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Cliente: D'Livros O Dogma dos Três Poderes Primeira prova data: 21/07/09
P. Garaude
D´LIVROS EDITORA
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2009
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Dedico este livro a minha esposa, meus filhos e netos.
O Dogma dos três poderes
Sumário
Prefácio ........................................................................................................... 9
Governo e estado ............................................................................................ 12
Há opção à divisão tripartite? . ......................................................................... 16
Verdades, dogmas, mitos ................................................................................. 22
Dogma versus liberdade . ................................................................................. 26
Governo: raízes históricas ................................................................................ 30
A aliança conveniente ...................................................................................... 40
Democracia não é opção… é conquista ........................................................... 48
Arquétipos sociais ............................................................................................ 52
Síndrome do salvador da pátria . ...................................................................... 60
Meritocracia, opção incompleta ....................................................................... 67
O egghead ...................................................................................................... 71
Objetivos, metas, parâmetros . ......................................................................... 75
Agências organizadas como empresas ............................................................. 77
Eleições, partidos, programas . ......................................................................... 81
Os comitês gestores ......................................................................................... 90
O conselho de Estado....................................................................................... 98
O chefe de Estado ........................................................................................... 101
Quando menos é mais ..................................................................................... 104
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Prefácio
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Até então, era rara a experiência do homem comum viver sem estar submetido
a um governo despótico, autoritário, às vezes tirânico, sob o qual o respeito aos
direitos individuais e à liberdade eram apenas ideias.
Montesquieu, por viver em época de pouca especialização, não se preocupou
com a natureza, a espécie de serviços que o governo deveria prestar — a divisão
seria feita por funções, não pelas áreas em que a administração pública devesse
atuar, que no século XVIII iam pouco além de segurança externa, interna, edição de
poucas regras reguladoras de direitos e obrigações, justiça — até então sanciona-
dora de todos os abusos do poder — execução e manutenção de algumas poucas
obras e benfeitorias públicas.
Transcorreram quase trezentos anos de sua formulação, e a divisão tripartite de
poderes, a despeito da grande evolução dos costumes e do conhecimento, continua
em vigor em quase todos os países democráticos, como um dogma fora de discus-
sões, uma teoria irretocável, imutável, ainda atual, única forma válida de evitar os
males de um regime arbitrário, não pautado no respeito aos direitos e liberdades
individuais.
Temos tentado diagnosticar sem a acuidade recomendável e buscado solu-
ções para problemas de governabilidade, sem nos darmos conta de poder estar na
superação do critério de divisão em três poderes a raiz de muitas mazelas atuais.
Sintetizo as principais.
O legislativo não é especializado, mas tem de se manifestar sobre todos os as-
suntos, dos mais variados, cada vez mais complexos e específicos, para os quais, em
geral, lhe falta conhecimento; sua representatividade é comprometida pela necessi-
dade de um enorme gasto para o candidato eleger-se; a forma de eleição afasta a
participação de pessoas capacitadas, não dispostas a concorrer e gastar seu dinheiro
para esse fim, sem a intenção de ressarcir-se; a tarefa fiscalizadora que deveria lhe
incumbir é anulada pela cooptação avassaladora procedida pelo executivo, sempre
a cata de maiorias parlamentares; tem um custo desproporcional a seu desempe-
nho, pois além dos polpudos ganhos, vantagens e benesses auferidos pelos próprios
parlamentares, custa também ao contribuinte o salário de milhares de funcionários
e assessores que trabalham para cumprir interesses pessoais dos deputados e se-
nadores, poucas vezes coincidentes com os da população; presta-se à atuação de
grupos econômicos dispostos a financiar as campanhas de candidatos, mediante
oportuna retribuição; perde o foco de seus reais objetivos: o tempo dos parlamen-
tares é gasto na busca ou manutenção de poder, da própria reeleição e evidência
na mídia, não poucas vezes na defesa contra acusações que lhes são feitas, pouco
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Governo e estado
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há porque deixar de distingui-lo das pessoas que o compõem ou exercem seus cargos
momentaneamente.
Governo é uma organização coletiva que, para funcionar no regime democrá-
tico, tem suas funções ocupadas, por certo tempo, por partidos ou pessoas, mas
não são elas. O máximo permitido é que, devidamente adjetivado ou restrito, possa
ser usado para distinguir certa gestão, período de sua ocupação.
Nação, por sua vez, envolve a identidade cultural de um povo, que pode, ou
não, ser reconhecida como estado soberano. Muitas vezes não o é. A tendência
é seu paulatino desaparecimento, pois a ideia sedimenta-se em segregação, raça,
pátria, tradição, em oposição à grande miscigenação e à globalização que vem
ocorrendo.
Em um estado democrático, governo é um conjunto de órgãos que tem por es-
copo prestar serviços à sociedade, regular relações entre seus integrantes e resolver
problemas que demandam participação coletiva, não equacionáveis ou exequíveis
por indivíduos ou minorias. Além disso, na social democracia, que defendo, deve
haver adicionalmente o propósito de prover o bem-estar e o progresso de pessoas
social ou fisicamente desfavorecidas.
Estes objetivos, tão claros, jamais deveriam ser ignorados, subestimados, mas
vêm sendo.
Tive um professor de Direito Constitucional que dava muita ênfase ao estudo
e à conceituação de “estado”.
Ele entendia “estado” como um ente natural, cuja existência era racional e
lógica, assim como o indivíduo e a família. Quando seu aluno, aos dezoito anos,
na academia do Largo de São Francisco, em São Paulo, assisti suas aulas com a im-
pressão de que o velho mestre, ao afirmar que o “estado é meio e não fim”, havia
constatado o óbvio com perplexidade, como é usada a expressão, de forma irônica,
para se referir a pessoas que parecem ficar deslumbradas com a verdade ululante,
finalmente descoberta.
Constatei, posteriormente, que sua verdade era bem diferente da minha. Para
ele, a volta ao passado se justificava, pois os melhores valores estavam sendo es-
quecidos.
O professor Ataliba Nogueira, monarquista e católico, baseado em Aristóteles,
Platão e São Tomás de Aquino, usava a expressão em uma escala de valores que
começava com o indivíduo, depois a família e então o estado, que abrangia o mu-
nicípio, a região e a nação. Estado, para ele, seria um ente de direito natural, a área
de inserção da pessoa humana à vida em sociedade imediatamente após a família.
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O sistema da tripartição está manco. Concebido para caminhar sobre três per-
nas, usa apenas uma e arrasta as duas outras, com resultados sofríveis. Na prática,
o executivo, muito melhor dividido em áreas especializadas, açambarcou as funções
do legislativo, deixando-lhe apenas o poder residual de ratificar as suas decisões, o
que ele faz, não pela convicção de seus membros, mas ao sabor de interesses polí-
ticos, cuja consecução depende da troca de favores com o executivo.
Não há razão inteligente para cristalizar, como dogma, a divisão do governo
em “poderes”. O sistema vem produzindo furos, cada vez mais difíceis de serem
consertados. As tentativas de emendar não tem sido suficientes para corrigir o que
foi se tornando viciado na essência, com o passar do tempo.
Com o uso, a divisão de Montesquieu foi conduzida a fazer outras separações,
especialmente no executivo, e também, de forma menos acentuada, no legislativo
e no judiciário.
O progresso tornou necessária a divisão em órgãos cuja natureza decorre da
especialização em áreas de atuação. Essas divisões foram feitas ao sabor das ocor-
rências, mas sem a consistência recomendável, sem sistematização, sem unicidade
de modelo e planejamento. Um erro que vem se acentuando com a evolução do
conhecimento.
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Por outro lado, existe uma grande dificuldade na hora de organizar posições
que, idealmente, deveriam ser consensuais ou, no mínimo, decorrer da maioria.
No respeitante à vida política, houve e ainda há vários obstáculos importantes
a nos desviar do que seria a tomada de decisões lógicas e democráticas. Há uma
variedade enorme de dogmas que nos foram impostos no passado por razões que
hoje podemos compreender. Há também os que lograram impor suas verdades,
construídas por convicção doentia, oportunismo disfarçado ou pela somatória das
duas, arrebatando um número enorme de seguidores. Muitos, de sanidade mental
duvidosa, lideraram organizações suficientes para induzir a maioria, com arroubos
de oratória e uma eficiente máquina de propaganda, a aceitar posições de ódio,
vingança, preconceitos e deturpações megalômanas.
Ao ler Mein Kampf, impressionou-me o grau de convicção do autor sobre seus
pontos de vista, tanto no diagnóstico das causas dos problemas sociais, políticos e
econômicos da Alemanha de sua época como ao analisar as razões de sua ocorrência,
a certeza de saber as respostas para todas as questões. Adolf Hitler, o autor da obra,
como a maioria daqueles que colocaram a liberdade como valor secundário, enxergava
a verdade eterna, externa, imutável, independente dos sentidos, disponível para ser
desvendada por pessoas iluminadas por uma inteligência invulgar, como ele supunha
ter. Logo, não seria preciso haver liberdade para os que discordassem, pois estariam
errados e atuariam contra os interesses do povo alemão, que ele sabia quais eram e se
achava em condições de implementar e defender. Dogmatizou a sua verdade.
A característica psicológica dos que tentam justificar o totalitarismo implica em
ver o mundo dividido: os bons, os maus, o certo, o errado, uma dicotomia sem ver-
dades intermediárias. O ditador alemão tinha uma solução para todas as perguntas
que formulou em seu livro. Tudo e todos, em seu entender, podiam ser classificados
e rotulados: judeus, arianos, franceses, ingleses, comunistas, patriotas, superiores,
inferiores, justos, injustos, inteligentes, estúpidos, honestos, corruptos, traidores,
interesseiros, generosos…
Corolário de sua arrogante autoavaliação, tinha horror ao que chamava de
meias verdades, posição dúbia, própria dos fracos, sem caráter. Não abria exceções
a qualquer um que discordasse dele. Qualidades e defeitos nas pessoas eram de sua
própria essência. Se fosse ariano era bom, superior, mas se não partilhasse seus pon-
tos de vista, traidor ou ingênuo. Se fosse judeu era mau, interesseiro, frio, egoísta,
desprovido da capacidade de amar.
Ele saberia como estabelecer a ordem, colocar cada um em seu lugar, os aria-
nos no topo, eliminar os que não coubessem no seu mundo, como, lamentavel-
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mente, tentou fazer, julgando-se, como denunciou Charles Chaplin, o dono dele.
Tinha receitas prontas para a organização política, a família, a antropologia, a arte,
a vida de todos.
Em geral, qualquer ditador sente-se como o pastor que conduz ovelhas ingê-
nuas e ignorantes a um porto seguro. Julga ter achado a receita de como os gover-
nados podem ser felizes e os conduzirá pelo caminho certo.
A realidade final mostra não haver, na essência, qualquer diferença entre go-
vernantes totalitários de esquerda ou direita. O regime econômico é apenas um
componente secundário a um estado poderoso, factótum, lastreado em uma filoso-
fia de apenas uma verdade: a sua.
No rol dos déspotas monopolistas do certo e errado, da verdade intrínseca des-
cortinada, além do tresloucado ditador alemão, apenas para falar dos mais recen-
tes, não podemos esquecer de Mussolini, Stálin, Franco, Salazar, Fidel Castro, Mao
Tse-Tung, Idi Amin Dada, Sadam Hussein, o pai e o filho Kim da Coréia do Norte,
entre centenas de outros, todos com passagem negativa pela História.
A característica marcante de todos eles, além da enorme admiração por si mes-
mos, foi o fato de terem convicções e opiniões fortes, absolutas, sem meio termo.
No essencial, jamais mudaram de ideia.
Ao contrário do que pensavam esses preceptores da sabedoria absoluta, opi-
niões sobre fenômenos sociais não devem ser peremptórias, pois quase todas tem
prós e contras. Qualquer pessoa de fato razoável há de ver a possibilidade de ver-
sões e opiniões diferentes, sabendo levá-las em consideração na formulação das
suas e no respeito às dos outros.
Não há verdades autônomas na interpretação de fatos sociais. Todas são ínti-
mas e questionáveis. Dogma é a eleição de uma verdade absoluta, acima de nossa
compreensão, cuja explicação não estaria ao alcance da razão humana. Só que,
se a história não conseguiu decifrar todos os dogmas, não deixa dúvidas quanto à
identificação de seus autores: os homens, ou melhor ainda, alguns homens.
Dogmas são armas do totalitarismo, a proibição de ter opinião, de pensar de
forma diferente daquela que alguém convencionou ser a certa. São um mal. Nada
justifica a proibição de pensar. Houvesse um criador, não tenho dúvidas de que seu
desejo não seria o de querer ver suas criaturas atreladas a verdades que lhe foram
impostas. Ao contrário, pai de amor gostaria de ter filhos interessados, curiosos,
desejosos de aprender e entender, de procurar suas próprias verdades.
Embora não exista a verdade autônoma, o fato é que os seres humanos têm
instrumental semelhante de acesso ao mundo externo. Nossas ferramentas de
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A ignorância justificava vários dogmas. Aceite, porque não há como saber além
disso. Atribuir a autoria de dogmas a Deus, era um caminho, portanto, completa-
mente natural. A ciência, após o evolucionismo, a relatividade, a física quântica,
a genética, têm nos dado ferramentas e informações importantes para conhecer
nossa essência e só ela é capaz de alargar os limites do conhecimento.
Até dois séculos atrás, antes de Darwin, da Revolução Francesa, da Indepen-
dência americana, a verdade sempre foi fruto de posições impostas pela tradição
que não permitia dissidências ou dissensões. Hereges, antimonarquistas e os primei-
ros antiescravagistas foram presos e mortos.
Em geral, principalmente quando era definida como dogma, a verdade era a
um só tempo imposta pela fé, não desmentida pelo parco grau de conhecimento vi-
gente e, quase sempre, conveniente para servir ao interesse dos poderosos. Quando
reunia esses requisitos, era consagrada, houvesse ou não discordâncias. A ideia do
rei escolhido por vontade divina era uma, de uma série enorme de verdades conve-
nientes aos poderosos.
Ocorreu uma miscigenação nos conceitos de estado, Igreja, monarquia. Na
Inglaterra, o mais liberal dos países europeus até a Revolução Francesa, graças a um
capricho pessoal de Henrique VIII, o rei passou a ser o chefe da Igreja. Nos países
católicos, o rei era sempre ungido pelo papa, em troca de obediência a princípios
religiosos nada democráticos, como a Inquisição.
Na China, Japão e outros impérios, o rei era o próprio deus vivo. Não pode-
ria haver contestações. Os conspiradores eram executados em praça pública como
exemplo dissuasório.
O grande mérito da Revolução Francesa foi exatamente o extermínio de dog-
mas. Ninguém era nobre porque nasceu nobre, plebeu porque nasceu plebeu, ou
rei porque veio ao mundo para sê-lo. Os conceitos liberdade, igualdade, fraterni-
dade — que subentendem respeito ao próximo — são um manifesto ao antidog-
matismo, a verdades impostas.
O século XIX foi não apenas a alforria dos escravos nas nações civilizadas. Na Eu-
ropa e nos Estados Unidos foi o fim de dogmas. Foi a consagração do direito de pen-
sar, da liberdade e da igualdade de origem como valores importantes, fundamentais.
Com a consagração da liberdade, o conhecimento, antepondo-se aos dogmas,
toma vulto e importância, pois são rompidos os grilhões que atavam o desenvolvi-
mento científico e cultural da humanidade.
Hoje, está praticamente consagrado que a ciência é o único método aceitável
para se obter conhecimento, em antítese à verdade absoluta, cuja existência é cada
vez mais questionada. O uso de nossos sentidos e da razão, da tentativa e erro é a
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Antes se limitava a procurar onde se abrigar. Agora, construía seu abrigo, que ao
longo do tempo foi se tornando mais sólido, maior, mais confortável.
Plantando, colhendo, criando animais, mais do que precisava, percebeu que
poderia trocar o excesso, marcar um ponto de encontro com vizinhos, onde faria o
escambo das mercadorias que lhe sobravam por outras que lhe faltavam, de con-
sumo desejável: o criador de cabras encontrava-se com o plantador de repolhos
para a troca do que ambos tinham a mais do que podiam consumir, com vantagens
para os dois.
Mais tarde, para esse ponto também acorreu o ferreiro que poderia trocar as
ferramentas rústicas que fabricava por alimentos, o criador de ovelhas para trocar
sua carne, leite e lã com pessoas que aprenderam a processá-la para fabricar agasa-
lho, os que vendiam lenha, peles, azeite, vasilhames para água e alimentos…
Surge o uso da moeda, decorrência da necessidade de simplificar as trocas com
a inteligente substituição de objetos de valor intrínseco por símbolos, para facilitar
a transferência e posse das mercadorias.
A linguagem, até então restrita e precária, teve de se sofisticar, pois a vida ia
se tornando complexa. Ocorrem as primeiras tentativas de codificação gráfica para
registrar negócios que poderiam ter consequências futuras.
Um enorme número de palavras é criado para designar não apenas objetos,
mas ideias que precisavam ser usadas para haver o entendimento entre os vários
agentes na solução de seus interesses e problemas. Questões, tanto mais complexas
mais exigiam o concurso de outras pessoas e demandavam clareza, para que todos
entendessem o que precisava ser comunicado. Isso foi vital para o desenvolvimento
da fala, e mais tarde da escrita, para registrar contratos, a vontade dos deuses, as
leis, as histórias e a História.
O círculo virtuoso se estabelece desde então e segue uma escala crescente,
com altos e baixos próprios de nossa imperfeição. Mas é a linguagem que permite
o desenvolvimento cerebral, viabilizando o raciocínio, primeiro simples, depois abs-
trato, cada vez mais complexo, preciso, memorizado, criativo.
As primeiras vilas certamente não tinham governo, mas logo foi verificada a
conveniência de sua criação, mesmo incipiente, sem qualquer fundamento teórico.
Vários problemas de interesse geral surgiam, como a validação dos símbolos de
troca, a disputa pela água, a melhor localização na praça, a remoção dos restos e,
à medida que a vila crescia, distanciando-se das margens dos rios, o acesso a eles,
as estradas e a administração dos conflitos por critérios mais sofisticados do que a
luta corporal.
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radouros estados, como os dos maias, astecas, incas, baseados na chefia forte,
autoritária, incontestável.
Grécia e Roma têm caminhos pouco diferentes. Na Grécia, onde não chegou a
haver um grande império centralizado, nenhuma cidade-estado teve imperadores ou
líderes extremamente fortes, até Alexandre, o Grande, na verdade um macedônio.
Atenas ensaia a primeira forma de governo democrático de que se tem notícia, mas
a experiência é efêmera. Ideias coletivistas de governo aparecem ali pela primeira vez,
mas com o poder restrito aos cidadãos mais proeminentes, a “aristocracia”, diferente
da meritocracia, como queria Platão: o poder conferido aos mais aptos e preparados.
Em Roma, o Senado é um precursor efetivo do governo colegiado, também
de acesso limitado à aristocracia, que com ele consubstanciara um pacto de divisão
nas decisões de seu interesse. O poder de fato fica concentrado nos generais, cujos
exércitos endossam sua força, se o seu próprio poder não for questionado.
A constante incerteza e as disputas pela hegemonia não efetivamente impos-
tas pelo Senado fazem o sistema republicano fenecer de vez, após vários episódios
agônicos, culminados com a morte de Júlio César.
Seu assassinato, pelos próprios senadores, desestabiliza de vez a instituição e rein-
troduz o sistema de absolutismo: imperadores deuses, infalíveis, incontestáveis, pleni-
potenciários aos quais se devia todo tipo de obediência e adoração. Um retrocesso às
origens primitivas da cidade e épocas que, por certo tempo, pareciam ter desaparecido.
O Senado persiste apenas como órgão decorativo e de simples consultoria.
Bem antes e em todos os impérios surgiu o problema sucessório, pois a vacân-
cia no trono criava problema novo, de instabilidade e disputas. O que fazer quando
o rei morria?
A pior situação, a menos desejável, era a de se estabelecer a luta pelo poder,
provocando instabilidades institucionais de grande duração e graves consequências.
Viu-se a conveniência de que o rei, o imperador, ainda em vida, designasse seu
sucessor.
Com frequência constante e progressiva, a escolha recaía em seus filhos, por
serem seus sucessores naturais.
A monarquia hereditária foi, assim, um regime naturalmente criado nos primór-
dios da civilização, gerando no inconsciente coletivo a ideia de um grande e necessá-
rio “pai da pátria”, o chefe natural, o defensor por direito e consanguinidade, do qual
todos dependiam e, por isso mesmo, ao qual amavam, reverenciavam e temiam.
Os monarcas viram, logo, a conveniência de dar à sua liderança a condição de
natural, divina, ungida pelo destino e pelos desígnios de entes de outra dimensão,
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que não podiam e não deviam ser contrariados. Por qual outra razão, afinal, teriam
os reis direito ao trono? Na Idade Média dá-se um regresso ao conceito de senhores
feudais investidos à condição de chefes militares simultaneamente proprietários de
grandes extensões territoriais.
A transmissão hereditária decorre da vontade de Deus que, por meio de seus
sacerdotes, coroa o sucessor, logo que morto o ex-titular do trono. A Igreja não
apenas legitima o herdeiro que sucede seu pai. Empresta-lhe obediência, resigna-
ção e respeito. O senhor feudal, por sua vez, dono do poder de arbítrio, cobra aos
camponeses submissão e o pagamento pelo uso de suas terras. Em troca do reco-
nhecimento a esses direitos outorgam aos religiosos o direito de monopolizarem o
ensinamento de sua doutrina, proibir heresias e dissidências.
Os impérios tem a tendência de se tornarem maiores. As guerras entre os rei-
nos medievais eram comuns, motivadas por causas várias, como a simples intenção
de dominar, a definição de fronteiras incertas, o direito de passagem, o acesso à
água de rios e a cobrança de taxas decorrentes. Além disso, havia também questões
de honra ou vingança de atitudes tomadas por antepassados. Cria-se, em contra-
partida, a solução de conflitos por meio de casamentos arrumados ou arranjos pa-
trimoniais com o constante alargamento das fronteiras dos reinos que se unem.
Outras vezes, por razões de estratégia de defesa contra agressões externas, deu-se
o surgimento e a consolidação de federações de feudos e, progressivamente, o surgi-
mento de um poder central, geralmente ocupado pelo mais poderoso dos senhores
feudais promovido a rei pelo poder das armas ou de alianças bem construídas.
Aos poucos, os feudos foram abrindo mão de sua autonomia, aliando-se a
outros pequenos estados ou submetendo-se a eles. O princípio de que a união faz
a força foi o responsável pela volta de grandes reinos e impérios. Como regra, o
estado mais poderoso assumia a função de sede dominadora do reino.
Após o feudalismo, caracterizado por múltiplos pequenos estados, um novo au-
toritarismo centralizado ocorreu durante a Idade Média, quando surgiu, como forma
de governo mais comum, a monarquia absolutista, o rei ungido por Deus. Os exércitos
centrais foram se tornando cada vez mais fortes, porque os governos foram perce-
bendo que a existência de forças armadas na esfera de ducados, condados e princi-
pados levavam a certa instabilidade, uma insegurança interna que poderia alimentar
tentações separatistas, ou pior, pretensões à conquista do trono central.
A aliança dos reinos europeus com o papa em geral assegurava o poder ao rei
que lhe fosse mais simpático, em troca de que o direito à coroa fosse justificado
aos súditos como um resultante de escolha divina, assegurado pela palavra de seu
representante máximo na Terra.
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Arquétipos sociais
P ara Thomaz Hobbes, pensador do século XVII, o homem é egoísta por natureza.
Para impedir que vivêssemos em permanente guerra, consequência desse ego-
ísmo, haveria a necessidade de uma autoridade onipotente, não eleita, incumbida
de impedir a transgressão de regras que deveriam ser aceitas ou impostas. Em Le-
viatã, sua obra máxima, sustenta que nada temos de generosidade ao nascer, fal-
tando-nos qualquer vocação para o autossacrifício, o espírito comunitário, o amor
ao próximo. “Só nos movem nossos próprios interesses”, sentenciou.
Em contraposição a Hobbes, um século depois, Rousseau dizia que os homens
nascem bons e a sociedade é que os corrompe. Em sua obra O Contrato Social de-
fende que, com liberdade, democracia, uma influência positiva do meio, a implanta-
ção da igualdade entre todos, a paz e o amor triunfariam; o homem seria feliz.
Modernamente, Eric Hobsbawm, historiador consagrado e marxista histórico,
renova e reforma os conceitos de Rousseau, ao proclamar que a burguesia, ao longo
do tempo, criou tradições e regras de convívio para determinar o comportamento
das pessoas a servir a seus interesses. Os costumes a serviço do poder para manter
“status quo” conveniente aos dominadores é o primado de seu ensinamento. A
origem dos males, sustenta, está nesse processo de dominação, que retirou da alma
humana sua pureza inicial, restaurável pela vitória da revolução marxista.
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executam suas tarefas em prol da coletividade à qual pertencem. Todos parecem sa-
ber exatamente sua função no corpo social e a executam sem hesitação, até com o sa-
crifício da própria vida, se necessário. Têm confiança absoluta em seus semelhantes.
Por que agem assim?
A ênfase na confiança como elemento de sucesso da espécie, parte da consta-
tação de que uma formiga, fora de seu contexto, em uma analogia simplória, age
como “barata tonta”. Parece estúpida, vai e volta para o mesmo lugar, não sabe
aonde ir e não tem ideia do que fazer. Mas recoloque-a em seu formigueiro e ela
voltará a agir como todas as outras, cumprindo, à risca, seu papel no grupo e as
tarefas que lhe competem.
O antes apregoado papel de grande líder a distribuir ordens, atribuído à rai-
nha, hoje sabemos, está limitado ao de poedeira de ovos. Sua majestade exerce
apenas esse importante, mas pouco consciente desempenho. Nenhuma liderança,
nenhuma ordem parte dela, pois suas súditas, também suas filhas, nascem sabendo
o que fazer, tem total interdependência e confiança em suas irmãs.
Comunicam-se apenas o necessário para transmitir notícias inéditas, que fo-
gem à sua rotina e mereçam informação. Se uma delas, incumbida de procurar nas
redondezas, encontra comida interessante, todas as que estão programadas para
isso, ao receberem a informação, partem para o local marcado pelo feromônio libe-
rado para indicar o caminho feito na volta, pela formiga que encontrou o petisco.
Por movimentos, umas comunicam às outras a descoberta e o local de sua
ocorrência. Nenhuma delas questiona a veracidade da informação. Confiam cega-
mente na informante. Confiam também que a comida trazida será partilhada.
Um sinal não questionado desencadeia em todas as operárias como um cha-
mamento ao dever de trazer o alimento encontrado para o interior do formigueiro,
onde o partilharão com a mãe parideira e suas irmãs nascituras, pacificamente.
Foi o fator genético que infundiu o comportamento, a disciplina e a confiança
de umas nas outras. E foi isso que tornou a espécie vencedora em todas as latitudes
não permanentemente gélidas do planeta.
Formigas, individualmente, por seu tamanho diminuto, sua incapacidade de
voar, podem pouco, sua defesa é limitada. Os danos, ao utilizar ferrões como ar-
mas, de pouca monta. Mas milhares, ou dezenas de milhares de ferroadas podem
provocar um enorme estrago. A instrução genética determina que, se necessário,
ela e todas as suas irmãs deem sua própria vida em defesa de sua rainha, de seu
formigueiro. Se agissem individualmente, sua possibilidade de sobrevivência seria
pequena. Talvez a espécie estivesse muito reduzida.
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Gosto de rememorar uma experiência que tive, em abono a essa tese. Lem-
bro-me de uma ida que fiz há mais de quarenta anos, antes, portanto, dos recursos
informatizados, a uma “cafeteria” situada no campus de uma Universidade locali-
zada em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. Presumo que já não
seja assim, dado o enorme avanço da informática.
Os sanduíches, refrigerantes, shakes e outros itens disponíveis ficavam expostos
em casulos em uma prateleira que tomava uma das paredes da pequena lanchonete.
Ninguém para servir. Bastava abrir a portinhola de vidro do casulo e de lá retirar o
item desejado. Após comer e beber o que quisesse, o “freguês” — assim se esperava
— deveria dirigir-se a uma caixa registradora, onde teclaria os números dos itens que
havia consumido. A máquina apresentava, em um visor, o valor de sua conta e abria,
automaticamente, uma gaveta onde o dinheiro do caixa ficava exposto em reparti-
ções, para que o pagamento fosse feito e retirado o troco, se houvesse.
Se o freguês quisesse ser desonesto, teria várias alternativas: 1) sair sem pagar;
2) pagar menos do que consumiu; 3) errar no troco a seu favor; e 4) não pagar e
ainda se apoderar de todo ou de parte do dinheiro que estava no caixa, saindo sem
ser vigiado, pois também não existiam as “web cams” comuns hoje em dia. Surpre-
endeu-me também o fato da lanchonete estar em uma Universidade com grande
número de alunos, sendo vários, como eu, de procedência estrangeira.
Soube, depois, que nenhuma diferença importante era apurada no movimento
diário, havia vários anos, o que me deixou extremamente feliz e otimista com a
espécie humana.
Em certos casos, e às vezes, é o próprio meio que vai determinar a conduta de
cada um. Nossa tendência é seguir os valores e costumes vigentes, comportando-nos
de acordo com as circunstâncias. No caso, os arquétipos positivos foram também
importantes, porque foram sancionados pelo dono do pequeno estabelecimento.
O meio deve sancionar os valores positivos. É inegável que quando a presunção
é de que todos são honestos, ou se portam como tal, agir em dissidência parece
criar no indivíduo a censura, o sentimento de mal-estar.
O meio, se saudável, age como se estivesse nos vigiando e recompensando
positivamente, quando nos portamos de acordo com as expectativas, ou negativa-
mente, quando frustramos nosso inconsciente social, ou coletivo.
Por outro lado, o meio, interagindo com o inconsciente, leva-nos à conduta de
manadas, tais como formigas e outras tantas espécies animais. A conjunção pode
não ser positiva. Ao contrário, pode resultar perniciosa.
Investidores agem racionalmente, mas têm a tendência de vender quando
veem muitos vendendo, e comprar quando muitos estão comprando, o que explica
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Essa opção de escolha do destino do povo, feita pelo povo, em eleições demo-
cráticas, como disse Churchill, é a pior alternativa, com a exceção de qualquer outra.
No entanto, não há de se desprezar o conhecimento especializado. Ele deve
estar a serviço dos que devem decidir. Técnicos devem assessorar os mandatários do
povo a bem executar suas decisões. Devem, também, aconselhar os incumbidos de
optar entre as possibilidades.
Hoje, isso é feito apenas no executivo, sem o critério efetivo de mensuração da
capacidade, pois a maior parte dos postos relevantes de assessoria é de nomeação,
recaindo sobre os mais convenientes, não os mais competentes. Um sério erro.
No sistema proposto, empresas públicas especializadas — cujos membros chega-
riam ao topo por concurso e merecimento — teriam duas funções, ambas de grande
importância. A primeira seria executar, com o melhor custo-benefício, as decisões
emanadas dos comitês gestores, as holdings populares ou órgãos de representação.
A segunda função da empresa ou agência pública seria servir como órgão
de consultoria especializada, criando e recomendando alternativas na solução dos
problemas e na sua prevenção, com a incumbência de levantar custos para novos
projetos, estudar implicações, municiar o colegiado deliberativo de informações so-
bre as implicações negativas da proposta, realizar pesquisas, elaborar simulações e
estudos sobre a viabilidade, a superioridade de uma opção sobre as outras.
Seria também estimulado o uso de todas as informações levantadas por essas
empresas/agências por partidos políticos, já por ocasião da formulação e apresen-
tação de seus programas e opções submetidas aos eleitores. Deveria haver um dis-
positivo legal garantindo que essas informações, além de publicadas, fossem dis-
ponibilizadas a qualquer partido, órgão de divulgação, pela internet e informadas
quaisquer outras maneiras de acessá-las, posto serem de propriedade da coletivi-
dade, exatamente para utilizá-las.
Apenas a encomenda de novas pesquisas, para não se banalizarem, depende-
ria de regulamentação adequada.
É possível aproveitar todos os aspectos positivos da meritocracia. Ela não é
opção, mas, seguramente, pode ser uma complementação inteligente a um bom
sistema democrático.
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O egghead
E m um curso que fazia na Universidade do Texas, certo dia adentrou nossa sala um
professor, sem paletó, usando camisa social de mangas curtas e gravata borboleta,
que logo defini, com certa ironia e pelo formato de sua cabeça, como o “egghead”,
o protótipo do intelectual “nerd”, intelectualmente bom, socialmente lerdo.
Havia ainda, naqueles idos, um quadro-negro, presumo hoje equipamento
obsoleto, tomou o palestrante de um giz e fez um desenho aparentemente sem
sentido. Começou com um ponto, forte e bem visível que chamou de “target” — o
alvo. Alguns centímetros abaixo traçou, cuidadosamente, um círculo achatado nos
polos e ligeiramente dilatado no Equador.
Propus ao meu vizinho ao lado, em tom de galhofa, que ele ia desenhar o pla-
neta Terra e iria propor uma viagem à Lua, mas logo, desfazendo minha impressão
inicial, escreveu dentro do círculo “information”.
Em seguida, traçou uma linha reta que ia do centro do círculo até o objetivo e
a essa linha deu o nome de “way” — caminho.
Virou-se em nossa direção e se pôs a falar:
— Toda vez que temos um problema, seja ele jurídico, econômico ou de física
quântica, devemos nos lembrar deste gráfico.
— A primeira coisa é a obtenção de todas as informações possíveis, até conhe-
cer todos os meandros do problema e, sendo ele um conflito de interesses, como
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Não sabemos bem onde colocar o objetivo, não estamos muito interessados
nas informações e jamais discutimos se a nossa estratégia ou linha para atingir os
objetivos está correta, é a mais conveniente, a mais curta. Para estabelecer qual
governo queremos, é importante o cumprimento das três fases: as informações, o
objetivo e o caminho para chegar a esse objetivo.
Fazer indagações históricas, conceituais, práticas e tentar obter respostas são
os passos iniciais dados nos capítulos anteriores.
Quanto ao objetivo, para quem rejeita os sistemas totalitários, é consensual
que governo deve ser entendido como um instrumento de prestação de serviços
públicos a seus cidadãos, meio de suprir as necessidades coletivas, não passíveis de
serem realizadas individualmente ou por pequenos grupos.
Não há, sem informações e objetivo, como se estabelecer a estratégia. Cumpre
esmiuçar as informações disponíveis, ter em mente o fim colimado e fixar o “modus
operandi”, se necessário desconstruindo o que está errado.
Se o objetivo é ter um governo prestativo, democrático, republicano, atento
aos desejos de seus beneficiários e efetivo em sua execução, não há por que deixar
de pensá-lo, sem dogmas ou preconceitos, da melhor forma possível.
Na parte das informações, cabe ressaltar um diagnóstico muito importante. O
universo do conhecimento humano hoje é imenso, inacessível em sua totalidade a
qualquer pessoa, sem exceção. Mesmo especialistas tornam-se cada vez mais espe-
cializados em certos segmentos na sua atividade.
Por outro lado, quem decide deve estar muito bem informado, conhecer sobre
o que vai decidir.
O conhecimento superficial para tomar decisões é insuficiente e pode levar a
graves equívocos. É preciso experiência, vivência, conhecimento específico. A divi-
são por áreas de atuação é altamente recomendada.
No sistema atual, a lei, ou seja, a mais importante decisão da vida comunitária
na democracia, é feita por pessoas não especializadas, que em geral desconhecem
o assunto sobre o qual terão de decidir.
Estará certo esse critério?
Não há pessoa de bom-senso que se ache capaz de conhecer tudo, mas, no
que tange à elaboração das leis, àquelas que irão definir aspectos muito importan-
tes de nossas vidas delegamos poderes para decidir sobre todos os assuntos. É uma
incongruência.
Hoje, nosso voto tem um recado implícito a nosso representante: decida sobre
todos os problemas, não importa se os conheça ou não.
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E outras tantas perguntas devem ser feitas e respondidas com uma clareza hoje
inexistente.
Organizar as questões e suas alternativas, democraticamente, conhecê-las,
identificá-las e adequá-las às possibilidades reais para a sua execução, passa por
partidos políticos e, em minha sugestão, pela segmentação de suas participações
nas áreas de atuação do governo para as quais concorreriam, como Finanças, Eco-
nomia, Segurança, Saúde, Educação, Infraestrutura, Meio Ambiente, Bem-Estar e
Seguro Social…
Em outras palavras, a mudança profunda que se estabeleceria nesse diálogo
governo-sociedade seria feita a pelos partidos que, não mais teriam, em seus pro-
gramas, propostas para todas as áreas, como ocorre, mas apenas para aquelas em
que se especializassem. Só poderiam concorrer em um segmento de atividade go-
vernamental.
O partido que se inscrevesse para participar da eleição para o comitê gestor de
educação só poderia participar nas eleições que seriam realizadas para preencher os
cargos desse comitê, vedado postular participação em qualquer outro comitê. Para
melhor aferir a vontade popular e responder às perguntas de real interesse da so-
ciedade democrática, de forma apropriada, seus programas seriam restritos a cada
uma das áreas de atuação do governo e realizadas eleições por setores.
As vagas, em cada comitê, seriam preenchidas pelas agremiações, proporcio-
nalmente à votação conseguida, pelo sistema de listas. Se o partido fizesse jus a oito
vagas, apenas os oito primeiros candidatos de sua lista seriam considerados eleitos,
ficando os demais como suplentes na ordem de sua participação na chapa.
As eleições deveriam ser realizadas em diferentes ocasiões, para cada comitê
gestor setorial, iniciando-se pela escolha dos membros do comitê gestor de finan-
ças, incumbido de promover a elaboração do orçamento geral, a obtenção e a
divisão de recursos e o acompanhamento de sua execução.
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O ideal seria que os demais comitês fossem eleitos em ano diferente da eleição
do financeiro, após ter havido a destinação dos recursos e a definição das participa-
ções porcentuais, o que ensejaria a discussão das opções existentes, já dentro dos
limites orçamentários de cada um, conhecidos antecipadamente pelos partidos, ao
elaborar seus programas.
Evidentemente, no comitê financeiro, as alternativas teriam grande repercus-
são, pois nele se decidiria o valor a ser arrecadado e a destinação de verbas para
cada segmento de serviços, pela eleição de prioridades no campo administrativo
com implicações político-filosóficas.
Outra questão decorrente seria como organizar o sistema tributário e quais as
alíquotas necessárias para a obtenção do valor a ser arrecadado, como também o
acompanhamento da execução financeira, pelos comitês.
Além dos partidos que concorressem ao comitê financeiro, outras agremiações
partidárias concorreriam aos comitês de economia, educação, saúde, segurança,
infraestrutura e meio ambiente, bem-estar e seguro social e outros, se julgado con-
veniente aumentar esse rol.
Discorrerei, mais adiante, sobre o Conselho de Estado e a área de relações ex-
teriores, que em minha proposta seria diretamente vinculada a ele.
A partir das verbas que lhes fossem destinadas pelo comitê gestor de finanças,
os partidos políticos concorrentes aos demais comitês fariam suas propostas de
gestão naqueles segmentos a serem levados à consideração dos eleitores, sempre
com o voto facultativo.
Na escolha dos programas, todas as informações seriam de domínio público,
inclusive os valores inalteráveis, os já comprometidos e simulações sobre os custos de
propostas que dependessem de investimentos financeiros e a forma de arrecadá-los.
Uma agência pública, submetida ao comitê gestor de finanças, assessoraria
os comitês gestores e também os partidos políticos com informações e pesquisas,
destinadas a elaborar suas propostas, como o conhecimento das despesas fixas, as
contratadas e em execução, além do eventual custo aproximado para a realização
de investimentos opcionais, constantes de seus programas.
Na elaboração desses programas, os partidos concorrentes ao comitê gestor
de finanças deveriam especificar a parte de despesas fixas, especialmente os custos
salariais, alternativas para a sua redução ou aumento, além do que seria destinado a
cada área específica, a título de verbas para melhorias em cada uma das áreas. Essa
definição seria necessária para que os partidos concorrentes levassem suas disponi-
bilidades efetivas em consideração.
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votar apenas no partido tornaria a eleição fácil e a apuração rápida, simples, feita
em poucas horas. Uma agradável rotina democrática de consulta e julgamento dos
governantes.
Não vejo necessidade da existência da Justiça Eleitoral. No caso brasileiro, um
tribunal existente para levar a cabo eleições de dois em dois anos, ocioso quase
integralmente no restante do tempo. Uma fundação como o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE), além de recenseamentos periódicos do tamanho da
população, poderia perfeitamente somar às suas incumbências a organização das
eleições, mediante sua remuneração adequada. Seria uma grande economia, uma
enorme racionalização do trabalho.
Pelo critério de opção menos ruim, defendo a cláusula de barreira, ou seja,
os partidos que obtivessem baixa votação, digamos menos de dez por cento, não
teriam representação e ficariam impossibilitados de concorrer às próximas eleições.
Mas poderiam ser refundados.
A multiplicidade exagerada de partidos participando do governo levaria a um
mal maior: a dificuldade de governar. A democracia deve conciliar a melhor repre-
sentação possível, com a eficiência no cumprimento da vontade da maioria. Prejudi-
car a adoção de medidas preconizadas pela corrente majoritária seria a pior opção.
O caráter personalista da disputa seria substancialmente diminuído, mas não
totalmente eliminado, pois os eleitos seriam os primeiros nomeados de suas chapas,
até o limite de participação do partido. É evidente que a qualificação dos represen-
tantes também seria levada em conta. No sistema atual, não se julga caráter, nem
programa.
Defendo intransigentemente o voto facultativo, em que o eleitor tenha o di-
reito, jamais a obrigação, de se manifestar. Isso daria àqueles que não se sentis-
sem suficientemente esclarecidos ou interessados a condição tranquila de abster-se.
Neste caso seria acertadamente considerado que quem optasse por não votar esta-
ria delegando aos que o fizessem o direito de representar sua vontade. Nada mais
democrático. Uma procuração consciente.
Todos os eleitores interessados teriam o direito de filiar-se a apenas um par-
tido no segmento que escolhesse e participar da formulação de seu programa com
propostas, sugestões, ideias, embora, evidentemente, como eleitor, podesse votar
em partidos concorrentes a outros comitês. O que não convém é que um eleitor se
inscreva em mais de um partido, por haver o risco de contaminação de interesses.
A organização dos partidos se daria de forma absolutamente democrática, aberta
à participação de quem quisesse. A estruturação seria em células de abrangência
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•• O primeiro é constituído pelos que não a aceitam por convicção. Veem difi-
culdades contornáveis como problemas insolúveis.
•• O segundo é formado por aqueles que acham que o povo não está pre-
parado para se governar, opinar diretamente sobre os problemas que lhe
dizem respeito, como seria o voto em programas, por áreas. São fascistas
enrustidos; não passam de pseudodemocratas e sua identificação é difícil,
pois se travestem de defensores da liberdade. Só não esclarecem que, para
eles, liberdade não inclui autodeterminação. Julgam haver um enorme fosso
entre elite e plebe, esta incapaz de tomar decisões.
•• O terceiro é menos sutil e sorrateiro. São os adeptos assumidos do pessi-
mismo de Hobbes, cuja premissa é a de que não passamos de um bando
de egoístas, incapazes, interesseiros e mal-intencionados. São os fascistas
assumidos que acreditam em predestinados, nos salvadores da pátria, nos
conhecedores da verdade, desde que coincidente com a sua.
•• O quarto, e último grupo, é o dos mal-intencionados. Aqueles que têm
consciência de que o voto em listas, ou chapas, é superior, mas não lhes
interessa. Por isso, farão todo o possível e procurarão todas as justificativas
e desculpas para evitar sua implantação.
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Os comitês gestores
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Discorrerei mais adiante sobre essa questão, mas desde logo adianto que, pelo
sistema, será o povo que vai cobrar total isenção. A imparcialidade seria respeitada,
junto com conceitos como responsabilidade, atenção e presteza.
Diferentemente do imaginado, o leitor verá que isso não apenas seria possível,
mas recomendável, no sentido de melhorar, muito, a qualidade daquilo que hoje
se costuma chamar de judiciário, sem qualquer prejuízo aos direitos individuais dos
cidadãos.
Comitê gestor seria, portanto, um colegiado, eleito pelo povo, com o escopo
de deliberar e administrar assuntos pertinentes a determinada área de prestação de
serviços governamentais.
Os ministérios seriam extintos e substituídos por esses comitês gestores, a quem
as empresas públicas, incumbidas de executar suas decisões, ficariam submetidas.
Sob outro ponto de vista, os comitês seriam semelhantes às holdings, empresas
constituídas com o objetivo de participar de outras empresas. Seus acionistas seriam
todos os eleitores, toda a sociedade, que escolheriam seus representantes, ou seja,
os integrantes desses comitês ou holdings, para deliberar, administrar e ter, sob seu
poder hierárquico, os órgãos de execução: as agências ou empresas de serviços pú-
blicos. Nada melhor para fazer entender a ideia do que esmiuçá-la em suas possíveis
divisões e atribuições:
O comitê gestor de finanças, colegiado incumbido de normatizar sua área de
atuação e as agências a ele submetidas, teria, como foi dito, a função de cuidar
basicamente de prover os recursos financeiros para o governo desempenhar suas
tarefas. Seria, na verdade, uma função meio, instrumento: prover recursos.
Ficariam sob sua alçada hierárquica as seguintes agências: A agência de or-
çamento e gestão, incumbida de elaborar, acompanhar e fiscalizar a execução do
orçamento; a agência da Receita Federal, com a incumbência de arrecadar os im-
postos; a agência de administração do patrimônio federal; a agência de advocacia
federal, incumbida de advogar na defesa dos interesses do governo; a agência de
direito administrativo, com o encargo de julgar todas as questões relativas à rela-
ção entre governo e seus funcionários e pessoas a quem possa dever por razões
não especificamente tributárias; a agência de direito financeiro, a quem caberia
solucionar todas as questões entre governo e contribuintes; a agência de controle
dos gastos públicos, substituindo o Tribunal de Contas e CGU, com a tarefa de
tomar e fiscalizar a contabilidade de todos os órgãos públicos governamentais
e; a agência de investigação e combate à corrupção, esta objeto também de um
capítulo exclusivo.
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Seu grau de autonomia, como já disse, não poderia ir além de sua responsabi-
lidade inerente, qual seja, a de arrecadar recursos para o perfeito funcionamento do
governo, definindo quantias indispensáveis a seu funcionamento e verbas opcionais
para serem usadas em investimentos e melhorias na qualidade dos serviços, a cargo
de outros comitês.
O comitê gestor de economia teria como propósito manter a estabilidade da
moeda; promover o desenvolvimento econômico; o progresso das empresas e ci-
dadãos; o abastecimento; o bom funcionamento de todos os setores da atividade
econômica; executar a justiça econômica entre cidadãos entre si, entre empresas
e cidadãos e entre empresas entre si, de cujas decisões decorressem condenações
econômicas. Suas agências seriam: o Banco Central; a agência de indústria, co-
mércio e serviços; a agência de agricultura e abastecimento; a agência de assuntos
fundiários; o Banco do Brasil; o BNDES, a agência do trabalho e emprego; a agência
de exportação e comércio exterior; a agência de ciências, pesquisas e tecnologia; a
agência de turismo, a agência de direito civil; a agência de direito empresarial e; a
agência de direito do trabalho. Discorrerei sobre justiça em capítulo exclusivo, mais
adiante, justificando o porque dessa nova abordagem.
No regime capitalista, o governo, como regra, não deve participar de empre-
endimentos econômicos, salvo exceções justificáveis. Tem, no entanto, um grande
número de tarefas de suporte.
A aparente junção, em um só comitê, de tarefas aparentemente tão díspares
como o Banco Central, a agência de turismo e as agências de direito civil, empresa-
rial e trabalhista pode parecer não fazer muito sentido. Mas faz.
Todas essas atividades governamentais têm como característica fundamental
o suporte, o apoio que o governo deve prestar aos cidadãos, como sujeitos da
atividade econômica, e também às empresas, cuja finalidade básica é essa. Deve,
por isso, promover a regulação das atividades; a indução para o uso de todos os
meios possíveis para promover o desenvolvimento econômico; o pleno emprego; o
fortalecimento da indústria, do comércio, da agricultura, e também o julgamento
de conflitos de pessoas com pessoas, de pessoas com empresas ou destas entre si,
cuja origem esteja na atividade econômica.
O comitê gestor de infraestrutura seria incumbido de preservar o meio am-
biente de forma a mantê-lo saudável; administrar, regulamentar, prover, direta ou
indiretamente, melhorar e aumentar a oferta e a concorrência de produtos e servi-
ços, nos segmentos de comunicações, energia, transportes, saneamento básico, ha-
bitação. Seus órgãos seriam: a agência de preservação do meio ambiente, a agência
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O conselho de Estado
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“Esse artigo (que prevê a alteração do estatuto) é o mais importante de todos os que
escrevemos. Só a fricção entre o que imaginamos e a realidade vai dizer se os outros vão
funcionar.”
Certo de ter tido um rasgo de lucidez, fiquei feliz com o meu comentário.
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O chefe de Estado
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que seu mandato não fosse exaurido quando ocorresse a eleição de um novo con-
selho, o que poderia importar na vacância do cargo.
Por outro lado, seria de sua alçada exclusiva a escolha, dentre os demais con-
selheiros, dos outros cargos da diretoria do conselho, para que houvesse, sempre,
recomendável harmonia entre seus membros.
Haveria regras específicas para a escolha do presidente, mas imagino um pro-
cesso de eleição instalado apenas se e quando um quórum, como um terço do total
de membros do Conselho de Estado, se manifestasse expressamente a favor da
substituição do mandatário de então, o que provocaria uma sessão específica para
deliberar sobre sua substituição, ou não.
Caso os solicitantes conseguissem maioria absoluta — o que implicaria na ime-
diata substituição do presidente —, seria realizada, em continuidade, nova sessão
específica, agora para eleger seu sucessor.
A eleição poderia demandar alguns escrutínios para a obtenção de maioria ab-
soluta, com a eliminação, em cada um deles, do candidato, ou candidatos, menos
votados. Não obtida a maioria absoluta até o quarto escrutínio, no quinto apenas
os dois candidatos mais votados no último turno concorreriam, considerado eleito
o que obtivesse o maior número de votos.
Se ocorresse a morte, renúncia ou impedimento do presidente do Conselho de
Estado, aquele por ele próprio nomeado vice-presidente seria logo empossado nas
funções, até sua possível substituição por um novo presidente, eleito pelo mesmo
processo. Esta solução me parece conveniente, também, para todos os comitês
gestores, por evitar qualquer espécie de conflito desnecessário.
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Por lei, nenhuma região administrativa deveria ter menos de quinhentos mil
habitantes, sendo talvez um milhão o número ótimo, a ser buscado sempre que
possível. A exceção poderia ocorrer em locais pouco povoados, como no interior da
Amazônia, onde as regiões administrativas poderiam ter população inferior a qui-
nhentas mil pessoas, porque também não seria conveniente que suas áreas fossem
excedentes a 100 mil quilômetros quadrados (mais ou menos a área do estado do
Rio de Janeiro). Portanto, esses dois parâmetros deveriam ser observados: popula-
ção mínima de 500 mil habitantes, salvo se, por esse critério, a área da região admi-
nistrativa viesse a exceder 100 mil quilômetros quadrados, limite máximo de área.
Com essas duas limitações estruturais, mais o critério de divisão da receita unificada
pelo número de habitantes, teríamos um sistema bem equacionado para a existência de
agências, ou empresas governamentais em condições de funcionar, prestando bons ser-
viços à população, o que, mantido o critério atual, está muito longe de ser exequível.
Nas regiões administrativas, cabendo melhor estudo, deveriam haver o comitê
de finanças, o de economia, o de educação, o de saúde, o de infraestrutura e do
bem-estar social. A eles ficariam submetidas as agências ou empresas necessárias
para dar conta dos serviços que devem ser decididos e executados mais próximos
dos contribuintes e ganhar mais eficiência. A exemplo do que ocorreria em órgãos
federais, os funcionários das agências/empresas regionais só seriam admitidos me-
diante concurso e promovidos por merecimento, com a escolha dos diretores a
cargo do comitê, restrito aos funcionários de maior escalão.
Não me parece difícil o critério de uma redivisão de atribuições, muito menos a
divisão das tarefas que cabem aos estados e municípios. Algumas regras de reestrutu-
ração resolveriam os problemas: estradas vicinais e internas das regiões administrativas
seriam de sua competência, outras poderiam ser partilhadas, ao passo que as grandes
rodovias ficariam no âmbito da administração federal. A parte de comunicação, como
já é feito, seria apenas federal. A geração de energia e a transmissão até centros de
distribuição seriam da alçada federal, ao passo que a distribuição, no varejo, caberia
às regiões, supervisionando as concessionárias terceirizadas e assim por diante.
Imagino um caso para exemplificar: no sistema de águas e esgotos, a divisão
se faria com a União como detentora do monopólio sobre rios e lagos, além do su-
primento e tratamento, ao passo que as regiões ficariam incumbidas de manter as
redes e a distribuição no varejo. Soluções seriam buscadas, caso a caso.
Um estudo a cargo de uma comissão incumbida do assunto preveria situações,
tanto as mais simples como as mais complexas e delicadas. No sistema de empresas
especializadas, não é preciso mais do que dois níveis de representação popular.
Concluo voltando ao início. Há de haver governo tanto que necessário. Não há
de haver governo mais do que o suficiente.
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candidato que viu no “santinho”, no que achou simpático pela televisão ou, mais
provavelmente, naquele que lhe foi indicado por um amigo ou parente que pode
receber compensações de caráter pessoal se seu candidato for eleito.
Há um cemitério de alternativas. Nenhuma discussão sobre programas, proje-
tos viáveis que saiam de intrínseca falta de importância. Novamente, a sociedade
não será convocada a trazer sugestões, como se nenhuma colaboração merecesse
ser considerada. Uma democracia tosca, na qual seu dono, o povo, não tem voz
nem palavra.
O modelo não gera condições de diálogo e estímulo a propostas que poderiam
trazer bons resultados, como unificar o combate à corrupção, para falar de alguma
coisa que poderia ser consensual. Com a adoção do sistema de segmentação por
atividades, esses canais de comunicação entre sociedade e governo se abririam e
poderiam se tornar permanentes.
Por interesse dos partidos, especialistas em educação, saúde, finanças, tribu-
tos, segurança passariam a levantar temas discutidos em simpósios, conferências,
nas quais o eleitor interessado poderia comparecer e participar.
Propostas aprovadas poderiam ser incorporadas pelos partidos para discuti-las,
primeiro em suas células, depois em suas convenções. Como o debate se focaria
em ideias, as agremiações setoriais tentariam apropriar-se das mais viáveis e inteli-
gentes. Seria importante para sua vitória eleitoral e, sem dúvida, uma boa jogada
mercadológica, com efeitos sociais extremamente positivos. A iniciativa do partido
em realizar congressos, palestras, cursos, fóruns de debates seria uma forma de
divulgar seu trabalho e dedicação e, assim, cooptar novos membros.
Os partidos teriam interesse em adotar sugestões que se mostrassem interes-
santes, convenientes ou vantajosas e incluí-las em seus programas.
Passariam a ser instrumentos permanentes de debates e discussões sobre os
problemas nacionais, em suas áreas de atuação, dando espaço e vez a idealistas
hoje relegados e cada vez menos interessados em apresentar sugestões. Hoje, até
em mesas de bar — nas quais comumente se realizavam discussões sobre os pro-
blemas nacionais —, o debate político cinge-se a um rápido e enfadonho desabafar
de decepção, indignação.
Como estão, partidos são simples instrumentos de iniciação e continuidade
no jogo do poder, pelo poder, feudos de interesseiros e interessados apenas em se
perpetuar nele.
Lamentavelmente, a imprensa não poucas vezes faz coro a esse enfadonho
embate de egos. Vários comentaristas, esquecendo-se de sua função crítica, além
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Essa posição, tão esdrúxula quanto real, vai estimular a corrupção, porque leva
a uma situação em que os honestos e bem intencionados ficam em desvantagem
competitiva ou passam também a sonegar por necessidade de sobrevivência. Co-
nheço casos de empresários — exceção rara — que foram à falência por se recusa-
rem a sonegar.
Tal como a sociedade se acha organizada, a desonestidade não é apenas ques-
tão de caráter, pois muitas vezes ela é tão necessária que se torna imprescindível.
É preciso que a legislação se preocupe em tornar a honestidade exequível, pos-
sível, razoável, por que é ingênua quando parte da premissa de que somos santos e
burra quando torna a transgressão questão de sobrevivência.
Ainda que seja impossível acabar com a corrupção, o que devemos fazer é
dificultá-la, partindo da premissa de que, se as condições forem favoráveis, tanto
pela facilidade de execução quanto pela dificuldade da descoberta do autor, qual-
quer um pode tornar-se um pequeno delinquente, porta de entrada para trilhar um
caminho progressivamente pernicioso.
Devemos, sim, partir da premissa de que todos são honestos, mas a prevenção
e a punição rigorosas são necessárias.
Embora discutível, o ditado “a ocasião faz o ladrão” pode se tornar verda-
deiro. Deixar uma fazenda que dá frente para a estrada sem cerca, sem portão, sem
ninguém pra tomar conta, é convidar o alheio a entrar. Depois de algum tempo, é
provável que tudo o que nela existe não esteja mais lá.
No caso do dinheiro público, do qual os proprietários são milhões, as pessoas
o veem como “sem-dono”. Até senhores de caráter podem sentir-se estimulados
a delinquir ao passarem pela estrada, na frente da fazenda, com bens valiosos em
seu interior, sem cerca ou portão, ninguém para vigiar, nenhum risco de ser pego, a
certeza de que, se não for você, será outro.
De forma planejada e inteligente, há de se fazer cercas, colocar portões, con-
tratar alguns guardas e cachorros e colocar um aviso de “não entre”, de tal sorte
que ninguém seja tentado a invadir a fazenda. Mas, acima de tudo, o ladrão deve
saber que, se for pego, e corre o risco disso, será rigorosamente punido.
A desonestidade é de tal forma nefasta que enfrentá-la corajosamente deve
ser considerada a prioridade das prioridades. Por não haver vítima individualmente
muito prejudicada, é preciso que a corrupção seja tratada por um órgão específico,
exclusivamente destinado a identificar seus autores e puni-los de forma exemplar.
Para combatê-la, é necessário competência, criatividade, organização, co-
mando unificado forte, incorruptível, bem-estruturado; um eficiente serviço de in-
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teligência, que se ocupe apenas desse tipo de crime, em período integral, tal a sua
frequência e a aparente facilidade, com que se deparam os que cuidam, de alguma
forma, de valores ou bens públicos.
A agência de investigação e combate à corrupção (AICC), ou outro nome qual-
quer, ficaria subordinada ao comitê gestor de finanças e se dedicaria exclusivamente
a essa finalidade, amparada por uma legislação moderna e adequada, que autori-
zasse procedimentos sofisticados, em termos de informações contábeis, tecnologia
informatizada e capacitação investigativa.
Unificar todas as investigações em um só órgão me parece altamente positivo e
eficiente. Não é que se deva proibir a polícia comum de investigar. Mas seria conve-
niente que, tão logo percebida a possibilidade de estar ocorrendo alguma corrupção,
o fato fosse comunicado a essa agência específica, sob pena de omissão criminosa.
Voltando um pouco à estrutura do comitê gestor de finanças, é conveniente
lembrar que, pela proposta, o trabalho de cobrança administrativa ficaria a cargo da
agência da Receita Federal enquanto o Tribunal de Contas, fundido à controladoria-
geral, manteria a parte contábil, a fiscalização dos gastos e a tomada de contas de
todos os órgãos governamentais, de todas as instâncias.
O indício de crime levantado, tanto pela Receita como pela controladoria seria
de notificação obrigatória à AICC, o que não impediria sua própria iniciativa para
a investigação de suspeitas, até desses mesmos órgãos. Todavia os procedimentos
de investigação de possíveis crimes praticados contra o dinheiro público deveriam
ficar concentrados na agência de investigações, sob uma só coordenação, um co-
mando único, dividida em áreas especializadas de atuação, com bom orçamento,
equipamentos modernos, pessoal muito bem treinado. Como medida de economia
inteligente, o órgão deveria ter à sua disposição a tecnologia mais moderna, escolas
de alto-nível para formar pessoal, uma área de pesquisas, outra de logística e inteli-
gência para montar operações preparadas para impedir ou punir de forma exemplar
os ladrões do erário. Seu funcionamento, com esse objetivo, merece dedicação ex-
clusiva e integral de todos os seus componentes.
Os funcionários, totalmente hierarquizados, necessariamente bem-remunera-
dos para serem admitidos, além do concurso público, teriam de passar por rigorosos
testes de avaliação de caráter e cursos de formação. Se aprovados, fariam cursos
periódicos, eventualmente no exterior, para se atualizarem com as melhores técni-
cas e se reciclarem.
Pelo menos uma divisão da agência deveria se constituir de funcionários não
identificados, que trabalhariam secretamente na preparação e execução de opera-
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N unca entendi porque, em meu curso de bacharelado em leis, tive direito ro-
mano, mas não tive história do direito. Esta matéria, tão importante, simplesmente
não existe. Parece que tudo começou em Roma, mas não foi assim. Para entender
o direito e a justiça é preciso ir a raízes mais remotas.
Gosto de fazer retrospectivas históricas para melhor compreender e diagnos-
ticar o presente, porque pretendo fazer sugestões, e elas dependem de uma visão
histórica. No passado estão as fontes dos problemas. Conhecê-los é a única forma
para fazer críticas consistentes e imaginar soluções baseadas na experiência, nos
erros e acertos.
Primeiro uma conceituação: justiça (no sentido de sistema judiciário) tem por
escopo a solução de litígios, conflitos. Se não houvesse conflitos, não haveria a ne-
cessidade de justiça. São vários os conceitos de direito, começando por: um lado do
corpo. Para o que interessa, Direito é a ciência que estuda os fatos e atos jurídicos,
os valores e as leis, ou, ainda, como é mais usado, um conjunto de leis vigentes em
um estado soberano.
Antes de se organizar em vilas e cidades, as desavenças entre humanos eram
resolvidas pela força, com a provável vitória do mais forte. Logo a força foi subs-
tituída pela astúcia — ciladas armadas para eliminar os inimigos mais favorecidos
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pelo físico, mas menos espertos. Depois, a barbárie absoluta evoluiu para algo mais
organizado, com algumas regras — lutas —, com o uso de pedras, porretes, instru-
mentos cortantes, arco e flecha. A sofisticação da violência ocorreu com os duelos
(espada, pistola), como assistimos nos filmes de época.
Disputas por terras, bens materiais, honra, tinham essa forma de desfecho: a
morte, ou pelo menos o alijamento físico de um dos desafetos; seu reconhecimento
da derrota.
Às vezes, os conflitos se davam entre uma pessoa e o grupo. O indivíduo prati-
cava atos proibidos pela tribo, o povo, a nação. A sociedade era a parte ofendida.
Aos considerados culpados por roubo, assassinato, conspiração, sedição e
outros delitos graves, após julgamento sumário com pouco ou nenhum direito a
defesa, era imposta a pena de morte, com sofrimentos como a fogueira, o afo-
gamento, o sufocamento, a crucificação, a forca, a empalação, o corte dos mem-
bros e outras modalidades cruéis e exóticas. O aspecto dominante na punição dos
“culpados” era a dissuasão aos que atentavam contra a ordem, a necessidade de
submissão incondicional ao poder dos governantes.
No decorrer da História, o comum era o forte não levar em conta o direito
do fraco. A espada era mais decisiva do que a balança na solução de entreveros.
O poder dos governantes era quase irrestrito. O direito à defesa poucas vezes era
reconhecido.
É verdade que, mesmo antes de Cristo, começamos a imaginar a justiça
como a definição da responsabilidade ou culpa pela investigação, a apresen-
tação de provas, um juiz imparcial e a paulatina aplicação da lei escrita, como
chegou a ser feito em algumas cidades-estado, como Atenas, depois em Roma.
Nesta se dá a mais importante sistematização da lei. A previsão de atos e fatos
jurídicos antes mesmo de sua ocorrência. O estabelecimento de regras definindo
o que poderia e o que não poderia ser feito e a solução quando ocorressem as
situações previstas.
Com a queda de Roma, o conceito da legislação preexistente perde espaço
para o direito canônico. A legislação laica recebe poucas contribuições. Salvo alguns
reis interessados em definir direitos e obrigações comuns, por meio de suas ordena-
ções, as leis para compor litígios têm pouco uso e desenvolvimento durante todo o
Feudalismo e Absolutismo monárquico.
Ganha importância o julgamento religioso, muitas vezes levado a cabo pelos
sacerdotes, a partir do entendimento dos escritos sagrados. Mas dada a inexistência
de leis específicas, tanto de mérito quanto de procedimento, o arbítrio do julgador
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prevalecia, o direito à defesa não tinha qualquer amparo legal. A decisão poderia
emanar do governante, sem lhe dar qualquer justificativa.
Todas as tentativas de implantação de um sistema avançado de justiça, com
normas preexistentes e juízes imparciais, foram abortadas por monarcas despóticos,
os quais, por conveniência e convicção em sua predestinação, com aval divino, não
aceitavam soluções que poderiam não lhes interessar, se vindas de juízes que não
fossem de sua nomeação e confiança, o que subvertia, por completo, a ideia de
isenção, imparcialidade, independência.
Algumas codificações impostas pelos reis tinham caráter assumido de discri-
minação, preconceitos contra plebeus, camponeses, mulheres, discordantes, infiéis
e todos aqueles que tentassem subverter até por pensamento e palavras a ordem
reinante, dando razão, sem dúvida, àqueles que entenderam o caráter opressivo da
justiça na manutenção do interesse dos poderosos.
Ainda na Idade Média tem início o obscuro período da Inquisição, uma caça às
bruxas. Nos países católicos, a Inquisição passa incólume pela Renascença e chega
até o século XVIII, impondo o reinado do terror e do medo, do denuncismo, do pre-
conceito contra a Ciência e a liberdade de expressão, de pensamento.
De ressaltar, positivamente, apenas o surgimento, no direito comum, das orde-
nações manuelinas e, mais tarde, das filipinas, na Península Ibérica. Mesmo elabo-
radas com técnica duvidosa, são marcos de algum avanço.
Sem leis escritas, a justiça decorria apenas do entendimento do julgador, às
vezes o próprio rei, ou seus mandatários, com poderes absolutos, que julgavam
terceiros sem a obrigação de seguir regras ou justificar decisões. Sua percepção,
mesmo quando isenta e desinteressada, levava em conta seus próprios valores, nem
sempre partilhados por seus contemporâneos. O entendimento poderia ser dife-
rente daquele escolhido pelo resto da sociedade. Pouco importava.
Após a Revolução Francesa e a Independência americana, tem início um enorme
progresso social. No século XIX, surgem grandes juristas que bebem no direito ro-
mano a inspiração para normas que hoje consideramos atuais.
Atualmente, Justiça é um modelo instituído, destinado a resolver conflitos, com
isenção. Ela parte do pressuposto de que uma pessoa conhecedora das leis, íntegra e
desinteressada, pode legalmente ser investida à condição de solucionar controvérsias
entre duas ou mais pessoas, ou imputar a autoria de um crime, a partir da interpreta-
ção das regras emanadas da sociedade e seu cotejo com as provas produzidas.
Com o passar do tempo e repercutindo indiscutível evolução social, fomos en-
tendendo que nossa diversidade tinha de ser resolvida, não pelo confronto físico,
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nem pela opinião isolada de apenas uma pessoa, mas pela opinião consensual da
maioria aplicada à controvérsia. Ao juiz, cumpria seguir a lei emanada da sociedade,
gostasse ou não.
Felizmente, a dolorosa chaga da injustiça decorrente da opressão, antes aceita
como normal e praticada de forma consciente e egoísta, é cada vez menos frequente
e abominada pela quase unanimidade das pessoas. Mas ainda hoje há resquícios de
nosso barbarismo. Entre nações mantemos, sob poucos protestos, o velho hábito da
agressão física: a guerra. Continuamos mantendo exércitos e o persistente defeito
de tentar resolver diferenças pela agressão de um país a outro, um arquétipo social
da infância da humanidade. Para isso, ainda gastamos bilhões e bilhões, como o ob-
jetivo único de manter forças armadas treinadas e preparadas para a “defesa”, cujo
conceito parte do pressuposto de que a agressão por outro país é possível, gerando
um infantil círculo vicioso.
Por podermos elaborar regras coercitivas de convivência no interior dos países,
inexistentes no panorama internacional, a situação institucional é, em geral, me-
lhor interna do que externamente. Apenas organizações sem real poder, tratados e
acordos internacionais têm sido elaborados com o objetivo de levar as nações a um
tratamento civilizado, com a intenção de evitar possíveis guerras.
Na prática, dado o enorme volume de dinheiro gasto com armamentos, são
ainda inventadas situações para justificar os enormes investimentos em armas, do
que decorrem vantagens econômicas que alimentam a ganância dos beneficiários e
daqueles a quem corrompem.
No interior de quase todos os países, caminhamos para conceitos civilizados de
justiça, com a elaboração de leis, fruto, ainda que imperfeito e falho, do bom-senso
— entendido este como a média da opinião de todos ou, não sendo ela possível, a
da maioria.
Estamos longe de uma justiça boa, mas hoje alguns países, não democráticos,
dispõem de legislações razoavelmente lastreadas na opinião da maioria, em alguns
casos eivadas de princípios retrógrados de caráter religioso, como aqueles ainda
vigentes em países de ortodoxia muçulmana.
Em países de vocação totalitária, em geral, criam-se arremedos de legislação
democrática, provida de formas e maneiras de condenar os dissidentes ou indese-
jáveis. Mas, com poucas exceções, vigoram conceitos universalmente reconhecidos,
como o direito à defesa, a um julgamento justo por um juiz ou um tribunal impar-
cial. Tais princípios são endossados por leis escritas em quase todos os países, o que
é melhor do que o arbítrio sem disfarces.
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Não basta a lei ser boa. É preciso que seja eficaz. Isto decorre da boa aplicação
da justiça, que deve ser oportuna, isto é, imposta em tempo hábil.
Não é verdade que a justiça tarda, mas não falha. Não é porque tarda que não
falhará e, se ela tarda, é falha, seja qual for a decisão.
O desafio de aplicar a lei é fazê-lo com isenção e rapidez. Conseguidos esses
objetivos, o papel da justiça será de grande relevância, ainda que, como sustento,
não haja qualquer necessidade de haver um “poder” autônomo para aplicar as
regras democráticas.
Todos nós devemos cumprir, respeitar, executar, aplicar a lei. Alguns devem ape-
nas estar investidos da condição de aplicar as regras quando haja dúvidas quanto à
autoria de um delito ou definir a responsabilidade, quando ocorrer um conflito.
Essa nobre função deve estar inserida em um sistema que não separe as res-
ponsabilidades de quem faz a lei, de quem a aplique. Essa interação, ao contrário
do que ocorria nos regimes absolutistas, hoje é conveniente. A divisão deve partir
da natureza dos assuntos sobre os quais a lei deve versar. Ela deve ser elaborada e
aplicada de forma coordenada, para se conseguir isenção, eficiência, rapidez. A uni-
cidade de comando, do que decorreria sua clara identificação, por certo devolveria
à sociedade, democraticamente, a cobrança disso tudo aos responsáveis por ambas
as atribuições, hoje diluídas.
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Desconstruindo o judiciário
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Os que não pagarem os tributos que a lei determinar devem ser condenados
a fazê-lo. Mas o governo também pode prejudicar o cidadão; e a sua reparação, se
prejudicado, seria outra finalidade desse segmento.
O que deixaria bem caracterizada essa área seria a identificação das partes,
uma delas, necessariamente, o próprio governo. Os outros órgãos incumbidos da
área tributária e administrativa ficariam, necessariamente, engajados em evitar a
demanda, diferentemente do que ocorre.
Na área de segurança, não há dúvida de que muito pode ser feito na prevenção
ao crime, antes de processar um infrator. A conjunção de esforços, nesse sentido,
passaria a ser cobrada dos comissários eleitos na área, de tal sorte a se aquilatar seu
sucesso, estatisticamente possível, nos dias de hoje.
No caso da jurisdição criminal, dificuldade grande não é a aplicação de pena a
quem infringe a lei, quantificada em seus extremos pelo legislador, mas estabelecer
a autoria de quem a transgride, pelo fato de o infrator, em regra, tentar esconder o
delito, desfazendo, ocultando ou destruindo provas que possam incriminá-lo.
O hiato entre a identificação do culpado e a aplicação da justiça, que hoje
ocorre, é um equívoco. Não é apenas o juiz que deve ser isento. A polícia e o Mi-
nistério Público, cuja união em um só órgão é recomendável, também têm essa
obrigação, cabendo ao juiz examinar a isenção de sua conduta e a eficiência de seu
trabalho, inclusive assegurando ao acusado o necessário direito de defesa.
Tanto a justiça criminal como o órgão decorrente da fusão do Ministério Público
com a polícia civil, além da polícia militar, devem trabalhar para prevenir e impedir
o delito. Mas, se ocorrer, devem reunir todas as provas possíveis para identificar o
delinquente e julgá-lo com isenção: se considerado culpado, excluí-lo do convívio
social, tanto para tentar incutir-lhe o arrependimento como para prevenir que rein-
cida; empenhar-se na reintegração do delinquente à sociedade e; principalmente,
promover a dissuasão à transgressão, pois o cidadão deve se atemorizar com a pos-
sibilidade de ser punido, se praticar o que a lei define como crime.
Esses objetivos não são colidentes, mas convergentes. Cada um cumprindo sua
tarefa específica. O trabalho de todos deve ser complementar, jamais antagônico.
Em uma democracia, há de se assegurar a defesa do acusado, mas, mesmo
antes disso, deve se evitar acusar um inocente. Este é um trabalho que não cabe a
um juiz ou a um Júri, mas a todo o segmento que enfeixe a responsabilidade pela
segurança, a partir da polícia que passaria a integrar o conjunto de órgãos que ob-
jetivem não a condenação pela condenação do delinquente, mas a diminuição da
delinquência.
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Por fim, a terceira grande divisão do que hoje se chama poder judiciário é a
definição de regras e consequências para a relação econômica entre as pessoas,
no sentido de tornar esse relacionamento saudável, com o menor número possível
de atritos.
Na maior parte das vezes, no procedimento do direito econômico, não é re-
querida investigação pelo governo, ao contrário da Justiça penal. Ao juiz cumpre
presidir e organizar as provas trazidas pelas partes, aceitando-as ou não e, assim,
convencer-se sobre a responsabilidade de uma das partes pelo descumprimento de
uma lei ou de um contrato celebrado dentro dos parâmetros legais, em consequên-
cia do que tenha resultado prejuízo pecuniário a quem cumpriu sua obrigação.
Um dos grandes problemas da justiça, sua morosidade e ineficiência, decorre
do conceito equivocado de colocar essas três atividades diferentes sob um único
“poder”, partindo da falsa premissa de que são atividades jurídicas de uma só natu-
reza. São áreas tão diferentes como são a ortopedia e a ginecologia, embora ambas
sejam áreas da medicina.
Já não podemos viver numa sociedade generalista com ortopedistas fazendo
partos e obstetras tratando fraturas do fêmur. A tendência é dos hospitais especializa-
dos e das maternidades exclusivas. O crescente conhecimento colocado à nossa dis-
posição, com milhares de informações surgindo a cada hora, torna mais do que nunca
oportuno o princípio de que, para melhorar a eficiência, é preciso se especializar.
Repito que, na essência, a proposta visa eliminar o indesejável e desnecessário
hiato existente entre criar e aplicar a lei. Não se deve criar a lei e… pronto — o
problema é do outro. Nem se deve aplicar a lei para se eximir de responsabilidades
quanto a seu resultado.
Leis ruins e órgãos ruins ao aplicá-las encontram a perfeita combinação de des-
culpas para os dois lados justificarem a ineficiência. Aquele que faz alega que a lei não
é bem-aplicada. O que a aplica tem a justificativa fácil de que não foi bem-feita.
Há, no sistema vigente, uma cômoda diluição de responsabilidades, totalmente
substituível por um procedimento mais moderno, de cobrança efetiva e funcional,
pela sociedade, aos responsáveis por ambos os procedimentos e nos resultados
concretos que poderão ser aferidos.
Por meio do sistema de colegiados deliberativos eleitos pelo povo, o arbítrio
decorrente da cumulação das funções de criar e aplicar a lei não tem como ocorrer,
pois a sociedade, sempre a legítima dona do sistema, pode despedir os incompeten-
tes e rever suas decisões. A razão da separação — e seus inconvenientes — desa-
parece. Entendia-se que o poderoso, a quem competia fazer a lei, se fosse também
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aplicá-la, estaria tentado a agir com arbitrariedade, surgisse algum caso de seu
interesse direto ou indireto.
Inexistente a premissa, há conveniência de que as pessoas incumbidas de fazer
a lei se tornem responsáveis por sua aplicação. A tarefa de quem delibera, ao criar
a lei, não estaria esgotada com sua publicação, como hoje ocorre, mas com o seu
sucesso, sua implantação, seu funcionamento, com dois objetivos: pensar e estudar
mais as consequências, ainda na fase de projeto, e acompanhar sua aplicação prá-
tica, para fazer, se necessário, correções de rumo.
Hoje, a simples correção de uma vírgula que possa dar margem a dezenas
de processos judiciais pode levar anos, um processo burocrático inexplicavelmente
complexo, difícil, custoso.
A interação de responsabilidades entre quem faz a norma e quem vai aplicá-la
dará ao primeiro a possibilidade de conferir a consequência, ter o que, em inglês,
chama-se de “feedback”: a aferição e o acompanhamento do resultado para deter-
minar a necessidade de ajustes.
Atualmente, com o nível de progresso alcançado, há a necessidade de especia-
listas ao elaborar as regras e especialistas para aplicá-las, trabalhando em sintonia.
No sistema proposto, é exatamente isso o que se pretende viabilizar.
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A Justiça eficaz
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turma do “deixa disso” entrou em cena, mas parecia conturbar, ainda mais, o
ambiente de confusão, estupefação geral, mal-estar generalizado.
O professor, que aparentemente assistia impassível a toda aquela cena, foi
então até o tablado que elevava sua mesa à proeminente altura, ergueu os braços
teatralmente e disparou:
— Silêncio! Silêncio!
Todos os participantes do entrevero se refizeram. Seguiu-se um silêncio sepul-
cral. Ele chamou o bedel e mandou distribuir folhas de papel em branco.
— Muito bem — proclamou. — Os senhores vão relatar o que se passou nes-
tes últimos minutos, com a maior riqueza de detalhes possível.
Algumas aulas depois, pediu a uma aluna que lesse nossos depoimentos escri-
tos dias antes, minutos após a ocorrência.
As discrepâncias eram enormes: além dos fatos serem narrados em sequencias
diferentes, alguns inverteram o nome do colega atrasado com o de quem lhe afron-
tou; o que ambos teriam falado durante a discussão, a intenção da turma do “deixa
disso”, da aluna que teria desmaiado, a reação do professor e a da classe.
— Minha aula, hoje — disse então —, versará sobre a relatividade do testemu-
nho e de seu valor como prova. Em geral, lembramos apenas do essencial e come-
temos erros de memória ao reportar os detalhes — concluiu.
Temos de fazer algumas escolhas. Seria fácil escolhermos entre duas situações
ótimas. Lamentavelmente, não é assim. Seria ótimo decretar o fim dos acidentes de
trânsito, mas essa situação só seria possível se proibíssemos a circulação de todos
os veículos ou condenássemos todas as pessoas a ficar confinadas em casa. Seriam
males maiores do que o que se quer coibir, mesmo se mortes fossem evitadas em
um primeiro momento.
Imaginar que estamos apetrechados para fazer justiça absoluta é uma pretensão
arrogante, uma tentativa de decretar o fim dos acidentes de trânsito, utopia que pode
apenas nos servir de foco, sempre e eternamente perseguido, jamais alcançado.
No entanto, nossos juristas parecem acreditar que a Justiça perfeita é possível.
À Justiça cabe a aplicação das leis, zelando pelo seu efetivo cumprimento.
Cabe-lhe a tarefa de aplicá-la com isenção, rapidez e eficiência.
Ela tem falhado nos dois últimos objetivos, por estar centrada apenas no pri-
meiro ponto e de forma errada. Pretende uma perfeição inalcançável. Confunde
isenção com justiça absoluta, um ideal, um foco, não a realidade possível.
A Justiça, como feita, é pretensiosa e contraditória. Dá tão amplo direito de
defesa ao réu a ponto de comprometer o direito de quem pede ou precisa de re-
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Provas são o único meio eficaz de trazer os fatos à colação. Ao juiz cabe interpretá-
las e criar a versão mais plausível, mesmo que lhe falte a convicção absoluta. Ela é
sempre inalcançável e, se não entender isso, não poderá julgar.
Justiça total não é opção possível, é aspiração. Por isso, é falso o dilema de uma
escolha excludente: ou justiça ou rapidez. O resultado de buscar justiça perfeita,
demore o que demorar, é muito ruim, pela eliminação, ou, no mínimo, a grande
subestimação de seu objetivo dissuasório, o mais importante.
Temos de ser realistas para reconhecer que os seres humanos, por não serem
perfeitos, jamais poderão fazer a justiça perfeita. Devemos fazê-la social, útil, ágil,
eficiente, dissuasória e isso significa ser rápida.
Fomos levados, por vício de concepção herdada do liberalismo exacerbado,
a pensar que não há alterações possíveis a fazer no judiciário, que sua lentidão e
ineficiência são insolúveis, inevitáveis, que suas sentenças, para serem justas, hão
de ser tomadas sem qualquer pressa. Um erro. No mínimo, uma generalização
simplória. O médico que espera até seu paciente apresentar condições ótimas
para fazer a cirurgia, poderá perder a ocasião e o paciente. Em toda a atividade
humana, quando se busca um resultado, não se deve proceder com açodamento,
muito menos com a paciência contemplativa de um monge budista. No caso da
Justiça, há muito que se pode fazer, sem qualquer prejuízo à qualidade final das
decisões judiciais.
Não conseguida a perfeição, a Justiça deve ser considerada inconveniente, te-
mida e desagradável, pelos infratores e devedores, e não pelos que precisam dela
para se ressarcir de prejuízos. Na sistemática vigente, ela não alcança sua função
dissuasiva, socialmente mais importante do que a reparação pecuniária ou a puni-
ção tardia.
Se for muitas vezes ineficiente, a Justiça torna-se ineficaz e isso é o pior dos
mundos. Gera a insegurança jurídica, atingindo todos os que precisam recorrer a ela
e aos que passariam a temer precisar dela, se necessário.
A finalidade do direito é a segurança social, conseguida pela dissuasão da in-
fração à lei. O não cumprimento da lei é inevitável, tanto quanto o são a doença, o
acidente de trânsito…
Patologias antissociais são uma realidade, queira-se ou não. Conflitos são ine-
rentes à personalidade humana, não apenas porque somos egoístas, mas por ver-
mos e interpretarmos os fatos e situações de modo diferente, sempre com a parcia-
lidade de nossa própria ótica, ao ver melhor o nosso interesse do que o alheio.
Uma vez, perguntei a um médico, meu amigo, como estava passando.
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— Vou mal — disse ele. — Está havendo uma enorme crise de Saúde.
Evidentemente, como o conhecia o suficiente, soube entender que se tratava
de uma brincadeira. Mas também foi a forma que ele encontrou para mostrar o lado
ruim de sua profissão, tão nobre. Se ninguém ficasse doente, não ganharia dinheiro.
Doenças, acidentes de trânsito, separação de casais, a própria morte, são acon-
tecimentos de que não gostamos, mas são inerentes à vida.
No caso da Justiça, a pessoa ser processada ou precisar processar alguém são
situações desagradáveis, mas sua existência, como as coisas ruins, são inevitáveis.
Assim como devemos lutar contra a doença, os acidentes, tentar levar a morte
para idades provectas, quando é mais bem aceita, não há por que deixarmos de
fazer todo o possível para tentar diminuir os crimes, as desavenças, os conflitos, a
inadimplência.
Mas é pretensão achar que a Justiça pode ser absoluta, recompondo total-
mente uma situação anterior. A Justiça pode reparar, não recompor. Como mal
inevitável, devemos ser realistas, fazendo-a eficiente e eficaz, sabendo logo que não
pode ser perfeita. Pode ser isenta, mas dificilmente, na opinião do condenado, será
justa, seja ele culpado ou não.
Uma dessas consequências é entender que jamais poderemos satisfazer a to-
dos, devendo, por isso, aceitar que o bem-estar de muitos é mais importante do
que o de poucos, e isso significa terminar rapidamente o chamado “procedimento
judicial”, porque esse é o interesse da grande maioria dos seres humanos — aqueles
que cumprem suas obrigações.
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Simplificar o procedimento
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sentido de deixar os bens pro indiviso, ou seja, mantidos em comum, não haveria
razão para a recusa do herdeiro e ele poderia ser compelido a fazê-lo por meio de
ação cominatória (obrigação de fazer), com multa diária pelo inadimplemento. Na
hipótese de não haver acordo sobre a partilha, porque os bens seriam divididos de
maneira desigual, seria o caso de algum herdeiro requerer a venda judicial. Em am-
bos os casos, a competência seria da justiça econômica.
Evidentemente, não declarada a existência de um herdeiro, este teria todo o di-
reito de mover uma ação de anulação de ato jurídico, com os consectários criminais
decorrentes do estelionato. Separações amigáveis também poderiam ser feitas por
escritura, exceto se existissem menores.
No caso da existência de menores ou incapazes interessados, a agência de
proteção ao menor designaria um curador para defender seus interesses, ficando
ele investido da condição de assistir, necessariamente, o representante do menor
(pai, mãe, etc.), em todos os atos de seu interesse, inclusive na escritura de partilha,
de venda de bens e todos os outros que envolvam seu patrimônio, sob pena de
nulidade.
Na parte empresarial, há uma dinâmica de acontecimentos que já redundaram
no instituto da recuperação judicial, muito melhor do que a antiga concordata pre-
ventiva, mais ainda aperfeiçoável em função de um progresso enorme nas relações
negociais. Também cabe uma revisão completa na legislação societária, distinguindo
melhor as pequenas das grandes empresas. Deve haver pleno incentivo à criação
de negócios legalizados, garantindo ao pequeno empresário direitos, não apenas
obrigações, como ocorre.
A legislação trabalhista, especialmente a processual, tem o cheiro apodrecido
do fascismo, imaginado há quase um século.
Só para pensar:
Li, sem conferir, duas notícias, críveis ambas, sobre a Justiça do Trabalho no
Brasil. A primeira é de que é a maior do mundo em número de processos, juízes,
funcionários, custos e todos os outros parâmetros. Dessa informação não tenho
dúvidas, pois confirma outras tantas leituras. Mas a que mais me impressionou foi
uma outra, de que o custo da Justiça do Trabalho seria maior do que o valor das
condenações às empresas, recebidas por seu intermédio. Aí, fiquei em dúvida. Mas,
como diz o italiano, “se non é vero é bene trovato”.
Não apenas a legislação trabalhista, mas também a Justiça do Trabalho deman-
dam imediata reforma.
Cito um exemplo de péssimas consequências:
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oitenta pagantes. Estes, além de pagarem em dia, acabarão pagando pelos inadim-
plentes. Uma grande injustiça.
Na verdade, a confrontação fisco-contribuinte deve ser eliminada. Não há qual-
quer razão para existir. Haverá sempre o interesse da sociedade e esta sim dará a
última palavra. Preservar direitos lícitos será, por certo, um objetivo cobrado, fiscali-
zado, exigido de quem cobra e fiscaliza o governo: a sociedade.
Ao comitê gestor de finanças competiria a responsabilidade pela arrecadação.
Pela lógica integral da proposta, seu interesse, no entanto, mais do que o volume
arrecadado, seria a justiça e a eficiência com que o fizesse.
Seu julgamento, pela sociedade, não seria pela obtenção de verbas — até por
que não lhe caberia aplicá-las, nem beneficiar-se delas —, mas pela correção e efici-
ência com que exerceria suas funções, o que vale dizer, sua isenção.
De qualquer maneira, o fato de estarem sujeitos ao mesmo colegiado não signi-
ficaria que a agência específica, incumbida de arrecadar, se acumpliciasse com aquela
incumbida de aplicar a lei tributária e decidir questões da relação fisco-contribuinte.
Não haveria qualquer razão para terem interesses comuns ilícitos, como o au-
mento indevido da receita. Teriam, sim, o objetivo final do julgamento popular:
prestarem bom serviços, cada qual em sua função específica. A Receita tentando
arrecadar eficientemente. A Justiça fazendo com que, quem deva, pague; e, quem
não deva, não pague.
Caberia ao comitê gestor de finanças não apenas se responsabilizar pela quan-
tidade da arrecadação, mas também por sua qualidade, o que se traduziria em pres-
teza, eficiência e justiça, dirimindo questões interpretativas e não as prolongando,
indefinidamente, como ocorre hoje.
Preenchida, como todos os demais órgãos ou empresas públicas, pelos critérios
de concurso e promoção por merecimento, a agência de direito tributário ficaria sa-
tisfatoriamente independente para decidir contra a agência da Receita Federal, cujo
pessoal lhe seria estranho. Mas sua agilidade seria cobrada pelo comitê financeiro,
interessado, a um só tempo, em dirimir questões tributárias, fazer justiça e também
em arrecadar. A morosidade hoje reinante não tem sentido nem para beneficiários,
senão os inadimplentes e sonegadores.
Pela lógica da unicidade de comando, é provável que os fiscais da Receita
passassem a agir, sempre, em consonância com as decisões da agência de direito
tributário, que passaria a balizar o entendimento de possíveis dúvidas, diminuindo,
consideravelmente, as tarefas inutilmente repetitivas, com resultado tão nefasto
quanto ineficaz.
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Se não fizesse isso e não agisse assim, a Receita estaria sujeita à oportuna repri-
menda pelo comitê gestor de finanças e, até, à sua responsabilização administrativa
e criminal a si e aos funcionários que deixassem de cumprir o preceito.
Incrivelmente, hoje isso não ocorre e, não obstante a posição firmada em sú-
mula por um tribunal, a Receita continua a dar seu próprio entendimento, na cha-
mada fase administrativa, sempre a seu favor, em todos os assuntos de sua conve-
niência, mesmo contrariando, taxativamente, uma decisão judicial.
As razões para isso, como sempre, estão na tripartição. Eliminada, não haveria
qualquer razão para o processo passar, antes do ajuizamento, por um contencioso
administrativo. Apurada a infração, o direito de defesa seria dado ao devedor na
fase judicial, sem qualquer necessidade de litigioso administrativo. Hoje ocorre um
absurdo “bis in idem”.
Todas as questões tributárias, mesmo a do contribuinte contra o governo, te-
riam o foro adequado na agência de direito tributário.
Questões de indenização movidas por funcionários contra o governo teriam
foro na agência de direito administrativo. Se um funcionário de uma agência estatal
recebesse menos do que o devido ou se achasse no direito de receber, legalmente,
mais do que recebeu pela demissão, ou o caso do desapropriado não justamente
indenizado, ou, ainda, daquele que sofresse prejuízo decorrente de negligência, im-
prudência ou imperícia do governo, poderiam ajuizar ações contra ele, pleiteando
seus possíveis direitos na agência de direito administrativo.
Como partes interessadas, as agências de direito a ele subordinadas teriam a
incumbência de sugerir ao comitê gestor de finanças a edição de leis e normas de
procedimento, ferramentas para se tornarem rápidas e justas.
Com o governo dividido por assuntos, por itens de prestação de serviços,
seria fácil aquilatar o desempenho de seus vários órgãos. Tanto a secretaria da
Receita Federal como as agências de direito passariam a ser avaliadas pelo seu
desempenho. Seu julgador final não seria nem mesmo o comitê gestor de finan-
ças, mas o povo, que renovaria, ou não, o mandato outorgado aos partidos com
poder de representação.
Importante ressaltar que, além de funcionários e diretores de empresas pú-
blicas, também os membros dos comitês poderiam ser condenados pela agência
de direito administrativo no respeitante a ressarcimento por danos causados por
procedimentos culposo ou doloso que tivessem gerado prejuízo ao erário público.
A condenação seria sempre pecuniária porque, evidentemente, a condenação pela
prática de crime seria da alçada da agência de direito penal.
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antissociais. Entre essas pessoas algumas são, além de prejudiciais ao convício so-
cial, totalmente irreversíveis à normalidade comportamental, pelo menos em função
de nosso atual grau de conhecimento.
Pessoas são irrecuperáveis se, além de praticar o delito, o fazem sem qualquer
compaixão. Há um número significativo de pessoas que matam, sequestram, estu-
pram, sem sentir o mínimo remorso, ou pena, sem demonstrar arrependimento,
amor, respeito ao próximo. São incapazes de se colocar na posição da pessoa que
está sofrendo. Uma patologia clara.
Tais indivíduos, até que a ciência desenvolva um remédio eficaz que possa mu-
dar seu caráter, não devem voltar a viver no seio da sociedade, pois, sabidamente,
reincidirão. Também não há por que permanecerem presos pelo resto da vida, ou
boa parte dela. Nada podem aprender na cadeia, senão o aperfeiçoamento e o
ensinamento de métodos criminais cruéis e desumanos. Seu convívio com outros
delinquentes será pernicioso. Nada aprenderão, mas irão transmitir, ensinar todas as
suas mazelas àqueles que, embora fracos de espírito, poderiam ser recuperados.
Ao contrário de cruel, a medida evitaria o desnecessário e prolongado sofri-
mento desses doentes, mantidos presos por anos e anos, sem qualquer possibili-
dade de reintegração social. Um castigo desnecessário, inútil.
Não poucas vezes, somos forçados a tomar decisões desagradáveis, mas, como
diz o ditado, “ao decidir pela preservação da vida de um lobo, poderemos estar
condenando ovelhas à morte”.
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militares seriam integradas a elas, para o início de operações conjuntas, não deman-
dantes de longa preparação.
A bem da economia e da eficiência, deveria ser sumariamente eliminado o inútil
serviço militar obrigatório, de origem medieval, passando o ingresso nas forças arma-
das a ser feito apenas por concurso, com a total profissionalização e a realização per-
manente de cursos de atualização e reciclagem para suas várias áreas de atuação.
Em outro capítulo, sugiro o aproveitamento de jovens no serviço do bem-estar
social, muito mais proveitoso, tanto para a sociedade como para os que dele quises-
sem participar, voluntariamente.
Exército, Marinha e Aeronáutica passariam a cuidar da prevenção — não da
investigação — de delitos e crimes, da segurança das fronteiras, do ar e do mar, não
apenas para impedir a remotíssima possibilidade de invasão por nossos vizinhos,
mas para evitar os vivíssimos crimes de contrabando, tráfico de armas, pirataria,
o terrorismo e qualquer outra forma de delinquência hoje praticada com enorme
desenvoltura. Hoje, por força de lei, os militares não podem, senão quando convo-
cados, atuar na defesa da sociedade agredida de forma tão sórdida, como o é, pelos
agentes do crime.
Na otimização de suas funções, passariam também para a incumbência das
forças armadas, com a absorção dos serviços de salvamento e resgate, problemas
decorrentes de intempéries e desastres naturais.
O trabalho de prevenção, além de dissuasório ao crime, vigiando e impedindo
sua prática, certamente abrange a busca de foragidos, a detenção de infratores e a
obtenção de provas que possam ser úteis à polícia civil, na identificação do autor do
crime e na produção de provas. Mas essa função seria subsidiária, como já ocorre
com a polícia militar a ser incorporada pelo Exército, que, pela sugestão, aproveita-
ria todo o seu efetivo, patrimônio e experiência.
A atividade de prevenção ao crime deve ser militarizada, organizada e plane-
jada. Sua eficiência, em muito, decorre da formação militar e hierarquizada, com
funções definidas e tarefas claras. No âmbito federal, Exército, Marinha e Aeronáu-
tica deveriam realizar, permanentemente, operações de combate ao crime organi-
zado, trabalhando na prevenção ao tráfico de drogas, em busca de armas letais,
cuja simples posse não autorizada deveria ser tipificada como crime autônomo de
prisão inafiançável e pena grave.
Já a área da polícia civil unida ao Ministério Público, não militarizada, deve
manter seu caráter investigativo. Compete-lhe investigar a autoria do delito e usar
serviços de inteligência na sua prevenção. Sua participação pode ser preventiva, mas
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essa não é da sua essência. A rigor, ela só deve atuar após a ocorrência de um crime
ou sob sua iminência.
Hoje há confusões de atribuições entre as polícias militar e civil. A divisão é
importante, pois ambas têm finalidades diferentes, mas a distinção deve ficar muito
clara. A militar é preventiva, de combate ao crime. A civil é de investigação. Sua
participação vem depois de consumado um crime, ou quando houver suspeita de
sua ocorrência, de sorte a justificar uma ação preventiva de investigação. Mas, evi-
dentemente, isso não impediria a recomendável realização de operações planejadas
e executadas em conjunto, sempre que conveniente e necessário, pois o comando
de ambas seria o comitê gestor de segurança, ao qual estariam submetidas.
A atividade de Segurança deveria ser, basicamente, federalizada, para que hou-
vesse uma coordenação-geral efetiva no combate ao crime, deslocando maiores
contingentes para as áreas em que sua incidência e necessidade fossem maiores.
A atividade complementar de Segurança caberia aos municípios e ficaria restrita
ao policiamento de trânsito, defesa do patrimônio, policiamento de escolas, eventos,
museus e outros logradouros públicos, além de um importante segmento de ajuda
aos munícipes, especialmente àqueles parcial ou totalmente incapazes, que necessi-
tam de auxílio e acompanhamento. Sua função subsidiária à Segurança seria a sua
obrigação de obter informações e informar quando ocorresse a prática de um delito.
No âmbito federal, minha sugestão é que Exército, Marinha e Aeronáutica se-
jam divididos em zonas sob comandos hierárquicos. No caso específico do Exército,
fundido com a polícia militar, a divisão se daria em zonas, subzonas e distritos, com
jurisdição por áreas.
Na reestruturação de funções, seria anexada ao comando hierárquico das
forças armadas, a carreira de assistentes administrativos com várias incumbências,
inclusive o registro das infrações criminais. A eles também incumbiria manter, pre-
servar e enviar às forças militares as provas recolhidas pelo pessoal da ativa, com
técnicas modernas como fotos, vídeos, gravações ou outros meios modernos que
deveriam passar a ser admitidos, exceto se expressamente proibidos.
Por seu turno, a polícia civil, dividida em áreas de investigação conforme a na-
tureza do crime, seria acionada logo após a sua ocorrência, para iniciar o inquérito
policial e tomar as devidas medidas de busca e apreensão de provas e identificação
dos culpados.
Evidentemente, há uma lista interminável de crimes complexos que envol-
vem diversas tipificações, mas a especialização de uma equipe não a impediria
de investigar a prática de outros, se conexos.
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dorizadas de última geração. Em tese, com um por cento da renda dos moradores,
já haveria folga nas contas municipais. Em Quixeramobim, no Ceará, o confisco
de todo o rendimento dos moradores não seria suficiente para pagar o salário dos
(poucos e malrremunerados) médicos e professores municipais. Em Rhode Island,
esses serviços são desnecessários porque não há uma só pessoa que não tenha
plano de saúde e pouquíssimas crianças estudam nas excelentes escolas públicas.
Há excelentes escolas particulares ao acesso de quase todos os moradores.
Os exemplos extremos foram colocados apenas para demonstrar a injustiça do
sistema, bonito na teoria, injusto na prática. Quem é rico recebe muito mais do que
quem é pobre. O sistema nada faz para diminuir as desigualdades sociais enormes.
Ao contrário, as perpetua. O sistema de suplementação gera círculos virtuosos e
viciosos que se autoalimentam.
O sistema bem-concebido, na verdade. parte de um individualismo exacerbado
que contraria qualquer ideia de solidariedade, justiça social.
Se houvesse igualdade entre as pessoas, se todas as crianças nascessem em la-
res bem-formados, recebessem comida e afeto, seria plausível, talvez recomendável,
que a comunidade menor fizesse tudo o que pudesse e assim sucessivamente. Mas
não é assim. Não somos assim.
Pela teoria da suplementação, na verdade, pouco damos. O objetivo é que o
contribuinte veja e saiba que o grosso do imposto que paga será gasto por perto,
quase sob suas vistas, de preferência com ele mesmo. O imposto municipal estaria
sendo revertido na escola para o filho do contribuinte, no posto de saúde, se ficasse
doente, na segurança contra a possibilidade de ser roubado, na justiça de cobrar a
devolução de uma mercadoria não paga e assim por diante. Toda a contrapartida
bem próxima de seus olhos. Ele, contribuinte, sempre o beneficiário, direto ou indi-
reto, dos tributos que paga.
Essa circunstância, da proximidade entre pago e recebido, a princípio, é reco-
mendável, mas egoísta, porque se limita ao “toma lá dá cá”: nada devo fazer se
não receber algo em troca.
Na realidade, essa posição, sobre ser egoísta, ignora e despreza as diferenças,
maiores do que gostaríamos. Ela não é a opção da solidariedade, da fraternidade e
do amor, necessários a uma sociedade desejável.
Há pouquíssimos estudos sobre a divisão de arrecadação e as atribuições entre
os níveis de governo. Os existentes, em geral, partem de premissas dadas como
verdadeiras e, por isso, não questionadas. Um dogma, como todos, pouco inteli-
gente.
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Social. Seu salário líquido será x–y. É isso o que de fato vai receber. Ao aceitar o
salário que receberá, sabe que sofrerá descontos de INSS e imposto sobre sua
renda. Logo, vai pedir um salário maior do que pediria se não fosse onerado com
esses encargos.
Ao vender seus produtos ou serviços, a empresa, por sua vez, vai levar em
conta o custo do salário do técnico de manutenção, que para ela foi x, e não x–y.
Evidentemente, o custo do imposto de renda do assalariado será repassado ao preço
do produto ou serviço.
A empresa também repassará todo o imposto sobre a renda de pessoa jurídica
e da pessoa física de seus sócios para o consumidor. Novamente vale o raciocínio:
quando fixar o preço de venda, a empresa levará em conta o lucro que precisa ter.
Ao tentar quantificá-lo, a empresa prevê o quanto vai pagar de imposto para calcu-
lar o quanto vai lhe sobrar, de fato: seu lucro.
Por sua vez, o investidor, aquele que comprou ações dessa empresa, ao gerar
sua expectativa de retorno, levará em consideração, também, o imposto de renda
que vai pagar sobre o que receber de dividendos. Lá atrás, quem fez o cálculo do
preço a ser cobrado do consumidor levou tudo isso em consideração na hora de
fixar o preço de venda do produto ou serviço. Se não o fez, foi incompetente.
Se a sociedade anônima não der um resultado que remunere adequadamente
o acionista, já descontado seu imposto de renda, ele não vai ter o retorno esperado
e o preço da ação vai cair. Isto, provavelmente, será a desgraça dos diretores das
sociedades anônimas que foram escolhidos para conseguir lucros.
Outra situação seria a do proprietário de imóvel que vai alugá-lo. Na hora de
fixar o aluguel, o valor do imposto de renda que terá de declarar e pagar vai ser
acrescido ao preço, a menos que sua intenção seja a de sonegar. Se acrescentar o
imposto devido ao valor líquido do aluguel, como deveria fazer se for bom adminis-
trador, estará o repassando a seu inquilino.
Enfim, não há dúvidas de que todo o imposto será gerado e pago, efetiva-
mente, pelo consumidor ou usuário, sem exceção. O assunto é tão desprezado
pelos técnicos que vale a pena aprofundar um pouco mais: as considerações.
Quando constituo uma sociedade, ou compro ações de uma sociedade anô-
nima, tenho em vista a rentabilidade do capital que investi. Jamais poderia deixar de
considerar o valor dos impostos que tanto a empresa como eu teremos de pagar.
Se tivesse a informação de que iria me render menos do que uma aplicação
de renda fixa, certamente não faria a compra. E, se aplicar na poupança me render
mais do que em uma aplicação em ações, optarei pela poupança, como é óbvio.
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Como sei que a empresa cujas ações comprei será tributada e eu também serei
tributado pelo rendimento, tenho a expectativa de que a renda, descontados todos
esses impostos, será conveniente, ou tampouco farei a aplicação.
Quando o acionista compra uma participação societária em uma empresa, sua
expectativa é de que o resultado, ou lucro, após o desconto do imposto de renda
da empresa, seja compensador.
Portanto, a empresa, ao fixar e definir o preço do produto ou do serviço que vai
vender, tem de levar em conta o valor dos insumos, a mão de obra, os impostos e
o lucro que deverá pagar ao acionista, essa última remuneração já descontado seu
imposto de renda, sob pena de frustrar o investimento ou o valor da ação.
Em resumo, ao comprar um produto ou contratar um serviço de uma em-
presa, o consumidor arcará com todo o custo de produção, incluindo nisso todos
os impostos chamados diretos, incidentes sobre a renda bruta do assalariado e dos
diretores — levados em conta quando foram contratados. No preço pago pelo con-
sumidor, além do lucro de todos os envolvidos na cadeia produtiva, estará incluído
também o imposto de renda a ser recolhido pela empresa e também o do acionista,
porque há de haver uma sobra, pois é dela que virá sua remuneração.
Ao contrário do que parece, é sempre, sem exceção, o consumidor quem
paga o imposto de renda. Paga-o indiretamente, mas é ele quem paga. Está
embutido no preço do serviço ou produto, quando o adquirir. E não é mal que
seja assim.
O imposto mais justo é aquele incidente sobre o consumo, diretamente.
Cada vez que como carne de boi, estou diminuindo uma pequena fração do
total de carne disponível. Se não a consumisse, outros iriam fazê-lo. É justo que
pague à sociedade um valor proporcional ao que consumi, pois na confecção de
qualquer produto ou serviço, como no caso da carne, estará entrando água limpa,
energia, sol, solo e “n” outros insumos de propriedade de toda a humanidade
como donos do planeta.
A grande vantagem dos tributos incidirem sobre o consumo é o fato de pode-
rem ter alíquotas diferentes em decorrência da utilidade social maior ou menor do
produto ou serviço. É possível e justo tributar a bebida alcoólica e isentar o remédio,
tributar a gasolina e isentar o diesel usado no transporte coletivo, socialmente me-
nos danoso.
Exceto um pouco mais do que a alimentação básica e o vestuário simples, todo
consumo é opcional. É adquirido por decisão de quem vai consumi-lo, portanto não
é exatamente um imposto, mas uma opção.
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Já ouvi pessoas inteligentes dizerem que o imposto sobre o consumo é injusto por
tributar proporcionalmente mais o pobre do que o rico. O raciocínio continua falho.
Se um milionário usuário resolve passar toda a sua vida recluso em um quarto
a pão e sopa, o que é comum, não gastará seu dinheiro e também não o levará
para o túmulo.
Embora sua lucidez seja questionável, é justo que não pague impostos, mesmo
tendo imensa renda. Desperdiçou sua vida, mas não impediu ninguém de usar os
serviços e produtos que poderia ter consumido. Poupando e investindo o que deixou
de gastar, certamente deve ter contribuído para aumentar a produção e beneficiado
todos os demais cidadãos. Seu dinheiro mantido em banco foi emprestado para em-
presários aumentarem sua produção. Seus imóveis serviram de moradia para muitas
pessoas, sem que tenha, nem mesmo, se beneficiado dos aluguéis que recebeu.
Ao contrário, se uma pessoa sem muita renda passa toda sua a vida usando
gasolina em seu carro para se locomover, se empanturrando de cerveja e carne,
deve arcar com o preço da extração e refinação do petróleo, da água limpa, da luz,
do solo, da limpeza do estrume gerado pelas cabeças de gado que consumiu em
sua vida.
Dividir impostos em diretos ou indiretos é apenas definir a forma e a quem
caberá a tarefa de recolhê-los, mas todos vão incidir, direta ou indiretamente, sobre
o consumidor ou usuário, o único que não tem a quem repassar.
O imposto sobre a renda de pessoa física é sempre transferido ao usuário de
um serviço, ou ao consumidor final de um produto. Não há, nem mesmo, exceções.
Há situações um pouco mais complexas que parecem fugir à regra. O lucro na venda
seria um exemplo.
Sem tirar o caráter aleatório — a sorte —, cuja ocorrência não pode ser con-
trolada pelo governo, quando alguém recebe uma grande diferença entre preço
de compra e de venda, seja de imóveis, ações ou outros bens, o lucro do alienante
foi pago pelo comprador. Mas, se o vendedor pretendesse ou precisasse declarar
seu lucro, a margem poderia ter sido menor. Se não o sonegar, situação mais
frequente, o vendedor irá calcular o valor do imposto no momento em que fixar
o preço de venda.
Na aplicação financeira que o investidor faz em banco ou outra instituição in-
termediadora de valores, ele levará em conta o retorno líquido de seu capital. Se o
dinheiro aplicado no banco for emprestado, o tomador do empréstimo arcará não
apenas com o imposto de renda do investidor, mas também o do banco, embutido
em seus custos.
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jorado, onerando ainda mais os que pagam. Gera, portanto, indesejável círculo
vicioso. Quanto mais alto o imposto, mais alta a tentação de sonegá-lo. Quanto
maior a sonegação, mais alto ele deve ser.
O imposto deve ser justo. É necessário que o contribuinte tenha a sensação real
de estar sendo tratado com isenção e equidade. Pagando o imposto no momento
em que se utiliza de um bem ou serviço, ou os disponibiliza, ao contrário do que se
apregoa, o contribuinte não se sente lesado, porque, de fato, não o está sendo.
Outro objetivo do imposto é propiciar ao contribuinte a percepção de que o
que está pagando terá retorno útil. Mesmo sendo obrigado a pagar tributos, isso é
bem mais aceito quando o contribuinte se sente reconfortado, tal como ocorre com
o filantropo. Ele deve ter a sensação de que o que pagou foi útil para a sociedade.
Há estudos mostrando que o ser humano normal sente uma agradável sensa-
ção de conforto quando ajuda, faz alguma coisa em benefício do próximo.
Hoje, em relação a pagamento de impostos, essa ideia está destroçada. Quando
se paga um imposto, o cidadão tem a sensação de estar sendo lesado, não de estar
contribuindo, de forma útil, com o bem-estar social.
Haverão de dizer que esses ideais são inalcançáveis. Mas, como disse um escri-
tor, nada pode ser alcançado pelo homem que fica sentado e imóvel.
Ainda que seja impossível chegar à perfeição, é comodismo covarde aceitar o ruim.
Como já disse, em minha opinião, o ideal é reconhecer que não somos perfei-
tos, mas isso não deve deixar subjacente a ideia de que não adianta fazer nada. Ao
contrário, sempre haverá o que melhorar, é a lição a tirar. O que não podemos fazer
é ficarmos sentados, esperando que outros deem a solução a um problema que é
de todos, nosso também.
Voltando a ser mais específico, julgo que os conceitos básicos podem ser reu-
nidos, dentro de nossa limitação, em três tributos necessários e suficientes: o sele-
tivo (incidente sobre produtos e serviços eleitos como de tributação conveniente e
diferenciada); o de movimentação financeira; e o territorial. Todos, como disse, são
sobre a disponibilização para o consumo ou o uso.
O imposto seletivo não seria muito diferente do atual Imposto sobre Produtos
Industrializados, o IPI, no Brasil. Ele incluiria o imposto de importação com eventual
majoração de sua alíquota, quando a procedência do produto for de fora do país.
Sua finalidade de arrecadar seria convenientemente temperada com a uti-
lidade social do produto ou serviço tributado. Assim, poderia não incidir sobre
alguns produtos, menos ou mais sobre outros, em função de sua maior ou menor
necessidade. Alíquotas zero, ou diferenciadas, valeriam para alimentos básicos
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No caso de bens de primeira necessidade, o tributo seria bem inferior a dez por
cento, considerando todas as etapas normais de sua comercialização.
Como produtos de uso necessários ficariam isentos de todos os demais impos-
tos, essa porcentagem seria tudo o que o consumidor final pagaria — muito menos
do que é tributado hoje.
Quanto a produtos com muitos insumos, portanto complexos, é justo que se-
jam tributados.
A crítica mais eloquente contra o imposto de movimentação financeira tem a
ver com um possível desestímulo ao investimento, especialmente em ações e aplica-
ções de curto prazo. Também aí o resultado é positivo, por desestimular a especula-
ção de curto prazo, de consequências sociais negativas.
Há uma tributação alta, nessas operações, mas ela é desejável. Não há conveni-
ência em operações especulativas, como ocorre hoje, quando alguns especuladores
compram ações em um dia para vender no mesmo ou no outro, além do que o
imposto não incidiria, quando houvesse transferência apenas de modalidade — tipo
depósito à vista para poupança — quando o titular for o mesmo.
Por outro lado, no sistema proposto, todos os demais tributos incidentes sobre
a operação de curto prazo: estariam eliminados, uma grande simplificação.
Outra crítica frequente é a de que a tributação em “cascata” poderia induzir a
uma “indesejável (???)” verticalização da produção, ou seja, o próprio fabricante do
carro faria, em um exagero exemplificador, desde a extração do ferro, até a venda
do veículo para o comprador. Mas isso, pela possibilidade da “economia” que ocor-
reria pela não incidência do tributo, parece um total despropósito. Se conseguisse
tal economia de escala, seria mesmo socialmente interessante que fizesse a extração
do ferro e a venda do veículo. Só que isso é muito difícil e certamente lhe sairia
muito mais caro.
Outro argumento é o de que o imposto incidiria sobre a exportação de pro-
dutos, desestimulando-a. Outro absurdo. Bastaria haver a isenção sobre os demais
tributos hoje incidentes sobre os produtos exportados, para se ter uma enorme
redução de carga tributária, mesmo com a incidência total do imposto de movi-
mentação financeira. É só pensar na eliminação da Previdência Social para ver o
despropósito dessa afirmação.
A inteligência do imposto sobre movimentação financeira seria a eliminação, e
a substituição por ele, com vantagens, de todos os demais tributos. Para citar ape-
nas um, ele pode substituir o imposto sobre serviços, de péssima qualidade, uma
injusta bitributação do imposto de renda.
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Para ilustrar, vamos imaginar um dono de oficina de funilaria. Hoje ele paga (na
verdade deveria pagar), direta ou indiretamente, um número incontável de tributos.
Vamos nos limitar aos mais importantes, que são o ICMS sobre todos os insumos
que utiliza; o IPTU do prédio que ocupa; o INSS da empresa e retido sobre o salário
do titular e de todos os empregados; o imposto sobre serviços (e taxas de funciona-
mento); além do imposto de renda, se o seu estabelecimento, como se espera, der
algum lucro, depois de tanto já ter pago, para poder trabalhar. Se optou pelo sim-
ples, elimina alguns desses tributos, mas sua incidência é alta para compensá-los.
Para cuidar dessa parafernália burocrática, inclusive se optar pelo simples, o
titular do negócio terá contratado uma pessoa interna para extrair as notas fiscais,
escriturar a contabilidade e um escritório de contabilidade externo que, para estar
a par de toda a vasta legislação que enquadra esse e todos os demais negócios,
cobrará quase o salário de um outro funcionário. Um monumental desperdício de
tempo, dinheiro, esforço, cujo resultado em produtos e serviços úteis ao dono do
carro e à sociedade é zero.
Há mais tributos bem intencionados e mal sucedidos:
A transferência ou circulação de mercadorias, base de incidência para o im-
posto sobre o valor agregado, gera permanentes desavenças sobre onde deve ser
cobrado, se na origem ou no destino. Demanda complexa escrituração de débitos e
créditos para os contribuintes, emissão de notas, fiscalização complexa, levada até
as estradas na checagem de cargas em veículos, que além de custosa não impede
a corrupção. É bem subjetivo fazer a conferência entre o que está na nota e o que
está sendo transportado.
A vantagem apresentada pelos defensores desse imposto, considerado de boa
qualidade por não gerar bitributação, é nula. Ele incide sobre o consumo e, portanto,
não teria a vantagem apregoada de ser um “tributo direto”. A alegada vantagem
de não ser cumulativo é perfeitamente substituível pela incidência única do imposto
seletivo. E o efeito cascata resultará, para o contribuinte, em menor contribuição, sem
custo administrativo interno. Para o governo, dificilmente redundaria no mesmo valor
de arrecadação do imposto sobre o valor agregado, se este fosse pago por todos os
que deveriam pagá-lo. Como isso não ocorre, talvez o resultado final fosse positivo.
Para o fisco é totalmente indiferente fazer incidir o imposto em cada operação
na modalidade “valor agregado”, ou certa porcentagem que resultasse no mesmo
valor, na modalidade “cascata”, acrescido, se for o caso, do imposto seletivo inci-
dente apenas uma vez, sendo nula em relação à arrecadação, portanto a vantagem
alardeada da primeira modalidade.
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Além de simplificar enormemente sua vida, a verdade é que o IMF seria repas-
sado ao consumidor, como hoje são os impostos de renda e de serviços. No caso,
a grande vantagem é o fim de uma burocracia, cujo sentido se perdeu no tempo e
cuja razão foi esquecida.
No sistema atual, o trabalhador sem vínculo de emprego paga o imposto de
renda, taxas de licença, publicidade, IPTU, o imposto sobre serviços, o INSS e outros
tantos. Uma burocracia desestimulante ao empreendedor, que pode acrescer rique-
zas em benefício de todos.
Não demoraria muito para que a contabilidade do pequeno comerciante ou
prestador de serviços fosse eliminada e substituída pelo seu extrato bancário. Uma
simplificação possível e conveniente, já que todos os seus pagamentos e recebimen-
tos estariam ali consubstanciados. Não demoraria para que os bancos oferecessem
uma modalidade de extrato, muito simples, classificando em itens a movimentação
do mês, para que o comerciante pequeno dispensasse, por completo, a necessidade
de contabilidade à parte.
Outra maneira de impedir uma eventual sonegação também é facilmente al-
cançável, sem necessidade de fiscais ou procedimentos burocráticos — ao contrário
— até eliminando vários. A quitação de qualquer valor proveniente de compra de
serviços, produtos, salários ou qualquer outro, contratado ou não, só seria admitida
por lei e, juridicamente validada, mediante comprovação de débito e crédito em
conta bancária do pagador e do recebedor.
Nas relações de emprego, só a transferência bancária do valor seria aceita
como prova de quitação de salário. Além de descomplicar, a medida teria o efeito
secundário de tornar o empregador e o empregado fiscais um do outro.
Não seria mais aceito como comprovação de pagamento qualquer recibo. Ape-
nas seria válida como prova a transferência bancária, sob o argumento já ensinado
pelos romanos de que nemo auditur, propter turpidudinem alegans, ou seja, nin-
guém pode ser ouvido alegando sua própria torpeza, ou seja, ter infringido a lei.
Como a lei proibiria pagamentos sem a intermediação bancária, não fazê-lo
caracterizaria tentativa de sonegação, e o não cumprimento da lei não poderia be-
neficiar seu infrator. O resultado seria menos burocracia.
Qualquer pagamento feito sem incorrer em movimentação financeira seria so-
negação e, assim, não haveria por que fazer recibos, bastando discriminar, se neces-
sário, as parcelas e os eventuais descontos.
Com o IMF todos os demais impostos, inclusive os incidentes sobre transferên-
cia de domínio, seriam eliminados. É o caso do imposto de transmissão intervivos,
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minar conflitos maiores, se a apropriação se desse por outro critério, como se apoderar
pela força. Mas o direito da propriedade tem também a característica de “dever”.
O fundamento social do imposto sobre a propriedade reside na exclusividade,
ou na exclusão de outros. Se alguém tem um direito excludente — ou seja, que
exclui o uso por outras pessoas —, usando ou não, deve retribuir à sociedade a
exclusividade de tê-lo e vê-lo garantido.
Se quero ter uma casa na praia, para ir quando quiser, devo pagar a uma retri-
buição justa, pelo simples fato de estar privando outras pessoas de usarem aquele
terreno, servido de água, luz e esgoto, à beira mar, e de chamar a polícia gratuita-
mente, para me defender de uma invasão. Pago para usá-lo quando quiser. Se o
vender, transfiro ao adquirente a exclusividade e o ônus do imposto.
A base do imposto é o uso, ou o direito de usar. Sustento, como imperativo de
justiça, que deve ter alíquota igual para todos, exatamente para não ferir o princípio
de que todos são iguais perante a lei.
O que deveria variar, e muito, é o valor do imóvel.
O problema decorrente do imposto sobre a propriedade é aquele de determi-
nar qual o valor da base de tributação, ou seja, qual o valor do terreno, ou, melhor
ainda, qual o seu valor tributável. Excluídas as benfeitorias, cuja manutenção já é
um importante ônus ao proprietário, a tarefa fica bem mais fácil, objetiva e exe-
quível. Em meu entender, o programa para definir o valor de um terreno, cabe na
memória de um computador.
Após a elaboração de parâmetros e mapas bem cuidadosos, os dados seriam
inseridos e o resultado apareceria, de imediato. Isso não me parece difícil e facilitaria
muito, pela não necessidade, agora, de avaliar a área construída, sua qualidade e
acabamento, informes muito subjetivos.
O mapeamento por satélite permite um número enorme de informações, mas
outras não serão difíceis de se obter.
No caso de terreno urbano, vários fatores hão de ser considerados, como o
logradouro onde se situa, a disponibilidade de melhoramentos, a largura da rua, a
metragem frontal e de fundos, a distância de centros de serviços e outros critérios
que possam levar a avaliação a ser justa, isenta de influências personalizadas, van-
tagens ou acertos escusos.
A avaliação, salvo mudanças, seria feita apenas uma vez, com a inserção de
variantes, se ocorressem.
Cobranças retroativas de diferenças, se fossem verificados erros, tornariam de-
saconselhável, para o proprietário, vê-lo avaliado abaixo de seu valor real.
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Imagine
Imagine, there’s no countries,
It isn’t hard to do.
Nothing to kill or die for,
And no religion too.
Imagine all the people,
Living life in peace…
John Lennon
N ão acredito em predições. Nosso futuro não está escrito. Nós o faremos. Ele só
poderá ser registrado e discutido, quando for passado, se tornar História.
Nada me impede, entretanto, de sonhar o porvir, pois, para mim, o limite do
sonho é o tamanho de minha imaginação.
Somos donos dos nossos devaneios. Podemos construí-los como quisermos,
sob encomenda, a nosso gosto.
Martin Luther King criou um sonho viável. Não o viu realizado, por pouco.
Hoje, ficaria orgulhoso de ver Barack Obama na presidência dos Estados Unidos.
Uma remissão dos omissos, que denunciou com maestria.
John Lennon “imaginou”, mas sabia que não iria viver seu sonho, mesmo se
não fosse assassinado. Tinha consciência de tratar-se de uma utopia inalcançável
naquele momento, mas, para a sorte de seus admiradores, ele a poetou em notas
musicais que ecoaram sua mensagem pelo mundo todo, ou quase todo.
Agora vou imaginar meu sonho. Sou dono dele. Tem em comum a aspiração,
mas guarda grande desproporção de competência entre seus autores, atores e o
palco restrito em que a minha será recebida. Não tem a pretensão discursiva de M.
L. King ao proferir o seu maravilhoso “I have a dream”, nem a mensagem em forma
de poesia de John Lennon em seu “Imagine”.
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Apenas a ilusão inventada, que gostaria de ver e espero seja real, um dia.
Também imagino:
Em Davos, Suíça, o termômetro está bem abaixo de zero, embora o sol apareça
entre poucas nuvens. Limusines negras chegam sob forte proteção policial e vários
ocupantes saem, aparentemente ansiosos, com o amparo de pessoas treinadas para
impedir que escorreguem no piso gelado da rua.
São presidentes, primeiros-ministros, mandatários de vários países que chegam
para uma conferência que poderá iniciar o processo de mudança do destino de
nosso planeta.
Há centenas de jornalistas, alguns curiosos e dezenas de manifestantes que se
acotovelam nas proximidades, mantidos a distância, sob um forte esquema policial.
Apenas alguns gritos e palavras de ordem são ouvidos na entrada do prédio onde
vai se realizar a conferência.
Existe grande e indisfarçável expectativa sobre o que sairá do conclave. A pro-
posta revolucionária seria aprovada?
Pouco mais de dois anos antes do evento, grupos de representantes governa-
mentais vinham se reunindo para preparar esse encontro, cujo possível resultado
era visto como utópico e inviável por quase todos os analistas e continuou sendo,
mesmo quando, contra todas as previsões, a ideia foi ganhando importantes ade-
sões. Apenas recentemente, parte da mídia começou a acreditar que havia se criado
uma remota possibilidade de ser implantada. Mas a ideia parece que foi ganhando
adeptos entre pessoas insuspeitas, bem intencionadas, mas também de costumeira-
mente cínicos e descrentes na humanidade.
Uma semana antes, os chineses fizeram uma declaração aparentemente con-
traditória, mas que, interpretada com mais rigor, parecia ter implicado na aceita-
ção da ideia.
Muitos levantaram teses contrárias, imaginando complôs e intenções dissimu-
ladas por parte de seus idealizadores, que estariam agindo à sorrelfa, sob o patrocí-
nio de interesses inconfessáveis.
Outros, mais realistas, apenas achavam cedo demais para que a ideia fosse
implantada. “Quem sabe, daqui a alguns anos?”, diziam…
Nenhum jornalista tem acesso à reunião. Apenas câmeras registram o plená-
rio e o palco de eventos. Além de transmitir para todos os cantos do planeta, um
grande telão, instalado em uma área coberta, mostra as imagens do interior do
prédio onde tudo ocorrerá.
A proposta é tão revolucionária que mesmo os mais crentes estão céticos. No en-
tanto, ela ganhou corpo e veio se consolidando, por razões aparentemente inexplicáveis.
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por uma nova federação mundial, democrática e livre, submetida a um tribunal uni-
versal de segurança e a uma legislação, ou carta de princípios, em que os direitos
dos estados signatários sejam respeitados e garantidos.
Longa pausa… e aplausos.
— A Carta Universal dos Direitos Humanos é o documento maior. A base de
nossa inspiração — diz.
— A ela irá se somar, agora, a não menos importante “Declaração de Direitos
dos Estados”, com os seguintes principais pontos:
— Compromisso de todos os estados signatários, de cumprimento integral
da Declaração dos Direitos Humanos, especialmente com relação à defesa da li-
berdade de pensamento, imprensa, religião e proibição de toda e qualquer forma
de discriminação;
— A eleição do princípio de que o governo é fruto da vontade de seu povo e
será escolhido de forma democrática, periodicamente, com a garantia de represen-
tação a todas as correntes políticas e de opinião;
— Renúncia a qualquer tipo de guerra ou agressão a outro estado, sob qual-
quer pretexto ou motivo, outorgando à força mundial a defesa da garantia de sua
integridade e manutenção da paz, da liberdade e da democracia;
— Acato a todas as decisões tomadas pelos tribunais internacionais, especial-
mente o Tribunal de Segurança Internacional;
— Aceitação das regras de comércio aprovadas pela agência mundial de co-
mércio;
— Respaldo financeiro à Federação Mundial de Estados, concorrendo com as
contribuições que lhe caibam.
E continua a oradora:
— Estamos tomando medidas realistas para que a adesão à federação seja
extremamente conveniente a todos os países que optarem.
— Esse realismo significa não apenas aceitar a decisão voluntária de se juntar a
nós. A opção virá recheada de vantagens e a negativa de grandes problemas.
— Não iremos nos negar a negociar com os países não membros, de imediato.
Mas vários produtos passarão a ter sua comercialização proibida, como armamen-
tos, outros serão sobretaxados na exportação, e barreiras tarifárias altas serão im-
postas a seus produtos e serviços, até a proibição futura e total de negociar entre os
países membros da federação e os não membros.
— Não temos o direito de impor a adesão a quem não queira entrar, mas te-
mos o dever de tratar de forma distinta os estados que não se comprometerem com
a paz e o bem-estar da humanidade.
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5) Criação de cinco agências para atuação nos países da federação, com caracterís-
ticas de empresas públicas e ingresso por concurso, em seus quadros a saber:
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6) Colaboração financeira equivalente a três por cento, por dois anos, passando
a quatro por cento, por mais dois, e depois a cinco por cento por mais dois
anos, do produto interno bruto de cada país membro, visando à sustentação
da federação, das forças armadas e à criação de tribunais, agências interna-
cionais ou empresas públicas de prestação de serviços novas, para atuação
nos países membros. Decorridos seis anos da fundação, nova assembleia de-
finirá o valor atualizado de contribuição de cada estado membro;
— Senhores:
— Nosso interesse e objetivo são de que, um dia, todos os estados de nosso
planeta venham a participar da federação.
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— Não lhes vou negar que os objetivos visam tornar extremamente conve-
niente a seus países a adesão à federação ou, se preferirem, altamente inconve-
niente a não participação.
— Não vou lhes negar que a estratégia sugerida na proposta, a curto e médio
prazos, é conseguir, paulatinamente, que os governos recalcitrantes venham a par-
ticipar de nossa organização. É colocá-los na situação em que seu próprio povo os
forçará à adesão, tais as vantagens que terão.
— Estamos sendo realistas quanto a nossos objetivos, pois estaremos come-
çando com a destinação de apenas três por cento do produto interno bruto de cada
um de nossos países, o que me parece bem pouco, mas prudentemente exequível
como fase inicial, tendo em vista que a participação de nossos governos no PIB
mundial é hoje, da ordem de mais de vinte e cinco por cento, em média.
— Ao destinar pouco mais de dez por cento das receitas de nossos governos
à federação, iremos imediatamente economizar com despesas militares, em uma
escala progressiva, pois o objetivo da federação é que as forças armadas nacionais
se tornem desnecessárias vindo a agir apenas internamente na prevenção do terro-
rismo e do crime.
— Não tenho dúvidas de que os céticos vão duvidar de nossos propósitos e achar
que toda a proposta não passa de uma tentativa dos países grandes de assumir a he-
gemonia mundial, criar um comando único globalizado, sob sua influência.
— Mas eu garanto que não é esse nosso propósito. Muito ao contrário. Ne-
nhum outro país estará perdendo mais soberania do que outro. Estaremos, prati-
camente, depondo armas, pacificamente, com vista à criação de um único exército
mundial, do qual todos farão parte, minoritariamente.
— O desafio que enfrentaremos é grande e, por certo, vem em detrimento do
interesse de grupos muito poderosos, especialmente aqueles que vivem da guerra
e de seus preparativos.
— Temos muito trabalho pela frente, começando por nos convencer de que a
ideia é exequível. Eu já tenho certeza de que é.
Júlia Carvalhal Pontes — Fui incumbida pela comissão, da qual sou porta-voz,
de assegurar nosso compromisso irrevogável nesta luta.
— Ela será vitoriosa.
— Conclamo a todos os homens e mulheres de boa vontade, amantes da paz,
no mundo inteiro, que se juntem a nós, nesta maravilhosa jornada que se inicia.
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