novas, e fraternas, vozes na literatura brasileira
moacyr scliar
marcado pela insuficiência e pela precariedade, diz livia garcia-roza na
introdução deste livro, o ser humano tem necessidade de agrupar-se, buscando seus semelhantes para além do pequeno grupo familiar, biológico. assim, os primeiros gregos, pastores seminômades, formaram confrarias baseadas em deuses e em antepassados comuns. a fratria, conclui a escritora, constitui-se em novo espaço simbólico – muito adequado, portanto, para escritores, pessoas que fazem do imaginário a matéria prima para seu trabalho. ao espaço simbólico corresponde um espaço real. estamos diante de ficção genuinamente brasileira; aqui comparecem escritores de vários estados. isto não significa, contudo, uma representação regionalista, como acontecia freqüentemente com antologias de contos no passado. foi o caso de contos brasileiros, seleção organizada por graciliano ramos, e que abrangia três volumes: sul e centro-oeste, norte e nordeste, e leste; histórias que datam principalmente da primeira metade do século vinte e que falam de um brasil ainda rural, o linguajar da região marcando a obra dos escritores. o brasil de hoje, urbanizado, conectado pela tevê e pela internet, apresenta-se, para o bem e para o mal, muito mais homogêneo. a representação de diversos estados nesta antologia, é assim mais uma questão de “justiça distributiva”, do que de representação de linguagem ou de estilo. outras “injustiças” foram corrigidas. num país em que, até há pouco tempo, a voz feminina tinha escassa presença na ficção, uma antologia em que, dos dezessete autores onze são mulheres não deixa de representar uma boa notícia. por último, nota-se que todos os autores tiveram liberdade para elaboração de seus textos. não há um tema comum (mas há uma comunidade temática; mais sobre isso daqui a pouco), não há sequer limitação de espaço. existem traço comuns entre estes contistas. são, ao menos do ponto de vista deste veterano escritor, pessoas jovens, em sua maioria nascidas nos anos cinqüenta e sessenta. e têm uma formação eclética e diferenciada: quatro psicanalistas (a começar pela própria organizadora), quatro jornalistas, duas educadoras e até um (brilhante) editor, luiz schwarcz. se existisse uma bolsa de cotações literárias, o conto seria nela o gênero que mais profundas oscilações experimentaria. basta observar o que aconteceu no brasil. houve épocas em que o conto gozava de enorme prestígio, como foi o caso dos anos sessenta e setenta. sobretudo em minas gerais apareceram então numerosos, e talentosos, contistas. seu exemplo era seguido em muitos outros estados, a ponto de wilson martins observar à época que o conto estava se tornando um equivalente do soneto, tamanha a preferência de estreantes pelo gênero. não raro iludidos, diga-se de passagem, pela aparente facilidade da história curta, e também pelo conceito de mário de andrade, segundo o qual conto é tudo o que o autor quer chamar de conto. os contistas seguiam certas tendências. primeiro, o regionalismo, do qual já falamos; depois, a literatura engajada, politizada (e às vezes, panfletária) que teve dois momentos: até os anos cinqüenta o modelo era o realismo socialista (do qual jorge amado foi, numa fase de sua carreira, o expoente) e, mais tarde, a literatura de protesto contra a ditadura (exemplo: ignacio de loyola brandão). esta confundiu-se, a certa altura, com o realismo mágico (de um murilo rubião ou de um j.j.veiga) que apareceu numa fase em que governos autoritários eram a regra na américa latina. o realismo mágico era aqui a versão fantasiosa, satírica, da sombria literatura do absurdo de um franz kafka. também existiam gurus. em diferentes momentos guimarães rosa, dalton trevisan, rubem fonseca e clarice lispector serviram de modelo para aqueles que estavam se iniciando na arte do conto. bons mestres, mas nem sempre fáceis de imitar. não são todos que conseguem dominar a técnica roseana de criar palavras. chegamos assim à presente antologia. quais os seus característicos? em primeiro lugar, impressiona o domínio da forma literária demonstrado pelos autores. o que não chega a surpreender. vários deles tem livros públicos, vários foram aplaudidos pela crítica e/ou receberam prêmios de prestígio, como o casa de las américas, o jabuti, o guimarães rosa. em segundo lugar, trata-se de uma literatura nova, no sentido de que não encontramos aqui nenhum dos característicos antes enumerados: nada de regionalismo, nada de realismo socialista ou realismo mágico, nada de imitação de gurus. É o conto de um novo brasil. e qual a característica maior dessa nova literatura, nessa nova fase do país? acho que poderíamos resumi-la em uma palavra: maturidade. maturidade na forma, que troca os pseudo-vanguardismos pela sobriedade; e maturidade no conteúdo. o que temos aqui são os dramas da classe média urbana brasileira (da qual provêm estes autores), dramas que resultam do relacionamento pessoal, mas que têm um pano de fundo social. a classe média é a caixa de ressonância dos dramas brasileiros; é a classe média que sofre os assaltos, que tem a mais perder com a instabilidade econômica. e é a classe média, frustrada ou esperançosa, que está decidindo eleições. com sua arte, sua sensibilidade e – por que não? – sua sabedoria, os autores aqui reunidos, ana maria da costa, bernardo ajzenberg, cíntia moscovich, claudia lage, ivana de arruda leite, lívia garcia-roza, leticia wierzchowski, luiz rufato, luiz schwarcz, marçal aquino, marcelino freire, márcia guimarães, maria rita kehl, maria valéria rezende, marília sodré, nelson de oliveira, rosa amanda strausz, nos dão um abrangente panorama da renovada literatura brasileira. o que é, para os leitores deste país, motivo de celebração.