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Noite Estrelada
Título original: Starry Night
Tradução de Elizabeth Gomes
Editora Betânia, 1997
Digitalizado por SusanaCap
Revisado por deisemat
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Noite
Estrelada
8
Robin
Jones
Gunn
— Claro. Você acha que alguém vai nos ver? Quero dizer, alguém
que a gente conheça? perguntou Katie, os olhos verdes vasculhando o
estacionamento.
— Tem alguma coisa no meu olho, disse, tentando abafar o riso preso
na garganta.
— Não posso continuar segurando mais, Capitão. Acho que ela vai
estourar!
Com isso, colocou o lenço no nariz e fingiu assoar tão forte, que uma
das orelhas caiu.
— Vamos lá, Katie! Você vai ser a melhor ajudante de Papai Noel
deste shopping! Está pronta?
— Tarde demais!
Sempre atleta, Rick absorveu o baque como se ela lhe tivesse dado
um tapinha de leve.
— Parece mais foi que perdeu contato com seu planeta-pai, brincou
ele.
— É, sou muito engraçado mesmo. Pena que eu não tenho uma calça
colante verde e umas orelhas de alienígena para ficar tão engraçado quanto
você.
Por que de repente o Rick está assim tão amigável? O que será que
está querendo? pensou Cris.
Por que ele está perguntando se me sinto incomodada? Por que está
me olhando assim.... com tanta ternura?
— E então, o que traz você por essas bandas? Compras de Natal?
Faltam apenas catorze dias, não sabe?
— Obrigado pelo convite, mas já tenho planos para hoje. Mas quero
me encontrar com você uma hora dessas. Conversar...
— Foi por isso que você parou aqui pra me ver? Pra ver se a gente
podia marcar uma hora pra conversar?
Ela não sabia como interpretar o convite. Será que era o Douglas ou
o Rick que a convidava? Sabia que seus pais não aprovariam que ela fosse
dirigindo sozinha até San Diego, numa viagem de quarenta e cinco
minutos.
— Ah, é! Esses seus pais severos. Quase me esqueci. Mas você pode
convidar a Rodolfa, anãozinho de cabelos ruivos, para ir junto.
— É isso aí, replicou Rick, dando passos para trás, como quem
estivesse sendo sugado por um grande vácuo do shopping. Vamos
conversar um dia desses. Ergueu o braço direito num aceno típico de
jogador de futebol, a mão bem alta, e se foi.
Cris olhou o relógio e fez uma careta. Quinze minutos de atraso. Jon
tinha cerca de vinte e cinco anos, usava um rabo de cavalo e, em geral, era
bastante tranqüilo. Mas gostava de que ela fosse pontual.
Tinha a impressão de que não iria ter o intervalo das seis horas.
Talvez a Katie desse um pulo até lá, e ela ficasse sabendo como ia andando
o negócio de ajudante de Papai Noel. Mas a Katie só apareceu na loja de
animais à hora de fechar. Estava radiante.
— Sim, em que base? Você vai receber dez por cento de quê? Katie
enrubesceu.
— Procure saber amanhã, sugeriu Cris. Fico contente por você ter se
saído tão bem no seu primeiro dia.
— O Rick foi lá? Por que será que faria uma coisa dessas?
— O quê?
— Acho que não queremos saber, comentou Cris, puxando a Katie
até a porta dos fundos. Boa noite, Jon. Até amanhã.
— O quê?
— O Rick me contou.
— Quando?
— Sim, e daí?
— Claro. Você não? Acho que vai ser ótimo. Quero conhecer esse
Douglas de que tanto ouço falar.
Katie enfiou o chapéu e as sapatilhas de feltro na sacola e olhou para
Cris, que estava imóvel no assento de motorista, chaves na mão.
— Fala pra eles que eu vou, insistiu a amiga. Os meus pais disseram
que posso ir. Falaram até que posso ir com nosso carro, e só preciso estar
de volta em casa às onze. Talvez, se você disser que eu vou dirigindo, eles
deixem você ir.
— Você tem razão! Já passam das dez e ainda não me vesti. Ei! Quer
me encontrar na praça de alimentação na hora do seu intervalo?
Desde o momento que voltou para a loja até a hora de ir para casa, às
seis da tarde, as vendas não pararam. Cris ficou contente porque assim o
tempo passou depressa. Já que Katie não aparecera, ela achou melhor dar
uma passada por lá antes de ir para casa.
Não é de admirar que o Rick tenha ficado por aqui. Eu também seria
capaz de ficar olhando para ela horas a fio. Ela leva jeito. Por que eu
estava ficando invejosa e preocupada de ver o Rick interessar-se pela
Katie? Isso é ridículo!Enquanto a criança seguinte se aproximava do trono,
Cris chamou a atenção de Katie, e lhe disse:
Katie acenou que sim, enfiou a mão numa cesta que havia ao lado da
máquina, tirou um boneco de neve e voltou à rotina de fazer o nenê sorrir.
Cris desejou que seu tom de voz fosse leve e doce, mas não se sentia
assim. Ninguém nunca lhe dissera que era a melhor em alguma coisa, nem
lhe oferecera o dobro de seu salário!
— E o melhor de tudo é que não vou ter que usar essa fantasia
ridícula, falou Katie, rindo. Eu disse a ele que as orelhas eram de verdade,
e ele respondeu que na empresa dele não discriminam orelhas grandes.
Estou tão contente! Nem acredito que ele tenha me contratado assim.
— Então faz de conta que não tem nada aí, aconselhou Cris, e meça a
farinha de trigo.
— Sabe, Katie, você devia fazer teatro. Vai ser uma Lucille Ball ou
uma Carol Burnett*. Sei que vai.
— Ah é? Mas não foi isso que o Glen parecia estar pensando hoje
cedo na igreja. Não foi a primeira vez que ele realmente sentou ao seu lado
na igreja?
— Notei? Como não! Ele parecia achar que você era a única pessoa
presente na classe de jovens da escola dominical. Eu diria que esse cara já
progrediu e muito!
— Ainda vai demorar muito. Ele vai embora logo que a escola entrar
em recesso. Os pais dele têm de fazer uma viagem de duas semanas para
*
Notáveis comediantes do teatro e do cinema americano. (N. E.)
arranjar mantenedores. Depois vão voltar para o Equador no começo do
ano que vem.
— Ontem comprei uma fita pra ele na livraria evangélica, disse Katie
despejando a farinha de trigo na tigela. Ia dar hoje cedo, mas ele não
comprou nada pra mim, e fiquei sem jeito de dar-lhe um presente, então
não dei.
— Não, não, não! É que você nos ofereceu uma excelente ex-
periência de aprendizagem no ano passado. Aprendi com você a
experiência de passar vergonha, e assim não preciso repetir o mesmo erro
que você cometeu por nós duas.
— Acredite, eu sei como você se sente. Você deve fazer o que disse
que eu deveria fazer: ser sincera com seus sentimentos e ver o que
acontece.
— Está bem, vou dar a fita para o Glen. Mas quando? Ele vai viajar
sexta-feira.
— Geralmente ele vai à igreja no domingo à noite, não vai? Por que
não entrega o presente hoje à noite?
— O que você está realmente dizendo é que não queria que eu fosse
sozinha, porque o Douglas e os outros são todos seus amigos. Como você
não pode ir, prefere que eu também não vá. Não é isso?
— Não é isso, não, Katie, principiou Cris, mas de repente percebeu
que ia dizer uma mentira e corrigiu-se. Bem, talvez, em parte, seja isso. Eu
me sinto como quem foi deixado de fora, mas só conheço o Douglas e o
Rick. Não conheço mais ninguém lá. É que eu queria que nós duas
fôssemos juntas. Só isso.
— Está certo. Espero até você poder ir junto. E hoje à noite dou a fita
para o Glen.
— Tem certeza?
— Absoluta!
— Está certo. Eles vão dizer não, mas pelo menos eu pergunto.
Duas horas mais tarde, quando Cris entrava pela porta da frente de
sua casa com um prato cheio de brownies na mão, o telefone tocou.
— Ele me falou, mas não posso ir. Sinto muito. Eu queria e espero
poder ir outro dia, e aqui ela baixou a voz. Meus pais não permitem que eu
vá tão longe, de carro e à noite...
— Não faz mal, Douglas. É meio longe pra você vir e ter que trazer
de volta.
— Eu devia ter telefonado mais cedo. Mas olhe só! Temos um longo
recesso de Natal, começando semana que vem. Podemos ir para qualquer
lugar e fazer qualquer coisa. Você vai para a casa de seus tios em Newport
que nem no ano passado?
Ainda não sabia quem fora. No começo pensara que fosse seu chefe,
Jon. Perguntou-lhe, mas ele negou. Katie achou que talvez fosse o Rick,
tentando compensar o papelão que fizera. Por algum tempo, Cris pensou
que talvez o próprio Ted tivesse descoberto o fato e pago tudo.
— Não, não ouvi nada, disse o Douglas com voz lenta. Mas temos
que estar orando por ele, porque nas próximas duas semanas tem a grande
competição em Waimea. Aí ou ele entra no circuito de surfista profissional
ou cai fora.
— Será que se ele não entrar, é possível que volte pra casa?
perguntou Cris, receosa de alimentar muita esperança.
Falou bem, Douglas. Você disse uma coisa muito certa. Realmente,
em se tratando do Ted, a gente nunca sabe.
— Claro! Isso não faz a gente se sentir mais adulta... sabe... como se
o pessoal mais velho estivesse dizendo "mandem a Katie e a Cris para cá".
— Na verdade, nem pensei nisso, mas entendo o que você quer dizer.
Não me enforque, mas por uns momentos pensei que você quisesse ir por
causa do Rick.
Katie largou o chocolate que comia sobre o saquinho de lanche e
perguntou:
— Sei lá. Talvez porque conheço o Rick. Ele gosta de desafios. Você
sabe disso. Acho que depois que conversamos com ele, no estacionamento
do shopping, você tornou-se uma espécie de desafio pra ele.
— Desafio ou não, você sabe que não morro de amores pelo Rick.
— Eu sei.
— Não tem muito pra contar. Eu lhe dei a fita depois do culto e ele
me deu um abraço e disse: "Obrigado!" A mãe dele estava por perto. Não
foi grande coisa.
Foi uma pesada semana de estudo com três provas finais, e tarefas
sem fim. Já na sexta, Cris estava tão ansiosa para que tudo acabasse que
passou a última aula escrevendo cartões de Natal e compondo a lista de
presentes que tinha de comprar.
— Pronta? Quero sair um pouco mais cedo para o trabalho, para dar
uma passada no correio, e mandar os cartões de Natal.
— Estou com tudo aí. Vamos. Obrigada pela carona outra vez. Se
meu irmão não consertar logo o carro dele, vou dizer a meus pais que lhe
dêem um ultimato. Ele nem pede emprestado; simplesmente pega meu
carro como se eu não tivesse nada que fazer.
— Por que você não pede a seus pais que mandem consertar o carro
dele como presente de Natal?
— Boa idéia! E a propósito, o que você vai dar para o Rick este ano?
— Rick? Nada!
— Nem um cartão?
Talvez ela devesse "arranjar" esse tempo. Ela tinha o número dele em
San Diego e da casa dos seus pais. Podia ligar pedindo-lhe que ele viesse
falar com ela. Mas até chegar ao trabalho, toda a determinação de Cris
evaporou-se, convertida em apatia, a mesma que sentia desde que haviam
terminado. Esperaria que ele ligasse.
— Olá! disse ela sem saber bem o que conversar. Deixou que ele
falasse.
O jeito do Rick falar era mais uma declaração do que uma pergunta.
Rick ficou em silêncio por uns instantes. Cris pensou que talvez não
devesse ter perguntado aquilo. Para dar certo, aquilo tinha de partir do
Rick. Ela não queria dar motivo para ele pensar nela como uma das muitas
ex-namoradas dele que estavam sempre tentando "voltar".
Ela ficou zangada com a maneira abrupta como ele agira. Mas
depois, pensou em como ele estava se esforçando para conversar com ela
normalmente. Desde que ficara conhecendo o Rick, ele sempre tinha o que
dizer, cheio de promessas e bajulações. Talvez ele não soubesse conversar
sem segundas intenções. Ou talvez estivesse mesmo mudando e um novo
lado, mais tímido, estava surgindo. Será que ele queria mesmo conversar
com ela, ou fazia isso só para agradá-la? Seria tão difícil assim para ele
passar de namorado para amigo, e continuar o relacionamento apesar de
não exercer controle sobre ela?
Chegou à loja de animais por volta das dez e quarenta e cinco. Dava
para perceber claramente que a correria de Natal começara. Cris registrou
vendas uma atrás da outra durante duas horas. A maioria delas era de
artigos em promoção, como meias de gatinhos cheias de erva-de-gato e
chifres de rena para pôr na cabeça de cachorros. Não achava ruim trabalhar
tanto assim. Entrou no espírito da coisa e dizia "feliz Natal" a cada freguês
que atendia ao entregar-lhe as compras.
Quando Cris chegou à sala dos fundos, Jon estava abrindo uma caixa.
— Sim, sente-se. Quero lhe falar sobre o jeito como você anda
dizendo "feliz Natal" aos fregueses.
— É?
— Tudo bem?
— Lembra que uma vez você disse que se alguém acredita numa
coisa deve expor sua posição de forma clara em vez de "camuflar" o que
crê?
— Se não crêem, por que não podem pelo menos aceitar que eu creia
e retribuir o meu "feliz Natal" dizendo "boas festas"?
— Está bem, está bem! Você ganhou. Você acredita nisso, e toma
uma posição clara. Tenho de confessar, admiro isso. Continue. Pode dizer
"feliz Natal". Não deve ofender tanto não.
— Obrigada, Jon.
— Tudo bem. Acho que pode fazer seu horário de almoço agora.
Você trabalhou sem parar hoje. Se não sair agora, talvez nem consiga sair.
Cris sabia.
— Está bem. Ei! Guarde o dinheiro. Sou eu quem paga dessa vez,
lembra? É o meu presente adiantado de Natal!
Nos cinco minutos que teve de esperar até chegar sua vez, ela
esqueceu o nome da pessoa a quem devia pedir. Frustrada, tentou vasculhar
a cabeça tentando lembrá-lo. Já estava diante do atendente.
— Há algum problema?
Cris deu uma risada, aliviada por não ter estragado sua "boa ação".
— Aqui está. E deseje um "feliz Natal" ao Jon por mim. Cris sorriu.
Adoraria dizer ao Jon que o Yun lhe desejava um feliz Natal.
— Douglas!
— Que é isso?
— Quer orar?
— Claro, disse ela, baixando a cabeça e esperando que o amigo
começasse a oração como o Ted sempre fazia.
Silêncio.
— Ah, eu!
— O desfile é muito bonito. Uns dois anos atrás nossa turma foi e
tivemos de dormir na rua para conseguir um bom lugar. Já está na hora de
ir de novo. Isso resolve o problema do programa para o Ano Novo. E o que
mais vamos fazer semana que vem? Vamos nos reunir na segunda? Seria
divertido andar de trenó nas montanhas.
— Segunda?
Alto como o Ted mas com ombros mais largos e uma cara de
menino. Tinha o cabelo loiro-areia, curto nos lados, e parecia sempre ter
acabado de pentear-se. Tinha um sorriso amigo e dentes perfeitamente
alinhados. Quanto mais Cris pensava no assunto, mais achava que o
Douglas e a Katie dariam um par perfeito.
— Eu ligo para você amanhã à tarde e lhe digo o que vamos fazer,
está bem? Quando você vem para Newport?
— Ainda não sei. Vou ficar sabendo amanhã, e depois ligo pra você.
— Aqui.
Jon fez que não com a cabeça, a boca cheia de miojo. Apontando os
pauzinhos para a Cris, falou:
*
"Natal branco": um Natal com neve. (N.E.)
— O quê? exclamou Cris, deixando cair o garfo. Quer dizer que
vamos passar o Natal em Wisconsin? Não podemos! Tenho de trabalhar e
tem uma porção de outras coisas acontecendo. Por que não podemos ir de
novo para a casa de Bob e Marta em Newport como no ano passado?
— Sim, seis dias. Vamos passar as festas juntos, a família toda. Seus
amigos e seu trabalho ainda estarão aqui quando voltarmos. Esta é a
primeira folga que seu pai vai tirar neste ano.
Esse vai ser o pior Natal de minha vida. Não vou nem conseguir
conversar com o Rick. Não vou conseguir ir ao "Desfile das Rosas" com a
turma do Douglas. Isso é horrível.
— Legal! exclamou David, o irmãozinho de Cris. Ainda temos o
trenó velho? Cris, lembra como a gente escorregava naquele morro perto
do campo do Sr. Jansen? Você não quer mais escorregar no gelo?
E a mãe replicou:
Um ano atrás ela teria tentado reclamar e dar um jeito de não ir.
Agora sabia que era melhor concordar com os planos deles, mesmo que
não fosse seu maior desejo.
— Eu estou com uma atitude ótima, interveio David. Que dia vamos?
— Mulheres! Não se pode viver com elas, não se pode viver sem
elas!
— Mãe, você ouviu o que o David disse? Como deixa que ele fale
uma bobagem dessas? Eu nunca pude falar esse tipo de coisa quando tinha
a idade dele.
— David! advertiu o pai, abanando a cabeça em sinal de
desaprovação.
— Alô?
— Glen?
— Seu Rick?
— Foi sem querer. Sabe o que quero dizer, explicou Cris, e, mudando
de assunto, perguntou: E então, o que ele queria com você?
— Disse que tentou falar com você mas o telefone estava ocupado,
respondeu em tom defensivo.
— O que há com você? Por que está tão irritada? Foi o Rick? Está
zangada porque ele telefonou pra mim?
— Não, não é isso. Eu nunca pensaria que ele ia ligar pra você, mas
ele tem direito de conversar com quem quiser. Não foi isso que me deixou
irritada.
— Não vai ser tão ruim assim, Cris. Provavelmente vocês vão se
divertir bastante. Vai estar de volta para o Ano Novo, não vai? O Rick disse
que vamos todos ao "Desfile das Rosas" e dormiremos na rua. Estou numa
animação! Sempre quis fazer isso!
— Vou estar de volta até lá, mas não sei se consigo convencer meus
pais a deixar que eu vá, principalmente com essa idéia de dormir na rua.
— Ainda não.
— Tem que começar a pedir esse tipo de coisa, Cris. Um dia desses
eles vão lhe fazer uma surpresa e dizer "sim" a algum pedido seu. Mas se
você não pedir, nunca saberá. Escute aqui. Tenho um plano. Fale primeiro
do passeio de trenó amanhã. Foi sobre isso que o Rick ligou. Resolveram ir
ao Big Bear, e vamos nos encontrar na casa dele às oito. Vai ser o dia todo.
— Ah!
— Está vendo? Não tem jeito! Você consegue fazer tudo que deseja
sempre que quer, e eu nunca consigo nada.
— Cristina Juliet Miller, não acredito que você tenha falado isso!
Quem foi a Palm Springs e Newport Beach e ao Havaí? Foi a Katie
Weldon? Acho que não! Quer tentar adivinhar?
— Então está com inveja. Por quê? Porque seus amigos estão sendo
agradáveis comigo e me convidam! Isso é tão difícil assim de aceitar?
— Não, não é nada disso! Estou contente por você estar conhecendo
alguns dos meus amigos da praia. São uma turma superlegal e sei que vão
gostar de você. Só que você está participando enquanto eu não estou.
— Em suma, você quer ser tratada como adulta, enquanto ainda tem
liberdade de agir como criança.
— Está certo.
— Vamos lá, Cris! Saia dessa! Você precisa ajustar sua atitude,
menina. Depressa!
— Muito obrigada. Agora você está falando que nem minha mãe.
— Não, Katie, você deve ir. Vá, sim! Com sinceridade. Você deixou
de ir a San Diego por minha causa e aquilo acabou sendo um erro. Não
perca essa oportunidade. Vá e divirta-se.
— Tem certeza?
— Qualquer coisa.
— Faça uma enorme bola de neve e jogue na cara do Rick por mim!
— Obrigada, Katie.
Até que não estava tão ruim o serviço na segunda-feira. Cris passou a
maior parte da manhã nos fundos, marcando preços das ofertas especiais de
Natal. Era um trabalho fácil, e ela não tinha de atender aos fregueses. Mas
ainda sentia um pouco de autopiedade, ao pensar que os amigos estavam se
divertindo enquanto ela trabalhava.
Ted. Ele está lá neste momento! O Douglas disse que era nesta
semana. O Ted está surfando em ondas como esta!
Seis horas. Hora de sair daqui. Onde será que o Jon se meteu? Não
posso deixar a caixa enquanto ele não chegar. Será que devo tocar a
campainha ou só esperar? Ele sabe que eu saio às seis.
Cris lembrou que tinha uns trocados no bolso do seu jeans. Enfiou a
mão e achou uma moeda, que deu ao "Oscar" com um sorriso.
Ele fez cara feia mas parou de procurar. Cris fez rapidamente o troco
e colocou o painço num saquinho. Entregou-lhe com mais um sorriso e
disse:
Ah não!
Entrou em pânico quando percebeu o que havia dito. O homem
fungou e saiu do shopping como quem não ouvira ou não se importava.
— Parece que meu chefe disse que tenho de ir embora. Vou buscar
minhas coisas. Volto já.
Pronto. Não foi tão difícil assim. Por que eu acho tão difícil per-
guntar se posso sair? O que será que ela vai dizer? Pelo menos foi ela e
não o pai que atendeu.
— Parece que seria muito bom, querida. Você volta para casa até as
nove?
Cris desligou e foi até o canto da sala, tirou um espelho e deu uns
retoques rápidos no rosto. Achou maravilhoso o Douglas havê-la
convidado.
Ele somou e registrou a venda que fazia naquele instante para uma
freguesa e entregou-lhe o troco. No momento em que a mulher se afastou
do balcão, Jon tirou um envelope da caixa registradora e entregou-o a Cris.
Ela sentiu-se sem graça por não ter comprado nada para ele de
presente de Natal. Mesmo uma caixa de biscoitos teria sido bom.
— O quê?
— Nunca pensei nisso dessa forma. Jon sabe o que penso sobre o
relacionamento com Deus. Sabe também que oro por ele. Acho que isso o
deixa meio nervoso.
— Que foi?
— Não acredito que você ainda diga "radical". É uma das primeiras
coisas que notei em você quando nos conhecemos na praia. Para você, tudo
era "radical" ou "massa".
Ele riu-se. Tinha uma risada contagiante, como se viesse de um
ribeirinho borbulhante que corria dentro dele, e quando se extravasava
comunicava uma sensação de frescor a todos quantos a ouviam.
— Nunca deu certo. Foi bom ela ter podido ir com vocês. Parece que
se encaixou direitinho na turma.
Cris ficou furiosa. Queria ralhar com o Rick naquele momento. Ele
não tinha o direito de forçá-la como se fosse seu dono. Todo mundo a
olhava, esperando sua reação. Mesmo o Mike, que ela ainda não conhecia,
parecia divertir-se com a situação.
— O Rick gosta muito de você. Sabe disso, não sabe, que uma moça
crente e espiritual é irresistível? Você é absolutamente irresistível para ele.
Ele não sabe como agir perto de você porque você é muito diferente das
outras garotas que ele conhece. Não teve a intenção de ofendê-la. É
verdade!
— Eu queria, mas ainda não houve jeito. Já lhe disse que quero
conversar, mas parece que ele não consegue marcar uma hora para isso.
Era pra gente conversar hoje.
— Pena que você não pôde estar conosco hoje, disse Helen a Cris.
Nos divertimos tanto! Esses caras são malucos!
— Ah, sei! disse Rick, pegando mais uma fatia de pizza. E vocês três
não pareciam umas doidas, gritando freneticamente ao deslizarem por entre
as árvores?!
Cris sentia que estava por fora. Finalmente chegou a pizza que ela e
Douglas haviam pedido. Ouvindo todo mundo rir, deu uma dentada no
queijo quente e derretido que lhe queimou o céu da boca.
Dava para notar que Katie estava adorando a atenção. O nome tinha
algo a ver com uma corrida que Rick e Katie tinham feito juntos sobre uma
bóia.
*
Hibachi: mini-churrasqueira japonesa. (N. da T.)
— As garotas ficam encarregadas de levar os cobertores a mais e os
acompanhamentos: batatinhas, chips, chocolates, etc, disse ele.
Ótimo. Meu apelido agora foi mudado para brownies e a "Veloz" ali
do lado está recebendo os elogios pela última fornada que fizemos, que
não teria um pedacinho sequer de chocolate se eu não tivesse interferido!
— Quer então que eu fale com eles? ofereceu-se ele. Posso lhes
contar como tudo foi bem na última vez que fomos.
— É, deve ser.
Vendo a sinceridade de Douglas, Cris percebeu o quanto estava
sendo chata.
Você está agindo como criança, Cris! Saia dessa! Divirta-se com
eles em vez de sentir pena de si mesma!
— Detesto quebrar esse clima bom, pois o dia foi tão maravilhoso!
Mas eu e Trícia temos de ir embora, pois nossa "viagem" é longa.
Ela estivera nessa mesma pizzaria antes com Rick e Katie, cerca de
um ano atrás, num domingo após o culto. Naquela vez também Katie tinha
sido o centro das atenções. Cris lembrou-se de que estivera quieta e
absorvida pelo Rick. Ao sair, passara sob o braço dele na porta e olhara
para cima, fitando seus olhos castanhos. Teve a impressão de que se
derreteria. Ele a fascinava profundamente.
Agora ela temia passar por essa ponte imaginária, para que ele não
lançasse uma rede invisível em seu coração e ela se deixasse novamente
prender por ele. Ele percebeu claramente sua recusa silenciosa, pois olhou
firme para ela e soltou a porta, fechando-a na cara da Cris. Ela abriu a
porta com raiva e saiu, juntando-se aos demais no estacionamento. Não
deixaria o Rick afetá-la desse jeito.
Ele deu a ordem de forma leve, mas a mensagem era clara: Rick
tinha de estar no controle das coisas.
Será que ele tem alguma idéia do quanto isso é insultante? Será que
está fazendo isso comigo de propósito? Ou o Douglas está certo, e o Rick
realmente se interessa por mim, mas não pode demonstrar isso, já que
terminamos o namoro?
Como uma onça protegendo seu território, Cris nem se mexeu. Fitou
a amiga desprovida de desconfiômetro e com um rosnado baixo disse:
Ele entrou e bateu a porta. Sem dizer palavra, pegou a chave. Já sabia
que Cris a colocara na ignição, como fizera tantas vezes quando
namoravam.
O carro deu um arranco e Cris segurou-se, enquanto Rick saía a toda
do estacionamento. Olhando para o Douglas, ele buzinou e acenou ao
ultrapassá-lo. Cris notou um carro pequeno entrando no estacionamento
pelo lado em que eles saíam.
— Cuidado! gritou.
O outro carro virou-se para a esquerda e Rick jogou o seu para o lado
direito. Os pneus cantaram. Com mais um solavanco, ele virou-se e
acelerou, saindo do estacionamento. Mudou duas vezes de pista, e afinal
parou em um sinal ao lado do shopping.
Cris ficou muda. Ouvia a respiração pesada do rapaz e sabia que ele
estava furioso. Sem dizer nada, foi até o lugar onde o carro de Cris estava
estacionado. Havia uma vaga ao lado dele. Com uma cantada feia de
pneus, Rick entrou nela, pisou no freio e desligou o motor, tudo num só
instante.
Mas não podia fazer isso, porque chegara o momento que ela
esperava havia alguns meses. Uma oportunidade de conversar com o Rick.
Não sabia que iria acontecer desse jeito, nem que as emoções dos dois
estariam tão abaladas quando finalmente se comunicassem. Desse modo,
não seria bom conversarem. Não era o momento certo. Ela deveria esperar
uma ocasião melhor.
Ela sentia a garganta inchada e não conseguia falar mais nada. Com
enorme esforço, reprimiu as lágrimas que queriam descer. Por alguns
minutos guardaram silêncio. Cris não ousava nem se mexer, por temer que
as lágrimas jorrassem. Rick deu um suspiro profundo e disse, numa voz
mais calma:
— Eu sei. Desculpe.
— É sim. Você não confia em mim, e tem tido medo de mim desde o
dia em que nos conhecemos. Nunca quis de fato aprofundar nosso
relacionamento.
Cris ficou a imaginar que resposta daria. De certa forma, era verdade.
O jeito dominador de Rick assustava-a simplesmente por ele ser o Rick.
Como lhe explicar isso?
— Pode falar. Confesse que nunca houve um lugar para mim no seu
coração.
Tudo gelou.
Ted! Não! Eu o chamei de Ted! O que foi que eu fiz? O Rick jamais
entenderá!
Chocada por ter cometido um erro tão grave, ela seguiu as instruções
silenciosas do Rick. Saiu do carro dele e entrou no seu.
— Eu... eu sei, Rick. Desculpe. Hoje no trabalho chamei um senhor
de Oscar, explicou.
A verdade é que nada que dissesse iria melhorar a situação. Ele agiu
como se não a tivesse escutado. Como se dominasse a situação, disse:
— Enquanto você não tirar o Ted da sua vida, jamais haverá nela
espaço para mim ou outro cara qualquer.
Ele fechou a porta do carro de Cris e foi para o seu próprio carro e
entrou, ligando o motor em seguida. Antes que ela pudesse impedir, ele
arrancou depressa e, com as rodas cantando de novo, foi embora.
Com mãos trêmulas, ela dirigiu com cuidado até sua casa, receosa de
suas próprias emoções. O que mais a assustava era que não conseguia
chorar. A dor era demais para lágrimas.
Cris pegou seu urso Puf na cama e ia jogá-lo na caixa quando parou.
Segurando o bichinho gorducho de pelúcia, disse:
Alissa.
Comparada com a vida dela, a de Cris era tranqüila. Mas era Cris que
estava deprimida e Alissa parecia transbordante de alegria e esperança.
Pelo menos na carta.
Quem sabe é esse meu problema? Não tenho orado muito sobre as
coisas que andam acontecendo na minha vida.
''Pensei que você talvez quisesse uma cópia dessas. Aloha e feliz
Natal! Paula."
Cris tentou imaginar como Paula estaria, e pelo bilhete achou que ela
não estava querendo falar muito de sua própria vida.
Colocou os três cartões na cômoda onde antes estavam as
recordações do Ted. Sentiu que aquelas fotos só iriam fazer com que
pensasse mais nele. Então tirou a caixa de sob a cama e colocou-as dentro
dela.
Sei que não estou muito entusiasmada com teu aniversário, Jesus.
Vou procurar pensar mais em ti e confiar mais em ti para solucionar todos
os meus relacionamentos.
— Pelo que diz o guia turístico, falta uma meia hora para chegarmos
ao desvio Blue Jay. Devemos ver neve em breve, disse a mãe.
— Cris, pode ajudar sua mãe a trazer as malas menores? Onde vamos
pôr nossas coisas, Marta?
Mas o que mais encantou Cris foi a janela ampla, com um sofazinho
para sentar e sonhar. Era encantador demais para ser verdade! Largou as
sacolas no chão e aproximou-se lentamente do móvel, como se ele fosse
fugir se ela chegasse muito depressa ou o assustasse. Tocando com carinho
o estreito assento almofadado e passando os dedos sobre a renda das
almofadas cobertas de violetas, viu que era de verdade e seria seu durante
os próximos seis dias.
— Vamos lá! disse ele, puxando-a pelo braço. Podemos passar pela
cozinha e chegar por trás, numa emboscada.
Cris o acompanhou, jogando a primeira bola no seu pai. Ele foi pego
de surpresa, e o "míssil" atingiu-lhe a orelha direita. A surpresa do pai e do
filho permitiu que o tio e a sobrinha conseguissem dar mais dois excelentes
"tiros" antes que o "inimigo" devolvesse as boladas. A batalha estava sendo
travada, gélida e cheia de risadas, enquanto Cris e seu pai se revezavam
correndo ao canto da casa, para apanhar mais munição. Num gesto ousado,
David cortou as linhas, encontrou o estoque secreto e atirou as últimas
bolas sobre eles. Afinal Bob conseguiu lançar uma braçada de neve nas
costas do David, e então o pai pediu trégua.
— Tem alguma coisa errada com essa neve. O cheiro não está bom.
— Que é que você quer dizer, o cheiro não está bom? Cris cheirou o
punhado de neve e disse:
— Então, por favor, não coma a neve, Cris! Ela não devia ter cheiro
algum!
Cris olhou para o alto e Marta jogou sobre ela um copo de água.
Antes de poder se mexer, Cris sentiu o rosto molhado e gelado.
— Estamos quites, tia Marta, disse ela, acenando para a tia, que
exibia no rosto um ar de satisfação.
— Você também não. Deve ter sido bem cheia de vida quando tinha
minha idade.
— E era mesmo! Pergunte a sua mãe! Agora, vista uma roupa seca e
venha para baixo. Vamos tomar um chocolate quente.
— Você acha que vamos poder fazer algumas compras por aqui hoje
ou amanhã? Ainda me falta comprar um presente.
Não queria mencionar que ainda não tinha comprado presente para
sua tia, uma pessoa que tinha tudo.
— Sozinha?
— Está bem, mãe. Vou só lá, volto antes das quatro e prometo não
conversar com estranhos.
Cris desceu logo a rampa para que David não visse que estava
saindo. Virou à esquerda e caminhou direto rua abaixo de onde a neve fora
retirada. Era bom ter essa oportunidade de pensar e orar, enviando suas
petições junto com as pequenas nuvens de "fumaça" da respiração e
ouvindo a resposta no ranger do cascalho e do gelo na rua, sob seus pés.
Próximo à porta dos fundos da loja, havia uma coleção de anjos que
lhe, deram uma idéia. Ela escolheu um enfeite de árvore que parecia ter
sido feito com um antigo lenço de renda.
Um ano desses talvez Marta resolvesse enfeitar a árvore com anjos, e
assim já teria um. O preço estava bom, e Cris sentia-se alegre por ter
encontrado algo diferente e interessante.
Imaginou como seria bom se ela, sua mãe e a Marta fossem sócias
numa loja. Mas quanto mais pensava no assunto, menos agradável o
quadro ia ficando. Mamãe e tia Marta eram muito diferentes. A primeira
era simples, mas firme, e a outra era complicada e cheia de modismos.
Ela olhou para a tia, de tipo mignon, elegante, quieta mas pronta para
ir em direção à árvore e aos presentes no instante em que o pai encerrasse a
leitura.
— Bob, não precisava, protestou Marta. Eu lhe disse que tudo que
queria neste Natal era neve — um Natal com neve. Você já me deu isso.
— Pensei que você iria gostar de ter alguns flocos de neve o ano
inteiro.
Pelo canto do olho, Cris notou a expressão de seu pai. Ele trabalhava
em uma companhia de laticínios, e não era um empresário milionário, dono
de imobiliárias, como o tio Bob.
Quando seus pais se casaram, eram tão pobres, que seu pai dera à
mãe uma simples aliança de ouro, e nunca tinha conseguido dar-lhe sequer
um anel de brilhante de noivado.
Como é que a mãe conseguia agir de modo tão nobre? Nunca tivera
um pequeno diamante em toda a vida, mas olhava para a irmã, feliz de vê-
la contente com uma pulseira cravejada de diamantes. Encostou-se no
marido, colocou a mão — onde estava apenas a aliança simples — sobre a
perna dele, e cochichou-lhe algo ao ouvido. Ele virou-se para ela. Foi
como se estivessem comunicando um ao outro uma mensagem de amor
com os olhos. Era lindo!
Ninguém mais notou o que se passara entre eles, porque Marta, Bob
e David estavam tentando apertar o fecho da pulseira no braço de Marta.
Cris sentiu-se um pouco constrangida, como se não devesse ter
presenciado aquele momento íntimo de seus pais. Contudo, ao mesmo
tempo, isso lhe dava satisfação e senso de segurança.
— Eu vou abrir o meu! disse David e correu para uma caixa grande,
que tinha o jogo de vídeo game que ele mencionara ao tio Bob.
Essas estrelas são os teus diamantes, não são, Deus? São lindas!
Lembram brilhantes espalhados sobre um pano de veludo negro. Por que
tão espalhadas? Deveriam estar juntas para encher tua coroa, e não
espalhadas pelo chão do céu.
E foi só. Não vieram anjos, nem ela viveu uma grande experiência
celestial. Eram só as estrelas no céu e a firme certeza, no fundo de seu ser,
de que Deus a amava. Era a noite de Natal e, assim como os pastores, Cris
se sentiu envolvida num grande e eterno mistério: Deus está conosco!
No dia seguinte, quando Cris acordou, lembrou logo que era o dia de
Natal e ela estava no encantador quarto, no chalé das montanhas.
Recordou-se dos sentimentos maravilhosos que experimentara na noite
anterior.
— Melhor fazer café, disse ele. Esses cheiros são capazes de acordar
o resto do pessoal. O café está daquele lado, no saquinho branco. Quer me
dar?
Bob virou-se para a sobrinha com um sorriso meio sem graça e disse:
— Deus não é fantasia, tio. O amor dele é mais real do que qualquer
outra coisa.
— Se o seu Deus é um Deus de amor, por que ele permite que aquela
criança inocente sofra?
— Ah, jogue fora para mim, faz favor! O vidro está molhado e já
fechei minha mala.
— É mesmo? indagou e virou-se para o pai de Cris. Será que ela não
pode ir conosco hoje? Vocês poderiam ir passar o Ano Novo em nossa casa
e a gente assistiria ao jogo de futebol no meu televisor de telão. O que você
acha, Norton? O pai franziu as sobrancelhas.
O pai pareceu surpreso, como se acabasse de notar que ela estava ali,
de pé. Naquele instante a mãe aproximou-se.
— Claro. Não tem problema, não. É como se fosse uma festa de Ano
Novo a noite toda, explicou Bob.
— Sinto muito, Cris, disse o pai com firmeza, tradição ou não, você
não vai dormir na rua para assistir a uma parada.
— Eu sabia! Nem sei por que me dei o trabalho de pedir. A Katie vai.
Ela foi passear de trenó. E tive de trabalhar aquele dia, lembra? Katie
queria ir ao estudo bíblico em San Diego com Rick e Douglas, e os pais
dela deixaram. Mas eu nem perguntei a vocês, porque sabia que não iriam
deixar. Sempre dizem não.
Cris achou engraçado sua tia, que nunca teve filhos, meter-se a dar
palpites na criação dela e de seu irmão. Seus pais se entreolharam.
Pareciam ter chegado à mesma conclusão, sem trocar palavra alguma.
— Mas ela vai perder a farra com o resto dos jovens! protestou
Marta. A festa da noite anterior é que é o melhor.
Cris teve vontade de dizer: Cale a boca, tia Marta! Vamos aceitar a
proposta que vier.
— Ótimo! falou Cris dando um pulo antes que Marta tivesse tempo
de dizer mais alguma coisa. Muito obrigada por vocês me deixarem ir. Isso
é uma coisa que sonhei em fazer desde que era menina.
— Sim, eu sei, comentou o pai. Estou contente por você ter essa
oportunidade. Talvez possamos planejar para o ano que vem todos nós
irmos juntos.
— Ah, Norton! interveio Marta novamente. Que jovem quer ser visto
acompanhado dos pais num lugar desses? É, estritamente falando, uma
festa da moçada.
— Até logo para todos! bradou ela por cima do ombro, e entrou no
carro aquecido. Acho que vou encomendar daquelas bandejas de queijos e
frios, continuou, uma vez acomodada no carro. São ótimos para uma turma
de rapazes famintos.
Duas horas mais tarde chegaram à luxuosa casa de Bob e Marta, que
dava frente para a praia, e Cris levou sua mala até seu velho conhecido
quarto de hóspedes. Era segunda à tarde e faltavam três dias para a véspera
do Ano Novo. Ela tinha alguns planos próprios. Primeiro, ligaria para Katie
contando que estava em Newport e que seus pais haviam permitido que ela
fosse ao desfile. Depois ligaria para Trícia, para verificar se elas podiam se
encontrar nos próximos três dias. Talvez ligasse para o Douglas também. E
se sentisse muita coragem, telefonaria ao Rick, tentando resolver suas
diferenças por telefone, de modo que, ao avistá-lo no desfile, as coisas não
estivessem tão tensas entre eles.
Marta tinha outros planos para Cris nessa semana. Antes que a moça
desfizesse a mala, a tia já estava batendo suas unhas de acrílico na porta,
pedindo permissão para entrar.
— Ah! Vamos lá! Certamente você deseja convidar mais que isso!
— Cerveja?
A elaboração da lista durou quase meia hora. Cris estava ansiosa para
acabar logo com aquilo, para poder telefonar. Mas no momento que Marta
terminou a lista, Bob chegou com a dele.
— Não, jantar num restaurante será excelente. Por que não fazer
reserva no Five Crowns? Acho que ainda não levamos a Cris lá.
— Claro, disse Marta. E Cris, você pode separar sua roupa suja?
Provavelmente, já acabaram as limpas. Pensando melhor, é capaz de você
só ter as roupas de montanha. Amanhã cedo temos que ir às compras para
você ter o que vestir no "Desfile das Rosas".
Com isso ela fechou a porta, deixando Cris num silêncio repentino.
Ela permaneceu sentada por um momento, a cabeça ainda girando com
tantas informações recebidas em tão pouco tempo. Cris pensou:
Tem horas que eu queria que meus tios ficassem pra lá, e me
deixassem em paz!
— Essa blusa não serve, não. É muito esporte. Você não tem outra?
Eu não lhe disse que vamos a um bom restaurante?
Bob interveio.
— Vocês duas estão lindas! Se quisermos chegar na hora que
reservamos, às cinco, temos que sair agora.
Cris resolveu que um sorriso seria sua melhor resposta. Afinal, como
podia reclamar da generosidade da tia? Além do mais, já aprendera a
protestar apenas com relação às coisas mais importantes, como a
declaração do tio de que Deus não podia ser amor se deixava a criança do
jornal morrer de fome. Cris ainda não tinha resposta para a pergunta que o
tio lhe fizera na manhã do Natal. Mas sabia que ele estava enganado, e um
dia mostraria por quê.
Talvez isso fosse parte da resposta que daria ao Bob. Talvez Deus,
em seu amor, tivesse dado a alguns em abundância, mas esses não
compartilharam com os necessitados, e as coisas foram piorando até o
mundo chegar ao estado atual.
Douglas pigarreou.
— Poderia dizer à Senhorita Cris que o Sr. Douglas veio lhe fazer
uma visita de cortesia?
— E qual é?
— Liguei para sua casa ontem à noite. Sua mãe me disse. Ela falou
também que você vai ao "Desfile das Rosas" conosco.
— Ah, eu fiz isso uma vez antes. É legal. Mas faz muito frio e a
gente não dorme nada. E ficar comendo hambúrgueres e cachorro-quente
só é bom nas primeiras quatro horas. Quando começa o desfile, todo
mundo já está um tanto exausto. Prefiro ir de carro, de manhã. Podemos
sair cedo, tomar café na estrada e depois ir nos juntar aos amigos que a
essa altura estarão famintos e rabugentos. Que é que você acha?
— Tenho certeza que já vi você por aqui. Não foi você que veio
numa camioneta amarela ano passado, logo depois que eu e Cris chegamos
do cabeleireiro?
Resolveu que logo que conseguisse se livrar dos planos da tia Marta,
iria procurar a Trícia e perguntar como ela conseguira continuar sendo
amiga do Douglas.
— Como? perguntou ele. Tem uma tarefa na sua lista para mim
também?
Cris não acreditava que ele tivesse comido tudo que lhe serviram.
— Parece que está com planos para um dia cheio. Não quero
interromper, disse Douglas, afastando a cadeira. Mas queria lhe perguntar,
Cris, se não tiver programa para hoje à noite, quer jantar comigo lá na casa
da Trícia?
Por um instante ela pensou que ele ia convidá-la para jantar fora com
ele e começou a se apavorar, sem saber o que responder.
— Tem certeza de que está tudo bem com a Trícia e a mãe dela?
perguntou, quando percebeu que o convite era para ir à casa da Trícia.
— Claro! Disse a ela, ontem à noite, que você estava aqui, e ela me
pediu para convidá-la.
Na verdade, ela queria saber se ele tinha notícias do Ted, mas sabia
que era pouco provável.
— Quem é Joabe?
— Onde será que ele enfia tudo aquilo? E como ele ainda consegue
bater bola por aí depois de comer daquele jeito?
— Posso lhe fazer uma pergunta pessoal? Se não quiser, não precisa
responder.
— Pode. O quê?
— Não.
— Espere aí! falou. Você quer dizer que o Ted já a beijou? Cris
aprumou o tronco, sentindo-se um pouco sem graça.
— Não fique assim tão séria. Ei! Sabe o que dizem por aí, não sabe?
Às vezes é preciso beijar uns sapos para que o príncipe encantado apareça.
O Desfile das
Rosas Brancas
11
— Muito obrigado!
— Falei com o meu tio sobre o Joabe, disse Cris, e lhe dei o endereço
e disse que eu quero apadrinhar uma criança. Eu lhe disse que achava que
ele também deveria apadrinhar algumas.
— Boa. Não disse muita coisa. No Natal nós tivemos uma discussão.
Ele indagou como Deus podia ser um Deus de amor e deixar pessoas
morrerem de fome no mundo. Ontem falei pra ele que achava que Deus lhe
dera bastante dinheiro para ele poder ajudar a solucionar o problema da
fome no mundo, mas ele tinha que se dispor a repartir seus bens com
outros.
— Jó? Foi aquele cara da Bíblia que passou por todo aquele
sofrimento, não foi?
— Foi. Ele perdeu tudo que tinha, mas permaneceu firme e não
culpou a Deus por seus problemas. No final, Deus o abençoou muito,
dando-lhe mais do que ele tinha anteriormente.
— Sei bem o que você quer dizer. Deus é mesmo tremendo, radical,
não acha?!
— Ainda bem que deu certo. Você é como uma irmãzinha para mim,
Cris, e gosto de ficar de olho em você para o Ted, comentou Douglas, e em
seguida deu-lhe uma olhada significativa, como se não devesse ter dito
aquilo.
Cris olhou a pulseira e naquele momento se deu conta de que ela era
a única coisa do Ted que não tinha guardado naquela caixa.
— Mas o Ted me pediu para fazer isso? Não. Eu quero estar com
você porque você é você e valorizo nossa amizade. Eu não sou mesmo de
namorar muito. A Trícia, provavelmente, lhe contou que sou melhor como
amigo do que como namorado, não contou?
Conhecera os dois no mesmo dia. Por que será que ela e Ted eram
tão próximos, enquanto ela e Douglas eram "apenas amigos"?
Ele entrou numa área de chão batido, parou ao lado de outros carros
e desligou o motor. Ele e Cris pegaram cobertores, uma pequena caixa de
isopor e, é claro, o saco de brownies que tinham guardado, e saíram com os
braços cheios.
Cris notou uma casa antiga com uma ampla varanda e uma enorme
árvore no jardim da frente. Haviam colocado uma rede entre a varanda e a
árvore, e dois meninos da idade do seu irmão estavam juntos na rede,
enfiados sob cobertores e parecendo um imenso casulo suspenso no ar frio
da manhã.
Tio Bob tinha razão. Todo mundo dorme na rua esperando a parada.
Se meus pais pudessem ver isso, iriam compreender que não havia perigo
em me deixar passar a noite aqui também.
— Me parece o Rick, disse Cris. Não sei quem é o cara que está com
ele.
— O quê?
— Ah, bobagem! Por um instante pensei que fosse o Ted. Ele tem um
moletom desses.
— Olhe ali! falou Katie apontando para o outro lado da rua onde um
moço montava uma câmera de televisão sobre uma plataforma ajustável de
metal. Olá, mamãe! exclamou ela, acenando para a câmera. Feliz Ano
Novo!
— Oh! exclamou Trícia que se assustara com ele. Olhou para a Cris e
para o Rick e disse:
— Então, talvez você deva dar uma passada no meu escritório, disse
ele, dando-lhe a mão para que ela se levantasse.
Cris olhou para a Trícia como quem pergunta: "Como você teve
coragem de fazer isso comigo?"
— Sabe, você é a única menina com quem fiz isso, disse ele, com um
meio-sorriso.
— Fez o quê?
— Ter uma conversa depois de terminado o namoro. Você é a
primeira. Às vezes as amigas delas me procuravam, geralmente para dizer
que eu tinha sido um cafajeste com a amiga.
Esse era o lado vulnerável do Rick que, como ela percebia, ele não
mostrava muito. Fitou-o como que a dizer-lhe que continuasse.
— Você sabe muito bem que sempre tive ciúme do lugar que o Ted
ocupa em sua vida. Talvez haja lugar para nós dois, talvez não. É você
quem vai ter que decidir. Não vejo mal algum em sermos amigos e em
você ser amiga do Ted, enquanto for só isso. Amizade.
Cris gostou da idéia, apesar de haver algo na voz do Rick que lhe
dava a impressão de que ele queria mais que isso no relacionamento. Mas,
por enquanto, ele parecia disposto a esperar e ser apenas amigo,
exatamente o que ela queria dele. Era difícil acreditar que era o mesmo
Rick que a deixara no estacionamento do shopping uma semana antes.
Fosse lá o que fosse que o tinha amaciado, Cris estava satisfeita e mais
aliviada. Finalmente, podia entregar completamente esse relacionamento
ao Senhor.
Cris lembrou-se das rosas vermelhas que Rick lhe dera quando
namoravam. Assim que haviam murchado, ela as jogara fora. Rick olhou
de novo o tabuleiro e perguntou:
— Pureza de coração.
Assim que o vendedor foi embora, ele virou-se para Cris e disse:
— Você é a primeira garota a quem dou uma rosa branca. Você ouviu
o que ele disse? Significa pureza de coração, e é isso que você é, "olhos de
matar".
— Ainda bem que você forçou. Acho que se não fosse assim, não
teríamos conversado. Você fez o que era certo. Obrigada, Trícia.
— Está brincando!
Assim que apareceu o carro seguinte, Cris levantou sete dedos, aos
quais Katie respondeu erguendo três dedos acima da cabeça de seus
amigos. Rick deu quatro, e Douglas cinco.
— Mas não estou vendo seus dedos indicando isso. Trícia enfiou sete
dedos no rosto de Cris.
— Tá vendo agora?
— Esse rapaz não dá folga, hein! falou Trícia bem alto, em meio ao
som da música.
— Acho que não devo virar-lhe as costas, comentou Cris, abanando a
cabeça. Pelo menos é o que diz o Jon, o meu chefe.
— Você devia ter visto o Rick no semestre passado com uma garota
que morava no nosso bloco de apartamentos. Não lhe dava folga, e ela
mandou-o sumir em pelo menos quatro línguas.
— O Rick sabia o dia em que ela lavava sua roupa. Acho que era
toda terça à tarde. Ele ia até a lavanderia com um cesto de roupa suja e a
esperava, fazendo de conta que era "por acaso" que ele estava lá dobrando
suas roupas. Depois voltava para o apartamento com as roupas sujas todas
bem dobradinhas.
— Ela nunca nem lhe disse o seu nome! Esse cara não sabe levar um
fora.
Ele estava dando sete, e Katie tinha erguido cinco dedos. O resto do
grupo se pôs a dar as notas. Douglas olhou rápido para o carro alegórico e
deu "seis".
Cris não sentia mais vontade de brincar. Obviamente sabia que na
faculdade o Rick conheceria outras garotas e provavelmente ficaria de
namorico com alguma. Mas nos dois primeiros meses ele ainda era seu
namorado. Sentiu uma dor na boca do estômago, pensando que enquanto ia
com ela à praia, no final de semana, ficava correndo atrás de outras garotas
na lavanderia, durante a semana.
Cris fez que sim, mas Trícia sabia que não era bem assim.
— Por quê? Por ter gostado de um cara e saído algumas vezes com
ele? Não vejo mal algum nisso. Agora vocês são apenas amigos. Não tem
nada de idiotice nisso.
Rick deu um, Katie deu dois, Douglas e Trícia deram três, e bateram
as mãos em cinco por terem dado a mesma nota. A princípio, Cris não quis
levantar as mãos. Mas depois, lembrando-se de que estava entre amigos e
deveria ser livre para expressar sua opinião, ergueu as duas dando um dez
perfeito, declarando a todos que acreditava em contos de fadas.
Rick notou e, pensando que era piada, deu um dez junto com o de
Cris, ficando de pé e assoviando para chamar a atenção da "Cinderela". A
moça nem olhou para ele, e Cris tentou dizer a si mesma que também não
deveria ligar para ele. Achava mesmo que merecia nota dez. E daí se o
Rick estava debochando dela? O que ele entendia de contos de fadas?
— Guarde nossos lugares. Não deixe ninguém sentar aqui, está bem?
— Foi uma piada engraçadinha a sua, Cris, disse Katrina. Quer dizer,
dando nota dez para o último carro.
— Não acho que era piada, disse Katie. Acontece que a Cris é a
pessoa mais romântica do mundo. Você achou mesmo que merecia um dez,
não foi, Cris?
— Achei.
— Por que não? Eles só são rapazes. Alguns deles são tão românticos
quanto nós, talvez mais.
— Verdade, confirmou Trícia. Ele diz que vai dar o primeiro beijo na
esposa dele, no altar, no dia do casamento.
Cris sabia que a Katie nunca tinha sido beijada, mas, em vez de sair-
se com uma de suas piadinhas feito "não ter esse tipo de problema", ela se
afastou um pouco das outras.
Katie não olhou para ela. Querendo ser engraçada, Cris disse:
— Claro que é, disse Cris. Sei tudo a respeito dela. Nunca teve um
namorado e nas poucas vezes que saiu com um garoto não houve nada.
Glen, o cara da igreja, de quem ela gosta, lhe deu um abraço, mas foi só
isso.
Trícia foi até seu cobertor, abrindo caminho para a Cris. As pessoas
que se achavam atrás delas não pareciam felizes de deixá-las reassumirem
seus lugares na primeira fileira. Douglas aprumou-se quando elas
chegaram no seu pequeno ninho e disse:
Cris notou que dessa vez Katie não imitara as piadinhas do Rick.
Parecia estar chateada. Vários outros carros passaram, e Cris ficou olhando
para ver se Katie tinha saído dessa, mas a amiga parecia perdida em
pensamentos distantes. Perto do final do desfile, Cris viu o Rick inclinar-se
e dizer algo ao ouvido da Katie. Seu sorriso alegre voltou imediatamente, e
ela deu um soco brincalhão no braço dele. Parecia a mesma Katie de
sempre, e Cris respirou aliviada.
— Vocês todos sabem da festinha que vai haver na casa dos meus
tios, não sabem?
— Não, replicou Cris. Tenho certeza de que minha tia tem bastante
para alimentar um exército.
— Ah!
Algo em seu modo de falar soava como uma bofetada em Cris. Por
que dava a entender que Katie ia na frente com ele e ela ficaria no banco de
trás? Por que assumia um ar protetor em relação a Katie?
Como ele estava de óculos de sol, não dava para ver sua expressão,
mas tinha um tom confiante demais. Não era mais o mesmo rapaz terno
que conversara com ela no muro de cimento naquela manhã.
Havia algo estranho. Cris não conseguia perceber o que era. Foi
caminhando, pisando no lixo que as pessoas haviam deixado pela rua e
juntou-se a Douglas e Trícia. Trícia tinha apanhado um saco de papel vazio
e estava juntando um pouco do lixo.
Cris pegou outro saco vazio e depois de catar um pouco de lixo para
sentir que tinha feito sua boa ação do dia, disse:
— É melhor nós irmos embora senão todo mundo vai chegar antes de
nós.
— Você está certa, disse Douglas, temos uma caminhada a fazer até a
camioneta, e a estrada estará muito movimentada. Acha que pode deixar
essa de gari para os profissionais pagos, Trícia?
Tinha também uma caixa de isopor, com gelo, uma cadeira de praia,
dois cobertores e o casaco da Cris.
— Vamos lá, Tarzã, disse Trícia, rindo-se. Pelo menos deixe que eu e
a Cris levemos os cobertores.
Cris olhou para fora e pensou que Rick e Katie estavam no Mustang
vermelho em algum ponto dessa confusão. Eles tinham estado juntos a
noite toda, só os dois, e a Katie não abrira o bico sobre o que aconteceu.
De repente, ela entendeu por que Katie não dissera que nunca tinha
sido beijada.
— Não, Katie, você não pode ter feito isso! disse Cris em voz alta.
— Não, resolveram não vir. Conversei com sua mãe sobre a festa e
ela achou melhor não vir. Disse a ela que você poderia voltar para
Escondido com o Rick.
Está certo, Deus, orou ela baixinho. Mais uma vez eu me entrego.
Pensei que fosse acontecer algo entre mim e o Douglas, mas ele me vê
como uma irmãzinha. Pensei poder acertar a situação com o Rick e me
sentir bem sobre tudo, mas agora estou chateada porque ele gosta da
Katie. Desisto! Não consigo fazer as coisas darem certo como eu queria.
Entrego ao Senhor todas essas pessoas.
— Por nada. Só que esta festa é sua, todo mundo está na outra sala e
você está aqui sentada sozinha.
— Eu precisava pensar um pouco.
— Vai ver que isso significa que no fundo você queria mesmo
mandá-lo "passear". Queria terminar seu relacionamento com ele, disse
Helen, procurando ver se Cris concordava.
— Nem sempre sou a melhor pessoa para dar conselho, disse Helen
calmamente. Mas sei que você tem de largar o passado para trás, e seguir
em frente, rumo ao futuro. Não é um conselho meu. É da Bíblia, portanto
sei que é certo.
Helen sorriu.
— Ainda bem, porque esse foi meu voto de Ano Novo, disse ela.
Aprender a servir a todos. Que bom que pude ser útil a você!
— Sei sim!
— Tudo bem, disse Katie, sem olhar para a amiga. Não pense mais
nisso.
— Tem mais. Você é minha melhor amiga. Temos que ficar firmes,
juntas.
— Se você gosta do Rick, está tudo bem comigo. Conversei com ele
hoje cedo e acho que ficou tudo resolvido entre nós. Somos apenas amigos.
Ele pode se interessar por quem quiser, e se for você, ótimo!
— Eu sei.
— Não foi como você pensou. Eu não sabia que ele ia me beijar. Era
Ano Novo. Todo mundo na rua estava fazendo uma enorme farra, e à meia
noite estávamos fazendo a contagem regressiva e de repente o Rick me
beijou. Todo mundo estava se beijando. Era a passagem de Ano Novo!
— Mas não está não! Ele veio tão rápido e com tanto ímpeto que eu
não soube como reagir. O pior é que você estava certa quando falou em
lábios virgens, até ontem à noite. Eu nunca tinha sido beijada. Eu tinha
tanta inveja de você, Cris! Nunca pensei que um cara quisesse me beijar,
muito menos o Rick.
— Não se sinta assim, Katie. Tente ver a coisa desta maneira. Foi seu
primeiro beijo, e isso é maravilhoso. Era Ano Novo e não há nada demais
num beijo rápido à meia noite.
Cris examinou o rosto de sua amiga para ver se ela confirmava o que
Cris dizia e perguntou, meio tímida:
— Foi só isso, não foi? Um beijinho curto? Quer dizer que vocês não
passaram a noite num amasso ou coisa parecida?
— Não sei. Acho que sim. Mas eu admiro o Douglas. Ele vai fazer a
esposa dele se sentir muito especial.
— Concordo com você. E pode ser que você tenha razão quando ao
fato de que o Douglas é um pouco extremista. Logo ele, que gosta tanto de
estar abraçando os outros, a gente esperaria que ele gostasse de beijar
também. Mas eu o admiro por essa decisão e garra que ele tem em cumpri-
la. Além do mais, parece que ele e a Trícia não tiveram problema para
voltar a ser só amigos, porque não tinham que tentar esquecer a parte física
do relacionamento.
Esse negócio de ser servo talvez não seja assim tão difícil, afinal
Deus tem um jeito de fazer as coisas cooperarem para o bem quando o
permitimos.
— Deve ter sido um gol muito bem feito, disse Katie, pegando um
saco de batatas fritas e procurando uma Coca-Cola.
— Escute só! É a Marta gritando e ela nem liga para futebol. Trícia
também está dando urras. Devem estar tendo uma luta de travesseiros lá
dentro.
— Escute só! Agarre os chocolates e vamos mostrar a esses caras o
que é uma verdadeira briga de travesseiros.
— Acho melhor você vir aqui fora, Cris. Parece que o convidado
número dezessete acaba de chegar!
*
Lei: um colar feito de flores com que os havaianos presenteiam os amigos ao chegarem
ou ao viajarem. (N. da T.)
**
Plumerias: flores de cor branca e muito perfumadas, usadas para fazer leis no Havaí. (N.
da T.)
A Contagem das Estrelas
14
— Não foi nada. Aqui, isso é para você, Kilikina. Sentindo prazer em
ouvi-lo chamá-la pela versão havaiana de seu nome, Cris olhou enquanto o
Ted tirava um lei de plumerias e orquídeas do pescoço e o colocava no seu,
dando-lhe um beijo em cada face.
— Sim, voltei.
— Ah não! protestou ela. Pode dar para uma das garotas. Olhe, a
Katie ainda não tem um.
— Faz uma hora que cheguei. Fui à casa do Douglas e a mãe dele
disse que vocês estavam todos aqui. Eu estava na "fila de espera" para
pegar um avião de Honolulu e consegui vaga hoje cedo.
— Estava fabuloso!
Ele estava tão queimado! Nem no verão Cris o tinha visto tão
bronzeado assim. Seu cabelo estava quase branco. Ela notou que estava
muito mais comprido do que antes, principalmente atrás, onde fazia cachos
na nuca. Ted estava diferente. Muito bem mesmo, mas diferente.
Vamos lá, seu garoto de praia desmaiado pelo surfe, pensou Cris.
Pare de ser tão tranqüilo e nos conte o que aconteceu.
Será que foi a segunda-feira em que orei pelo Ted quando eu estava
no trabalho?
Ele sorriu.
— Que horror! exclamou Marta. Por que vocês fizeram uma loucura
dessas? Podiam ter morrido todos!
— Então esses caras com quem você estava vivendo não eram
cristãos? perguntou Douglas.
— Você ainda não falou da competição. Como foi? Foi para isso que
você se esforçou tanto, não foi?
— Não participei.
— O quê?
— Deslizei na minha onda na segunda-feira. Mas nunca mais vou
surfar uma daquelas. Nunca. O Kimo foi salvo, e foi só para isso que fui lá.
Cris contou a todo mundo que no ano anterior o Ted fora picado no
pé por uma abelha e ele inchara, ficando com o dobro do tamanho normal.
— Ele tem que andar sempre com um antídoto e se for picado, tem
de tomar uma injeção imediatamente, senão pára de respirar.
— Ainda bem que você chegou inteiro. Vai ficar por aqui algum
tempo?
Ela ia protestar, dizendo que a viagem era longa e ele devia estar
cansado, mas não conseguiu palavras. Um sorriso nos lábios demonstrou
seu apreço.
Dessa vez ele abriu a porta e ela entrou. O veículo estava vazio mas
cheirando um pouco a mofo. Ela se ajeitou no lugar para não sentar-se
sobre um rasgo na poltrona.
— Parece que a "kombi nada" está precisando de um banho.
— Ah! Acho que sei qual é o seu problema, disse ele, entrando num
posto de gasolina e saltando do carro.
Ted correu até um cesto de lixo e jogou a pizza fora. Voltando, disse:
É isso aqui? Você arriscou minha vida para me trazer a uma área de
surfe que nem consigo enxergar no escuro?
— Venha cá. Quero lhe mostrar uma coisa, disse ele, pegando o
casaco de Cris no banco de trás.
— Em cima da kombi. Venha por trás e eu lhe dou a mão. Cris foi
andando e apalpando a kombi. Chegando atrás, pôs o pé no pára-lama.
Dessa feita, como naquele dia, Ted não disse nada. Ficou olhando as
estrelas.
Nesse momento ela não achou ruim o silêncio. Ted estava ali ao seu
lado. Eles podiam ficar juntos, calados. O importante é que estavam juntos.
Ela virou a cabeça para trás e olhou as estrelas.
Cris queria que ele dissesse que estava pensando nela. Mas afinal de
contas, por que estranharia que o Ted pensasse em algo espiritual e meio
inusitado na véspera do Natal?
— Isso, pai de uma grande nação, mas ele não tinha nenhum filho.
Parecia uma grande piada. E então, certa noite, Deus mandou que ele
saísse de sua tenda e disse: "Olhe para os céus, ô meu! Conte as estrelas se
você consegue. É assim que serão os seus descendentes"!
— Quero ter fé igual a dele, disse Ted, virando-se para Cris. Sua voz
ficou mais grave.
Cris escutava seu coração batendo mais forte. Havia dois anos que
esperava o Ted falar de um compromisso com ela. Será que seria agora?
Então é aqui mesmo que quero estar. Ao seu lado, contando estrelas.
F I M