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Introdução
∗
Acadêmico do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo.
propedêutico a ela, ou seja, suscitar no leitor uma atmosfera reflexiva tal
que lhe dê mais confiança no sempre tenso confronto com os clássicos.
Por esse viés, no que tange à obra do escritor, poeta, ensaísta e
contista argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), há, entre um número
significativo de comentadores, especialistas e leitores, o consentimento de
que ela constitui, entre outros digamos “achados”, um desses mananciais
fecundos para reflexões, análises, enfim, problematizações de caráter
filosófico.
Ademais, a aproximação da escrita literária borgeana a inúmeros
pensadores, tais como Hume, Heráclito, Derrida, Kant, Berkeley e Foucault,
só para citar alguns, e a sua vinculação a diferentes sistemas teóricos (Cf.
PEREZ, 2004, p. 12-13) nos levam a interessantes indagações, como aquela
que diz respeito à existência ou não de uma linha de pensamento
fundamental que oriente as múltiplas interpretações acerca da relação
Borges/filosofia.
Nesse sentido, Daniel Omar Perez (2004, p. 11ss) apresenta como fio
condutor a hipótese de que Borges realiza uma desarticulação da metafísica
por intermédio da análise da metáfora. “Borges desarticula os textos
filosóficos em vários momentos mostrando sua instância última como
metafórica” (PEREZ, 2004, p. 14).
Não nos debruçaremos em demasia sobre a argumentação de Perez. O
relevante para nosso propósito é a noção de metáfora, um dos elementos
centrais da obra borgeana. Assim, iniciaremos nosso percurso analisando de
que forma o próprio Jorge Luis Borges concebe a sua relação com a filosofia.1
1
Perez realiza em seu artigo uma exposição análoga a que se segue. Diga-se de passagem,
que o seu exame suscitou o nosso.
A complexa relação Borges/filosofia
Nas notas do livro Discussão (1932) Borges afirma haver coligido certa
vez uma antologia da literatura fantástica.2 Em sua opinião, essa obra é uma
das raras dignas de serem salvas de um segundo dilúvio por um segundo
Noé. Contudo, não hesita em denunciar a censurável omissão daqueles que
considera os grandes mestres do gênero, dos quais ninguém suspeita:
Parmênides, Platão, João Escoto de Erígena, Alberto Magno, Espinoza,
Lebnitz, Kant, Francis Bradley (2001, p. 303).
Já em “Tlön, Uqbar, Orbis, Tertius”, conto inserido na obra Ficções
(1944), encontra-se a seguinte declaração sobre o planeta que empresta
nome à narrativa: “Os metafísicos de Tlön não procuram a verdade nem
sequer a verossimilhança: procuram o assombro. Julgam que a metafísica é
um ramo da literatura fantástica.” (BORGES, 2001, p. 481) Ainda nessa
mesma perspectiva, na narrativa “Utopia de um homem que está cansado”,
da obra O Livro de areia (1975) a Suma teológica é apresentada como sendo
um conto fantástico (BORGES, 1999, p. 60).
Perez (2004, p. 13) ressalta que, embora esse Borges das narrativas
de ficção transite por vezes para um Borges do ceticismo, o qual encara com
total incredulidade a possibilidade do conhecimento, persiste entre ambos a
figura do homem que em vários momentos se definiu como um argentino
perdido na metafísica.
A concepção de metafísica presente aqui é a clássica. Aquela contra a
qual Hume (1989, p. 18) disparou com seu garfo a acusação de ser fruto da
vaidade humana, que teria a vã pretensão de investigar temas
completamente inacessíveis ao entendimento. A mesma metafísica cujo
método, segundo Kant (2004, p. 28), constituiu-se até então em um mero
palmilhar na escuridão, um tatear entre meros conceitos.
2
O autor refere-se a obra Uma antologia da literatura fantástica (1940) elaborada em
conjunto com Silvana Ocampo e Adolfo Bioey Casares.
Borges, da mesma forma que Hume e Kant, tem consciência das
dificuldades encontradas pela metafísica. Contudo, ao contrário de ambos,
não parece pretender “salvá-la”, ou seja, fundamentá-la enquanto ciência. É
evidente que a identificação da metafísica como gênero da literatura
fantástica sugere uma crítica carregada de ironia. E, segundo Perez (2004, p.
14), em História da eternidade (1936) Borges realmente adota essa postura
ao ler os conceitos metafísicos como metáfora.
Como já havíamos adiantado anteriormente, se faz mister verificarmos
o significado da metáfora em Borges, para compreender de que forma ela se
insere na gênese e no posterior desenvolvimento da obra de nosso escritor.
O ultraísmo e a metáfora
3
Publicado originariamente em Inquisiciones (Buenos Aires. Editorial Proa, 1925), p. 98.
orientadas pela necessidade da comunicação e do entendimento em
detrimento da novidade.
Concordamos que Borges supera aspectos do ultraísmo. A incoerência
verbal e a ilogicidade metafórica são dois desses elementos transcendidos,
em suas próprias palavras, com a “[...] imarcescível inquietude metafísica.”
(BORGES Apud VERANI, 1990, p. 49) (tradução nossa) Não obstante, no
conjunto de sua obra essa suposta cisão nos parece meramente retórica.
Essa suspeita se torna mais verossímil à medida que se compreende o real
espírito da vanguarda Argentina. Nesse sentido, o Manifiesto del ultra,
redigido por Borges em parceria com Jacobo Sureda, Fortunio Bonanova e
Juan Alomar, é iluminador:
A influência grega
4
De acordo com Soares: “É na articulação destes três conceitos - arché, thaumázein, e
páthos - que Platão constrói um campo de sentido e significação para a palavra philosophía”
(In: FÁVERO; TROMBETTA e RAUBER, 2002, p. 191).
“Heráclito” (1999, p. 172) Borges fará explícitas referências ao famoso
fragmento 91 do filósofo de Éfeso.
O segundo princípio incorporado à obra borgeana é a tese pitagórica do
eterno retorno. Esse também pode ser identificado em Fervor de Buenos
Aires (1923), nas entrelinhas do poema “O truco” (2001, p. 20), e em “Uma
vida de Evaristo Carriego” (2001, p. 116-124), inserido na obra de mesmo
nome. Posteriormente, em “História da eternidade” (1936), será abordada
em dois ensaios, a saber, “A doutrina dos ciclos” (2001, p. 425-433), e “O
tempo circular.” (2001, p. 434-437) Perez (2004, p. 14 ss) observa que em
“A doutrina dos ciclos” Borges visa refutar a teoria nietzscheana do eterno
retorno apoiando-se em Rutherford, na teoria de conjuntos de Cantor e nas
leis da termodinâmica. Essa desarticulação metafísica, segundo Perez (2004,
p. 17-18), seria semelhante à realizada por Heidegger, que em sua reflexão
sobre Nietzsche apontará para o mesmo conceito. Em contrapartida, Castillo
(2003, p. 63) lembra que essa antítese borgeana contradiz sua própria
poesia lírica, uma vez que em “A noite cíclica” ele irá professar “[...] a
rotação pitagórica, a doutrina dos árduos alunos de Pitágoras sobre o
regresso cíclico de astros, homens e átomos.” (tradução nossa)
Por fim, a terceira inspiração, que lhe surge por intermédio de Zenão
de Eléia, remete-se novamente à infância. Seu pai, professor de psicologia,
contou-lhe a aporia de Aquiles e a tartaruga. Borges ficou tão impressionado
com a impossibilidade do herói aqueu ultrapassar sua oponente que, mais
tarde, na obra Discussão (1932) analisou a famosa perseguição em dois
ensaios: “Avatares da tartaruga” (2001, p. 273-279); e “A perpétua corrida
de Aquiles e da tartaruga”. (2001, p. 261-267) Castillo ressalta que esses
três princípios de origem grega irão confluir para uma outra idéia
genuinamente grega: o labirinto. Dessa convergência ele inferiu que:
5
Não necessariamente entendido no sentido grego.
Sua Teoria do Eu desintegra a pessoa, porém em seus contos
ainda os personagens que perdem a identidade são
reconhecíveis.
Sua Teoria do Conhecimento é radicalmente cética e equivale à
racionalidade com a irracionalidade, porém seus contos estão
construídos com rigorosa lógica (2003, p. 22-23, tradução
nossa).
Seja uma nova poesia, seja uma forma nova de relatar, o certo é que a
literatura fantástica, que apresenta também um aspecto “dialético”,
assemelha-se à metafísica por inúmeros motivos. Uma dessas razões,
segundo Borges, residiria no fato de que: “Toda linguagem é de índole
sucessiva; näo é apta para pensar o eterno, o intemporal” (2000, p. 158).
Dessa forma, todas as especulações metafísicas resultariam em fracasso por
se valerem de um instrumento inapto para tal investigação. Talvez resida
nesse ponto a resolução tomada por Borges de não se tornar filósofo; bem
como da ironia ao tratar dos conceitos metafísicos, que, por outro lado,
talvez servissem apenas para encobrir sua própria angústia e desejo de
apreender esse Ser inalcançável. Restar-lhe-ia a literatura. Então que essa
seja filosófica; que seja fantástica!
Para exemplificarmos a hipótese que viemos defendendo ao longo do
texto escolhemos a narrativa “O Imortal” (2001, p. 593-606), inserida na
obra O Aleph (1949), considerada pela crítica a obra prima de Jorge Luis
Borges. Não reconstruiremos totalmente a narrativa, mas apenas
pontuaremos suas linhas gerais.
Bibliografia