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Sou também
compositor de samba de raiz.
Luto intensamente com as palavras e faço desta luta um exercício de vida.
Comecei muito cedo e em silêncio este meu intenso envolvimento com a poesia e a prosa.
Tal atividade foi tomando conta de minha alma.Quando percebi já era tarde:
Estava completamente tomado por tudo.
Sou brasileiro e resido em Niterói.
Ele não tinha mais vontade de viver.Ele estava agora feito de vidro.Sua inconsistência
era patente naquele seu olhar vazio.Ele queria simplesmente sentar no verbo sentar.Queria
agora fechar os olhos.Queria aquele tal silêncio dos monges na cerimônia do chá.Havia
perdido tudo e nada mais restava a fazer.
Ele, este pronome reto com jeito de morto-vivo, caminha pelas ruas à procura de si
mesmo.
Ele não quer se entregar ao alcoolismo.Ele toma uma dose de aguardente no bar da
esquina.Pode sentir muito bem aquele fogaréu a arranhar sua garganta combalida.
Ele olha ao redor e nada diz.Ele perdeu a família num acidente de
automóvel.Perdeu o irmão, vítima de um câncer qualquer generalizado.Perdeu o emprego e
perdeu a mulher que amava, pois não sabia massagear corretamente o clitóris da
mesma.Perdeu este grande amor que nunca o amou. Perdeu, do verbo perder, algo ou
alguém que nunca teve.
Gostava, do verbo gostar, de quebrar copos com suas mãos de interiorano.Gostava de
ver o sangue que desenhava contornos improváveis na palma de seu espírito atormentado.
Não era afeito a gritos quando fazia amor.Simulava orgasmos como ninguém.As
fêmeas da região o detestavam e ao mesmo tempo o adoravam pelo fato dele saber fazer
muito bem o que elas faziam.Ele as possuía quase indiferentemente.Fechava os olhos para
não ver aquelas expressões carregadas de profundo tédio.Elas se transfiguravam quando o
viam.Ele seguia seu caminho até a sua humilde casa.
O substantivo casa não o acolhera jamais.Havia goteiras por toda à parte.Quando ia ao
banheiro, quando ia ao tal banheiro, sempre tinha problemas com a descarga.Tinha
igualmente problemas para se limpar quando defecava compulsivamente.
Comia geralmente sanduíche de queijo minas e tomava suco de laranja.Ele sentia o
gosto do tal sanduíche quando olhava para aquelas fezes que boiavam na latrina.O papel
atirado de forma absurda na mesma e o velho entupimento que consumia preciosos minutos
de sua vida.
As portas rangiam e este som o incomodava profundamente.Tudo era então o que
parecia ser. Aquilo tudo bem à sua frente como aquele chuveiro de água fria, muito fria.O
chuveiro agora seu companheiro inseparável quando as coisas iam de mal a pior.
Desta vez parecia que ia ter um pouco de paz, pois ninguém habitaria aquele espaço
no qual ele costumava se esconder da vida.
Ele se senta no sofá da sala após o banho.Quero crer que agora fuma um cigarro,
pois não consigo enxergar muito bem de onde não estou.
Ele quer tomar algo, mas pensa muito antes de tomar qualquer iniciativa neste
sentido.A garrafa de whisky importado bem em frente a ele.Lembra-se do último porre e da
constatação de que não pode continuar deste jeito.
Ele percebe que a tal garrafa se mexeu mais uma vez.Já é a segunda hoje, de acordo
com seus cálculos imprecisos.Ele percebe que suas mãos tremem mais do que de
costume.Ele sente uma pressão enorme no peito e procura relaxar o máximo que pode.
Nestes momentos razoavelmente dolorosos, ele gosta ou tem o hábito de repassar a
vida.Ele tem que olhar para trás e sabe muito bem disso.Ela se levanta e ajeita as calças e
ajeita os cabelos e olha firmemente para o passado ainda hesitante.
Não deveria ter jamais enxotado seu pai daquele apartamento.Sabia que a
convivência seria difícil, mas não poderia ter feito isto com aquele homem em apuros
naquele momento.
Ele se lembra do fato de que esperou o pai levantar e comunicou-o acerca de sua
decisão irrevogável.O pai bebia em excesso e aquele filho tinha a vida organizada para não
se tornar dependente e também para não administrar a vida de ninguém.Era isso e nada
mais e muito mais do que isto naquela manhã ensolarada.
Ele se lembra do pai que o olhou pela última vez.Lembra-se daquele semblante
triste que o incomodaria anos a fio.Lembra-se do falecimento do pai.Lembra-se do
telegrama lacônico que lhe foi enviado por um parente distante.
Ele olha para tal garrafa que se mexe.Ele percebe que a mesa também está a se
mexer e que todos os objetos daquela casa estão também a fazer o mesmo.
Ele sente que seu corpo agora estrebucha.Seus órgãos se insurgem contra ele, esta
entidade com status de pronome reto em terceira pessoa.
Ele percebe que o seu coração está a pulsar no chão da cozinha.Percebe que sua
cabeça foi cortada e colocada no freezer dentro de uma embalagem de plástico.Suas pernas
foram arrancadas e viraram churrasco mal passado com molho especial.Ao mastigar os seus
dedos da mão, ele se lembrou daquele ruído sedutor produzido por aquelas chips artificiais.
Ele agora pode ver aqueles milhares de bocas a consumir os seus restos ordinários
em qualquer lugar.Ele pode ver seu intestino combalido a zombar de si mesmo.Pode ver sua
traquéia com cara de quem comeu e não gostou do que comeu.Pode ver seu nariz pisoteado
no meio da rua por quem quer que seja.Pode ver os seus olhos perfurados por um nédio
compulsivo em final de festa.Pode ver a multidão extasiada bem em frente ao tal homem
guilhotinado em praça pública.
Ele agora pode testemunhar a derrocada de seu corpo espalhado em todo e
qualquer canto. Ele sabe que nada pode fazer quanto a isto.
Lembra-se do fato de que sua mulher não esboçou reação alguma.Lembra-se do
fato de que seus familiares o olhavam num misto de satisfação e desprezo.Lembra-se dos
médicos que também o olhavam horrorizados ao extremo.
Foi então que ele, que não era agora mais nada, procurou sua cabeça no freezer e
ainda teve tempo de cuspir na cara de todos.
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Gosto das coisas estranhas.Gosto de estar estranho quando tudo parece bem.
Ode Mortífera