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Essa não era a primeira nem a última vez que Leonardo da Vinci faria uma dissecação
humana. Ao longo da vida, ele contabilizaria mais de 30 madrugadas de vigília na
companhia do que ele próprio chamou de "apavorantes corpos esquartejados". Ainda
assim, a vontade de conhecer o corpo humano até a última entranha superava
qualquer calafrio. Não se tratava de uma curiosidade mórbida. Leonardo entendia que
a anatomia, tanto quanto a geometria, era peça fundamental da pintura. Ele acreditava
que, para representar a realidade com exatidão, era preciso observá-la com rigor
científico - numa época em que a ciência propriamente dita ainda nem existia, diga-se.
E observar foi o que Da Vinci fez de melhor. Graças à capacidade de aprender a ver, o
mestre renascentista adquiriu um conhecimento profundo da natureza. E, com seu
talento, deixou para a posteridade alguns dos maiores legados artísticos e científicos
da história.
Ainda adolescente, Leonardo foi enviado para trabalhar como aprendiz no estúdio do
grande desenhista Andrea del Verrochio. E o garoto de Anchiano impressionou desde o
começo - conta a lenda que, ao desenhar um anjo num dos quadros de Verrochio,
Leonardo demonstrou ser tão melhor que o mestre que este desistiu de pintar de uma
vez por todas. Verdade ou não, o fato é que se tratava do lugar ideal para a formação
de um jovem talento da pintura.
Se o espaço era propício, o tempo não ficava atrás. Quando Da Vinci tinha 1 ano de
idade, os turco-otomanos tomaram Constantinopla, afugentando pensadores e artistas
em enxame para o rico norte da Itália. Eles chegavam carregados de manuscritos
sobre a geometria e a arte na Grécia antiga, e deram o tiro de partida na corrida de
transição da Europa medieval para a do Renascimento. A história virava uma esquina e
essa esquina era Florença - justamente o lugar onde ele desenvolveu boa parte de sua
carreira. E Leonardo seguiu a tradição de seu tempo: buscar a representação fiel da
natureza usando todo o conhecimento possível como ferramenta, fosse a matemática,
a medicina ou o que mais aparecesse. Mas no centro de tudo, segundo Da Vinci,
estava algo mais simples: o olhar.
Para ele, os olhos eram a principal via do conhecimento - o que fazia da pintura a mais
elevada de todas as artes. "A visão se deixa iludir menos do que qualquer outro
sentido", escreveu.
Esse jeito científico de ver a arte levou o autor de Mona Lisa e A Última Ceia a
colecionar uma gama enciclopédica de interesses ao longo dos anos - uma
característica que o transformou naquele mito que todo mundo conhece: o de homem
mais completo que já passou pela Terra. Mitos pecam pelo exagero. Mas,
convenhamos, no caso de Da Vinci, fica difícil derrubar a fama.
Mas seu grande atributo talvez tenha sido outro: "Ele foi o maior curioso da história",
escreveu o historiador inglês Kenneth Clark, autor de uma das mais respeitadas
biografias de Da Vinci. De fato. Leonardo nunca deixava de questionar o como e o
porquê das coisas. Seus documentos de anatomia, por exemplo, não registram apenas
a aparência e as proporções do corpo humano, mas preocupam-se também com seu
funcionamento. Questões do tipo "que tendões movem o braço?", "como os dois olhos
se movem ao mesmo tempo?", "como se produz um sorriso?", "como surge um novo
ser no ventre de uma mulher?" aparecem com freqüência no verso de seus
manuscritos, como lembretes sobre quais seriam seus objetos de pesquisa seguintes.
Ele realmente não parava quieto: mesmo nas cenas mais cotidianas, sempre tinha
alguma coisa que atiçava sua curiosidade. Tanto que, um dia ele escreveu em um de
seus vários caderninhos de anotações: "Por que os cães farejam espontaneamente o
traseiro uns dos outros?" A resposta, logo abaixo, fica entre o fato científico - "o faro é
um sentido muito importante para os cães" - e o humor irreverente - "se o traseiro
tiver algum resquício do aroma de carne, significa que o cão pertence a um dono de
posses e, portanto, merece respeito. Caso contrário, trata-se de vira-lata, e pode,
portanto, ser mordido". Hoje conhecem-se mais de 7 mil páginas ilustradas e
manuscritas, com anotações como essas, e tratados sobre anatomia, hidráulica,
biologia, geometria, mecânica, matemática e medicina. E especialistas na vida do
homem multitarefa calculam que existam outras milhares perdidas.
Mão na massa
Engenhosidade, você sabe, era o que não faltava a Leonardo. E tem mais uma coisa:
para os ricos, investir em tecnologia valia mais a pena do ponto de vista econômico do
que patrocinar a arte. Então, fosse por necessidade de sobrevivência, fosse por frenesi
criativo, Da Vinci não poderia ficar fora dessa onda tecnológica. E ele serviu à nobreza
italiana como arquiteto e engenheiro por anos. Projetou edifícios públicos, pontes,
canais, fortalezas, armas. Mas sua capacidade de aprender com a observação do
mundo e sua incrível imaginação o levaram mais longe ainda - a pelo menos 4 ou 5
séculos à frente de seu tempo. O ponto é que ele não se ateve só a resolver problemas
do cotidiano. Se com a ciência o homem era capaz de compreender o mundo, com a
tecnologia ele poderia domina-lo. Leonardo entrou fundo nessa idéia: quis fazer com
que o homem voasse e pudesse viver debaixo d'água. E acabou desenhando coisas
que só virariam realidade nos séculos 19 e 20 - máquinas voadoras, pára-quedas,
escafandros, submarinos... Profético.
Só que a maior parte dessas idéias visionárias jamais se concretizou, e justamente por
causa do descompasso entre a mente do criador e a capacidade tecnológica da
Renascença. Os veículos que ele projetou, por exemplo, não tinham uma fonte de
energia que os impulsionasse - faltava alguém para inventar o motor a combustão
interna...
Alguns de seus projetos de arquitetura sofriam do mesmo "mal": eram ousados demais
para as técnicas de construção da época. Esse é o caso da ponte encomendada ao
artista em 1502 pelo sultão de Istambul para atravessar um vão de 350 metros sobre
o canal de Bósforo, na Turquia. Da Vinci desenhou uma ponte de pedra, com um único
arco que deveria se estender por 250 metros sobre a água. Mas os construtores
duvidaram que o projeto fosse realizável. O projeto de Da Vinci teve de esperar até
2001 para sair do papel. A ponte cruza hoje uma rodovia, numa cidadezinha próxima
de Oslo, na Noruega. Leonardo jamais viu o novo mundo que sonhava criar com seus
projetos.
Leonardo aproveitou bem tudo o que viu na vida, menos a velhice e a proximidade da
morte. Depois de passar 3 anos em Roma - que, apesar da intensa atividade artística,
não lhe ofereceu trabalho nenhum -, Da Vinci aceitou o convite de Francisco 1º e se
mudou para a França, em 1516, com o título pomposo de "primeiro pintor, arquiteto e
engenheiro do rei". Era agora um homem beirando os 65 anos, que tinha a mão direita
paralisada e o espírito ressentido e enciumado do sucesso de seus pares mais jovens,
como Michelangelo e Rafael. Passou os 3 últimos anos de vida recluso num chalé
confortável, próximo ao palácio de verão da realeza, organizando seus escritos,
anotando pensamentos e rabiscando um ou outro teorema de geometria. A morte
encontrou, num dia de maio de 1519, um pessimista angustiado com a idéia de que a
alma, fosse lá o que fosse, só poderia existir num corpo vivo. Para Da Vinci , o
Universo seria regido por leis harmoniosas - vida e morte se complementariam. E ele
tinha consciência de que não estava imune a essas leis: "Quando pensava estar
aprendendo a viver, eu também estava aprendendo a morrer".
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