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a conversa como um momento privilegiado de interação professor-aluno
Mariana Botti de Cunto (FE-USP)
Introdução:
A partir das discussões e das leituras realizadas ao longo do curso de
Metodologia da Linguística I, viu-se que o espaço da sala de aula ainda é muito
pouco privilegiado quer no âmbito dos estudos sobre a educação, quer no âmbito
dos estudos linguísticos. Também pudemos comprovar isso por meio do trabalho em
grupo desenvolvido esse semestre, no qual foi feito um levantamento de artigos de
periódicos tanto da área da Educação quanto da Linguística sobre as questões
ligadas à sala de aula. Dos diversos periódicos selecionados e artigos pesquisados,
verificamos que poucos elegeram a sala de aula como objeto de estudo.
Mesmo que haja, naturalmente, pesquisas sobre o tema, de acordo com Rojo,
“a aula tem sido tratada em pesquisas e descrições, ou como atividade didática –
pelas disciplinas ligadas à área de Educação – [...] ou como um tipo específico de
interação face a face ou conversação, por certas áreas de investigação, como a
Sociolinguística Interacional e a Micro-Etnografia da Fala. No primeiro caso, dá-se
atenção aos objetos e métodos de ensino e sua organização e ao seu impacto na
aprendizagem. No segundo, às pautas de interação, à estrutura de participação, às
trocas conversacionais em sala de aula. Assim, nas pesquisas, a tendência é que as
análises dos temas e da organização formal (conversacional) da aula mantenham-se
separadas” (Rojo, 2007a, no prelo). Em outras palavras, a maioria dos estudos feitos
até o momento sobre a sala de aula leva em consideração ou a sua dimensão
didática, ou a sua dimensão linguística, e se esquece de que é a própria linguagem,
o discurso, “que dão materialidade ao processo de ensino-aprendizagem”, o que
revela a necessidade de se investigar como a dimensão didática se relaciona com a
dimensão linguística.
Esta é a proposta deste artigo: verificar como as questões didáticas
influenciam a produção linguística, e como é construído o discurso com finalidades
didáticas, isto é, deseja-se tratar da interação entre professor e aluno na sala de
aula, atentando sempre para o fato de que a comunicação nesse espaço visa,
prioritariamente, o ensino e a aprendizagem. Ele terá por base a observação e a
análise de uma atividade específica desenvolvida regularmente em uma turma de
primeiro ano do ensino fundamental de uma escola municipal da cidade de São
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Paulo, a saber: o momento da conversa. Apesar de serem muitas as atividades
desenvolvidas na escola por essa turma, essa foi selecionada, pois além de ocorrer
todos os dias, marcando o início do período de aulas, é também um momento em
que a interação oral entre a professora e os alunos com finalidades claramente
didáticas é privilegiada.
As práticas escolares acompanhadas serão abordadas a partir dos conceitos
de ferramentas e de gestos didáticos, apresentados, respectivamente, por
Schneuwly (2000, 2001) e Aeby Daghé & Dolz (2007), na medida em que é por meio
desses recursos que se dá a interação entre professor e aluno na sala de aula.
1. Contexto de investigação:
1.1 - Lócus:
A escola municipal em que foi realizado o estágio, durante quatro meses, chama-
se EMEF Desembargador Theodomiro Dias, e fica na Praça Dr. José Oria, na Vila
Sônia, um bairro de classe média localizado na zona sul da cidade de São Paulo,
próximo ao estádio de futebol do Morumbi, e às favelas de Paraisópolis e do Jardim
Colombo.
A escola, cujo espaço passou por uma revitalização no início do ano, tem três
andares. No andar térreo, encontra-se a área administrativa, composta pela
secretaria, pela sala da diretora e por uma saleta de atendimento aos pais. Ao lado
dela, localiza-se a sala de leitura. Subindo as escadas para o primeiro andar, chega-
se a um amplo espaço utilizado como refeitório e pátio. É nesse andar que ficam a
sala da coordenação e a sala dos professores.
No segundo andar, encontram-se treze salas de aula. No período da manhã,
elas são ocupadas pelos 420 alunos do ensino fundamental II, distribuídos em treze
turmas de 5ª a 8ª série. No período da tarde, elas são ocupadas pelos 392 alunos do
ensino fundamental I, que estão divididos em doze turmas de 1ª a 4ª série. Já no
período da noite, por sua vez, há uma quantidade menor de alunos. São no total 156
estudantes de EJA, separados em quatro turmas. Além das salas de aula, há ainda,
no segundo andar, duas salas equipadas de forma diferenciada para o
acompanhamento pedagógico: o SAP (Sala de Apoio Pedagógico), e o SAAI (Sala
de Apoio ao Aluno de Inclusão). No final do corredor das classes, ficam ainda a
brinquedoteca, e uma saleta para os inspetores. Para atender todo esse contingente
de alunos (968 alunos matriculados), a escola conta com o trabalho de sessenta e
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oito funcionários, sendo vinte e quatro professores do Ensino Fundamental I, e vinte
e oito professores do Ensino Fundamental II, totalizando cinquenta e dois docentes.
Apesar da boa infraestrutura que a escola apresenta, há alguns aspectos da
sua organização espacial que merecem ainda uma observação quando se trata da
interação e da circulação de textos e discursos no ambiente escolar. O fato de o
setor administrativo localizar-se no andar térreo dificulta bastante a comunicação
dos funcionários dessa área com as coordenadoras e os professores, cujas salas
encontram-se no primeiro andar, e até com os próprios alunos. Mesmo a
comunicação entre as coordenadoras e os professores pode ser afetada
eventualmente, posto que, durante a maior parte do dia letivo, os docentes se
encontram no segundo andar. Vale ressaltar, no entanto, que a equipe pedagógica
reúne-se quatro vezes por semana para a Jornada Especial Integral de Formação, o
que faz das JEIFs um espaço privilegiado para a comunicação entre o corpo
docente e a coordenação, apesar de a direção da escola não participar dessas
reuniões com a mesma freqüência.
1.2 - Sujeitos:
Circulam pela escola, diariamente, mais de mil pessoas, entre alunos e
funcionários. A grande maioria mora no bairro, ou em outros bairros próximos à
escola. É interessante pontuar, para a caracterização dos sujeitos, mesmo breve,
que a região de São Paulo onde se localiza a EMEF é popularmente conhecida
como “Morumbi”, denominação ampla que não permite distinguir os diversos bairros
que formam essa área da cidade, e as marcantes diferenças sociais que há entre
eles. Se, por um lado, nos deparamos com grandes prédios e condomínios de luxo
nessa região, por outro lado, não há como ignorar a presença de duas grandes
favelas – Paraisópolis e Jardim Colombo - bem ao lado deles. Em sua maioria, é
este o público que a escola municipal atende, e não aos filhos das classes
economicamente privilegiadas, que frequentam, preferencialmente, os grandes
colégios de elite do Morumbi. É válido considerar onde moram os alunos, uma vez
que isso permite ter uma noção de qual é o perfil socioeconômico dominante das
crianças e jovens que vão à escola onde foi feito o estágio. Como já foi dito
anteriormente, há alunos que não são moradores das favelas. Também a equipe
gestora e os docentes pertencem a uma camada social economicamente mais
favorecida. Todavia, este parece ser um traço característico da educação pública na
3
cidade de São Paulo: mesmo em outros bairros, em outras regiões da cidade, a
tendência é que as escolas municipais e estaduais recebam os alunos provenientes
dos níveis socioeconômicos mais desfavorecidos.
1
ROJO, R. H. “Gêneros do discurso no Círculo de Bakhtin – ferramentas para a análise
transdisciplinar de enunciados em dispositivos e práticas didáticas”. p.11.
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excursão para o Playcenter, sobre as Olimpíadas de Matemática das Escolas
Públicas 2010, sobre a carteirinha de estudante e sobre o bilhete único. Por fim, há
também nesse espaço um grande quadro negro que os alunos utilizam para deixar
pequenos recados uns para os outros.
A sala dos professores é outro espaço em que a linguagem escrita se concentra.
Lá é possível ter acesso às edições do Diário Oficial, a informações sobre alguns
cursos extras para os professores e também às notícias mais recentes sobre o
SIMPEEM (Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São
Paulo). Há, logo na entrada, um mural no qual se encontram informações sobre os
horários das aulas e sobre a grade horária de cada uma das turmas. Nele estão
fixados também uma lista com os nomes dos professores coordenadores, e um
comunicado sobre algumas posturas disciplinadoras que devem ser tomadas em
sala de aula. Além disso, há um informe sobre a campanha de vacinação contra a
gripe suína, bem como o calendário do mês, e algumas reportagens recentes sobre
assuntos relacionados à Escola. Sobre a pia, encontra-se o calendário do SIMPEEM
com o planejamento anual de 2010, e alguns informes sobre normas e cuidados de
segurança que devem ser tomados no ambiente de trabalho.
No andar superior, pelos corredores que dão acesso às salas de aula,
encontram-se, atualmente, cartazes com desenhos caprichados das bandeiras dos
países que participarão da Copa do Mundo, e também pequenos textos escritos à
mão com informações sobre esses países.
O espaço da sala de aula também é rico em textos, que circulam nas mais
variadas formas. No mural ao lado da porta, estão fixados uma lista com os nomes
de todos os alunos da classe e um calendário, que visam auxiliar os alunos nas
atividades propostas pela professora. Também foi colocado ali um grande cartaz de
papel craft, onde a professora registrou, com a ajuda dos alunos, os combinados
quanto à feitura da lição de casa. Já sobre a lousa, encontra-se o tradicional
alfabeto, bastante útil para auxiliar os alunos no reconhecimento das letras. Ao lado
da lousa, há dois grandes armários nos quais são guardados diversos materiais
didáticos, entre eles, gibis da Turma da Mônica e do Sítio do Pica-Pau Amarelo, que
os alunos podem escolher e ler à vontade nos intervalos entre as tarefas, além dos
livros de histórias da professora, que vem compartilhando narrativas diversas com
as crianças no decorrer do semestre. Naturalmente, os textos também estão
presentes nas folhinhas de atividades, e nas circulares que a escola frequentemente
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envia aos pais. Conclui-se, portanto, que assim como os discursos orais, a
linguagem escrita também circula pelo ambiente escolar sob a forma dos mais
variados gêneros.
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semanalmente levando um filme do qual gostam; e também um momento reservado
para atividades livres, em que os alunos podem desenhar à vontade, escrever
cartinhas e pintar os livros de colorir que trazem de casa. No decorrer da semana, a
ordem das atividades varia, no entanto, o início do período de aulas é sempre
marcado por um momento de conversa, que acontece de maneiras diferentes, e tem
diversos objetivos. As tarefas envolvendo escrita e/ou leitura e o sistema numérico
também figuram na rotina todos os dias, e são intercaladas com atividades mais
descontraídas, de modo que os alunos não se desgastem demais.
Bernard Schneuwly, em seu texto “As ferramentas do professor – um ensaio
didático”, defende que o ensino é também um trabalho, ao contrário da concepção
popular. Ele consiste na ação específica de um profissional – o professor – sobre os
modos de pensar, falar e fazer de seus alunos, transformando-os. Como os outros
tipos de trabalho, o ensino também possui suas ferramentas próprias, isto é, meios
pelos quais os professores desempenham sua atividade. Elas são fundamentais na
medida em que permitem que o objeto de estudo se faça presente na sala de aula, e
possa ser apreendido pelos alunos. Para tal, são importantes tanto as ferramentas
de ordem material, quanto as de ordem discursiva, das quais o professor se vale
para contextualizar aquelas.
A sala de aula de alfabetização na qual foi desenvolvido o estágio está repleta
dessas ferramentas, algumas, inclusive, já foram mencionadas quando se tratou dos
textos presentes na classe. São elas: a lista com os nomes dos alunos, que fica
exposta no mural, e auxilia-os nas atividades de escrita; o calendário, cujo objetivo é
ajudar nas tarefas de matemática, além de fornecer a data; as letras do alfabeto
sobre a lousa; as folhinhas de atividades preparadas pela professora; os livros
didáticos de português e de matemática; os livros de histórias; e mesmo a lousa,
onde são escritos exemplos e explicações. Todos esses suportes materiais são
utilizados de forma sistemática, e cumprem duas funções importantes no processo
de ensino e aprendizagem: a presentificação do objeto de estudo em sala de aula, e
a sua transmissão por meio de tópicos. Também é preciso mencionar as
ferramentas discursivas empregadas com mais frequência, posto que é por elas que
a professora dá sentido às ferramentas materiais, formando, nessa articulação, a
sequência de ensino propriamente. A exposição oral, a explicação das atividades e a
exemplificação na lousa são algumas das ferramentas discursivas que aparecem de
modo mais recorrente na sala de aula.
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Tanto as ferramentas materiais quanto as discursivas são inseridas nesse
ambiente por meio do agir do professor, ou seja, por meio de seus gestos
profissionais ou didáticos. Assim como as ferramentas, esses gestos visam
transformar os objetos de estudo a ensinar em objetos ensinados, e têm como base
a interação entre o professor e seus alunos para a co-construção desses objetos.
Aeby Daghé e Dolz (2007) apresentam os seguintes gestos, que também são
verificados na turma de primeiro ano acompanhada:
• o apelo à memória: quando a professora relembra alguma atividade
já realizada ou algum tema abordado para apresentar uma nova
tarefa aos alunos. Esse gesto visa estabelecer uma coerência entre o
trabalho que é desenvolvido em uma dada aula e o todo da
sequência de ensino. Ele foi bastante utilizado, por exemplo, durante
o desenvolvimento de um projeto sobre a dengue, do qual fizeram
parte várias atividades, como uma contação de história, atividades
individuais em folhinhas extras, e a confecção, em grupos, de
ilustrações, para a realização de uma exposição na escola.
• a formulação de tarefas: cujo objetivo é presentificar o objeto por
meio de instruções. É por meio dele que a professora introduz todas
as atividades de escrita e de matemática, sendo a lousa um recurso
que pode auxiliar muito na sua realização.
• o emprego de dispositivos didáticos: gesto caracterizado pela
utilização dos mais diversos instrumentos de ensino, e que se
verifica, por exemplo, no aproveitamento que a professora faz de
parlendas, músicas, passatempos e jogos, como ferramentas
importantes no processo de alfabetização.
• a regulação: que se dá na forma de sondagens realizadas ao longo
de todo o semestre, para conferir as hipóteses de escrita dos alunos,
e seus conhecimentos sobre o sistema numérico (regulação interna),
e também quando os alunos fazem as atividades em sala de aula,
que vão sendo verificadas e corrigidas individualmente pela
professora, que circula entre as carteiras (regulação local).
• a institucionalização: que é observada quando a professora retoma
as diferenças entre os números e as letras, ou explicita o grupo das
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vogais, distinguindo-o do das consoantes, chamando a atenção dos
alunos para a necessidade de combinar as consoantes e as vogais a
fim de formar as sílabas das palavras. Desse modo, ela reforça
conceitos que poderão ser usados pelos alunos em outras
atividades.
Ao se caracterizar as práticas de interação no interior da sala de aula, é válido
abordar as ferramentas e gestos empregados com maior frequência, posto que são
eles os responsáveis por mobilizar a interação verbal entre a professora e os alunos
em maior ou menor grau, a depender do tipo de ferramenta e de gesto.
Em uma turma de alfabetização, a utilização da interação oral é intensa para
a realização de todos os gestos profissionais, como aponta o texto “Escrita e
trabalho docente na alfabetização”. De fato, nesse primeiro ano, são pouquíssimas
as atividades que exigem que os alunos copiem coisas da lousa 2, ou sigam
instruções escritas. A grande maioria das atividades é impressa e, posteriormente,
colada no caderno, ou é feita nos livros didáticos. Apesar de todas as atividades
apresentarem um enunciado explicativo, a professora sempre dá as instruções
oralmente, utilizando a lousa apenas como suporte, para mostrar aos alunos o que
deve ser feito.
Uma vez que é a interação oral que mais se destaca na sala de alfabetização,
é curioso observar que ela se dá, na maioria das vezes, por meio do jogo de
pergunta e resposta entre a professora e os alunos, que juntos presentificam o
objeto de estudo e refletem sobre as partes que o constituem. Na medida em que os
gestos didáticos da professora se realizam pelo par pergunta/resposta, eles não
dependem unicamente dela, mas também da colaboração dos alunos,
caracterizando um estilo dialógico de docência. Por poderem participar da
construção do objeto de estudo em parceria com a professora, os alunos têm um
papel mais ativo no processo de ensino e aprendizagem, e esta se faz, certamente,
de modo mais significativo para eles.
O texto de Anna Christina Bentes, “Sobre as múltiplas e diferentes oralidades
no espaço escolar: rediscutindo o lugar das práticas e dos gêneros orais na escola”,
também chama a atenção para o fato de que o contexto de ensino das séries iniciais
colabora para uma relação mais próxima e significativa entre professor e aluno, e
2
A única coisa que costuma ser copiada no caderno é o cabeçalho com a data. Nas demais ocasiões
em que a lousa é utilizada, ela serve apenas como suporte para que os alunos façam a correção das
atividades junto com a professora.
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acrescenta que essa relação é muito importante para o desenvolvimento da
competência comunicativa das crianças.
Mesmo que a interação oral entre a professora e os alunos seja privilegiada
na turma acompanhada, deve-se levar em consideração que o diálogo que se
estabelece em sala de aula não é propriamente uma conversa espontânea, mas sim
uma conversação assimétrica, na qual a professora monopoliza o turno, controlando
as participações. Em outras palavras, ela é a responsável por fazer a abertura, a
distribuição dos turnos e o fechamento da conversação, procurando garantir que a
aula seja proveitosa, do ponto de vista do ensino e da aprendizagem. Para tal,
também é necessário que os alunos colaborem, aprendendo como e quando intervir
nesse diálogo assimétrico. Entretanto, muitas vezes, não é isso que se observa na
classe do primeiro ano, sendo bastante comum a presença de outro aspecto que
marca a interação entre professor e alunos, e que é apontado por Luiz Antônio da
Silva, em “O diálogo professor/aluno na aula expositiva”: a interrupção. Nota-se que,
em geral, as interrupções dos alunos3 são bastante prejudiciais para o
desenvolvimento da aula. Elas são inadequadas, pois, frequentemente, não têm
nenhuma relação com o tópico estudado, desviando tanto a atenção dos demais
colegas quanto a da professora que, às vezes, acaba por prolongar a interrupção
para chamar a atenção da turma. Mesmo quando relacionadas ao conteúdo da aula,
ainda assim as interrupções podem ser inadequadas, na medida em que um aluno
desrespeita a vez do outro de falar, ou dá uma resposta sem refletir previamente
sobre ela, apenas para ser o primeiro a participar. Todavia, talvez seja possível
considerar essas interrupções inadequadas como parte importante do processo de
desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos, sendo uma questão de
tempo até que eles aprendam a interromper de maneira mais apropriada.
Após a apresentação desse panorama geral sobre as práticas de interação
que constituem o dia-a-dia da turma do primeiro ano, na seção seguinte será
focalizada uma atividade específica da rotina: o momento da conversa. Ela será
abordada levando-se em consideração, principalmente, as ferramentas didáticas
utilizadas, os gestos profissionais realizados e o par pergunta-resposta.
3. O momento da conversa:
3
Diversas vezes eles pedem para ir ao banheiro, ou para beber água; solicitam algum material de
que necessitam para a realização de uma atividade, como lápis ou borracha; ou se queixam sobre
algum colega que os esteja importunando, apenas para citar alguns exemplos.
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É certo que a interação verbal entre professor e aluno se dá a todo momento
em uma sala de aula, entretanto, o curioso é que, nunca antes, quer em minha
experiência como aluna, ou em minha experiência como estagiária, havia me
deparado com um momento da aula reservado especialmente para esse fim, daí o
interesse em olhá-lo mais de perto em um artigo voltado especificamente para a
questão da interação.
De fato, essa novidade está relacionada, em parte, às próprias orientações
didáticas do Projeto Ler e Escrever. No Guia de Planejamento e Orientações
Didáticas para o professor alfabetizador da 1ª série v.1 4, fornecido pela Secretaria
Municipal de Educação às escolas que acolhem o projeto, encontram-se elencadas
as expectativas de aprendizagem relacionadas à comunicação oral. São elas:
• Participar de situações de intercâmbio oral, ouvindo com atenção e
formulando perguntas sobre o tema tratado.
• Planejar sua fala, adequando-a a diferentes interlocutores em situações
comunicativas do cotidiano.
Uma vez que os Parâmetros Curriculares Nacionais – Documento de Língua
Portuguesa também apontam para a importância de um trabalho sistemático com a
linguagem oral, de modo a ampliar a competência linguística dos alunos nas mais
diversas situações comunicativas, o guia sugere que os professores alfabetizadores
proponham atividades, pelo menos duas vezes por semana, que privilegiem a
comunicação oral.
Sendo assim, a conversa torna-se um momento de interação
institucionalizado, uma parte específica da aula em que a comunicação oral ganha
um status diferenciado, na medida em que tem sempre o seu lugar garantido na
rotina da turma. Entretanto, como se verá a seguir, ela não visa apenas desenvolver
as habilidades comunicativas das crianças, mas é utilizada, pela professora, para
cumprir objetivos didáticos diversos, como demonstram as anotações feitas em sala
de aula5 e reproduzidas no anexo (p. 16). Entre 01/03/2010 e 28/05/2010, foram
registrados 29 momentos de conversa mais significativos6, sobre os mais variados
temas, e realizados em ambientes diferentes (sala de aula ou brinquedoteca). Na
4
Consultado por meio do site: http://lereescrever.fde.sp.gov.br
5
Vale ressaltar que não foi possível fazer anotações muito detalhadas, dado o caráter do estágio, que
exigia uma maior prontidão e participação do estagiário em sala de aula.
6
Estou denominando “mais significativos” os momentos em que a interação entre a professora e os
alunos foi mais extensa.
11
grande maioria das vezes, eles se deram logo após a chamada e a escrita da rotina
na lousa, demarcando nitidamente para os alunos o início do período de aulas.
Como dito anteriormente, o momento da conversa pode exercer as mais
variadas funções. Ele é de grande importância, por exemplo, para presentificar o
objeto de estudo (sistema de escrita e sistema numérico), introduzindo os conceitos
necessários para a realização das tarefas que se seguirão naquele dia, como se
verifica nos registros 1, 2 e 4 abaixo. A conversa também é aproveitada para
abordar questões como a falta de disciplina (ex: registro 3), bem como para levantar
sugestões dos alunos e propor soluções para alguns conflitos vividos cotidianamente
(ex: registro 23). Esse momento também pode atuar para cumprir o gesto da
regulação, quando os alunos vão à frente da classe para apresentar a lição de casa
ao resto da turma (ex: registros 6 e 14). Outra atividade que se realiza por meio da
conversa é a reconstituição narrativa dos filmes assistidos nas aulas de vídeo, na
qual a professora retoma, com a ajuda dos alunos, os trechos mais importantes da
história vista, procurando aproveitar algum elemento diretamente relacionado ao dia-
a-dia da turma (ex: registros 5, 18 e 25). Todavia, o momento da conversa parece
ser mais frequentemente usado para que os alunos compartilhem suas experiências
com os demais, aprendendo a se colocar em público e a respeitar os colegas numa
situação comunicativa, como se lê nos registros 7, 12, 20, 21, 22 e 24. É
interessante observar as modificações que a professora introduz, sempre visando
algo diferente. Se em 7 há uma preocupação maior com o desempenho oral dos
alunos, atentando-se para a articulação da voz, por exemplo, já em 22 a professora
se vale da mesma situação para propor uma atividade de leitura e de reflexão sobre
os sistema da escrita.
Voltando ao Guia de Planejamento do Projeto Ler e Escrever, verifica-se que
essas diversas atividades realizadas no momento da conversa estão de acordo com
as orientações didáticas, contemplando as situações de aprendizagem propostas ao
professor alfabetizador, para o desenvolvimento da competência comunicativa de
seus alunos. Quando a professora pede a participação dos alunos para introduzir
algum tópico relacionado ao sistema de escrita ou aos números, ela proporciona
situações “para que os alunos possam aprender a ouvir com atenção crescente,
intervir sem sair do assunto tratado, formular e responder a perguntas, explicar,
manifestar opiniões próprias e respeitar a dos outros”. Quando ela retoma a história
de um filme assistido, ou a narrativa de uma história lida, ela incentiva os alunos “a
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selecionar os aspectos relevantes da história, necessários à compreensão da sua
narrativa, aprendendo a conhecer, utilizar e se apropriar de algumas das
características discursivas do texto-fonte”. Ao chamar os alunos à frente da classe,
para que compartilhem um pouco das experiências vividas durante o final de
semana, a professora possibilita que eles “manifestem interesse crescente por ouvir
e expressar sentimentos, experiências, idéias e opiniões, além de aprenderem a
respeitar modos de falar diferentes do seu, e a apreciar tanto a sua produção oral
quanto a dos colegas, observando e avaliando os elementos necessários para a
compreensão de quem ouve, e a adequação da linguagem utilizada à situação
comunicativa”. Por fim, quando o momento da conversa é aproveitado para a
verificação e apresentação das lições de casa, os alunos têm a possibilidade “de
falar de maneira mais formal, aprendendo, assim, a utilizar apoios escritos” (o
caderno de lição de casa) em uma situação de comunicação oral.
Uma vez que está inserida na sala de aula, e no trabalho da professora, a
conversa também se realiza por meio de ferramentas e de gestos didáticos, que são
responsáveis por nortear, o tempo todo, a interação professor-aluno. Quanto às
ferramentas, nota-se um predomínio daquelas de ordem discursiva, como já era de
se esperar de um momento privilegiado de interação verbal. Em diversas ocasiões,
como nos registros 2, 8 e 9, a professora lança mão da explicação e da
exemplificação, sendo que nesses dois casos a lousa se mostra um aliado
importante. Entretanto, o dispositivo discursivo que figura mais constantemente
nesse momento da rotina é, sem dúvida, o jogo de pergunta e resposta entre a
professora e os alunos. Nos registros 1, 2 e 4, por exemplo, é possível observar
algumas das perguntas da professora. Apelando à memória dos alunos, ela sempre
parte dos seus conhecimentos prévios, para introduzir algum tópico relevante,
aproximando-os, desse modo, do objeto de estudo. Vale lembrar que o par dialógico
é uma estratégia de interação valiosa em sala de aula, uma vez que pode cumprir
diversas funções, como ilustra o texto “Pergunta-resposta: como o par dialógico
constrói uma aula na alfabetização”. De acordo com os autores, as perguntas da
professora não servem exclusivamente para presentificar o objeto de estudo, e
mantê-lo vivo na classe, mas também para retomar o conteúdo de estudo de outras
aulas, para verificar o canal de comunicação com os alunos, e o grau de
compreensão da turma, para obter informações novas, para pedir esclarecimentos, e
também como forma de regulação, para conduzir os alunos a uma ideia inversa. Em
13
outras palavras, é por meio do jogo de perguntas e respostas entre a professora e
os alunos que se concretizam os gestos profissionais, elencados na segunda seção
do presente artigo. No registro realizado no dia 01/03/2010, por exemplo, aparecem
predominantemente dois gestos: a institucionalização, no momento em que a
professora estabelece a diferença entre as letras e os números, e o emprego de
dispositivos didáticos, representado pelo uso do calendário para tratar dos números.
Já na conversa feita em 07/04/2010, essa mesma ferramenta material é utilizada no
gesto de apelo à memória, em que a professora recorda por meio de perguntas
feitas aos alunos a utilização do calendário. A antecipação didática, por sua vez,
está clara no episódio registrado no dia 12/03/2010, no qual a professora se vale do
filme FormiguinaZ para introduzir o projeto sobre a dengue e o seu mosquito
transmissor.
Vê-se, por meio desses poucos exemplos, que os gestos didáticos que
figuram no momento da conversa também requerem o emprego de ferramentas
materiais das mais diversas. Nos registros 1 e 14, aparece o calendário. No registro
2, diferentemente, a professora usa um enorme cartaz com os nomes de todos os
alunos escritos em grandes letras bastão, para propor uma reflexão sobre o sistema
da escrita. Em 22, aparecem as plaquinhas com os nomes dos alunos, como recurso
para chamá-los à frente da classe, a fim de compartilharem o que fizeram no final de
semana. Em 4, finalmente, o material escolhido pela professora é um estojo de
canetinhas coloridas, que ela aproveita para refletir com os alunos sobre os números
e as quantidades.
4. Considerações finais:
Na seção anterior, procurou-se evidenciar a importância do momento da
conversa na rotina de uma turma de primeiro ano do ensino fundamental. É por meio
dele que se dá voz aos alunos e a sua individualidade, permitindo que eles
expressem opiniões e compartilhem experiências pessoais. Viu-se que a conversa é
necessária não apenas para que os alunos desenvolvam sua competência
comunicativa, aprendendo a colocar bem a voz, e a planejar a sua fala, bem como a
respeitar a fala do outro, mas que ela também pode ser utilizada pela professora
para uma porção de outras finalidades didáticas, que se realizam por meio dos
gestos e das ferramentas profissionais do professor, como exemplificado e discutido
anteriormente. A intensa interação entre a professora e seus alunos nos momentos
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de conversa é fundamental para que juntos eles possam construir o objeto de
estudo, que se torna, desse modo, muito mais vivo e significativo no interior da sala
de aula.
É uma pena, no entanto, que com o passar dos anos escolares, essa prática
tenda a diminuir drasticamente. Se, por um lado, ela se faz bastante presente nas
séries iniciais, por outro lado, conforme os alunos vão se apropriando da leitura e da
escrita, tornando-se capazes de realizar as tarefas de forma cada vez mais
autônoma, parece que alguns professores passam a privilegiar cada vez menos a
interação professor-aluno, transformando os suportes materiais, como a lousa, os
livros didáticos e os cadernos, nos principais intermediadores da relação professor-
aluno. Mas será que nesse caso se dá verdadeiramente o processo de construção
do conhecimento?
5. Referências bibliográficas:
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1-) Momento da conversa em 01/03/2010 (2ª-feira, na sala de aula):
P: Para que servem os números?
Algumas respostas dos alunos: para contar, para saber a idade, para saber qual dia
é, para calcular, fazer contas de matemática.
P: Dá para escrever uma palavra usando números? As letras são iguais aos
números?
As: NÃO!
P: O que usamos para escrever as palavras: letras ou números?
Em seguida, a professora aborda as utilidades do calendário:
P: Por que alguns dias estão em vermelho?
As: São os dias em que não vamos para a escola.
P: O calendário também serve para reconhecermos os números, ele irá ajudar no
reconhecimento da escrita dos números.
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Usando canetinhas coloridas, a professora faz perguntas de adição e
subtração para os alunos.
P: Como vocês sabiam quantas canetinhas eu estava segurando?
P: Quando eu colocava mais canetinhas, vocês precisavam contar todas de novo, ou
vocês guardavam o número na cabeça e contavam a partir das novas?
P: Eu posso usar os meus dedos para contar também? – Ela pede para que os
alunos mostrem as suas idades com os dedos das mãos e une as mãos de dois
alunos, perguntando qual é a quantidade total mostrada.
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silêncio e prestar atenção. Todos terão a sua vez. A professora precisa chamar a
atenção de alguns alunos algumas vezes, para que eles parem de conversar e/ou
brincar, e respeitem o colega que está falando, pois, na vez deles, os outros
estavam mais atentos. As crianças selecionam episódios especiais: visita de primos
ou amigos, e as brincadeiras que fizeram com eles; brincadeiras com fantasias;
visita a um lugar diferente (ex: escola de música, shopping); brincadeira com vídeo-
game, carrinho de corrida, Barbie, de pega-pega e de escolinha. Não há uma
preocupação da professora em corrigir o modo como os alunos falam, o objetivo e a
preocupação maiores são que todos os alunos participem e compartilhem suas
experiências, respeitando a sua vez de falar, e aprendendo a ouvir os colegas.
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A professora retomou a conversa sobre a dengue, e comentou os desenhos
que os alunos fizeram no dia anterior para a exposição que será montada na escola.
Alguns alunos precisam caprichar mais, e deverão refazer os desenhos em uma
próxima oportunidade.
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P: O que mais podemos colocar no calendário? A gente falou que o calendário
servia para quê?
A: Os dias importantes.
P: E quais são os dias importantes?
A1: O aniversário.
A2: O Natal.
A3: A Páscoa.
Vários: O Ano Novo.
P: Isso! As datas comemorativas.
A: Também serve para aprendermos os números.
P: Isso! Mas o que marcamos no calendário?
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17-) Momento da conversa em 15/04/2010 (5ª-feira, na sala de aula):
A professora aproveita o momento da conversa para explicar aos alunos a
lição de casa que eles deverão trazer no dia seguinte: ler a parlenda “A galinha do
vizinho”, tentar identificar as palavras durante a leitura, e desenhar a quantidade
certa de ovos em cada linha.
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falar, pois todos se dirigem à lousa sem demora e com sorrisos nos rostos. No
entanto, a professora precisa chamar a atenção da turma em diversos momentos,
porque, ao voltar para seus lugares, os alunos continuavam falando sobre o final de
semana.
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os alunos que cada jogo ou brincadeira ficará restrito a um dos cantos da quadra, de
modo que todos possam brincar do que querem.
Outra questão levantada por ela é a do comportamento. Alguns alunos são
chamados à frente para indicar na relação dos jogos onde estão escritas coisas
como: empurrar os amigos, bater nos amigos, xingar os amigos, mandar nos amigos
etc. Os alunos dizem que isso não está escrito na lousa, e então a professora
combina com eles qual deverá ser a punição para aqueles que não souberem se
comportar. As sugestões dos alunos são as seguintes: perder o dia do brinquedo,
sair da brincadeira na quadra e perder as aulas de educação física.
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29-) Momento da conversa em 28/05/2010 (6ª-feira, na sala de aula):
A fim de preparar os alunos para uma brincadeira que eles farão no final do
dia, a professora pergunta aos alunos quantas sílabas há no nome de cada um,
dando o seguinte exemplo:
P: Para eu falar “cachorro”, quantas vezes eu abro a boca? – Todos os alunos fazem
a contagem utilizando os dedos das mãos, e depois dizem o número à professora.
Ela dá continuidade aos exemplos com as seguintes palavras: hipopótamo, caderno,
canetinha, mochila e apagador.
Os alunos pronunciam as palavras, silabando e contando nos dedos
simultaneamente. Depois, dão a resposta em coro para a professora.
Em seguida, a professora lê as regras da classe, que foram ilustradas pelos
alunos no dia anterior, e redigidas por ela, avisando que essa leitura será feita todos
os dias, após a escrita da rotina e a chamada.
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