A consulta de Spina Bífida do Hospital Pediátrico de Coimbra é constituída por
uma equipa interdisciplinar, da qual faço parte como enfermeira de Reabilitação - enfermeira de referência, colocando a relação interpessoal com a criança/adolescente e família no centro de toda a actuação. Procuramos promover a saúde, uma adequada integração familiar e social, uma melhor qualidade de vida das crianças/adolescentes afectadas e suas famílias. A intervenção dos diferentes elementos da equipa tende dar resposta a todas as necessidades das crianças/adolescentes, consoante os problemas vão surgindo e, os contactos com as entidades locais (de saúde, escola, emprego) são constantes, com o objectivo de promover a continuidade do processo de prestação de cuidados, ao mais elevado nível. Como enfermeira de referência identifico as necessidades de cuidados de Enfermagem da criança/adolescente e família, sendo as intervenções de Enfermagem prescritas por forma a evitar riscos, detectar precocemente problemas potenciais e minimizar/resolver os reais. Para se alcançar o mais elevado nível de satisfação da criança/adolescente e sua família, procura-se no atendimento e através de uma relação de empatia: • demonstrar simpatia e total disponibilidade ( atitude de escuta activa) • respeitar a intimidade, as diferenças individuais • avaliar a adesão/cumprimento do plano terapêutico estabelecido para cada caso • compreender as dificuldades • optimizar as competências dos pais, ou substitutos, para a participação nos cuidados • partilhar informação com os pais, ou substitutos, capacitando-os para a garantia da continuidade dos cuidados • prestar cuidados em parceria com os pais, ou substitutos Na procura permanente da excelência no exercício profissional, o enfermeiro previne complicações para a saúde da criança/adolescente e família, pelo que o padrão de qualidade de cuidados de Enfermagem de Reabilitação estabelecido para a consulta de Spina Bífida é a prevenção de complicações, essencialmente a três níveis: - prevenção das úlceras de pressão - prevenção de problemas vesicais e renais - prevenção de problemas intestinais 2. DESENVOLVIMENTO
Cada criança é única e, apesar da patologia ser comum, podem encontrar-se
déficits diferentes, dependendo do nível da lesão, da patologia associada, da evolução e desenvolvimento da criança e da qualidade de cuidados prestados. É crucial antecipar as necessidades sentidas pelos pais/cuidadores destas crianças para ajudarmos na qualidade da prestação de cuidados. Os problemas mais comuns associados à SB são, de acordo com Brunner e Sudarth (1985, citados em Seabra, 1995): • PROBLEMAS UROLÓGICOS - praticamente todas as lesões afectam os nervos sacros que enervam a bexiga, dando origem a bexiga neurogénica e suas complicações. Para Rowley-Kelly (1993), a disfunção vesico-uretral constitui o principal factor de prognóstico quanto à longevidade e qualidade de vida. Para além do risco de insuficiência renal, há o problema da incontinência urinária com as suas implicações psicológicas, familiares, sociais e afecto-sexuais • PROBLEMAS INTESTINAIS - segundo Brunner e Sudarth (1985, citados em Seabra, 1995), decorrente de deficiente inervação do esfíncter anal e da musculatura intestinal, surge a incontinência fecal e obstipação • PROBLEMAS NEUROLÓGICOS - lesão do 1º neurónio - espasticidade, hiperreflexia, diminuição da força muscular, deficiente controle da motricidade fina, hidrocefalia ( 60% dos casos ), diminuição da sensibilidade. O déficit motor causado depende, de acordo com Seabra (1995), em grande maioria, da localização da lesão (nível mais alto maior a incapacidade) • PROBLEMAS ORTOPÉDICOS - para Seabra (1995) os principais problemas ortopédicos são a cifo-escoliose progressiva, risco de luxação da anca, as deformidades rígidas dos pés ( equino-varo ) e o plexo da anca e do joelho. A deambulação e a capacidade de assumir a posição vertical pode ser possível com o apoio de ortóteses, e outros, correcções e estabilizações cirúrgicas • PROBLEMAS CUTÂNEOS - as alterações da sensibilidade predispõem às lesões cutâneas podendo surgir escoriações nas áreas submetidas a maior pressão, deslize ou fricção e, em situações menos vigiadas, o aparecimento de úlceras • PROBLEMAS DIETÉTICOS - devido a déficits de mobilidade, estas crianças/adolescentes têm predisposição para a obesidade, tendo de ser submetidas a controle dietético • PROBLEMAS DE DESENVOLVIMENTO - Brunner e Sudarth (1985, citados em Seabra, 1995) referem que a maioria das crianças, apesar da hidrocefalia, têm uma capacidade intelectual média - quando superadas as barreiras arquitectónicas e sociais têm aproveitamento em escolas normais. No entanto há crianças com algumas limitações em termos de aprendizagem e que, segundo Seabra (1995), têm memória selectiva para o trivial e linguagem fácil, desinibida com frases automáticas (com facilidade em aprender palavras sem entender o seu significado). A consulta inicia-se com o ACOLHIMENTO à criança/adolescente e família, no qual toda esta lista de problemas é avaliada, sobretudo no que diz respeito a alterações da sensibilidade e alterações esfincterianas, para prevenção de complicações.
PREVENÇÃO DE ÚLCERAS
A magreza, a obesidade, a transpiração excessiva, a falta de sensibilidade,
a pressão prolongada em determinados pontos de apoio, a pele seca, a falta de cuidados de higiene favorecem o aparecimento de úlceras de pressão - "área de dano localizado na pele e estruturas subjacentes, devido a pressão ou fricção e/ou combinação destes" ( EPUAP, 2003 - painel europeu ). Na grande maioria das crianças, as áreas de apoio de peso do corpo, como pés e região glútea, são insensíveis à dor, portanto, susceptíveis ao desenvolvimento de úlceras por pressão - atender ao posicionamento na cadeira de rodas, às canadianas, ortóteses e ao calçado e, vigiar a coloração da pele nessas áreas (rubor, equimose), cicatrizes ou lesões anteriores, presença de edema. Esta alteração da sensibilidade é também responsável pelo risco de queimaduras - saco de água quente e água do banho, aplicação de tratamentos quentes, braseira, radiador ou lareira e queimaduras solares. A úlcera tem início com uma lesão de tipo eritema não branqueável, em pele intacta, localizada geralmente numa saliência óssea ou área de maior pressão; descoloração da pele, calor, edema, induração ou rigidez podem ser igualmente indicadores de úlcera de grau I. O tratamento, neste estágio, consiste em manter a área comprometida livre de pressão, deslizamento e fricção , existindo pensos que se podem aplicar tipo hidrocolóide extrafino, de prevenção. Devem- se examinar com frequência e cuidadosamente as áreas susceptíveis (na consulta aproveitamos o despir para pesar) e orientar os pais para que possam reconhecer estas alterações sugestivas de provável aparecimento de uma úlcera. Na presença de úlcera de grau II - flictena - já se observa destruição parcial da pele envolvendo a epiderme, derme ou ambas; a úlcera é superficial e apresenta-se clinicamente como um abrasão ou flictena. O objectivo do tratamento é manter e/ou promover a epitelização, tendo de se providenciar o penso ideal ( hidrocolóide de tratamento ). Na úlcera de grau III, superficial, existe destruição total da pele envolvendo necrose do tecido subcutâneo que pode estender-se até, mas não através, da fáscia subjacente. O Grau IV implica destruição extensa, necrose tecidular, ou dano muscular, ósseo ou das estruturas de suporte, com ou sem destruição total da pele. Os pensos são feitos na consulta e orientamos para o Centro de Saúde a que pertence. As úlceras da planta dos pés são de difícil prevenção e tratamento. Têm início com pequenas bolhas e, logo que detectadas, a criança/adolescente deverá deixar de usar talas ou de apoiar o pé directamente no chão, até à cicatrização completa. Como prevenção há que insistir em: frequente e cuidadosa observação da pele, dos pontos de apoio observar frequentemente o estado dos pés que devem manter-se lavados, sem calosidades e com pele hidratada, utilização de meias de algodão limpas observar com regularidade as unhas dos pés que devem ser mantidas limpas, cortadas e sem irregularidades mudar frequentemente de posição, evitando a pressão, o deslizamento, a fricção promover uma alimentação equilibrada e diversificada (carne, peixe, legumes, fruta ) hidratação adequada ( cerca de 1,5 i de água / dia ) acompanhamento em programa dietético, no combate à magreza, à obesidade
ALTERAÇÃO DA ELIMINAÇÃO
O problema mais comum associado à Spina Bífida é o problema dos esfíncteres.
Devido à deficiente inervação da bexiga e do recto existem alterações na eliminação urinária (perdas, retenção, incontinência) e intestinal (obstipação e incontinência).
PREVENÇÃO DE PROBLEMAS VESICAIS E RENAIS
A incontinência urinária, muito frequente, é talvez, de todos os problemas, o mais grave em termos de consequências psico-afectivas, constituindo um dos principais obstáculos à reinserção sócio-familiar destas crianças. As suas consequências no desenvolvimento psico-afectivo da criança dependem, fundamentalmente, da ATITUDE que os pais adoptam face ao problema. O O problema da incontinência urinária é bem mais grave do que o da incontinência de fezes uma vez que existem, por vezes, concomitantemente problemas de malformação a nível do aparelho urinário; estas crianças enfrentam o risco constante de infecção urinária, de deterioração da função renal ( pela uropatia obstrutiva disfuncional e orgânica que se instala com o aumento das pressões intra-vesicais ), o refluxo vesico-ureteral, hidronefrose, que se agrava pelas pielonefrites sucessivas e, mais tarde, por hipertensão arterial e litíase renal; através desta sequência se clarifica facilmente o quanto são imprescindíveis cuidados especiais. O tratamento visa basicamente evitar infecções e preservar a função renal, melhorando o prognóstico e favorecendo a integração social. O esvaziamento adequado da bexiga constitui a principal arma contra as complicações e o método mais utilizado é o cateterismo vesical intermitente. A técnica é simples e é ensinada aos pais e à própria criança, o mais precocemente possível (dependendo da idade e do nível cognitivo) - o auto-cateterismo incentiva ao auto-cuidado e à independência. Se mesmo com o cateterismo realizado adequadamente continuam a observar-se perdas, existe medicação que interfere na contracção ou no relaxamento da bexiga ou da uretra, que associada ao cateterismo vai permitir melhores condições de armazenamento e esvaziamento. Na consulta é sempre feita análise bacteriológica da urina e reforçada a importância de uma adequada hidratação, por forma a manter a urina límpida e clara, da vigilância/despiste de sinais de infecção urinária (presença de febre obrigatório recorrer-se ao hospital), do cumprimento da medicação profiláctica e dos cuidados a ter com o material de cateterismo: - lavar com água corrente e sabão azul - secar bem - guardar em recipiente limpo, seco e apenas utilizado para as sondas - substituir a sonda diariamente - sempre que sai de casa levar o seu "kit" pessoal
PREVENÇÃO DE PROBLEMAS INTESTINAIS
A interrupção da continuidade dos nervos determina, também, alterações do
controle intestinal. Nas crianças/adolescentes com Spina Bífida são essencialmente as funções de esvaziamento da ampola rectal e a incontinência do sistema esfincteriano anal que estão habitualmente afectados; paralelamente estão ausentes a percepção normal de urgência em defecar e a de passagem das fezes. Todo o restante intestino poderá ser estruturalmente normal. As consequências habituais são: - impossibilidade de retenção de fezes muito líquidas - acumulação de fezes duras na ampola rectal. Como não há evacuação completa desenvolve-se um síndrome de obstipação crónico que atingirá todo o intestino, provocando dor e desconforto abdominais; por vezes surgem episódios de diarreia. Durante os primeiros anos de vida a incontinência fecal não é grande preocupação, mas é importante que as fezes sejam mantidas com consistência normal. Assim que a criança completar 2 ou 3 anos de idade o treino do controlo das fezes (treino intestinal) deve ser iniciado, tendo como objectivo a prevenção da obstipação e da diarreia e o controlo da incontinência. O horário para o esvaziamento intestinal deve ser sempre o mesmo e a hora mais conveniente deve ser definida pela família ou pela própria criança, de preferência cerca de 30 minutos após uma refeição ( para aproveitamento do reflexo gastrocólico). A criança deve ser colocada no bacio por 5 a 10 minutos, com a articulação coxofemural flectida ,coxas pressionando o abdómen e os pés apoiados numa superfície firme; havendo algum tonus anal, e se a dieta for adequada, a aquisição do controlo fecal é quase certa. Se as orientações apresentadas não forem efectivas a utilização de recursos tais como medicação laxativa, estimulação digital com luvas, supositórios e enemas serão necessários, sempre com prescrição média pelo risco de inflamações a nível rectal ou mesmo ulcerações anorectais. As contracções dos músculos do abdómen são auxiliares importantes na evacuação. Há crianças/adolescentes que conseguem uma dejecção reflexa por "puxos" abdominais ( contracções abdominais após inspirações profundas que baixam o diafragma o que favorece a pressão intraabdominal). A alimentação tem um papel fundamental nas características das fezes. È importante adquirir alguns hábitos alimentares: Ingestão de líquidos suficientes Evitar substâncias irritantes para o intestino, tais como: - comidas muito condimentadas - frutos ácidos ( laranja, ananás e kiwi) - as que favorecem a fermentação ( pão branco e fermentos) - as que aceleram o trânsito o intestinal ( batata, chocolate) - as que retardam (arroz e cenoura) Cada criança/adolescente é diferente e, à medida que se desenvolve, torna-se possível identificar qual o tipo de alimentação mais favorável As fibras favorecem mecanicamente o trânsito mas têm de ser consumidas com moderação pois aumentam o volume das fezes acumuladas assim como a fermentação. O treino intestinal deve estar associado a hábitos de vida higiénicos saudáveis e de técnicas para desencadear a defecação. Mesmo que não pareça ser importante como o é, a reeducação vesico-esfincteriana não deixa de ser essencial tanto para o conforto da criança como pelas complicações a longo termo, bem como das repercussões sobre outras funções vitais. Respeitando todos estes aspectos preventivos é possível alcançar uma melhor qualidade de vida, uma vez que se contribui para a promoção da auto- estima, a diminuição da abstinência escolar e laboral, a diminuição da necessidade de idas ao hospital, a diminuição de internamentos e intervenções cirúrgicas.
Finalizando o papel da enfermagem, é primordial ainda:
- No despiste de sinais de obstrução da válvula do sistema de derivação ventrículo-peritoneal ( alterações da personalidade, da linguagem, do desempenho escolar, cefaleia recorrente, convulsões, estrabismo ou diminuição da acuidade visual) ou aumento do perímetro encefálico - No despiste de alergia ao Látex, por colheita sérica - muitas crianças desenvolvem alergia a esta borracha natural cujos sintomas são lacrimejamento excessivo, urticária, coriza, pieira e erupções cutâneas, ao choque anafilático. Estas crianças com frequência são igualmente alérgicas a banana, abacate, kiwi, mamão, batata e tomate - Na informação e reforço de assuntos tão essenciais como: › A prevenção - os pais de um filho com SB deverão submeter-se a aconselhamento genético para nova gravidez; suplemento de Ácido Fólico reduz o risco de aparecimento da doença › A legislação para a deficiência, o regime educativo especial, ajudas técnicas › A importância da reabilitação através da fisioterapia e terapia ocupacional, para melhoria dos desequilíbrios neuromusculares dos membros inferiores paralisadas e prevenção das deformidades As crianças têm muitas vezes de usar aparelhos e auxiliares de marcha, ortóteses mas, com treino adequado poderão adquirir uma boa mobilidade e independência funcional. Quanto mais precocemente se inicia o programa de reabilitação mais tardiamente se instalam deformidades ou ,serão menos graves as que se venham a instalar e, mais fácil ou menos laboriosa será a cirurgia ortopédica que necessitem futuramente.
A multiplicidade de problemas que surgem com a Spina Bífida exige um
tratamento por uma equipe interdisciplinar para coordenar e rentabilizar o apoio que estas crianças/adolescentes necessitam, ajudando-as a alcançar o máximo potencial físico e mental.