentando as formas de subcontratação
papel que os clientes devem desempenhar, na indústria de vestuário em Nova Gales do
reconhecendo a substancial influência e Sul – Lei das Relações Industriais de 2001

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 145-152, 2007 149
(Negociações Comerciais Éticas na Indús- do Sul – Fadiga dos Caminhões de Longa
tria da Confecção) – e subseqüentemente Distância) (NEW SOUTH WALES, 2005).
de um código obrigatório de práticas (o Essa regulamentação requer que os empre-
Esquema de Responsabilidade Expandida gadores do setor de transporte rodoviário
para Negociações Comerciais Éticas na In- por caminhões (ou transportadores de car-
dústria da Confecção) para assegurar que gas) avaliem e tomem medidas para contro-
os trabalhadores subcontratados tenham lar os riscos relacionados com a fadiga dos
direitos legais, relacionados com salá- motoristas de longos trajetos que eles em-
rios, horas e outras condições de trabalho, pregam, incluindo a preparação de planos
equivalentes aos trabalhadores empre- para aliviar a fadiga dos condutores. Gran-
gados nas fábricas, bem como a proteção des transportadores de cargas, consignado-
das leis de SST e os direitos relacionados à res e consignatários também devem prepa-
compensação aos trabalhadores (NOSSAR rar planos individuais contra a fadiga dos
et al., 2004). A legislação de Nova Gales do motoristas para os condutores autônomos
Sul e o código obrigatório têm sido usados que eles contratam. Esses planos devem
como modelos para leis em outros estados detalhar a programação das tarefas a serem
e territórios (tais como o território da capi- realizadas, dos itinerários e dos horários
tal australiana). das viagens que levam em consideração os
tempos necessários para executar as tarefas
O sistema regulamentador, denomina- com segurança, os tempos realmente em-
do “por trás da marca”15, proibe os varejis- pregados para realizar tarefas, os períodos
15
Muitas vestimentas de marcas tas de estabelecerem um acordo com um
famosas são produzidas em de descanso requeridos para fazer face tan-
fornecedor sem que ele tenha se certificado to à fadiga imediata quanto à acumulada
fábricas de fundo de quintal ou por
trabalhadores em situação pre- de que este fornecedor ou empreiteiro, ou e as práticas de gerenciamento, incluindo
cária. A intenção deste sistema é empreiteiros, de quem ele compra os ser- os métodos para avaliar a adaptabilidade
obrigar os detentores das “marcas viços se utiliza(m) de trabalhadores sub- dos motoristas; os sistemas de relato para
de roupas famosas” a usar práticas contratados/terceirizados para executar o notificação de perigos, incidentes e aciden-
éticas de produção. trabalho e, se assim for, este empreiteiro tes e sistemas de monitoramento da saúde
deve fornecer informações desses trabalha- e da segurança dos motoristas; o ambiente
dores, incluindo os nomes e endereços. O de trabalho e o conforto das acomodações;
código ou regulamento, além disso, exige treinamento e informação acerca da fadiga
uma garantia do fornecedor de que estes que são fornecidos aos trabalhadores; pro-
trabalhadores subcontratados não recebam gramação de carga e descarga, práticas e
“condições menos favoráveis do que aque- sistemas, incluindo as práticas e sistemas
las prescritas nos instrumentos industriais para seqüência em filas; e acidentes ou fa-
pertinentes” (ou seja, semelhante àquelas lhas mecânicas. O mais importante é que
prescritas em acordo coletivo de trabalho os regulamentos obrigam os consignadores
que cobre os trabalhadores internos das e os consignatários de frete a realmente
fábricas). Uma violação dessa garantia monitorarem o cumprimento efetivo das
constituiria motivação para interromper obrigações legais dos transportadores sob
o acordo. Os varejistas também são obri- a regulamentação, proibindo-os de estabe-
gados a dirigir-se por escrito ao Sindicato lecer contratos com eles a não ser que eles
dos Trabalhadores da Indústria Têxtil, de os satisfaçam com razoáveis bases, assegu-
Confecção e de Calçados da Austrália ou ao rando que o planejamento temporal de en-
Diretor Geral do Conselho de Negociações tregas é razoável para a viagem (incluindo
Comerciais Éticas da Indústria da Confec- os tempos de carregamento, de descarga e
ção. O papel designado ao sindicato refle- de permanência em filas) e que cada mo-
te o sentimento de que, enquanto muitos torista (seja ele empregado ou autônomo)
trabalhadores subcontratados não forem que transporte carga sob o contrato de frete
associados, ele pode exercer função crítica, esteja coberto por um plano de gerencia-
auxiliando os inspetores do governo a as- mento da fadiga do motorista.
segurar que as novas exigências sejam, de
Uma profunda divisão entre os gover-
fato, implementadas.
nos estaduais e territoriais dominados
Um segundo desenvolvimento digno de pelo Partido Trabalhista e um governo fe-
nota foi a introdução de uma regulamenta- deral neoliberal significou que as iniciati-
ção retificando a Lei de Saúde e Seguran- vas adotadas localmente pelos anteriores
ça no Trabalho de Nova Gales do Sul, do receberam pouco apoio desse último. O
ano de 2000, sobre a fadiga de motoristas governo federal realmente concordou em
de caminhão (Emenda de 2005 à Lei Saú- fazer dos trabalhadores subcontratados da
de e Segurança no Trabalho de Nova Gales indústria de vestuário uma exceção para

150 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 145-152, 2007
seu retorno aos regulamentos trabalhistas lativas às cadeias de fornecedores, mesmo
mínimos dentro das novas leis de relações nas indústrias nacionais, como a de trans-
industriais, mas uma recente investigação porte rodoviário de longa distância, exceto
federal junto a empreiteiros independen- numa maneira fortemente simbólica que
tes recomendou que eles fossem colocados
ignorou a pressão dos clientes e os custos
“em quarentena”, mesmo considerando as
proteções legislativas diminuídas propor- de frete não-econômicos resultantes da in-
cionadas aos empregados regulares. Nem o tensa concorrência e do uso de cadeias de
governo federal, nem suas agências procu- subcontratações para explorar pequenas
raram generalizar as obrigações legais re- firmas e motoristas autônomos.

Considerações finais

Evidências disponíveis indicam que o respeito. Se elas forem bem-sucedidas, es-


crescimento de grandes cadeias de forne- sas iniciativas alterarão a configuração das
cedores, nacionais e internacionais, pode atividades empresariais, bem como as rela-
solapar as regulamentações em SST exis- ções nos locais de trabalho e as condições
tentes e apresentar um profundo desafio de SST nas indústrias que elas cobrem.
para os regulamentadores. Elas, ademais, Mais ainda, as leis poderão servir como
sugerem que a ação legislativa precisa ser um modelo genérico para regulamentar as
empreendida para abordar esse desafio. cadeias de fornecedores (RAWLING, 2006).
As iniciativas legislativas relatadas neste Por outro lado, sua aplicação em maior
trabalho parecem oferecer um caminho escala claramente requererá algum nível
potencial para avançarmos positivamente, de coordenação intergovernamental para
porque elas têm como alvo os tomadores abordar o crescente fenômeno comum das
de decisão nas cadeias de fornecedores e cadeias de fornecedores atravessarem as
algumas contêm mecanismos de rastrea- fronteiras jurisdicionais internas e interna-
mento contratual e de procedimentos es- cionais (NOSSAR, 2006). Mais fundamen-
peciais de fiscalização planejados para se talmente, talvez, a aplicação mais ampla
contrapor ao ofuscamento ou à evasão de também requererá superar consideráveis
responsabilidades.
barreiras políticas numa era marcada pela
Para serem eficazes, as regulamenta- pré-eminência das leis comerciais sobre
ções precisarão ser rigorosamente impostas as leis de proteção social e as tendências
e fiscalizadas e é, ainda, muito cedo para desregulamentadoras de parte de muitos
se avaliar a experiência adquirida a esse governos.

Agradecimentos

Os autores agradecem a José Marçal Jackson e à Flávia Coelho Rocha pela tradução do
texto original em inglês ao português e à Thaís Helena de Carvalho Barreira pela revisão
técnica.

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152 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 145-152, 2007
Ensaio

Elementos para uma nova cultura em segurança e


Jussara Maria Rosa Mendes1
saúde no trabalho
Dolores Sanches Wünsch2
Elements for a new culture in labor safety and health

1
Assistente social. Doutora em Resumo
Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Este artigo propõe-se a discutir o cenário contemporâneo das relações entre
Paulo. Diretora da Faculdade
saúde e trabalho, apontando alguns elementos que possam contribuir para o
de Serviço Social da Pontifícia
Universidade Católica do Rio debate sobre o tema, na perspectiva de alcançar uma nova cultura em segu-
Grande do Sul. Coordenadora do rança e saúde no trabalho. Evidencia-se que a predominância do viés preven-
Núcleo de Estudos e Pesquisa em cionista nesta área, que se consolidou ao longo dos anos, é resultado de um
Saúde e Trabalho do Programa de modelo hegemônico centrado no biológico e no indivíduo. A construção de
Pós-Graduação em Serviço Social práticas voltadas para a atenção à saúde do trabalhador exige uma abordagem
da Pontifícia Universidade Católica interdisciplinar e passa pela apreensão de novos referenciais em saúde e traba-
do Rio Grande do Sul, Brasil. lho, compreendendo-os como um processo dinâmico e social.
2
Assistente social. Doutora em
Serviço Social pela Pontifícia Uni-
Palavras-chaves: acidente de trabalho, segurança no trabalho, saúde do tra-
versidade Católica de São Paulo. balhador.
Professora da Faculdade de Serviço
Social da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Pes- Abstract
quisadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisa em Saúde e Trabalho do This article discusses the contemporary scenario of the relationship between
Programa de Pós-Graduação em health and labor, pointing out some elements that may contribute to the debate
Serviço Social da Pontifícia Univer- on this topic from the perspective of a new culture for labor safety and health.
sidade Católica do Rio Grande do It shows that the predominance of the view based on prevention, that has
Sul, Brasil. been consolidated over time, derives from a hegemonic model focused on the
biological and individual dimension. The construction of practices oriented to
the workers’ health requires an interdisciplinary approach and involves the
apprehension of new referents in health and labor understanding them as a
dynamic and social process.
Keywords: labor accident, labor safety, workers’ health.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007 153
Introdução

O conhecimento produzido nas últi- terminantes do processo saúde-doença na


mas duas décadas sobre a prevenção de perspectiva de transformá-los na direção
acidentes de trabalho vem desafiando os da saúde (BUSS, 2000).
profissionais da área de saúde e seguran-
ça do trabalho a repensar os modelos de A perspectiva aqui referida deve ser
gestão e de intervenção centrada na lógi- pensada com base na premissa de que a
ca da prevenção individual. Exige funda- saúde do trabalhador sofre forte impacto
mentalmente a compreensão das transfor- do capitalismo contemporâneo, em que a
mações em curso, à luz das mudanças do produtividade, a competitividade e a fle-
mundo do trabalho, para que a prevenção xibilidade se sobrepõem aos aspectos hu-
seja pensada na perspectiva das modifica- manos e sociais. Portanto, é preciso extra-
ções das condições e relações de trabalho. polar os “muros” da empresa e construir
Constata-se na atualidade não apenas o estratégias que articulem a participação
surgimento e o crescimento de novas pa- e o envolvimento de diferentes instâncias
tologias relacionadas ao trabalho, como tripartites, compostas por trabalhadores,
também a persistência de acidentes típi- empresários e governo, para gerar um de-
cos, os quais têm seus limites na organiza- senvolvimento não apenas sustentável,
ção do trabalho. A saúde e o trabalho estão mas socialmente capaz de enfrentar as
permeados pelas grandes transformações conseqüências do atual modelo econômi-
societárias e suas contradições contempo- co. Aponta-se também como estratégia a
râneas, relacionadas fundamentalmente articulação das ações no âmbito do traba-
aos processos de gestão e organização do lho industrial com a Política Nacional de
trabalho, viabilizados em especial pelas Segurança e Saúde do Trabalhador e com
novas tecnologias, impactando na saúde as diretrizes nela contidas, visando à inte-
dos trabalhadores. Sistemas produtivos gralidade das ações na área.
antigos e ultrapassados coexistem com os
processos modernos e tecnologicamente A relevância da discussão sobre o
superiores. É neste contexto que os agra- acidente de trabalho e o processo saúde-
vos relacionados ao trabalho revestem-se doença e, conseqüentemente, suas reper-
de novos significados e determinações ao cussões sobre a vida do trabalhador vêm
mesmo tempo em que indicam a necessi- se ampliando, bem como o impacto social
dade de superar problemas antigos. que estes agravos produzem. Apesar de
avanços científicos e tecnológicos em di-
Este artigo tem como objetivo refletir
sobre o acidente de trabalho e as doenças a ferentes esferas da sociedade, que trazem
ele relacionadas em meio ao contexto atu- resultados benéficos para a saúde da popu-
al, bem como contribuir para a compreen- lação e dos trabalhadores em geral, ocorre,
são desta temática, considerando a abran- contraditoriamente, uma expressiva ele-
gência das ações de saúde e a concepção vação da morbi-mortalidade nesta área.
ampla do processo de saúde-doença e de Revela-se, portanto, que é preciso avançar
seus determinantes. Entende-se a pre- na construção de uma nova cultura3 em
3
O conceito de cultura tem como saúde do trabalhador. Essa cultura repre-
base as formulações gramscianas
venção não como uma ação unívoca, mas
e se apresenta em duas direções: como resultado de uma política de gestão senta o estabelecimento de pactos, princí-
de um lado, a cultura significa em saúde do trabalhador. Este enfoque é pios e valores que devem nortear práticas
o modo de viver, de pensar e de mais amplo e abrangente, uma vez que e condutas que atendam novas e antigas
sentir a realidade por parte de uma busca identificar e enfrentar os macrode- demandas da área.
civilização e, por outro lado, é con-
cebida como projeto de formação
do indivíduo, como ideal educativo Concepções e cenário do acidente de trabalho e do processo de
a ser transmitido para as novas
gerações (VIEIRA, 1999). saúde-doença

As determinações que incidem sobre a trabalho. As profundas transformações que


saúde do trabalhador na contemporaneida- vêm alterando a economia, a política e a
de estão fundamentalmente relacionadas cultura na sociedade por meio da reestru-
às novas modalidades de trabalho e aos turação produtiva e do incremento da glo-
processos mais dinâmicos de produção im- balização, entre outros motivos, implicam
plementados pelas inovações tecnológicas também mudanças nas formas de gestão do
e pelas atuais formas de organização do trabalho que engendram a precariedade e

154 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007
a fragilidade das questões que envolvem a essa realidade sob uma perspectiva de su-
relação entre saúde e trabalho e as condi- jeitos coletivos, conhecendo-os e reconhe-
ções de vida dos trabalhadores. cendo-os historicamente.
Do ponto de vista científico, a saúde e a Em uma análise transversal dessas mu-
doença referem-se a fenômenos vitais, sen- danças, nos últimos 30 anos, transparece,
do formas pelas quais a vida se manifesta. claramente, o direcionamento para uma
As experiências dos sujeitos e as idéias do- nova hierarquização do setor, na qual o ho-
minantes do meio social são determinantes mem passa a assumir a instância de sujeito
no processo de construção social da doen- das ações, transcendendo a sua condição
ça e da saúde. Desse modo, em um contex- anterior de objeto no processo de atenção
to de valorização da capacidade produtiva à sua saúde. No Brasil, os marcos funda-
das pessoas, estar doente pode significar, mentais referentes a tais mudanças foram
para o trabalhador, ser indesejável ou so- a realização da VIII e da IX Conferências
cialmente desvalorizado. Nacionais de Saúde (1986 e 1992, respecti-
vamente) e a inserção do conceito de saúde
Assim, para se abordar a questão do na Constituição Federal, eventos esses que
acidente e da doença relacionada4 com o evidenciaram uma nova relação do homem
trabalho, é imprescindível identificar as com seu meio social. A saúde passou a ser
4
Este tema foi abordado no
relações que se estabelecem no âmbito da verbete “acidente de trabalho”
percebida não mais apenas por sua ausên-
de Trabalho e tecnologia: dicionário
saúde do trabalhador, compreendendo-a cia, mas como “[...] resultante das condi-
crítico (MENDES, 2002).
como embasada na seguinte premissa: ções de alimentação, educação, salário,
meio ambiente, trabalho, transporte, em-
Os trabalhadores apresentam um viver,
adoecer e morrer compartilhado com o
prego, lazer e liberdade, acesso à proprie-
conjunto da população, em um dado tem- dade privada da terra e acesso aos serviços
po, lugar e inserção social, mas que é tam- de Saúde” (BRASIL, 1988). Os conceitos
bém específico, resultante de sua inserção que definiam a Medicina do Trabalho e a
em um processo de trabalho particular. Saúde Ocupacional, utilizados até então,
(DIAS, 1996, p. 28) não contemplavam essa complexidade e
também as necessidades da área naquele
Nesse sentido, a saúde do trabalhador momento; daí a importância de se apreen-
pressupõe uma interface entre diferentes der esse processo em sua totalidade, bus-
alternativas de intervenção que contem- cando-se somar esforços e conhecimentos
plem as diversas formas de determinação para se intervir nessa realidade.
do processo de saúde-doença dos trabalha-
dores. As alterações introduzidas na Carta Tradicionalmente, a atenção prestada a
Constitucional brasileira de 05/10/1988 no essa área se voltava para o trabalho formal
seu artigo 196 não deixam dúvidas quanto e, dentro deste, ao trabalho industrial. Po-
ao fato de que, desde então, a saúde passou rém, a realidade de hoje difere, em muito,
a ser entendida como direito de cidadania, desse paradigma de trabalho, o que, sem
devendo ser garantida pelo Estado a par- dúvida, muda a forma de se compreender
tir de suas políticas sociais e econômicas, a questão, exigindo transformações ra-
bem como por meio de outras medidas que dicais na maneira de se conceber e de se
possibilitem reduzir os riscos e os agravos enfrentar os problemas daí decorrentes.
e, ainda, que assegurem o acesso aos ser- A análise sob uma perspectiva evolutiva
viços através do Sistema Único de Saúde e conceitual indica que, na Medicina do
Trabalho, o enfoque principal da deter-
– SUS (DIAS, 1996).
minação do processo de saúde-doença é
Assim, é necessário pensar a saúde do individual, biologicista, como demonstra
trabalhador desde a sua organização na so- a sistematização realizada por Mendes e
ciedade e no trabalho, compreendendo-se Oliveira (1995), no Quadro 1.

Quadro 1 Desenvolvimento conceitual da saúde do trabalhador

Determinantes do
ação principal caráter principal ator principal cenário papel do usuário campo da saúde
processo
usuário é objeto
Biológico tratamento da doença técnico médico hospital Medicina do Trabalho
da ação
usuário e ambiente
Ambiental prevenção da doença técnico equipe ambulatório Saúde Ocupacional
são objetos
Social promoção da saúde técnico e político cidadão sociedade sujeito Saúde do Trabalhador
Fonte: Mendes e Oliveira (1995).

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007 155
A concepção atual de saúde do traba- Dessa forma, fica evidente que o binô-
lhador entende o social como determinan- mio saúde-doença pressupõe a articulação
te das condições de saúde e, sem negar que entre as diferentes interfaces sociais e que
os doentes devam ser tratados e que seja ele depende do modo de viver, da qualida-
necessário prevenir novas doenças, privi- de de vida e do acesso que os indivíduos
legia ações de promoção da saúde. Enten- têm a bens e serviços (DIAS, 1996). Ao re-
de que as múltiplas causas dos acidentes e fletirmos sobre saúde, acidente, doença e
das doenças do trabalho têm uma hierar- trabalho na vida dos indivíduos e da cole-
quia entre si, não sendo neutras e iguais, tividade, fica cada vez mais difícil falarmos
havendo algumas causas que determinam de um mundo do trabalho que pertença,
outras (MENDES & OLIVEIRA, 1995). Di- unicamente, à esfera da fábrica e de um
ferentemente das visões dicotomizadas an- outro mundo externo ao trabalho, perten-
teriores, propugna-se que os programas de cente à esfera da rua.
saúde incluam a proteção, a recuperação e
Verificamos a existência de uma com-
a promoção da saúde do trabalhador de for-
plexa interação entre aspectos físicos,
ma integrada e que sejam dirigidos não só
psicológicos e sociais relevantes para a
aos trabalhadores que sofrem, adoecem ou
compreensão daquilo que seja a história
se acidentam, mas também ao conjunto dos
humana. Eles não deixam dúvidas quanto
trabalhadores (DIAS, 1996). Essas ações
ao fato de que a saúde e o adoecimento, o
devem ser redirecionadas para se alcançar
viver e o morrer dos indivíduos estão di-
as múltiplas mudanças que ocorrem nos
retamente relacionados a questões que
processos de trabalho, sendo realizadas
ultrapassam análises de sua causalidade e
através de uma abordagem transdisciplinar
multicausalidade.
e intersetorial e, ainda, com a imprescindí-
vel participação dos trabalhadores. Nessa perspectiva, a matriz da estru-
tura de prevenção e proteção da saúde no
A dinâmica da produção, as condições trabalho passa a se constituir mais como
de trabalho e o modo de vida continuam uma forma de controle da força de traba-
sendo fontes importantes para que se com- lho do que como atenção à saúde: há todo
preenda o processo de saúde, adoecimento um sistema estruturado para se darem
e morte da população brasileira. Portanto, rápidas e competentes respostas às neces-
falar do processo de saúde-doença é buscar sidades do sistema econômico a qualquer
compreender esse binômio que evidencia custo, tendo como base a equação denun-
sentimentos, não menos contraditórios, ciada por Thébàud-Mony (1997): cresci-
de dor e felicidade por se estar diante das mento econômico = progresso social, sus-
questões da vida e da morte, da doença e tentáculo das regulações sociais adotadas.
da saúde das pessoas. Evidencia-se, assim, Dessa maneira, a saúde dos trabalhadores
que a doença, a saúde e a morte não se é resultante de uma articulação política,
reduzem a evidências “orgânicas”, “natu- econômica e monetária, na qual as desi-
rais”, “objetivas”; elas estão intimamente gualdades sociais diante das doenças e da
inter-relacionadas com características de morte são os principais elementos revela-
cada sociedade. Expõem pontos revela- dores dessa dinâmica, estruturada pelas
dores, como o fato de a doença ser social- relações sociais de produção.
mente construída e de o doente ser um
personagem social. Transparece, pois, que Concebe-se, portanto, que o conceito
a compreensão do processo de acidente e do que é o acidente e a doença advinda do
adoecimento transcende a aceitação de sua trabalho é um dos frutos dessa construção
multicausalidade, identificando-se seu fa- social. Nessa dinâmica, encontra-se o con-
tor determinante no social. Santos (1985), ceito de “risco aceitável”, baseado na in-
buscando ampliar a percepção do processo ter-relação entre o diagnóstico pericial e a
de trabalho para além do ambiente fabril, determinação das normas que enquadram
considera a compreensão da doença como os riscos nos limites do medicamente acei-
tável. Seus artifícios são a desqualificação
[...] uma dinâmica que abrange não só a
(o desnivelamento da qualificação) dos
produção, consumo e reposição do traba-
trabalhadores ditos de “fora do quadro, ex-
lhador diretamente envolvido no processo
de trabalho, mas também, de forma am- teriores, ajudantes” e a redução do tempo
pla, a produção da população que compõe de trabalho, com rebaixamentos salariais
a classe trabalhadora, que expressa, no legalmente permitidos quando se trata de
seu corpo, a face social do ser. (p. 15) trabalho em tempo parcial.

156 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007
Por outro lado, o próprio conceito legal trabalho são direitos de todos os trabalha-
de acidente de trabalho, em que se equipara dores. Sem exclusão do direito à indeni-
doença profissional e doença do trabalho, zação a que fazem jus quando ocorre dolo
constante da Lei n. 8213 (BRASIL, 1997), ou culpa, todos os trabalhadores teriam
que dispõe sobre os Planos de Benefícios direito constitucional à cobertura por um
da Previdência Social, tem se demonstrado seguro contra acidentes de trabalho, inde-
contraditório na sua aplicabilidade. Além pendentemente da sua forma de inserção
disso, devido ao quadro de violência urba- no mercado de trabalho.
na, notadamente a relacionada ao trânsito
O reconhecimento legal e, conseqüente-
e aos assaltos, assumem particular valor os
mente, o direito a ele relacionado ocorrem
eventos ocorridos no percurso da residên-
a partir da notificação oficial do acidente
cia para o trabalho e vice-versa.
de trabalho e cabe à Previdência Social a
Nos termos das Ciências Sociais, consi- caracterização do acidente de trabalho de
dera-se acidente de trabalho todo acidente forma administrativa e o estabelecimento
que ocorra no transcurso da atividade do do nexo entre o trabalho exercido e o aci-
homem na transformação da natureza, no dente. Tecnicamente, isso é feito através da
processo de criação de mercadorias com perícia médica, que determina o nexo de
fins econômicos, remunerado ou não (AL- causa e efeito entre o acidente e a lesão, a
BORNOZ, 1994), excluindo-se, portanto, doença e o trabalho ou entre a causa mortis
apenas as atividades com caráter de hobby e o acidente. Entretanto, há um crescimen-
ou lazer, por exemplo. to significativo do número de trabalhado-
res afastados do trabalho por incapacidade,
A legislação brasileira encontra-se em-
sendo que, contraditoriamente, o benefício
basada nessa dicotomia entre fatores hu-
por acidente de trabalho representa menos
manos e ambiente de trabalho. Os riscos, os
de 20% desta parcela (BRASIL, 2005).
atos inseguros, o risco aceitável, os limites
suportáveis pelo trabalhador, em geral, são Os dados oficiais disponíveis no Bra-
caracterizados dentro das empresas e estão sil não revelam a realidade do acidente e
tensionados pela necessidade de se reduzir da doença do trabalho, primeiro pelo fato
o número de acidentes a qualquer custo. de que o conceito de acidente de trabalho,
para fins de enquadramento no Seguro de
A legislação em vigor relativa ao aci-
Acidente do Trabalho e, secundariamen-
dente de trabalho encontra-se sob a égide
te, para fins de inclusão nas estatísticas
da Constituição da República Federativa oficiais, abrange, exclusivamente, alguns
do Brasil, promulgada em 5 de outubro de trabalhadores urbanos (o empregado – ex-
1988. Consta, em seu artigo 7º, que estão ceto o doméstico –, o trabalhador avulso,
contemplados os direitos dos trabalhado- o segurado especial e o médico residente)
res urbanos e rurais, além de outros be- e os trabalhadores rurais empregados ou
nefícios que visem à melhoria de sua con- membros de unidade de economia fami-
dição social. Nesse artigo se destacam os liar. Excluem-se completamente, portanto,
seguintes incisos: no âmbito do mercado formal, todos os tra-
[...] balhadores domésticos, os autônomos e to-
dos os servidores públicos civis e militares
XXII - redução dos riscos inerentes ao
trabalho, por meio de normas de saúde, (municipais, estaduais e federais), além de
higiene e segurança; todos os acidentes de trabalho que ocorram
com trabalhadores não registrados e os do
XXVIII - seguro contra acidentes de traba-
mercado informal de trabalho. Neste sen-
lho, a cargo do empregador, sem excluir a
indenização a que está obrigado, quando
tido, os números divulgados pela Organi-
incorrer em dolo ou culpa; zação Internacional do Trabalho (OIT) são
alarmantes e representam apenas uma par-
XXXIII - proibição de trabalho noturno, cela desta realidade. A estimativa da enti-
perigoso ou insalubre aos menores de de-
dade é de que, no mundo todo, os aciden-
zoito anos e de qualquer trabalho a me-
nores de quatorze anos, salvo na condição
tes e as doenças do trabalho matem, por
de aprendiz; ano, cerca de 2 milhões de trabalhadores.
As doenças relacionadas ao trabalho res-
XXXIV - igualdade de direitos entre o tra- pondem por 1,6 milhão de mortes; os aci-
balhador com vínculo empregatício per-
dentes de trabalho, por 360 mil mortes. O
manente e o trabalhador avulso; [...]
número de mortes causadas por acidentes
Assim, a redução dos riscos inerentes e doenças relacionadas ao trabalho ultra-
ao trabalho e o seguro contra acidentes de passa aquele causado por epidemias como

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007 157
a AIDS. No Brasil, segundo o Ministério tre patronato e movimento sindical dá-se
da Previdência Social, em 2005, foram re- em torno de questões referentes à saúde e à
gistrados 492 mil casos de acidentes e do- segurança através da prevenção alcançada
enças relacionadas ao trabalho, com 2.708 pela formação profissional. Porém, a rup-
mortes de trabalhadores (BRASIL, 2005). tura desta paz social ocorre por ocasião de
Esses dados, no entanto, são parciais e as grandes catástrofes sanitárias, indicando
justificativas, já referidas anteriormente, a chegada de um momento de acidentes
reafirmam as dificuldades com as quais de grandes proporções, com impactos co-
nos deparamos ao tratar dos acidentes de letivos na saúde e no meio ambiente. Tal
trabalho no Brasil. situação revela o choque social dos aciden-
Como pode ser demonstrado, em ter- tes quando, pela sua gravidade, provocam
mos da legislação previdenciária, no que importantes perturbações nos planos emo-
tange ao seguro contra acidente do traba- cional, psíquico e psicossocial daqueles di-
lho, ainda é grande a parcela de trabalha- retamente envolvidos, como especialistas,
dores do setor formal que são excluídos de técnicos, mas principalmente a população
sua cobertura face à ausência de efetiva ca- em geral, através da proximidade que a
racterização do adoecimento relacionado mídia pode oferecer do evento. Para Llory
ao trabalho, seja pelo empregador, seja pela (1999), esses episódios são o retorno à di-
previdência social. Por conseguinte, mui- mensão oculta ou ocultada da construção
tas infortunísticas referentes ao trabalho social dos agravos relacionados ao trabalho,
não são levadas ao Ministério do Trabalho a desforra da realidade global sobre a visão
e, daí, aos órgãos internacionais. Relacio- reducionista da ciência especializada.
nando-se, ainda, o perfil do tipo de traba-
Se reconhecermos que a saúde e a doen-
lhador do mercado formal que tem acesso
ça se definem como um processo dinâmi-
ao seguro acidentário com o tamanho de
co, expresso no corpo, no trabalho, nas
nosso mercado informal de trabalho, tem-
condições de vida, nas dores, no prazer e
se a exata idéia do quanto trabalhadores es-
no sofrimento, enfim, em tudo que compõe
tão fora das estatísticas oficiais e sem pro-
teção social. Em relação a essa discussão, uma história singular, mas também cole-
ganha relevância o papel das pesquisas so- tiva, pela influência das múltiplas lógicas
bre acidente, doença e morte no trabalho5. inscritas nesse processo, estaremos cami-
5
Pode-se mencionar, neste Através da pesquisa é possível desvendar nhando para uma concepção ampliada de
sentido, a experiência do Núcleo a dinâmica que envolve o adoecimento e saúde do trabalhador (MENDES, 2003).
de Estudos em Saúde e Trabalho o acidente de trabalho identificando os
(NEST), da Faculdade de Serviço
O cenário, portanto, compõe-se de di-
elementos consensuais e as divergências, ferentes interfaces, fruto de construções
Social da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul,
a relação entre os processos de trabalho, sociais, históricas e contemporâneas, en-
cujos pesquisadores têm buscado as determinações sociais e a manifestação trelaçando concepções e aspectos legais,
aliar descrições possíveis do de doenças do trabalho e profissionais, a estruturais e conjunturais. Esse sistema está
adoecimento às notificações dos exposição ocupacional a agentes nocivos fundado na prevenção e na reparação de da-
sistemas públicos existentes, além para a saúde do trabalhador e seus agravos nos à saúde, focalizado no indivíduo e, se-
dos procedimentos metodológi- latentes e residuais.
cos que permitam a articulação cundariamente, na organização do trabalho.
entre o cotidiano de vida e de E, por último, não poderíamos deixar Ao se constatar que as relações de produção
trabalho e a ocorrência dos de apontar o que Dwyer (1991) refere como vêm apresentando outras configurações e
agravos à saúde do trabalhador. intrínseca correspondência entre a história impondo demandas diferenciadas, redo-
O Núcleo vem utilizando como da saúde no trabalho e as histórias que se bram-se as exigências e os cuidados na área
fontes de pesquisa a validação das inscrevem na evolução do conhecimento da saúde do trabalhador, elevando-se a um
informações contidas no banco
de processos sociais de gestão dos riscos novo patamar as ações e estratégias dos pro-
de dados da Delegacia Regional
do Trabalho (DRT/RS), através das no trabalho. A construção da paz social en- fissionais nela inseridos.
Comunicações de Acidentes de
Trabalho (CATs) que a Previdência
Social informa àquela instância Da prevenção do acidente de trabalho à saúde do trabalhador
regional do trabalho, e as referidas
nos sistemas do SUS/RS, a saber, O contexto atual não só altera as múlti- que centra nos trabalhadores os cuidados
o RINA (Relatório Individual de
Notificação de Agravos) e o RINAV plas determinações da saúde do trabalha- com os riscos a que estão expostos revela-
(Relatório Individual de Notifica- dor, como exige um redimensionamento se deficitária e acaba ocultando as manifes-
ção de Acidente e Violência). dos conhecimentos e das ações nesta área tações decorrentes da inserção produtiva e
que contemple as diferentes manifestações social destes trabalhadores. Nesse sentido,
que emergem da relação do trabalho ver- não promove a saúde nem o enfrentamento
sus saúde-doença. A visão prevencionista dos diferentes condicionantes. Prevalece

158 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007
uma ação normatizadora da legislação vi- dividualizada por parte do acidentado. A
gente em detrimento das reais possibilida- ação tende a “educar” o indivíduo para se
des de formular proposições conjuntas que prevenir;
atendam as necessidades oriundas da vida
b) centrar o foco no indivíduo contribui
no trabalho, pois a concepção de saúde do
para um distanciamento da percepção da
trabalhador e seus aspectos relacionados à
saúde do trabalhador como algo implicado
prevenção e à proteção ocupacional devem
também com as condições de vida – ali-
reconhecer o processo de doença-trabalho
mentação, habitação, remuneração, entre
dentro e fora do âmbito produtivo e, funda-
outros – e com a organização do trabalho
mentalmente, como as diferentes expres-
– incluindo todos os componentes do pro-
sões de agravo à saúde se manifestam em
cesso de trabalho, como a força de traba-
diferentes épocas e espaços profissionais.
lho, os desgastes físico, psíquico e social,
Destaca-se que uma questão sempre a matéria-prima (muitas vezes insalubre,
atual diz respeito à concepção adotada de manuseio penoso e pesado, tóxica etc.),
quanto às causas dos acidentes de traba- os instrumentos de trabalho e os riscos ao
lho. A mais freqüente indica que os aci- operacionalizá-los.
dentes de trabalho são resultantes dos Para melhor compreender-se esse se-
chamados atos inseguros praticados pelo gundo processo, é importante a formula-
próprio trabalhador. Contudo, sabemos ção de Laurell e Noriega (1989), que uti-
que mesmo aqueles acidentes que ocorrem lizam a categoria “carga de trabalho” em
pelo descuido do trabalhador muitas vezes detrimento do conceito de risco. Essa ca-
são condicionados por diferentes determi- tegoria tem contribuído para determinar
nantes, tais como o cansaço provocado pe- o objeto da saúde do trabalhador como o
las horas extras, estafa crônica, horas não estudo do processo de saúde-doença dos
dormidas, alimentação e transporte defi- grupos humanos sob a ótica do trabalho.
cientes, precárias condições ambientais, Nessa perspectiva de análise, a carga de
manuseio de máquinas e equipamentos trabalho é definida pelos autores como
que requeiram atenção redobrada, inten- abarcando tanto as condições físicas, quí-
sificação do ritmo de trabalho, exigências micas e mecânicas quanto as fisiológicas,
de um trabalhador polivalente e más con- as quais interatuam dinamicamente entre
dições de vida e de trabalho, entre outras si e no corpo do trabalhador (MINAYO-
causas. A lógica apresentada tende a im- GOMEZ & THEDIM-COSTA, 1997).
putar a culpa ao trabalhador:
Em relação a essa análise, constata-se
[...] vai desde teorias da culpa, em que é
que os meios de proteção à saúde têm se
enfatizada a imperícia do trabalhador; à
acidentabilidade, que supõe a existência
dado de forma externa ao trabalhador, fa-
de trabalhadores acidentáveis; à predispo- zendo com que ele não seja sujeito do pro-
sição aos acidentes, em função de carac- cesso, como bem coloca Possas:
terísticas individuais, e à dicotomia entre As condições de trabalho e saúde estão
os fatores humanos e o ambiente do tra- estreitamente associadas às condições em
balho. (MACHADO & MINAYO-GOMES, que se realiza o processo produtivo e são
1995, p. 118). por elas determinadas. O grau de impor-
Historicamente, o trabalhador se tornou tância que será dado ao problema da saú-
de, da doença ocupacional e do acidente
objeto de ações que centram nele a respon-
do trabalho é determinado pela posição e
sabilidade de evitar a iminência de dano pela importância relativa dos trabalhado-
ou risco à sua saúde, tendendo, ao mesmo res como parte deste processo. (POSSAS,
tempo, a responsabilizá-lo em caso de aci- 1989, p. 118)
dente de trabalho em detrimento das con-
dições de trabalho, caracterizando, portan- Nas situações em que se pode reconhe-
to, o acidente como conseqüência de “ato cer o dano à saúde, pouco se tem olhado
para o “controle” da carga de trabalho;
inseguro”. Segundo Wünsch (2005), essa
além disso, a prevenção e a eliminação dos
visão, que parece ter se consolidado em
riscos não têm levado em conta a progres-
meio aos profissionais da área, desenca-
sividade do desgaste humano lentamente
deou dois processos opostos e linearmente
acumulado, que não é só físico. Assim,
construídos:
pode-se dizer que, em algumas situações
a) conceber o acidente de trabalho de agravos à saúde, ocorreram avanços na
como produto da conduta do trabalhador identificação, na caracterização, no diag-
no seu ambiente laboral; este é entendido nóstico e no tratamento dos acidentes e
como resultante de causa endógena e in- das doenças, porém tem-se uma outra face

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007 159
dessa realidade, que é o passivo de traba- e trabalho. Decorre desse contexto também
lhadores colocados para fora do meio pro- a necessidade do reconhecimento do traba-
dutivo, face à perda da capacidade laboral, lho real, pelos diferentes níveis de relações
e estigmatizados pelo mercado de trabalho. de trabalho e sociais do trabalhador, como
Esta realidade demarca aos empregadores a fator subjetivo de satisfação e saúde mental
necessidade de reverem não apenas as con- no trabalho.
dições ambientais e organizacionais do tra-
Em estudo realizado por Seligman
balho, mas também seus modelos de gestão
(1990) sobre condições de trabalho e vida
da saúde para o trabalhador.
dos trabalhadores vinculadas à saúde men-
A noção de risco indenizável da saúde, tal destes, a autora chama a atenção para as
através de reparação pecuniária do aci- condições que são derivadas também das
dente de trabalho e/ou doença legalmente características da organização do trabalho.
caracterizada, teve grande impacto no de- Destaca os seguintes fatores de riscos para
senvolvimento dos seguros sociais, con- a saúde mental: jornada prolongada; traba-
tribuindo para que estes se vinculassem lhos em turnos alternantes; ritmo acelera-
à idéia de reparação, ou seja, pagando-se do e exigências referidas ao mesmo; tempo
pelas conseqüências sem olhar as causas. de descanso insuficiente; hierarquização
Como retrata Pezerat (2000), a implan- rígida; sistemas de controle do desempe-
tação dos seguros permitiu pagar pelos es- nho na produção; sistema insatisfatório
tragos sem recriminar os erros, sendo estes de segurança do trabalho; rotatividade de
suplantados pelo conceito de risco sem ques- pessoal; desinformação; desvios de função
tionar a responsabilidade legal, uma vez que e acúmulo de funções. Situa também os
os trabalhadores estavam segurados. riscos físicos, ambientais e químicos, bem
como as relações interpessoais conflituosas
Em meio a essa cultura, em que preva- dentro da empresa, principalmente em re-
lece a individualização da prevenção, a vi- lação às chefias, como geradoras de mágoa
são monetarista do dano em detrimento do e insatisfação. O mesmo estudo traz outras
entendimento do que é saúde, parece-nos questões relacionadas às condições de vida
oportuno trazer outros elementos que vêm como fatores principais causadores de ten-
repercutindo diretamente nas condições são e a perdas relacionadas à migração e
de trabalho e de vida do trabalhador. Estes habitação em condições insatisfatórias, en-
dizem respeito à questão da saúde mental tre outras.
no trabalho.
Conclui-se que a compreensão da for-
Autores como Dejours (1988) e Se- ma de organização do trabalho, imbricada
ligman (1990) chamam a atenção para os com as necessidades advindas das condi-
aspectos geradores de risco à saúde dos ções de vida do trabalhador, é central para
trabalhadores, fundamentalmente rela- a (re)formulação de uma proposta de ges-
cionados ao processo de organização do tão em saúde do trabalhador nas empresas
trabalho. Para Dejours (1988), o sofrimen- que venha a ser articulada com a política
to no trabalho se relaciona à insatisfação específica para esta área.
com a tarefa realizada e seu conteúdo sig-
nificativo e também ao conteúdo ergonô- A 3ª Conferência Nacional da Saúde
mico do trabalho. A adaptação do homem do Trabalhador, realizada em dezembro de
ao trabalho, seja ela física ou mental, vem 2005, referendou esta orientação política.
merecendo diferentes estudos por parte da Uma das resoluções aprovadas6 aponta a
6
O conjunto de proposições se necessidade de o Estado promover ações de
ergonomia, que se preocupa com os meios
encontra no documento “Resolu-
e as condições de execução do trabalho. integralidade no desenvolvimento de polí-
ções da 3ª Conferência Nacional da
Saúde do Trabalhador”, versão de As melhorias dessas condições dizem res- ticas universais, intersetoriais e integradas
24 de abril de 2006, disponível no peito ao grau de participação, autonomia – saúde, trabalho e emprego e previdência
site: http://www.saude.gov.br e organização dos envolvidos (OLIVEIRA, social –, contemplando ações preventivas,
2002). Entretanto, segundo este mesmo de promoção da saúde, de vigilância (epi-
autor, é importante diferenciar o trabalho demiológica, sanitária, ambiental e de saú-
real e o trabalho prescrito, ou seja, o traba- de do trabalhador), curativas e de reabilita-
lho efetivamente realizado, o real, depende ção que garantam o acesso do trabalhador
dos meios fornecidos para realizá-lo e das a um atendimento humanizado, cuja con-
condições físicas e mentais do trabalhador. secução esteja assegurada nas três esferas
Neste sentido, o resultado do trabalho de- de governo – federal, estadual e municipal.
pende de vários fatores que envolvem o tra- Para tal, as ações devem contar com a par-
balhador, a empresa, as condições de saúde ticipação do empregador na promoção de

160 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007
condições salubres de trabalho e na elimi- ção no processo produtivo ou hierárquico.
nação de riscos à saúde do trabalhador. Significa reafirmar que todos envolvidos
neste processo devem se reconhecer e es-
O documento da conferência enfatiza
tabelecer relações de horizontalidade na
que a discussão de segurança e saúde do
construção de proposições que visem a vi-
trabalhador, incluindo-se a Política Nacio-
giar e proteger a saúde. Deve-se igualmente
nal de Segurança e Saúde do Trabalhador,
garantir o estabelecimento de medidas efe-
deve estar pautada nos conceitos de de- tivas na proteção dos trabalhadores incor-
senvolvimento sustentável e de responsa- poradas à política gerencial e de desenvol-
bilidade social, com o desenvolvimento vimento das empresas e articuladas com a
de subsídios conceituais à introdução de Política Nacional de Segurança e Saúde do
políticas de saúde do trabalhador nas po- Trabalhador.
líticas de desenvolvimento econômico e
social. Essas são propostas que têm como A questão central a ser enfrentada, en-
eixo a redefinição do papel das empresas tretanto, na travessia a ser percorrida em
na participação na política pública de saú- prol da saúde do trabalhador, é a constru-
de e de sua responsabilidade na promoção ção de uma cultura que abarque os ele-
da saúde. mentos aqui delineados, os quais dizem
respeito à forma como se enfrentam deter-
Destaca-se ainda uma terceira proposta, minadas mudanças sociais e às concepções
a qual objetiva transformar os Serviços Es- de mundo e valores que são socialmente
pecializados em Engenharia de Segurança aceitas e transmitidas. Torna-se imprescin-
e em Medicina do Trabalho (SESMT), com dível estabelecer um conjunto de valores
base na Norma Regulamentadora NR-4 do e condutas voltado para um processo edu-
Ministério do Trabalho e Emprego, em ser- cativo e participativo que contribua para
viços especializados de segurança e saúde o desenvolvimento individual e coletivo
no trabalho, contando com a participação do ser humano, em que a saúde e o traba-
efetiva das empresas e dos órgãos públicos lhador sejam vistos na sua integralidade.
e privados na melhoria das condições labo- Entende-se ser necessária, fundamental-
rais, de forma articulada com os profissio- mente, a construção de uma cultura capaz
nais das áreas de saúde, segurança e meio de integrar saberes, o que pressupõe a rea-
ambiente. Na perspectiva das formulações lização de ações interdisciplinares sem a
expressas neste artigo, não se trata de uma supremacia de um determinado campo do
mera mudança de nomenclatura, mas, sim, conhecimento, uma vez que nenhuma área
de uma nova concepção em saúde do tra- sozinha consegue dar conta das complexas
balhador. Visa-se a uma concepção que su- relações e determinações que incidem so-
pere a prevalência de uma visão biologista bre a saúde do trabalhador.
e curativa da saúde, restrita à Medicina,
passando a ser resultado da interdiscipli- Assim, o estabelecimento de uma cultu-
naridade no conhecimento e na ação, bem ra voltada para a formação e o desenvolvi-
como a uma concepção na qual o trabalha- mento humano requer organizações e su-
jeitos capazes de responder às mudanças
dor passe a ser sujeito do processo.
em curso sem se omitir de seu papel neste
Trabalhar na perspectiva da saúde e processo e/ou aceitá-las como naturais ou
não da doença ou do dano é possível desde inevitáveis. Requer, acima de tudo, a defe-
que os diferentes atores envolvidos tenham sa intransigente de um projeto societário
papel valorizado na promoção da saúde, que enfrente as contradições presentes no
independentemente do seu grau de inser- processo de saúde e trabalho.

Considerações para um debate continuado


Tem-se presente que as formulações aqui sua totalidade num cenário em que a dimen-
apresentadas trazem em si elementos para são social não seja ocultada por diferentes
uma reflexão inesgotável sobre a saúde e o mecanismos presentes na sociedade.
trabalho na atualidade, constituindo-se em
categorias que expressam a nova configura- Portanto, a dinâmica da produção, as con-
ção societária, na qual o trabalho tem novos dições de trabalho e o modo de vida conti-
significados e determinações. A saúde, por nuam sendo fontes importantes para que se
sua vez, expressa a sinergia com as condições compreenda o processo de saúde, adoeci-
de vida e trabalho e só pode ser pensada na mento e morte dos trabalhadores.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007 161
Ao evidenciar o acidente de trabalho e taxas de lucro. Sem dúvida, não se trata de
as doenças profissionais como expressão e uma tarefa fácil para os profissionais que
síntese do processo de saúde-doença e tra- atuam na área, tendo em conta a dinâmi-
balho, torna-se constitutiva a busca de uma ca de organização e gestão do trabalho e
“contralógica” que trabalhe na perspectiva o tensionamento presente neste contexto,
da saúde e segurança no trabalho como fundamentalmente, pela secundarização
estratégia organizacional, fundada em pro- do papel do trabalhador nessa dinâmica.
cessos participativos e educativos, nas di-
Os avanços obtidos com a construção de
ferentes instâncias de tomada de decisão.
um novo conceito de saúde do trabalhador,
Esses modelos de gestão participativa, de
nas últimas décadas, precisam ser con-
mudanças nas condições físicas, ergonômi-
cas e organizacionais, pactuações em torno solidados socialmente, o que passa pelo
de prioridades, estabelecimento de práti- reconhecimento da centralidade do traba-
cas inovadoras e relações horizontais têm- lhador nesse processo, pela compreensão e
se revelado importantes instrumentos para enfrentamento dos determinantes sociais,
uma nova cultura em saúde e segurança no econômicos, políticos e culturais presentes
trabalho desde que não sejam utilizados na sociedade atual e, por conseguinte, na
como meros instrumentos de elevação das saúde do trabalhador.

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Oswaldo Cruz, 1985. do Rio Grande do Sul. 2005.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 153-163, 2007 163
Resenha

Vida e morte no trabalho


DWYER, Tom. Tradução de Wanda Caldeira Brant e Jô Amado. São Paulo: Multiação
Editorial/Unicamp, 2006. 408p.

A Editora da Unicamp e a Multiação bólicas, incentivando a intensificação e o


Editorial prestam importante serviço ao aumento de jornadas.
país com a publicação de Vida e morte no
No que se refere ao comando, trata das
trabalho, de Tom Dwyer, sociólogo e pro-
relações de autoritarismo, de desintegra-
fessor da Unicamp. A primeira versão des-
ção de grupos de trabalho e até da servi-
se livro foi lançada, em inglês, em 1991 e
dão voluntária, levando ao aumento da
recebeu comentários e resenhas das prin-
ocorrência da possibilidade de acidentes.
cipais publicações mundiais dedicadas
O autoritarismo pode ir da violência explí-
aos temas da Segurança, da Ergonomia e
cita às ameaças de punição para diminuir
da Sociologia do Trabalho.
a autonomia dos trabalhadores. A desin-
A contribuição de Dwyer é resumida tegração de grupos de trabalho dificulta a
pela expressão “acidentes industriais são cooperação e a comunicação (trocas) entre
produzidos por relações sociais”. O autor integrantes, aumentando o risco de aciden-
constrói explicação sociológica para as ori- tes. A servidão voluntária pode ser con-
gens dos acidentes, indo além do olhar tra- seguida via contratação de trabalhadores
dicional baseado em teorias psicológicas extremamente necessitados que aceitem a
de falhas dos operadores. presença de riscos como parte inevitável
do trabalho.
A explicação do Professor Tom Dwyer é
particularmente importante em nosso país, No âmbito organização, inclui as práti-
onde o arcabouço jurídico relativo à segu- cas de contratação de pessoal menos qua-
rança praticamente desconsidera aspectos lificado a custo mais baixo, a separação
da dimensão sociológica dos acidentes entre concepção e execução do trabalho
cuja importância, na gênese desses even- etc. Este nível inclui relações sociais de
tos, vem sendo apontada como crescente. subqualificação, rotina e desorganização
que levariam à monotonia, à desatenção e
No prefácio à edição brasileira, Maria
à desorganização, aumentando o risco de
Elizabeth Antunes Lima conclui:
acidentes.
Isso significa que os profissionais respon-
sáveis pela segurança nos contextos de O ponto crucial da proposta de Dwyer é
trabalho devem ser orientados por crité- resumido por Lima:
rios sociais e seu espaço de atuação deve é a força do coletivo de trabalhadores, en-
ter como referência as relações sociais tendida como o grau em que este coletivo
produtoras de acidentes. (p. 7) consegue exercer seu ‘poder de comando’,
A teoria proposta por Dwyer discute que irá influenciar o tratamento a ser dado
aos perigos presentes no trabalho e, conse-
as contribuições de relações sociais de re-
qüentemente, o índice de acidentes. (p. 8)
compensa, de comando e de organização
que levariam trabalhadores a aceitar altos O conteúdo do livro é riquíssimo, fru-
níveis de risco de acidentes no trabalho. to de uma cultura muito vasta que vai da
história da invenção e uso da lâmpada de
Em relação à recompensa, Dwyer dis-
Davy, em 1816, à evolução do sentimento
cute como os incentivos financeiros, o au-
da morte no mundo moderno.
mento das jornadas de trabalho e as recom-
pensas simbólicas levariam trabalhadores A possibilidade da contribuição das
a aceitar riscos maiores, podendo sofrer Ciências Sociais para a prevenção de aci-
mais acidentes. Os incentivos financeiros dentes pode encontrar resistências e in-
agiriam via intensificação do trabalho; o compreensões entre profissionais cuja
aumento da duração das jornadas atuaria formação é centrada na abordagem de as-
levando trabalhadores a irem além de suas pectos técnicos de problemas. A teoria de
capacidades físicas; e as recompensas sim- Dwyer não esquece esses incrédulos, que

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 165-166, 2007 165
só acreditam naquilo que é observável, que acordo com os números oficiais, a aciden-
pode ser medido, testado e provado com talidade caiu significativamente e estabili-
números. O autor testou sua teoria em sete zou-se nos últimos anos. De acordo com a
fábricas da Nova Zelândia e apresenta seus teoria do autor, o comportamento esperado
resultados no livro. Posteriormente, orien- não seria o aumento dessas taxas?
tou pesquisas no Brasil usando a sua teoria.
Em outras palavras, sua contribuição não é Para finalizar, nada melhor que as pala-
“mero” exercício teórico. Pelo contrário, re- vras usadas por Lima no encerramento de
flete o olhar de quem “freqüenta a vida”, o seu prefácio ao livro:
chão de fábrica onde se dão os acidentes. em um país onde os ‘atos inseguros’ ainda
A proposta de Dwyer suscita reflexões e continuam sendo apontados como os fa-
foi alvo de questionamentos que não redu- tores mais importantes na origem dos aci-
zem a importância de sua contribuição para dentes, penso que devemos receber com
o campo da Saúde do Trabalhador. Entre entusiasmo um livro que aborda o proble-
ma respeitando sua complexidade e que,
os novos estudos que podem ser indicados,
acima de tudo, não pretende dar a palavra
um refere-se à exploração da adequação da
final sobre o assunto, mas, ao contrário,
teoria como explicação do comportamento
se apresenta como um estímulo à reflexão
da acidentalidade no Brasil nos últimos e como um convite a novas pesquisas que
anos. Afinal, à primeira vista, as mudanças dêem continuidade a um projeto inegavel-
ocorridas no mundo do trabalho levaram a mente promissor. (p. 10)
reconhecido enfraquecimento da força dos
coletivos de trabalhadores, da sua capaci- Ildeberto Muniz de Almeida
dade de exercer o poder de comando capaz Professor do Departamento de Saúde Pública da
de fazer face aos perigos presentes no coti- Faculdade de Medicina de Botucatu-SP
diano de vida e trabalho. Apesar disso, de ialmeida@fmb.unesp.br

166 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 165-166, 2007
Agradecimento aos consultores ad hoc desta edição

Ada Ávila Assunção – UFMG, Belo Horizonte


Alice Fushako Itani – Senac, São Paulo
Aparecida Mari Iguti – Unicamp, Campinas
Carlos Minayo Gomez – Fiocruz, Rio de Janeiro
Celso Amorim Salim – Fundacentro, Belo Horizonte
Eduardo Giampaoli – Fundacentro, São Paulo
Erasmo Felipe Vergara – UFSM, Santa Maria
Eugênio Paceli Hatem Diniz – Fundacentro, Belo Horizonte
Fátima Sueli Neto Ribeiro – Inca, Rio de Janeiro
Francisco de Paula Antunes Lima – UFMG, Belo Horizonte
Heleno Rodrigues Corrêa Filho – Unicamp, Campinas
Ivete Dalben – Unesp, Botucatu
Jorge Mesquita Huet Machado – Fiocruz, Rio de Janeiro
Laerte Idal Sznelwar – USP, São Paulo
Leny Sato – USP, São Paulo
Luiz Augusto Facchini – UFPel, Pelotas
Luiz Felipe Silva – UNIFEI, Itajubá
Maria Cecília Pereira Binder – Unesp, Botucatu
Marina Petrilli Segnini – Unicamp, Campinas
Oscar Antonio Braunbeck – Unicamp, Campinas
Paulo Antonio Barros Oliveira – UFRGS, Porto Alegre
Paulo Gilvane Lopes Pena – UFBA, Salvador
Paulo Roberto Gutierrez – UEL, Londrina
Renato Rocha Lieber – Unesp, Guaratinguetá
Ricardo Carlos Cordeiro – Unicamp, Campinas
Rita de Cássia Fernandes – UFBA, Salvador
Roberto Funes Abrahão – Unicamp, Campinas
Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela – Unimep, Piracicaba
Rosemary Achcar – UnB, Brasília
Sandhi Barreto – Fiocruz, Rio de Janeiro
Selma Borghi Venco – Unicamp, Campinas
Thais Helena Carvalho Barreira – Fundacentro, São Paulo
Uiara Bandineli Montedo – USP, São Paulo
Vilma Sousa Santana – UFBA, Salvador
Instruções aos autores Página de rosto Normas para publicação
As opiniões emitidas pelos autores são de sua inteira res- a) Título na língua principal (português ou espanhol) e em na Revista
ponsabilidade. inglês.
A publicação de artigos que trazem resultados de pes- b) Nome e sobrenome de cada autor.
quisas envolvendo seres humanos está condicionada ao
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É de responsabilidade do(s) autor(es) promover(em) as e) Se o trabalho foi subvencionado, indicar o tipo de au-
devidas revisões gramaticais no texto encaminhado bem xílio, o nome da agência financiadora e o respectivo nú-
como se preocupar com a obtenção de autorização de mero do processo.
direitos autorais com relação ao uso de imagens, figuras,
tabelas, métodos etc. junto a outros autores ou editores, f) Se o trabalho foi baseado em tese, indicar título, ano e
quando for o caso. instituição onde foi apresentada.
Modalidades de contribuições g) Se o trabalho foi apresentado em reunião científica, in-
dicar o nome do evento, local e data da realização.
Artigo: contribuição destinada a divulgar resultados de
pesquisa de natureza empírica, experimental ou concei- h) Local e data do envio do artigo.
tual (até 56.000 caracteres, incluindo espaços e excluin-
Corpo do texto
do tabelas, figuras e referências).
Revisão: avaliação crítica sistematizada da literatura a) Título na língua principal (português ou espanhol) e em
sobre determinado assunto; deve-se citar o objetivo da inglês.
revisão, especificar (em métodos) os critérios de busca b) Resumo: Os manuscritos para as seções artigos, re-
na literatura e o universo pesquisado, discutir sobre os visões e ensaios devem ter resumo na língua principal
resultados obtidos e sugerir estudos no sentido de pre- (português ou espanhol) e em inglês, com um máximo de
encher lacunas do conhecimento atual (até 56.000 ca- 1400 caracteres cada, incluindo espaços.
racteres, incluindo espaços e excluindo tabelas, figuras
e referências). c) Palavras-chaves / descritores: Mínimo de três e máxi-
mo de cinco, apresentados na língua principal (portu-
Comunicação breve: relato de resultados parciais ou guês ou espanhol) e em inglês. Sugere-se aos autores
preliminares de pesquisas ou divulgação de resultados que utilizem os descritores definidos na base Lilacs:
de estudo de pequena complexidade (até 15.000 ca- http://decs.bvs.br.
racteres, incluindo espaços excluindo tabelas, figuras
e referências). d) O desenvolvimento do texto deve atender às formas
convencionais de redação de artigos científicos.
Ensaio: parecer pessoal ou de um grupo sobre tópico
específico (até 56.000 caracteres, incluindo espaços e e) Citações: A revista se baseia na norma da Associação
excluindo tabelas, figuras e referências). Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) NBR 10520, versão
de 2002. As citações ao longo do texto devem trazer o
Resenha: análise crítica sobre livro publicado nos últimos sobrenome do autor e ano da publicação, como em Al-
dois anos (até 11.200 caracteres, incluindo espaços). granti (1998) ou (ALGRANTI, 1998). No caso de citações
Carta: texto que visa a discutir artigo recente publicado com mais de três autores, somente o sobrenome do pri-
na revista (até 5.600 caracteres, incluindo espaços). meiro autor deverá aparecer, como em Silva et al. (2000)
ou (SILVA et al., 2000). Em se tratando de citação literal,
Processo de julgamento das contribuições o autor deverá indicar o(s) número(s) da(s) página(s) de
Os trabalhos submetidos em acordo com as normas onde o texto citado foi extraído, de forma abreviada e
de publicação e com a política editorial da RBSO se- entre parênteses, como em: conforme Ali (2001): “Gran-
rão avaliados pelo Editor Científico que considerará de número dessas dermatoses não chegam às estatísti-
o mérito da contribuição. Não atendendo, o trabalho cas e sequer são atendidas no próprio ambulatório da
será recusado. Atendendo, será encaminhado a con- empresa.” (p.17).
sultores ad hoc.
f) A exatidão das referências constantes da listagem e a
Cada trabalho será avaliado por, ao menos, dois consulto- correta citação no texto são de responsabilidade do(s)
res de reconhecida competência na temática abordada. autor(es) do trabalho. As citações deverão ser listadas nas
Com base nos pareceres emitidos pelos consultores, o referências bibliográficas ao final do artigo, que devem
Editor Científico decidirá quanto à aceitação do trabalho, ser em ordem alfabética e organizadas com base na nor-
indicando, quando necessário, que os autores efetuem ma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)
alterações no mesmo, o que será imprescindível para a NBR 6023, versão de 2002. Os exemplos apresentados a
sua aprovação. Nestes casos, o não cumprimento dos seguir têm um caráter apenas de orientação e foram ela-
prazos estabelecidos para as alterações poderá implicar borados de acordo com essa norma:
na recusa do trabalho.
Livro
A recusa de um trabalho pode ocorrer em qualquer mo- WALDVOGEL, B. C. Acidentes do trabalho: os casos fatais – a
mento do processo, a critério do Editor Científico, quan- questão da identificação e da mensuração. Belo Horizon-
do será emitida justificativa ao autor. te: Segrac, 2002.
O processo de avaliação se dará com base no anonimato
Capítulo de livro
entre as partes (consultor-autor).
NORWOOD, S. Chemical cartridge respirators and
A secretaria da revista não se obriga a devolver os origi- gasmasks. In: CRAIG, E. C.; BIRKNER, L. R.; BROSSEAU,
nais dos trabalhos que não forem publicados. L. Respiratory protection: a manual and guideline. 2nd ed.
Preparo dos trabalhos Ohio: American Industrial Hygiene Association, 1991. p.
40-60.
Serão aceitas contribuições originais em português ou
espanhol. Artigos de periódicos
O texto deverá ser elaborado empregando fonte Times New BAKER, L.; KRUEGER, A. B. Medical cost in workers
Roman, tamanho 12, em folha de papel branco, com mar- compensation insurance. J. Health Econ., n. 14, p. 531-549,
gens laterais de 3 cm e espaço simples e devem conter: 1995.
Normas para publicação GURGEL, C. Reforma do estado e segurança pública. Políti- Constituição Federal
ca e Administração, v. 3, n. 2, p. 15-21, 1997. BRASIL. Constituição (1988). Texto consolidado até a
na Revista
Artigo e/ou matéria de revista, jornal etc. Emenda Constitucional nº 52 de 08 de março de 2006.
Brasília, DF, Senado, 1988.
NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de
São Paulo, São Paulo, 28 jun. 1989. Folha Turismo, Cader- Decretos
no 8, p. 13. SÃO PAULO (Estado). Decreto nº 48.822, de 20 de janei-
ro de 1988. Lex: Coletânea de Legislação e Jurisprudên-
Tese, dissertação ou monografia cia, São Paulo, v. 63, n. 3, p. 217-220, 1998.
SILVA, E. P. Condições de saúde ocupacional dos lixeiros de São g) Tabelas, quadros e figuras: As imagens dos conteúdos
Paulo. 1973. 89f. Dissertação (Mestrado em Saúde Am- dos artigos serão publicadas em preto e branco. Tabelas
biental) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de e quadros devem ser apresentados um a um, em folhas
São Paulo, São Paulo, 1973. separadas, numerados consecutivamente com algaris-
mos arábicos, na ordem em que forem citados no texto.
Evento como um todo A cada um deve ser atribuído um título sintético contex-
SEMINÁRIO PROMOÇÃO DA SAÚDE AUDITIVA: ENFOQUE tualizando os dados apresentados. Nas tabelas o título
AMBIENTAL, 2, 2002, Paraná. Anais... Universidade Tuiuti deve ser posicionado acima do corpo principal. Nas fo-
do Paraná, 2002. tos e ilustrações o título deve ser posicionado abaixo do
corpo principal. Nas tabelas não devem ser utilizadas
Resumo ou trabalho apresentado em congresso linhas verticais. Fontes, notas e observações referentes
FISCHER, R. M.; PIRES, J. T.; FEDATO, C. The strengthening ao conteúdo das tabelas, quadros e figuras devem ser
of the participatory democracy. In: INTERNATIONAL CONFE- apresentadas abaixo do corpo principal das mesmas. As
RENCE OF INTERNATIONAL SOCIETY FOR THIRD-SECTOR figuras (gráficos, fotos, esquemas etc.) também deverão
RESEARCH (ISTR), 6, 2004, Toronto. Proceedings... Toronto: ser apresentadas, uma a uma, em arquivos separados,
Ryerson University, 2004. v. 1. p. 1. em formato de arquivo eletrônico para impressão de
alta qualidade (não encaminhar em arquivo Word, exten-
Relatório são .doc). Os gráficos podem ser executados no software
FUNDAÇÃO JORGE DUPRAT FIGUEIREDO DE SEGURANÇA Excell (extensão .xls), enviados no arquivo original. Fotos
E MEDICINA DO TRABALHO. Relatório de Gestão 1995- e ilustrações devem apresentar alta resolução de ima-
gem, não inferior a 300 dpi. As fotos devem apresentar
2002. São Paulo, 2003. 97p.
extensão .jpg ou .eps ou .tiff . Ilustrações devem ser exe-
Relatório técnico cutadas no software Coreldraw, versão 10 ou menor (exten-
são .cdr) ou Ilustrator CS2 (extensão .ai), sendo enviadas
ARCURI, A. S. A.; NETO KULCSAR, F. Relatório Técnico da no arquivo original. A publicação de fotos e ilustrações
avaliação qualitativa dos laboratórios do Departamento estará sujeita à avaliação da qualidade para publicação.
de Morfologia do Instituto de Biociências da UNESP. São As figuras não devem repetir os dados das tabelas. O
Paulo. Fundacentro. 1995. 11p., 9 anexos. número total de tabelas, quadros e figuras não deverá
CD-ROM ultrapassar 5 (cinco) no seu conjunto.
SOUZA, J. C. de et al. Tendência genética do peso ao desma- h) Agradecimentos (opcional): Podem constar agrade-
me de bezerros da raça nelore. In: REUNIÃO ANUAL DA SO- cimentos por contribuições de pessoas que prestaram
colaboração intelectual ao trabalho, com assessoria
CIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 35, 1998, Botucatu.
científica, revisão crítica da pesquisa, coleta de dados,
Anais... Botucatu: UNESP, 1998. MEL-002. 1 CD-ROM. entre outras, mas que não preenchem os requisitos para
MORFOLOGIA dos artrópodes. In: ENCICLOPÉDIA mul- participar da autoria, desde que haja permissão expres-
timídia dos seres vivos. [S.l.]: Planeta DeAgostini, 1998. sa dos nominados. Também podem constar desta parte
CD-ROM 9. agradecimentos a instituições pelo apoio econômico,
material ou outro.
Fita de vídeo
Envio dos trabalhos
CENAS da indústria de galvanoplastia. São Paulo: Fun- Os trabalhos devem ser endereçados à secretaria da
dacentro, 1997. 1 videocassete (20 min), VHS/NTSC., RBSO, em uma via impressa e uma via eletrônica, em dis-
son., color. quete ou CD-R.
Documento em meio eletrônico Os trabalhos deverão vir acompanhados da declaração
de responsabilidade e de cessão de direitos autorais
BIRDS from Amapá: banco de dados. Disponível em:
conforme modelo que se encontra no Portal da Funda-
http://www.bdt.org. Acesso em: 28 nov. 1998. centro: http://www.fundacentro.gov.br/rbso
ANDREOTTI, M. et al. Ocupação e câncer da cavidade Endereço para envio
oral e orofaringe. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v.
Fundacentro
22, n. 3, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/
RBSO
scielo.php?script=sci _arttext&pid=S0102-311X200
a/c Sra. Elena Riederer
6000300009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em:
Rua Capote Valente, 710 - 3º andar
15 abr. 2006.
05409-002 • São Paulo – Capital
Legislação Brasil
BRASIL. Lei nº 9.887, de 7 de dezembro de 1999. Altera Nota: eventuais esclarecimentos poderão ser feitos via e-mail:
a legislação tributária federal. Diário Oficial da República rbso@fundacentro.gov.br, pelo telefone: (11) 3066.6099 ou
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 dez. 1999. por fax: (11) 3066.6060.

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