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(...)O som arenoso de uma brisa salgada, anunciava o mar que rugia no
temperamento endiabrado da sua natureza rebelde. Ao longe, junto do porto da
cidade, algumas embarcações ondulavam ao ritmo hipnótico das águas que
lhes davam sentido, aguardando o soltar das amarras para cumprirem um
destino sempre incerto. Lentamente, o burburinho da cidade invadiu-nos na
melodia dissonante de pregões e arruaças, dando-nos testemunho de um lugar
repleto de vida. A Sofia conduziu-nos até à escola de Orígenes onde
diariamente se realizavam palestras. Ali pude ver homens e mulheres, todos
motivados por uma mesma fé. Uma fé que tinha aprendido a respeitar desde
que vi a Sara largar a pomba no alto do templo. Uma visão única e
inesquecível que me deu a força necessária para segui-la nesse gesto poético e
tão bonito. Como estava grato ao voo dessa ave; às mãos sinceras que lhe
deram a liberdade. Mas a Sofia crescia a meus olhos num sentimento cada vez
mais intenso, apagando aos poucos a imagem verdadeira desse ser
maravilhoso que nunca vi, mas de quem tudo sabia. (...)
(...)Já tinham passado vinte e um anos desde que fora libertada. Vinte e
um anos de uma saudade insuportável que tentava preencher em cada pôr-do-
sol que nunca deixei de assistir. Sentia por ele algo de tão grande que nem a
distância conseguira abafar; um sentimento que continuava presente como no
primeiro dia em que ouvi a sua voz.
Regressava a Antioquia numa carroça puxada por um burro, depois de
ter visitado com a Maria a comunidade de leprosos. Ela conduzia a carroça de
expressão serena e ar pacificado. Tinha agora vinte e cinco anos. Era uma
mulher bonita e saudável, abdicando, tal como eu fizera com a sua idade, de
uma vida dedicada a um marido. Era a Cristo que ela desejava servir. Servir na
fé que sempre demonstrara, seguindo os passos que outros traçaram em
caminhos de muitos sacrifícios. Era o caso de meus pais que tinham morrido
anos antes.
No caminho de regresso à cidade, pudemos testemunhar a violência da
batalha que ali fora travada no dia anterior. O imperador Aureliano, eleito
pelos soldados após a morte de Cláudio II, enfrentara a rainha Zenóbia que se
rebelara contra o império, reclamando para si todas as terras da Síria e do
Egipto. Era uma guerra perdida que apenas o orgulho da rainha de Palmira
poderia justificar. E todos aguardavam com impaciência o desfecho daquele
confronto, já que muitos dependiam dos seus favores. Era o caso do bispo de
Antioquia, Paulo de Samosata, que para alimentar os seus desejos e a sua
luxuria tornara-se ministro da rainha, corrompendo toda a sua fé em Cristo.(...)
Já ali estava há dezoito anos, levado pela mão fraterna do homem que
conhecera no monte das boas aventuranças e que era mestre naquele lugar. E
assim tornei-me membro de uma comunidade asceta de monges cristãos que
procuravam, no silêncio dos desertos, o caminho principal de uma existência a
todos destinada. Embora fosse considerado como um irmão, ainda não era
cristão. Faltava-me o elo principal de uma corrente que só o tempo poderia
juntar; o elo de um sentimento que apenas na união de nós os dois far-se-ia
pleno e completo. Mas do cristianismo sabia tudo: cada palavra, cada gesto,
cada entoação expressada na vontade de uma fé que me encantava, mas não
era cristão e isso doía-me profundamente. Como eu desejava que uma voz
celestial despertasse em mim as razões de uma existência separada em duas
partes de uma só; que um anjo se materializasse diante de mim pela vontade
de Deus e me desse testemunho de um destino que não compreendia. O sol,
esse, desaparecia lentamente por detrás das dunas, revelando o seu rosto.
- Quantas saudades, Sara!
As lágrimas não chegaram a escorrer, secando nos limites dos meus
olhos humedecidos. Recordar tais momentos, feria-me numa dor maior que a
saudade. Mas tinha que aceitar as razões de um destino que tudo fizera para
que assim fosse. Não me cabia a mim questioná-lo, mas conformar-me com
uma vontade maior que a minha à qual me resignava, embora nada soubesse
das razões que a motivavam.