Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
As Sete Fontes
romance
Edições ArcosOnline.com
Título
As Sete Fontes
Autora
Concha Rousia
Editor
Victor Domingos
editor@arcosonline.com
Data de edição
17 de Maio de 2005
Edição
Edições ArcosOnline.com
www.arcosonline.com
Este trabalho encontra-se registado na Inspecção Geral das Actividades Culturais, sendo
agora a sua publicação e distribuição gratuita, sob a forma de e-book, efectuada com a
autorização da autora. É permitida a sua impressão e redistribuição em papel ou suporte
digital, desde que isso seja feito sem propósitos comerciais e todo o seu conteúdo
permaneça inalterado.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 2
SOBRE A AUTORA
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 3
A Suso, sempre
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 4
PRÓLOGO
Isaac Alonso Estraviz
Universidade de Vigo
Acabo de ler muito atentamente e com verdadeiro prazer o romance de
Concha Rousia intitulado As Sete Fontes. Romance que começa na cidade das
Burgas, uma das cidades mais tratadas na nossa literatura. Mas este tem o seu
desenvolvimento em terras provincianas, que não têm sido ultimamente
alheias à literatura galega.
Nele a autora enfrentase frontalmente ao problema do caciquismo
político e religioso e à corrupção que grassa por toda a parte. Tira à superfície
uma série de problemática que faz que o nosso povo não seja o que deve ser. A
luta entre a sobrevivência e a falta de forças ou de interesse para nos
enfrentarmos a todo um entramado de condicionamentos que não permitem
que o povo galego saia da sua submissão estúpida e lhe falte a força suficiente
para ser dono da sua história e do seu futuro, romper os laços que o inutilizam,
destripar os que não permitem que seja livre e dono do seu destino e dos seus
bens.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 5
Bouça Brei e colaborações de personalidades de ambas pátrias na revista
Quatro Ventos. Quer nos livros, quer na revista, os textos galegos deixam muito
que desejar. Depois e ainda hoje se segue com a mania de falar de traduções de
galego para português ou de português para galego como se de duas línguas
diferentes se tratasse.
É realmente uma estupidez, pois um texto português percebese muito
melhor com a sua ortografia que com o invento ortográfico empregado na
Galiza, que tudo desfigura. As palavras galegas, que são as mesmas que as
portuguesas não se podem escrever de maneira diferente.
É certo que o português da Galiza é um bocado diferente se comparado
com o chamado português padrão. Mas não se a comparação se estabelece
com os falares populares do Norte de Portugal. Falares tão portugueses e tão
galegos como os outros. Nos falares de aquém e além Minho há as mesmas
contracções: pra, prò, co, coa... Estas chegam a Lisboa e ultrapassam o seu
domínio. As mesmas formas irregulares de certos verbos: dixe, dixeste, dixo,
dixemos, dixestes, dixerom; quige, quigeste... Pronúncia do v como b; formas
verbais graves: amavamos, matavamos... Podo, poda... Qualquer pessoa que
tenha contacto e um bocadinho de ouvido para escutar os falantes, perceberá
que isto e outras cousas mais são assim. O que não tiver tempo para os
deslocamentos, que consulte as inúmeras publicações monográficas que de
uma ou outra maneira incidem no mesmo. O artigo indefinido ũa, algũa, era
assim como se pronunciava ainda em 1850 sendo condenadas polos
gramáticos as pronúncias que hoje são oficiais, mas que seguem a ser normais
na Galiza, no Norte de Portugal e em grande parte do Brasil. Grande parte do
que hoje se considera norma é fruto de uma transgressão. Para que olhar
despectivamente para pronúncias ou léxico que não se conhece a sua
existência?
Muito léxico que os portugueses definem como léxico galego, é também
português. O meu Dicionário é considerado polas gentes do Norte de Portugal
como o melhor dicionário português com que contam para consultarem nele
vocábulos, frases, expressões que não encontram em nenhum dicionário
chamado português. Na história da lexicografia portuguesa houve uma
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 6
tendência para suprimirem todo o léxico nortenho e imporem um léxico
bastante reduzido do sul.
Hoje Os Lusíadas de Camões é muito mais compreensível para galegos do
que para portugueses. A maioria das anotações – excepto aquelas que se
referem à Mitologia – são inúteis para galegos. As Novelas do Minho de Camilo
Castelo Branco, o mesmo que toda a sua obra resulta muito mais inteligível
para nós do que para a maioria dos portugueses. Miguel Torga, Bento da Cruz e
muitos outros – apesar de que muitas vezes se deixam levar polas modas de
Lisboa – são para nós o léxico mais normal. A Sibila de Augustina Bessa Luís,
tem um léxico tão próprio do Norte de Portugal como da Galiza, como da
minha aldeia. Que português é capaz de ler obras de Aquilino Ribeiro sem um
dicionário na mão.
De Coimbra para o Norte estáse a perder ou ocultar muito léxico
plenamente português e plenamente galego. Infelizmente ainda se trata de um
trabalho por fazer, pois aquilo que está feito resulta muito incompleto e não sei
por que razão alguns vocábulos nem sequer se recolhem. De TrásosMontes
temos um Dicionário dos Falares de TrásosMontes de Vitor Fernando Barros
que estando muito bem feito, são muito poucos os verbetes recolhidos. Só em
quarenta aldeias galegas recolhi eu 13.000. O Falar do Barroso de Rui Dias
Guimarães, um trabalho também muito bem feito, resulta a todas luzes
incompleto. O Vocabulário Minhoto de Manuel Boaventura de grandes
pretensões ficou no vocábulo Espocar. Posteriormente, O Falar do Minho, de
Gabriel Gonçalves, que abrange do A ao Z, tem menos verbetes do que o de M.
Boaventura. Podíamos ir citando um por um todos os materiais recolhidos e
que fazem parte de outras obras.
Que pretendo dizer com isto? Pois que a maioria do léxico do Norte de
Portugal, melhor dito da chamada Galiza Histórica, está ainda sem recolher.
Isto faz pensar que muitos portugueses conhecedores de um padrão aprendido
nas escolas mais aquilo que ainda lhes fica da sua comarca ou de parte da sua
província, ignorantes, portanto, do seu léxico, considerem muito léxico como
exclusivo da Galiza, quando todas essas palavras se estão a empregar nos
umbrais das suas casas.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 7
Ainda assim, pode haver algumas palavras que não tenham
correspondência nalgum lugar. Isto resulta totalmente compreensível, pois
quando uma língua se fala num território extenso e com variantes orográficas e
climáticas, logicamente sempre tem que haver palavras num lugar que não
sejam próprias de outros. Os do interior não podemos ter o mesmo vocabulário
que os da costa. Mas estamos a falar a mesma língua e esse vocabulário é tão
nosso como deles.
Pode, portanto, que algumas palavras se empreguem na Galiza e não em
Portugal ou viceversa, mas isso não quer dizer que aquelas que são
autenticamente galegas não se considerem como autenticamente portuguesas
e que as que são autenticamente portuguesas não se possam considerar como
autenticamente galegas.
O léxico que emprega Concha Rousia no seu romance é galego e é
português, pode ser que algum vocábulo não esteja recolhido ainda, mas que
existe estou plenamente convencido. Em trabalhos feitos com portugueses,
inclusive teses de mestrado e de doutoramento me encontro com as maiores
surpresas. Encontrar em Arcos de Valdevez vocábulos que considerava
unicamente próprios da comarca de Santiago de Compostela. Ou com as
formas verbais tal e como se empregam popularmente na Galiza!!
Esperemos, pois, que esse puritanismo que às vezes apresentam os
nossos colegas portugueses dê passo a uma maior liberdade de espírito e de
criatividade. Compreendese que para um tipo de literatura oficial haja um
modelo mais ou menos estandarizado, mas para a poesia e para a prosa não
podemos matar o léxico que nos é comum e que está aí vivo. A obra de arte não
pode estar limitada aos estreitos cânones de abafamento. De seguirmos assim
seriam inúteis a maioria dos vocábulos que recolhem os dicionários e de
aqueles que ainda é necessário recolher. A língua tem de estar em todos os
âmbitos do saber e em todo tipo de culturas.
Acho perfeitamente válido que C. Rousia incorpore afinal do seu romance
um vocabulário com aquelas palavras que considera desconhecidas no mundo
português. Assim facilita o melhor entendimento do romance. Mas isto teria
que ser frequente em muitas outras obras sejam elas da procedência que
sejam.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 8
AS SETE FONTES
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 9
Angustiado, o discípulo acudiu ao seu mestre
espiritual e perguntoulhe:
– Como posso liberarme, mestre?
– O instrutor contestou:
– Meu amigo, e quem é que te ata?
Pensamento tradicional da Índia
…Como aranhas fantasmais que tecem
o esquecimento da sua própria existência.
Castelão
Quem dera volvermos nascer,
e saber o que sabemos!
Pensamento tradicional de Penacova
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 10
LIMIAR
Bágoas ardentes
pola pia de pedra
Bágoas escaldantes
chora hoje a terra
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 11
De quando em vez o diário Nuestra Región salientará o que se for sabendo
do processo de busca e recuperação da peça roubada, além de darnos conta
do latejar da cidade. Deste jeito esperam que os ourensãos se tranquilizem e
não percam a confiança no labor que desempenham as autoridades.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 12
Capítulo I
A FONTECOVA
Ainda que os seus caminhos já se tinham cruzado muitas vezes, tempo
atrás, os três custodiadores da pia de pedra não lembravam tais encontros,
nem as faces, bastante mais novas, que os viveram. Estes três homens foram
destinados, sem eles saberem muito bem como ou porquê, para cuidar de que
a pia chegue ao seu destino. Andarão durante sete luas, que começarão a
contar quando chegarem à primeira das sete fontes polas que háde passar a
pia antes de arribar ao seu destino definitivo. Terão que esconder a pia durante
o dia para que não seja vista por ninguém, e marchar às suas casas, onde não
lhes hãode topar a falta. Cada noite voltarão a se reencontrar e seguir coa
peregrinação até ao amanhecer, e assim até ao remate do tempo do que
dispõem. Sete são os pontos polos que a hãode levar, e cada um
correspondese com uma das sete fontes das que darão de beber à pia antes de
a depositar no lugar que foi destinado a ela.
A primeira noite, chegaram coa encomenda à Fontecova, o primeiro dos
sete mananciais. Ainda havia vagar para o arraiar do dia, polo que antes de
esconderem a pia tiveram tempo para falar ali na beira da fonte. Nas noites
precedentes àquela, os três homens não tiveram tempo nem fôlegos para se
darem a conhecer. Reinava a confusão nas suas cacholas. Eles os três
lembravam um sonho em que ficavam de pé direito nas portas do Museu
Arqueológico de Ourense; Dom Narciso, o cura, mirando aos outros dous
homens dissera então: “que faço eu à porta deste museu?” Os outros dous, o
Perfeuto RachaPedras e o exalcaide do concelho de Os Mouros, a quem todos
conheciam por RebentaRuas polo seu afã de encanar mais fundo que o
inferno; estes últimos não tinham percebido que aquelas eram as portas dum
museu, eles só passaram polas tabernas da rua sem reparar nunca nele.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 13
Seguido daquele encontro de ensono tudo sucedera tão depressa que os três
homens não tiveram tempo nem para falarem. Agora repousavam na beira da
fonte; aquela fonte, na que com sucessivas mãoscheias beberam eles e mais
deram a sua água à pia, fora destinada, quiçá pola sua localização, a ser a
primeira das sete polas que teria de passar aquela procissão nocturna.
O Perfeuto RachaPedras, que andava algo torpe ultimamente, caíra no
rego da água e ficara todo enlamadurado; Dom Narciso, para lhe tirar
importância ao pequeno incidente, repetialhe que não se preocupasse, pois
antes de que chegasse o dia havialhe enxugar e trapalatrá…; ao Perfeuto
amargavalhe bem ter que aturar esses conselhos, sobretudo sabendo que
vinham dum cura. Ainda que Narciso afirmara e negara essa condição na
mesma frase (“Fui cura mas… agora já não…”) ao Perfeuto, como a toda a
gente, não lhe abondava com que Narciso não dissesse missa para o deixar de
ver cura, e como uma víbora revolviase cara a ele: “que saberás tu, tu nem
sequer foste nunca casado e não lhe tens que dar conta do que fazes ou não
fazes pola noite à mulher!” E isso era certo, o Narciso não lhe tinha que dar
contas a mulher alguma, mas o que não sabia ainda o RachaPedras era que
este cura cada noite, logo da ceia, tinhase que escapar do psiquiátrico do
Couto, onde residia desde um incidente que tivera numa freguesia que linda co
vale onde fica a Fontecova. Tampouco era certo que o RachaPedras lhe tivesse
que dar contas à mulher, ainda que a tinha; e apesar de que muitos lhe
aconselharam que o deixasse, ela seguia a o aturar. O exalcaide, baptizado coa
alprecha de RebentaRuas polos seus exvotantes, tentou fazer de
intermediário entre o cura e o canteiro… “Calai já, tarabelos, que sois mais
maus de aturar do que… ainda nos hãode descobrir por vossa causa… porquê
não tratamos de esclarecer onde é que nos topamos…? Lembrais se algum de
vós esteve antes por aqui, ou lhe resulta familiar este sítio?” O cura engrunhou
o focinho e moveu a cabeça em sinal de não ter ideia de que lugar era aquele; a
escasseza de luz que manda a lua nova não ajudava muito. O RachaPedras
botou uma olhada mais longa e até subiu ao alto do lameiro no que fica a fonte,
depois meteuse no carroucho e disse: “sim, eu conheço isto, estamos em
terras dum lugar que se chama Penacova, e que fica do outro lado desse
outeiro; seio eu bem porque desde o carroucho vi que acolá para o fundo
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 14
estão os penedos da Rainha Loba. Na base daqueles penedos tive eu há anos
uma canteira.” “Penacova… – repetiu Narciso –, eu disse missa em Penacova
alguma vez, já vão lá alguns anos disso… o cura de Penacova tinha andado algo
desassentado… Penacova…” repetiu o cura, e ficou calado, a olhar para o chão
como tentando achar nas ervas, ou quiçá nos seus miolos, alguma ideia que lhe
dera luz àquela noite de incertezas. “Penacova pertence ao concelho de Os
Mouros” – disse o exalcaide. – “Eu fui alcaide nesse município alguns anos, há
também já tempo, mas não me portei mal cos de Penacova…” E disse isto
como quem rosna uma queixa, manifestando a sua desconformidade com um
destino que intuía lhe vinha acima.
Começavam a desaparecer algumas estrelas, polo que esconderam a pia e
foramse, cada quem por seu carreiro. Partiram sem despedirse sequer, os três
sabiam, e então não era preciso mentálo, que à noite seguinte teriam que
juntarse ali de novo, onde ficava escondida a valiosa peça. Esconder a pia não
era tarefa difícil, pois o lugar no que ficava a fonte estava rodeado de poulas
com gestas e piornos de mais de dous metros, e tojais nos que se via
perfeitamente que ninguém entrara a roçar desde havia muitos anos; portanto
escolheram o que ficava mais à mão e encaminhado na direcção que
consoante com as estrelas teriam de seguir na próxima jornada, e ali a
esconderam junto cos trebelhos que usavam para a deslocar: uma espécie de
chedeiro pequeno sobre duas rodas eixadas e um pinho polo que um deles
puxava quando havia que mover a carga. Os outros dous, cada um co ombro à
roda e a empuxar. As pegadas, que ali perto da fonte se espetaram mais, e as
rodeiras, tinham de ser bem dissimuladas antes de partirem para as lavouras
do dia; feito isso, aqueles homens eram livres de voltarem ao seu cotio.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 15
que foi sacada da freguesia na que estava, e para a que fora criada, e anda
ambulante por aí; mas sobre disto o Bispado não tinha documentação que o
pudesse provar, já que nos seus arquivos, actualizados antes dessas datas, não
rezava nenhum movimento de pias. A peça fora recentemente adquirida polo
Museu Arqueológico de Ourense, numa hasta pública, e nele estava exposta até
à noite da sua desaparição. Representantes do Bispado, trás cotejar a descrição
que lhe ofereceram os agentes com as suas avelhentadas notas, sugeriram o
nome duma freguesia como possível origem da peça; porém, isso deveria ser
confirmado, pois nos arquivos não consta pia nenhuma desaparecida em tal
lugar. Ora que também se poderia tratar doutra pia e doutra freguesia, pois,
ainda que não o pareça, todas são similares.
Na secção de sociedade, o diário recolhe a notícia de como os vizinhos da
cidade velha iniciaram uma campanha de recolhida de fundos para mandar
fazer outra pia exacta, e que não lhe perca ponto, à desaparecida. O jornal
também publica um novo verso de Budial, e o anúncio dum adinheirado
ourensão que oferece uma soma respeitável a quem proporcionar informação
fidedigna que ajude a dar co paradeiro da pia. O nome deste enriquecido
cidadão é omitido para lhe evitar a avalancha de possíveis informadores no seu
domicílio. Aquelas pessoas que tenham, pois, algum tipo de informação que
pensem poder ser de interesse, podem achegarse aos escritórios deste jornal,
ou ligar por telefone a um número que é facilitado também polo diário.
* * *
– Cala, RachaPedras, e agacha o lombo que a cousa não se háde mover
só; deixao tranquilo co pinho, já te chegará a ti a rolda.
O RachaPedras seguia um pouco enfronhado porque ontem caíra no
rego e hoje enterrara na lama um sapato que trazia esgalochado e molhara o
calcanhar, polo que não pára de lançar ataques a Dom Narciso, quem semelha
todo calmo e sempre com conselhos de como se hãode fazer as cousas… –
“mas que saberá este, se é um cura qualquer…!?” Não, aquele não era um cura
qualquer, mas o RachaPedras desconhecia a história de Dom Narciso. Dom
Narciso não fora um cura qualquer nunca, nem sequer antes de ser cura; ele,
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 16
para começar, mália as ganas que tinha de se meter cura, contudo os pais… os
devezos de que estudasse,… de o livrar de ter que estar atado à terra como lhes
passa a eles,… que se não servia para outra cousa,… que volta e que dálhe, e
que tal e que sei eu… Por conseguinte, o Narciso rematou no seminário e foise
deixando levar. Ele era um moço alegre, mesmo tinha uma graça com ele que
facilitava a relação com qualquer, polo que os curas do internato mui pronto
ficaram seduzidos por ele e deixavamlhe ir passando as mais das cousas que
fazia, muitas não estavam bem de todo para um futuro ministro de El Senhor,
não obstante já se formalizaria quando se ordenasse; isto que ele fazia agora
eram cousas de rapaz, que com a idade e a ensinança iriam minguando. E
assim foi indo este moço levado polas amparadelas dos que se ocupavam da
sua formação espiritual, e que o converteram em cura. Cura feito e direito;
assim, quase sem se aperceber, Narciso era o titular duma freguesia não mui
afastada da cidade de Ourense. De hoje para amanhã converterase em Dom
Narciso, atrás ficavam os muros de pedra do seminário que o agacharam
durante uma mada ou duas de anos, e agora livre… Quem seria ele ali fora, sem
a frialdade das pedras para dar acougo à sua juventude ainda por viver? Não
tinha outro remédio que descobrilo por si mesmo, e assim, com um talante
quase que de explorador, sem ele nem o querer, começou a sua andaina de
pastor.
Aqueles dias primeiros na freguesia seriam no futuro lembrados por Dom
Narciso como dias livres e felizes, nos que a ilusão era o temão que guiava o seu
fazer quotidiano. Toda aquela gente mostrandolhe respeito…, e não só na
igreja, senão também quando se cruzavam com ele pola rua; mesmo os
homens, que só de se achegarem ao sagrado já tiram a gorra da cabeça e lhe
saúdam com esse aceno submisso, comunicandolhe a Narciso o
reconhecimento da sua superioridade. E o Narciso começou de sentirse
grande, mesmo partícipe merecedor da bondade infinda do Criador… assim
foi como começaram as suas ideações gloriosas…
– Queres tirar duma vez! Sempre estamos na mesma… parece que este
sempre anda nos viosbardos.
Aquele RachaPedras sempre a tanger no Narciso; soltavalhas sem
sequer dirigirse ou fitar para ele a metade das vezes; mas o abade hoje parecia
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 17
não importarse demasiado, andava o homem a olhar para dentro e não
percebia muito as aguilhoadas que coa língua lhe lançava o canteiro;
felizmente a roda lhe mantém o poder ocupado ao RachaPedras, senão este
hoje saltavalhe no pelejo ao cura; e tudo bem seguro que por causa de se lhe
atoar o sapato na lama e ter que andar ao couchopé quando saíram do
lameiro…
À medida que o arraiar se achegava, Fontecova ia ficando atrás. A
Fontecova, um manancial que fervia da terra, dava nome àquele frondoso vale.
O lameiro em que rebentavam aquelas boas águas reverdecia, e já desde longe
se diferenciava bem dos outros; mesmo se sentia latejar a água naquelas tornas
sachadas de ano em ano. Fontecova é o primeiro manancial da freguesia de
Penacova subindo polo caminho de Ameixeiras e não há viageiro da comarca
que não entrara alguma vez a saciar a sua sede com estas ricas águas. Sim, a
Fontecova é muito apreciada. E vá se agradecem os de abaixo o que lhes
decorre. Tal é, que há uns anos quase entraram em litígio uns vizinhos porque
os herdeiros do lameiro onde abrolha a fonte não se ocuparam de desentupir
as tornas, e assim a água era toda sumida e consumida, sem que decorresse
nem gota para os campos lindeiros dos vizinhos, que quase se atreveram a
meter os seus sachos nas tornas da fontela. Tudo se arranjou polas boas, quiçá
porque não lhe ligou de passar por ali a nenhum advogado, ou quiçá porque
todos gostam de não ter que pleitear, ou quiçá por outras razões. Aprenderam
todos daquela que a água da Fontecova não só pertence ao lameiro no que
nasce rompendo os seus torrões, senão que os donos, logo de se servirem dela,
devemna deixar marchar para que livremente banhe outros lameiros
próximos; e certo é que são muitos e bem deles os que se servem destas
águas… Como delas se serviram os três homens, que logo de se saciarem, e dar
de beber à pia que háde estar sempre molhada, partiram e caminharam.
Caminharam bem, e apesar da fraqueza mostrada polo encarregado do pinho,
como frequentemente lhe lembra o RachaPedras: “se faria mais um mosquito
que este palerma…!”, essa noite atravessaram as terras lindeiras a Fontecova, e
internaramse nas carvalheiras da Lagoa. Aquela jornada avançaram avondo,
ainda que não todos ou quiçá nenhum o pudesse reconhecer… tal era o seu
fado. Esconderam a pia e os aparelhos e foramse, cada quem por onde viera.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 18
* * *
* * *
As noites seguintes transcorreram sem maiores intriquidências; o canteiro
parecia menos enraivado co abade, se calhar porque a Lagoa era chã e o
Perfeuto não se tinha que esforçar tanto e tampouco se lhe ençoufavam os
sapatos, que por certo agora levava bem amalhoados; ou também quiçá porque
Dom Narciso seguia ensimesmado com as suas cavilações e não lhe andava a
dar conselhos a ninguém; ou se calhar fosse por ambas as razões ou talvez por
nenhuma delas. O caso é que o exalcaide, que como de costume não tinha
muito que dizer, gozava daquela calma que reinaria nas noites que lhes levou
atravessar a Lagoa de Penacova. A Lagoa de Penacova, como o seu nome
indica, é um terreno parcialmente asolagado, se bem que eles o atravessavam
por uma parte enxoita. A planície vemlhe bem a Dom Narciso para seguir cos
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 19
seus pensamentos, que por certo traziamno algo confundido… Como pôde
ele, tão bem como começara a sua andaina, rematar onde rematou? Narciso
seguia a relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde nasceram
tantos sonhos… Aquele tanto respeito que sentia ele que lhe tinham todos… e
a adoração que lhe mostravam as mulheres…! Esse era o seu deleitar sublime…
verse assim admirado por esses seres que ele considerava doces e suaves,
ainda que, para dizer a verdade, nunca os provara. Ele entrara tão novinho no
seminário, muito antes de descobrir os sentires do corpo, e foi ali nessa
pequena freguesia onde o corpo acordou, correu o trecho que lhe faltava, e
alcançou a sua realização, igualandose corpo e espírito. E sem decatarse
sequer de como, o Narciso passava o dia numa névoa de imagens quase
proibidas que pouco a pouco se foram encarnando… e até acabou
debuxandolhes cara àqueles corpos imaginados. Agora já sempre a mesma
cara, e a seguir também já sempre o mesmo corpo. Inevitavelmente, namorou.
Ela converteuse no ser mais maravilhoso do mundo de Narciso, o seu sol, o
seu temão… e dado quem ele era daquela, a sua perdição. Novamente se
ergueram os muros do seminário e Narciso e os seus superiores
conferenciaram, e o Bispado sentenciou: “Vaiste ir a esta nova freguesia e não
volverás ver essa mulher”… Ora ele amavaa… e até pensara… mas cedeu,
deixouse resgatar, deixouse arrapazar novamente polos seus mestres que tão
benevolamente lhe aconselhavam e lhe perdoavam as suas fraquezas de
homem novo.
O bispo que havia daquela, ao que todos os de dentro se referiam como
“O rechonchudo Severino”, conhecia das debilidades do corpo; e ainda que ele
nunca sentira essa classe de urgências ardorosas baixo as suas apertadas
vestiduras, apertadas não por justas senão por enchidas, mesmo semelhava
que se lhe ia sair o unto polas aberturas de entre botão e botão… e mais de um
dizse que recebeu uma botoada, ao sair um, comprimido pola gordura
amoreada, propulsado… Pois este bispo, seica, entendia da fraqueza humana.
Este bispo mole de corpo e espírito devezia polo chocolate e mais as roscas…
era superior a ele, a sua cadeia escravizadora. Polas noites, antes de dormir,
dom Severino rezava e rezava para evitar aquelas imagens obsessivas de
cunquinhas coloradas com corninhos e um rabo afiado. Assim, a contar
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 20
avemarias, se dormia, e pronto o sorriso se debuxava no seu rosto… nos seus
sonhos habitavam taças douradas com brancas asas, e ele fartavase de
dormir…, o que podia fazer um homem da sua condição? Mas à manhã
vinham os remorsos por entregarse assim nos sonhos. E por isso era um ser
compreensivo. A Narciso serviulhe essa benevolência, polo menos para ir
aguentando.
Da Lagoa já faltava cada vez menos, e o Lombo, cheio de pinheiros, ficava
aí mesmo a os aguardar quando rematasse o dia. Agora havia que marchar, e
assim, como as outras vezes, trás esconderem a pia, esvaeceramse os três
homens.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 21
quem a pôde ter levado a primeira vez, e estudar a sua possível relação coa
desaparição mais recente. Para isto, os dous agentes vão ir visitar esse lugar e
falar cos vizinhos.
…o nome desta freguesia, que fica polo sul da nossa província, será polo
de agora omitido para não contaminar a atmosfera da investigação e enfastiar
o êxito das pesquisas. O jornal seguirá a informar dos progressos que se
produzirem.
Na secção de sociedade, Nuestra Región informanos de que os
promotores da iniciativa popular encaminhada a arrecadar fundos para uma
nova pia, idêntica à primeira e se couber mais bonita – com incrustações de
pedras semipreciosas ao redor da sua boca…–, afirmam que já quase juntaram
dinheiro suficiente para a dita pia substituta, e que com ânsia aguardam o
momento dessa realização. O jornal faz uma exaltação das iniciativas da
vizinhança quando se trata de lutar por salvaguardar os verdadeiros valores da
nossa sociedade.
* * *
Atravessar o Lombo não lhes custaria muito a estes três homens, ademais
era algo de baixada, não muito mas sim o justo para não ter que fazer força nas
rodas daquele trebelho sobre o que levavam a pia. À lua faltavalhe alguma
noite para encher e essa tanta luz que lhes lançava ajudavaos a não
precisarem dos faróis que a cotio levavam instalados em cadanseu lado do
chedeiro para alumiarse. Além disso, esta lua anunciava o minguante, e é esse
o tempo que lhes resta para chegarem à Auguela, o segundo manancial do seu
percorrido. Com um chisco de boa sorte rematariam o Lombo em três ou
quatro noites e ainda lhes sobraria tempo e tempo antes da nova lua. Por este
terreno, algo de bimbarreira, Dom Narciso anda ligeiro, às vezes até deixa aos
outros dous atrás e se vai ele só coa carga. Esta ligeireza que semelha
euforizante faz aparecer ao cura como menos sereno, menos calmo,… como se
realmente andasse na procura de algo… Algo que parece esvaecerselhe cada
vez que tenta achegarse. “Oh, claro, cara abaixo todos os santos ajudam, e este
deve de estar abonado…!” Aquele RachaPedras não perdoava uma, não
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 22
desperdiçava maré para lhe botar a Dom Narciso as culpas por qualquer cousa
que este fizesse ou não fizesse. Esta vez, como outras, o alcaide quis dizer algo,
quis de novo tentar suavizar a tensão que se respirava ao redor daquela pia, e
que sempre ia dirigida do RachaPedras ao padre. O alcaide queria que não
houvesse tensão, o alcaide estava afeito a ter todos os apoios, a mercálos se
fizer falta… por conseguinte ultimamente corrigia ao canteiro, porém, sem
entrar em maior contradição com ele, e este já não lhe fazia tampouco muito
caso, ou melhor dito, nenhum. Esta última vez o alcaide abriu a boca, mas
antes de sequer bafejar o RachaPedras fechoulha de contado: “Cala, cala,
advogado, que tu só dizes parvadas, não te queres nem molhado nem enxoito,
jogando sempre a duas bandas, assim nem perdes nem ganhas. Se não tens
nada com jeito que dizer, caladinho ficas mais guapo”. O alcaide emudeceu e
mouminhou algo para os seus adentros sem que o outro percebesse.
Dom Narciso, enquanto, ajudado pola inclinação do terreno, apurava o
passo; parecia como se o seu andar se pusesse a um co seu percorrer interior,
que hoje é dinâmico e rebordante de energia. Sim, Dom Narciso chegara à
nova freguesia com uma maleta que não semelhava muito grande, ora sim
cheia; ia carregada das ganas de o fazer tudo bem, cheia de sãos devezos e
esperanças… desta vez seria o abade ideal, o bom cristão, o bom vizinho…
Atrás ficaria aquele Narciso moço sempre com sede de louvanças, que se sentia
tão grande polo respeito dos homens; agora seria um mais entre eles. Dom
Narciso abriu a abandonada casa reitoral da freguesia e deulhe o uso que
levava atrasado. Cavou a horta, criou fazenda, cortou a sua própria lenha,
carregou esterco, e até começou de ir ao concelho para ajudar nos labores
comunais: limpar poços, abrir os regos para a rega, ou o que fizer falta; um
vizinho responsável, ele não quer viver só do conto como um cura. E claro…, as
botas verdes de goma não ligam bem co negro da sotana… mal pensava ele que
por aí lhe viriam as críticas. Ora ele não se desanimou, e seguiu co seu
propósito.
Aqueles eram já tempos de os curas começarem de se servir do
automóvel… com varias freguesias para atender… mas o Narciso, fazendo um
grande sacrifício, ia a todas partes a andar, às vezes dando que dizer, porque
todos os curas da zona tinham carro; e alguns até vários. Como esse outro daí
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 23
abaixo em quase chegando à Límia que tem dous da mesma cor e da mesma
marca, mas só um com documentação; e assim lho diz aos guardas quando liga
de o pararem por ir a contramão, ou deixar o auto no meio da estrada; mas os
guardas não o multam, nem sequer o recriminam, “tenha você conta…” e é
que o negro da sotana, que por certo sempre a leva emporcalhada, ainda pode
co verde dos uniformes. Mas Dom Narciso não háde levar sotana, e isso que
bem que lhe ajustaria, pois ele tem o corpo direito e sem barriga, não como
esses curas dos carros que andam a criar gorduras e que de não levar sotana
semelhariam pipotes cheios de pingo.
Narciso trabalha e não precisa das travaduras da sotana, a ele
cumpremlhe roupas que não pejem e permitam mover os músculos, roupas
que lhe hãode ir avantajadas, mas não demasiado, só o justo para caberem
folgadas e facilitar o movimento necessário para o trabalho; com uns jeans,
uma camisa do comércio e umas boas botas de bezerro, vai servido. As meias
hãode ser de lã. Porque ele é trabalhador, Narciso fezse trabalhador e tiralho
ao lombo cada dia, e isso… confunde aos vizinhos e amola aos outros cregos,
que engrunham os focinhos e pouco a pouco o vão isolando. Este cura, que
cada dia parece menos cura e mais labrego em boca dos vizinhos, vai ficando
mais e mais só. E cada dia lhe vêm menos fregueses à missa; e ainda quando o
fazem, às vezes tem Narciso que ouvir o que não quer… Como aquele dia que o
caneco do Rolo, que nem sequer à missa era capaz de ir sem levar um vaso
demais, acirrado polos outros, disselhe em plena igreja: “hoje digo eu a missa,
Dom Narciso, que você já não é cura nem é nada” E Narciso não teve outro
remédio que colhêlo polo braço para o botar fora… Achegouo até a porta e ali
deulhe um couce no cu; depois deu meia volta e todo ancho pôsse a
caminhar até chegar ao altar enquanto dizia: “pra colhões, eu!” Os labregos
respeitam o homem que lhes ajuda no concelho, mas já não vêem nele ao cura,
e a igreja fica vazia. Contudo Dom Narciso insiste: “Hoje vinheste só tu –
disseralhe àquele moço um domingo – pois para si digo eu a missa e os
demais que se arranjem sem ela” Enquanto, os curas de toda a contorna
desprezam o que Dom Narciso simboliza… que caráfio é isso de que os curas
trabalhem!? Isso Deus não o permita… E Dom Narciso descobre os sofreres
desta vida. Os outros sotanaspretas vão tolerando a Narciso porque lho
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 24
ordenam desde acima, mas por detrás vêm a burla e mais a crítica. Dom
Narciso vêse só, predicando co exemplo mas só, predicandolhes às paredes
do seu horto…
O labrego que surgia lá dentro deste cura começou a ver a vida doutro
jeito, começou a vêla como realmente fora pintada para o labrego: dura e
escrava. Mas a quem dizerlho, se já ninguém o escutava? Só os moços, e por
desgraça desses cada dia ficam menos na freguesia. Mas ele resiste, e achegase
até Ginzo para ver à gente nova e falarlhes da injustiça, do avassalamento, dos
caciques, dos Guardias Civiles retirados, dos inspectores de granjas de
UTECO1… estes dous últimos tipos humanos são os mais detestados por
Narciso, que se por ele for fazerseia com eles uma boa empanada para lha
botar aos cadelos. Dom Narciso viaja no coche de linea, esses esfrangalhados
autocarros da Vilaça, nos que te congelas ou te abafas, ou as duas cousas a um
tempo; os sapatos vãoche ardendo enquanto pola janela, que não fecha,
gelaseche a cabeça. A linea dá mil voltas antes de chegar atarricada a Ginzo,
vai percorrendo lugares e enchendose até que não cabe um cristo mais; a
gente amorease polo espaço entre as ringleiras dos assentos, e até nos
degraus… “Sente, sente Dom Narciso” dizlhe alguma velhinha que o
reconhece; mas ele declina a invitação e enquanto, ali de pé, aproveita a
conjuntura para soltar o seu sermão sobre a injustiça, mas as suas palavras
vãose por cima das cabeças e fogem polos vidros rachados do autocarro. E o
vazio entra no coração de Narciso, que já mostra tristura de pessoa abatida…
que fazer? Como aturar a angústia, a soidade, o desprezo…? Por mais que ele
tentava manterse no bom caminho, não parecia obter resultados e vai passo a
passo cavilando mais no que ele sente, em lugar de pensar melhor aquilo do
que fala. E pensando na mágoa que o habita entra nos bares, onde não falta
quem o convide a um vaso… “Beba, beba, Dom Narciso, que esta rolda vai
minha” E Narciso bebe, e conversa, e sentese melhor, e bebe e conversa, e
bebe…e quase sem que se decate está metido no vinho.
A Estrelinha do Luzeiro ordenalhes a partida aos portadores da pia. Cada
um vai por seu carroucho, e como sempre sem se despedir. O Narciso parece
1
UTECO – Sigla da organização de cooperativas agro-pecuárias ourensãs, organismo que agrupava a
muitas granjas na província de Ourense nos anos 70-80, de estrutura e funcionamento caciquis.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 25
tão canso que até o RachaPedras o percebe e por primeira vez dês que
compartem destino morde a língua e não arremete contra o curinha. E assim
pensativos partem os homens cara ao dia.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 26
velha, e para o anúncio da apresentação dum livro de versos do poeta Budial,
que terá lugar a sextafeira dessa mesma semana na livraria do jornal.
Polo que se vê, a Nuestra Región não chegaram os rumores que se criam
polas ruas, segundo os quais as cousas andam revoltas, e onde antes havia
consenso agora há desarmonia, sem dúvida produzida pola divisão de
pareceres entre os vizinhos que integram a comissão organizadora da
campanha de recolhida de fundos para governar o da pia. Dizse que de não
ser pola má fortuna a estas horas já teriam falado co escultor para lhe ir
encarregando a encomenda. Seica se produziram enfrentamentos entre duas
facções: por um lado estão os que defendem a postura inicial de todos, e
querem começar quanto antes o projecto de reposição; por outro, estão os que
após descobrirem que há tanto interesse no tema, querem gastar o que
juntaram fazendo uma viagem ao Caribe, e que seja o milionário o que pague
pola pia, dizse que cada vez são mais os adeptos a ideia do Caribe.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 27
Perfeuto RachaPedras só sabia dar ordens, mandar, mandar, mandar… era o
seu; e que dizer do exalcaide… esse não só dizia embustes senão que os cria
ele mesmo e depois já não precisava escutar a mais ninguém. Não, de escutar
não sabiam muito estes três, e agora não tinham público, nem fregueses, nem
empregados, nem ninguém a quem largar o contido das suas cacholas, e
andam algo confundidos. Que fazer ali no meio da noite tendo só o interior
dum mesmo para dialogar, e não vendo com muita clareza? Só restava deixar
que fosse o homem da moca, quem ditara a conversa, muda, e assim iam
fazendo.
Ao Narciso ficaralhe o pensamento prendido na silveira daqueles bares
de Ginzo; ele, que agora era abstémio, polo menos no que respeita ao vinho e
outras drogas que se possam engolir sem prescrição facultativa, não dava
entendido como se fora metendo na bebida. Ele lembra a fortaleza que tinha e
a firmeza dos seus propósitos e parece que não recorda a angústia com que o
seu espírito tinha que carregar já desde a manhã; era como vestir um corpete
que premesse de dentro para fora. Mas essa angústia esmagadora andava agora
agachada, coa ajuda das pastilhas cada vez lembra menos, já nem sente… mas
claro, agora com tanto tempo para espreitar… Agora, enquanto o sono lhe
obriga a deixar pender a cabeça, vai vendo como os pensamentos se
entrecortam com imagens que manam do fundo dos sonhos… são imagens
desconcertantes que abrolham desse escuro mundo do que ele não tem
controlo, e o que aparece é um homenzinho com um vaso na mão erguida; um
homenzinho que se cambaleia, um homenzinho que cai e desde o chão segue a
falar. Está rodeado de gente e ele pensa que o escuta… mas agora desde a
claridade da noite na Auguela pode ver como aqueles do seu redor se dão de
olho e riem enquanto ele solta o seu discurso sobre a injustiça e a escravitude.
Felizmente essas imagens tremebundas se interrompem e o espertam do seu
ser adormecido.
Dom Narciso fica logo confundido, as lembranças que ele recorda não
eram tão cruas nem tão vivas como estas que o visitam agora enquanto
adorminha na Auguela junto à pia. Ele achegase à pedra fria e interrogase,
que faria ele ali com aqueles dous homens aos que nem sequer conhecia? Claro
que ele ultimamente não conhece a muitos que digamos, mas ainda assim
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 28
aqueles dous não eram dos que iam à missa, e também é certo que ele leva já
bem tempo sem freguesia nem fregueses. O alcaide lembralhe a Dom Narciso
àqueles inspectores de UTECO que ele tanto aborrecera: bem entrado nos
sessenta e com algo de bandulho criado pola falta de trabalho e a preguiça. O
RachaPedras fazialhe pensar no cacholudo que sempre lhe lançava alguma
para se rir dele quando ia aos trabalhos comunais co concelho, que se pouca
cousa, mequetrefe, que se só estorvava, e até trabalhoso lhe deixava cair para
humilhálo; e assim dia trás dia e ano trás ano enquanto durou a sua estadia na
freguesia de Ameixeiras, última na que ele dissera missa e da que fora
arrancado de jeito brusco e definitivo. E agora achavase Dom Narciso ali com
aqueles companheiros que ele jamais teria escolhido. Porquê era ele
merecedor de tal castigo? Ele sabia que cara ao final não actuara bem de todo
em Ameixeiras, contudo ainda andava o homem tentando de adivinhar como
fora ou como não, quando se topou com aqueles dous, e prendido a eles ficava
pola pia. Mas o porquê não o alcançava ainda nem de longe… e assim seguia
cedendo ao sofrer; que por certo, naquele novo jeito em parte consistente em
não saber, não lhe era de todo desagradável. Assim, deixandose levar polo seu
fado ia passando as jornadas nocturnas, que hoje eram descansadas, mas
amanhã viriam as subidas e os esforços que levarão a sabe Deus onde. Aquela
noite o Narciso bebeu muita água, quiçá por terem espertado nele ressacas
passadas, esquecidas pola mente mas não polo corpo que as sofrera e agora as
sentia. O pior ainda era quando à manhã havia que trousar até a figadeira; logo
viria aquele nojo, o arrependimento e a rábia que não topando outra forma de
expressão se encarregava de o devolver aos bares de Ginzo, ou às tabernas da
freguesia. Mas agora só bebia água, dês que o meteram no psiquiátrico só
bebia água, muita água. Donde lhe vinha toda aquela sede que parecia não dar
saciado? Porque, de algures lhe teria que vir, não é? Dês que os batasbrancas
se encarregavam da sua dieta bem suplementada com pílulas, venha água e
mais água. Mas agora, vendo correr aquela tanta água que se espargia pola
cavada abaixo, Dom Narciso sentiase melhor, quase se sentia bem. E ainda
teve tempo de perguntarse que seria o que se andava passando polos miolos
dos seus companheiros.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 29
Ainda que tanto o RachaPedras como o RebentaRuas representavam
para Narciso a duas castas de gente bem desprezadas por ele, e coas que ele
nunca se juntaria, agora vendoos assim, decaídos, coas cabeças topeneantes,
sentiu compaixão; afinal de contas, ele tinha prática nesse assunto de
compreender e perdoar, como lhe acai a um servidor da religião… ainda que
ele não fosse um homem muito religioso. E Narciso fez um esforço e quis
imaginar àqueles homens sendo bons e generosos; quis imaginar a filhos que
os viam como heróis, quis imaginar a mulheres que os queriam, ainda que não
os chegassem a amar, e também a vizinhos que os apreciavam ou tão sequer
que os reconheciam como tais vizinhos,… e Narciso sentiu inveja. Eles, ainda
que não conscientes disso, tinham filhos, ou quiçá os tivessem; eram casados,
e ademais tinham vizinhos… enquanto ele ficava só; só e incompreendido, só e
anónimo, só e no psiquiátrico, só e sem visitas, só e isolado… desaparecendo
do contacto cos outros, desaparecendo das lembranças dos que o tinham
conhecido, dos que quase lhe puderam ter sido amigos, desaparecendo do seu
próprio pensar, desaparecendo… E Narciso fez um esforço por recuperarse,
por sentirse de novo, por sentirse novo, ou polo menos por sentirse. Este
esforço introspectivo, ao que ele não estava afeito, fez que Narciso corresse o
sono e se mantivesse esperto o resto da noite, de jeito que deixaram de o
amolar as imagens procedentes do seu passado inconsciente, se bem é certo
que ainda o mancava a esteira por elas deixada e que o afundia na mais escura
soidade. E ali em frente dos companheiros entregados às escrebadelas,
obrigados polo sono, e portanto alheios a tudo, Narciso chorou, e foi ele quem
se encarregou de avisar de que a Estrelinha do Luzeiro andava a pestanejar.
Sem mediar palavras nem olhadas, os três homens, logo de se espreguiçarem e
de cumprir com as obrigas últimas, partiram pola calada naquela manhã de
Março, um Março que por sorte vinha tépido este ano; se o tempo seguia assim
não teriam que aturar mais chuvas nem geadas.
Na Auguela entraram na segunda lua e já com um pé na primavera
viajariam ao altinho do Zebreiro onde se topa o terceiro manancial das suas
obrigas. Mas isso háde ser amanhã; agora há que partir, e os três homens
marcharam asinha pisando sem decatarse algumas das florzinhas amareladas
de São Bento que a primavera espargira já nas abrigosas beiras da fontela.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 30
* * *
Nuestra Región, faz uma resenha no diário de hoje na que se adivinha qual
vai ser o cometido, e mais o paradoiro, dos agentes lá pola beira da Rousia,
mesmo correndo o risco de que alguém pudesse deduzir o lugar exacto ao que
se dirigem. Mas o jornal, fazendo alarde do conhecimento que tem da
realidade social do país, não duvida em fazer públicos estes comentários.
Parece como se soubessem que as suas páginas nunca serão lidas lá por essa
parte do mundo. Excepto por algum exemplar atrasado que algum visitante
deixar para ajudar a prender o lume. É sabido que o papel do jornal é quase tão
bom como a frôncega da gesta para pegar na labareda enquanto o lume não
enteia, ainda que lareie mais asinha. De qualquer jeito, por se ligara de que os
olhos se pousarem no papel antes de tempo, bastará com evitar a menção do
nome do lugar.
* * *
Quando os agentes chegaram à freguesia olharam polos vidros da igreja
para ver se dentro estava a pia. O relógio de pedra do campanário andava aí
polas dez e meia da manhã, hora esta mui propícia para não topar às gentes do
campo nas suas casas; e menos neste tempo de sementeiras e cavas, mas isso,
como haviam de o adivinhar os agentes da cidade? A igreja semelhava vazia,
excepto por uns bancos de madeira e dous ou três santinhos pequenos. Pia não
viram.
Entraram no lugar polo caminho da Ranha, e nada mais apagar o
automóvel que levavam, avistaram a um homem de pêlo abrancaçado que se
passeava, cigarro em mão, eira abaixo, eira arriba. Aquela, ainda que os agentes
não o sabiam, era a eira da festa, mas agora não estávamos no tempo da festa e
a eira estava vazia, excepto por esse indivíduo que se movia devagar pola sua
superfície como se não tivesse pressa, como se não tivesse a onde ir. E claro
que não tinha outro sítio a onde ir, mas isso os detectives, julgando polo passo
do homem, já o intuíam; ainda assim quiseram avantar a andar e falar com ele
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 31
não fosse que se escapasse. Aquele que eles viam não havia de marchar, mas,
como iam eles adivinhar que aquele homem tinha por ofício o de gandaia?
Senão, como ia ele andar a passearse àquela hora naquelas manhãs de
esterco, sementeiras, e vessadelas? Trás a olhada através dos vidros da igreja
apuraram o passo cara ao homem do que saía um fio de fumo gris, e que agora
visto mais de perto lhes parecia de pêlo como mais prateado, e isso que era
novo. Aviaram o andar não fosse o demo…
– Bons dias! Poderia dizernos você como se chama?
– Pois claro que poderia, eu poderia lhes dizer a vocês como me chamo,
mas depois vocês saberiam mais de mim que eu de vocês… Ora, também é
certo que eu já sei que vocês não são de por aqui, senão não teriam arrimado
tanto o auto ao alpendre, porque saberiam, inda que não fossem deste mesmo
lugar, que esse alpendre está mui bem orientado e baixo o seu telhado nunca
entram chuvas nem orvalhos, o que o faz atractivo para as andorinhas e polo
menos quatro delas andam a fazer o ninho para este ano… eu não lhe vou
contar a vocês, que ademais seguro que já o sabem, do danento efeito dessa
lama na chapa, mas ainda lhe é pior o ácido das cagadas… mas não devem
preocuparse demais, pois este é lugar de muita água e sempre poderão vocês
darlhe uma lavadela ao carro antes de marcharem e assunto arranjado… Vejo
que a sua matrícula…
E aqui foi onde o detective de mais idade e graduação o interrompeu
porque lhe parecia que aquele homem não tinha intenção de parar ali. O
detective ergueu algo a mão e disse:
– Mire, agradecemoslhe a advertência, e para que veja que não somos
pontilhosos, pois não é preciso que nos diga você o nome; isso é, o nome tanto
tem, se quer podemoslhe chamar senhor… M, por exemplo.
– Senhor M? Mas eu não me chamo senhor M, ademais não gosto muito
de como se ouve: “senhoreme”… Por não dizer que por M começa a morte, e o
medo, e a missa, e a merda, e …
– Vale, vale! Escusamos o nome, nós o que queríamos saber é se você sabe
algo que nos possa dizer duma pia que havia em tempos aqui na igreja e que
agora já não está, que deveu desaparecer já há uns quantos anos…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 32
– Claro! Para vocês que tudo o sabem medir, há uns quantos anos mas
para mim a cousa se passou tal que ontem… e olhem vocês bem o que lhes
digo, nessa pia recebi eu o meu nome, sim, sim… esse nome que me faz eu e
que a vocês parece que tanto lhes tem, vamos, que o mesmo lhes dá lé como
cré… pois não, a verdade é sempre única, como única háde ser a sua fórmula
e a palavra que a nomeia, olhem…
– Mire…, a nós não nos interessam os nomes, o único que queremos
saber é se você sabe algo da pia!
– Pois claro que sei algo da pia, os que parece que não se decatam são
vocês… não lhes acabo de dizer que eu recebi o nome nessa pia? E sim, já
sabemos que quando te escolhem um nome não se sabe ainda se vai ser bonito
ou feio até muito mais tarde, porque o nome fálo a pessoa… e o dia que te
molham a cabeça na água ainda o nome está de estreia, ainda que depende de
quem to escolhesse, também tem a sua história, quase sempre se escolhe
aquele do que gostam os padrinhos, afinal de contas eles são os que te levam à
pia. Vocês sabem quem era o meu padrinho? Como o vão saber…! Porque se o
soubessem já se teriam decatado que não me podia chamar ‘Senhoreme’… eu
figurome que ‘Senhoreme’ só se pode chamar…
O agente mais novo escacaranhavase com o riso e ao mais velho
iamselhe apequenando os olhos e engrunhando o coiro da testa.
– A nós tanto nos tem quem se possa chamar senhor M ou quem não.
Olhe, se você não sabe nada da pia, pois diganolo e não nos faça perder mais
o tempo e ao mesmo tempo tampouco perderá você o seu!
– Mas eu não lhe disse que eu sei muito da pia? Se não vão topar a
ninguém que saiba mais que eu dessa pia…! Dessa ou de outra qualquer de
todas as pias que há aqui neste lugar… por exemplo, sabiam vocês que só aqui
há mais de trezentas pias…? Das quais polo menos cem são de madeira; a estas
últimas é mais apropriado chamálas barquelas, e que…
– Mire, não nos interessam essas trezentas pias ou barquelas, a nós só nos
interessa a pia que havia na igreja, e parece que você não nos está a dar
informação, polo que será melhor marcharmos a ver se topamos alguém com
quem poder falar.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 33
– Eh, que eu não os mandei vir, eu só me limito a responder às suas
perguntas… Ora, se você – ele dirigiase só ao mais velho dos agentes, o mais
novo estava algo mais retirado tentando dissimular o seu sorriso – não entende
mais que de cousinhas mui concretas, pois mais lhe vale sair daqui e irse
embora… e ademais não são trezentas pias ou barquelas; desculpe mas eu
disse trezentas pias, das quais polo menos cem são de madeira, e a essas é
apropriado chamálas barquelas, mas às outras duzentas não, não senhor, não
o é; para que me entendam… é como se eu dissera: havia ali trezentos
automóveis, dos quais cem eram furgonetas, seguro que a você não lhe parece
apropriado que dissera que havia trezentas furgonetas, vamos digo eu… e
perdoe o exemplo mas pareciame a mim que você não colhera o matiz…, e é
que se bem todas as barquelas são pias, não todas as pias são barquelas, nem
servem para fazer a velha rima:
Vaite névoa nevoarela
filha do cão e da cadela
Vai comer a lavadura
que te ficou na barquela
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 34
que a quisesse ver. Debaixo da cama guardava Ciro uma mala cheia deles;
alguns já se vão vendo velhos, mas ele muito os estima… “ai, se eu não me
tivera juntado com más companhias… hoje seria eu alguém e de mim não se
ririam!” E tampouco se riem tanto, pois sabem que leu nos livros, e ademais…
“olha para aí que bem vive!”
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 35
Capítulo II
A FONTE DA AUGUELA
A Auguela, apesar do seu nome, tem uma água mui boa, e os três
caminhantes assim o apreciaram, mas já iam sendo horas de marchar.
Estreando lua, logo de lhe dar o último golo à pia, começaram a andaina para o
alto do Zebreiro, lá a Fonte da Cunca os aguarda. Aquelas são águas de altura e
as próximas noites serão noites de muita subida nas que Dom Narciso segue
sem apear o pinho, e isso vá se o manca. Por estes empinados montes muitas
vezes quase perde o homem a consciência. Certamente vêselhe apoucado e
até por momentos semelha que lhe vai faltar o ar e vai desfalecer. Dês que
deixaram a Auguela tudo eram costas; a terra chã das cavadas durara menos de
uma noite. Aquele pedaço ainda fora tolerável e deixaralhe fôlegos ao homem
para tentar relembrar as suas vivências de jeito pausado. Ele queria a terra chã,
ele queria dar volta para trás, mas não encontrava o jeito. Ele queria lembrar e
relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde tudo era paz,
respeito e amor… e não agradecia nada aqueloutras visitas inesperadas de
imagens que eram mesmo aborrecíveis, sobre as que não tinha controlo, e que
apareceram muito mais tarde na sua vida. Como aquela visão que o andava
mesmo acossando dês que começara a subida.
Naquela viase a ele próprio com um saco ao lombo caminhando em
pleno sol de meia tarde; e que haveria no saco? Ai, sim, o saquete estava
atestado de livros, e como pesavam os condenados! Havia livros grossos e
outros mais delgados, isso sim, todos eles velhos e escuros, e precisando uma
amparadela; nalguns, antes de os ler, havia que mudar as folhas que estavam
co de acima para abaixo. Dês que ele chegara à freguesia de Ameixeiras falara
sobre o tema dos livros paroquiais co responsável da zona, mas estoutro,
menos afeiçoado às leituras, não lhe dava tanta urgência ao assunto. Por fim
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 36
parece que coalhara a ideia da restauração. Sim, essa ideia fora de Narciso, o
que não pensava ele era que para a levar a cabo o fariam assistir a uma
juntança com todos os outros cregos da contorna. Porém ao outro, ao que
chamam arcipreste, que leva duas freguesias ademais de mandar nos demais
curas, não lhe amargava perder o tempo, que tem muito e não sabe como
gastálo.
Ele é certo que, ademais de mandar, diz missa em duas igrejas; e daquela
os cregos já começavam de andar algo mais atarefados, não porque lhes
aumentara a clientela, que vai a menos cada dia, senão porque são menos os
empregados e têm que se repartir as freguesias; a uns tocamlhes menos, como
lhe passa o mandamais, para isso manda, e a outros tocamlhes mais, como
lhe passa a Dom Narciso, que lhe vamos fazer. Esta espécie de chefe dos outros
leva Os Mouros e Vilarinho, que por certo são duas freguesias que têm as
igrejas mesmo pertinho uma da outra… uns dez minutos caminhando devagar.
Ora que isso tanto tem porque este abade, que está ele mui bem cevado, tem
dous carros; os dous da mesma cor e coa mesma documentação… para que
malgastar. O ser o homem agradecido e engordar com tanta facilidade faz que
alguns se refiram a ele como “O Cacholas”, porque realmente lembra o pobre a
um desses que… fora a alma e a figura… são como nós. Sim, ou se calhar ainda
os do cortelho se semelham mais aos humanos normais que este cura de
sotana sempre emporcalhada, ele sempre mal asseado; mas isso sim, bem
motorizado. Dizse que vêlo comer dá risa e nojo… “um bocado no chouriço e
o que resta para o bolsão e a colher outro, e assim enquanto durar o que há
acima da mesa… depois vaise para a casa com um fardel escondido por
dentro da sotana cheio de chouriços encetados e pedaços de toucinho e magro,
e o que dera arrebanhado… e a sotana resplandecendo desde longe coas
pingadas da gordura…” O pobre não tem vergonha, até há quem lhe chama
porco à cara e a ele tanto lhe tem. E apesar de não conhecer as normas para
circular pola terra, nem topar melhor sítio para arrumar o carro que o meio e
meio da estrada, ele vaise salvando… se calhar o da mesma marca e cor dos
dous carros é para que se lhe localize bem, não vá ser o Demo e o for Deus
confundir, ligara o homem de ter que morrer na estrada. Pois como as
freguesias lhe ficam mesmo uma à beira da outra, e com tanto carro, o homem
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 37
não sabe que háde fazer co tempo que lhe sobra logo de fartarse de comer e
de beber, que isso também lhe ocupa. Mas os dias no verão são longos e há que
topar o jeito de enfastiar os outros mais ocupados com as suas muitas
freguesias, e bem longe umas das outras. E isso que alguns, ou melhor dito
algum, não tem nem carro; eilo caso de Narciso, ele é homem de caminhar, e
amargar não lhe amarga, contudo há vezes que a cousa já é demais. Como
aquele dia, que ainda por riba era no verão, e na Raia o ar que se bafeja neste
tempo de seitura é mais seco que os fumos do Inferno, e ele co saco dos livros
ao lombo. Certo é que se oferecera o mandariqueiro a o levar a ele, e mais os
livros, até Vilamenor, onde se ia celebrar a reunião para tratar o tema. E assim
combinaram: passaria por Ameixeiras, que ademais ficava de caminho, bem
cedo de manhã, e recolheria a Narciso e a sua moreia de livros pesados. Os
livros eram bons mas, co tempo e a falta de cuidados do predecessor de
Narciso, baloreceram tanto que sem abrilos sequer já te entravam as ganas de
espirrar com tantos mofos flutuando ao seu redor. Se não se lhes botava uma
mão a bulir não durariam muito mais do que os pobres levavam rengueleado
polas enormes gavetas do armário da… ali seria a sacristia se a houvesse, que
numa igreja tão pequena não faz falta tal… o crego não toca a campa até que já
está vestido, e ademais os refaixos não os quita, então digamos que esses
caixões estão por ali aposentados perto do Santo António, que seguro que se
sente ali mui bem tão abrigadinho, qualquer não o estaria.
O Santo António tem algo de mão coas mulheres, que são as que
distribuem os espaços e os atavios; ele anda mui bem pintadinho e tem mui
bons mantéis. Outra que tinha bons mantéis é a Virgem do Carmo, mas esses
caíramlhe duma promessa que fizera a Maruxa da Cristalina quando se lhe
pusera o meninho a morrer; e vá que bem lhe curou depois! Então ela buscou e
buscou até que encontrou o melhor mantel que se puder comprar, e não lhe
amargou gastar o dinheiro que daquela não sobrava. E contudo logo veio o
Aurélio, que foi abade em Penacova, e marchou co raio do mantel para outra
freguesia… E claro…! Quem se atreve a lhe dizer nada…? Ademais de lispar os
mantéis, ainda arramplou com cousas de mais valor e mas ninguém disse
nada, ou polo menos à cara... Oh, por detrás qualquer fala! O que levava as de
perder dês que se desmantelara a igreja era o Santiago, até o deixaram ao pobre
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 38
sem espada e agora anda o homem com um livro, e não era por ser Dom
Narciso afeiçoado a ler, pois quando ele veio a Penacova para lhe botar uma
mão ao seu colega Aurélio que não regulava o homem lá mui bem, o Santiago
já andava metido nas leituras… quem sabe, quiçá foi algum desses anarquistas
que diz que ainda há no lugar… ou algum inocente que pensara que como o
Santiago mora em Compostela se calhar estranhava a vida universitária, e
ademais ali em Penacova, a quem ia o pobre espetar coa espada…?
Daquela, quando Dom Narciso passou por Penacova, já faltava pouco por
escaralhar, de isso já se encarregara o titular da paróquia, o tal Aurélio, que por
certo fez um bom trabalho, e logo vai e põese tolo… “Tolo, o que se diz tolo,
dizse que já estava, e que o dissimulava…” Outros dizem que de tolo nada,
que faz o tolo mas que é mui avisado… o que se passa é que agora tem medo
polas falcatruas que leva feito… Contudo, quando a Dom Narciso lhe
mandaram ir substituir ao crego de Penacova, em parte por ser o que mais
perto estava, ainda andavam, de milagre, alguns livros por ali. Ele juntouos cos
de Ameixeiras para restaurálos todos. Daquela, Dom Narciso ocupavase de
quatro freguesias, e eilo cura a correr de missa em missa coa hóstia na boca,
com perdão. Às vezes acabavamselhe as existências e velaí o homem
amassando e cozendo um pãozinho chato, a jeito de bica do testo, acima da
prancha de ferro da cozinha, para repartir depois na missa. Não, algumas vezes
não era fácil não ter carro para servirse, co bem que lhe iria em ocasiões como
aquela na que aguardou e aguardou polo seu colegachefe, o da cabeça grande,
e vendo que não parecia que se fosse apresentar não teve outro remédio que
botar o saco ao lombo e meterse ao caminho em pleno meiodia.
O plano inicial, tal e como lhe explicaram a Narciso, era jantarem todos
juntos na reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, onde os convidara o Laruças,
alcunhado assim polos vizinhos de Penacova e outros lugares. O Laruças,
apesar de não ser pessoa à que lhe encha dar, pois tivera o homem o detalhe de
convidar ao jantar, e depois da enchente teriam tempo de falar de como seria
melhor considerarem a devandita restauradela essa dos livros, que tão urgente
lhe parecia ao abade de Ameixeiras. Por certo o lugar da reunião não fora
escolhido por Narciso, que a casa do Laruças é a que mais longe fica de todas,
não obstante, como o iam levar em carro, ficou o homem conforme. O que não
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 39
lhe acabara de caber na sua cabeça de cura teimudo era a ideia de que o
Laruças, nada conhecido polas dádivas senão por todo o contrário, se
mostrasse tão generoso convidando ao jantar a tanta boca, seriam polo menos
sete ou oito comensais. Que rareza era aquilo de que o Laruças se oferecera a
dar nada, ele que até se se terçava era dos que, malpocado, ainda se atrevia a
levar o que não era dele.
Assim foi como lhe arramplou com uma porta de cerejeira ao tio João.
Sim, já sabemos que a cerejeira não é a melhor madeira, mas ainda assim e
tudo aquela era uma porta que dava que ver, tão enramada… já lhe oferecera o
Maragato não sei quanto por ela, e ele de parvo não lha deu, e deixoua ali
debaixo da solaina exposta, afincada na parede. Mal pensava ele que na
Terçafeira de confissão viria o Laruças, logo de repartir penitências, e não
daria resistido à chamada da formosura da porta. Mas como ia o tio João
adivinhar isso, o tio João não sabia muito de curas porque ele só ia à missa o
obrigado – baptizados, casamentos, enterros… para que não se dissesse que ele
era um desses que lutara contra Franco, e ainda que isso era certo e toda a
gente o sabia, o tio João tinha que dissimular, não fosse que o foderam… mas
ainda assim ele não conhecia bem os curas, e não podia imaginar que uma
Terçafeira de confissão viria algum deles roubar aquela porta que ele já
herdara. Ademais, ele pouco sabia do Laruças, que só vinha a Penacova aos
enterros e ajudar no dia este da confissadela, que era cousa séria naqueles
tempos. O tio João ficou amolado pola rouba da porta mas não quis o homem
dar que falar e deixou a cousa assim, sem lhe pedir contas ao ladrão.
Como tampouco as conhecia Dom Narciso, senão já se teria decatado,
como lhe passou depois, de que aquilo de se juntarem em Vilamenor da
Boulhoeira fora um plano argalhado polo Laruças coa ajuda e colaboração do
da cachola grande. O que pretendiam era amolar a Narciso e ver se o
espaventavam e se ia a dizer missa a outra parte; tão bem que eles estavam
antes de chegar este padre trabalhador, e que ademais visita as tabernas. Não,
beber não é que esteja mal mas… não tanto, e por riba em público. Mas estes
dous tampouco conheciam bem a Dom Narciso nem a sua teimosia e
resistência. Narciso estava afeito a caminhar e sofrer passando fome e até sede
se fizer falha. Portanto, aquele dia, botou o pesado fardel dos livros ao lombo e
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 40
caminhou duro até bater na porta da reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, a
mais de duas horas de caminho.
Passava bem já da hora do jantar, mas estes, como eram curas, ainda
andavam nela quando sentiram a pesada aldraba de ferro bater na porta de
fora com uma força do demo. “Quem raios...!” E todos os cregos se puseram à
espreita enquanto a criada do Laruças baixava asinha as escadas de pedra e lhe
dava a volta à cravelha do portalão. O Narciso passou sem mediar palavra coa
criadinha, à que porém dedicou uma olhada de esguelha; era aquela uma
mulher pequena e estava algo desmelhorada, Narciso pensou que o Laruças
não lhe devia dar boa vida, e isso ainda aumentou o seu reganho. Com aquele
rauto dele passou ao meio do pátio e desde ali berroulhes aos de dentro, que
estavam a guichar desde a janela que dá a fora quem era que petara. “Onde
está o porco de Vilarinho que me deixou chantado?” Foram as palavras que
subiram até à mesa na que ainda ficavam restos de comida e bebida. Foi um
desses curinhas menores que estavam na reunião o que saiu ao patamar e lhe
pediu a Narciso que passasse dentro, que não estava bem formar ali tanta
liorta. O Narciso nem escutou àquele comparsa, e seguiu botando berros
enquanto caminhava para a escada: “Parecevos bonito, que enquanto vós
estais aí jantando cos colhões sentados eu tenha que vir carregado co saco às
costas Aguiar abaixo?”
Por fim, passou para dentro e sermonouos bem, falando da falta de
palavra e do mal que estava isso de confundir a um e trapalatrá… os outros
escutavam mas não ouviam nada, logo da comilotada, com aquela carne
assada e um vinho que coroava, todo o sangue lhes baixara ao bandulho
deixando as cabeças sem rego; e estas caíam de quando em vez co topeneio da
sesta, e o Narciso aceleravase todo ao ver que não lhe prestavam atenção. E
coa fome que ele trazia! Pois comer não comera nada ainda que algo já
molhara antes de sair de casa. Daquela, já à manhã cedo tinha que lhe meter
algo ao corpo, senão não dava o homem encadilhado. Aqueles dias já ninguém
em Ameixeiras, nem em Penacova, lhe fazia grande caso, e por riba estoutros
sacerdotes que deviam de o animar e o apoiar vão e enraivamno mais… pois
era o que lhe cumpria! Narciso estava começando a fartarse, e agora enquanto
o lembra a caminho da Fonte da Cunca, fecha os olhos e puxa do pinho com tal
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 41
serenidade que parece uma jugada. Ele nunca esquecerá a sensação causada
pola dureza dos livros nas costas, e davam boa conta disso os maçoucados das
suas carnes que duraram vários dias; mas aqueles trilhados contra as costelas,
por feios que pareceram, não foram o que mais mancara a Dom Narciso, nem o
que o levara a tomar medidas. Visto o que lhe fizeram, e ainda por riba se riram
dele fazendo que o escutavam enquanto dormiam… aquilo não podia seguir
assim. Teria que se preparar para defenderse dessas feras negras, algumas
com sotana.
Aquele dia, e mesmo na beira da Raia, decidiu que haveria de cruzar para
comprar com que se defender, dele não se ia rir nem Deus. Tampouco era nada
novo, outros muitos já a traziam, e a ele, que sempre ia andando, boa falta lhe
fazia. Foi esta resolução a que lhe dera acougo aquele dia na casa do Laruças; e
agora, ao lembrálo, sente o alívio que deveu sentir aquele dia, pousa o pinho e
toma alento enquanto se relaxa com ambos os olhos fechados. Quando os abre
vê o punho do RachaPedras que lhe vem direitinho às ventas, mas a tempo ele
se agacha e esquiva o golpe, mas não o insulto que o acompanha: “Animal, que
quase nos fazes cair! Quantas vezes te teremos que dizer que antes de parar
avises!” Como já era hora para a partida aí morreu o conto e Narciso, sem dizer
rem, marchou embora, como marchara aquele dia de Vilamenor da
Boulhoeira, e para o outro dia à manhã colheu o andante caminho da fronteira,
que daquela seica se diz que havia, ainda que ninguém de por aqui a vira. Mais
adiante, logo de se informar, pensou que poderia terse aforrado aquela
viagem, pois há muitos que lhe poderiam ter arranjado uma dessas pistolinhas
sem ele se mover da casa; mesmo ali em Penacova dizse que havia quem as
trazia, e em Gomesende, e noutros sítios; mas então ele não o sabia e lá foi, e
veiose à noite prà casa carregado e sem medo já. Medo?… Ulo?
* * *
Do que não se esqueceu Nuestra Región, no seu apartado de sociedade,
foi de fazer referência aos da associação da cidade velha, que como todos nós
lembraremos, dedicamse a recadar fundos para mandar reconstruir a pia, ou
polo menos essa era a sua intenção inicial. É de domínio público que andam
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 42
agora divididos em três bandos. Por um lado estão os que querem reconstruir a
pia com exactidão fotográfica a respeito da antiga, estes até dizse que querem
falar cos negociantes daquela comarca para extrair dos montes da freguesia
donde nasceu a pia a pedra que seria precisa para a cópia, e em tais cousas
andam enquanto tratam de convencer a uma das outras facções para que os
apoie. Outro dos grupos também quer a reconstrução da pia, ora, porque não
melhorála algo? E dado que dinheiro têm, seica o que querem estes é que ao
redor da boca, a meia quarta da borda, se lhe faça um colar de pedras
semipreciosas fazendo ondinhas para que diga mais bonita. Este assunto das
pedrinhas de cores afastaos dos puristas e faz que ninguém tenha maioria, e
que a porfia siga viva. Entanto, o terceiro grupo, que já se distanciara dos
outros há algumas semanas, segue cos olhos postos no Caribe e até andam a
mirar agências de viagens e sítios aos que iriam de não ser polos teimudos dos
outros.
Felizmente há gente para animarnos nestes tempos de monotonia, como
o poeta Budial, que nos oferece um novo verso em Nuestra Región co que nos
regala o sorriso. Seica diz também que a apresentação do seu livro não teve
tanto êxito como em princípio coubesse augurar. Qualquer poderia concluir
que o interesse das gentes destas terras pola palavra escrita, apesar dos poetas
e escritores que daqui saíram, não medra.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 43
parvo não tinha nada, e bem via como lhe davam de olho aos que fitavam
surpreendidos quando ele começava de discursar… “vem contente hoje o
Narciso”… ele quase adivinhava os comentários que pola calada se faziam
“éche o cura de Ameixeiras, que lhe dá algo à bebida”. Mas aquele dia quando
pousou a sua pistola acima do mostrador, perto da cunca do vinho, ninguém
se trujiu; não, não houve piscadela de olhos nem comentários polo baixinho.
Outra vez sentia Narciso que retornava aquele respeito que noutrora sentira
que todos lhe tinham lá na sua primeira freguesia. Por fim respeitado de novo,
agora ninguém ria.
O dono do bar, que era quem sempre estava por trás do balcão, era
homem afeito a estas cousas, e foi o menos sobressaltado dos presentes. Na
sua taberna, pola proximidade com um clube da estrada 505, entravam às
vezes indivíduos de aspecto suspeitoso, e alguma vez viralhe a algum, quando
arredou o casaco para tirar a carteira, assomar a coronha duma destas. Aqueles
davam mais medo que Dom Narciso; aqueles aquelavamte o ânimo só de
vêlos. A vestimenta, essa face meia sem barbear, esses olhos apequenados
sempre fitando com rancor, essa voz que arrelava as palavras, e os movimentos
de gorila, eram os sinais que lhe serviam ao taberneiro para identificar a estes
chimpafigos que viviam nada mais que de lhe chuchar a bolsa a quatro
coitadas. As pobres prostitutas sempre encerradas como toupas na covaterra;
sempre fechadas nesses prédios de Ginzo para que não pudessem fugir; só as
deixavam sair quando o negócio o requerer, e daquela bem que as vigiavam.
Estes sim que eram animais, e a estes temia o taberneiro, mas quando viu que
Narciso sacava a pistola e a pousava acima do balcão, achegouse a ele e
disselhe polo baixo: “Guarde isso Dom Narciso, que ainda se vai meter você
num compromisso” O cura sorriu para o taberneiro e disse: “de mim não se vai
rir ninguém” e a seguir guardou a arma.
Apesar de que a gente que havia na taberna não se assustou, eram os de
sempre, os que se viam ali a cotio, sim que lhes sobressaltou um chisco a
pistola. E se por acaso começaram a rir menos quando o cura estava a soltar
uma das suas paroleadas, nenhum deles temia a Dom Narciso, sabiam que era
um bom homem, se quadra algo tarabelo demais; mas, ai, tampouco
ignoravam que o álcool e o ferro misturados não fazem boa jeira, e a partir de
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 44
então andaram os homens com tino, e algum até deixou de ir por ali uma
temporada até que comprovou que não se passava nada. E foi assim como o
Narciso sentiu chegar até ele de novo aquele respeito do que ele tanto gostava.
Começou de sentirse poderoso, e ia cada vez apresentando àquela sua amiga
de coronha de osso velho em mais encontros. Pouquinho a pouco toda a gente
era sabida de que o Narciso portava arma. Já nunca saía da casa sem ela; a
pequena pistola formava parte dos hábitos do sacerdote. Às vezes, estando na
taberna, algum incluso lhe pedia que a ensinara, e ele não se fazia rogado;
sacavaa, mostravaa entrementes a cofiava como quem acarinha a um
cãozinho, e volviaa guardar. Alguma vez escutou a um dizer que aquela
pistoleta era engraçada mas não era nada grande, que mesmo parecia um
brinquedo, que ele sabia de gente que as trouxera desse mesmo sítio donde ele
trouxera a sua e que eram do nove largo… Aquilo deixou a Narciso amolado;
agora que tinha o homem tudo outra vez controlado vem esse comentário e…
raios te partam, deixa ao homem desarmado! Esse mesmo dia se informou
Narciso de quem eram os que traziam tal contrabando, e antes duma semana
já tinha ele o seu nove largo. Ali, na mesma taberna, como sacara a pequena a
primeira vez, sacou agora em vez desta a grande. Esta era negra, como um cão
grande de raça; os que lá estavam calaram, até se diria que se assustaram. Dom
Narciso ficou um nada surpreendido por aquele tanto silêncio, tampouco
tencionava assustálos; Narciso só queria respeito e não que lhe tivessem
medo. O taberneiro olhou para Narciso, mas esta vez não abriu o bico. Narciso
guardou a arma e dizse que naquela taberna nunca mais a volveu sacar. Ele
sempre a levava nos bolsos, ou na cintura, escondida, e sentiase o homem
mais seguro e mais respeitado sem ter nem sequer que ensinála.
Coa boa sensação de ter atingido uma meta, marchou Narciso a saudar
um novo dia, e o mesmo fizeram os outros dous homens. Levavam já um terço
da subida ao Zebreiro. Desde onde deixaram hoje escondida a pia puderam ver
a Veiga do Fojo e os Penedos da Cabana. Atrás, pola esquerda, ficava já a Vela
de Penalapa. Os Penedos da Cabana, pola parte de detrás, chegam quase até
Gomesende, formando uma serra que vai minguando a modinho até rematar
numa espécie de sarriço estreito. Por detrás da Cabana passam as paredes dos
lobos, que vão morrer lá na Veiga do Fojo, onde ficam, como o seu nome bem
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 45
indica, os restos do que foi o poço onde caíam os lobos. Tanto as paredes
quanto o fojo foram feitos há mais de cem anos coa finalidade de atrapar e dar
cabo dos lobos, que eram as animálias que mais inçavam por estes montes.
Eram tantos os que havia que às vezes matavam até vinte ovelhas duma
volta, e a gente não teve outro remédio que artelhar o das paredes. Quando se
faziam as corridas vinha gente de toda a província e espalhavase por todos os
lindes do Zebreiro; depois, quando tudo estava pronto e toda a gente no seu
sítio, desde a Vela de Penalapa acendiase o lume para avisar a todos de que
começava a troula. A gente organizava uma autêntica verbena com
instrumentos musicais tais como latas de azeite ou do pimentão vazias,
caçoulas de ferro e chaves, e cousas desse estilo; e os animais espaventados
polo barulho iamse metendo mais e mais na boca das paredes. Já perto do
final, onde aparecia o cocho – que era um buraco bem fundo – as paredes
iamse juntando. Àqueles pobres não lhes restava mais caminho que saltar e
cair no fojo da morte. Os anos foram passando e do buraco só fica um resto
quase inapreciável, o tempo e mais a falta de uso foramse encarregando de
cegálo. Das paredes fica algo mais, nalguns sítios ainda levantam bem, mas
noutros estão esborralhadas. Dos lobos fica a memória; já só cria uma loba lá
em Penacereija. Agora nestes montes há só javalis e corças e outros
animalzinhos, mas lobos não, como daquela não, desses não ficam. Então
tinhaselhes medo porque te comiam a fazenda, ou o que ligara. Nesses
montes tão grandes se se te perdia algum animalzinho, lá ia. Havia uma cheia
de cantares e coplas que davam boa conta desses acontecimentos, porém,
também foram, como os lobos, desaparecendo; a alguns salvouselhes, como
às paredes, um bocado:
Chove, neva, escarrapateia,
fogem os lobos do monte prà aldeia.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 46
Lobos que andais polos montes
avivai bem os sentidos
que anda o cavalo da Flores
e o da Mercedes perdido.
E se os lobos não o topam
que o esfandanguem cem mil diabos.
“Ai, dianhos te não levem, tu é que a arranjas…!” As duas mulherzinhas
ficaram desesperançadas. Daquela no Zebreiro havia muita vida. Agora, de
descontado os javalis, as corças, os teixugos, os raposos, os coelhos, as
gardunhas, as doninhas, toda uma cheia de pássaros e outros animalzinhos
pequerrechos como o ouriçocacheiro, já só ficam estes três homens da pia.
Também é certo que lá no pico mais alto dos montes da contorna está a
emissora desde onde se vigia para que não ardam os pinheiros. O Zebreiro
agora está coberto de pinheiros, e há que guardar de que não venha um lume e
os larpe. Um homem que dedicou alguns anos da sua vida a esta vigilância foi o
Ciro. Subia aí pola tardinha caminhando até acima; já sabemos que ao Ciro não
lhe amarga caminhar. Mas agora já nunca sobe arriba, mas é só por mor de não
andar ele lá muito bom. Agora há outros mais novos que sobem. Pois logo mais
lhes vale aos da pia ter conta dos faróis, não vão ser avistados desde o alto.
Claro que, se não vêem lume, quem pode crer que ande alguém polas touças
ou os pinheirais…? “Será a Santa Companha”, chancearão os dous vigias e
seguirão a velada “dorme tu que eu já miro, e depois cambiamos”.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 47
intenções, porque não tem tido sorte e não pôde polo de agora fazer a sua boa
obra. Pola sua porta passeiamse diariamente pessoas a procurálo. Apesar de
que o jornal não dava pistas do domicílio do tal rico, seica houve quem o
adivinhou, e desde então não pára de lhe chegar gente à porta. Ali o seu criado,
ou se se preferir, secretário, tem ordens de não soltar nem um real. Ele disse
que até que se veja a pia ele não dá nada, que senão não é obra benéfica e nem
sequer lhe serve para reduzir impostos. Pois também tem razão o homem, ao
ter de fazer uma boa obra que lhe vai, seguramente, contar no Além, porque
não que seja qualificada de benéfica e que também lhe sirva no aquém? Há
quem quer fazer o bem, e tem dinheiro com que fazêlo, mas não pode… e
dizse que anda o coitado do homem amolado.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 48
ele veio bater àquele cárcere do que o tiraram asinha para o levar ao
psiquiátrico no que ainda passa os dias, e do que tem que escapulirse para vir
cumprir co seu destino. O Narciso estava afeito a que o andaram trazendo e
levando, e mais ou menos ele sabia quem manejava os fios, mas agora não
tinha nem a mais remota chispa de claridade sobre quem, ou quê, dirigia os
seus andares. O único que sentia ele era que uma força o empurrava monte
arriba e que não podia detêla, nem sequer sabia o homem se queria parála.
Algo lhe transmitia a sensação de que por primeira vez se dirigia a algures. Mas
não é novidoso que Dom Narciso se sinta bem sendo guiado, a isto estáche ele
bem afeito, quiçá afeito demais, e portanto não tinha lá muita manha co de
dirigirse só, e cada vez que o tentava acabava perdendo o norte e outra vez o
pilhavam e o amarravam curto, como faziam agora os senhores das batas
brancas.
Mal pensavam todos naquela residência que Narciso fosse capaz de
argalhar extravagantes artimanhas para escapulirse, e fazêlo ele sozinho. Ele
já descobrira que se estás calado e não dás que fazer, pois és considerado bom
e bem se vê que vais curando; e que melhor jeito de estar calado que não estar!
A ausência pode ser mui informadora das andanças de qualquer se se conhece,
mas se se pensa que esse vulto de almofadas é um homem que descansa, logo
não te diz nada. E a ausência passa pola calada noite trás noite polo leito de
Narciso. Ora, a Narciso não se lhe pode esquecer esconder as pílulas de
diversas cores que lhe dão a tomar antes de ir à cama; ele faz como que as
engole enquanto as oculta como pode baixo a língua, depois cospeas no
retrete e lá vai o homem curando. Se as enviasse para abaixo não teria outro
remédio que ocupar de noite o sítio das almofadas, e claro, isso não é o que ele
tem que fazer. Ele não está quase nunca seguro do que deve ou do que deve
não fazer; ora, co das pílulas não tem dúvidas. Oxalá tivera as cousas assim de
claras quando se dedicara a acumular armas.
A cousa começou por uma pistola pequena, logo seguiulhe o negro
novelargo, e mole e mole, como diziam as más línguas, montara o homem
uma armaria na reitoral. Ora, muitos não acreditam no que se ouve: “isso são
lendas e trapalhadas”. Uns que sim, outros que não, mas sem criada que o
pudesse ir falando, porque Narciso não tinha a ninguém para servilo, não se
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 49
podia estar certo de tudo. Se tão sequer tivesse uma criadinha… Narciso
sempre soube governarse só, ou ao menos ele iase arranjando; às vezes
algum de brincadeira perguntavalhe que como era que não tinha criada para
servirse dela como os outros curas… que colhesse uma, que não fosse parvo.
Ele meio a sério meio a brincar admitia estar cansado, mas que o seu cansaço
não lhe vinha dos trabalhos que lhe podia aforrar a criada senão de ter que
aturar a tanto alpavarda na freguesia, é que não há Deus que os dê levado a
caminho, e isso que ele tentarao tudo… e mas olha que de nada lhe serviu.
Mesmo agora, dês que conseguira essas amigas de ferro, algum domingo em
lugar de tocar a campa botavalhe uns tiros ao ar desde o pátio; mas não vale,
os de Ameixeiras perderam a fé completamente, ou já não têm nem vergonha,
e não visitam a igreja mas que quando se vêm obrigados, alguns cos pés por
diante… E Narciso eilo a protestar, agora as suas dissertações em lugar de
versar sobre a injustiça e a humilhação só falam do que ele quereria que se
passasse, e isso que nem sequer ele o sabe. Portanto anda o homem danado e
vai dizendo que já foi falar co bispo e que lho deixou bem claro: “…que se não
me cambia de freguesia, que caso” Mas nada, o bispo não o cambiava de
freguesia e o Narciso andava doente sem ter sequer moça buscada. Porque será
o que fosse mas, a diferença de outros curas, a Narciso nunca se lhe conheceu
moça. Se a teve sabeo ele, mas de falar por essa causa não te deu nada. E claro,
sem moça, como ia casar o pobre do abade?
Ali seguia em Ameixeiras. O porquê o bispo não lhe cambiava de freguesia
ninguém o sabe, é um desses mistérios inexplicáveis. Mas não seria de
estranhar que ao bispo lhe custasse algo muito encontrar outro que quisesse
vir para o posto de Narciso. Ameixeiras, depois de que uns moçotes se
montaram uma vez, há já muitos anos, a cavalo dum cura, não tem mui boa
sona entre os abades. E isso que depois fizeramlhas pagar; ai fizeram, fizeram,
a um deles, que era primo do Colmeias, mataramno daí a logo da broma. Bem
seguro que o tal crego dera conta dele, e naqueles tempos a Guardia Civil não
se fazia rogada. O caso é que pouco a pouco a distância entre o Narciso e os
vizinhos de Ameixeiras foi medrando e o que se via vir era um divórcio
traumático. Se o bispo o tivesse escutado…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 50
Algumas cousas dizse que são bem certas, como quando dizia a missa
com as pistolas no altar pousadas. Era um contraste bem grande ver aquela
pistola tão preta perto da Sagrada Hóstia tão branca. No entanto os que dizem
que fez muitas vezes uso das armas em público mentem, ele só as ensinava; e
quando tirava tiros era em privado, ora claro… ele não podia impedir que os
vizinhos de Ameixeiras os escutassem. Mas o Narciso em público só disparou
uma vez, e pôde ser um acidente, quem o sabe, isso nunca se dará aclarado. O
caso é que a Dom Narciso foramlhe apondo cousas, como mulheres não
tinha… filhos não se lhe podiam apor… pois a ordenarlhe histórias!
Escusado é dizer que ele cos outros abades não se levava dês que… desde
sempre, dês que chegara à freguesia. Estoutros faziam que não o conheciam e
só se juntavam com ele nos enterros de obrigado; nestas ocasiões Narciso
aproveitava para zangálos; melhor dito ele tentavao, porque os outros não lhe
faziam caso nenhum, nem sequer o escutavam. Narciso andava ao dele, e
enquanto os outros ainda andam no adro co defunto, às voltas co “ora pro
nobis” dos responsos pagados, ele aguarda dentro da igreja e vai falando. E os
outros que não param de cantar e ele dálhe que dálhe a falar. Dentro há gente
que o escuta, ou ao menos que não tem outro remédio que ouvilo. Algumas
destas pessoas são maiores, ou estão cansas por ter vindo ao enterro a andar e
querem ir pilhando sítio, que depois enchemse as bancadas e logo de pé não
se está nada bem. Ele qualquer que for o motivo que os fez entrar a sentar, eles
estão ali e a Narciso, aborrecido de esperar, já lhe abondam como público,
enquanto os outros curas não entram e anda o funeral polo sagrado. Algumas
vezes dizse que dizia: “tanto a chiba de Vilarinho como a cabra de Vilamenor,
já podiam parar de berrar e ir comer verças às hortas” e cousas assim.
Claro que se bem se mira, a quem não lhe rende o tempo numa igreja
aguardando? Ele nas igrejas já se sabe… e até há gente que não dá passado o
tempo nem com missas nem com cânticos. Como dizia o Afonso logo de sair ao
adro: “minha madrinha, que longa se me fez a missa, ai, como me rende aqui o
tempo! Cada segundo uma hora… E ali a fazer que rezo, e sem entender nada
de nada, só movendo um chisco os beiços para não passar vergonha…!” Parece
que isto de se aborrecer na igreja não é nenhuma novidade; e se ainda por cima
já tens aquilo mui visto, como deve de lhe passar a Narciso, pois não fica outro
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 51
remédio que o tomar com paciência. E a paciência não era precisamente o que
lhe sobrava por aquele então a Dom Narciso. Sobrar, sobrar, há quem diz que o
único que lhe sobravam eram as armas; é que… onde se viu outra…?
A alguns vizinhos parecelhes mentira que a Guardia Civil não tenha feito
algo, saber bem que o sabem, porque uma cousa é fazer o cego, e outra
querernos fazer cegos a todos. Houve vezes que a sacou mesmo na presença
deles, e eles foramse para outro lado. Como ainda lembram todos os que
estavam presentes na antiga escola de Ameixinhas (lugar que não deve ser
confundido com Ameixeiras) aquele domingo de eleições. Narciso cumpria coa
sua obriga, ele no fundo sabia mais que muitos o que tinha que fazer mas não
encontrava o jeito, e ainda por riba agora coa bebedela tudo se lhe punha
anuviado… mas contudo ele cumpria co seu dever e antes de dizer a missa
sequer, ia votar. E isso que bem reganho que lhe dava porque, como toda a
gente sabe, no concelho de Os Mouros tudo está sempre amarrado; évos este
um concelho onde, se se me apura, há mais caciques que gente. Ele o caso é
que aquele dia as cobrejantes estradas andam transitadas polas furgonetas
carregadoras dos votantes; vazio irá detrás o autocarro oficial. Há quem diz que
uma vez dentro da dekauve lhe dão à gente o boletim para que saibam por
quem têm que votar; há quem diz que lhe cambiam a que levam se não é do
partido deles… Mas isso nem sequer teria sido preciso, Os Mouros e a sua
comarca andam ainda enraizados nos hábitos tradicionais e de todos é sabido
que o intercâmbio é a chave de toda interacção social. Se o voto fosse secreto
toda a gente poderia ir votar sem medo, mas ele que vai ser! Todos sabem a
quem dá um o voto, e sendo assim, pois não o vais dar a câmbio de nada e que
pensem que tu és parvo, pois logo… aí vai o boletim… vá a câmbio doutra
cousa que me deste, ou fizeste, ou hásde dar ou fazer… e senão para que
nabiça ia um ir lá tocar a chanca. Nos Mouros contamse cos dedos duma mão
os que votam só para escolher representantes, e ainda te sobram dedos. O voto
de Narciso tampouco é secreto para ninguém, e não é porque a Igreja se
presente às eleições, ou que ele fosse a votarlhes; ele é um homem de ideias e
ainda que vista os hábitos as ideias não as perde. Os outros curas tampouco as
perdem e o domingo desde o púlpito sagrado muitos deles fazem propaganda,
nem proibições nem o caralho. E todos, ao sair da missa, direitinhos a lhe votar
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 52
àquele que disse o abade. Ora Narciso não é como os outros e por isso as
cousas não se lhe arranjam. Mira que já lho dizia sua mãe “filho, não faças
isso… olha que na terra dos lobos há que uivar como eles” mas a Narciso não
se lhe dobra a língua para uivar como os outros, e anda o homem só e meio
calado. Aquele dia das eleições, e logo de introduzir o sobre co boletim polo
buraco da urna, sacou Narciso a pistola e em presença de todos os da mesa e
muitos outros que havia, apontoulhe à caixinha transparente, na que já se
viam três ou quatro furgonetas de votos, e enquanto os canos da sua arma
roçavam o metacrilato dissera: “arranjaivos, que senão arranjovos eu!” Mas
os papelinhos seguiram ali pousados tão inertes como antes; e uma vez mais os
votos, apesar da advertência de Narciso, não se arranjaram. Aquela vez dizse
que há quem viu como a parelha da Guardia Civil saía da casinhola para não
ter que o ver. A Guardia Civil só andava ali para que ninguém não fosse depois
dizer o que não era; e que não fossem vir logo a denunciar aos honrados
trabalhadores das furgonetas por darlhes o boletim aos que carrejavam. Os
guardas civis eram testemunhas do bom transcorrer e da normalidade com que
a gente entrava, só, e quase sempre polo seu próprio pé, e votava. E nem seria
cousa com jeito ter que prender o cura, e isso em domingo e tudo, e sem ter
permissão, e…, deixa andar! E assim foram passando os meses e os anos, e as
eleições…, e mas não vale...
Aquela noite fizeraselhe mui curta a Narciso, e até teve que ser avisado
polos companheiros de que eram horas de ir parando. Desde a devassa que
sobe em direito das touças, tudo para acima, até a Regueira Funda, que vai ter
ao pé do Penedo do Leão, podia ver como a Estrelinha do Luzeiro pestanejava
em presencia daquela claridade que queria vir; e os três homens apuraramse a
esconder tudo e irse bulindo asinha.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 53
verças numa horta rente ao caminho, pola parte de abaixo. Era uma mulher já
metida em anos, pequeneira, pouco mais levantava que as verças nas que
depenicava uma folha aqui e outra acolá, com tino de não deixar umas
covelheiras mais despidas que outras; se a viram logo foi polo contraste da cor.
Vestia toda inteira de preto, com excepção dum avental riscado, um desses que
se cingem à cintura com uns arrebites que atam cara atrás. A mulher erguera a
olhada quando sentiu o carro e viu como dous desconhecidos baixavam
campo abaixo; quando viu que eles se achegavam à sua mera, botou a apanhar
nas verças fazendo como se não os vira…
– Bons dias, senhora.
– Buenosdias…
– Olhe, nós vimos de Ourense e estamos interessados em qualquer
informação que nos possa dar sobre um assunto que se passou…
O homem seguiu falando e acrescentou nova informação, mas a tia Maria
não escutou além dessa primeira frase. Na cabeça da mulher ressoaram fortes
as palavras: “Ourense”… “interessados”… “assunto que se passou”… e co
zunido dos ecoares dessas poderosas palavras não pôde ouvir mais nada; e isso
que ela para andar nos noventa e tantos anos ouvia bem.
– Olhem, eu soulhes velha e já não sirvo mais que para apanhar aqui
duas verças para o caldo…
– Não, se nós não queremos que você faça nada, nós só queremos
informação sobre uma pia… se você nos pudesse responder a umas
perguntas…
De novo esse ressoar aboujador das palavras que, ressaltando elas,
acovilham as outras, deixandoas assim escangalhadas por entre as perneiras
das verças: “queremos informação”… “responder”… “perguntas”…
– Mas olhem o que lhes vou dizer, aqui neste lugar, coma nos outros da
sua comarca, que têm ido a menos nos últimos tempos e já não hã tanta gente
como havia dantes… que vai haver! Se aqui eram polo menos oitenta os
vizinhos de jugada e agora ficam dous com vacas, e isso poucas… mas agora
levase mais o ter ovelhas. Ai, quem o diria algum dia! Essa Veiga cheia de vacas
e Deus te livre de que entrasse ali uma ovelha, e agora…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 54
A Maria decatouse dos acenos de impaciência que os homens
manifestavam sem querer e apurouse a acrescentar:
– …pois bem, ainda assim e tudo, há gente que entende algo, eu não sirvo
para nada…, dês que um vai velho só serve para ir passando o tempo que lhe
puder restar.
– Sim, senhora, entendemos bem o que nos quer dizer e sabemos que
quando um vai para velho a memória vai indo a menos e…
A Maria não aguardou que o detective rematara o discurso sobre as
fraquezas da memória, e não perdeu tempo em agarrarse àquela palavra como
o náufrago a um canhoto, e apurouse a dizer :
– Isso é…, a memória não lhe me serve para nada…, olhem lá…! Hoje à
manhã quando me ergui,… cedo porque eu não gosto de estar à preguiça
esperta na cama, de perder o tempo na cama não gosto nadinha…, homem se
estivéssemos no inverno ainda tinha um passe… pode um estar ali quente até
que esteja o lume aceso, mas agora neste tempo que vai bom… pois não gosto
de lacazanear e ergome cedo… Pois verão, quando me ergui almocei, e agora
se mo perguntassem não lhe saberia dizer o que comi, ou o que não…, ainda
que eu, desde há muitos anos sempre almoço o mesmo; mas desde que um vai
velho já não che é o mesmo…; desde que um tem o caminho andado não
vale…, quem fosse novo outra vez e sabendo o que sabe…!
– Pois ainda não é você tão velha, e seguro que sabe mais do que você
pensa…
“Sabe”… “sabe”… “sabe”…, que teimosos eram aqueles dous! Melhor
dito um, o mais velho, porque o mais moço ainda não desfechara a boca…
– E eu que vou saber, eu não lhes sei nada, se dantes deica pouco não
íamos à escola, e ademais só havia o Catón e o Silabario, como vamos nós
saber… não, não, nós como quem diz não sabemos nada, perguntemlhe vocês
aos novos que esses agora lêem muito nos livros e não é milagre que saibam, co
tempo que lhe dedicam não fazem favor; mas uma já não serve para falar coa
gente…, uma só serve para ir chouchando enquanto Deus o quiser.
– Depois havemos de ir falar coa gente nova do lugar mas primeiro
queríamos que você nos dissesse se sabe algo relativo a uma pia que
desapareceu…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 55
– Não, eu não lhes sei nada da pia que desapareceu, ademais disso há
tantos anos que qualquer se vai acordar agora …
– Então você… acordase?
– Eu? Eu como me lhe heide acordar…! Aos meus anos! Foram vocês os
que o mencioram trazendo a cousa ao rego, e não eu…, eu já não se pode um
fiar do que se acorda e do que não. Agora nós, chegado este tempo, que pouco
nos resta já por andar, só servimos para estorvar…, estorvar e dar trabalho.
Os agentes insistiram e insistiram mas não puderam tirar cousa com jeito
daquela conversa. Amolados por não obter muita mais informação que da
primeira, foramse rua fora caminho do Eiró. Bem que lhes amargou deixar a
velha com as suas verças mas nem fazia jeito forçála muito, ao cabo ela
parecia algo confusa, e quem sabe, se calhar era certo que lhe não defendia
muito a memória. Contudo e isso eles tiveram que bulir de ali co rabo entre as
pernas, ou como se diz por Penacova… “saiulhes a porca furada”
O agente mais novo parecia não alvoriçarse muito; andava ele algo
distraído olhando para a paisagem que neste lugar parecia sobrar por todos os
lados. Ele viera de Barcelona destinado a Ourense uma temporada, e ainda
andava o homem tentando entender a língua e mais a paisagem, ambas as
duas cousas irmãs na estranheza para ele. Coa língua já se ia defendendo na
cidade, mas quando chegou a esta aldeia compreendeu de que tinha que
afundar algo mais, encontrava muitas palavras que não tinha jeito de acotegar
no seu delgado dicionário; mas ele insistia e co passo do tempo havia de ir
aprendendo. Palavras e carvalhos, assim tudo revolto, verde e são, entravam
polos seus saturados sentidos e iam fazendo o seu efeito; “sim homem, sim, se
o que faz falta é querer…”; e a ele vontade não lhe faltava, foi por isso que
quando se decidiu a vir desde a beira do Mediterrâneo pensou que de seguro as
similitudes do galego co seu catalão natal lhe facilitaria a sua adquisição, polo
menos à primeira. Claro que quiçá lhe teria sido melhor ir um chisco mais
arriba no território galego, digamos por exemplo à Corunha; ora, se calhar ir ali
não lhe servia para os seus propósitos de adquirição da língua. Dizse que
muitos habitantes daquela cidade, apesar de passarem a vida inteira nela, não
conseguiam aprender nunca, logo a escolha não fora tão má como pudesse
parecer. Ourense, e em particular esta zona da Raia, tem um jeito de falar bem
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 56
diferenciado, e às vezes custavalhe entender o que dizia a gente ainda que
fosse sabendo o que queriam dizer as palavras. Olha o catalão, para que logo
nos venham dizendo que são… o que não são… Já gostaria eu de que outros,
mesmo alguns de dentro da casa, fossem…, eu bem me entendo.
Entrementes, a tia Maria seguia na horta: “por sorte marcharam… pensei
que não me dava livrado deles, que dianhos andarão a procurar,… e mira que
virme cá com isso da pia… como que alguém vai ser tão inocente de lhes crer
que andam interessados pola pia… a mim não me enferram, alguma outra
cousa terão tramada… e claro, não lho vão dizer assim a qualquer; pois logo de
mim tampouco vão levar muito…” A tia Maria, como a maioria das viúvas e
outras pessoas que passam muito tempo em soidade, tinha o são costume de
falar só… De que outro jeito ia senão ela escutar a voz humana? E certo é que
quando uma fica viúva por muito tempo estranha tanto a voz do companheiro,
e estranha tanto a voz de dentro… A Maria havia já tempo que se afizera a
escutar só a sua voz, e por isso não era fácil que agora alguém chegasse e lhe
fizesse dizer o que ela não quer só por não dar aturado os devezos de falar. Se
os agentes tivessem ficado por ali acochados perto do cadabulho da horta,
teriam escutado o que a Maria acabou dizendo sobre da pia; porque já que lhe
lembraram a cousa ela aproveitoua para manter a sua conversa, pois certo é
que quando um conversa só custalhe mais encontrar temas sobre dos que
falar. Mas os agentes tinham tanto apuro por encontrar informantes que não
puderam perder nenhum do seu precioso tempo espreitando a uma velha.
Ademais, se alguém os via, que ia pensar? E como iam eles adivinhar que ela
falava só? Consequentemente os dous homens recolheram as suas ânsias de
saber e foramse rua abaixo; ali no meio do lugar toparamse com gente mais
nova.
* * *
Estas noites de lua cheia eram de grande ajuda para os três homens, que
assim não tinham que alumiarse cos faróis nem passar medo de ser
descobertos. Os medos que eles traziam, em particular os de Narciso, eramche
bem outros, bem não escuros e frios. Os temores que se rebuliam dentro do
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 57
peito de Narciso vinhamlhe da sua cabecinha, pois por aquele solitário
Zebreiro lobos dos que amedrontarse já não havia. Mas apesar da muita luz
que a lua derramava na devassa pola que eles subiam, aquelas noites foram as
mais negras, as mais escuras e criminais para Narciso. Ele via como aquele
homem, ou crego, que protagonizava o seu passado, andava já sempre
desencarreirado. Era a sua uma cruzada perdida e mal levada por ele. Agora já
só em contra dos caciques da zona. Não ficava nunca claro, nem sequer para
ele, quanta gente caía dentro dessa categoria. De seguro que ademais dos
clássicos, os de toda a vida, os que toda a gente pode distinguir polos seus
traços identificadores: bem mantidos, soberbos, e com mal gosto para quase
todo, especialmente para vestir, Dom Narciso também incluía entre os
caciques contra os que erguera aquele combate de falares incendiários, aos
inspectores de granjas de UTECO e aos guardas civis retirados. Cada quando
que ele agora se topava com um desses, montava um cristo verdadeiro. Às
vezes até saca a sua arma e então a cousa vai piorando. E claro, viase vir a
desgraça. Agora até no sagrado se enfrentava a estes indivíduos, para ele
indesejáveis; mais dum, seica farto de o ouvir, faz por evitar todo o possível
contacto que os possa pôr num compromisso. Apesar do cautelosos que se
volveram alguns, particularmente para não dar que dizer, há vezes que a
ocasião requer a presença dum. Como lhe passou ao Saturnino no enterro da
sua tia em Ameixeiras.
O sobrinho da Hermesinda era um dos caciquinhos de pouca monta
repudiados por Narciso, um desses que entre outros têm o ofício de carregador
de furgoneta no dia das eleições; felizmente, vivendo noutra freguesia eram
mínimas as ocasiões nas que se cruzavam ele e o abade. Mas morreu a
Hermesinda e o tal sobrinho não teve outro remédio que assistir ao funeral que
tinha lugar em Ameixeiras. Já estava a defunta no sagrado, pronta a entrar na
igreja, quando por entre as caras dos ali presentes avistou Narciso ao cacique.
Interrompe os “ora pro nobis” e os “secula seculorum” e algo rosnou baixinho.
Depois começou a dizer que a Hermesinda era uma ateia que nunca lhe ia à
missa e que não deveria ter sepultura no sagrado... E ele é certo que a
Hermesinda ultimamente não assistira com frequência a cumprir coa sua
obriga do domingo, mas por razões que lho impediam, pois desde fazia já
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 58
algum tempo ficara a mulher tolheita de tudo, e não lhe valiam as pernas para
nada, quase não se podia mover. O Narciso não pára de rosnar e rosnar, e os
vizinhos surpreendidos por aquele despropósito não sabem o que hãode fazer
e olham uns para os outros até que finalmente todos os olhares se dirigem ao
sobrinho da defunta, ao Saturnino, para ver que é o que se faz, pois ele é o mais
achegado dos da gente dela. A Hermesinda tivera um filho de viúva mas
morreralhe e agora só lhe ficava uma irmã e o sobrinho para defender o seu
nome. Aquelas tantas olhadas acurralam o Saturnino, e mais que ajudálo
põemno cara ao precipício. Não tem outro remédio que obrigar o abade a que
cumpra co seu dever de sacerdote. E assim, com essa determinação, começa a
caminhar em direito ao abade, enquanto a cara se lhe vai acendendo polo
reganho e a vergonha que já são inevitáveis, e dizlhe que aquilo ele não o
permite, e que será polas boas ou polas más, mas ele enterra a defunta. Então
foi quando o Narciso tirou a arma do peto e apontou ao Saturnino enquanto
lhe dizia: “se te moves metote um tiro” O Saturnino ficou cravado no chão
como um espeque e o encarnado da cara trocouse em céreo. Narciso
seguelhe apontando enquanto lhe diz que não se apure, que ele não quer
matálo, só pretende capálo, e por isso lhe vai tirar aos colhões.
Nesse momento todas as olhadas vêem como, efectivamente, a inclinação
dos canos do nove largo indicam que a bala, de sair disparada, passaria por
essa zona de entrepernas, mesmo onde se juntam as brilhas e se decolgam as
partes. Alguns dos presentes, que não gostam do caciquinho, sorriem, e para os
seus adentros, bem que se alegram do que ali se está a armar. Mas ninguém
abre a boca, e a cousa continua. Narciso segue coa teima de que ele à velha não
a enterra e que em vez disso lhe vai enterrar um cacho ali ao sobrinho, um
cacho que lhe sobra porque ele não é homem nem é nada… Aquilo semelha
estancado e mesmo parece que vai durar eternamente. Alguns pacificadores
começam de falar… “que remate co enterro e logo depois já terá tempo de lhe
arranjar lá as contas ao sobrinho…” mas nada, Narciso segue na sua postura e
apontando ao Saturnino. Estava tão atento ao que se passava por diante dos
seus olhos que não se apercebe de que por detrás se lhe vai arrimando um
homem, um guarda civil retirado, vizinho do Saturnino, e até amigo dele.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 59
O guarda retirado, acostumado a actuar pola sua conta e sem permissão
de ninguém, decide então meterlhe uma punhada ao cura no braço co que
aponta, para ver se solta a pistola. Todos viram como o braço de Narciso
baixava e a arma se disparava. Um homem caiu ao chão, todos pensam que
está morto. A bala, trás passar por entre os joelhos do Saturnino, foi bater no pé
do João, um moço de Penacova que estava ali no enterro como o resto dos
vizinhos. Ao João levaramno à urgência e tudo ficou em nada, a bala não lhe
causara mais do que uma ferida leve. Aquilo parecialhes aos que o atenderam
um milagre… o projéctil atravessara o artelho e não causara nenhum dano
nem em osso nem em ligamento nenhum.
O João volveu logo para a casa sem rancores para ninguém: “Ele a mim
não me tirava, foi sem querer”. Ao João não lhe fizeram assinar nenhuma
declaração, mas aquilo não livraria a Narciso do castigo. Narciso foi levado
num furgão da Guardia Civil, dizse que os chamou o colega retirado, o
encarregado de lhe meter a punhada afortunada… A reitoral onde morava o
Narciso foi esquadrinhada e por fim soubese a verdade sobre a lenda das
armas; já sorriem os que assim o antecipavam: em casa de Narciso havia
muitas armas de Deus, ademais das pistolas havia escopetas e rifles e até uma
metralhadora. Os refistoleiros dizem que só de munições encheram uma teiga,
que de enchêla de grão levaria uns treze quilos. Ninguém parece alegrarse,
excepto o guarda civil e o cacique, do que lhe passou a Narciso. Uns dizem que
o pobre está tolo, outros que se foi da bebida… e todos parecem estar de
acordo em que se alguém tomara medidas antes, isto não teria porquê ter
passado, já que tanto o bispo como as autoridades estavam informadas das
andanças do cura. As gentes de Ameixeiras, o mesmo que os das freguesias
vizinhas, sabem que a eles ninguém lhes faz caso até que algo que já não tem
remédio se passa… “Pois anda que não estava toda a gente sabida do que se
passava e do que não”
Agora andam todos os da freguesia à espreita a ver o que fazem co crego…
“Para aqui que não se lhes ocorra mandálo outra vez”, dizem alguns; “já verás
que pouco dura no cárcere”, dizem outros; “coitado homem”, dizem os mais
deles. Não, a gente não queria a Narciso de volta, um homem que faz essas
cousas, ainda que seja por causa do álcool, não serve para cura. Com este
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 60
acontecimento, e outros do mesmo estilo, as gentes de por aqui já aprenderam
a fazerse escolhidas, e depois disso têmse visto abades rejeitados por alguma
freguesia. Como lhe passou ao Laruças da Boulhoeira. A cousa vinha passando
dês que o Aurélio, que era o pároco de Penacova e outra freguesia daí abaixo,
tolejara de tudo e tiveram que o substituir; à primeira viera Dom Narciso a
dizer algumas missas, se calhar cada quinze dias ou assim, pois o homem não
dava feito. Depois, quando se passou o que se passou no enterro da
Hermesinda, pois claro, já não pôde vir mais o Narciso e daquela o bispo quis
mandar o Laruças. Então foi quando os vizinhos de Penacova, especialmente
uma mulher que vai muito à missa, se revolveram como as cobras.
Telefonaram ao bispo desde o locutório da taberna, onde estava o único
telefone que havia daquela, e asseguraramlhe que se vinha o tal da Boulhoeira
já podia estar preparado porque ninguém lhe iria à missa; e claro, o bispo não
se atreveu e mandou a esse rapaz que há agora.
Narciso fora detido e julgado num santiamém. Meteramno no
psiquiátrico, pois somente a tolémia podia justificar o fazer da Igreja naquele
assunto, e só a loucura podia dissimular um chisco a ençoufada face desta
instituição, que por certo, não anda ela lá mui limpa por este lado da terra. Sem
contar a sotana do Cacholas de Vilarinho, que vai sempre emporcalhada, nem
os costumes do Laruças de arrepanhar o que não é dele nem de Deus, ficam, e
ficarão, outras muitas cousas por limpar e aclarar. Por exemplo, que feito foi
dos altares da igreja de Penacova. Quando o Aurélio, o abade desta freguesia,
que por certo viera corrido a pedradas da de Medouchos – ainda que aqui isto
tardou em se saber –, pois quando ele levou os altares disse que os ia queimar
ali no pátio da reitoral de Aguins, a outra freguesia da que também se
encarregava. Mas ninguém cheirara ao ardido, nem vira bafeirada de fumo
nenhum… daquela ainda não estava tão tolo como para destruir coas chamas
aquela beleza; tolo pôsse depois, e não é milagre, de novo um fálas mas
depois, de velho, pagaas. É certo que aquelas colunas torneadas cos seus
cangalhos de uvas, e santinhos, e mil chinguilinadas, precisavam um repasso.
Os dourados já diziam grises, e os prateados não se distinguiam das manchas
de humidade. Precisavam que alguém lhes botara uma mão, mas não assim. O
Aurélio pediralhes aos homens de Penacova que lhe ajudaram a carregálos
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 61
num carro e leválos à reitoral de Aguins. Primeiro seica fizera contas de
enterrálos, mas logo se se desenterrassem seria um escândalo, e disse que
melhor os queimaria, que era ainda mais fácil. O que fez ou não fez só ele o
sabe. Por conseguinte o de Narciso já chovia sobre molhado e o próprio bispo
era conforme com colhêlo e confinálo…, ora não no cárcere, que isso diz mui
mal. Melhor que seja um tolo: vamos, asinha a crucificálo. E assim foi como o
Narciso se encontrou naquele psiquiátrico. Ali soube que era um doente e que
iam a tratálo, mas a ele já tanto lhe tinha. Primeiro viria a desintoxicação do
álcool: coa ajuda dumas pílulas e umas injecções nem se aperceberia de que
lhe faltava o vinho. E era certo, o Narciso andava à primeira como um fantasma
adormecido polos andares daquela residência. Depois, pouco a pouco, foi
espertando um algo, mas seica não tem mostrado muitos devezos de se
recuperar. Os doutores parecem não dar co cerne da sua loucura, mas também
lhes está custando encontrar indícios que lhes permitam confirmar que já está
bem e soltálo. Tudo isto mantêmno secreto os batasbrancas e dizse que
andam algo danados por não dar entendido o que é que lhe passa a Dom
Narciso; porque parecer parece um tolo, mas depois não parece que o seja
deveras.
Entretanto, no Zebreiro as lembranças iam empurrando a Dom Narciso
monte arriba, tal que um cavalo, caminho da Fonte da Cunca. Parecialhe que
já não tinha mais nada para tirar do saco escuro dos miolos, porém não sentia
o homem alívio nenhum; nem lhe parecia que aquela nova possessão, ou
reconstrução, ou como quer que se lhe chame, o levasse a sítio nenhum. Ali
apegado àquela pia seguia ele, e mesmo se tinha figurado que porventura era
tudo um sonho e que agora co susto, onde houvera um disparo e tudo, teria
acordado… Mas não era assim, e sabia que teria de seguir algo mais naquele
caminho nocturno. Como um condenado que não conhece a duração do seu
castigo, assim se sentia Narciso. E que madurecido andava! Já não sabia em
que lado afincar o pinho para turrar daquele chedeiro tão carregado. Em
ambos ombros tinha esfoladuras que já lhe levantaram a pele mais duma vez…
as fêveras do seu coiro passaram nalguma ocasião a se fundir coas do tecido do
lenço da camisa. As maniotas iamse acumulando umas por riba das outras;
aquela era uma dor física impossível de aturar, e às vezes viase o homem na
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 62
obriga de se esconder como se fosse um animal e com ambas as mãos sujeitar
bem o pinho e apoiálo no lombo dobrado, e mesmo na cabeça. Quando
chegou ao alto, mesmo ao pé da fonte, soltou o pinho e decatouse de que
aquela fora a sua última jornada na dianteira, já não podia mais. Ele seguiria às
voltas coa carga, ora para o pinho já não lhe davam os fôlegos. Deixouse cair
ao longo da fonte, co olhar no céu estrelado. A terceira lua estava pronta a
começar, e ele seguia sem muita clareza, fora ou dentro. Os três homens
tiveram quase meia noite de descanso e tempo para saciar as suas sedes e
cumprir co ritual de dar de beber à pia; depois esconderam a vida que levavam
e deixaram o Zebreiro até a noite seguinte. Aquela última subida
escorricharalhes as forças a todos, por sorte amanhã começaria o descenso, e
bem seguro que seria mais fácil. Mas isso seria amanhã.
* * *
O diário Nuestra Región leva vários dias sem oferecer cousa com jeito
sobre o tema não resolvido da pia. Tudo se vai em bons desejos, mas sem nada
que aportar aos seus leitores. Assim, alguns, devecidos polas novas que não
chegam, começaram a mandar notas de protesta à redacção do jornal,
acusandoos de falta de formalidade; porque ora nem se menciona o tema ora
se se trata é de jeito casqueiro, pouco sério. Algumas das cartas recebidas nos
seus escritórios parece que levam mui má raça, segundo os comentários do
próprio jornal, e não merecem ser arejadas na sua publicação. O diário afirma
que se alguém tem algo positivo e de ajuda, que o pode comunicar, e se não é
assim, que não lhes façam perder o tempo.
Contudo e isso a gente segue a vêlas vir sem nada fiável sobre assunto
que nos concerne e preocupa.
Contudo, os da cidade velha seguem coa sua dança de infrutuosas
reuniões e não saem disso, não dandolhe a Nuestra Región nem sequer uma
escusa para seguir falando deles tão sequer, e tampouco é cousa de lhe botar a
culpa ao jornal por não nos oferecer informação do bem que esta organização
resolve as suas diferenças. Não se pode fazer notícia se não se tem algum
indício, ainda que seja mínimo, ainda que seja mentira… mas algo, sobre o que
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 63
criar. A verdade seja dita, nem estes da cidade velha, nem as autoridades, lhe
estão facilitando nada a Nuestra Región a sua tarefa informativa.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 64
Capítulo III
A FONTE DA CUNCA
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 65
ganas, por mui bicofurado que um for, são mais grandes que nunca. Darlhes
aos cativos de beber destas águas de quando em vez está considerado o melhor
remédio contra os maus hábitos alimentares que costumam ter as crianças. Já
se sabe que a água toda desgasta: “a água lavra o caminho, e não como o vinho,
que sabe no focinho”. Ora, o desta fonte saise dos lindes do comum. Um jeito
de comprovar os poderes destas águas é botar um coiro duro nelas e aguardar;
de ali a um pedaço o coiro começa de amolecer e vaise pondo esbrancujado
como se estivesse entrecozido. Para os de Penacova este método, sendo
objectivo e portanto livre do efeito da possível sugestibilidade, é a evidência
definitiva das qualidades medicinais destas águas. Porque a gente de Penacova,
que não é parva, bem sabe que depois de subir desde a aldeia até o alto
caminhando, vemlhes a fome até às pedras, e por isso a cousa podia ser
enganosa. Ora, co método do coiro, que háde ser de jamão bem curado, não
fica dúvida nenhuma.
Para maior deleite desta riqueza transparente construiuse uma mesa cos
seus bancos de pedra e até uma forninha para poder assar ali se se quiser. Ora
que, na frescura daquele monte, como comer de seco não há, e o que mais
presta é o jamão co pão centeio. A mesa e a fornalheira são bonitos adornos de
pedra, e atraem às gentes de fora se por ali ligara que viessem, que por certo
não é este o caso. Estes três homens da pia foram os únicos visitantes
forasteiros em subirem lá acima durante a corrente primavera, e quem sabe se
os últimos.
Contudo, eles, após o seu descanso e logo de saciar a sede da pia,
colheram o andante para o Sudeste, caminho da Veiga. O Perfeuto vai na
cabeceira, e os outros dous detrás de ambas as rodas. O Alcaide vai sumido
numa quase inexistência, ambos os outros, embebidos lá nas suas cousas, não
lhe fazem muito caso. Por um lado Narciso parece como se hoje andara algo
ausente; e o Perfeuto, em contraste, vai bem esperto e ágil, mesmo semelha
que o espírito que lhe falta aos seus companheiros ele lho tirara. Salta por cima
de carpaços, uzeiras, carquejas e mais tojos, ou o que se ponha por diante, com
um passo bem ligeiro. Os outros dous fazem o que podem, ora mais que ajudar
dirseia que ainda o freiam, mas o Perfeuto não se apercebe e segue coa sua
marcha acelerada rodeira abaixo. Ao Perfeuto RachaPedras havia mui poucas
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 66
cousas que o frearam, ele era homem botado para diante. Nisso ele não saíra a
seu pai, que era acovardado e pouco homem. Ainda quando viera o tremor da
terra lá polo ano sessenta e nove, creu que eram os ladrões que lhe andavam às
voltas coas entradas da casa para lhe roubar o dinheiro que aquele mesmo dia
fizera coa venda duma almalha. O homenzinho sentou na cama e tremendo
como um junco, marelinho, ali ficou diante da sua mulher envergonhada, até
que um vizinho, trás ouvir os berros, lhes acudiu. Mas o Perfeuto não herdara
aquela habilidade do seu pai de se pôr amarelo e de tremer; ele era tudo o
contrário, um homem acendido e de prontos bravos. E ainda que aquela raça
que ele tinha não lhe vinha mal a cotio, alguma que outra vez também o metia
nalguma leia.
De rapaz ele já se tinha por valente e outros mais velhos não se atreviam a
importunálo. E bem leda que se sentia a sua mãe, mesmo se lhe enchia a boca
ao falar no valor do seu filho. Era aquela uma mulher de falar fácil e sem
cancelas, e às vezes dizia mais do que, se quadra, era adequado. Dês que o
Perfeuto foi garoto, logo de cumprir nove anos ou dez, ela via nele a um
homem; e foi por aquele então quando começara a dizer, diante de quem for,
que agora na sua casa já havia um homem, mas que o tivera que parir ela. O
coitado do marido, que não era tão coitado, pois por diante calava e fazia que
ria a broma mas logo depois seica lhas fazia pagar caras… que ele bom
tampouco não che era…, não era, não, que ia ser, senão que lhe perguntem ao
Perfeuto polas marcas que as vergalhadas da correia do seu pai lhe deixaram
muitas vezes no lombo… Claro que muito tempo isto não durou porque o
Perfeuto fezse homem asinha e repunhase cara ao pai, que pouco a pouco se
foi apoucando; mas antes de se fazer o rapaz grande muita malheira lhe meteu
o seu pai. Contam os vizinhos que uma vez até o atou com uma corda como se
fosse um animalzinho, bem rente para que não pudesse burlar as vergalhadas,
e depois brigou nele até que um vizinho lhe acudiu e lho tirou... “Mas tu seica
viraste tolo, deixa o rapaz que ainda vais fazer uma desgraça!” A mãe do
Perfeuto muitas vezes nem se decatava, mas tampouco pensava ela que aquilo
fosse tão mau… “A poder de golpes aprendem até as pedras”. Por
consequência o rapaz teve de aprender asinha a se defender. Praticava muito
malhando noutros rapazes da aldeia, um pequeno lugar perto de Ginzo. Isto
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 67
trazia os vizinhos quase sempre de mal coa família. A dizer verdade a família do
Perfeuto RachaPedras nunca se levou bem de todo co resto dos vizinhos do
lugar. O pai do Perfeuto, ao que lhe diziam Hermínio, o pobre já morreu, viera
casar ali coa Balbina, a que foi a mãe do Perfeuto, Deus os perdoe. O Hermínio
já trazia com ele a alcunha de RachaPedras quando veio aqui casar, e assim
lhe ficou a este filho mais velho. Dizse que a alprecha lhe vinha dum avó,
quem também se tivera que valer da sua manha coas pedras para ganhar um
jornal aí nas canteiras do Montefurado, co que seica o Perfeuto guarda muita
semelhança; ainda que isto mui em contra da Balbina, que sempre se arranja
para lhe encontrar parecido cos dela. Ora os da gente dela vinham tirando a
ruivos e de olhos garços, enquanto que o Perfeuto, e mesmo o seu pai, eram
morouchos e de pêlo algo crencho. Ele polo que for, esta família nunca
assentou completamente, e de quando em vez levantavam o voo e marchavam.
Passaram muitos anos em Alemanha e alguns outros em Barcelona. Às vezes
retornavam como se fossem ficar na aldeia para sempre de vizinhos e de ali a
nada preparavam a bagagem e… botalhe um cão ao rastro! Foram tendo filhos
e deixandoos por aí espargidos num sítio e noutro trabalhando, enquanto eles
seguiam coa sua movedela de cá para lá até que morreram os velhos, que tanto
ele quanto ela nunca o foram; morreram sendo mui novos. Os filhos partiram o
capital, que andava meio à poula, e aqui só volveu o Perfeuto para se
encarregar da vida dos RachaPedras; e assim foi como ficou coa lavrada, e
mais coa alcunha da família.
O Perfeuto leva o pinho com tanta celeridade que aos outros dous até lhes
custa dálo seguido. Dom Narciso já caiu num fachonco um par de vezes, e
para o pouco que pode ajudar coa carga tampouco vai ir a matacavalos. O
Alcaide, já farto de ter que correr, sentou dum brinco na traseira do chedeiro e
vai ali trás da pia fazendo de contrapeso, que como é costa abaixo não vem mal
de todo. O Perfeuto segue baixando caminho do Penedo do Leão, alheio aos
andares dos que vêm na traseira; leva a cabeça algo quente de tanto
pensamento descontrolado que lhe traz a soidade do pinho. As suas
lembranças andam aos brincos, escolhendo algo aqui e algo acolá para lho
trazer à cabeça, e isto causalhe muito desassossego. Porquê não será capaz de
ver com clareza certas cousas que pensa que lhe têm passado. Como essa
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 68
imagem persistente que se lhe apresenta subitamente e não dá tirado do
sentido. Vê a sua irmã com cinco ou seis anos, deitada no patamar do
vizinho… acochada num saco como se fosse um cãozinho, assim ali a dormir.
Ele teria então sete anos, se os tinha, e não entendia mui bem o que se passava
em casa; como é que a Esperança estava ali a dormir na escada dos vizinhos?
Agora enquanto puxa do pinho apercebese do mal que tiveram de passar de
meninhos… e a pobre Esperança sempre com tanto medo… ela escondiase
quando pensava que o seu pai lhe queria bater, e depois ele fechavalhe a porta
e deixavaa fora toda a noite. E a mãe? Porquê não lhe acudia à meninha? E o
Perfeuto vai lembrando como a sua mãe gostava da aguardente, e às vezes
tinhaa visto deitada no escano co garrafão ao lado, parecia estar dormida mas
o certo é que estava borracha. Pobre Esperancinha! – pensa agora o Perfeuto,
enquanto lembra aquela vez que a sua mãe não estava, dizse que fora visitar a
um primo que andava para morrer, ou algo assim lhes disseram a eles – O caso
foi que a sua mãe passou uns quantos dias fora da casa. Durante aqueles dias
eles passaram muita fome, fome e medo. Houve vezes de o seu pai marchar
para fora e não volver no dia, nem para o seguinte; alguns dizem que tinha uma
amiga lá na Ribeira, e que aproveitava a ausência da mulher para ir onda ela.
Ele quando o pai marchava, como era algo tacanho, deixavalhes tudo fechado
com chave e os coitados não tinham nem um zarapulho de pão para levar à
boca. Recorriam a tudo, alguma vez escondiam batatas no palheiro da erva ou
no combarro da lenha, assegurandose de que o pai não as pudesse topar,
senão… Ainda assim, havia vezes nas que passavam o dia quase inteiro sem
comer; em mais duma ocasião tiveram os dous meninhos que baixar
caminhando até ao rio e varrer a roda do moínho para fazer umas papinhas ou
uma bica do testo e não esmorecer.
Mentes estas dolorosas lembranças andam aos pinotes na cabeça do
Perfeuto, ele fecha os olhos e segue andando sem muito controlo, e não se
apercebe de que se saiu da rodeira e vai polos tojos abaixo, como levado do
demo, nem sequer sente as picadelas nas canelas. Dom Narciso segue pola
rodeira, e tem que botar uma carreirinha aos poucos para não despistarse dos
companheiros. O Alcaide continua sentado na traseira do chedeiro, vai
agarrado aos dous estadulhos de trás com ambas as mãos, e tudo lhe cumpre
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 69
para não sair disparado polos brincos que dá o carreto. Desde a rodeira, o
Narciso vê como a cabeça do Alcaide sobe e baixa como se se movesse aos
saltos, e assim é, leva o cu como um pandeiro, mas dali não se move…, vá, que
o levem! Narciso olha para o RachaPedras e quase se estremece, ele já se viu
primeiro naquele pinho e conhece a força coa que é capaz de te manejar como
um bonifrate; ele sabe da ligação coa que te jungem essas sogas invisíveis.
Durante uns momentos ao Narciso vêmlhe ganas de ir lá e botarlhe uma
mão, mas as aguilhoadas de dor que lhe chegam desde a parte das omoplatas
fazemlhe engrunhar o focinho e desistir de tal ideia. Ademais ele já o levara a
sua jeira, e agora tinha que deixar andar; afinal ele não sabia bem para onde
tinha que tirar, e nem sequer daria andando ao passo do RachaPedras.
Portanto decidiu, em total conformidade coas maçaduras do seu corpo, seguir
pola rodeira. Isso sim, sem tirar os olhos de acima do Perfeuto. Aquele Perfeuto
alheio ao seu entorno mais imediato, olhos fechados, canelas que não sentem
o sangue que sai das tantas picadelas dos tojos, sem ouvir os gemidos do
Alcaide que como um mostrengo segue a ser lançado arriba e abaixo no
chedeiro. Aquele Perfeuto seguia o seu andar cara ao Penedo do Leão como um
meninho que não sabe ter controlo, ou que realmente não o tem. Quando
chegou ao pé do penedo parou, olhou para o céu e viu a Estrelinha do Luzeiro,
como se lhe quisesse piscar o olho, e sem sequer reparar se os outros vinham
detrás ou não marchouse. Os outros dous fizeram outro tanto e ali ficou a pia
arrimada à base das pedras. Narciso foi o último em se marchar, em parte polo
bocado que teve que andar desde a rodeira ao penedo.
Só que aquele não era o Penedo do Leão; ao se saírem da rodeira vieram
bater um pouco mais ao Leste e aqui onde chegaram não é o Leão senão as
Fatigas. Se tivessem levantado a vista para a beira do penedo teriam visto um
buraco na parte baixa da peneda que lá no alto assoma a jeito de solaina ou
corredor. Desde abaixo aquele parece um simples furado na rocha, algo no que
alguém passou o tempo, golpe vai e golpe vem na pedra. Às vezes no monte a
gente, e ainda mais se anda um só e nem sequer tem com quem falar e muito
menos jogar à porca, não dá passado o tempo e acode a cousas que o
distraiam. Ora que se um se atreve de subir acima, e se tem o poder para o
fazer, porque se precisa poder e manha para dar posto o pé do outro lado do
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 70
furado, então o que vê é algo mais que um cocho que atravessa o penedo.
Dizse que há tempo, quando estes montes andavam cheios de gado, os moços
se dedicavam a ver quais deles eram capazes de subir e quais não; ainda
estavam também os que não se atreviam de o tentar. As moças, de andar ali co
gado, não se dedicavam a essas competições, ademais levando saia, tampouco
parecia bem ensinar assim as pernas. Algumas seica subiam quando não havia
homens por ali ao seu redor, então refuciam as saias para a cintura e
brincavam polos penedos arriba.
Quando se chega arriba, à primeira um esquecese de olhar para o
buraco, desde o alto avistamse tantos vales e regatas e lugares… que um fica
por um instante descolocado. Parece como se de súbito um estivesse noutro
sítio. Depois, quando já se começam de distinguir os lindes do conhecido… ali
anda A Boulhoeira, e Penalapa; por acolá fica Bande; ali o monte do Castro, e a
Rousia, e o Larouco; lá em baixo anda a Límia, e… agora é quando um repara
no buraco; e aí vem a surpresa que realmente desconcerta o curioso. O penedo
não debalde se chama das Fatigas, quiçá pola sua feitura a jeito de carrelas ou
fatigas de pão apoleiradas umas em riba das outras. O buraco está dentro do
que semelha uma silhueta humana afundada na pedra do alto. A um supor,
vem sendo uma marca como a que deixaria o corpo que se deitara na neve cos
braços apegados, só que a marca está feita na pedra e portanto o que a lavrou
fez algo mais que deitarse na dura rocha; ora, também é mais pequena que os
corpos da gente de agora. Seica dizse que naquele lugar sacrificavam a gentes
noutros tempos mais antigos, e que o buraco se fez para que por ele decorrera
o sangue do que era ali cuinchado até que estinhava, e a lenda não diz mais
nada. Por terse desviado da rodeira, os três homens amanhã terão que ir um
nada de través, pois de passar polo Leão ninguém os háde livrar.
* * *
Uma leda nova fezse pública ontem nas páginas de Nuestra Región; na
secção de ecos de sociedade informasenos de que o senhor aquele
adinheirado, sim, esse que anda a querer fazer uma obra benéfica e que se vê
obrigado a demorála e demorála, pois seica topou uma moça e anda o
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 71
homem mais feliz que um aparvado. Ele já fora casado mas agora, por razões
que o jornal não entra a detalhar, morava só. Dizse que até parece mais novo,
para aí vinte anos, agora parece o pai da moça e não o avó, como antes. O que
conta é que ele agora namorou e é feliz, e o demais sãoche lérias. Desde o
jornal mandamlhes os parabéns a ele e a essa beleza que vai apegada a ele tal
que uma lapa.
Num apartado no que o jornal recolhe notícias de há cem anos, lêse
como este diário fazia público o anúncio da próxima corrida de lobos que se
está a preparar lá nos montes do Zebreiro, que ficam na freguesia de Penacova,
bem ao sul desta província, mesmo nos lindes do Couto Misto. Também se diz
que os vizinhos de Penacova andam já a reparar em se as paredes estão prontas
para a corrida; a eles o que lhes importa é que venha muita gente e liquidar a
uma boa cheia de feras, que por ali não as precisam. A notícia estava escrita
num castelhano ortopédico que não desmerece do que Nuestra Región usa na
actualidade.
* * *
Aquela noite, quando se juntaram os homens da pia, olharamse por um
instante e mesmo semelhava que se quiseram botar a falar, mas não fizeram
tal, e seguiram calados; calados como eles são. O Perfeuto pensou que quiçá
teria gostado de dizer que sentia têlos desviado do caminho, mas as
condenadas das palavras não só não saíam senão que se tornavam para
adentro e faziamno rabear; faziamno sentir torpe e parvo como um meninho,
felizmente aquilo não durava muito. Cada vez que isto sucede ele põese da cor
da cereja e com essa pujança colhe o pinho e arranca sem esperar por
ninguém. O Narciso quis dizer que aguardara, “…que te ajudamos” mas calou;
ademais cumpriamlhe as forças para dar andado. O Alcaide, sem imutarse,
meteu uma carreirinha, e dum brinco saltou ao carro, tomaralhe gosto a ir
sentado e que o levassem. Narciso apurou o passo e foi a correr ao seu posto e
arrimando o seu esfolado ombreiro fez o que pôde. Numa ocasião em que se
parou o carro, Narciso aproveitou para lhe meter um empurrão ao Alcaide e
botálo abaixo. Pilharao descuidado e fêlo cair ao chão como um saco.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 72
Ergueuse pronto e resmungando colocouse na roda que lhe tocava. Aquele
estrume polo que agora cruzavam, que havia já tempo que teria agradecido que
o gadanhote o roçara, transportou ao Perfeuto a outra noite passada em que
ele e outro rapaz, andariam nos treze anos, lhe entraram a roubar os coelhos a
uns vizinhos da aldeia do lado. O Perfeuto, afeito a terse que desfazer da fome,
aprendera logo a dar co jeito de topar comida. E naquela corte dos Carrascos
havia mais coelhos que os que puder haver hoje na melhor granja. Eles
foramse lá de noite quando os dous velhos dormiam e arramplaram co que
puderam dar apanhado, quatro coelhos polo menos bem levaram. Aqueles
dous velhos, aos que a dentadura já não lhes defendia grande cousa, eram de
pouca ração, e os coelhos inçavam e inçavam que não havia quem os dera
controlado. Por conseguinte, quase lhes fizeram favor, porque aqueles velhos
orgulhosos, que se tinham por ricos, não queriam vender o que tanto lhes
sobrava. Aquela noite o Perfeutinho, como lhe chamava a sua avó, andou às
apalpadelas, às escuras pola corte adiante, na procura daqueles bichos que
fugiam como raios; nas mãos levou bem picadelas dos tojos, mas valer a
pena… quem sabe, se calhar valeulhe. Agora enquanto cruza o Zebreiro e se
pica nas canelas quase quer arrependerse das mais das cousas que fez; mas já
se sabe… ele era novo, e o juízo não lhe chegava… quem não ia desculpálo?
Uma vez entre ele e outro, igual era o mesmo que lhe ajudou no dos
coelhos, convenceram a uma velha que andava canda eles no monte co gado,
de que eles tinham um remédio para curar as verrugas. A pobre da velhinha,
que em inocente não tinha quem lhe ganhasse, disse que sim, que os deixava
que o tentaram, porque estava já mui farta de padecer por causa daquelas
verrugas que tanto lhe afeavam as mãos. Já até se oferecera ao São Bentinho.
Um deles pegou na mulher para que parara enquanto o outro, trás queimar no
lume um cacho duma polaina, lhe ia pingando o plástico derretido no coiro
verruguento. Os berros que a mulherzinha meteu aboujaram até os penedos
que os fizeram ressoar aqui e acolá, chegando até à aldeia, e dizse que dês que
ela faltou, anos mais tarde, os berros se volveram a escutar alguma vez. Às
vezes o Perfeuto senteos de noite na cama e acovilhase coas mantas pola
cabeça, mas os berros persistem e não se marcham até que se cansam. Porquê
lhe tardara tanto em vir a ele o juízo? Todas as lembranças parecem
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 73
desagradáveis, e ele devece por agarrarse a algo que seja mais prazenteiro.
Como aquela vez que se emborcalhara com uma moça no lameiro.
Tudo começara como um jogo de rapazes, andar às emborcalhinhas
campo abaixo. Primeiro botavase um e depois o outro e assim iam rodando
até o fundo tendo tino de não bater coa cabeça numa pedra das do caminho.
Que bem o estavam a passar, riamse como tolinhos, e a subir arriba e aos rolos
outra vez para abaixo. À primeira ele aguardava a que ela chegara ao fundo
para logo ele botarse; mas pouco a pouco foi adiantando a sua saída até irem
quase juntos. Tal foi assim que agora iam quase apegados e os seus corpos
alguma vez se roçavam; isto começou de o acender e numa das vezes pilhou à
moça por baixo e ali mesmo a forçou sem atender as suas súplicas. A verdade é
que a ele custavalhe entender como se passara tudo, ele não tinha planos de
botarse assim à rapariga, ele teria quinze anos e experiência em como aturar
certos pulos, pouca, ou nenhuma. Ela era do tempo dele mas aquele dia
sentirase avelhentada, como se alguém de súpeto lhe roubara a sua infância;
roubaralha e esconderalha para sempre num sítio secreto; um sítio ao que ela
já não daria jamais chegado, o sítio onde se guardam os sonhos, um sítio para o
que ela tem já o caminho borrado. E desde agora em diante terá que ver mui
bem com quem anda, e velarse mais dos homens, forem desconhecidos ou
não. Quando ele rematou aquele jogo, ao que já só ele jogava, liscou de ali
asinha e deixoua só, deitada na erva à beira dos salgueiros. Este fugir a correr
seguia sendo o modo de actuar do Perfeuto, liscar e não olhar para trás. Se
aquela vez tivesse torcido a cabeça e mirado, teria visto como as bágoas caíam
em fio polas meixelas da Ana, e talvez o sofrer dela reflectiria no dele, a modo
de espelho que obriga a deixar que a luz fure pola menina do olho; e quiçá…
Mas não, ele era teimoso naquele seu jeito de dar a volta e bulir asinha;
nisso guardava parecido co jazer familiar, acovilhar o lixo que não praz
contemplar e desaparecer; e acordar num sítio novo, um sítio limpo. Onde um
é um desconhecido e nada nem ninguém tem a habilidade de reflectir cousa
nenhuma. Ai, que bem se respira o ar que não sai das ventas das conhecias!
Mágoa só é que esta ficção não dure, e sem um o querer sequer logo essa
familiaridade das cousas fálo volver a um ao seu, volver ao rego, e não há
maneira… só fugir de novo aprazará o ferro ardente nas carnes curtidas, só
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 74
fugir te leva a um lugar onde tu ainda pensas que podes descobrir um eu novo,
o teu eu livre, o verdadeiro. Mas o Perfeuto não planeia as suas escapadelas,
não, a ele apresentamselhe como a única alternativa possível, e portanto sem
uma possibilidade real de eleição. Logo então para que lhe iam servir os
remorsos, se ele era inocente, vítima dum capricho do destino que o maneja?
Não, o Perfeuto não mirava para trás, detrás só concebe sombras, sombras e
mais sombras, e as vezes os berros da velhinha à que queimaram a mão co
plástico ardendo. Que bem se sentia ele quando se achegava à fria pedra da pia
para escondêla no escuro. Aquela pedra não lhe reflectia nada negro dele, e ali
junto a ela não sentia os berros que o faziam taparse pola cabeça no leito,
entrementes a sua mulher, que é algo coitada, não diz nada quando sente que
ele se converteu em novelo e quiçá até ande a tremer.
Ela cala. A Virtudes depreendeu a estar no seu sítio, a ouvir e engolir sem
dizer nada. Ela sente algo de mágoa quando o vê assim, a boa mãe que leva
dentro gostaria de acarinhálo e ao passo frear o desacougo que lhe causa o
sofrimento alheio. Ela, como o resto das mulheres, foi bem ensinada para curar
dos demais… com mensagens, que como agulhas, se lhe foram espetando
desde pequeninha: “Cuida ali do teu irmão, que fica só… Limpalhe os mocos
ao pequeno, que lhe chegam ao focinho… Fazlhe a cama ao teu primo, que
senão não dorme a gosto à noite… Lavalhe o pano das mãos a teu tio, que é
solteiro e não tem quem o governe… Coselhe as calças ao outro… Levalhe
tantinho leite ali a tal ou qual… Vai por tantinha água fresca à fonte para que
almoce teu pai”… E quando foste medrando a cousa não melhorou senão ao
revés… Ir a seitura, e andar lá brigando como eles, ao limite do teu poder,
depois volves à pressa para lhe ajudar à tua mãe co jantar… levar tudo à mesa,
e mais servilos, e a retirálo todo, e esfregar bem a louça coa água fria que
primeiro hás de ir procurar à fonte… e agora corre ao poço enquanto eles
botam a sesta aí na sombra da figueira; e tu ainda tens tempo de lhe pôr sabão
a uma tina de roupa… e vamos, deluva bem as calças contra o lavadoiro de
pedra para que amoleça… esfrega duro e bule asinha em rematar, não vês que
já chama por ti tua mãe…? A correr para as leiras que a seitura já volveu
começar… e tu vais e senteste bem porque lhe adiantaste o trabalho a tua mãe
que cos pequeninhos não dá feito… e toda a tarde andas na sega e à noite
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 75
volves para a casa malhada como o que mais… e volta a ajudar coa ceia… e a
acomodar os porcos e as vacas… e eia, a carrejar água e lenha para amanhã,
que ainda não há butano para cozinhar… e ajuda a tua mãe a deitar os
pequeninhos e se ainda te sobra tempo, que não ganas, repassa essas meias
que tem comesto o calcanhar… E pouco a pouco o fitar que descobre onde é
que se te precisa vaise alargando e alargando até que te excede, abrange tal
que em ti não cabe… tanto, que sai de ti e se mete nos demais… e eles,
conhecedores disso, tirarão dos fios invisíveis e porão em marcha a marioneta
em que te tens convertido, e ti afanaráste em cuidar de tudo e de todos e dos
que estarão por vir… E vaiste vendo no que eles te devolvem, no que te
manifestam,… e ti quereslhes agradar e até te pintas os beiços de encarnado…
Pensas em todos e te esqueces sempre de alguém, de ti… não tens tempo de
olharte no espelho da tua alma e ver ao ser humano que também tu levas
dentro, que sofre, que sente, o que trazes tão descuidado e que quer dizer que
não,… ou que sim, ou o que lhe dê na gana… Mas a Virtudes tardará muito,
demasiado, em contemplarse neste espelho e segue sem poder ver nela nada,
e cala, e segue velando na noite até que ele enfim se destapa e ronca forte. A
Virtudes faz tudo o que for preciso com tal de não enraivar ao seu homem,
tudo é pouco se com isso se pode evitar o peso da sua mão. Ele é muito forte, e
não é que o faça por mal, que nem sequer se apercebe do sofrer dela. Ele não se
apercebe de nada.
Que novinhos casaram! Ela cumprira os dezasseis, e ele já viera de
Alemanha, com aquelas cadeias de ouro que por aqui ninguém levava, alguns
chamavamlhes chocalhos polo desconforme do tamanho, e ela deixouse
engaiolar. E a cousa vai indo, e a Virtudes sempre alegre, e até sente que ele a
ama, e quem sabe, talvez ele, ao seu jeito, sim que a ama e não o sabe sequer.
Este homem sabe tão poucas cousas, e às vezes as que sabe nem pode
exprimilas; se alguém lhe oferecera um canistrelo de palavras que ele pudesse
ir escolhendo e gastando sem temor a ficar em branco. Mas que bem se sentia
ali onde a pia, muda pedra centenária que como ele ouvia e calava. Aquelas
duas noites que lhes levou ir das Fatigas ao Leão fizeramselhe a ele mui
curtas, quiçá porque o pedaço não era mui grande, ou porque os outros
ajudaram mais, ou porque… que sei eu! Ele como for, o Perfeuto encontrouse
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 76
no pé do penedo sem decatarse do esforço que lhe custara. De aqui em diante,
e até baixar a Currelo, por debaixo da Cabana, a pendente vai ir medrando e a
cousa não lhe vai ser tão voluntária; mas isso não será agora, e que bem que a
Estrelinha do Luzeiro aguardara a que chegaram até o Penedo do Leão para
apagarse. Agora sim, agora havia que marchar. O Perfeuto e mais o Alcaide
marcharam primeiro.
Dom Narciso, deixandose levar polo cansaço e a tentação que lhe
oferecia o sítio, sentou no chão e estirou as costas magoadas contra o penedo.
A frescura da pedra fezlhe chegar um alivio lá mui adentro, depois desfechou
os olhos e viu no céu uma luz cintilante que vinha direitinha ao alto do penedo
no que ele estava recostado. Trás do sobressalto inicial Narciso pensou que se
tratava duma estrela que antes de que rematasse a noite ainda queria que
alguém a vira botarse. Ora Dom Narciso, como tantas outras vezes, não podia
estar mais enganado. Pois ainda que ele o ignorava, aquele penedo, o do Leão,
era o sítio ao que chegavam os martelos que do Castelo da Rainha Loba se
lançavam. Os penedos da Rainha Loba custodiam a outra beira de Penacova,
eles lá ergueitos. Se o Narciso tivesse querido, ou se sequer tivesse manifestado
algo de interesse, as gentes de Penacova poderlheiam ter contado… que
agora já não se passava, mas que em tempos as gentes que moravam pola zona
do Leste, como estavam os mais altos e de tudo se apercebiam primeiro que
ninguém, quando viam que se achegava o inimigo, lançavam um martelo que
ia dando voltas polo ar e atravessava todos estes vales até bater no altinho do
Penedo do Leão, e deste jeito avisavam a todos os moradores do Zebreiro. As
histórias não dizem nada de que os martelos se usassem para avisar do outro
lado também. Semelha que os perigos vieram sempre por esse lado, o da Límia,
o de…onde agora fica a Castela… e nunca polo da Raia. Como quer que fosse,
o dos martelos caiu em desuso e agora já só sobe a gente lá aos penedos da
Rainha Loba para ver o mundo desde o alto e para colher cacos de olas de
barro escachadas polas mãos dos nossos antepassados. Pouco a pouco estas
gentes que habitavam todas e cada uma destas fragas foram reduzindo os
lugares onde assentavam, e de sete passaram a quatro, e logo à última
juntaramse todos no que hoje se chama Penacova. Prova disto são os nomes
que ainda se usam para designar a estes montes. Há para aí três sítios distintos
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 77
que recebem o nome de Cemitério, lá no meio do monte, e se ali cavas, saem os
ossos dos que foram os nossos antepassados. Outro sítio chamase a Igreja, e
outro pertinho a Missa, e assim se poderia seguir até aborrecer a um santo.
Ademais a estas cousas já ninguém lhes dá importância, e como ia um cura
perder o seu santo tempo escutando essas parvadas? Narciso era um homem
pragmático, e de martelos, por aqueles tempos, só entendia quando os via
debuxados ao lado duma fouce, ou se ligava que tiver que trabalhar com eles
para fazer algum arranjo na casa. Não, a Dom Narciso chegavalhe com pensar
que aquela fora uma estrela que chegara ao fim da sua viagem polo espaço
celeste e que a ele lhe tocara ver a sua derradeira luz. Se Narciso tivesse sido
um homem mais religioso, quiçá teria visto a silhueta dum santo que desde o
céu o iluminava para lhe ensinar o bom caminho. Ora Dom Narciso era
parente dos ateus, e portanto um romântico, um sonhador, e aquele dia
marchou contente.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 78
sabe, ou co que pode. E quem não te diz a ti as cousas que eles não cavilarão
para os seus adentros? O jornal manifesta o seu contento pola felicidade do
senhor Benigno e só lhe magoa que não casara, e a poder ser na Igreja. E é que
já se sabe que Nuestra Región lhe tem muito ‘aquele’ ao fulano. A que ainda vai
resultar que este caráfio de Benigno lhes unta a fraldiqueira? Tanta graxa que
lhe dão…, já cheira!
* * *
Esta noite Dom Narciso chegou em primeiro e teve tempo para reviver a
sensação prazenteira que lhe deixara a noite passada, nunca antes vira ele tão
próxima, nem tão intensa a luz duma estrela. Dom Narciso, apesar das suas
revelações interiores, ainda não tinha achado acoito nos seus adentros mais
profundos, mas semelhavaselhe a ele que ultimamente tinha melhores
habilidades para captar a boa essência das cousas… Quando chegaram os
outros dous, a um tempo ainda que por caminhos separados, ele já estava de
pé direito onde a pia e preparado. O Perfeuto vinha sério tal que capador
quando está coas mãos na massa. O Alcaide, como sempre, nem se sabe. Pola
calada, como era o seu costume, ocuparam os seus postos, e só a voz de
Narciso rompeu o cerco do silêncio: “Ânimo companheiros, que seguimos
costa abaixo!” O silêncio dos outros devolveulhe a Narciso as suas próprias
palavras. Puseramse ao caminho, a costa abaixo era algo de bimbarreira
nalgumas partes e os dous de atrás em lugar de puxar tiravam polas pontas do
sedenho, e assim freavam algo a carga, não fosse esmagar ao de diante. Ali
seguia o Perfeuto, tratando de manter a calma entrementes se lhe vinha o
mundo em cima. Igualzinho que sentira quando chegara à Alemanha, sendo
ele já rapazolo. Daquela, sofrera polo silêncio que amuralhavam todas aquelas
palavras em língua estranha. Ele estava afeito aos falares da sua língua
conhecida, que quando lhe entrava nos miolos não maçava como sim o faziam
aquelas palavras alemãs. Por sorte aquela estadia durara só uns anos, não
muitos, ora que a ele lhe pareceram bem longos. De ali foram a Barcelona e
aquilo era outra cousa. Ele seguia sem entender as palavras, mas as melodias
do catalão eramche menos estranhas e não lhe faziam estourar a cabeça.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 79
O da Alemanha fora muito, ele ainda hoje recorda com terror quando a
polícia quase deteve ao seu pai porque o amo dera queixas dele. O seu pai
trabalhava numa fábrica de não sei que cousa, ele com dizerte que quando
entravam à manhã pola porta, ainda que fosse no inverno, já se tinham que
despir aí mesmo e a suor já lhes começava a cair, eravos demais, saíam de ali
derretidos, não me estranha que todos morreram novos. Ele como quer que
fosse o dono daqueles fornos deu conta do Hermínio. A cousa se passou
durante um fimdesemana em que o Hermínio andava a trabalhar nos jardins
da casa do seu chefe, como a cotio fazia. E vá casaria que tinha o amo daquela
fábrica, só de terreno ao redor poderseiam sementar mais de três tegas de
pão se o lavrassem, que não era esse o proveito que lhe tiravam. Eles
tinhamno todo coberto de erva, e com plantinhas agarradas ao chão perto da
casa, e outras mais grandes por aqui e por acolá, e árvores de muitas classes. O
pai do Perfeuto cuidava de toda aquela vida nos finsdesemana: segava a erva
e empacavaa com uma máquina pequeninha, apanhava as folhas e metiaas
em sacos de papel que tinham folhinhas debuxadas por fora, decotava as
árvores quando lhe mandavam… e assim o Hermínio apanhava algo mais de
paga. O mau veio quando apanhou mais do que lhe era dado. E não é que ele
roubasse ao amo, polo menos na casa não o fazia, ainda que tivesse a falta, que
a tinha, não ia ser tão parvo. Não, o que a ele o perdeu foi arrepanhar uns
coelhinhos que por ali passeavam. Como ia o homem saber que aos da casa
não lhes incomodava que lhe pasceram no seu campo, e lho deixassem todo
lixoso… tanto como eles gostavam da limpeza? Até pensou que lhe faria favor
se lhos caçava. E que maneira de lho pagar, botandolhe a polícia, que quase
lhe houve de custar um desgosto! Foi assim deste jeito como aprendeu que
aqueles coelhos, ainda que não fossem de ninguém, deviam ser respeitados. E
ainda por sorte quando chegou a polícia estava ali um de Mogueimes, um tal
Servando, que sabia algo de alemão, e foi o que lhe valeu, que senão co
balbuciamento de espanhol dos polícias alemães e mais o do Hermínio, quem
sabe a que se armaria. Pois claro, contudo e isso, o pai do Perfeuto ficou sem
trabalho e uma vez mais encheram as malas co enxoval e meteramse num
autocarro rumo a Barcelona. Todos tão contentes, ali tão sequer poderiam
caçar coelhos. Enquanto empurrava na pia o Perfeuto lembrou os muitos
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 80
coelhos que ele pilhara naqueles montes de Penacova enquanto teve ali a
canteira. Apanhou quantos pôde, e assim desquitouse polos que não pôde
papar por culpa dos alemães. Sempre a culpa háde ser de alguém; grande
como o demo e mais não tem quem a queira de gana. Por certo o Perfeuto não
sentia nenhuma atracção por ela; e isso que ele fizera das dele, e tinha motivos
para querêla. No dos coelhos fez alguma que outra falcatrua. Por exemplo, ele
não diferenciava entre tempo de caça ou de veda, para ele era tudo o mesmo.
Ele andava por aqueles montes das fraldas da Rainha Loba e apanhava quanto
coelhinho havia. Punha laços a moreias, ainda que estivesse proibido, para ele
não o estava. Metia o furão nas toqueiras para que botara ao coelho para fora, e
depois com um saco esperavao na boca da entrada para que se metesse no
fardel, e a golpes contra o penedo o matava. Cos laços pilhou teixugos, raposos,
javalis, e tudo o que cair neles; a ele tanto lhe tinha com tal de ver algo ali
atrapado à manhã. E agora enquanto se acorda disso parece que sente como
um amargor na gorja, não gosta de sentir isso e cospe, e o amargor convertese
em carraspeira que se estende por toda a goela e obrigao a tossir, mas nada,
aquilo segue ali. Felizmente a Estrelinha do Luzeiro resgatouo de ter que
seguir a pensar. Chegaram quase a Currelo, mesmo à beira do caminho que
une Penacova e Gomesende. Desde este ponto podese já adivinhar lá no pé do
Laspedo a Fonte de Requeijo, aquele é o seu próximo destino. Não semelha
longe já, ainda que eles ignoram o sítio, terão tempo avondo para chegarem
antes de que se esgote o que lhes resta de lua. Marcharam, ora primeiro de
partir, o Perfeuto tossiu e tossiu, e quase trousa ali a figadeira. O Alcaide já
colhera o caminho, e o Narciso demorouse ali um nada, quedo, afincado na
parede dum lameiro; olhou um pedaço para o céu mas vendo que não vinha
nenhuma luz a o despedir marchou, marchou co seu andar devagar.
* * *
…Quando os dous agentes, logo de deixar à tia Maria coas suas verças,
foram rua abaixo para o meio do lugar, toparamse com um moço que levava
um sacho no ombreiro. Sem saber se vem ou vai, eles achegaramse a ele e,
como sempre, foi o mais velho o que encetou a conversa.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 81
– Bons dias rapaz, para onde vais?
– Bons dias… vou pra aí!
Polo tom do rapaz deduziram que a ele não lhe amargava a conversa. E
estavam no certo, em particular quando a conversa era com gentes que vieram
de fora da contorna; e eles semelhavam de muito mais acolá.
– Refirome a que se vais a trabalhar para algum lado.
– Homem, se lhe parece o sacho levoo assim de atavio no ombreiro…
que pergunta…! E ademais, quem o quer saber?
– Nós vimos de Ourense e andamos tratando de esclarecer um assunto
relacionado com uma pia que houve noutrora neste lugar…
O rapaz sorriu como pensando “olha os chalados estes”, afincou o sacho
no chão enquanto espreitava o que os outros falavam, depois disse:
– Olhem que se se vão fiar do que dizem que houve em tempos neste
lugar, vão vocês arranjados…! vão, ho, digolho eu!
– Homem, não digo eu que vá crer o que possam dizer as histórias
populares, mas o da pia não é conto nenhum, que para isso estão os papéis que
registram o feito.
– Os papéis? Pois vá, como se os papéis soubessem o que vai neles. Se
vamos a isso também logo há que crer que o Senhor Santiago andou montado
no seu cavalo polos penedos da Rainha Loba adiante matando mouros.
– Homem…! Não me irás tu comparar uma lenda, ainda que eu disto que
dizes nunca ouvi nada, com um feito histórico constatável.
– Eu não lhe sei mui bem de feitos constatáveis, mas se quer provas suba
você ao Castelo da Rainha Loba e veja cos seus próprios olhos as marcas das
pegadas do cavalo polas rochas arriba.
– Homem! Não me quererás tu dizer que crês que o cavalo pôde deixar as
pegadas marcadas na rocha?
– Mas… por quem me toma? Como lhe vou eu dizer isso, nem que fosse
um parvo! Eu não creio nada de nada, se não me engano são vocês os que
andam a indagar sobre alguma dessas trapalhadas.
O agente que levava a carga daquela conversa começava a mostrar acenos
de impaciência. Não podia ser, uma vez mais estava indo a cousa rumo a
nenhures e àquelas horas da manhã já pouca gente, quem não andara no seu
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 82
labor, poderiam topar. Aquele rapaz parecia não devecer por marchar a onde é
que fosse, e mesmo semelhava que gostava daquela visita dos forasteiros. Ele
sempre ali enterrado na aldeia cos de sempre, tanto quanto ele gostava da
gente que souber falar doutros mundos,… mas estes dous pareciam meio
parvos, mira que andar interessandose por essas cousas do passado!
– Mira rapaz, tu és novo e não aprendeste ainda a ver com clareza a
diferença que há entre as lendas propriamente ditas e os feitos históricos.
– Pois porquê não mo explica você, que parece estar bem informado?
– Mira, uma lenda é um dito popular que a gente repete e repete de
geração em geração, mas sem que exista nada que demostre que isso se
passara de verdade, entendes…?
– Percebo.
– …E um feito histórico é uma cousa que aconteceu, talvez há também
muitos anos, da que temos uma prova irrefutável que demostra que se passou
de verdade; compreendes? Vês agora a diferença?
– Doume conta, mas não sei se colhi bem a diferença. Vejamos: segundo
você, ante um feito que ocorreu, passar o tempo que passar desde então, se o
que assim o viu ocorrer o escreveu num papel, é que a cousa foi certa e se
passou de verdade; ora, se o que fez foi graválo numa pedra então é que não
foi certo, e pode têlo inventado; não sim?
– Pois vá que tens tu uma maneira estranha de misturar as cousas. Mira,
não tem nada que ver uma cousa coa outra; podes crerme porque é assim,
digocho eu.
– Eu poderia crêlo, mas só porque você o diz, que parece que algo sabe, e
tão sequer não é de por aqui; mas se tanto sabe, porquê lhe preocupam
parvalhadas sobre uma pia da que por certo eu não ouvi falar na minha vida, e
bem pudesse ser uma lenda como a do Senhor Santiago? Quem lhe diz a você
que o da pia não é inventado? Porque a mim, se lhe heide dizer a verdade, não
me lembra nada.
Naquele momento o detective fez um cálculo rápido e decatouse de que
sem dúvida a pia fora sacada da igreja de Penacova anos antes de nascer aquele
rapaz. E que seguramente ele já recebera as águas baptismais na nova. Que era
uma pia distinta; mas desta nova cunca, com base de ferros negros e rodinhas,
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 83
que devem de ser de adorno pois no chão de lousas não roucham, não sabia
muito o detective, já que jamais a tinha visto; quando eles olharam desde o
átrio para adentro polas vidraças não a viram; claro, co pequena e pouca cousa
que é, não é milagre. O que sim imaginaram, e com razão, é que ali haveria, em
vez da original, uma pia substituta, por ruim que puder ser. Porque tampouco
era o caso que por causa da avarenta natureza dos abades se fosse deixar à
gentinha sem baptizar ou sem poder molhar os dedos para fazer o
porlaseñal. Mas o detective não sabia como era esta substituta; não sabia da
sua cor gris e esbrancujada, como parida polo cimento e mais a areia, o que
amiúde faz parecer que a água se enlourara, tingindose duma cor arruelada, e
daquela à gente dálhe reparo meter ali a mão, por mui bendita que for… Para
a água como a pedra não há, Deus sabe que fazem um matrimónio perfeito,
mas aqui veio um cura e divorciouas. Mas este moço novo que nem sequer
recebera as águas baptismais na pia de pedra, não sabia nada do assunto e
tampouco se importava. É como se a água suja que lhe botaram pola cabeça
abaixo o dia do seu baptizado lhe enturvara o sentido que lhe teria de vir. Ele já
fora ensinado a valorar cousas que valham de verdade. Ele sabe mui bem o que
quer e até dizse que já sabe onde procurálo. Qualquer dia colhe a mala e não
volve até que o possa fazer como é devido… com um bom carro, bem equipado
com aparelho musical, roupas de marca… e o que mandar a moda no
momento. Ora que ele já sabe onde ir procurar tudo isso. Tem um irmão em
Barcelona, que leva lá já bem anos, e se quadra vai parar onde ele; ou senão vai
para Canárias, que seica se ganha bem. Este moço novo só aguarda o momento
de partir, mas a paciência já não lhe aguardou, essa foiselhe há anos…
A gente daqui vê como os seus filhos, passada a primeira infância, lhe são
roubados sem poderem eles fazer nada, nada mais que deixálos marchar cos
seus amos e calar. Dentro de pouco, este colherá os seus sonhos e quiçá saia
voando. Cambiará o sacho pola pá e a erva polo cimento, e pouco a pouco irá
conquistando essas cousinhas que agora tanto anseia possuir. E quiçá algum
dia regresse à sua terra, e construirá uma casa. Levantará mui asinha as
paredes com tijolos e cimento, esquecendose da pedra já para sempre… Mas
para isto faltam anos e ele agora tem de ir sachar nas batatas que o que é de
Deus não o háde levar o Demo.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 84
– Tu és mui novo, rapaz, e ainda che falta muito por aprender, mas a nós
já se nos fez tarde e temos que pensar em irmonos indo. Ademais, tu não vais
a algures com esse sacho?
– A que algures heide ir, ó? A nenhures é a onde se pode ir aqui, que isto
não vale nada.
A olhada do rapaz parecia caída no chão, perto donde afincara o sacho
desde o começo da conversa; mas ele não olhava ao chão, nem tão sequer o
via, ele mirava longe, mui longe, tão longe que a sua olhada se perdia. Os dous
agentes despediramse dele e marcharam de volta para o seu carro. Ambos os
homens foram andando devagar e calados. Calados mas dizendo as cousas
coas caras para os que com eles se cruzaram. Ninguém se cruzou. O mais velho
levava um gesto que era a mistura da sua contrariedade e a mágoa; algo
ambígua lhe resultaria a quem lha vira. Na cara do mais novo, Riba, que poucos
mais anos tinha que o rapaz que acabavam de deixar, podiase ver a dor do que
sente o sofrer dum irmão e não lhe pode valer; também há nessa cara um
assomo de esperança como emanado dum conhecimento prévio, do
conhecimento do que sabe que as cousas podem ser diferentes… Riba não
perde a esperança para esta terra, que tão bonita, ainda que estranha, lhe
parece.
O rapaz colhera o sacho e com ele ao ombreiro marchara para… por aí.
* * *
Narciso seguia sendo o primeiro em chegar cada noite onde a pia, não se
sabe se polo desacougo que lhe trouxera a primavera ou porque anda o homem
buscando novas luzes ao amparo da escuridão e a soidade. Ele quando os
outros chegam, no meio da noite negra, o Narciso já leva ali um bom bocado.
Estas últimas jornadas têm sido algo monótonas; de quitado esse tossir que se
lhe pôs a Perfeuto na gorja, e que parece não ter pressa de se lhe ir, tudo segue
com normalidade. Os vales que andam a atravessar mostram, apesar da
escuridão que obriga a adivinhar, uma beleza que reborda por onde quer…
tudo florido e coberto duma erva que dá cem nomes à cor verde. Mágoa destas
touças de Penacereija que se tornaram de cor preta; quando os homens saíram
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 85
para fora das carvalheiras olharamse as mãos riscadas polos tições ardidos, e
vendo o cómicos que estavam quase lhes houvera de dar o riso se não lho
congelara na face o saber que esses riscos eram o sinal da morte que o lume
segara havia poucas semanas. Quem seria o bruto que foi capaz de atentar
contra tanta beleza, trocandoa em luto poeirento e cinza.
Dom Narciso odiava esta atitude arrasadora que tinham alguns homens;
ele estava bem certo de que eram homens os que prendiam o lume. Ele não
dava imaginado, por mais que o tentasse, a uma mulher causando tanta
destruição. Para ele estes seres, jungidos mais rente à terra, vinculados a ela
pola sua própria realidade cíclica, possuíam uma maior capacidade para
suportar pacientemente as incomodidades e a lentidão que impõe a natureza e,
por certo, não as via capazes de semelhante violência. E quem sabe?
Porventura não lhe falta razão; mas para que serve esta análise, seja certa ou
falsa?
O Perfeuto também anda a pensar por culpa dos tições, ora, as suas
cavilações são bem outras. E como não o hãode ser se aquela vez quase perde
o carro por causa do lume…? E que mais tem quem o plantara! Ele precisava
despejar os arredores daqueles penedos para poder rachar a pedra. O lume à
pedra não lhe faz mal, pois logo quem vai andar levando trabalho a cortar nas
carvalheiras e roçar o monte baixo que tanto abunda. Um fósforo faz o trabalho
da limpa e depois ele racha a pedra. Sim, o Perfeuto usava com frequência o
método da mecha e sempre lhe tinha dado bons resultados até aquele dia no
que quase lhe custou um desgosto. Ele, como sempre, punha o lume quando
tinha a canteira parada e assim ninguém lhe podia botar as culpas ainda que
soubessem bem que fora ele … “Este lume foi prendido o domingo quando nós
não estávamos aqui e por pouco nos arde o compressor, que não é o
mesmo…” Alguma vez incluso deixavam que lhes ardesse alguma ferramenta
que já não servia ou algum outro ferrancho para dissimular. E claro, a situação
iase pondo cada vez mais negra, mas ninguém vira nunca cos seus olhos
próprios ao Perfeuto co fósforo na rascadeira. Ora, que aquele dia que o lume
se larejara tão asinha, houve de o assar como uma sardinha dentro da lata. Ele,
para que ninguém o pudesse olhar desde a aldeia, escondia o automóvel
arrimandoo bem dentro da rodeira entre a folhatada, e depois subia monte
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 86
arriba para soltar a chispa. Depois baixava a escape e tinha tempo e tempo para
marchar pola pista que sobe para ChãodeLamas sem que ninguém lhe
pudesse seguir o rastro. Sempre lhe tinha saído o plano à perfeição, mas aquela
vez ao raio do fotingo deuselhe por não querer acender, e ele volta que
dálhe, e o ar que ia achegando o bruar da labareda. Ele começa de se pôr
nervoso e olha lá para arriba e vê que as chamas galopam mui à pressa; e ainda
que andam retiradas já se começam de sentir os estalos da madeira que se
retorce ao ser abrasada. Também se podem já ver pássaros que vão daqui para
acolá, magoados por não poder levar nos seus voares as crias pequerrechas do
ninho… E ele ali atrapado na folhagem enquanto o inferno anda a baixar.
Blasfema como ninguém podia fazêlo, da sua boca saem palavras que mesmo
se poderia dizer que botam lume, mas de nada lhe servem. Não, ele não podia
deixar que lhe ardera assim o auto e ainda por riba que se riram e o
descobriram; portanto, como um animal rabioso empurrou e empurrou, e coa
ajuda do terreno deu separado o veículo dos carvalhetes que estavam
destinados às chamas; depois, já no caminho de terra batida, como havia algo
de pendente, pôde arrancar o motor sem ter de usar a bateria, que parecia ser a
fonte do problema. O Perfeuto liscou dali como um foguete e dizse que aquela
vez aprendeu a sua lição e que nunca mais deixou o carro perto do lume. Ora
bem, do lume seguiu fazendo uso, ele não vê nada mau em beneficiarse duma
técnica de limpa que não lhe custa dinheiro nem lhe dá muito trabalho.
Mesmo agora, se não fosse porque não vai só, e ademais não está mui seguro
de rumo a onde teria que empontar as chamas, já teria usado o seu isqueiro por
estes montes. Enquanto anda ele com estas incendiárias lembranças, trata de
se acordar de qual foi a última vez que pôs lume. Dês que fechou a canteira já
não precisa usar este método para abrirse caminho, e disto há já uns aninhos,
polo que não dá encontrado o que busca na sua saturada cabeça. Com esses
pensamentos traz o homem os miolos quentes e não se apercebe de que
andam já pola Veiga fora; atrás, pola esquerda, ficou Guriz, e já estão no
pedaço do cabo para chegar à Fonte de Requeijo. Quando quis acordar, já
estava ali ao pé mesmo do pipel de pedra.
O primeiro foi apagar a sede que levava e mais ver, enviando os golos com
força, se isso que lhe fazia tossir se lhe tirava duma vez da gorja; ora por mais
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 87
que bebeu o pruício seguiu no seu sítio. Os outros dous homens molharam
também um nada e cumprindo o mandato deram água à fartura à sedenta
pedra. Que bem sabia aquela água! E com aquele deleite cristalino ali ficaram
quedos co seu silêncio. Dom Narciso espreitava o som da água que bulia rego
abaixo para ir ao encontro do regueiro que a háde ir ajudando na sua travessia
para o mar. O Perfeuto seguia co seu pensamento posto nos lumes que ele
plantara, não acertava com adivinhar qual fora o último monte que fizera
desaparecer, ou transformar de verde a preto. Cos dedos ia o homem contando
lumes, como seguindo uma ordem cronológica guiada pola sua pobre
memória, mas nada, acabaramselhe os dedos e não dá encadilhado à
resposta que busca. Enfastiado polo desacougo que lhe causava não poder
lembrar, marchou sem despedirse. Ninguém se surpreendeu. O Alcaide fez
outro tanto. Dom Narciso ficou só e em silêncio por uns instantes, depois
marchou a modinho e olhando para o céu.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 88
Capítulo IV
A FONTE DE REQUEIJO
Do meio e meio da terra vem nascer mesmo no pé do Laspedo. Lá como
pode, fura entre as lajas da dura rocha e cai abaixo sobre outra pedra lisa que a
modo de leito a recolhe e a agarima, para mui passeninhamente deixar sair a
sobrante pola pipela a caminho do rio. Porque se chama Requeijo ninguém o
sabe, mas não seria de estranhar que tivesse algo que ver coa esquisitice desta
água. Nesta fonte, por estar ali na beira mesmo da Veiga, que se enche sempre
de gado, toda a gente molha um nada à hora da merenda. Lá pola direita, um
pouco mais abaixo, fica a Pedrosa, que é um monte baixo mui pelado e coberto
todo de pedras. Mas não são estes uns pedregulhos escangalhados por ali onde
quer; não, na maioria dos sítios as pedras topamse juntas e amoreadas, como
acovilhando algo. Ninguém sabe o que ali há, nem o que ali se passou, se é que
é certo que se passara. Só se diz que há muito tempo se enterrara ali a um
general. O certo é que haverá por aí uns cinquenta anos um forasteiro
adinheirado que viera de não se sabe onde encarregou ali umas escavações na
procura de algo. Cavaram todos os homens de Penacova, e assim foram
pagados, mas nada ali não saiu, e aquilo segue tudo empedrado.
Os três homens da pia reconheciam, cada um para os seus adentros e pola
calada, que aquela água tinha algo que lhe dava tal suavidade no paladar como
nunca antes tiveram experimentado. Como o tempo lhes chegava – a lua nova
ainda não se encetara – aquela noite parecia que não tinham pressa, e
enquanto bebiam e davam água à pia repousaram à beira da fonte, coas costas
afincadas na peneda que há em frente do manancial. Depois o Perfeuto,
quando teve o seu corpo bem saciado e com reservas para a noite, colheu o
pinho e pôsse ao caminho sem consultar a ninguém, como é o seu costume;
os outros dous seguiramno e pouco a pouco tudo volveu à rotina de sempre.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 89
Vão agora Lama abaixo e cruzando para onde fica o Penedo Esmigalhado; eles
não hãode subir tão arriba, pois a rodeira vai por aqui mais à beira do
regueiro. O Perfeuto hoje não parece que ande lá o homem com tantas
pujanças como as que o outro dia lhe fizeram sair da rodeira e ir bater às
Fatigas. Não, hoje vai ir polo caminho traçado sem afastarse mais que umas
polegadas ali onde lhe faça falta para evitar que a roda vá ao buraco quando o
houver. Parece que a tosse lhe foi a menos, mas não se lhe tirou
completamente enquanto ele segue às voltas, também hoje, co assunto dos
incêndios, e segue sem encontrar qual foi a sua última queima. De seguro que
foi nos montes de Penacova.
Ele montara aquela canteira com tantas ilusões… co dinheiro que
ganhara na Alemanha mercou as máquinas que precisava para rebentar os
penedos e um camião para carregar depois a pedra. Tudo começara bem. A
pedra saíalhe quase debalde e as ganâncias engordavam como as vacas do
moinheiro no inverno. Em menos dum ano já tinha comprado outro camião e
pagava a quem o guiava. Nos salários também pouco se lhe ia, trazia homens
do lado de lá da Raia sem papéis e nem seguro lhes pagava. Pouco a pouco, coa
força destes homens mal pagados, a pedra iase transformando em dinheiro
que se amoreava nas mãos do Perfeuto. Quando se acaba um penedo, pois
venha lume e a arrancarlhe a alma ao monte, que aqui há muito que
arramplar. Os vizinhos de Penacova, ainda que fartos polos estouros que não
param em todo o dia e que salpicam a tranquilidade destas terras de
sobressaltos inecessários, fizeram o que a cotio sabem fazer quando se trata de
defenderse contra o mal que vem de fora… nada. Não fizeram nada. Um por ti
e outro por mim foram passando a cousa e teve de ser o destino o que se
encarregara do Perfeuto. E olha que lhe dava reganho ao Perfeuto ter que
lembrar o mal que rematou o que tão bem principiara.
Durante as noites que lhe levou chegar ao seguinte ponto no seu destino
ele tentou com todas as suas forças evitar que lhe viessem à cabeça as
lembranças dos acontecimentos que o levaram a ter de vender os camiões e
mais as máquinas para dar pago aos advogados. Mas se por algo se caracteriza
o Perfeuto é por saber arrumar assuntos e deixálos apodrecer ao seu antojo até
que rebentam e então não há remédio; mas, por enquanto, a cousa vai indo
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 90
mais ou menos pola calada e ele tenta levar a sua mente em branco, e vá se isso
lhe ajuda a manterse na rodeira. Dom Narciso agradece aquela tranquilidade
que até lhe permite de quando em vez levantar os olhos do húmido carroucho
e voar montado no alto dos seus sonhos na procura das estrelas. Penacova
quase sempre tem um céu limpo de nuvens nas noites da primavera, sobretudo
quando entra o mês do São João. Desde onde andam hoje eles às voltas, as
estrelas poderseiam contar por milheiros e nunca se daria rematado. Pouco
mais se vê que o amplo espaço celeste que os cobre a modo de manto negro e
prateado, e depois o grande pano vai caindo e vai morrendo lá na borda onde
se junta cos montes que debuxam ondulado o seu remate. Dom Narciso vai
ledo no seu andar, que contrasta coa apatia do Alcaide e coa teimosia do
RachaPedras. Narciso sabe que ainda lhe faltam por passar jornadas de
sofrimento, porque ainda não sente que chegasse a onde a sua intuição lhe diz
que deveria chegar… Mas que mais pode haver na escuridão do não lembrado?
Ele agora prefere deixar que o rodeiro rouche e o vá empuxando aonde quer
que ele vá. O Perfeuto também teria preferido seguir na mesma de não pensar;
mas olha que lhe estava a custar, ele tinha que fazer um verdadeiro esforço
para não verse assaltado polas imagens que fotografaram, mui ao seu pesar, os
seus derradeiros dias na canteira de Penacova. Por vezes era tal o esforço que
até se lhe ouvia como falava só; ia ele ensimesmado numa discussão com
alguém, que aos outros se figurava invisível, com quem desatava a sua fúria
soltando mais blasfémias que palavras. Esta conversa levavaa ele num falar
mui baixinho, e os outros dous compreendiam que não se estava a dirigir a
eles. E se assim fosse preferiam fazer o mouco e, como a Virtudes, ouvir e calar.
Dês que começaram aqueles diálogos, que haveria que denominar monólogos
de palavrões, parece que o Perfeuto guiava algo mais devagar o carro; como se
aquele falar lhe roubasse a energia que a cotio o fazia ir às carreiras e sairse do
caminho. Os de trás seguiram fazendo como que não ouviam nada e às vezes,
para dissimular ainda melhor, assobiavam um chisco.
Ao remate da noite deixaram a pia, ainda com muita água, perto do
Castelo Velho, que fica na metade do caminho entre Requeijo e o pé do Castelo
da Rainha Loba, onde lhes aguarda a quinta fonte. No Castelo Velho
encontramse também cachos de olas partidas se se rabunhar um nada na
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 91
terra, que perto dos penedos mesmo parece cinza, ligeira e duma cor como
griseira. Mas os penedos deste Castelo Velho não retêm lenda nem nada que os
faça ressaltar, em contraste cos seus vizinhos da direita, os penedos da Rainha
Loba; estes sim que sabem como atrair os mortais, erguendose esbeltos e
desafiantes. São prova palpável da divindade para alguns habitantes deste
lugar que insistem, ante o materialismo que os abafa – a eles e ao seu modo de
viver minimalista – em que… sim, eles bem sabem que o homem pode fazer
muitas cousas… casas, carros, aviões… mas os penedos da Rainha Loba! Esses
não os fez homem nenhum, esses só uma Mão Poderosa os pôde fazer. Assim é
como a Conceição se refere a Quem os criou: “a Mão Poderosa”, que é quem de
tocar cada uma das cousas e milagres que acontecem no mundo natural, e no
sobrenatural. Ela é a que faz andar o mundo… Mão Poderosa, se te tivesse
nomeado noutro sítio farias quiçá da Conceição uma filósofa, mas aqui, nesta
beira da Raia, passarás sem influência alguma no saber dos mortais, desses
mesmos que tanto conhecimento derramam pola nossa terra adiante. Os ecos
dum Deus alheio aboujam já para sempre o espírito do Nosso próprio, e
connosco morrerá, e connosco morreremos, e ninguém nunca saberá quem
somos. Nada mais duro e doloroso que a existência que sabe do seu não existir
vindeiro.
Ele, como queira que for, estes penedos têm um encanto que não
desaparece co andar dos tempos. Mas os três viageiros das estrelas pouco
sabem ainda e para ali se dirigem ignorando a onde chegam. Agora, deixando
tudo escondido, foramse ao encontro da luz do dia. Hoje Dom Narciso
marchou canda os outros.
* * *
Nuestra Región anuncia a apresentação dum novo livro do poeta Budial,
que terá lugar na livraria do jornal. O livro é um conjunto de poemas que o
autor criou ao redor do tema da primavera…. A mais de um, o tema farálhe
lembrar aquelas tediosas redacções que na escola se obrigava a escrever aos
meninhos e meninhas cada ano… “La primavera es bonita; a mi me gusta la
primavera, las flores nacen y los pajaritos cantan…, senhorita já rematei a
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 92
redacción…” E entrementes os montes rebentavam pola pujança que a terra
lhe fornece desde dentro, e se tapavam coas flores, e ainda assim eram
ignorados… e os meninhos e as meninhas não tinham jeito de descobrir a
primavera. Vai neles e não a conhecem. Quem podia encontrar o carreiro entre
aquelas estéreis palavras da redacção e o verdadeiro milagre de cores que de
súpeto cobre a terra…? Os poemas de Budial fazem uma reflexão sobre essa
destruição do mundo que está arredor de nós, e que em lugar de ser
interiorizado, criando harmonia interior, é bloqueado, tornado para fora,
ignorado, instalandose nos nossos miolos um olho de vidro que dirige o olhar
a esse mundo… Um olhar que háde o não ver, que háde o negar, para o odiar,
para desejar eliminálo, para lhe deitar lixo,… e para quiçá algum dia
queimálo… Escusado é dizer que Nuestra Región não tem suspeita qualquer
sobre as inquedanças do poeta, mas quem se atreve de decifrar um poema,
ainda que o lera. Ele escreve…
Sem esperanças de verte te miro, tojo amarelo
De ti aqui não dizem nada, estranha uzeira avinhada
Fora gestas e carpaços, dos jardins assenhorados.
Primavera estéril dos livros aqui exportados…
carregados coas primaveras grises de outros lares.
O poema segue e segue e se estende por mais de duas ou três páginas das
que Nuestra Región não nos fala.
* * *
Com aquele caminhar pausado foramse achegando estes peregrinos da
noite aos refaixos da Rainha Loba. De súpeto o Perfeuto, que vai à cabeça,
sentiu água nos sapatos e, olhando para onde o tinham levado os pés, viuse
rodeado de pedras rachadas que resplandeciam como fantasmas no meio da
escuridão. Perfeuto tirou co pinho e botou a correr monte arriba; ia levado do
demo. Os outros dous seguiramlhe os passos e assim chegaram ao alto dos
penedos da Rainha Loba. Na fugida para arriba o Perfeuto ia voando, aos
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 93
poucos botava as mãos à cabeça e a apertava tapando os ouvidos, mas sem
diminuir o passo. Os companheiros correram quanto puderam, evitando tojos,
carvalhos e carpaços, mas não lhe deram alcance até chegarem ao alto.
Chegaram boqueando, Perfeuto estava acochado no chão na junta de dous
penedos numa pequena fárria, chegara arriba desfeito, não parecia o mesmo
homem, e quiçá não o fosse. Os companheiros quiseram perguntar polo que
lhe passava, mas não o fizeram, algo lho impediu, e Perfeuto com toda a
certeza tampouco lhes teria contado do que escapava, ele apenas conseguia
ficar ali no chão tremendo como um junco. Apesar do muito que correu as
lembranças deramlhe alcance. Foi assim como descobriu que os berros da
velhinha das mãos queimadas se tornavam muito mais terroríficos ao
apresentaremse acompanhados doutros berros.
Berros de homens. Homens que para ele trabalhavam de sol a sol.
Homens da Raia, dum lado e mais do outro. Homens que arriscam a vida.
Homens mui mal pagados. Homens sem seguro, e sem as condições mínimas
de segurança no trabalho. Homens sem horário. Homens sem papéis, e sem
direito a reclamar nada. Homens sem voz. Homens que trabalhavam até o
esgotamento. Homens aos que um dia se lhes acabaram os fôlegos antes que a
tarefa e não deram corrido a tempo para escaparem quando já prendera a
mecha… Um deles caiu morto no chão; era o mais velho, pai de família. E aí
começaram os pesadelos do Perfeuto. Juízo trás juízo para evitar o cárcere. As
ganâncias derretidas no processo. Agora não tinha nada mais que os berros dos
que foram sacudidos pola pólvora enraivada, que obrigam a ser lembrados.
Tudo perdido. Ele sentese o mais desgraçado de todos. Mas ele não sabe que
do outro lado da Raia, a poucos quilómetros de Penacova, há vidas arruinadas,
viúva sem homem na casa e com pequenos por criar… filhos para sacar
adiante, o mais velho de doze anos e o mais pequeno no colo, foi tudo o que
lhe deixou àquela mulher o estourido da canteira.
O Perfeuto comprimiu quanto pôde as suas lembranças, à força de
premer na cabeça, mas os efeitos foram os mesmos. Viase o homem acabado.
E os companheiros pola mágoa que lhes dava aguardaram ali até que ele
ordenou de baixar. Botaram um bom pedaço lá no alto. Naquela trapa da noite
e ao silêncio, a Dom Narciso espertoulhe a imaginação e pareceulhe ver
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 94
como se o penedo que ficava enfrente, pola parte de detrás da Rainha Loba, se
cobrira com uma melena de cabelo ruivo, algo ondulado. Pronto desbotou tal
ideia, pois aquilo não tinha jeito. Não podia ser tal. Pensou que a falta de
dormir de noite já lhe estava afectando, e ele era dado às visões, polo que não
acreditando naquilo, pôsse a olhar para outro lado. Quando o Alcaide lhe
perguntou se ele não vira nada… “e logo que ia ver?” – Narciso dissimulou.
“Nada, nada” – o Alcaide tampouco acredita naquela melena dourada que
baixa pola pedra abaixo. Aquele era o Penedo da Mulher. Em tempos a melena
foi de verdade, mas agora só se pode adivinhar polos riscos que o pente foi
lavrando rocha abaixo cada quando que ela se penteava. São poucos os mortais
aos que ainda lhes está permitido ver, sempre no luscofusco, aquele cabelo
que durante séculos acarinhou o penedo, dizse que alguns também ouvem o
estrondo que se produziu quando a mulher por querer colher o pente, que lhe
resvalara rocha abaixo, caiu. Agora tudo fica lenda. Agora tudo fica nada.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 95
– Bons dias moças, poderíamovos fazer umas perguntas…? Se quereis
perguntamovos uma por uma, e seguimos assim à rolda.
– Bons dias moços… ai, se vos parece escolhei qual quereis que conteste
às vossas perguntas, que devem ser mui importantes a julgar pola vossa
vestimenta…
– A nós tanto nos tem, ide uma e logo outra, e assim vamos indo à rolda.
– Ai sim! Assim vamos indo à rolda nós, e com vós, como vamos fazer…?
Perguntais os dous à vez, ou primeiro tu e logo ele?
– Não, eu sou o que faz as perguntas, ele é o meu ajudante.
– E a que che ajuda, se se pode saber? Porque se tu fazes as perguntas, que
lhe deixas a ele?
– Mirai, não me comeceis com leas, que depois se perco o tino do que
ando a fazer, não dou encadilhado bem a cousa.
– Não será por nossa causa que, a se meter você num sarilho, nós só
queríamos saber que faz este moço tão guapo se o dele não é perguntar.
– Não faz nada, vem comigo, não vos deveis preocupar dele.
– Não é que nos preocupemos, a nós o que se nos perdeu no assunto? É
simples curiosidade.
– Pois menos curiosidade e mais colaboração, que já vamos outra vez por
mau caminho.
– Olha tu, que de mau caminho nada! Nós estamos aqui sentadas e não
nos pensamos mover para ir a nenhures convosco, ademais estamos
aguardando polo bomboneiro que já passou para Gomesende, e talvez depois
ao vir de volta passa e não o sentimos.
– Mui bem, então movamos a cousa para rematar antes de que chegue o
dos bombóns e vos marcheis com ele.
– E dálhe com marchar, já vos dissemos que nós não nos movemos daqui
até que chegue o bomboneiro, e não traz bombóns, que traz bombonas2 de
butano, vós sim que estais bombóns…!
– Entendido…! Agora, se sois tão amáveis, poderíeis me dizer que sabeis
sobre uma pia que desapareceu daqui há bastantes anos? Seríeis vós pequenas.
2
Bombona: botija de gás (castelhanismo).
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 96
– Se há tantos anos, como quer que lhe digamos o que se passou…? E já
que pareceis meios adivinhos, quanto tempo pensais logo que nós temos?
– Não sei o tempo que tendes, e mal aproveitado tampouco não parece
que o tenhais… Mira, porque não nos contas tu que pareces a mais velha?
– Eu se quisesse algo sei, mas eu desses temas não falo.
– Pois logo eu tampouco direi nada.
– E de mim ide esperando outro tanto.
– Pois olha que começamos bem a cousa! A ver se antes de nada
aclaramos quem das três está disposta a contestar algo do que nós
perguntamos. E ademais, por que dianhos não quereis falar no tema?
– O tema tanto nos tem, é a Igreja a que nos dá reganho.
– Mas a pia já não tem relação nenhuma coa Igreja, agora pertence a um
museu de Ourense.
– Que pertença ao que quiser, a pia sempre será da Igreja, e essa é uma
instituição de homens, e ali as mulheres não pintam nada, portanto de mim
polo menos não vão sacar uma palavra.
– Pois de mim tampouco.
– Nem de mim, ademais essa pia foi roubada à gente deste lugar polos que
vão de santos, e a gente por burra ainda lhe segue indo à missa.
– Olha as mocinhas! Pareceis mui opinadas.
– Que pareçamos o que quisermos, ademais a vós… que se vos perdeu por
aqui?
– Nós estamos ao cargo duma investigação sobre o paradeiro da pia,…
que raios se passa aqui neste lugar, que ninguém nos responde às nossas
perguntas?
– Homem! É que vós fazeis umas perguntas mui estranhas. Se nos
perguntares por cousas mais divertidas em lugar de temas relacionados cos
velhacos da Igreja e as suas falcatruas, outro galo cantaria.
– E que quereis que vos perguntemos, se esse é o tema que nos interessa?
– Pois já vos podiam interessar outras cousas menos aborrecidas, vamos
digo eu.
– Não, se a nós tampouco nos interessa tanto que digamos, nós não o
escolhemos, veionos encarregado de arriba, se por nós fosse…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 97
– Pois logo, porque não o mandais amolar e que o investiguem os da
sotana que outra cousa que ranhar não têm, e ademais o que se passara ou
deixara de se passar coa pia foi por causa deles?
– …E falando de cousas que vos interessam, ademais de isso da pia, que
outras cousas vos têm causado impressão por estes lares?
– Homem, pois não temos visto muito, mas a julgar polo presente, de
moças não anda mal este lugar…
– Ai! obrigadas polo piropo mas não era preciso, na nossa casa há
espelhos…
As três moças riram abertamente e coa naturalidade do que goza da
liberdade que lhes outorga o conhecido, a liberdade do domínio do mundo no
que se sucedem estes acontecimentos.
– A soberba, polo que vejo, também vos chega.
– Não é soberba nenhuma, é conhecimento de causa … é que vós
tampouco ignorais que ides bem engabachados?
– Pois sim que o sabemos, mas isto é parte do nosso trabalho…
– Ai, pois não sabia eu que para ir por aí com essas perguntas que vós
fazeis tínheis que ir emperiquitados.
– Isto? Mas se só é um traje, o que conta é o que vai por debaixo…
– Olha lá o que falava da soberba…
– …E por riba nós não lho podemos negar, que não temos essa
informação privilegiada…
– Homem, pois isso boa solução teria, e já que o dia já se anuviou para o
assunto da pia, a ver se ainda se vai arranjar a cousa…
– Eu não me faria demasiadas ilusões, porque se bem certo é que até que
se arrancam as batatas não se pode falar no que há debaixo da terra, nós temos
melhores moços aguardando na verbena…
– E logo onde é a verbena?
– Em Fontearqueira, e nós pensamos ir a ela se encontrarmos quem nos
leve.
– Se calhar ainda podemos chegar todos a um apanho…
– De apanhar ninguém disse nada, mas se queredes ir à verbena nós
podemovos ensinar o caminho…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 98
– Pois logo combinamos assim e, se vos parece bem, passamos por aqui
às sete para irmos juntos.
– Pois que seja logo às sete… já que não pode ser mais cedo, e logo de aí
em diante já veremos…
Desde o maçadoiro as três moças olharam como os detectives subiam
para ir para a Coanheira a caminho do seu veículo; depois, arrimando as
cabeças um nada, mouminharam algo e riramse, riramse com aquela pícara
inocência que ainda não perderam…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 99
Capítulo V
A FONTE DO GALO
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 100
polas marcas que sobem derredor a jeito de escada. Desde arriba pôde ver que
o único sítio polo que se podia aceder ao alto da rocha, e baixar dela, era por
onde ele acabava de escalar; qualquer outro acesso era, para qualquer animal,
fora os pássaros, impossível. Por conseguinte a desaparição do cavaleiro e mais
do seu cavalo eram um mistério. E quando já ia baixando e descartando a
imagem como absurda e irreal, tudo uma ilusão, descobriu que o cavalo
deixara na rocha as suas pegadas, pois logo não fora um sonho…! “Mas que
estou a pensar… as pegadas na pedra…!” “Pois tampouco há de que se
estranhar” diriam os de Penacova; toda a gente é sabida que o Santiago do
Cavalo Branco subia e andava polos penedos adiante a perseguir e matar
mouros. Isto, que a Narciso lhe parecia impossível, não era conto nenhum para
os vizinhos de Penacova, que todos desde mui pequenos sobem ao alto de
quando em vez para apalpar as pegadas com forma de ferradura que seguem a
dar fé da sua história. Ora, não se atrevem a ir contandoo por aí a qualquer;
ademais… “isso se passou antigamente” frase esta que serve para referirse
tanto ao que aconteceu nos tempos do reinado da Rainha Loba, como ao que
aconteceu na infância dos habitantes de mais de sessenta anos.
O forasteiro, com um sorriso de ironia nos beiços, caminha pola aldeia
pensando que estas gentes têm que ser bem ignorantes para se referir a um
tempo tão recente co qualificativo de “antigo” O forasteiro gabase da sua
superior formação intelectual que lhe permite estabelecer essa diferença. O
que o forasteiro não conhece, ou quiçá sabe mas não entende, é que desde esse
“antigamente” ainda que só passaram cinquenta e tantos anos, passaram
vários séculos de História. Nesse curto espaço temporal produziramse tais
mudanças, e a tal velocidade, que o tempo não se pode já medir de jeito tão
simples como faz o forasteiro. E mais não é preciso aludir à Teoria da
Relatividade para o entender; bastenos um simples exemplo que mostre o
desenfreio do ritmo de tal mudança; isto é: a transformação do arado de pau,
também chamado romano, no arado vertedeira do tractor.
Escusado é dizer que Dom Narciso não era conhecedor da realidade
histórica, ou fantástica, depende onde se queira pôr o acento, de Penacova, e
agora estava a pagar por isso; por conseguinte, temendose que aquilo ia de
mal a pior, afastouse da rocha e volveu ao campinho onde estavam os outros
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 101
dous para aguardar que o Perfeuto ressuscitasse. O Alcaide estava adormecido
à beira dum piorno e Narciso deitouse olhando para o céu; e numa dessas viu
que uma luz saía do alto do castelo e se ia cruzando o amplo pano estrelado
caminho do Zebreiro onde desapareceu. Aquela visita fez mui feliz a Narciso,
que cuidou que se tratava da sua amiga que afinal ainda andava polo espaço
celeste e vierao saudar de novo. Na verdade, aquela noite a sua estrela fizera
uma travessia mui estranha; apesar de que as suas noções de física não iam
muito mais lá da Lei da Gravidade, Narciso intuía que aquilo não podia ser tal;
como podia uma estrela viajar tanto espaço em tão pouco tempo? Ademais,
primeiro subiu mui alto e depois foi baixando mais a modo. Aquilo, somado ao
do cavalo, confundirao tanto que fechou os olhos e escutou em silêncio, e
então ouviu cousas, mas tampouco fez caso. Como ia ele dar creto aos berros
duma cabra ali no meio do monte…? De noite, e com tantos lobos quantos
sempre tem havido… Não podia ser, não podia ser. As gentes de Penacova não
falavam muito da cabrinha de ouro, e não porque pensaram que era uma
história ridícula, senão porque todos e cada um deles mantinha a secreta
ambição de topála e fazerse rico… “E tu que farias se a encontrasses…?
Sabes que háde ser entregue a um museu…” “Homem, pois eu – os pequenos
sempre com soluções à mão – meteriaa numa saca e pensariam que levava
batatas” Mas Narciso não conhecia das grandes aspirações dos vizinhos da
pequena Penacova, e tentou pensar noutra cousa para aboujar os berros do
animal e nem sequer abriu os olhos para comprovar se havia tal chiba ou era
outra dessas alucinações que emanavam do ar daquele estranho lugar. Aquilo
não podia ser, não podia. E deste jeito também evitou ter que ser testemunha
da chegada dos de Pexeirós. Os de Pexeirós subiram até ao alto do castelo para
matar a Rainha Loba. Aqueles eram vales ricos mas à faminta rainha nada lhe
chegava e cada dia tinha que comer uma vaca; e até ao alto tinham que
levarlha; só que os de Pexeirós aquela vez levaramlhe a morte, e assim o
refere o cantar:
Matastes a Rainha Loba
Fidalgos de Pexeirós
Matastes a Rainha Loba
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 102
Fidalgos ficastes vós
E esta é a razão pola que os de Pexeirós ficaram livres da paga do conde.
Todos os demais tiveram que a pagar até não há muito… perto de há cem anos;
ora bem, os de Pexeirós não volveram soltar um real. E logo quem raios serão
esses de Pexeirós? E eu que sei, serão os de Ameixinhas… Mas Narciso ignorava
também aquela história, o que o fazia vulnerável, não por ignorála, senão por
não pertencer à comunidade que lhe daria sentido, e não lhe ficou outra que
fechar os olhos e ao mesmo tempo evitar ver aquela ringleira de vacas, todas
ruivas elas e galhadas, que subiam polo lado dos campos arriba. Eram as vacas
que ao longo dos tempos foram subindo para ser devoradas pola Rainha Loba.
Mais tarde, enquanto caminha de volta para as obrigas, no seu caso são
pequenas ainda que não fáceis de aturar, que lhe traz a luz do dia, Narciso não
pára de cavilar naquela luz prateada que navegara todo o céu aquela noite; não
podia ser, não podia ser… e tentou todo o dia esquecerse do assunto.
Quando à noite seguinte chegou à Fonte do Galo, onde deixaram a pia, fez
tudo o possível por não olhar para o céu. Narciso já não podia confiar no que
lhe diziam os seus sentidos; e ele não estava ao tanto do brilho prateado que
podem soltar os martelos, enquanto dão voltas polo ar até chegar ao alto do
Penedo do Leão para avisar aos compatriotas da presença de intrusos nos seus
domínios. Só lhe ficava não olhar para nenhures enquanto aguardava; e assim
fez. Depois dum bocado sentiu pegadas que se achegavam a ele; era o Alcaide,
a cotio o derradeiro em chegar; miraram um para o outro e escusaramse as
palavras, sabiam que era cousa deles dous tirar a pia daquela fonte que parecia,
apesar das suas frias águas, ter escaldado ao Perfeuto. Cumprindo co ritual de
apagar a sede da pia deramlhe de beber por última vez naquele triste
manancial e puseramse ao caminho. O Alcaide, sem dizer nada, agarrouse ao
pinho, ali era terra chã e não parecia que fosse difícil guiar aquele carro. Dom
Narciso colocouse na roda esquerda como era o seu costume ultimamente, e
começaram a chouchar para onde as estrelas lhes indicavam o caminho. A
poucos metros donde estava a Fonte do Galo, que se identificava pola presença
de cachotes de granito espalhados por ali adiante sobre um terreno lamacento
que no meio formava uma poceca, apareceu o Perfeuto. Saiu de detrás dumas
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 103
gestas floridas. Encolhido, coa olhada no chão, e sem dizer nada, foise colocar
detrás da roda que ficava livre. Naquele instante Narciso sentiu uma grande
ternura para o seu companheiro e olhandoo por debaixo da copa da pia
disselhe num tom que a Perfeuto lhe transmitiu tranquilidade e mesmo o
arrolou como a um neno no berço: “Um dia chegaremos a ser nós outra vez”.
Mal rematou aquela frase que saíra quase ela soa pola sua boca, Narciso pôsse
a analisar o seu conteúdo e pensou que lhe teria que ter dito outra cousa, que
aquilo que lhe saíra polos beiços parecia raro… chegar a ser nós outra vez…
que raios andaria pola sua cabeça? Horamá abrira a boca, oxalá não tivera dito
nada ou tivera pensado em que dizer antes de falar; agora já era tarde para
mudálo. Contudo, a Perfeuto tanto lhe tinha o que quiseram dizer as palavras
juntas ou por separado; ele abraçara a música que lhe levavam e sentirase por
primeira vez irmanado co cura.
Na dianteira o Alcaide sentia o peso da soidade que como uma névoa
vasta sempre anda ali diante; agora entendia a escravitude do pinho, na roda,
se te vês mui apurado ainda podes endireitar um nada as costas, mas o pinho
não se deixa soltar assim como assim. Que pouco gostava ele de que o
jungissem tão apertado! Ele não é que ele fosse amigo de não fazer alianças,
que as fazia, mas reservandose sempre o direito de poder rachálas ou safarse
delas. Ele sempre foi claro com isso, e ninguém poderia dizer que ele era um
mau governante. Ele nascera para político, já o diziam em casa… “Este
vaichenos sair ministro… olhai pra aí a manha que tem para livrarse do
trabalho!” Sim, era certo que ele sempre convencia à sua mãe para que lhe
deixasse escolher tanto à hora do trabalho como na mesa. “Assim leva as boas
talhadas, não é burro não, o condenado”. Mal teve idade convenceu a seu pai
para que movesse tudo o que havia que mover, e coa ajuda do abade, o
fizessem alcaide. E assim foi, mal rematara o serviço militar e já tinha a vara do
mando. Mui contente estava ele, e que feliz fez à sua mãe, e ao pai encheuo de
orgulho. Ele seria um bom governante e ao mesmo tempo levaria a sua talhada.
Ainda agora se acorda de quando asfaltou a primeira estrada,… “Bota fino o
chapapote que o que há dáse bem gasto” E o contratista fazialhe caso e
apertava a bilha do alcatrão para que rendera mais; havia que ter contente ao
Alcaide, que senão a próxima obra se quadra não lha dava. E assim a estrada
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 104
ficara igual de bonita, só um bocadinho mais delgada. E o peto do Alcaide, ao
que por aquele então ainda não chamavam RebentaRuas, medrava. Ele não é
que quisesse roubar ao Concelho, não, não, livreo Deus. Sucedia que ele era
tão bom administrador que sempre lhe sobrava, e claro, depois já não podia
volver a investir o já gastado, e tinha de ficar com ele. E certo é que um
concelho como o de Os Mouros precisa ter um alcaide que não vá por aí
parecendo mal; isso, compraria boas roupas, que vestir bem é parte do seu
trabalho. Ele ia por aí adiante representando ao concelho e tinha que ir
elegante. Homem…, o que sobrara da estrada era algo muito para o meter em
trajes! E se fizera uma granja…? Um bom alcaide tem que saber de negócios…
e que melhor jeito de aprender que montar um negocio próprio? Assim
demostrará a todos o empreendedor que é, e renovarlheão o cargo.
Com nostalgia lembrava ele agora aquela época em que só tinha que
convencer aos de arriba para que o deixassem seguir sendo alcaide. Que bem
se estava sem essa trangalhada das eleições! E o caras que lhe saíam… Nos seus
começos tudo fora como a seda, nem se tinha que preocupar por esses
indivíduos de barbas que depois mais adiante lhe começaram a fazer a vida
impossível. Barbudos e mulheres, não queres caldo…duas cuncas. Ai, mas para
que se queria ele lembrar dessa parte dos barbudos e das da saia, que por certo
não gastavam? Ele queria que só se tivesse gravado na sua cabeça aquela
primeira época do seu mandato, quando ele ordenava e mandava com total
liberdade, essa sim que era maioria absoluta. E mira que lhe durou anos, os
mesmos que lhe durara a granja…, não, que a granja ainda lhe dura, embora a
traga trespassada. Que doce lembrança a daquela estrada tão negrinha como o
pez! Mágoa que por culpa dos camiões da pedra que baixam de Penacova se
enchesse toda de buracos. E que culpa ia ter o alcaide de que se fizera uma
canteira lá no alto? Ele só lhes dera a permissão requerida. E claro, eilos a
pedir que lha governasse… esta gente não entende de orçamentos fechados! E
ele bem que lho explica a quem o quisser saber. Mas eles, venha que dálhe coa
devandita estrada, e ao final teve que acabar solicitando um orçamento novo e
arranjarlha. Olha que não lhe chegava bem como estava… de terra batida lha
tinha que ter deixado, como esta pola que andam hoje eles e a pia, e nem conta
se dariam. Quanto mais lhe dão mais pedem, é o conto de nunca acabar, e
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 105
agora com isso da liberdade e de tantas trapalhadas a alguns subiramselhe os
fumos à cabeça.
Com estes monólogos do pensar andava o Alcaide entretido e não lhe
rendera tanto a jornada como em dias passados. Isso fezlhe sentirse mui bem
consigo. Ele pensava, a julgar polo que vira cos que lhe precederam, que o
tempo se lhe faria eterno ali só naquela dianteira, ora não foi tal. Ao menos esta
primeira noite a cousa se passou a escape. Andaram um bom pedaço, estavam
agora atravessando já a Missa para depois baixar pola Alobada para o Castelar,
onde lhes aguarda o sexto e penúltimo manancial desta andaina. Arrimaram a
pia e mais o resto das cousas a um penedo que havia não muito longe do
caminho e foramse. Antes de se separar definitivamente Narciso olhou para a
rocha e pareceulhe que tinha lã; lã? Que raro, e depois pensou que não podia
ser e foise como quem não vira nada. E o certo é que aquele penedo podia ter
algo de lã, não em vão se chamava “o penedo de se ranhar as ovelhas”. Mas
Dom Narciso, que não sabia nada de pastoreio, polo menos com esta casta de
ovelhas, e escamado polo da melena dourada da outra noite, não se deixou
arrastar polo que bem podia ser real. Marchou embora. Os três marcharam, e o
dia não tardou em inundar os vales todos de luz.
* * *
Hoje Nuestra Región, que nos oferece toda a sua portada em galego, põe
uma nota, no interior, protestando polos comentários que alguns cidadãos,
apoiados por certos programas de rádio, andam a fazer sobre o estilo
jornalístico deste diário. Parece mentira que nesta altura, depois do muito que
eles levam feito, e demostrado, tenham que se ver na obriga de redefinir quem
são, e de reiterar a seriedade que os caracteriza; porque Nuestra Región é um
jornal sério que tem ido atingindo cada vez maiores quotas de compromisso
social e cultural. Um jornal que nos últimos anos tem incrementado
notavelmente a sua sensibilidade em prol da conservação do nosso
património, como exemplo baste ver a portada do diário de hoje…
…Claro, senão nas notícias da televisão quando disseram: “a imprensa
galega por inteiro saca hoje, 17 de Maio, Dia das Letras Galegas, as suas
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 106
portadas em galego”, figurate o mal que ficaria se tivessem que dizer: “a
imprensa galega, com excepção de Nuestra Región, saca hoje, 17 de Maio, as
suas portadas em galego”. Isso ficaria muito feio; e por culpa da frase essa
fazem o esforço como os outros, e logo então!
A alguns intelectuais dizse que esta frase, que já se está fazendo
tradicional e se repete cada dezassete de Maio, isto é, uma vez ao ano, lhes
parece uma redundância. Vejamos: “a imprensa galega saca hoje, 17 de Maio,
as suas portadas em galego” – Homem pois a mim não me parece raro,… a
imprensa galega não as vai sacar em chinês… – Pois eu digoche a ti que aqui
há algo que não me… a ver que te parece estoutro: “a imprensa espanhola saca
hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego” a que se ouve muito melhor? –
não che digo que não, não obstante tampouco pode ser, porque não toda a
imprensa espanhola saca as suas portadas em galego – Pois também vais ter
razão… a ver logo assim: “a imprensa espanhola na Galiza saca hoje, 17 de
Maio, as suas portadas em galego. – Olha, a mim pareceme bem, mas para já
com tanta imprensa espanhola que me vai estourar a cabeça. – Eu não sou
quem de fazer isso… se por mim fosse já podia dizer até: “a imprensa galega
saca hoje, primeiro de Abril, as suas portadas em castelhano” – E a que vem
isso do primeiro de Abril? – O primeiro de Abril todos os burros vão onde não
devem de ir. – Ah já, o dia das pulhas! Pois aqui burros não faltam. – Não ho!
Também cho digo, aqui há muitos e bem deles…
São estes pensamentos dialogados que, se bem que revelam a
bidimensionalidade da personalidade dos galegos, não servem para sustentar a
tese que ultimamente está a ganhar prestigio nas melhores universidades da
Península e que vai em favor de postulados sobre a bidimensionalidade da
personalidade na gente das nações que se vêem submetidas ao avassalamento
por parte doutras culturas mais poderosas. Ora bem, nos postulados originais
destas teorias, que cada dia estão mais na moda, supõese que o monólogo
dialogado se levaria a cabo nas duas línguas que representam a ambas as
culturas. Isto é, que a pessoa alternaria, de jeito sucessivo, as duas línguas, a
própria e a assumida como própria, que estarão em constante luta até a pessoa
morrer, e dizse que logo disso as línguas seguem na sua polos cemitérios.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 107
O mais problemático parece ser encontrar uma denominação para estes
tipos. O monólogo precedente não encerra dificuldade visto que se trata dum
caso galegogalego, isto é, que tem como língua própria o galego, e como
língua assumida como própria o galego; mas como já dissemos este
casoexemplo não nos serve para apoiar a hipótese da bidimensionalidade. Ora
bem, aos que têm como língua própria o galego e como língua assumida como
própria o castelhano, ponhamos por caso, poderseia um referir como
“gastelhanos”, por aquilo de pôr primeiro a raiz da língua materna. Por outro
lado, para os que têm como língua própria o castelhano e como língua
assumida como própria o galego… é verdade, esses não existem. E que me diz
dos que procedendo de fora destas terras, de Terra Ancha por exemplo, tomam
o galego como língua assumida como própria? Ah, já percebo! É diferente,
nestes casos o galego nunca desloca no seu ego mais interno à língua própria,
que seguem sempre a saber qual é, por muito que amem o galego… Por certo
este colectivo vai em aumento! Curiosamente este grupo e o dos gastelhanos
aumentam a um ritmo similar. – Pois olha que seria muito bom que viessem
mais desses para cá. –Isso, ora… o que fazemos cos gastelhanos? – Pois que se
decidam duma vez, que a vida não lhes vai durar sempre e vãose ir para o
outro mundo coa retesia. – Eu sei dum que estando já às portas da morte
resolveu o assunto e despachou ao curinha que o atendera toda a vida e quis
que lhe administraram os últimos sacramentos em galego… “coitado, te perdió
el sentidinho” Frase que, em boca da sua mulher, mostra o domínio gastelhano
no que se movera o moribundo até o momento da lucidez final… E quando
chegou o novo sacerdote tranquilizouos a todos… “não se preocupem vocês
que tem a minha absolvição, e Deus já lhe perdoou” – E é que isto de ser crente
é um negócio feito... vais e arrependeste no último momento e já está, a
recolher benefícios como se fosses um santo toda a tua vida…!
* * *
Quando os viageiros da noite retornaram junto à pia, Dom Narciso fêlo
cos olhos fechados para não ter que ver a lã que não podia existir, mas a
curiosidade foi mais forte que ele, o que não é milagre nenhum, e com
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 108
dissimulo passou a mão como cofiando o baixo ventre do penedo. Em
realidade ele só buscava tentar a dura pedra para que as visões não se burlaram
mais dele. O sentir sedoso entre as pontas dos dedos fezlhe estremecer e
retirou a mão bem asinha. Agora, enquanto iam baixando pola esquerda do
Jungal e as Ribeirinhas, para as touças do Castelar, ia pensando naquele mole
apalpar que topara no penedo. Lã não podia ser. Seguro que são musgos, quem
sabe como é o tocar do musgo? Sobretudo com esta humidade que põe tudo
tão meloso. Quanta gente vistes por aí acarinhando os penedos, e menos cos
olhos fechados…? De seguro que eram musgos que neste tempo estão verdes e
amantinhos. Com aquela conclusão tranquilizadora deixou a questão.
Aquela noite Perfeuto parecia menos encolhido, desde a penúltima
jornada o seu aspecto tinhase humanizado bastante. Enquanto o Alcaide
seguia co pinho às voltas, hoje não parecia que lhe foram tão bem as cousas. O
terreno colhera um nadinha de inclinação mas a ele parecia não lhe ajudar
muito. Ele andava que parecia um rabioso a quem ninguém lhe fizera nada.
Mas sim que lhe fizeram, sim. Se Perfeuto e Narciso souberam polo que ele
tivera de passar. Ele nascera para alcaide, isso ninguém o discute, e agora já
não o era. Isso não podia ser, é essencialmente erróneo que se lhe frustre a um
homem a sua vocação assim, sem mais explicações. E tudo por culpa dos das
barbas. Olha que lhe iam bem as cousas a ele sem democracia. Mas nada,
houve que se adaptar e não ficou outro remédio. Ora, a que as mulheres vão ao
concelho e ainda por cima levem calças, a isso não se dava adaptado. E por
culpa disso teve que deixar a alcaidia. Não, não foram justos com ele; depois de
tantos anos cumprindo no seu posto vão e dãolhe uma patada. E ele mira que
se esforçou por adequarse ao que fosse preciso. Ninguém poderia dizer que
ele fosse um reaccionário. Houve que escolher partido para meterse, pois
vamos, ao que a Deputação me mande, que para isso são os que me dão os
orçamentos das obras. Que depois é preciso mudar e meterse noutro partido
mais grande, pois que não se fale mais. Se é preciso ainda se compra outro fato.
Não será por falta de casacas… E mira que ele era um alcaide agradecido, ele é
certo que o chefe da Deputação fizera muito para lhe ajudar a ele a manter o
seu posto vitalício de alcaide d'Os Mouros; mas ele também lho pagara. Isso
ainda se pode ver hoje: “Edifício Multifuncional José Luís Bande”, “Avenida
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 109
José Luís Bande”, “Praça José Luís Bande”; esta última com estatuazinha do tal
J. L. Bande e tudo, uma cabeça de pedra à que o alcaide se refere como o busto
de Bande. Por causa da cabeça esta já se têm montado algumas liortas:
– E quem diz que é esse da cabeça de pedra?
– Um tal Agusto de Bande.
– E que faz a cabeça dum de Bande aqui nos Mouros? Eles têm o seu
próprio concelho.
– Não, homem, não – veio o terceiro em discórdia – que não se chama
Agusto, nem é de Bande. Este é o busto do senhor Bande, o chefe da Deputação.
– Mira, pois não se chamará Agusto nem será de Bande, mas daqui
digoche eu que não é, e mais olha onde o foram pôr… no meio da eira da
Festa, de espantalho.
– É que esta já não é a eira da Festa, agora chamase Praça José Luís
Bande.
– E dálhe cos de Bande, pois já podiam fazer as praças no seu concelho e
pôr ali as cabeças.
– Mira que sois pesados vós co de Bande também…
– Pesado é ele, que é de pedra, que senão…
Sem esquecernos do Vertedouro Incontrolado Municipal J. L. Bande. Se
bem que aqui a cousa não está nada clara tampouco, acontece como coa eira
da Festa. Não, se o do vertedouro está mais claro que a luz do dia, que desde
quase a Fontecova já se vêem branquejar as máquinas de lavar, as neveiras, e
toda clase de refugalhos e trapalhadas porcalheiras inclassificáveis que ficaram
antiquadas para a vida moderna, e que já não servem mais que para se desfazer
delas. Sãovos estes seres mecânicos nada fáceis de apodrecer; alma não terão,
mas custar, custalhes morrer uma boa cheia de tempo, e enquanto agonizam
levam por diante não só a paisagem senão a vida toda do monte, e a do rio
Eiroá, que baixa entusiasmado desde o alto do Zebreiro para chegar à
Golpelheira e verse assim acurralado por latas oxidadas, tijolos esnaquiçados,
canhotas de castanheiros menosprezadas depois de arrancadas nos soutos
queimados… O rio Eiroá, onde noutrora moíam os moinhos, e o pão cozia nos
fornos graças a esta água que baixava até a beira d'Os Mouros. E que culpa
tinha o alcaide? Ele não era o que deitava ali todos esses cadáveres da
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 110
industrialização; e mais esses reganhudos que não lhe querem bem sempre lhe
estavam atacando por culpa de que a gente botara ali o que já não lhe fazia
jeito, ou não queriam. E que lhe ia fazer ele? Não quereriam que se pusesse ali
de guarda noite e dia. Mas esses insaciáveis não pararam aí, não; eles dálhe
com que a Golpelheira não era nenhum vertedouro e que por conseguinte era
responsabilidade do Concelho mantêla limpa. E ele vai e não se lhes ocorre
outra cousa, porque dizse que não pôde ser ninguém mais que eles, que
plantar ali um cartaz na beira da estrada que baixa de Penacova? E não se lia
“Proibido deitar lixo” não, que esse tão sequer ainda podia ter quiçá ajudado;
não, o que se lia no devandito cartazinho era “Vertedouro Incontrolado
Municipal José Luís Bande”, e houve que o tirar, e eles eilos a o pôr outra vez,
e uns a o tirar, e outros a o pôr… E não houve outro remédio que chantar lá um
guarda dia e noite para pararlhes os pés a esses… Quando alguém depois
vinha ali a lhe fazer o funeral à sua Westinghouse, após quinze anos de fiéis
serviços, ficava confundido, pois eles não contrataram a enterrador nenhum,
nem pensavam que ninguém assistiria a estes últimos ritos.
– Olhe! – dirigindose ao guarda – aqui é onde se deixam as cousas que já
não valem?
– Ai, eu não diria tal, olhe que algumas ainda lhe estão boas! Que não
todas as que vêm ficar aqui são velhas…
– Quero dizer que se poderia eu deixar aqui esta máquina de lavar que já
não entrefuga lá mui bem e…
– Pois com efeito, deixe você o que quiser, ou melhor dito, o que não
quiser.
– E logo você para que está aqui? Se não é muito perguntar…
– Eu? Pois para que uns vândalos, que seica são do que não há, não
chantem aqui o cartaz de Vertedouro.
– Mas olhe…, e logo isto não é um Vertedouro?
– E eu que sei! A mim disso ninguém me disse nada, eu estou aqui pra
vigiar por se ligaram de vir os do cartaz esse… e agora despidase da sua
lavadora e deixeme que tenho muito que fazer… que se isto segue assim ainda
vou ter que me repartir entre aqui e a praça do Bande, que seica esses já
ameaçaram com que não voltam a fazer um cartaz novo e que no lugar do
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 111
cartaz vão colocar o cabeção de pedra que dizem que iria mais acorde cos
despojos urbanos do vertedouro, que não é tal, por certo.
– E por causa disso o vão fazer ir a você até lá a Bande?
– Não mulher, não, que vão fazer! Marche, marche tranquila, que a sua
máquina de lavar não vai estranhar nada aqui.
– Pois logo, até outro dia, e perdoe.
Que a gente se confundisse quanto quiser, mas ele tinha que mostrar o
seu agradecimento ao chefe da Deputação. Também é certo que ele aqui desde
o seu posto no Concelho lhe ajudava a arrecadar os votos que tanto precisava o
seu patrão para o partido. A ver quem ia de casa em casa a repartir boletins na
véspera das eleições! Ai, é que o Bande não pode estar em todas as partes…!
Pois que vão os alcaides! E ele ia, que ademais assim ia mantendo o forno
quente para as Municipais, que eram as que realmente lhe coziam a ele o pão.
A ver quem fazia as promessas, de aldeia em aldeia, de casa em casa… “se me
votas fagoche um poço para regar a leira toda” “Pois nem que eu fosse um
parvo, voto, voto, inda que depois caia nele e afogue, e hei levar à mulher e o
filho” “Leva também o tio velho que para votar vale qualquer” “Mas olhe que
ele não lhe serve para nada… está tolheitinho e não se pode mover” “Pois o
levais num cesto desde o carro até a mesa eleitoral”… E assim de casa em casa,
ninguém sabia o duro que era o seu trabalho. Não era RebentaRuas a alcunha
que lhe ligava a ele não, a ele terialhe ficado muito melhor o de Casalandreiro,
porque nisso consistia o seu trabalho em época de eleições, sempre de casa em
casa. E depois ter que os convencer de que ele representava a melhor
alternativa, a única alternativa possível de eleição. Por sorte contava coa ajuda
do pároco de Vilarinho, que sempre teve claro o que era ser um homem de
sotana, ainda que a leve emporcalhada, e organizava magustos ou o que for
preciso à hora dos meetings dos outros, e assim ninguém se apercebia nem que
se apresentassem. Quanto trabalho para ao remate perdêlo todo. Às vezes ter
que improvisar discursos, e à medida da situação, porque liga de estar ali na
taberna algum mais duro de roer. Como aquela vez na cantina de Penacova…
já tinha pago o vinho de todos os presentes, já apertara bem as mãos e lhes
dera os boletins de voto, já estava a cousa quase pronta e chega o Manuel e lá
se foi tudo prò nabo. Ele não vai o mui… e se lhe ocorre perguntarme que por
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 112
quem me apresentava….? “E tu de que partido vens sendo, se não é muito
perguntar?” Essas foram as palavrinhas exactas que o Manuel lhe soltara, e
assim ficaram gravadas nos miolos do Alcaide. Justamente agora quando já era
escusado, quando já estava tudo meio bem atado, ter que andar coa política.
Mas eu, que daquela ainda era de centro, deilhe uma resposta bem atinada:
“Mirai, eu sou de centro, porque no centro é onde melhor se está” A julgar
polas caras que o guichavam dirseia que aquilo não fora mui convincente;
sobretudo a do Manuel, com aquele meio sorriso como dizendo “pilheite…!”
E agora que me lembro dele… daquela o Manuel gastava algo de barba
também. Então o orador que levo dentro, o que sempre convencia à minha
mãe para aquilo das boas talhadas, saiu ao resgate: “Mirai, para que me
entendais todos vouvos pôr um exemplo que nem precisa das palavras… Se
um de vós está, ponhamos por caso, a cortar fatias no jamão, donde vos parece
que tirará melhores talhadas, polas bordas ou do meio? Claro que sim! No
centro está sempre o melhor, no jamão e em tudo!” Ao Manuel mudaralhe a
cara, em vez do sorriso tinha agora uma enruga na testa, mas não era de
enraivado, não, era como se dissesse “estou pensando”… e de repente o sorriso
outra vez na face, agora, quando a cousa volvia ir bem e todos se mostravam
satisfeitos e calmos, outra volta que vai ele e diz: “Mui escolhido o exemplo;
mas agora respondame a mim também: se passar por onde um rio e ligar de
cair, onde quer melhor ir parar… a uma borda ou ao meio?” O que mais lhe
doera foram os comentários dos outros: “Homem, caralho – dissera o tio Rua,
que eu já contava com ele – se caires na borda ainda te podes agarrar mesmo
que só for a umas ervinhas, e esgardunhas para fora; ora bem, se caíres no
meio ainda te podes afogar” A taberna encheuse de risadas, que desde fora
podiam escutar até as mulheres… O Manuel deu meia volta, como boi que
vence ao outro na chega, e pediu uma cerveja desprezando assim o seu vinho.
E ele ter que aturar aquelas burlas depois de lhes ter pagado o vinho e tudo…
Claro que depois quando fora de casa em casa tanto o Rua quanto os outros
asseguraramlhe que votariam por ele… ali na taberna, pois claro, tiveramse
que pôr do lado do do lugar, mas… “não se preocupe você, pode contar co
nosso voto” “então pra que ríeis?!”
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 113
E ele contava e recontava, e antes de se abrirem as urnas para o reconto
ele já sabia o que sacara. Chegavalhe com contar os que trazem as
furgonetas… “Quantos carregastes já?” “Dezasseis de Fontearqueira –
incluindo o do cesto –, dezanove de Lourelos, quinze de Penacova e quatro de
Ameixeiras” “Mecagoe nos de Ameixeiras que sempre me fazem igual… vão
seguir sem as luzes públicas outro par de aninhos mais, a ver se aprendem…!”
“E ti quantos levas?” “Oito de…” E assim ia um por um até rematar o conto.
Bom, então tenho já cento quarenta e sete justos, se as contas não me falham.
Isto de contar os carregados nas furgonetas era, e segue a ser, um método fiável
e por conseguinte usado; e não só polo Alcaide, os dos outros partidos não
ignoram que ali dentro dos carros se fazem repartições. E poucos são os que se
atrevem a contar o que ali se passa, e quando o fazem fazemno tarde demais…
– Sim homem sim, quando fôramos co Mulas, bom, tu não foras que já
votaras, pois tal como cho conto, tiroume o voto e rompeumo em pedaços, se
não foi certo que não veja mais a luz do dia.
– Qual voto?
– O que levava da casa, e isso que o trazia bem guardado; mas ele coa
teima: “ensinamo a ver se vale”, e eu de burra…
– Ai raio o nunca parta! Olha ti o galopim; e tu ficarias danada, não sim?
– Pois logo não ia ficar, como querias que ficasse… a fé, que fiquei
rabiosa!
– E logo depois tu não fizeste nada?
– Eu? E eu que ia fazer, eu não sei ler nem cousa nenhuma, e pra não
parecer que não me apercebia nem donde soprava o ar pois não tive outro
remédio que meter o que ele me dera.
– Olha lá o languiceiro, e isso que che é sobrinho e tudo; não, se esse
temche boa saia, parece um alpavarda e depois mataas calando!
– Ai, digote que aquele dia quase estouro co reganho, e eu que queria
votar o que me dera a tua rapaza, e vai o fada…!
Pois como iam deixar escapulir a uma e enfastiar a recontagem? Assim
deste jeito era muito mais fácil…! Por cada burro seu molho, e a cousa não
falhava. Porque na verdade isso dos inquéritos à saída da escola, onde está
agora o colégio eleitoral, e também se velam ali os mortos, não se sabe mui
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 114
bem porquê, mas não funciona. Por muito que os profissionais do jornalismo
se esforcem por o fazer bem, não che é nada…
– Mire senhora, você já votou?
– Sim, senhora, já votei.
– E poderia dizerme você, se for tão amável, para quem votou?
– Olhe, você tem que perdoar mas a mim disseramme que o voto era
secreto.
– Sim que o é, o voto é secreto.
– E mas vai você e perguntamo; e logo não vê que se lho digo a você já
não é secreto?
– Pois tem você razão, e perdoe.
– Não há de quê, mulher, não há de quê…
E o certo é que o voto não era secreto, que ia ser! Aqui toda a gente sabe
para quem vota toda a gente. E a Conceição tem vários filhos com barba, e
filhas dessas que não levam saia, e escusado é que lho diga à jornalista porque
toda a gente o sabe…todos fora a jornalista, claro. “Se não saís destas eu já não
vou votar mais, que já canso de andar arriba e abaixo, eu e dous mais no
autocarro eleitoral” No mundo tradicional que vai dentro da cabeça das gentes
desta terra, este não é jeito de guardar os segredos, aí expostos ao público em
caixinhas de vidro. No mundo tradicional, que mais de um levamos dentro, os
segredos, se os houver, nunca deve de saberse que existem, senão não se dão
guardado.
Em resumidas contas, que ao Alcaide não se lhe escapava nenhum voto
sem contar. E antes do fecho das mesas já ia encarregando a ceia num bom
comedeiro da Límia para ele e os seus sequazes. Ali comerão e beberão à
fartura, mas antes de que comece a ceia, ou cousa nenhuma, ele repartirálhes
as pagas, cada um polo que carrejou. Porque ele era bom pagador, e pontual,
antes de sair os resultados já tem os homens pagados. Ele era um homem de
palavra, e cumpridor. As mais das cousas que os outros lhe apunham não eram
tal, ou eram miudalhos sem importância. E esses condenados que tudo têm
que saber. Mira que foram descobrir o da retenção dos votos por correio; pois
ninguém lhe fora lá co conto e mas eles souberamno. Mas já não podiam fazer
nada, depois de retidos tanto tempo já não contavam. E é que o voto por
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 115
correio também tem esse defeito de não ser secreto. Mas eles não os abriam, de
isso não podiam acusálos… “de quem vem este?” “Este vem de fulana ou
sicrano…” Pois a escondêlo. Mas não é certo que os abrissem sem permissão,
isso são tudo calúnias que lhes levantam os outros …esses, esses sim que... E
ademais isso das retenções são miudezas comparado coas intenções dos
nossos rivais, que mesmo se lhes lê na cara que se pudessem…
cuinchavamnos! Eu com eles a sós não me queria topar, e menos no dia das
votações… e a alguns das furgonetas já lhes fizeram recuar… não, digote eu
que são de caralho virado… felizmente por aqui dos novos não se faz caso,
gente nova e lenha verde só faz fumo. Tão sequer, a conta dos anos ainda lhes
vamos ganhando, e eles, ainda por riba, assim que vão servindo vãose
marchando às cidades, e a cousa ia indo; mas numa dessas vão e sacam um
representante no Concelho, e ainda por riba uma mulher… o que me faltava…!
O Alcaide, travado polo mau génio daquela lembrança, parou de súpeto e
disselhe aos outros que já chegava por aquela noite, que ele já estava canso e
que as noites não se acabavam num dia, polo que… E ao olhar para o Perfeuto
lembrouse de todos os homens indomesticáveis cos que se tinha ele topado ao
longo da sua andaina polas freguesias do concelho quando ia pedir o voto.
Perfeuto estaria canso e abatido mas ainda levava na face aquele ar indomável.
E vai o Alcaide e soltoulhe:
– E tu de que raios estás feito?
– De pedra, eu estou feito de pedra… e tu porquê o perguntas,
manteigueiro do caralho?
O Alcaide marchou malhumorado, manteigueiro ele? Que caraino
acredita esse RachaPedras que ele é…? Maldição, porque é que sempre se
tinha ele que topar com esses seixos no caminho? Perfeuto também marchou, e
Narciso ficou só por uns instantes. Ainda havia vagar para a rompida do dia, e a
ele chegavalhe bem o tempo. Arrimouse à boca da pia e viu como a lua cheia
bailava lá dentro dela, no bambear das ondinhas que ainda havia na água.
Assim com aquela tanta luz, parecialhe que a pedra fora perdendo o grisalho e
cada vez estava mais amarelada… como se se misturasse o dourado coa cor das
avelãs. Uma cor que lhe outorgava à pia um esplendor que ele nunca tinha
visto. Pensou que seguramente seria polo efeito daquelas águas que sempre a
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 116
mantinham húmida. Narciso não queria cavilar no assunto; ele tinha a mente
jogando às adivinhas,… de que estaria feito ele…? Se o Perfeuto estava feito de
pedra, e o Alcaide de manteiga,… de que se supõe que estaria feito ele? Seguro
que de algo intermédio. Por mais voltas que lhe dava não se lhe ocorria nada. E
pôsse então a pensar em matérias das que ele gostaria estar feito. De pó das
estrelas, ou da luz delas, ou de… Não, isso não valia porque ele sempre ia
escolher materiais que lhe fossem gratos, ou nobres. Faria algo diferente,
tentaria imaginar os materiais dos que quer o Alcaide quer o Perfeuto
pensariam que estava ele feito. Até lhe saiu em forma de diálogo:
– E eu Perfeuto, de que crês que estou feito eu?
– Tu? Tu… de queijo.
– Porque o dizes?
– Porque és brando mas ainda se te pode tragar, não como ao repugnante
esse da manteiga, que te anoja o bandulho.
– Queijo! Bom, a mim não me desgosta o queijo, contudo… que classe de
queijo? Duro, brando, de vaca, de ovelha, de…?
– Um queijo calado, assim é como deverias ser, que os queijos não falam.
Mas a ideia de ser de queijo não acabava de ser do seu agrado; a ver o que
pensava o Alcaide…
– E tu, Alcaide?
– Eu, quê?
– De que pensas que estou feito eu?
– Tu? De hóstias amoreadas umas em riba das outras.
Não, aquilo não lhe estava a dar a sensação que ele andava a buscar.
Deitouse no chão e agora olhava para a lua que desde o alto do pano negro da
noite dependurava, e ficou calado. Os braços estirados no chão, os joelhos
dobrados – E tu, lua, de que pensas que estou feito? Enquanto aguardava
olhando para o céu, por uns instantes os dedos entretiveramse enredando nas
ervinhas do chão e mais na terra. – Não me vais dizer nada, eh? E Narciso
sentou e viu como por debaixo das unhas assomava a terra húmida e negra…
de terra! Eu estou feito de terra, de terra e de todas e cada uma das maravilhas
que há nela, de terra, da minha Terra… E marchou contente cantarujando
aquela melodia dum cantar que de neno lhe entoava a sua avó, e que a ele
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 117
agora se lhe juntava com um verso que não acertava a saber donde lhe viera…
E cantarujou:
Leva a terra com ele
sem ele sabêlo…
Naaarará…narará
narararaina…
Leva a terra com ele
sem ele sabêlo…
Quem sabe, quiçá as cantigas da sua avó encerrassem alguma mensagem
que ele nunca se parara a decifrar, e que agora ao se lhe misturarem com
aquelas rimas ele sentia cobrarem um sentido verdadeiro, um sentido que não
descobrira enquanto cavava na horta da reitoral em Ameixeiras. Talvez
tampouco a sua avó sabia destas mensagens das músicas, mas cada quando
que ele as escutava, ou as cantava, faziamlhe sentirse outro, faziamlhe sentir
que era o Narciso que ele queria ser, o que ele era realmente e não dava sido de
todo… sem poder ver com clareza quais eram as silvas que o prendiam. Se
calhar isso de misturar a terra e o céu dentro dum não sempre dá bom
resultado… Narciso sonha com encontrar uma estrela que possa escutar os
seus nararainas sem ter de subirse ao céu, sem ter de renunciar à terra, da que
está feito.
* * *
Os dous agentes eram para os de Penacova dous forasteiros semelhantes a
outros muitos que tinham cruzado já antes polo lugar. Alguns de passo para a
Raia e outros buscando informação acerca da Rainha Loba; estes últimos
sempre rematavam subindo aos penedos do Castelo para embrulhar no seu
pano das mãos algum queixil, aparentemente humano, e metêlo no bolso do
seu gabão.
Estoutros forasteiros chegaram hoje ao lugar com uma boa sensação.
Começavam a gostar de respirar tão livremente como o podiam fazer naquele
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 118
lugar, enchendo os seus pulmões uma e outra vez como se quisessem
oxigenarse; certo é que donde vêm eles tampouco está o ar mui poeirento que
se diga; ora isso sim, há muitos automóveis. E ali não havia automóveis, ou se
os havia estavam guardados ou andavam por aí nas estradas, longe daquele
paraíso. Ainda que o trabalho seu ia devagar, eles começavam a se sentir
cómodos. Ia como tinha que ir porque ali era assim, em Penacova tudo ia
devagar, e não valia que eles quisessem correr, que ademais já não queriam.
Quando entravam em Penacova era como se tivessem que botar um freio às
suas ânsias profissionais, e até desandar um pedaço do andado antes.
Penacova ia tão a modinho que se diz que não chegaram ao presente, ou polo
menos não ao presente dos detectives. Penacova andava lá num ponto
intermédio entre a era dos martelos da Rainha Loba e a do telefone. E dizse
que às vezes os do lugar topamse com gente que corre muito, muito mais que
eles, e que os passa, e despois vêemnos lá adiante escangalhados. Também se
diz que às vezes vêem, ainda que pareça mentira, outros que vêm ao pra atrás,
como aquele que vem de volta. Com estes já não se podem entender…
– Não, que isso do sulfato não está bem, tínheis vós razão dantes, não se
deve usar; agora já também o têm descoberto os cientistas, fazeime caso e
parai de botálos…
– Olha…! E que queres, que vá eu ali à leira das batatas e espavente os
escaravelhos com um folhato…? E logo então para que raios serve se não o
sulfato? E agora, que já gastamos o dinheiro…!
– Mirai, que a celulose não vos é nada boa para a pele, por não falar dos
carvalhos, e ademais aqui tendes agua à fartura, devíeis usar os cueiros laváveis
como os que se gastavam dantes.
– E que me mije o meninho no colo…? Porque isso era o que acontecia
dantes, agora com estes descartáveis e com tantos adiantos, está uma sempre
preparada… e não quererás que volvamos ao da verça em vez do papel
higiénico, porque a horta fica longe,… é que dantes era ali o retrete.
Por sorte a estes que vêm de volta não lhes calha amiúde passar por
Penacova, que senão… já não saberiam se seguir ou ficar parados. Às vezes os
de Penacova escutam cousas dessas na televisão, mas então fica a cousa no que
é… “é película,… fazemno ver”
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 119
Como quer que fosse, ele aos dous agentes ainda mal não chegavam a
Penacova e até o coração lhes começava de ir devagar, quiçá tinha algo que ver
coa altitude da montanha que, como diria o outro, não é o mesmo. Ora de
certo, quem o sabe? Aquele dia sentiamse eles muito à vontade caminhando
pola rua do Rego abaixo, iam em mangas de camisa e sem gravata. Na mão o
bloco das perguntas e na cara um sorriso amigável. Quando chegaram onde a
casa do Ferreiro viram a porta da forja fechada e olharam para arriba… a porta
do corredor estava aberta, e lá dentro, sentado no escano, estava o tio Serafim,
que lhes acenou coa mão para que passassem adentro. O tio Serafim ia algo
velho, e dês que já não valia para a forja, que fora a companheira que marcara
o latejar do seu coração ao longo da vida, ficava só no corredor ainda que
gostara bem de ter companha. Eles passaram e sentaram a petição do ferreiro;
Riba sentou ao lado dele no escano, e o seu chefe numa cadeira à direita, quase
enfrente do tio Serafim.
– Olha, olha… então vocês são os forasteiros que andam a visitar este
nosso mundo…
– Pois sim, somos nós…
E entretanto o mais velho dos agentes dizia isto, olhou para o tio Serafim,
que teria bem para aí uns noventa e tantos, e viu que na orelha levava um
audiofone. À primeira pensou que era uma fatalidade, mas depois pensou que
não era tão má cousa que o tivesse porque é certo que nestas idades quer mais
quer menos todos lhe topam a falha ao ouvir, e assim sequer, sabemos que nos
ouve. Acrescentou:… e já que estamos aqui, poderíamoslhe pedir que nos
contara o que souber você da pia?
– Sim, sim eu bem que lia, e ainda leio se tenho o que, escusado é dizer
que o que é vagar não me falta. Olhem, traime o meu neto os jornais atrasados
que vai juntando ao longo do ano, é que ele vive fora daqui e claro, traimos
quando lhe ligar. E eu leio tudo o que vem neles, até as temperaturas todas do
mundo. O outro dia saiu uma carta dum homem que falava disto mesmo, não
das temperaturas… senão de se se lia ou se não lia. E publicaramlha aí no
diário, sim, sim…como lho conto, agora um pode mandar as cousas aos jornais
e eles publicamnas e não se passa nada. Não é como dantes, que havia que
andar medindo mui bem o que se dizia, quanto mais o que se escrevia… Ora
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 120
este fulano que escrevia no jornal do outro dia, desses que me guarda o Daniel,
penso que era num dos boletins de Agosto, a ver se o tenho… é uma notícia
que inda não tem nem um ano…
O tio Serafim fez ademães de querer buscar na moreia de jornais que
tinha ao seu lado no escano e depois disse…
– Mais não é preciso que o colha, possolhes repetir o que dizia…, o que
escrevera a carta tinha um nome assim como catalão, é que o Daniel mora em
Barcelona, … não me vem arestora à cabeça como se chamava, ora o que dizia
inda não me esqueceu, e isso é o que conta… Pois dizse que segundo conta o
tal catalão que escreveu a carta, que eu não tiro nem ponho, se por mentira
veio que por mentira vá… mas segundo o tal… Albert, veioseme agora à
cabeça, chamavase Albert, Albert… não sei que mais. O tal Alberte diz que,
segundo uns estudos que se fizeram, os políticos de agora deixam muito que
desejar a respeito dos seus hábitos de leitura. Que manda…! Poder falar assim
dos governantes…!
E baixando um chisco a voz o tio Serafim acrescentou:
– …E seica, que olha que eu não sei se o crer, que esse presidente que há
agora, esse último que entrou das direitas, é o que menos lê de todos eles. Ele
dizse que a cousa vai a menos e que se isto segue assim, que os livros chegará
um dia no que desaparecerão.
– Pois homem, pois é,… E da pia, que me diz você da pia?
– Como? Que o que lia? Pois o que podia. Dês que o Daniel me guarda os
jornais não tenho queixa, mas antes lia até o que vem nos macetes do tabaco…
o que ligasse. O caso é ler algo, para não perder aquele costume, depois de que
o tens colhido, claro. Porque também vos direi que aprendido ninguém nasce.
E não é assim de hoje para amanhã que um lhe colhe o gosto à cousa. Não, que
vai ser. À primeira custa até de manter a vista no carreiro… quanto mais! Vem
sendo como o da arada; a primeira leira na que te atreves a ir detrás da rabiça,
minha madrinha querida…! Não te quero nem contar como vão ficar esses
regos, não há nenhum direito. Ora depois mole e mole a cousa vaise
compondo e uma vez que o sabes fazer já é pra sempre. Esse saber não há
quem cho tire, nem o partem irmãos. Pois isto da leitura évos o mesmo, é
questão de apontar bem co temão as palavrinhas e não soltar a rabiça; e se
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 121
ligasse que te saltaras uma linha, pois já volverás ao rego, o caso é não perder a
paciência. Também, e seguindo co do arado, cumpre que se tenha boa relha,
que isso seivolo eu bem que apontei umas quantas. Se a relha não é boa o
arado vai aos golpes e colheche para onde quer, mesmo podes enrelhar uma
vaca, ora que, se a relha defende…! A relha vem a ser como o interesse do
leitor… se gostas do que lês não há linha que se possa resistir; isso é, por dura
que esteja a terra, mesmo à hora da decrua, se a relha está apontada a
consciência – e eu deixavaas como se fossem cutelos, Deus me perdoe – rego
vai e rego vem, abres a terra sem te dar conta. Tudo tem a sua ciência, e se dás
com ela, qualquer que seja a tarefa que empreendes, de ali em diante todos os
santos te hãode ajudar…
Quando o detective chefe escutou isto último espertouselhe um grande
interesse de repente… Tinha sentido o que dizia o velho ferreiro, e isso
explicaria porquê eles ainda não deram convencido a ninguém de que lhes
contara o da pia… “Claro, agora compreendo” Entrementes ele andava com
estas reflexões, o tio Serafim seguia falando, e Riba procurava que não se lhe
escapasse nenhuma das palavras que saíam da boca do homem sem analisála
bem primeiro.
– …e agora há muito que ler, não lhe é como nos meus tempos, dantes só
liam os mestres e mais os curas. O cura inda porventura era um homem mais
lido que o mestre, polo menos naqueles tempos, talvez agora têm baixado
também…
Essas últimas palavras sobre o saber dos cregos foram a convergir cos
pensamentos do detective, que andava a buscar onde podia topar esse
elemento científico que lhe abriria o caminho das perguntas como relha que
labora na terra… Claro, o abade, como não se lhe teria ocorrido antes? Iriam ao
lugar de repouso onde morava dom Aurélio, o velho abade, e falariam com ele.
Se há alguém que saiba algo esse será ele. Aquela entrevista ajudaraos mais do
que eles poderiam ter antecipado, e com mais atenção que antes escutava
agora o que o Serafim ia dizendo.
– …pois olha que te anda a cousa bem ao revés, agora que se pode ler o
que se quiser, pois não vai a gente e se nega…? Claro que tampouco fica já
quem are as terras, nem quem aponte uma relha… se quadra vai tudo junto,
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 122
fruto da mesma doença… mas eu estou falando demais, falem vocês que
seguro que têm cousas mais importantes que contar; eu só sou um velho
ferreiro que já nem ofício tem, nem ninguém a quem lho deixar, quanto mais
saber do que falar.
– Não, você disse cousas que nos serão de grande ajuda….
E enquanto o detective dizia isto, o tio Serafim botou a mão e pôsse a
apalpar na orelha, mentres dizia:
– Perdoe você, que não escutei o que me dizia… é que tinha a cousa esta
baixada para não me aboujar enquanto eu falo… siga, siga, que agora já lhe
ouço bem.
– Nada, é que nós já nos temos de ir indo.
– Pois que mágoa que tenha de ser assim, porque com vocês dava gosto
de falar.
Despediramse do senhor Serafim, que ficou lá no seu escano com um
dos velhos diários na mão e entoando uma canção que a eles lhes pareceu mui
agradável, ainda que desde abaixo não podiam entender o que dizia.
Perguntaramse se o senhor Serafim baixaria o volume do aparelho da orelha
para não ouvir as suas próprias melodias, ou se pola contra, aproveitando que
ouvia bem agora, queria saborear a sua cantiga. Contentes por ter dado coa
ideia de visitar ao velho abade marcharam rua arriba em direcção ao seu carro.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 123
que não fazem mais que fumaceira, e fazemlhe perder a cabeça. O desses não
tinha nome, fazer que se torça assim o destino dum homem… que nascera
para mandar. Aturouos quanto pôde, e mira que nas aldeias onde havia destes
ele sempre lhes dava graxa…, fazendo como que os entendia. E mas eles não se
contentavam com nada. As últimas obras públicas que ele recorda ter feito em
Penacova, quase os tem que obrigar a aceitálas e compreender os seus
benefícios. Ele querialhes fazer uma calçada como tinha feito noutros lados.
Deulhes a escolher por onde é que a queriam. Polo meio do lugar estava
descartado porque senão depois já não passam nem os carros, ou os tractores,
que vêm a ser o mesmo. Isso qualquer o entende, e eu compreendio também.
Mas logo vai e ofereçolhes fazer uma calçada ao longo da estrada que vai do
lugar até ao cemitério, e vão eles e dizem que não, que eles não gostam… que
não sei quê de estragar a paisagem rural, e não sei quantas cousas mais. Vou eu
com toda a minha boa intenção de lhes levar algo de progresso e modernidade
e saltamme com essas parvadas… e não sei que mais do meio ambiente... E
que ademais os mortos não precisavam de calçadas para os seus passeios, que
havia que fazer algo mais polos vivos… Vamos, que ainda se riram à conta
minha. Pois logo… que vos parece se em lugar de nessa estrada fazemos a
calçada da aldeia até à Ranha? “Sim claro, mui atinado, para que passeiem as
ovelhas que são as que vão para esse lado… ou senão para subirse por elas e
coa carretilha ir às verças…” Pois logo não faço nada e assim não me meto em
sarilhos. E eles venha é dálhe co que eles queriam… “nós queremos empedrar
aí abaixo a canelha que vai ao Campo, e falando do cemitério, ali não nos viria
mal uma bilha para colher água, que há que a andar carrejando desde o meio
da aldeia… isso sim que faz boa falta”. “Olha que são burros” – pensava o
Alcaide –, “não entendestes nada, o dinheiro já está aprovado e, ou vos coloco
as aceras, ou ficais sem nada” E aí foi onde quase lhes ganhei a partida, porque
alguns avarentos, que não podem rejeitar nada, começaram de reformular o da
calçada essa da estrada… “Homem, se os vai devolver…, melhor é isso que
nada” “Mas olha que sois néscios, e não vos valorais nada – seguia um
lenhaverde, ou até penso que era ‘uma’ – a calçada aqui escaralha a paisagem,
que é o único que nos fica já, ainda que já está bem escaralhada…” “Mais olha
que lá ao monte a calçada não chega, não escaralha tanto a paisagem, vamos
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 124
digo eu, ora eu muito disso não entendo…” – o avarento treme só de pensar
que um peso escape – Mas eles, nada, seguiam e seguiam e seguiam… “Mirai o
que vos digo!” – segue a dizer a da saia verde, enquanto saca as mãos dos
bolsos dos seus jeans e as move gesticulando – “…uma calçada cara à Ranha
ficaria tão bonita como uma vezeira de ovelhas pascendo na Praça do
Obradoiro em Santiago de Compostela” E lá gargalhadas, e eu, canso já de
tanta risada dos de Penacova, estive para marchar, mas afinal, e para não ficar
tão mal, porque alguns ainda me votavam, os mais deles eu diria, autorizei o da
bilha para o cemitério, e marchei dali como fugindo do inferno. Mas eles nunca
se contentam, parece que não lhes chega nada. Arranjeilhe os poços de lavar,
onde havia um velho de pedra, no seu lugar fiz três novos com cimento, um
para beber o gado e outro para lavar, e o outro para…, três, para que não se
queixem, e tampouco gostaram deles. “Nós queremos que nos arranjem o
forno que está caindo aos cachos”. E para que querem o forno se não cozem?
Vão lá para aí vinte anos que não cozem nada e acordamse agora de se lhes
chove no tendal, ou que se o pavilhão precisa uma porta nova, e dános algo
para a pá, o rodo e mais o vassoiro, e que não lhe metam tijolos refractários,
que para cozer é preciso usar os de barro… Pedir, pedir, pedir,… e os que mais
pedem são os que menos me votam; ora claro, por não ficar mal cos velhos,
que são dos que me eu nutria…, e por certo não de todos, que em Penacova já
desde a época de Franco houve desses revirados que falavam de política e que
não iam muito à Missa; claro que enquanto não morreu o Velho estavam todos
calados, e eu feliz como o rapaz que queria ser alcaide. Ora dês que morreu o
Velho, estes, junto cos barbasverdes, e mais algumas mulheres, fizeramme a
vida impossível… até que quase perco o sentido, e aconteceu o que tinha de
acontecer.
Estes pensamentos traziam ao Alcaide triste e malhumorado. Porquê não
o queriam todos? Se ele era o melhor alcaide que tiveram, ainda mais que
melhor, ele era quase que o único alcaide que tiveram… e mas alguns não
depreenderam a querêlo. Em que falhou? Que teria que ter feito que não fizera
para contentálos? E com aqueles pensamentos chegara, quase sem ele
decatarse, à primeira fonte da sua guiada. Era cedo, e depois de beber eles e
mais darlhe a sua parte à pia, sentaram à beira daquele formoso manancial.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 125
Era a Fonte do Jardim. Com uma água esquisita. Com uma paisagem nocturna
única.
* * *
Por certo que Nuestra Región não volveu a mencionar o assunto aquele do
velho… sim homem, sim, aquele que namorara e se fora lá ao Caribe coa
mocinha aquela nova em luademel sem casar nem nada. Eia, isso sim que
está bem feito! Comer o mel sem aguentar o aguilhão…! Quem sabe, se calhar a
cousa não foi adiante e não vão arejar assim o sofrer do pobre homem, que já
lhe chega bem com não poder fazer a sua obra benéfica e teve por riba que
perder tão pronto a moça, agora que lhe saíra. Ou dizse que pôde morrer, que
era bem velho… homem, velho, velho, não era, mas com esses desgastes que se
diz que lhe levava fazer vida de… de como se fosse moço, vá! Pois não se diga
nada…, olha que os golpes fazem amolecer até as pedras. Mas não, mulher,
não pode ser, que se morrera já se teria sabido polo jornal, não sim? Pois claro,
não iam desaproveitar uma ocasião como esta para lhe brindar homenagem a
um homem que lutou toda a sua vida por… polo que fosse, isso é o menos
importante… Mas um homem lutador bem merece ser reconhecido quando
morrer, senão é como se não tivesse vivido. E ele viveu, vá que viveu. E
viveuche bem. Mas agora de morto Nuestra Región já nem sequer se lembra de
que ele queria ter feito a sua obra benéfica, e por culpa de que ninguém topara
a pia ia ele ter que deixar este mundo sem cumprir esse desejo… ele, que não
estava afeito a deixar assim como assim um desejo sem saciar. Homem! É que,
se calhar, ultimamente andava tão saciado doutras cousas que nem sequer se
apercebeu que ia deixar este mundo sem fazer a obra essa. Ele quereria ser
lembrado por algo mais que por ter ido ao Caribe coa mocinha essa que… que
quem sabe que andará agora fazendo a pobre. Terálhe deixado algo o velho?
Mira que se ainda por riba vai e não lhe deixa nada, sim que seria foda…
Homem pois é, mas ela já sabia bem a que se expunha, ora que uma cousa é
saber e outra saber… Porque se soubera não teria… ou talvez sim… A gente
éche mui má de entender, e isso sãoche tudo murmurações, ou pensamentos
dos que não lhe querem bem. Seguro que ele está por aí vivo, o que se passa é
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 126
que há gente à que lhe dá reganho que os ricos vivam tantos ou mais anos que
os pobres. Homem, pois também não estaria mal que fosse uma cousa
proporcional… tu queres viver melhor, pois gastaseche a cousa antes, e agora
morres novo… e tu, aquele outro de acolá, vaiste sacrificar e não dilapidar
nada, … pois vais viver algo mais… e assim se calhar isso de ser milionário não
tinha tanto aquele, e a gente seria menos invejosa uma da outra, e não lhe
desejariam a morte a ninguém…, vamos digo eu… Ora quem o sabe, se calhar
nem morreu.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 127
Capítulo VI
A FONTE DO JARDIM
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 128
costas das mãos e ajoelhouse cara à fonte e bebeu. Com cada golo enviado
sentiu como aqueles pedaços negros, que se lhe desfizeram coa luta, eram
lavados e expulsados fora dele. Já não os sentia. Já não mancavam… fora o
medo aos espelhos da alma, fora o medo à mornura do olhar amigo, fora o
medo a quererse a si mesmo. Por primeira vez, num tempo que a ele lhe
parecera eterno, Perfeuto gostava de olhar o seu próprio reflexo na água limpa
do Jardim. Ergueuse, caminhou até Narciso, e pondo uma mão sobre o seu
ombreiro, disse: “graças amigo”. “Não se merecem, irmão” foram as tenras
palavras de Narciso. Sentaram nas pedras da beira do caminho e os dous
buscaram o Alcaide coa olhada.
O Alcaide, de costas para eles e a fonte, lá a uns poucos metros, estava de
pé direito cos braços caídos em frente dos carvalhos. Ele também quisera ter
experimentado o que, a julgar pola sua reacção, fizera estremecer o seu
companheiro. Ele também recebera a mirada de Narciso, ora… receberaa
realmente? Porque ele não sentira nada. Que levava ele dentro que parecia
filtrar tudo o que até ele chegava deixando assim estéreis os mais sinceros
intentos de comunicação? De que dianhos estava ele feito? Nem sequer seria de
manteiga, que a manteiga tem a capacidade de tremer e até de se derreter co
calor. E ele não sentia nada. Ele era como aqueles carvalhos aos que tanto lhes
tem que chova ou vá calor. Ele devia estar feito de pau. De madeira seca e
velha. E com aqueles pensares, que não sentires, foise bosque adentro e
desapareceu. Até a noite seguinte não o volveram ver. Narciso e Perfeuto
falaram e beberam e deram água à pia… “Toma tu amiga, que nos trazes a
todos por duros caminhares” dissera Perfeuto com um tom que a Narciso lhe
parecera tranquilo e até tenro. Narciso achegouse com as suas mãos
carregadas de água para lhe dar também ele. E os homens perguntaramse
polas sedes da sua companheira de pedra; mas não tentaram topar resposta
em vãos exercícios intelectuais. Não, a sua não era realmente uma pergunta,
era só um querer fazer próprio o sentir da pia de pedra. Uma pedra que cada
vez se via mais reluzente e dourada. Aquela noite quando a esconderam na
beira da folhagem da carvalheira, trataramna com muito agarimo… como se
fosse um ser vivo. Até um deles dissera: “aí ficas sozinha até amanhã à noite”.
Mágoa que o outro companheiro não pudesse participar daquele
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 129
renascimento, onde andaria o Alcaide? Aguardaram um bocado. Não chegava.
Narciso e Perfeuto marcharam juntos para o dia.
* * *
– …Vês tu como levava eu razão, e Nuestra Región não falou nada do
abade esse que assou os santos?
– E a ti que mais che tem, se tu só lês o chiste do Carrabouxo?
– Que terá que ver isso! Eu bem vi que não puseram nada de nada, ainda
que eu não o pensasse ler, eu para perder o tempo chegame co chiste.
– Pois não fazes mal de todo, porque eu leio quase por inteiro o que diz o
jornal e ao cabo sempre penso que foi uma perda de tempo…
– Ai pois logo por sorte a ti tempo não te falta! Que senão…
– Quê? O que me sobra a mim é vagar, que aqui nesta Delegação da
Conselharia não há nada que ranhar…
– Então tanto che tem, dum jeito ou doutro hálo ter que matar…
– É o que eu digo, e o jornal vemme ali de graça, oh, senão também,
caralho! Um cão por ele não malgastava, não tivesses medo.
– Homem, eu o chiste guichoo ali na taberna, e depois passo pra ali um
pedaço de parola cos gandaias do Pardieiro e já não che tenho vagar para mais
nada, mas tu lá sem nada co que te distraíres, nem gente à que atender, que
vais fazer…?
– Nada homem, nada, se não fosse por Nuestra Región encheriacheme
eu de pensar…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 130
* * *
Mentres o mais velho dos agentes seguia a levar o peso daquela monótona
conversa, Riba tratava de imaginar os altares barrocos dos que o abade se
pusera a falar. É certo que eles não entraram dentro da igreja nunca, entre
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 131
outras cousas porque eles visitavam Penacova em dia solto e daquela a igreja
estava fechada. Quando se encontravam com alguém a quem lhe poderiam
quiçá perguntar pola chave, preferiam aproveitar para lhe fazer perguntas
relacionadas coas sua investigações, e a cousa foi indo sem que eles passaram
nunca adentro, tendo que conformarse coa olhada através dos vidros da
janela que dá à parte de atrás do sagrado. A igreja estava fechada para evitar
que desaparecera nada… Mas como dizia o outro… – “Pois não sei eu que
haviam de levar da nossa igreja, como não levem o abade, outro dianho de
cousa ali não fica!” – “Mira que eu conheço bem igrejas, e mais nunca vi uma
tão desvalijada como a nossa” – “Homem, está calada por Deus, que até lhe
arrancaram as lousas da parte em alça onde estavam colocados os altares…
agora, Deus me perdoe, parece uma corte para as vacas” – “Mesmo dá reganho
ouvir missa assim … e que me dizes dos poucos santinhos que ficaram?” “Isso,
felizmente alguém teve a ocorrência de os esconder das rapinheiras mãos do
pároco durante aquela temporada, que senão também teriam desaparecido
canda o resto, e nós ficávamos a vêlas vir” – “Ai, eu hoje vouvos ir à missa do
Corpus a Ameixeiras, que ali tão sequer ainda não desfizeram a igreja” –
“Contudo, os cregos roubam muito de Deus…” Pedaços de conversas como
esta batem de vez em quando nos miolos do abade, e isto deixase notar
porque ele relampa muito os olhos e põese como se vira o demo ou a sua
própria senha… mas neste instante o senhor abade escuta o que lhe diz o
detective e parece sossegado.
– …nós não temos nada na sua contra, ao revés, eu diria que nos merece
você o respeito devido a um servidor da comunidade… em certo jeito como
nós mesmos. E esta é precisamente a razão pola que o seu testemunho nos
parece de grande valor. Você passou muitos anos naquela freguesia e tratou
com toda a gente que poderia ver ou estar interessada na pia que desde sempre
estivera ali na igreja… Aguardo que não duvide das nossas intenções, doulhe a
nossa palavra. – disse assim, sem sequer consultar o Riba coa olhada.
O abade ficou calado um pouco, como processando o que lhe diziam…
ou quiçá estivesse sendo visitado por algum daqueles diálogos que desde
dentro do seu crânio lhe boureavam a cabeça, e depois pôsse a falar outra vez.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 132
Riba aproveitou a desorientação do abade para seguir a trazer à sua
memória lembranças da Igreja de Penacova. Ultimamente andaram
limpandoa por fora e ficara com essa cor amarelada característica da pedra
velha que a ele lhe parecia formosíssima. – “andam a ponhêla mui gabacha” –
sentira Riba numa conversa um dia – “se calhar é que também a querem
levar… claro que só têm que levar as paredes, o resto já lá o têm…” – “e por
sorte os homens daquela, quando marchara o abade com tudo, não lhe
deixaram levar o relógio, que senão… onde ele iria?” – “Não saberíamos nem a
hora que é” “Ele não, filha, não”. Riba participava da admiração colectiva para
aquela pedra com forma de homem que está lá na direita onde começa de se
erguer o campanário, e que dá a hora co sol. A Riba deralhe algo que matinar a
diferença que havia entre a hora que marcava o seu relógio de pulso e o de
pedra, quase duas horas… uma hora era explicável, por aquilo da mudança
para o aforro de energia, lá onde suponha tal, ora duas… mas não tardou em
aperceberse de que a hora que se veste nas agulhas dos relógios é a do
Mediterrâneo, ainda que aqui se viva na do Atlântico, como na vizinha
Montalegre. O abade pôsse de novo a falar:
– …
– Mire eu não posso fazer outra cousa que darlhe a minha palavra; ora
bem, possolhe prometer que o que saia desta reunião não terá nenhuma
repercussão negativa para você. Só queremos que nos ajude na procura da pia,
não prejudicálo a você.
– …
– Não, a você ninguém o acusou de nada, nem há denúncia de nenhum
roubo de altares ou confessionários ou cousas assim… que já sabemos que
você levou tudo isso mas não foi para vendêlo, que não serviam. Não se
incomode, que já mais gente nos disse que os altares andavam caindo e
precisavam que alguém lhes botasse uma mão… Ora como o orçamento co
que você se tinha que arranjar não lhe abundava para governálos, pois que
decidira outro meio para resolver o assunto antes de que lhe caíra o Santo
António em riba, que já andava buligando lá no alto da repisa. E sim, também
sabemos que por causa disso você colocou o santo no chão, num recanto junto
co Santiago, a quem lhe partira a espada e mais perdera o chapéu, e coa virgem
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 133
do Carmo, que andava ela mui mal pintada… e quando depois marchou cos
altares esqueceu os três ali no chão… e que quando volveu por eles para os
levar para a incineração final, não os topou por lado nenhum e logo mais tarde
compreendeu que a gente os levara e os escondera nas suas casas, que também
cumpre valor; e também nos disse que afinal os devolveram à Igreja, mas que
ao Santo António lhe fizeram um banco de madeira, ao Santiago lhe colocaram
um livrinho tapando o pedaço de espada rota que lhe ficava na mão e levava
agora um chapéu feito de palhas… desses de ir à seitura, e que à virgem do
Carmo traziamna toda pintada que era um primor… E claro, já era tarde para
os levar e se desfazer deles… ora já sabemos, que nolo repetiu você muitas
vezes, que não eram para vender nem cousa nenhuma… que isso só lho
apunham as más línguas, mas de certo não tinha nada. Que você sim que o
queimara tudo no pátio da reitoral da outra freguesia de abaixo, porque em
Penacova você já não tinha reitoral, que a vendera nada mais chegar, e que
agora no que fora a reitoral de Penacova estava a taberna, que era a única tenda
que havia no lugar, e da que se servia a gente para comprar desde aspirinas até
lixívia, sem esquecermonos do tabaco, as pilhas e os pitos congelados… E
claro que tem razão… por culpa de estar ali a taberna… que tampouco se podia
fazer ali lume no meio do pátio e que ardera tudo junto cos altares e todas essas
cousas douradas e retorneadas fora de moda… Mas nós já o sabíamos e não
desconfiamos, como outros fazem, de que você não lhe chispara um fósforo a
tanta cousa inservível… E também concordamos com você em que a ideia de
queimálos era melhor que a de enterrálos no horto… que sim, que você à
primeira disseralhes aos vizinhos de Penacova que os enterraria como lhe
sugeriram eles… mas que logo você pensouo melhor e que creu que se se
enterravam tardariam em apodrecer e sairiam quando se cavasse ou
esgaravatassem os cães e não pareceria nada bem, portanto escolheu o lume
que derrete tudo a escape… E não se alvorice, que nós sabemos que não é certo
que lhes dissera o do lume para poder ir levando tudo para a outra freguesia e
depois vendêlo tudo a um museu ou a um coleccionista privado de… donde
disse você que dizem que era o tal coleccionista?
– …
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 134
– Não, se eu já sei que é tudo inventado por esses de Penacova que já
deixaram de crer nos curas e agora levantamlhe contos para a gente ir por aí
pensando que os abades são todos uns aproveitados e uns desalmados... mas
não se preocupe que nós isso já lho sabíamos. E não acreditamos nisso do
coleccionista que dizse que viera de fora daqui, e que nem sabia falar o galego,
nem tão sequer o castrapo, e que lhe enchera a bolsa de dinheiro… ademais
tem você razão, quanto pensam eles que lhe podiam dar por uns altares aos
que já não lhes brilhavam os dourados e nos que alguns santos buligavam
entre as colunas retorneadas dos cangalhos…? E ademais eram mais antigos
que Matusalém, … nós cremos o que você diz, e por isso gostaríamos de que
nos falasse algo da pia…
– …
– Homem…! Como vamos nós pensar que você tentou queimar a pia? Já
sabemos bem que não, que ademais à pia ao ser de pedra não lhe passaria
nada… já nos ficou claro que você só lhe plantou lume aos altares e os
confessionários e mais aos santinhos que deu apanhado… e também já nos
contou que alguns se lhe escaparam… e que não era culpa sua, que fora a
gente a que os escondera nas casas… tampouco ia ir você de casalandreiro a
meter as ventas a ver se estava ali o Santo António ou algum dos outros. E tem
muita razão ao pensar que esses de Penacova ainda se haviam de rir à conta de
você se o fazia… e lhe diriam: – “Passe, passe senhor abade, que o santinho
estálhe aqui connosco ceando ao quente…” E agarrando um tição desses mais
gordos da lareira acrescentariam: “ai, que se chamuscou um nada no lume o
coitado…! Se vê que bebeu muito vinho na ceia e deulhe o sono e caiu no
lume… mas olhe, assim ainda lhe dará menos trabalho a você, não sim? Se
quer rematamos aqui o trabalho e assim tão sequer ainda nos quenta as
canelas…” E tudo o diriam só para burlarse enquanto escondiam o santinho lá
no fundo da ucha entre a brancura dos lençóis de linho, ou envolvido nas
roupas do casamento que guardam no mesmo sítio, ou até debaixo da erva no
presel do boi chegariam a esconder a Virgem… – “Porque em casa se calhar
dáselhe por entrar a dom Aurélio e… a um cura não se lhe pode dizer que não
passe assim como assim… e ademais eles coa sua lábia vãote enredando,
enredando, e quando te queres dar conta já lhe disseste do ninho, e porventura
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 135
nem te apercebes… ai, mas eu amoleio de raio! A ver se se atreve de entrar à
corte onde o boi!” Por isso você não fez por topar os santinhos que faltavam, e
depois, claro, quando apareceram já era tarde… e não é certo que o
coleccionista não lhos fosse a querer… ainda que alguns dizem que depois da
repinta que lhe meteram à virgem do Carmo não havia Deus que a quisesse… e
isso que lhe colocaram bonitas alfaias a jogo coa sua coroa…; contudo já
sabemos que isso do coleccionista era mentira. Que você só fez o que fez, e
mais nada.
A cousa seguia e seguia, mas o abade não soltava prenda, e tiveram que
marchar, mas não sem antes falar cos encarregados daquele lugar de repouso
por se escutaram a Aurélio falar alguma vez do assunto que lhes interessava.
Segundo os cuidadores, havia já tempo que Aurélio se empenhava só em
repetir a história da queima daquele património da Igreja de Penacova ou
património de todos, segundo a gente, deixado ali polos antepassados, e
roubado polos curas. Ele houve um tempo em que o crego chegara quase a
aceitar a ideia de que quiçá pudesse ser que tivessem razão os que diziam que
os vendera ao coleccionista que viera da Terra Ancha. Alguns incluso dizse
que lembram como o tal coleccionista presumia de experto e que até se gabava
de que sabia onde, e a quem lhas fazia. E assim aproveitando a ignorância dos
que desconhecem o valor do que têm, e pensam que ainda lhes fazes favor se
lho liquidas, ele iase pondo cada vez mais rico. “Podeselhes roubar tudo o
que têm e nem se apercebem, …se me apuras até a língua lhes poderia
arrancar, ainda que a levem na boca, e ainda que a levem fechada; porque a
mim, como sabem que são de fora, não me ladram” dizse que dizia o
coleccionista, se bem ele diziao na sua língua, que por certo não a deixava
descansar muito, que seica latricava até polos cotovelos. Ora esta aceitação da
possibilidade da venda e do coleccionista não durara muito, apenas uns meses,
e de volta coas luminárias. Os cuidadores não acreditam que queimasse nem
os santos nem os altares, bem seguro que os levou, e por riba com enganos
para que os vizinhos lhe carregaram tudo no carro… E a gente, de parva, não
desconfiara nada, e isso que ele repetialhes a todos: “tende conta, que os
quero intactos” ou talvez alguém sim que compreendera, mas tampouco era
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 136
boa cousa ir contra o abade, que daquela ainda tinha algo de autoridade, e
mais lábia para te fechar bem o bico se o abrias sem a sua licença. Ora bem,
enquanto o andava rondando a imagem do coleccionista, parecia o homem
mais sossegado, e todos desejavam que a aceitara definitivamente, mas ele
nada, volta co lume, e daí não há quem o tire. Não, eles não crêem que
queimasse nem os santos nem os altares, porque senão, para que queria andar
co trabalho de os levar para a freguesia de baixo, onde ninguém, por certo,
cheirara o fumo nem cousa nenhuma? Ou é que para carbonizar os santos e as
outras trapalhadas não lhe chegava a eira das Cabras, mentes elas andam no
monte? Ou a da Linheira, que o linho deste ano já está maçado e mais fiado, ou
mesmo a da Festa, que antes de que se celebre já se haviam de apagar as
chamas… E ademais fazendoo ali teria muito quem lhe botara uma mão e lhe
ajudara a chegar o lume… “Eh tu, que fica atrás um cangalho de uvas que caiu
daquela coluna retorcida que botaste…!” “Ai, pois bota para cá, caralho, que
estes para fazer vinho não valem…” “E aquele santinho pequerrecho, de pêlo
crespo e dourado, como dis ti que se chama,… ou chamava?” “Aí che passo o
braço da santa Luzia que deste lado não arde, e por aí tendes mais brasa…”
“Eh, olhai a cor da labareda que faz o manto daquele santo…!” E assim a
foliada teria sido para todos… e ademais a gente poderia aproveitar para
queimar os farrapos velhos, como faz uma vez ao ano, e aforrarseia um lume,
e mais lenha e trabalho. Porque a roupa velha, só, não arde de gana e háde
andarse sempre a remexer e acrescentar lenha… olha se teriam ajudado
aqueles altares velhos tão sequinhos como estavam...
Afinal de contas, tudo aponta a que teria sido mais fácil, e de mais
proveito, que se armasse a fogueira ali em Penacova. Isto era prova de que,
efectivamente, o da queima era uma escusa que dom Aurélio utilizava para não
ter que dizer que o vendera todo e se lucrara. O agente que dirigia a conversa
insistiulhes uma vez mais aos cuidadores que tentassem fazer memória e
lembrar qualquer comentário que dom Aurélio pudesse ter feito sobre uma pia
de pedra que também levara o mesmo caminho que os confessionários e todo
o demais. Mas a sorte tampouco estava ali para eles hoje, e logo de dedicar
muito tempo e esforço marcharam daquele lugar de repouso, perto da cidade
das Burgas, esgotados. Foramse com um ar de desesperança e também co
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 137
desassossego que lhes deixara a teimosia do velho abade co lume; tanto dálhe
com as chamas que mesmo lhes parecia agora que saíam do inferno.
* * *
Narciso e Perfeuto chegaram de novo às beiras do Jardim. Vinham juntos,
e quando se iam achegando à fontela viram que ali, frente aos carvalhos, no
mesmo sítio que a noite antes, estava o Alcaide. Não se imutou sequer ao sentir
que eles chegavam, semelhava como se andasse meio hipnotizado polas
árvores. Os seus companheiros fitaram um para o outro sem saber mui bem o
que fazer; ali ficaram de pé direito olhando ao seu companheiro, que seguia
sem mover um músculo. Depois, Narciso e Perfeuto sentaram nas mesmas
pedras que ocuparam a noite anterior, e miraram em silêncio para o Alcaide
que seguia ali tão quedo como os carvalhos que encarava. O tempo começou
de passar, mui a modinho à primeira e algo mais ligeiro depois, ou assim lhes
pareceu a eles. O Alcaide, que seguia em reunião com as árvores, semelhava
mesmo estar fora da dimensão temporal. Narciso e Perfeuto até duvidaram se
seria real aquela silhueta ou simplesmente era o espectro da noite anterior. Um
espectro não podia durar tanto, não podia ter resistido após todo o dia ao sol.
Em todo o caso seria a senha que já se andava deixando ver, sinal de que a
morte rondava já ao homem ausente. Para nenhum dos dous era de agrado a
ideia de que o seu companheiro fosse abandonar este mundo assim sem avisar,
sem rematar a travessia na que andavam, porque aquele não podia ser o final,
pressentiam que não.
Diferentes teorias sobre aquela imagem foramse sucedendo. E se não
fosse o Alcaide? A dúvida fezlhes saltar dos seus assentos de pedra, desde ali
eles não lhe viam o rosto… e com aquela escasseza de luz que havia, bem podia
ser outro o que ali estava de pé… e tão perto da pia… A pia! Perfeuto correu até
onde a esconderam a noite anterior enquanto Narciso se achegava ao homem
que, teso como uma candeia, ali seguia chantado sem se trugir. Era o Alcaide,
ou polo menos tinha as suas feições, ainda que não correspondesse à olhada
de Narciso nem quiçá sequer o vira. O Alcaide tinha os olhares perdidos pola
janela que mirava para o seu interior, na que ele se afincava desde havia uns
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 138
dias. O que via deixavao sem resposta possível. E assim ficou até que de
súpeto, quando já os companheiros estavam sentados de novo e mais
tranquilos, logo de saudar a pia e molhála coa água fresca do Jardim,
desapareceu como a noite anterior.
No céu algumas nuvens tapavam as guias que a cotio eles seguiam para
não errar no seu caminho. Perfeuto e Narciso perguntaramse para onde é que
teriam que tirar aquela noite, mas ao não achar estrelas que os guiassem, ali
ficaram. Falaram. Escutaram. Sentiamse cantar as cloucas do regueiro do
Pradonovo. A água da fontela guardava silêncio. Seria verdade o que se diz de
que as águas de noite dormem? Aquelas do Jardim baixavam com tal sigilo, que
de não ser polas ervinhas que se bambeiam lá no meio do rego, ninguém
poderia crer que estivessem em movimento. Certo é que viajam por terra chã
aqui nas beiras do recanto da fontela, e ademais o seu passear transcorre sobre
uma almofada de morujas onde nem os passos dum gigante soariam. Mas
outras águas não corriam com tanta sorte; a algumas mesmo ao toparemse
num dos remates da terra, só lhes restava tirarse aos saltos polos rochedos
abaixo, fervendo como o caldo que escapa do cu do pote. Estas sim que hãode
andar bem cansas de tanto brinco, e seguro que quando se lhes vem a noite,
dormem. Os vizinhos de Penacova polo menos assim o pensam, ainda que não
todos são do mesmo parecer…
– Mas mulher! Como vai dormir a água? Isso que tu dizes não tem jeito
nem direito.
– Pois não o terá mas eu digoche a ti que dorme. Olha que aquela que
ferve a cachão lá em ChãodeLamas, que de dia mete medo o barulho que ela
arma, pois vai e colhe pola noite e dorme… se quadra é que aproveita o estar lá
agachada detrás do Penedo do Peão para dormir, ora dizse que dorme toda a
noite.
– Parecerlheá à gente, porque se calhar não a têm sentido rugir, ora, daí
a que durma…
– E logo digame, porquê não se sente? Porque de dia bem barulho que ela
mete, que até ressoa lá pola Xaravelha, por detrás do Castelo Velho e o Penedo
da Uzeira… mas de noite está calada, nem sequer um chio.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 139
– Pois porque a gente não se pararia a espreitar ou não se achegaria o
suficiente para a sentir, que queres que eu che diga…
– Pois eu tenhome posto a espreitar e tenho ouvido até os ouleos dos
lobos quando andam à janeira, mas a água jamais a pude escutar.
– Ora mulher! Tu achegastete alguma vez de noite lá ao fundo de Aguiar
para ver se a cachoeira dormia ou ficava esperta?
– Pois não, que não sou tão valente e tenho medo, e ademais não me
havia de tirar as minhas dúvidas, que já é sabido que se te achegas muito, pois
quiçá já a espertas e daquela já não sabes que pensar.
– Pois daquela já sabes que está esperta e ponto, que mais queres
descobrir?
– Eu queria saber se antes de que eu, ou qualquer outro, se achegasse o
suficiente como para poder sentila, ela dormia.
– E como pensas que vai dormir?
– Coma nós, ficando caladinha e indo rego abaixo sem aperceberse…
– Pois há gente que fala mentres dorme, e alguns até se levantam, dizse
que lhes chamam sonâmbulos.
– Pois não pensara eu nisso… talvez os que pensam que as águas não
dormem é que sentiram a alguma sonâmbula dessas…
– Que não, mulher, que a gente sonâmbula faz cousas mui raras. Mira, aí
tens por exemplo o que fizera a Maruja da Cristalina dias antes de marchar
para Alemanha. Uma noite seica se ergueu e ceivou todas as portas das cortes,
deixando sair vacas, bezerros, porcos e ovelhas, e até às pitas lhe abriu o
buraco do poleiro. Quando deram com ela ia tangendo tudo polo Eiró fora, em
direcção à Pedralta, caminho dos lameiros do Campo do Val, ou das leiras da
Portelinha, de seguro ninguém o sabe. Mas ela marchava coa fazenda toda para
algures.
– Ai! E como lhe colheria o sentido para ali…?
– Quem sabe…, se calhar é que se lhe fazia muito isso de ter que marchar
tão novinha para Alemanha e deixar aqui a sua vida, e não descansava nem tão
sequer de noite.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 140
– Não che digo que não, porque isso de marcharse e deixar o sítio dum
não toda a gente o dá aguentado, para alguns dizse que mesmo é como se lhe
entrara um andaço que não dão botado para fora.
– Dizmo a mim, que o levo no sangue…
– E logo tu de quem o herdaste?
– Da minha avó, a mãe da minha mãe, Deus a tenha no Céu,
chamavamna Felesvina, eu não a acordei de viva. Ela, no que pegava no sono,
erguiase, desfechava a porta com jeito, pola calada, e marchava a caminhar
desde aqui até Penalapa, donde viera para casar co meu avô. Deus os perdoe
aos dous. Ao chegar lá metialhe um bom susto a todos quando sentiam andar
na cravelha da porta para entrar. Quando viam que era ela, então é que se
assustavam deveras, porque cuidavam que algo mau ocorrera e que ela lhes
vinha avisar. Depois de descobrir o que lhe passava já não se assustavam tanto;
mas à primeira chegoulhes bem.
– E logo porquê não lhe fechavam a porta e escondiam a chave onde ela
não a topara?
– Depois já o faziam, mas o meu avô à primeira até chegou a pensar que
ela se queria afastar dele e que por isso se marchara; e olha que ele a queria…
dizse que quando a primeira noite que se ergueu e não topou a sua mulher na
casa, por pouco morre do desgosto, e até se lhe retirou a fala, e não sei que
mais. Depois quando a vieram guiar as irmãs dela e lhe explicaram o que
acontecia, ele já se tranquilizou, e depois já guardava ele sempre a chave. Ela
era gostante do trato, pois tampouco lhe fazia graça saber que ia a andar de
noite por esses montes, e com tantos lobos que havia daquela!
– E com isso a ela tirarselheia a mania, claro, não é milagre.
– Que se lhe havia de tirar! Cada vez que o meu avô se esquecia de
esconder a chave, à manhã…ula mulher? Rematou por atála com um rebite
ao pescoço… a chave, se entende…
– Daquela a tua avó sim que não teve mais escapatória.
– Mas olha que dizse que ela se arranjava para darse uma escapada de
quando em vez lá a Penalapa, onda os dela.
– E como é que se arranjava se o homem lhe tinha a chave bem guardada?
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 141
– Pois às vezes andava co gado lá no monte e davalhe o sono e quando
queria ter tino já estava em Penalapa.
– Que problema para o teu avô!
– Homem cala, que afinal acabou por rifar com ela, apesar do bem que
seica se entendiam…
– E daquela ela sim que pararia coas fugidas…
– Parar? Ele não; daquela nem sequer aguardava a prender no sono, que
ainda esperta colhia o andante e iase cos dela.
– E o teu avô a aguardála, não sim?
– Em primeiras sim, mas depois à última acordaram de irem viver lá a
Penalapa; ali os dela também tinham muito capital, e a ela tocaralhe uma boa
mera, assim trabalhavam o daqui e mais o de lá.
– Pois fez bem o teu avô indose para lá com ela, assim quiçá
descansariam algo melhor.
– Pois olha que eu não diria tanto, que seica depois ela alguma vez se
escapou de lá para cá.
– Que complicado che é isso de ser sonâmbulo, logo não me estranha a
confusão da gente co das cachoeiras…
– Não me venhas lá outra vez com isso de que a água dorme, que eu estou
farto dos dormires raros…
– Não che me estranha nadinha…! E mais já deverias estar afeito… sendo
da gente de quem vens sendo… a saber o que andarás a fazer tu pola noite!
– Se tens muito interesse deixa a porta desfechada hoje à noite e verás
como o descobrimos juntos…
– Ai sim, homem! Erache a conta! Eu para isso prefiro estar bem esperta,
que não sei das tuas intenções, e não me fio…
– Pois para saber se che sirvo, primeiro hásde me ter que provar… – e
arrimando a boca à orelha dela murmuroulhe o velho cantar:
Esta noite heide ir alá,
meninha não tenhas medo,
deixame a porta atrancada
c'uma palha de centeio
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 142
A Aurora sorri coa cumplicidade do que goza por sentirse parte dum
mundo próprio, um mundo para eles dous. Um mundo fechado para os de
fora, para os que a palha de centeio se converteria em tranca de carvalho seco
que só desde dentro se pode tirar. Ela sorri, e vendo como o Manuel se vai
caminhando, imagina que um dia ela talvez terá que levar um rebite com uma
chave ao pescoço.
Narciso e Perfeuto falaram e falaram e aos poucos espreitaram para as
touças, a ver se sentiam ao Alcaide, mas ele não apareceu. Onde se meteria
aquele homem? Se tão sequer ele mesmo o soubesse poderia quiçá dar
resposta àquela e outras perguntas que o acossavam, e já não se teria que
esconder entre os carvalhos que tão pacientemente o acolhiam dia e noite.
Ninguém o estranhava, contrariamente ao que noutrora pudera pensar
Narciso, o Alcaide não tinha mulher nem filhos; ele tudo o perdera por salvar a
alcaidia, e afinal também a perdeu, e agora até ele anda perdido. Os
companheiros aguardaram toda a noite mas ele não saiu. Eles marcharam. O
Alcaide passou o dia entre os carvalhos e de tanto silêncio foiselhe abrindo a
janela da esperança; ajudado polas fisgas que por entre as canas das árvores
lhe baixavam a luz do céu, foi acougando. O pior eram as noites, ele não queria
ser visto; nem sequer polos seus companheiros, que de seguro
compreenderiam o seu sofrer; nem sequer naquela penumbra nocturna. Ele
queria que só o vissem os carvalhos.
De dia passeava as touças arriba e abaixo, observando cada rebento
daquela tanta beleza… aqui fechava os olhos e enchia os foles do peito coa
recendência da flor dum sabugueiro, …acolá arrancava as flores dos sãojoãos,
e faziaas estralar contra a palma da mão esquerda, …observava a pujança coa
que os gamões das abrótegas subiam, com aquela humidade parece que
mesmo se viam medrar. Quando a fome o avisava de que já passava outro dia
sem comida, ele rebulia nos carpaços e coas póutigas maduras que topava
distraía o seu cativo apetite. Tanta beleza, tanta riqueza, e ele tão feio. Ele tão
pobre. Ele tão poucacousa. O que mais lhe amolava era não terse apercebido.
Saber que fora protagonista daquela vida de tanto despropósito, de tanta
ruindade, de tanta desconsideração com os demais e não terse apercebido de
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 143
nada. Ter sido sempre como um carvalho que habitara entre os humanos e
nem sequer se soubera carvalho. Mas talvez ele não fosse carvalho, que é esta
árvore nobre e amiga da sua terra. Não, ele fora pinheiro, de beleza ausente e
perene. Ele fora algo mais essa árvore monótona. Mas não, ele ainda fora pior
que o pinheiro que se deixa levar ali onde o plantam e vai medrando. Ele fora
algo mais activo no seu afã de destruir, mesmo a vida, ao seu redor. Ele fora…
sim, ele fora eucalipto. Ele envenenara a terra que o sustenta. Ele fizeralhe
pouco fácil o viver a outros. Ele fora um estrangeiro que nascera aqui. Ele não
fora carvalho, que ia ser! Mas agora queria ser, como o carvalho, merecedor da
touça que o alberga. E ali ficaria até que o sentisse. Até que olhasse a sua mão e
visse os musgos prateados que sobem como se duma pôla de carvalho se
tratasse. Deitouse no chão e recebeu o abraço da terra almofada que o acolhia
sem críticas, com silêncio aceitador que só se rompeu para lhe murmurar no
ouvido o anúncio daquele renascer possível: “Tu também Ovídio, se o
desejares, tu também podes ser meu filho” E ele entrega a sua alma àquela
mensagem. Ele quer ser filho da terra, como o carvalho, como a mesma
pedra…
* * *
Hoje Nuestra Región, num editorial eloquente e quase profundo, analisa a
função dos meios de comunicação na consecução do bem social, e à sua
contribuição na procura da justiça e a transformação da sociedade. Não é
preciso dizer que a meta do jornal, neste senso, é conduzir a opinião em
direcção à consolidação de uns valores (morais e espirituais) cos que o
periódico comunga. O artigo faz uma reflexão sobre o papel que aos meios lhe
corresponde à hora de resolver enigmas como o da desaparição da pia do
museu. Este facto, que a muitos lhes poderia parecer pouco transcendente de
um ponto de vista social, não é tal para Nuestra Región, que sustém que do que
se trata não só é do seu valor material e artístico, ou se se quer até patrimonial,
senão do seu valor como símbolo de religiosidade popular, etc. etc.
Foi também num número desta semana onde teve cabida uma entrevista
ao poeta Budial, após receber este um prémio de poesia galega
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 144
contemporânea. E também foi assim como se deu a conhecer por primeira vez
o nome do poeta, Castor Ribeiro, que ademais da poesia tem afecção pola
antropologia e mais a arqueologia… quem sabe, se quadra um dia destes
vemolo lá polos penedos da Rainha Loba dum pau matar duas lebres…
* * *
Narciso e Perfeuto vieram juntos de novo também esta noite; dês que
chegaram às terras do Jardim juntam os seus atalhos lá onde lhes é possível e
fazem o resto do caminhar em companhia um do outro. Que lhes aguardaria
hoje? Poderiam seguir já a sua andaina? O céu, por primeira vez em bastante
tempo, estava despejado, e a noite estava clara com lua grande. Estaria
aguardando o Alcaide como as noites passadas? Narciso e Perfeuto já
depreenderam a falar entre eles, e bem que aproveitavam aquela nova
habilidade, e agora perguntavamse, mentres seguiam o caminho para a beira
da fontela, se seria possível que um dia o Alcaide se unisse a eles no seu
conversar. Chegaram ao Jardim. Surpreenderamse de não ver o Alcaide ali de
pé frente aos carvalhos. Beberam. Deram água à companheira, à qual com cada
golo parecia que lhe envivecia mais a cor dourada. Sentaram nos assentos que
já são habituais para eles, Narciso sempre ocupa o da esquerda, o que está
mais perto das carvalheiras. Onde andará esta noite o Alcaide?
De súpeto sentiram aquelas palavras que acompanhavam a figura do
homem que as pronunciava enquanto saía de entre as árvores: “Aqui estou
companheiros, e eu sou Ovídio.” Os dous homens miraram a Ovídio como se o
vissem por primeira vez, mostrando surpresa por aquela naturalidade coa que
se apresentava ante eles. Narciso achegouse à fonte e com ambas as mãos
apanhou a água fria que lhe levou a Ovídio: “Toma irmão, pareces rendido.”
Ovídio bebeu sem dizer nada, depois deu um fundo suspiro e agradeceu a
Narciso aquela água que tanta falta lhe fazia. Perfeuto não queria ficar fora
daquela reunião e fez chegar a sua voz até onde os outros dous homens
estavam: “Hoje parecesme outro, Ovídio” “Graças, Perfeuto,” – respondeu
Ovídio – “hoje sou outro, e quanto me alegra que ti o tenhas notado”. Ovídio
contoulhes da sua tortura interior, e do seu espertar. Contoulhes do que
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 145
sentira e do desprezo tão grande que se dedicara a si mesmo. Da sua luta no
silêncio das touças. Da luta ganhada e do perdido na batalha. Do passado e do
esquecido. Ovídio contoulhes tudo o que pôde dar lembrado dum Alcaide
ruim, dum homem vazio que nunca se dava enchido. Pouco a pouco foilhes
debuxando com palavras, com punhos fechados que se sacodem no ar, quem
ele fora. Os olhos de Ovídio fecharamse enquanto lembrava, ora para atrair os
recordos mais facilmente, ora para evitar ver as olhadas dos que o escutam.
Quisera ficar calado mas as condenadas das lembranças querem sair; ele sabe
que deve ser julgado, e aceita essa imposição como um jeito de começar a
render contas polo que fez… embolsarse o dinheiro que devia ter ido a obras
públicas; castigar as aldeias nas que havia pessoas que não votavam ao seu
partido; contratar no concelho, ou na deputação, ou onde fosse, aos filhos dos
que lhe ajudavam a manter a sua rede caciquil funcionando, condenando aos
que não se deixavam dominar à emigração; burlarse dos seus próprios
votantes referindose a eles como “a granja de pombos que me votam” que
ademais, segundo ele mesmo dizia, era a granja que mais ganâncias lhe dava…
E por último, Ovídio admitiu o mais baixo ao que chegara: baterlhe a uma
pessoa, uma mulher, uma secretária do concelho; e não por quem ela era,
senão por quem ele, coa sua olhada deformada, via nela. Ele chegara a tal
extremo de precisar controlar aos demais que perdeu o controlo de si próprio.
Aquilo custaralhe a Alcaidia. Daquela pensou que isso era o pior que lhe pôde
ter passado, agora sabe que estava bem errado. Ovídio faloulhes da sua
cegueira, e enquanto o fazia seguia com os olhos fechados e com as mãos,
agora abertas, gesticulava como para pôr em cena o que pensava, o que queria
que viram, o que queria ele que ocorresse agora. Estava envergonhado de si
próprio… Depois calou e as bágoas que caíram face abaixo ocuparam o
silêncio que deixaram as palavras e as mãos gesticulantes. Perfeuto e Narciso
deixaram que respirasse para adentro aquele instante e se anovara com ele,
depois cada homem por seu lado deixou cair cadansua mão nos ombreiros de
Ovídio. Não disseram nada. Ninguém disse nada, e por primeira vez o silêncio
era silêncio e estava calado. Por fim acharam as palavras que os achegavam,
que os punham em contacto e agora nem tão sequer precisavam delas. Sem
mais demora colheram a pia, e depois de lhe dar a sua água, puseramse ao
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 146
caminho.
– Faltarnosá muito?
– Não sei, mas tanto tem, eu acho que poderíamos seguir ainda que fosse
por toda a eternidade.
– A mim dáme no corpo que não háde ser tanto, e só de o pensar já
parece que vos estranho.
Sabiam que ainda lhes aguardava caminho por diante mas ignoravam
quanto. Intuíam que não seria tanto quanto o que já levavam andado. Aquela
noite o carro rodou sereno, como se andasse de passeio. E aquela noite o carro
cantou; quiçá já tivesse cantado antes mas aquela noite os três homens
sentiram o seu musical rechouchio. Polo Pradonovo arriba, aquela noite as
cloucas calaram para espreitar o ranger daquele carro. Subiram polo caminho
das leiras da Igreja e viram como o centeio já agachava a cabeça, isso era
indicativo de que a espiga já estava carregada e os gadanhos já não haviam de
tardar em levar ali a seitura. A luz da noite não lhes permitia ver a cor daquela
messe tão granada, mas pola caída da espiga adivinharam que já iria tirando a
marelinha com algo mais de verdor lá no fundo da palha. Pararam um pouco à
beira da parede, e admiraram aquela abundância, e os três desejaram ser
seitureiros. Imaginaramse segando aquela leira de pão entre os três, e
calcularam quanto lhes levaria. Até chegaram a repartir os trabalhos:
– Tu serias o ateiro, Perfeuto, que polo corpo que tens bem se vê que se
che daria bem apanhar as gavelas… E ti Ovídio, a julgar por como és capaz de
dobrares o lombo, em fouce não haveria quem pegasse em ti… E eu, mesmo
para dar as vencelhas bem sirvo, ora que tampouco me amargaria segar, e
pouco se me poria para vestir os zagões e atar os molhos.
Co bom humor que os rondava chegaram às eiras do Penedo, deixando os
lameiros da Carrancova, e os nabais da Praça, à sua esquerda. Desde onde
andam arestora já quase se adivinha o começo da aldeia, e intuem que aquele é
o seu destino, quiçá o ponto final da sua andaina. Amanhã teriam vagar para
descobrir isso, mas agora é a hora de partir, não for que alguém madrugue
hoje, mesmo para ir à seitura, e os veja. E com boa sensação por primeira vez
os três homens marcharam a uma e polo mesmo caminho. Atravessaram a
Canelha do Fojo e subiram pola Tapada para as leiras da Burata, e ali
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 147
perderamse. Quando baixavam viram como a névoa ia subindo da Límia por
ali arriba; amanhã será dia de calor e de segada.
E tal como a névoa prognosticava, o dia veio ardente e os de Penacova
aproveitaram para deitar o centeio que ainda estava de pé; e se eles
desandaram um nada o caminho que levaram ontem à noite, teriam visto que
aquele pão que queriam segar eles já estava agora amedouchado no meio da
leira, mas não sem antes enredar ali um bom bocado da manhã aos seitureiros.
* * *
Os três homens chegaram juntos aquela noite, se alguém os tivesse visto
pensaria que eram viageiros que estavam de passo, seguramente a caminho da
Raia. Metialhes algo de respeito andar tão perto da aldeia; quando se iam
achegando avistaram as primeiras casas, logo de passarem o cemitério; eram as
casas dos do Penedo. Estremeceramse de pensar o que se passaria se alguém
os via, que iam pensar que eram? Se nem sequer eles estavam mui certos do
que pensar de si próprios, quanto mais se as gentes do lugar os descobriam
assim de noite e coa pia. Aquela incerteza dos ânimos durou só uns segundos.
Não tinham de que se preocupar, eles estavam a ser guiados por uma força
alheia às suas vontades e que os levaria aonde tivessem de chegar. Noutrora
teriam permanecido sujeitos à ideia do perigo, que lhes impediria de seguir.
Agora já são quem de saber que o seu poder é limitado, e portanto também a
sua responsabilidade; eles só são parte dum destino que os leva pola terra, e às
vezes até os arrasta, mas já não vão sem guia, não vão vagando sem rumo nem
meta no horizonte. Até as mesmas estrelas se ordenaram lá no céu para que
eles o entendam. Ora, paradoxalmente, estes três homens sentiamse mais
livres, apesar do grande peso que têm que levar com eles. Fazemno com
vontade, fazemno com aceitação, e como não, fazemno com amor. Por
conseguinte, fora temor, só deviam de ter muito tino como fizeram até agora.
À lua nova faltavalhe pouco para se estrear. A sua próxima fonte estaria
perto e seria a última, ainda que talvez não fosse esse o final. Vendo que a
aldeia estava tão cerca decidiram ir sem a pia até ao meio do lugar para ver se
estava tudo despejado. Atravessaram o caminho do Eido e passaram por onde
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 148
o forno, já desde ali viram o arco de meio ponto que anunciava a Fonte.
Achegaramse e ajoelharamse os três a um tempo para provar as suas águas.
Aquela não era a primeira vez que eles bebiam naquele manancial, ora sem
dúvida aquela era a primeira vez que bebiam juntos. Que bebiam a mesma
água. Repousaram sentados na pedra da beira esquerda e conversaram um
pouco, em voz baixa, não fosse que alguém os sentisse, das experiências
passadas que cada um tivera naquele lugar. E veiolhes a hora da partida antes
da fim da conversa, e falando marcharam sem trazer adiante a pia, que os
aguardou até à noite seguinte.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 149
Capítulo VII
A FONTE
Penacova, apesar de não ser uma aldeia lá mui grande, conta com uma
mitologia abundante e quiçá desproporcionada, difícil de manter viva à
medida que desaparece a sua povoação. Neste marco mitológico destaca a
Fonte como símbolo essencial do seu mito fundacional. Inicialmente, as terras
que pertencem hoje a Penacova estavam povoadas por gentes que se repartiam
polo vale em sete assentamentos diferentes, espalhados por Aguiar, a Pedrosa,
a Auguela, o Zebreiro,… posteriormente os assentamentos reduziramse a
quatro e finalmente decidiram juntarse todos e construir a aldeia conhecida
hoje por Penacova. Todas as vivendas se construíram inicialmente ao redor da
fonte; esse foi, e é, o lugar chamado O Meio da Aldeia, ainda que na
actualidade, dês que a povoação se foi alargando pola Fonteuceira fora, já não
seja o seu centro geográfico.
Sim, ali no meio de Penacova ergue a Fonte orgulhosa o seu arco de meio
ponto, e protege com ele os seus mais de dous metros de fundura. Toda ela
revestida de pedra até à mesma nascença onde abrolha a água com um
bulebule que só se pode perceber quando é esvaziada cos caldeiros para ser
limpada até que, como se fosse de prata, reluz o seu interior. Ela é a riqueza de
Penacova. Durante centos de anos abasteceu de água a uma povoação
inteira… gente, terra e gado. Ao lado do arco foi construída uma poça que
acada a água que lhe sobra à Fonte. Um reguinho talhado na ancha pedra que
os separa vai carrejando a água para a poça, onde sacia a sua sede a fazenda e
que é esvaziada, ceivandolhe o boqueiro para que a água saia a cachão, a rolda
polos vizinhos quando chegado o verão se reinstaura cada ano o reparto da
água, cada quem segundo os direitos de rega herdados por cada terra. Sempre
igual… “comprei esta mera e com ela as sete horas de rega que lhe
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 150
pertencem… hoje vem a mim a rolda, tapo às doze e ceivo às sete; atrás de mim
tapa o Maximino…” E aquele reguinho liso, afundado polo passo da água e
mais do tempo vai fazendo o seu trabalho. No meio desse rego há uma
cochinha mais funda onde bebem as crianças… “tu és mui pequena, ainda não
podes beber na Fonte, ajoelhate na pedra e bebe aqui na pipela” A Fonte era a
riqueza da aldeia, mas naquela sua fartura encerrava também os seus perigos.
As mães não se cansam de lho repetir às suas filhas e filhos… “À Fonte não te
me achegues, prendinha, que pode colherte e depois não tenho meninha…” E
as crianças tardavam em quererse achegar para beber olhando para a fundura
como sim o hãode fazer de grandes… e certo é que em toda a história
lembrada nunca caiu ninguém nela.
Louvada e temida; partícipe da vida mesma, mas também da morte se se
terçar. Salvadora. Abafadora de lumes que ameaçaram o lugar. Salvou casas e
palheiros, combarros e ainda leiras de pão. Infinda fartura que nunca na vida
estinhou, ainda que o seu caudal se visse afectado polas obras que o concelho
de Os Mouros impôs sobre a vontade da gente. Noutrora, o verdadeiro e
legítimo concelho de Penacova se juntaria e co seu pedâneo à frente, jamais
teria permitido achegar aquelas gábias tão profundas a que dessangraram
assim a Fonte. Mas agora sãoche tempos de água corrente nas casas e a da
Fonte só vai à mesa à hora do jantar, e já não é tão importante o seu caudal.
Ainda assim segue sendo visitada por todos os do lugar; incluso os da
Coanheira e os do Eiró, que têm fontes mais próximas, se vêm a servir dela
quando as suas no verão agostam. Mas ela, alheia ao passo do tempo, ou à
mudança de estação, sempre tem o mesmo caudal, e a mesma temperatura, o
que faz que se sinta mais fresquinha durante o verão, e mais borna no tempo
frio. Agora, quando os três homens da pia se arrimam adiante a beber nela,
eila frescura agradável.
Era a segunda noite perto da aldeia, e os três estiveram de acordo em que
antes de ir onde tinham escondida a pia deveriam dar uma volta polo meio do
lugar e comprovar que tudo estava tranquilo. Passaram ao lado da Fonte,
beberam, depois colheram o andante caminho do Penedo onde lhes aguardava
o início da travessia de hoje. Ovídio seguia a cargo do pinho e os outros
ocupavam cada um seu lado do carro. Caminharam um bocadinho mui a
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 151
modo, para evitar que o carro cantasse. O seu andar era tão passeninho que
nem sequer parecia que se movessem. Apesar do vagar do seu caminhar foram
penetrando na aldeia. Reinavam o silêncio e mais a calma. Ainda mal não
chegaram onde o forno, que está quase no cabo da aldeia, quando lhes pareceu
sentir vozes. Pararam. Espreitaram e depois achegaramse ao combarro onde
sempre fica algo de lenha das últimas fornadas e esconderam a pia e mais o
carro. Agora o forno não coze porque já vem o padeiro co pão à casa e a gente
não quer andar com esse trabalho de quentar e requentar. Ademais com tão
poucos como ficam para fazer pão, não dariam juntado lenha para manter o
forno. Agora o que se leva, em vez do pão centeio, é fazer ali enchentes e
foliadas quando chega a gente no verão. Assar ali uns cabritos ou uns anhos,
uns lagostins e mais umas empanadas… ainda que sempre há a que vem lá coa
encomenda do pão… “pois logo já que está quente deixaime meter um
pãozinho que já trago a massa levedada, e só me resta darlhe a forma aí no
tendal…” E os olhos de todos os presentes tendem com ela… ritual das suas
infâncias que jamais esquecerão. E apesar da fartura que se anda a cozinhar
todos ficam pendentes do humilde pão… “olha que vigia bem o pãozinho, não
se nos queime…” E esta é tarefa difícil desde que na restauração lhe meteram
os tijolos refractários para minguar o pavilhão que se fazia algo grande para tão
pouca gente. “Escaralharam o forno, assim como está não serve”. Haverá que
vigiar amiúde. A longa pá penetra no pavilhão e colhendo o pão no seu colo,
achegao fora onde os olhos das crianças, hoje medradas, comprovam que já
vai estando…
Noutrora cozia o forno a metade dos dias do mês, e o primeiro em sair
eram as bolas das crianças… “Hoje coze a minha tia Dorinda, e faráme uma
bolinha”… aquele dia sim que prestava a merenda… E prà festa… a de roscões
que ali cabiam! Todas as mulheres a bater os ovos nos grandes caldeiros de
zinco, e entrementes falaquefala. Que longo era o processo… e elas
batequebate e os seus homens quentaquequenta; e entre uns e outros iase
montando já ali a festa… “A ver se ides acabando de bater, que isto já o temos
quente e são horas de ir metendo…” Entretanto as crianças só tinham uma
cousa nas suas mentes… “que rematem, que rematem para empeçar a
lamber…!” E que longa a espera para meter os dedos no que sobrara ao encher
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 152
as formas… “mamã, já está batido?” “Logo, logo, já vai estando” … “e quanto
mais vai tardar…?” “Aguarda filhinha, aguarda, que há que ter mais paciência”
E assim era como as crianças aprendiam a aguardar. Assim iam depreendendo
co ritmo próprio das cousas.
Saber aguardar é um dos princípios, ou assim polo menos o definiria o
filósofo da Índia, que regem a vida em Penacova. Porque o da espera não se
dava só o dia dos caldeiros de interior doce da víspora da festa. Não, o de saber
esperar impregnava cada dia, cada hora, cada segundo da vida… “mamã,
tenho um buraco na ponta deste sapato, quando me vão comprar uns novos?”
“Pois quando venha a feira, …hoje estamos a primeiros,… pois por aí polo
catorze haverá que ir por eles a Ginzo” … “Tenho fome, quando vai estar o
jantar pronto?” “Traime uns guiços mais de lenha que já o imos apurar” E
assim se ia construindo a fortaleza interior. O mais difícil, e prova já definitiva
de madureza dum rapaz, era andar no monte co gado e aguardar sem comer a
merenda. Claro que primeiro viera o adestramento… “Papá, comemos a
merenda?” “Aguarda filha outro nada que depois o tempo rende e ainda nos
volve dar a fome” E a nena aguentava. E por fim, quando aquela hora
chegava… “Vais buscar o bornal ali ao salgueiro onde o deixámos colgado...?”
Ela não corre, que voa, e já parece que polo caminho vai saboreando os
bocados. Depois comerão a modinho, mentres falam do que comem, e mais do
bom que está aquele pão e mais o mimo que o acompanha… tantinho
toucinho ou um chouriço, ou o que houvesse, e ao remate se ligar de que
meteram uma onça de chocolate… ela colhea na mão e antes de comêla
debatese: “Se te como não te tenho, se te tenho não te como” e ao final dum
só bocado a chapa. E assim se ia construindo a habilidade que empapa todo o
fazer dos do campo: a espera. Saber esperar.
O mestre hindu ainda iria mais longe e afirmaria que esta nena, que tem
que aguentar as ganas de comer mentres passa o tempo que irá vagarinho,
olhando como pasce o gado, hoje no monte, como o próprio Siddhartha,
praticará as três virtudes do sábio: esperar, jejuar, e meditar… e quiçá não lhe
falte razão, mas quem tem vagar para pensar nessas cousas agora…?
Os três homens da pia, após de dissimulála coa lenha, tiveram também
que esperar para indagar as origens daquelas vozes que pareciam vir do fundo
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 153
do lugar. Narciso, caminhando acachapado pola beira das meras da cortinha,
achegouse à Fonte e sentiu que as falas vinham de mais longe. Eram umas
vozes procedentes da rua; o seu soar era de preocupação mas não de
desespero. A curiosidade levou a Narciso a achegarse pola beira de atrás das
casas para as eiras de Baixo; ali, arrimandose à parede, foi avançando polo
lateral até que foi quem de entender o que diziam as falas… Não se passava
nada grave, eram os do tio Taranheira, que lhe paria uma vaca; Narciso
espreitou um pouco e regressou onda os companheiros a informálos do que
se passava. Decidiram que seria melhor não achegarse mais de momento e lá
ficaram, ao lado do forno. Depois foram procurar algo de lenha que tivesse
folha para cobrir melhor a pia e que não se visse nada; mas apesar de que tudo
estava bem coberto decidiram que um deles ficasse a curar dela. Ovídio
ofereceuse voluntário, e nenhum dos outros o deu convencido de que ele
precisava descanso, que levara maus dias. Ele insistiu em que a ele era a quem
menos lhe iriam topar a falta durante o dia, e pediulhe aos companheiros que
se fossem tranquilos, que ele ficaria ali deitado debaixo do chedeiro numa
pouca palha, e teria vagar de descansar. Marcharam. Ovídio ficou só para o
resto da noite e mais o dia seguinte.
Pola manhãzinha acordou co cantar dos pássaros que andavam a chamar
polo novo dia. Ovídio sentiuse privilegiado por gozar daquele concerto
matutino, e até se ergueu e se arrimou à parede do combarro para olhar como
por trás dos penedos da Rainha Loba chegavam as primeiras raiolas de sol.
Respirou fundamente e deixou que aquele ar da manhã lhe acarinhara os
cabelos e a face. Durante o dia assomou muitas vezes o focinho àquele seu
miradoiro, sempre com escrupuloso tino para não ser descoberto. Desde ali
pôde ver os andares da gente de Penacova. O Primeiro que viu foi uma moça
que vinha com uma jarra de vidro a buscar água à Fonte. A moça chegou,
ajoelhouse e bebeu; depois encheu a jarra e marchou de volta. E viu fazendas
passar e beber no poço da água, e viu gentes e mais cães, e a carrinha do
padeiro que passou para o Penedo a deixarlhe ali o pão, e depois foise a
Penalapa, onde só fica um vizinho, e dali a um bocado viuo passar lá por em
riba, polo caminho do Gorgolão. E Ovídio aguardou, no mesmo sítio onde
noutrora aguardavam as crianças enquanto desesperavam co seu olhar nos
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 154
caldeiros e relambendo os bicos. Aguardou, e teve assim maré de praticar essa
arte tão típica do lugar, a que a noite lhe devolvera os companheiros.
Não se fizeram rogados, não essa noite; Narciso e Perfeuto vieram cedo e
com eles cada um carrejava seu bornal com merenda. Ovídio, no alto da
moreia da lenha, tal que num trono sentado, comeu como um rei. Depois
aguardaram um bom pedaço. Tempo não lhes faltava, porque ainda que a lua
estava pronta a se encetar, a Fonte estava ali mesmo e em nada de tempo
chegariam até ela. À pia ainda lhe ficava água da que lhe botaram no Jardim,
logo não havia apuro. Havia que assegurarse bem primeiro de que tudo
estivesse preparado para dar esse passo em direcção do meio de Penacova.
Bem cruzada a meia noite meteramse por entre as casas e percorreram a
aldeia com muito sigilo. Não se ouvia nem um chio. Todos dormem. Na beira
dalguma casa até sentiram roncadas. E um cão de acolá, perto da Fonteuceira,
que ladrava sem descanso, depois ficou também quedo. Tudo ficou quedo;
tudo menos eles, que volveram a colher a pia e começaram a sua andaina a
caminho da Fonte.
Cem metros escassos de distância que lhes levou mais de duas horas
andar. Iam tão a modichinho para que o carro não cantasse que apenas davam
desbastado. Por fim chegaram à Fonte. Deramlhe água a fartura e eles
beberam de novo. Depois, adivinhando que a igreja era o próximo destino,
calcularam o que lhes levaria chegar com aquele passo que traziam. A distância
entre a Fonte e a porta do sagrado vinha sendo umas três vezes a que
acabavam de atravessar desde o forno. Não podiam tentar nada naquela noite
que ia mais de mediada, precisavam bem uma inteira. Buscaram o sítio mais
ajeitado na direcção desejada para deixar ali a pia escondida. Encontraram,
detrás duma casa velha, um palheiro de erva seca acabado de fazer,
exactamente ao lado dum sabugueiro. Por detrás da parede na que se afincava
o palheiro, e arrimado ao sabugueiro, havia sítio avondo para esconder a pia e
mais os trebelhos. Esconderam bem todo, desde fora não se podia ver nada,
nem sequer adivinhar que houvesse ali cousa nenhuma. Aproveitaram o tempo
que lhes sobrava para achegarse à igreja e ver se as portas estavam boas de
abrir ou como era.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 155
A porta pequena precisava duma chave, mas a grande podiase desfechar
desde dentro movendo o enorme passador que se mete por um buraco feito
adrede na parede. Rodearam o edifício, indo pola esquerda do sagrado, e
abriram a janela que dá à parte traseira, e que fica por dentro algo alta mas por
fora a rés do chão. Desde ali empuxaram a folha da janela, e esta cedeu um
nada. Depois Dom Narciso, lembrando que por dentro, no peitoril, podia haver
trapalhadas, meteu a sua mão delgada e tirou para fora o que havia… uma
copa de vidro com tampa, na que, dês que desaparecera a urna do altar, se
guardam as hóstias consagradas que sobram; uma jarrinha diminuta, também
de vidro, para carregar água da fonte para misturar co vinho de missa; e poucas
cousas mais. Livre o passo de atrancos, foi Perfeuto o encarregado de baixar
por dentro da parede e ir às apalpadelas por entre as bancadas até dar coa
porta grande e comprovar que era fácil de abrir. Desfechou o passador e assim
comprovaram que tudo estava pronto para dar o passo definitivo à noite
seguinte. Perfeuto fechou de novo desde dentro, e caminhou até onde estava a
janela para esgardunhar pola parede arriba para fora, ali os outros aguardavam
para darlhe a mão e mais acotegar as chilindradas primeiro de fechar a janela,
não fosse haver um enterro ou algo e lhe topassem a falta. Depois regressaram
onde o palheiro que escondia a pia e os três estiveram conformes com que
ninguém iria ali rebulir detrás; este era um palheiro novo e a gente ainda
andaria a gastar o refugalho do velho. Por conseguinte, não era preciso ficar ali
de guarda durante o dia, nem sequer prudente, já que estando no meio da
aldeia alguém os podia sentir remexer e descobrilo tudo. Marcharam cedo. A
noite seguinte será uma noite longa, uma noite na que haverá que ir devagar.
* * *
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 156
informação. Penacova era um sítio tão pequeno que eles não podiam
desperdiçar o testemunho de ninguém, por conseguinte enquanto viam a
alguém já se apuravam a pilhálo, e claro, isso não lhes funcionara, e ainda por
riba co da camuflagem… Talvez as gentes daquele lugar não respondessem
bem quando estavam na presença de desconhecidos, e por isso a cousa não
fora adiante. Ou pôde ser que lhes tocaram primeiro todos os maus, e agora os
que lhes faltavam por ver eram os que haviam de falar. Algo lhes dizia que não
havia de ser assim, mas eles, sem desanimarse, quiseram provar mais uma
vez. – “Se desta volta não achamos nada que valha a pena, não perguntaremos
mais, e que seja o que tenha de ser.” O detective chefe declarou assim ao seu
companheiro o plano de acção quando estavam já no auto a caminho da
aldeia, e prosseguiu “Riba, hoje a cousa vai ou racha” Riba ficou quedo, não
abriu o bico, em parte por não estar seguro de entender bem o que o seu
companheiro queria dizer, e em parte porque apesar de que as palavras se
dirigiam a ele, a entoação coa que se apresentavam indicava que não era assim,
e que não era precisa resposta alguma.
Chegaram, arrumaram o automóvel na eira da Festa. Não viram a Ciro.
Colheram o caminho que baixa para a Fonte, ali torceram à direita para o meio
do lugar, neste trecho não se cruzaram com ninguém. Quando se iam achegar
ao cruze que vai para o Eiró viram a um homem debaixo dum corredor. O
homem acabava de pousar algo no chão e dirigiase à porta da corte,
presumivelmente para desfechála. Ao detective deulhe no corpo que aquele
homem andava a fazer algo e quiçá não tivesse vagar para lhes dispensar a eles;
porém, e trás ver que pola aldeia não andava muita gente, decidiu tentálo.
Aquele homem pouco mais teria de sessenta e tantos, seria moço feito quando
ocorrera o da pia e ainda era o suficientemente novo como para lembrar a
história. Justamente o homem que tinham andado a procurar todos estes dias.
Agora faltava descobrir se lho quereria contar, ou se tinha tempo, ou… já se
verá! Apuraram o passo e desde a distância já lhe foram avisando da sua
intenção de falar com ele.
– Eh…! Bons dias senhor…!
O homem soltou o fecho da porta e em lugar de desfechar deu a volta cara
a eles.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 157
– Bons dias, logo, para vocês também.
– Mire, você seguro que já ouviu falar em nós… somos os que vimos lá de
Ourense para perguntar sobre a pia que havia em tempos aí na igreja e que
desapareceu.
– Ah…! Mui bem, mui bem; sim já ouvi pra aí algo.
E o homem volveu botar a mão ao fecho, e esta vez sim desfechou e
empuxou para trás a porta.
– Mas, seria você tão amável de contestarnos a umas perguntas sobre o
assunto da pia?
– Como não, vocês perguntem, que eu enquanto vou jungindo, que senão
depois fazseme tarde.
O Manuel, mentres falava, ia tirando a tranca, que afincada num buraco
feito adrede na parede sujeitava por detrás a outra folha da porta. Depois
empurroua coa mão até que se sentiu bater contra a parede do cortelho. Ali,
ainda deitadas, havia duas vacas grandes, uma amarela e outra mais arruivada.
Eles fizeramlhe uma pergunta, mas o Manuel não a escutara, e seguiu a falar.
– Vá, bonitas, que há que se erguer, que a manhã já vai logo mediada! – e
olhando para os agentes acrescentou – Hoje fezseme algo tarde para jungir
porque me enredei pra aí algo mais da conta coa esterroa duma mera de
batatas, que as estavam a comer as ervas e já davam vergonha. Elas –
referindose às vacas – já não estão sem nada, comeram tantinha erva, e agora
só jungo para levar o carro à poula onde tenho umas gavelas de estrume já
roçado, e mentres eu carrego elas têm vagar de pascer no lameiro. E depois, ao
meiodia, trazemos o carro dos tojos para casa, que mesmo estão as cortes a
chamar por eles. Neste tempo, depois de tanto estercar para as sementeiras,
ficam as cortes varridas, e a fazendinha sem cama, e agora que já metemos a
erva toda, há que estar prontos para a carreja, que já logo vão lá oito dias que
rematámos a sega, e como dizia o outro… volta feita não tem pressa… Mas
perdoem vocês que eu falo muito, e a vocês isto seguro que lhes aborrece…
Então, por primeira vez dês que andam coas suas perguntas por Penacova
adiante, o Riba abriu a boca e apurouse a dizer a escape:
– Não, disso nada, todo o contrário, pareceme mui interessante o que
você conta do seu trabalho…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 158
Ainda o Riba não rematara a frase e já se estava a arrepender de a ter
formulado… pois supõese que ele não deveria ter dito nada, e muito menos
aquele comentário tão determinante para a direcção da conversa. O detective
mais velho, que era intermédio em idade entre o seu companheiro e o Manuel,
não teve outro remédio que mostrar o seu acordo, não fosse ele ali fazerlhe
àquele homem, que quase poderia ser seu pai, um desprezo. Ora, por ganas
não foi, porque mália a graça que lhe fazia a ele estar ali aos viosbardos
escutando àquele homem porolar sobre a vida do campo. Nem que ele não
soubera como era a cousa. Ele procedia das terras do Deza, duma aldeia
pequerrecha na que lhe tocara lidar até que aprovou os exames para polícia.
Malditas as ganas que ele tinha agora de perder o tempo com aquelas
parvadas. Olha que não roçara ele tojos antes de ir para Santiago àquela
academia que tanto lhe custara a seu pai pagar. Seu pai também tivera vacas, e
bem delas por certo, mas agora já só ficam três ou quatro… ele já não está
seguro, há tanto tempo que não vai por lá, e dessas cousas polo telefone não
fala. Claro que as de seu pai eram leiteiras, não como as que ele via agora na
corte do Manuel, que são galhardas e fortes. Muito ao seu pesar o detective
teve que reconhecer que aquelas eram uns formosos animais, e cos seus
correões enramados para lhes colgar as suas campainhas…, não, não levavam
chocalhos… E assim foi como o labrego que adormecia lá nas profundidades
dos miolos do polícia acordou de súbito, e sem saber como, disse:
– Se quer eu possolhe ajudar, que a mim isso de jungir ainda não se me
esqueceu de tudo.
– Ai sim? E logo donde vem sendo você? Se não é muito perguntar…
– Da comarca do Deza, mesmo à beira de Lalim…
E enquanto eles falavam o mais novo olhava para o seu chefe, e não
acreditava no que via… mesmo semelhava outro; por primeira vez viu como a
cara do seu superior se relaxava enquanto lhe botava a mão àquele jugo, que
em olhos do catalão deveria ser levado a um museu… que peça bem talhada na
madeira, e polida polos anos e as mãos que tantas vezes a colheram para, sobre
as molidas, pousála na cabeça das vacas e depois atar… E o labregodetective
escutouse a si próprio perguntando polas sogas que, segundo disse o Manuel,
ia cosendo seu pai, que para isso ainda se arranjava… e que bem cosidas estão!
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 159
Coas polegadas em cruz, com uns malhões delgados para que não mosseguem
ao animal na cabeça. Ainda que só lhe toquem aqui onde nasce o corno, mas
esta éche zona delicada…
– Ai, vá que o é! Ainda uma vez um homem daqui deste lugar, vendose
acurralado por um boi que andava ceive pola veiga de Sampaio, não teve outro
remédio que reporse cara a ele… e meteulhe tal cajadada, – dantes gastavase
muito o cajado – justamente a rentes do pêlo, onde se apegam o coiro e o
corno; e o boi caiu ao chão como um trapo; depois ergueuse e marchou meio
desorientado… Mas o Emílio erache um homem que… amiguinho, havia que
tirar o chapéu… Dantes aqui havia muita gente digna de admirar…
Riba estava determinado a não intervir mais, já bastante tivera coa sua
estreia momentos antes. Ora tampouco era preciso já, porque o pobre
detective de Lalim estavase vendo acurralado em si mesmo… e o labrego, que
tantos anos estivera lá dentro dele agachado, sem causar maiores
desassossegos, estava agora tirandolhe o mando e dirigindo; ele próprio se
pasmava quando escutava os falares que saíam da sua própria gorja, até lhe
mudara o sotaque e falava agora com voz menos afectada e mais harmoniosa.
O seu companheiro teve que torcer as orelhas com as mãos para adiante para
entender o que o seu chefe dizia, enquanto seguia admirado pola
transformação daquele homem. Que dianhos lhe tinha passado para mudar até
a fala? Como ia o Riba adivinhar que o seu chefe levava um labrego dentro, um
labrego que aquele dia colhera as rédeas e dirigia o fazer. Com que
naturalidade se desenvolvia hoje o seu chefe, com que serenidade de carácter;
e por primeira vez o frio respeito que sentira até então por ele trocouse em
afecto. Mas lá dentro do seu superior não tudo era tão fácil; o polícia, que
queria só passearse pola cidade, revolviase como as serpes e vinhalhe roubar
do prazer que tanto lhe estava a prestar.
– Temos tempo o que quisermos, pois se tal vamos com você e contanos
polo caminho – disse o detective enquanto seguia a cruzar a soga por riba da
cabeça da Marquesa.
– Isso estaria bem, que eu gosto da companhia.
– E eu também – dissera o Riba, mas ele próprio se deu conta de que os
outros não o ouviram, ainda que a ele tanto lhe tinha, ele sentiase afortunado
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 160
de estar ali presenciando a arte de jungir. Uma arte da que ele só ouvira falar, e
não amiúde pois este ofício que de tanto durar semelha eterno, não só para
quem o observa senão para quem o pratica já passou; este ofício já passou. O
próprio Manuel não ignora isto…
– Metelhe um bom saculeão co ombreiro aí por baixo mentres apertas a
soga, que essa Marquesa éche uma condenada que torce o pescoço a
propósito, e se não repara um sempre háde ficar folgada. Em câmbio, a esta
Toura é uma ledícia jungila… mira, é melhor que tu te passes para este lado e
eu me encarrego da Marquesa que já lhe tenho o falho tomado… pois nem tem
jeito que te deixe a ti o pior trabalho quando aqui hoje és o meu convidado.
O Manuel passou por trás do detective, ao que quiçá deveríamos começar
a chamar Rafael, pois esse é o nome que lhe puseram seus pais, ou senão
Canchés, que era o nome que lhe deram de pequeno na aldeia… e tudo por ter
as pernas um nada torcidas, cancheadas no meio para fora. Depois foramlhe
endireitando e já ninguém lhe chamava assim, ainda que agora mesmo ele
pouco se teria importado. O Manuel, que quer ser educado, passou por trás
dele e mostroulhe como tinha que fazerse coa Marquesa, que era algo pícara
e escapava da juntura. Em câmbio, a sua companheira, que tinha a força dum
boi, era outra cousa. A Toura era doce para o amo, que podia levála como se
ela falara…
– Esta até se teve que afazer a que lhe chamáramos Toura, pois também
era Marquesa quando a mercamos lá em Gomesende. Compramolha ao tio
Justo, e inda agora quando a vê lá no monte se se juntam os gados, ele chamaa
Marquesa, e ela bem que cho conhece, apesar do novinha que era quando se
veio para onda nós. Daquela já vinha amansada, e olha tu que também a
amansaram à direita, como estoutra que nós tínhamos na casa; e tivemos que
ensinar à Toura, que era mais nova, a ser jungida à esquerda, e parece que não
lhe custasse aprender. E agora pode ser jungida às duas mãos, e digote eu que
com poucas vacas se pode fazer isso.
– Olha, que bem sabe jungir você, a mim já se me acabava a soga e a você
ainda lhe dá para outra volta.
– Não faço favor nenhum, éche o ofício que tenho, e não me amarga
tampouco ter que fazêlo.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 161
E enquanto dizia isto ia colocando o temoeiro nas mossas do meio do
jugo, nesse espaço que fica entre as cabeças das vacas, e que as distancia;
depois mandouas ir de ceiacú e elas recuaram, sem ele precisar de aguilhada,
até que estiveram postas cada uma pola sua beira, rente ao carro. Então o
Manuel ergueu o pinho e afincouo no ombro, para logo o amarrar ao jugo co
temoeiro, mentres dizia…
– O carro está preparado, agora a ver se a mulher nos dá a merenda por se
nos desse algo de fome… “Aurora, olha que eu já che estou pronto pra me
ire…! Trazesme logo esse bornal abaixo se fazes favor…? E mete algo aqui pra
estes amigos…”
A seguir das palavras do Manuel baixou ligeira a Aurora, poderseia dizer
que não lhe dera tempo de cumprir coa sua encomenda. E assim era, ela já
tinha a merenda pronta e por triplicado para quando ele ordenar de marchar.
Ela escutara a conversa e já ia por diante do planeado por o Manuel e os
forasteiros.
– Olha que cho meti neste de material que é algo mais avantajado do que
o que levas a cotio para ti só.
E enquanto falava alongou o braço, desde o penúltimo banço da escada,
achegando o bornal para o seu homem. O Manuel colgouo ao ombro e
dedicou um sorriso à sua mulher. Os dous forasteiros saudaram à mulher e
deramlhe as graças por pensar assim neles. Ela, sem rematar de baixar a
escada, respondeu os seus saúdos e disse “não se merecem” O Manuel chamou
a jugada adiante, e sacaram o carro da corte. Rodou pola rua do Eiró e
dirigiuse ao caminho das Lamas do Santo. O Manuel e o Rafael iam diante
conversando, o Riba ia detrás à espreita. Chegaram à poula e soltaram.
Enquanto as vacas pasciam, em baixo no lameiro, eles carregaram o carro cos
tojos. Tinha razão Manuel, não eram muitos. Depois puseramse à merenda.
Sentaram à sombra do carvalho, evitaram a do vidoeiro que dizse que não é
tão sã, e entre bocado e bocado foram falando. O Rafael já se esquecera
completamente do detective e o Riba seguia a observar.
– Estou seguro de que tu com esta jugada já tens carrejado mais grandes
carros que o que hoje te ajudamos a carregar…
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 162
– Pois não te enganarias, que com estas duas já tenho carregado mais do
que me daria o tempo para contar…
E o Manuel contoulhes das valentias da sua jugada. Dos carretos de
lenha que trouxeram este mesmo ano da decota de uns carvalhos das touças do
Castelar. Contoulhes do muito que ele era quem de meter no carro duma vez,
e do bem que o fazia cantar… “não podias nem andar cem metros sem untar o
eixo… não se fosse a queimar de tanto fretar contra das treitoiras… e ao o untar
sentias como o unto rijava tal que se o rustriram numa caçoula” Ao Manuel
enchiaselhe a boca falando do valentes que eram as suas vacas, sobretudo a
Toura, que já vencera a dous bois cos que tinha lutado… “e isso há mui poucas
que o façam”… e que em toda a comarca não havia outra que se pudesse
igualar com ela…
– Pois é, estas duas pode que sejam a minha última jugada… mas
enquanto eu viver delas não me heide desfazer… ainda que nos façamos bem
velhos…
– E logo não tens filhos que continuem coa lavoura?
– Não homem, não. Tenho um rapaz que se marchou para Alemanha
quando era novo, esteve lá alguns anos e fez dinheiro. Agora voltou mas para aí
em Ginzo e disto não quer saber nada… também como não precisa… e
ademais se ele vier gastaria só o tractor, assim que quando eu morra tudo
morrerá comigo…
O Rafael encherase de mágoa, mágoa de que todo aquele mundo que ele
hoje revivera fosse desaparecer… E quem era ele para falar, se tinha um capital
de primeira lá no Deza abandonado. Ele não era quem de dar exemplo a
ninguém…
– Deve de ser bem duro não ter quem lhe possa herdar a um no ofício.
– Podes estar bem certo, e senão perguntalhe a teu pai, já verás o que te
diz.
Aquela frase última do Manuel cravouse dentro do Rafael, que lembrou a
conversa que não fazia ainda muito mantivera com seu pai, que seguia coa
teima de que se tinha que ir morar mais perto e botar mão da vida… que ele já
não defendia para a granja e os lavradios... E desde tão longe, desde quase a
mesma beira da Rousia, por fim recebera ele a mensagem das palavras de seu
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 163
pai. Agora vê que eram as palavras dum náufrago, e não as dum pai caprichoso
que o quisesse controlar a ele… Que mal entendera ele o seu velho. E que bem
lhe fizeram as palavras do Manuel, até se esquecera da pia. Agora, ao a lembrar
de novo, a Rafael entralhe a curiosidade; mas é uma curiosidade de labrego
que quer saber como foi que se sacou daqui, e não uma ânsia profissional de
detective. Lançoulhe uma pergunta a Manuel de tal jeito que ele não a
pudesse rejeitar:
– Qual dirias ti, Manuel, que foi a cousa mais pesada que viste carregar
num carro em toda a tua vida? – O Manuel sorriu e disse…
– Já vejo por onde vais, tu queresme levar à pia…, mas não che é cousa
tão fácil de explicar…
– Pois homem, aqui entre nós, devo admitir que tenho as minhas
curiosidades por saber como se deu sacado da igreja e mais do sagrado.
– E isso mesmo me pergunto eu… e deixame dizerche que ainda que eu
não sei nada, não tinha pensado contarvos cousa nenhuma, mas tu caralho…,
ganhaste a minha confiança, e agora não tenho outro remédio que responder
eu também. Sei que posso confiar em ti. Ademais já che disse que não se sabe
bem o que se passou… e tampouco ninguém presta já atenção a estes falares.
E Manuel foilhes contando como crê ele que tiveram de fazer para sacar
a pia da igreja, porque tanto ele como os outros vizinhos tinham a sua teoria
sobre o roubo bem elaborada e aperfeiçoada nas muitas conversas e
pensares… E com uma mistura de raiva e triste pesar polo acontecido,
contalhes como teve que ser de noite quando a levaram… porque ninguém
escutou nada… como tiveram que ser vários os ladrões, pois é uma pia mui
grande e mui pesada… como ninguém sabe quem foi mas toda a gente os
conhece, e como a ele lhe enfastia que esses moinantes sigam passeandose
entre a gente alheios à justiça e aos castigos… Rafael perguntoulhe quem
foram logo os que a levaram…
– Isso ninguém o sabe… mas todos sabemos que foram eles… quem ia ser
mais que os curas?
– Mas ainda que fosse o abade… alguém lhe teria que ter ajudado…
– Pois ajudariamlhe os outros, que os curas também têm força… e não
fazem favor… co mantidos que estão os condenados…! E bem seguro que ali
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 164
onde o transformador da luz um camião estaria à sua espera para levála…
mesmo ali onde entra o do Pito para carregar os bezerros quando há que
empontálos para o matadoiro…
– E para onde a levariam?
– …como tenho que mandar eu a uma bezerra, filha da Marquesa, que
agora já não me atrevo de a amansar, e se souberas o que me amarga… mas
assim é a vida… uma almalha tão boa, parecida à mãe. O pai élhe de
Ameixeiras… aqui em Penacova já não há boi para botar às vacas, quanto
mais…
– E porque levariam a pia?
– E eu que che sei filho…, levariamna para a vender como fizeram cos
santos e as outras cousas, que havia muitas e bem delas, e agora está a igreja
vazia… e a parva da gente, que é uma ignorante, começando pola minha
Aurora, eia, a lhe dar aos curas para que comprem isto ou aquilo… Eu se fosse
vós falava co abade a ver se se lhe escapa algo… que ele saber temno que
saber.
– Co senhor abade já falámos, fomos lá o outro dia mas esse tal Aurélio já
não lhe anda lá mui bem da memória, e não nos soube dizer cousa com jeito.
– Não, se o Aurélio não estava aqui aquela temporada. É certo que já tinha
levado os altares e os confessionários e mais os santos e as roupas todas que
deixara o seu predecessor. Mas a pia não, a pia levouse estando aqui o
Narciso, que viera uma temporada a substituir ao Aurélio, que depois de
roubar à igreja dizse que não se sentia o homem lá mui bem; teria remorsos…,
afinal de contas tinha que seguir a mentir cada dia desde o altar e predicar o
“no robarás” a uma gente que seria incapaz de roubar nem o valor duma
agulha; e a gente terlho que aguentar… Mas os remorsos não o mataram, não
tivesses medo, e depois de ali a nada ainda veio de segundas para aqui e
tivemos que o aturar até que por fim se marchou de vez. Mas a pia já não estava
quando ele veio de segunda… claro que isso não impede que fosse obra dele,
os curas sabem também operar desde a distância, afinal de fontas ele seguia a
ser o mandaricas da freguesia ainda que o Narciso dissera os responsos por
ele… Não penso eu que o tal Aurélio se deixasse tirar assim um caramelo da
boca… se calhar é que não se atrevia; porque de ali a logo de levar os altares e
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 165
todo o demais, tratou também de levar o homem de pedra que marca a hora co
sol lá no arranque do campanário. Mas então o Emílio, o mesmo que tombara
ao boi coa sardoada, disselhe: “se lhe põe você a mão em riba ao homem de
pedra não volva subir a Penacova para dizer a missa, porque não baixa”; e
daquela bem seguro que artelhou outro plano para asegurarse de que não lhe
botassem a ele a culpa…
– E não protestaram vocês… nem nada?
– E a quem lhe íamos reclamar? Quem nos ia escutar…? Graças se não nos
botavam as culpas… os curas têmche estudos e sabemse cobrir bem para não
ser descobertos… e ademais conhecem à gentinha e actuam como o lobo que
sabe por onde vai a vezeira… Eu era novo daquela, acabava de casar e tinha à
mulher esperando um filho… e já não lhe pude pôr Dario naquela pia. Todos
ficamos danados, mas então não sabíamos mais, e fizemos o único que
sabemos fazer bem por aqui… aguentar… E olha que se nos levam feito quatro,
e não só os cregos, não… Ora isso sim, eles levam a palma das falcatruas.
Enquanto escuta, pensamentos pouco benévolos para cos ladrões das
igrejas ocupam o pensamento de Riba… e isso que ele não sabia até onde
podia chegar aquele fada do Aurélio, quem uma vez no enterro dum moço
novo de Ameixeiras se atreveu a dizer que “Deus escolhia a quem pagava a
pena salvar e a quem não… e que havia que ser mui bons para poder gozar de
tal privilégio…” E mil merdas mais saíram ainda cagadas pola sua boca
enquanto Ameixeiras se tinha que despedir daquele moço e entregarlho à
terra… Um moço que não chegava aos vinte anos, são e forte, a quem o Minho
coas suas trampas em forma de remoinhos arrancara dos seus pais, e dos seus
amigos, e dos seus vizinhos, e de nós todos… E vem o lobo do Aurélio e faznos
sentir de novo desprotegidos, indesejáveis nos olhos de Deus e impotentes no
nosso destino… e todos sabem que o disse porque o moço estavase deixando
medrar a barba e já não ia pola missa e também depreendera a falar de
dignidade e de justiça, e de respeito, e de direito a pensar por nós mesmos… E
no seu enterro vem a animália do Aurélio e coa sua cruenta falta de piedade
derriça nos corações dos presentes como fera na carniça… enquanto à gente
lhe começa a ferver o sangue e cheia de rábia sai ao átrio e debatese em que
fazer… Uns queremlhe ajustar as contas mas outros os refreiam, e uma vez
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 166
mais, a gente faz o único que sabe fazer bem: aguentar, aguentar e dizer
amém… Se Riba chegasse a saber isto… mas ele, como havia de o saber? E o
reganho que sentia foiselhe dissipando quando ficou de novo prendido nos
falares do Manuel…
– E logo então já perdestes a esperança de a volver ver?
– Eu não acho que a possa já ver em vida, mas isso não quita para que
chegue um dia em que os homens se tornem civilizados e aprendam a respeitar
que as cousas têm o seu sítio, e que a esse, e a nenhum outro, pertencem, e
ninguém lho deve usurpar nem mudar, nem… mas isso são os meus pensares
quando me colhe para aí o sentido, abofé, como penso que antes do fim do
mundo a nossa pia háde volver ao seu sítio, ainda que alguns já não o dêmos
acordado…
– Pois que esperanças tão honoráveis tem você para o ser humano…
– Não sou eu só o que cavila nisso; aqui entre nós, heiche dizer que em
Penacova não há pessoa de mais de trinta e tantos que não tenha a esperança
de que um dia a pia volva.
– E porque ninguém nos quis falar no tema quando andámos a perguntar?
– Pois em parte porque não há muito que dizer, e ademais éreis uns
estranhos… agora eu já vos conheço, mas tudo leva o seu tempo… isto éche
como todas as cousas, por mais que te mates, e corras, num mesmo dia não
podes juntar a sementeira coa sega. E também em parte porque a gente não
gosta de lembrar as desgraças que se levam passado… assim polas boas, sem
que seja por uma boa razão…
– Ora, nós tínhamos uma boa causa, nós também buscávamos a pia.
– E para que a buscáveis, se se pode saber…? Acaso a ides retornar aqui ao
seu sítio?
– Não, nós nem sequer sabíamos que este era o seu sítio…
– Pois aí tens a tua resposta, não lhe dês mais voltas. Vós andáveis ao
vosso, e nós ao nosso… E digo eu, quando será o dia que andemos todos para o
mesmo sítio? Porque assim não chegamos a nenhures, já o vistes vós
mesmos… e aqui já começamos a estar fartos…
Produziuse um silêncio trás do qual Manuel ergueu arriba e disse: – “Já
vão sendo horas de se pôr a andar!” Não se sabia se se referia a que já eram
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 167
horas de ir jungindo ou se se estava a referir a esse caminhar da gente para um
mesmo fim. Ou quiçá tudo fosse parte duma mesma cousa. Tangeu as vacas
para arriba, jungiram, levaram o estrume à casa. Manuel insistiulhes muito em
que ficaram a jantar… mas Rafael disse que não tinham nada de fome, que
depois do bom almoço que ele lhes dera já se escusava jantar… que lhe
agradeciam o convite mas que deveras não podiam… e que já passariam outro
dia que lhes ligara de vir a Penacova.
– Pois logo tomovos a palavra e aqui vos aguardo; cada quando que
venhais sereis bem recebidos. Esta casa e o que há nela estará ao vosso dispor e
ao de quem convosco tragais.
Agradecendo a amizade coa que o Manuel os despedia marcharam para o
carro. Como sempre, o mais velho era o que guiava. Quando já baixavam da
Ranha, Rafael disselhe a Riba – “Hoje, se ti não tens outro compromisso, em
lugar de parar na cidade vamonos chegar até às terras do Deza, que a mim já
me vão sendo horas de dar por ali uma volta” “Irei com sumo gosto com você”
“Pois logo não se fale mais, e podesme tratar de tu, que eu não sou tão velho…
poderíamos ser irmãos… e hoje voute ensinar uma terra bonita de verdade…
uma das zonas mais formosas que há no mundo… já verás, já”. E marcharam a
caminho das terras do Deza; nem sequer se acordaram de parar em Ourense.
Não volveram tampouco por Penacova.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 168
DESCOBRIMENTO
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 169
e o sabugueiro, vêem estar a sua pia apoleirada no chedeiro, tal como eles a
deixaram. Quase querem correr e abraçála, mas em lugar disso vãose
achegando e…, como casualmente, com um braço rodeiamna dissimulando
um meio abraço e sentindo um abraço pleno. Apesar do muito que tinham
avançado todos, algo parecia interporse impedindolhes exprimir o que
sentiam. Alegraramse de terse apercebido dos seus próprios sentimentos,
ainda que não soubessem como mostrálos ante a pia. Era como se ela
conhecesse algo mais deles, algo que eles não lembram, e que faz que se vejam
como meninhos, como meio despidos na sua presença. Mas faltava tempo por
andar, quem sabe, talvez dariam atingido essa sensação que agora lhes estava
restando intensidade à manifestação do seu sentir. Se quadra eles não eram tão
merecedores como pareciam ser. Ainda faltava uma jornada para ganhar o que
ficava por conseguir. Uma jornada. Coa esperança nas suas olhadas saíram a
percorrer o lugar. Tudo semelhava tranquilo, deixando adivinhar que as gentes
andariam já a dormir. Estamos no tempo da carreja, e toda a gente sabe o
moídos que andam os corpos. Chega co que se háde madrugar à manhã. Antes
da rompida do dia já vão os carros a caminho das leiras onde aguardam os
medouchos e as rodas feitos cos molhos segados e atados. Tudo háde ser
carrejado num dia, e que não chova. A ninguém se lhe ocorreria irse dormir e
deixar a meda aberta e sem rematar. Uma jornada, estes labregos, como os
homens da pia, só contam com uma jornada. E como os deles, os seus cálculos
tinham que ser mui precisos. Antes de começar o pé da meda deverseia
calcular as pousadas de messe que colhia aquela casa; a messe não deveria
sobrar, mas tampouco podia faltar para rematar a meda como é devido… Co
orgulho na olhada baixa o mestre da meda, que depois de levar bem os seus
cálculos chega ao cabo e dizlhe aos de abaixo “faltame um molho para
fechar…” e um molho é tudo o que falta para livrar o carro. E havia que o fazer
tudo numa jornada. Os da carreja fazem polo dia o que eles hão de ter que
fazer na noite que lhes falta.
Vieram, comprovando que polo rueiro não havia nada que pudesse
impedir o seu passo. Mui devagar, como a noite anterior, ou mais se cabe,
começaram a sua andaina. Hoje andariam por entremeio das casas e não se
podia escapar nem um chio do eixo, não só porque pudesse espertar a gente,
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 170
senão porque ao o ouvir alguém pudesse pensar que outros colheram já a
dianteira em madrugar e iam indo a caminho das leiras para a carreja. Não se
podia cometer nem um erro. Deviam ter a exactidão do bom levantador de
medas e assim como não lhes podia faltar o tempo para dar chegado,
tampouco se podiam permitir que lhes sobrasse. Avançaram passeninho, e tal
como tinham calculado levoulhes a noite toda chegar. Estavam para abrir as
portas do átrio quando a Estrelinha do Luzeiro lhes dedicou o seu primeiro
pestanejo… ainda havia vagar para que essa amiga se despedira desde o céu…
Conseguiram passar pola entrada do átrio e passo a passo foramse arrimando
à porta da igreja. Narciso corre à janela que dá à parte traseira, abre uma fisga e
mete o braço com jeito para livrar o peitoril de por dentro, depois pousa os
objectos de vidro na erva e empuxa a folha contra a parede; ele mesmo se
dependura para adentro. Corre ao fundo, ele conhece bem os andares e escusa
de ir às apalpadelas, abre o portalão para dentro e agarra o pinho. Passam coa
pia.
Uma vez dentro já se sentem mais tranquilos, as grossas paredes dãolhe
acovilho às suas falas e rugires. Levam o carro até o alto da igreja, primeiro
tiveram que arredar uns bancos e mais uns reclinatórios. Ali à esquerda, tal
como Narciso agora lembra, estava o sítio da pia… se um reparasse, e houvesse
luz, ainda se poderia ver a diferença na cor da pedra do chão. Fizeram recuar
para esse lugar o chedeiro, Narciso manteve o pinho ergueito enquanto os seus
companheiros iam deixando resvalar a pia pouquinho a pouco polas tábuas.
Finalmente, a borda da pedra da base tocou no chão, então, enquanto os
outros dous sujeitavam a pia para que não caísse de golpe, Narciso foi tirando
do pinho e movendo a modichinho o carro adiante. Por fim a base inteira
apoiouse naquele chão de pedra no que estivera toda a vida, e o chão
estremeceu co pousar dela. E eles puderam por fim deixar sair o ar das
respirações contidas. Asinha tiraram o carro e esconderamno na casa
esborralhada que há por riba do átrio, na que já só vivem sabugueiros e silvas…
“aqui ninguém virá rebulir de momento, e depois já se verá…” Volveram a
correr à igreja. O dia, pronto a despontar, ameaçava com descobrilos. A
Estrelinha do Luzeiro já se tinha acovilhado debaixo da luz que começava de
querer banhar tudo por este lado da terra. Enquanto Ovídio e Perfeuto
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 171
acotegavam os bancos movidos e mais os reclinatórios, Narciso correu à parte
de atrás do átrio, recolheu a copa e mais a jarrinha de vidro e volveu a escape.
Depois subiuse num móvel de gavetas enormes onde guarda as roupas o
abade, fechou a janela e recolocou os frágeis objectos detrás, no peitoril. Os
companheiros pregamlhe que se apure, que o sol não se faz rogado para sair e
se não bolem asinha não se sabe o que pode acontecer…
Narciso pegou um brinco e caiu ao chão justamente quando a primeira
raiola de sol entrava pola janelinha lateral, uma abertura estreita na parede,
demasiado estreita para ser chamada propriamente janela, mas o
suficientemente ancha e esbelta como para não catalogada como troneira. No
alto, na parte de fora, remata com umas ondas a jeito de concha de vieira que
está coroada polas cinco estrelas da mitra de Santiago, e por ali entram os raios
de luz quando chegam do Leste. Os dous companheiros viram como Narciso e
a luz chegavam abaixo a um tempo. Narciso ergueuse a correr, e já se
dispunha a botarlhe a ultima olhada a pia, a jeito de despedida, quando viram
que da água iluminada saía um resplendor dourado no que se podia ver uma
imagem nebulosa, como se estiver formada por essas multitudinárias
partículas que dançam nas franjas de luz quando estas atravessam a escuridão,
mas que pouco a pouco foi aclarando até que a puderam ver com nitidez. Era a
imagem duma mulher nova que corria com um meninho nos braços, apegado
ao seu peito. O pequeno semelhava recémnado… a mulher asinha achegou a
cabecinha da criatura à borda da pia e coa outra mão botoulhe uma mada de
água, como se dum baptizo se tratasse… depois já, tranquilamente, marchou
com ele para a casa. Os três homens não o sabiam, mas aquela era a Áurea, que
acabava de parir, mãe solteira e só, a quem sem ajuda nenhuma lhe levara
tempo demais dar a luz à criatura. Temendo que não chegasse ao outro dia,
correra a socorrêlo. A visão daquela luz apagouse mas após ela veio outra, e
depois outra, e outra, e outras mais… e os três homens ali ficaram presos, sem
poder fazer mais nada que desfechar os olhos e deixar entrar aquelas imagens
da luz… E viram como uma velhinha de estranhas roupas entrava com uma
jarra de barro e a enchia da água da pia; depois persignouse e marchou a
correr para levarlha à Conceição, que parira dous meninhos, gémeos dum
ventre, o primeiro e mais pequerrecho nascera bem, mas ao mais grande
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 172
saíralhe primeiro um braço… e também viram como a tia Esperança, com as
suas mãos esbeltas e sábias, lhe ajudava a recolocarse na postura da nascença,
mas o meninho precisava outros cuidados… e vendo que se lhe queria ir,
botaramlhe na sua cabecinha a água de socorro da jarra… depois choraram…
e a ledícia de parir um filho vivo viuse assumiçada pola perda do seu
irmãozinho… e viram também como nas mãos do seu pai umas tábuas se
convertiam numa caixa pequena… e o pai caleoua por fora para que dissera
branca… depois achegaramse ao sagrado e arredaram um nada a terra da
sepultura da sua avó, há poucos dias enterrada, e deixaramno ao lado dela
para toda a eternidade. E esse mesmo dia de luto e despedida foi também dia
de baptismo para o outro pequeno que se salvara e que sem dúvida já
estranhava o latejar do irmão que o deixara para sempre. E mal essa imagem se
apagou apareceu uma mulher chorando, baptizara o seu meninho havia tão só
dous meses e agora tinha que o destetar e marchar longe a dar o seu leite a
filhos que não parira. Era a Erundina, que chorava bágoas de sangue por ter
que lhe roubar o leite, que era dele e só dele, ao seu meninho para o ir
malvender e assim poderem comer todos. Ela marcha chorando em silêncio,
mas a intensidade da sua dor não passa desapercebida, e mesmo se deixa
sentir nos berros do seu filho, que até aos vizinhos, só de o ver sem a sua mãe
tão pequeno, faz chorar… E o pranto do meninho trocouse em pranto de
gentes grandes, eram homens e mulheres que choravam a meninha da
Dorinda, que lhe morrera. Três anos escassos entre nós e agora forase para
sempre. Todos os da aldeia de luto, a morte duma meninha é nunca fácil de
entender… e quando lhe botaram a terra por riba à caixa, a Dorinda mirou ao
vazio e perdido parecia para sempre o seu olhar… Depois viram como a
Dorinda se prostrou no leito e se negava a comer cousa nenhuma. Os da casa já
desesperam; entram então os vizinhos e todos juntos revivecem a dor, e
choram juntos outra vez, e assim até que os prantos foram botando para fora a
negrura do seu sofrer e a Dorinda volveu comer. Logo que aquela imagem se
foi viram como uns homens corriam pola beira do átrio arriba, entre quatro
levam suspendido um colchão, e sobre dele ao Delmiro, que andando fazendo
na casa, caíralhe a trave enriba e deixarao arrelado… têm que chegar até Os
Mouros onde podem colher um auto para o levar a Ginzo, ou se quadra a
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 173
Ourense, antes de que seja tarde demais. E depois viram como os quatro
homens voltavam cansos, com eles traziam o colchão e a esperança de que o
Delmiro se salve. E unida àquela imagem chegou a duma mulher berrando,
que no meio da rua chora e também maldiz, porque seu filho tem de se ir à
Alemanha, e aquela mulher duplicase e agora são duas as que berram, e logo
três e depois quatro, em pouco tempo já são todas as mães da aldeia as que
têm que chorar os filhos que lhes rouba a emigração. E a tristura enche os lares
de Penacova; depois pouco a pouco passam os dias e as semanas e por fim o
sorriso se debuxa nas suas caras ao ver chegar uma carta. Para o Natal chega
um giro de marcos que ao se converter em pesetas muito rende. E vem o verão
e de repente um dia, mentres andas cavando na horta, sentes à vizinha que te
chama para que volvas, que che está um filho à porta… “Qual? Qual deles?”
repetes ti enquanto tiras co sacho por enriba das ervilhas e corres pola mera
arriba sem mirar onde pões o pé… tanto tem qual deles seja, tens quatro lá na
Alemanha e a todos estranhas tanto como o palpitar do coração se cho
quitaram como chos quitaram a eles. Quando vês o teu rapaz tão gabacho lá de
pé onde a porta, sentes uma ledícia breve e depois chorais os dous, num
abraço, pola alegria de vervos. E aquela mesma cena repetese de casa em casa
e de ano em ano… E, pouco a pouco, canda os filhos vêm os netos, e Penacova
recobra no verão a vida que durante todo o ano parece adormecida… mas é
uma alegria breve, logo volvem a soidade o silêncio e a escasseza do rebulir das
crianças polas ruas do lugar. E a vida do campo, já cíclica de por si, tornase
cíclica outra vez com estas idas e vindas… Idas e vindas de gentes que se
avelhentam, que se transformam e se vão convertendo em estranhos, e todos
presos nesse caminho que leva à morte, à extinção… O cíclico dentro do cíclico
na espiral que leva a nenhures, ou a algures… E quando as imagens já
pareciam chegar ao seu remate o resplendor rachou em três, e de cada raiola
emanou sua imagem, uma para cada um.
Ovídio vê numa delas a um alcaide arrogante e ruim que insiste em passar
a gábia pola beira mesmo da Fonte… porque se andam com cuidados gastarão
todos os tubos, e para quê tantos rodeios e gastos desnecessários… E a gábia
passa a ser vizinha da Fonte e ainda mais funda que ela; favorecida pola
inclinação do terreno e o fácil decorrer ao longo do cimento, roubalhe a sua
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 174
água… Que desprezível lhe parece agora a Ovídio aquele homem que se fazia
chamar alcaide! Apesarado pola sua própria imagem deixase cair no banco
que acabava de colocar; como pôde ele ter estado tão cego? Mas agora que via,
teria que ser capaz de o amanhar… Fazer emendas. Estava determinado a
restaurar o que devia.
Entrementes Perfeuto senta na pedra fria do chão, o que viu ele não o
deixava melhor parado que ao companheiro. Viu a um espoliador da pedra que
pouco a pouco se vai achegando a um penedo que no alto tem uma fonte que o
banha; aquela era a Fonte do Galo. Na fronte do penedo havia afundada para
dentro a silhueta duma grande pia, agora dáse conta de que é a mesma que
andaram a carrar… Viu também como uns pedreiros muito mais velhos que ele
a arrincavam do penedo cos seus cinzéis e martelos sem esnacar mais do que
era inevitável, deixando a silhueta para sempre ali esculpida, protegida pola
água que a banhava… E chega ele e com um só petardo rebenta fonte, silhueta
e água. Que casta de besta era ele? Sentiase desprezível mas não tentou fugir
daquele sentir, pola contra deixou que esse sentir lhe ajudara ao seu
pensamento a encontrar o jeito de reparálo… Ainda estava a tempo de
reparar…, e ali no chão ficou a cavilar.
Narciso estava agora ajoelhado e prostrado ao pé da pia, como se
estivesse rogando ser perdoado. E assim era, porque ele vira a um homem
cambaleandose mentres desfecha a porta da igreja para que um comando de
curas dirigido polo Aurélio entre e marche coa pia. Logo levamna em silêncio
até o alto do lugar onde a carregam no camião do fulano que a háde levar, é o
mesmo forasteiro que dizse que já tinha levado os altares tempo atrás. E agora
marcha com ela, e os bolsos do Aurélio se incham, e assim foi como pôde ir a
Vigo a comprar prédios para os sobrinhos… ele dirá que é bom aforrador, mas
toda a gente sabe que da paga que lhe dão não os podia sacar e que se dedica a
roubar… depois tolejou… alguns dizem que tolo já estava, outros dizem que de
tolo nada, que o nome que lhe pertence é o de ladrão, ladrão e criminal. Um
criminal que chegou a Penacova fugindo das pedradas que lhe lançavam as
mulheres de Medouchos, onde não o deram aguentado mais… por ladrão e por
rufião… e por não sei quanto mais. E Narciso agora sente as cutiladas da dor
que noutrora lhe anestesiara o álcool. E em voz baixinha, só para ele e a pia,
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 175
suplica ser perdoado… Incansável e prostrado no chão repete: “nunca mais,
nunca mais…”
Ainda andavam os três homens tentando endireitarse e orientarse na
confusão que lhes deixaram aquelas imagens quando sentiram vozes
procedentes do fundo do átrio. A correr erguemse e colocamse nas bancadas
da cabeça, de costas à entrada. A gente vai entrando e situandose como lhes
manda o costume: as mulheres mais atrás, polos bancos que há no fundo e à
esquerda da igreja; e os homens, ou o homem, que se vem um já são muitos,
ocupando os assentos do alto, arrimadinhos ao altar, mesmo à direita do abade
se missasse de cu para eles, porém isso já não está na moda, polo que agora os
homens, se viessem, estariam à esquerda do padre. A gente era pouca, ora
seguia passando adentro; porquê entravam era um mistério que eles deveriam
tentar resolver se não queriam que a ansiedade os rilhasse por dentro… que
por fora já se encarregavam as olhadas das mulheres desde lá atrás. Tentando
não ladear as faces para que ninguém reconheça o seu perfil, permanecem
imóveis… e aguardando que se lhes ocorra algo que pudesse justificar, no caso
de ser preciso, a sua entrada na igreja, e ademais entrando assim…
arrombando porta e tudo… Entrementes a gente que entrava ia repartindo as
olhadas entre os três homens e a pia, de admiração por esta, e interrogantes
para os forasteiros. Não podiam crer que lhes devolveram a pia, a que era deles
para sempre, a que os viu vir ao mundo a todos, a que antes de entrar nesta
igreja por primeira vez já bebera nas sete fontes dos sete Penacovas distintos
que povoaram estes vales, a que era sua e só sua e dos penedos que lha
deram… E enquanto a gente ia entrando eles seguiam ali arriba imóveis. Quiçá
a gente ainda se marcha… Mas ninguém se moveu do seu sítio, e de ali a um
pouco entrou o abade, e quando se deu a volta, viramlhe a cara de ledícia que
levava, mesmo semelhava que tinha presenciado um milagre. Ele era um rapaz
novo, de feições suaves e, se não fosse sacerdote, quase se poderia dizer que
atractivas. A gente parecia conforme co jeito de dizer missa deste abade que ia
acorde coa sua idade: curta. A gente gostava dessa brevidade, para quê perder
muito tempo se se pode arranjar com menos… “E logo… já saístes da missa?
Pois olha, hoje colocouvola à pressa…”, burlamse os novos. “Ele dila
correcta, como é, mas não se anda lá com sermões nem trapalhadas para lhe
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 176
fazer a um perder mais tempo”, respondem os velhos. Este cura parecia ter um
estilo que à gente não lhe desagradava… Vamos, a bulir a escape! E não é
porque tenham pressa, que muitas vezes ao sair da missa botam uma hora de
conversa pola rua fora antes de volverem para casa. De qualquer jeito o remate
precoce daquelas missas parecia servir a um e a outras. Mas aquele dia o
pároco parecia transformado, e aplicouse a fundo, e ademais dos serviços
mínimos que sempre lhes prestava, meteulhes um sermão sobre a qualidade
do saber dar… que nem rediola. Usou metáforas e exemplos do bom fazer que
aparecem nas escrituras cristãs, e do bem que fazia sentir o regalar… não
obstante não lhe serviu de nada o sermão porque o contido das suas escolhidas
palavras chegou aos ouvidos das gentes em forma de blablablas, e ninguém
reparou no que o abade dizia. Elas tinham bastante com cumprir co seu dever,
que têm automatizado,… ora de pé,… ora de joelhos,… ora podem sentarse,
ora fazer a “porlaseñal” ou o “nombredelpadre”… mas fazer isto não requer
pensar, e assim enquanto cos gestos do corpo fazem que fazem, a cabeça anda
às voltas para adivinhar quem são os três forasteiros que sem lugar a dúvida
foram os que lhe ajudaram ao abade a devolverlhes a pia. Cada um para os
seus adentros mantém um monólogo dialogando consigo mesmo, que se
poderia estandarizar do seguinte jeito:
“Pois aquele do meio, o do pêlo abrancaçado, parececheme o Domingos
de Ninhodáguia… não, não pode ser, que este é muito mais alto… pois logo a
ver se vai ser… e aquele da esquina… que me leve o demo se não é o Perfeuto
das canteiras…! Pois logo os outros também hãode ser de por aqui,… a ver se
me arrimo à ponta do banco e vejo algo mais desde ali… porquê estarão tão
atentos, que nem sequer ladeiam a face…? Polas roupas parecem gente coma
nós, ora vão algo mais descuidados… claro que para carregar essa pia tiveram
que suar… Não me digas que aquele vai ser o alcaide velho… olha lá…”
Enquanto a gente segue coa sua adivinhadela, os três homens fazem o
próprio por outro lado, e de quitado o Narciso, que sim lhe atende para ver se
dá pilhado chave que lhes ajude a sair da situação, os outros tampouco
entendem nada do discurso desse cura arrapazado que tanto latrica hoje. Ao
remate do sermão Narciso avisouos de que podiam estar tranquilos, a cousa
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 177
não parecia ir mal encaminhada… Tudo dito num murmúrio e coa mão
apoiada na cara tapando a boca para dissimular o movimento dos beiços:
– A julgar polo que disse o abade no sermão, ele pensa que a gente é a
responsável de que esteja aí a pia, logo por esse lado estamos salvados…
– Mas donde sacarias tu isso, se não se lhe entende uma palavra do que
sai pola sua boca?
– E que vai pensar a gente?
– Pois que lhe viemos ajudar ao abade a devolver o que é deles, e que não
tinha que ter sido nunca roubado, e eu fui responsável, polo que a ninguém lhe
estranhará verme aqui participando. Logo podemos sentar e descansar um
pouco, que a cousa parece controlada.
– Não sei, não sei… a ti pareceche normal que fite tanto para nós o
abade?
– Homem não lho hásde tomar a mal, ele pensa que somos possíveis
novos clientes para engordar a vezeira, que tem arrarado muito… e andanos a
fazer as beiras…
Narciso e Perfeuto riram um nada.
– Se não parais ainda nos vão botar fora…
– Isso é o que eu quereria, que isto estáseme fazendo interminável…
donde caralho tirais tanta lábia os curas, que não há Deus que o dê aturado…?
– Eu já não sou cura, irmão, que esgarcei o hábito… que muito me
apertava e mesmo me parecia que me ia esmagar ou pôr louco…
– E digo eu… ao abade não lhe estranhará que a gente traga uma pia tão
grande assim polas boas?
– Ao abade não lhe vai estranhar nada, ademais por aqui a gente ainda
anda com isso das oferecedelas… e ele pensará que esse foi o motivo, e aí
morrerá o conto… Olha, esta igreja foi enchida no seu tempo antigo graças aos
esforços das gentes que então viviam… agora, graças ao fazer dos curas volvia a
estar vazia, e já vês que pouco a pouco se volve encher… – E que razão tinha
Narciso –, o altar do meio que agora havia fora regalado por um vizinho que se
oferecera quando se viu a morrer… e os outros dous comprouos a gente a
escote, e há pouco pediraselhes que deram também para governar o telhado
e comprar casulas novas, que as que o Dom Narciso velho deixara já foram
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 178
roubadas, e quiçá vendidas também… e também lhe pediu para livros e para
não sei que mais… e a gente a dar, e a dar… E ninguém parece importarse de
que este ano não se vão colher feijões, porque o sistema de rego precisava dum
escote para meter uns meios tubos e evitar que a pouca água que fica se escape
polas toupeiras e não dê chegado às meras… mas à gente não lhe fica dinheiro
que dar para mais escotes este ano… o cura pediu antes de que chegasse a
rega… e agora já lá vai o dinheiro… E assim, mole e mole, iráse enchendo a
igreja outra vez. E um dia, talvez dentro de alguns anos, chegará outro cura que
precise para lhe comprar os prédios aos sobrinhos, e volverá vendêlo todo…, e
volta a começar de novo o conto; portanto ao abade não lhe vai estranhar nada,
e nada dirá.
– Pois olha, e eu que pensava que os curas vos entendíeis melhor coa
gente …
– Não me volvas chamar isso, que eu já estou curado… E aguardo que me
chegue o tempo desta vida para reparar o mal que fiz co hábito…
– Perdoa homem, que a ti não te queria ofender, já sei que ti te tens
governado…
– Vós segui a falar e vereis como ainda havemos de ir fora antes de que
remate o segundo acto.
– Se ainda fosse como no teatro que te dão intermédio, e se não gostas da
representação já te vais embora… mas aqui se te marchas notase muito, e
todos os olhos cravados em ti…como para perguntar: “Passoute algo?”
“Desmaiaste?” Pois já verás quando tenhas de sair de primeiro e todas as
mulheres do fundo te reconheçam…
– E porquê vou sair eu primeiro…? Que saiam elas e eu vou detrás…
– Não che são as cousas assim.
– Pois já é hora de as mudar.
– Calai duma vez…!
Narciso então acordouse de três raparigas que vieram alguma vez à missa
quando ele estivera naquela freguesia substituindo ao Aurélio… sim, vinham e
sentavamse nos bancos dos homens, e se sentavam abaixo era para lhe dar
nas ventas a todos e sair elas as primeiras… pois só por isso, e nada mais,
vinham à missa alguma vez,… e até se perguntou por onde andariam… de
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 179
certo que não iam estar na igreja, ora que quando souberam que a pia voltara
entrariam a tocar com as suas mãos a pedra na que todos os seus antepassados
puseram a mão primeiro… quanto daria ele por poder falar com elas, agora de
tu a tu…!
– Parece que estamos a chegar ao último acto…
Por fim mandouos em paz e eles os três saíram tão completos, e as
mulheres viram saciadas as suas curiosidades. Trás dos homens vãose elas, e
agora, enquanto o abade anda dentro a pelejar cos saiotes para despirse, todos
estão a saudaremse polo átrio… Quando o pároco dá saído vê como os três
homens já se vão para fora. Então chamaos com um berro e um aceno da
mão, e eles pensam que aquele pasmão ainda os vai descobrir…
– Eh! Aguardai aí, bons homens, que ainda vos tenho que dar as graças…!
– Não se merecem, e ademais já nolas deu você desde o altar…
Narciso apurou a dizer aquilo para lhe tapar a boca ao cura, não fosse
falar mais do que eles desejavam que se soubesse. Aguardaram a que se
achegasse a eles e amigavelmente fizeram como que charlavam… sem dizer
nada que a gente pudesse interpretar. Aquela naturalidade coa que se
desenvolveram confirmoulhe à gente que os três vieram a ajudar coa pia. E
coa mesma, toda a gente, de dous em dous, foi deixando o sagrado, e
parandose polos recunchos da aldeia para falar. Os três caminhantes também
se foram e o abade, vendose só no átrio, também marchou. E aqui não se
passou nada. Os vizinhos não sacarão nunca o assunto a reluzir, não fosse o
demo, já lha levaram uma vez… e o abade fez o mouco. O bispo não chegou
nunca a saber nada de nada, e as autoridades fecharam o caso. Bom, isto
último não está totalmente claro.
Segundo o jornal Nuestra Región, não é que o fecharam senão que o
abandonaram. Na verdade, o mais novo dos agentes nunca se ocupara a sério
dele; ele andava ali camuflado de detective para fazer um estudo de campo sem
que ninguém se desse conta. E por certo, não se chamava Riba por catalão, que
ainda que nascera em Barcelona era filho de galegos, e galego se declarava ele
também, ainda que fale tão bem o catalão como o idioma de Rosalia. E agora já
anda lá por Barcelona tentando escrever a sua tese na área da antropologia
social. Já lhe tem um título buscado: “Bidimensionalidade e suicídio cultural
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 180
dos galegos” Ainda não sabe se encontrará quem lha publique na nossa língua;
em Barcelona mandará uma síntese à Revista Catalana de Estudis
Transculturals e sairá co título “Bidimensionalitat i suicidi cultural dels gallecs”
Escusado é dizer que os de Nuestra Región não lhe vão publicar nem uma
entrevista, quanto mais… e vá que lhes amola que se ande a falar dessas
cousas…! E vainos falar de bidimensionalidade ele, precisamente ele que tem
duas ou três falas, ele podia valer como exemplo da bidualidade essa… Mas a
Camilo Riba, filho e neto de Camilos Ribas – todos, até ao confim das memórias
familiares, eram galegos e ele tem clara a sua identidade – não dá crédito às
críticas que lhe possa fazer um panfleto ao que o qualificativo de folha
paroquial lhe assentaria melhor que o de jornal. A ele agora o único que lhe
consome o seu tempo é a sua tese, que háde ser brilhante.
De vez em quando párase a pensar nas possíveis críticas que os membros
do júri lhe possam fazer e vai introduzindo mudanças no corpo do texto que
ajudem a argumentar as posturas que ele agora, no momento de redigir, toma.
A quem mais teme é ao professor Loureses, sendo como é natural duma
freguesia achegada a Penacova, ainda que agora pare em Barcelona. Ele
aguarda que o professor Loureses lhe critique a sua excessiva psicologização na
terminologia, e lhe diga quiçá que bota em falta uma interpretação de corte
mais simbólico que fosse capaz de dar conta de toda a complexidade do
elemento mágico, inseparável da vida de Penacova. Camilo aproveita estas
projecções que faz para ir fazendo os ajustes que lhe permitam sair airoso o dia
da sua dissertação. Contudo, o que Camilo Riba jamais poderia ter adivinhado
é uma das perguntas do professor Loureses, uma sobre as serpes voadoras e os
seus poderes. E daquela Camilo teráse que arrepender de não ter perguntado
mais aos vizinhos enquanto andava por Penacova… Mas se fizera isso as suas
observações já não seriam tão objectivas… e esse será o argumento usado para
mitigar o efeito da pergunta. Claro que sim, não interferir co objecto da
observação fora o seu lema, e bem difícil que lhe foi às vezes… por isso não
lhes pôde perguntar nada… e ademais, que ia a pensar a gente, e o seu
companheiro, se entre as perguntas sobre a pia lhes solta uma sobre cobras
voadoras? Não, isso qualquer entenderia que não se podia fazer. E isso que se o
tivesse feito a gente bem que responderia, pois falar disso eralhe bem mais
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 181
fácil que falar da pia. Ao cabo, o das serpes essas que voavam acontecia lá por
longe; daqui de Penacova, que se saiba, só as viu o Teófilo, quando andava polo
Norte, e mais dizse que… “Eram grandes como os temões dos arados, e polo
lombo fora, dos dous lados, estavam cheias dumas asas pequeneiras… como as
conchas das vieiras… Quando erguiam o seu voo, já te podias vigiar. Elas não
mordiam, não, o perigo delas vinha do poder da sua sombra… se che roça a
sombra duma dessas, por nada que seja, aí mesmo ficas tolheito e para
sempre… por conseguinte as gentes andam sempre à procura da sombra das
árvores para que não lhes roce a delas jamais…” Contudo, apesar de não saber
nada disso, Camilo sairá bem airoso, e o professor Loureses alegraráse de ver
como os galegos ainda somos quem de nos observarmos e de nos criticarmos,
e fazemolo bem, ainda que às vezes para podernos ver com clareza nos
tenhamos que afastar da nossa terra. Ele mesmo vê tudo o relativo à nossa
cultura com mais clareza dês que está aqui em Barcelona, onde lhe é
reconhecido o respeito que merece mais que na sua própria terra, não só como
professor senão também como galego. Esta tarde achegarseá a algum dos
bares dos Nou Barris dos tantos nos que se escuta falar na nossa língua, e quiçá
presencie algo que lhe permita manter as esperanças da supervivência da
nossa cultura. Que desconcertantes lhe resultam as cousas que se estão a
passar na nossa terra… mas quando vê gente como Camilo Riba, que desde
aqui é capaz de irse até lá coa sua olhada invulnerável frente ao raquitismo, a
tentar resgatar o que ainda se puder salvar… põese contente e até alberga
esperanças de que nos salvemos, de que um dia nós também sejamos um país
normal… Quiçá, desta geração de galegos criados fora, livres da influência
directa da bidimensionalidade essa da que falava o já doutor Riba, possam sair
homens e mulheres que voltem a ajudar aos que andam hoje já a lutar contra o
suicídio colectivo, contra a desmembração e a automutilação crónicas.
“Homem Loureses, que gosto saudarte” Era C. Rousia, que desde a
entrada do Cinco Estrelas o convidava a passar… “Olá! Que fazes tu por aqui?
Olha que também che é casualidade, precisamente hoje venho eu dum júri de
tese no que um colega falava da nossa terra, mais falava da tua que da minha,
se calhar visteo por lá, haverá um ano que visitou aquilo, e…” Conversam um
bom bocado, os dous têm vagar e querência de fazêlo… Depois C. Rousia
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 182
despedese dele: “Já me tenho de ir, alegroume deveras terme encontrado
contigo, e não te preocupes tanto, que qualquer dia se resolve… isto éche
como dantes quando às mulheres, logo de três dias parindo, lhes davam a água
de ferver os cornozelos… ‘parir ou rebentar’ diziam então… e quando as
parideiras enviavam para abaixo aquele xaropote amargo já tanto lhes tinha
morrer como não… algumas já estavam mais mortas que vivas… pois nós
também nos livraremos… qualquer dia acabase o sofrimento… tanto sentirse
vulnerável… e isso que eu ainda sou nova, mas há gente que já leva uma vida
longa nesta merda… e de que nos estranhamos ao ver como muitos e eles se
passam ao outro bando e preferem que os seus filhos se alimentem do montão
grande de esterco…? Eles, como os vermes, só pensam na própria subsistência,
e devoram a maçã que lhe serve de alimento, e assim destruem o seu próprio
universo… eles, os coitados, só pensam que se estão a afastar do mal que
ameaça com extinguilos, e fogem moribundos a esconderse debaixo do
escudo do inimigo, porque assim tão sequer já não se apercebem de que
morrem… correm sem darse conta de que quando se albergam lá debaixo já
estão mortos… Fogem espantados por um espelho que lhes devolve uma
imagem de si próprios como seres feios e desprezíveis, ora eles, tal que
esganados, não podem ver outra cousa no espelho que têm diante; botamlhe a
culpa à língua, pois é a diferença que mais ressalta, e contra ela arremetem… E
arrasam a terra tal que mortos viventes que como os vermes se arrastam por
riba dela… Não, não me invejes porque me vou para lá, compadeceme…”
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 183
UM ANO DEPOIS
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 184
enquanto ele anda… que formosa é esta Barcelona… e enquanto revive as
lembranças nasce nele a imagem duma gesta florida da primavera de Penacova
que se mistura coa dum formoso lagarto de porcelana… Se pudesse colher e
dobrar o mapa da Ibéria… e juntar Penacova com Barcelona… E ele pensava
que aquela era uma ideia mui original que se lhe acabava de ocorrer a ele…
como se nota que passara pouco tempo em Penacova! Ele marchara antes do
Agosto e nunca escutara aos que cada ano a finais desse mês têm que se pôr ao
volante para irem a Barcelona de volta: “Ai, quanto quilometro inútil polo
meio… se se pudesse dobrar o mapa… com uma alancada já chegava!” Mas
ele, sem nada saber disto, aquele dia ia dobrando o mapa e saltando de
Penacova a Barcelona com toda a facilidade. Ainda que o que ele fazia era uma
superposição que lhe permitia andar polos dous sítios a um tempo, e ele ia
escolhendo dum e doutro, criando assim o seu mundo ideal… Um mundo no
que ambas as duas realidades tinham plena razão de ser; onde nenhuma é pior
nem melhor, senão dous mundos irmãos… e pensando naquilo, e sentindo a
imensidade dos seus universos, foise na procura dum telefone. Falou co
Rafael, que muito se alegrou de o escutar. E quase sem aperceberse sequer já
estava no aeroporto de Santiago de novo…
– Mesmo parece que foi ontem quando me vieste trazer ao aeroporto e
logo vai lá um ano…
– E polo que me contaste, para ti não foi mal aproveitado…
– Não tenho queixa, mas contame agora de ti, que ainda não me contaste
nada…
O reencontro fora intenso, tal que de parentes se tratasse, e depois de
visitar Compostela, aquela mesma tarde volveram às terras do Deza onde
Camilo gozou duma familiar acolhida. Logo planearam uma visita a Penacova.
À primeira não estavam mui certos de se o deviam fazer, eles já não eram quem
foram, e talvez também já ali as cousas andavam doutra maneira… porque não
deixar tudo como está, e reter aquela lembrança tão suave e doce que ambos
conservavam? Camilo tinha outros sítios que visitar, lá pola Fonsagrada onde
moram os da sua gente pola parte de seu pai, e podia adiantar a sua marcha…
Mas não háde ser tal… e puseramse ao caminho para o outro dia à manhã.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 185
Quando iam subindo pola estrada d'Os Mouros, mesmo em chegando a
Ameixeiras, avistaram a um grupo de gente toda junta na beira do caminho.
Rafael conduzia devagar e puderam ver como de dous em dous se iam
metendo todos na taverna. Pararam o automóvel e, danados pola curiosidade,
entraram no bar eles também,… afinal de contas, era um lugar público e
ninguém lhes ia dizer nada, ainda que aquilo parecia uma reunião… um
conselho, diria a gente. Ficaram de pé direito na esquina do balcão, perto da
porta. A gente, alguma sentada e outra de pé, olhava para um homem que
tinha agora a palavra e começava a falar…
– Pois eu peçovolo deveras a todos… e já vos digo que a candidatura
está aberta… e eu seria mui gostante de que alguém de Ameixeiras se unisse a
ela… já há gente de Penacova também apontada, e de Fontearqueira, e de
todos os lugares, se me apuras até de Penalapa levaremos gente… já só ficais
vós para as listas estarem completas, e mais estarmos todos representados…
Um homem de uns sessenta e tantos anos falou então, e parecia
representar bem o sentir de todos, porque todos acenaram coa cabeça ao que
ele dizia, …e disse que não se devia estranhar se a gente semelhava um bocado
remissa, mas que já escarmentaram muito… e não precisamente na cabeça dos
outros… que eles tinham os seus reparos para fiarse da política…
– Eu compreendo o que me dizes, Severo, e não te falta razão nenhuma,
contudo tens que admitir que todos nos equivocamos, e que de não ser assim
não se precisariam as segundas oportunidades…
E o orador seguiu a falar das segundas oportunidades e do muito que
aprende a gente quando não sabe o que tem e o perde… e asseguralhes que se
o apoiam não se vão arrepender… A Camilo e a Rafael parecialhes que aquele
homem falava com sinceridade, e perguntaramlhe ao de detrás do balcão
quem era – “É o velho alcaide, que se quer apresentar outra vez”… E o orador
seguiu a falar, mesmo semelhava que tinha pressa por sair eleito outra vez,… e
que certo era, ele tinha assuntos pendentes que resolver, assuntos que estavam
à sua espera e ele já não via a hora de poder começar… à Fonte serlheia
devolto o seu caudal, ainda que ele mesmo tivesse que abrir o buraco coas
mãos e fazer um muro de contenção… e ademais tinha ele outras contas que
saldar e havia de ir pouco a pouco até pagar por todas; e com essa esperança
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 186
seguia a falar, e a gente a interpelar. Rafael e Camilo foramse embora e não
ouviram como rematava aquele meeting, no que o orador, que estava a deixar
medrar a barba ou talvez se esquecera hoje de se barbear, se empregou a fundo
para colocar a sua mensagem dentro das cada vez mais atentas cabeças da
gente.
Camilo e Rafael chegaram a Penacova, e em vez de meterse para a aldeia
decidiram dar uma volta co automóvel polas pistas, primeiro foram caminho
de Penalapa e ao passarem A Tapada colheram o caminho que polas Lamas do
Baio leva à Travessa; ali pararam e saíram do auto, estavam no pé do Castelo da
Rainha Loba. Sentiram um bouchear intermitente que vinha de lá do fundo das
carvalheiras. Atraídos pola sua natural curiosidade, caminharam por um
carroucho estreito entre os carvalhos e foram ter a um lugar onde havia
cachotes de pedra escangalhados. Ali nascia o boureio e não tardaram em dar
co responsável, um homem de mediana idade que semelhava estar a fazer uma
escultura, ou algo parecido. A eles surpreendeulhes que aquele homem, em
vez de começar por uma grande rocha e ir tirando o que lhe sobrasse, parecia
fazer ao revés, e andava a juntar cachotes e fazendoos casar uns cos outros e
mais com um plano que parecia consultar lá dentro da sua cabeça. O homem
nem reparou neles, e continuou a colher e a provar pedaços de pedra nos ocos
que faltavam. Eles olharam um pouco para aquele pedreiro que parecia cego
para tudo menos para aquelas pedras e os seus martelos, e só descansava para
botar uma olhada lá para os montes da Rousia, ou cara aos vales da Límia, com
um olhar que mostrava que ele também tinha outras contas por pagar. Camilo
e Rafael admiraram a habilidade que parecia ter nas suas mãos, depois
marcharam. Debateramse entre dar a volta e ir buscar o automóvel ou baixar
polo monte abaixo até chegar ao meio de Penacova. Decidiram deixar o seu
veículo para mais tarde, e foramse caminhando até às casas. Primeiro foram
dar uma volta polo lugar. Eram muitas as lembranças guardadas e agora
também, por ambos os dous, prezadas, ainda que algumas não fossem tal
quando as viveram. A Camilo amoloulhe não dar visto as três moças do
maçadoiro e até quis ficar sentado ao pé da casa da escola, enquanto Rafael ia
visitar o Manuel, mas aquilo não estava bem, e resignandose a ser lembrado
polo seu silêncio, marchou co seu amigo a caminho do fundo da aldeia.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 187
Recebeuos a Aurora, o Manuel andava no monte… “chega este tempo e não
há quem pegue nele em casa… tem tanto labor do que botar mão… hoje foi
amorear tantinha erva, ao passo que levou o gado para o monte… como lhe vai
amolar não os ter visto… se não fosse tão longe davamme ganas de ir na sua
procura…!” A eles também lhes amargou não ver o Manuel, mas
conformaramse com ver a Aurora, e perguntaramlhe que tal iam as vacas, e
se levaram para o matadoiro a bezerra da Marquesa ou a criaram… “Já,
homem, já; onde ela vai! E mais, muito lhe amargou ao meu homem terse que
desfazer dela…” disselhes Aurora com uma fala carregada de saudade.
Marcharam. Passaram por diante da casa do Serafim e botaram uma olhada
para o corredor… Não viram a ninguém, o ferreiro não estava sentado no seu
escano ao lado dos jornais que lhe juntara o seu neto Daniel este último ano.
Deramlhes ganas de subir e bater, mas decidiram seguir, e ao reparar na porta
da forja, viram que estava aberta; lá dentro um homem soprava as brasas
ardentes nas que já se estava a temperar o ferro. Aquele homem não era o
Serafim; era um homem muito mais novo que ele, um homem que agora
deixava descansar os foles e com as tenazes sacava o reluzente ferro e com
força começava a bouchear nele. Com cada golpe, sua estrela de faíscas que se
funde e esvaece no espaço que o rodeia. Aquele homem era o Narciso, ainda
que eles nunca o saibam, e enquanto seguem o seu caminho Rego arriba, vão
escutando como os bateres do martelo deste novo ferreiro se misturam cos
ecoares duma canção… aquela melodia fazlhes lembrar o velho ferreiro, e
como então tampouco agora entendem o que diz a letra… e marcham. Mas
não é de estranhar que a não entendam, o próprio Narciso, que a canta,
tampouco acaba de saber o que quer dizer. A melodia seguelhe a lembrar as
cantigas que de pequeno lhe ensinava sua avó, ora na poesia intuise uma força
nova, uma força que em lugar de amolecer o seu espírito vai fazendoo
resistente, tão rijo como o próprio ferro no que boura. E enquanto golpeia
decatase de que o ferro reluzente mais que relha parece espada, e nesse
instante entende o sentido da sua canção… e com mais força, se couber,
golpeia agora enquanto vai calculando se haverá relhas de avondo para
desterrar o selvagismo que assola a Terra.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 188
GLOSSÁRIO
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 189
A Argalhar v. tr. (1) Inventar mentiras. Mentir.
Tramar. (2) Armar ou promover embrulhos. (3)
Abofé adv. Certamente, em verdade. Abofé que o Discorrer, inventar contos ou histórias. (4)
fez: em verdade que o fez [de a + boa + fé]. Conceber um plano com uma finalidade prática.
Aboujar v. tr. Aturdir a berros e com forte ruído. Arramplar v. t. Arrepanhar, arrebatar .
Acadar v. tr. (1) Recolher, colher. (2) Alcançar, Arrelar v. i. e r. (1) Fadigarse com o muito peso
conseguir. (3) Dar no alvo. [lat. accaptare]. que se leva às costas. (2) Dobrarse com a carga.
Acaer v. i. (1) Ser próprio, ajeitado, ajustado: (3) Derrear.
acaelhe bem a alcunha. (2) Assentar bem, Artelhar v. tr. Articular, organizar.
favorecer: acaelhe bem o vestido. [lat. accadere]. Assolagar v. t. Anegar, submergir, alagar.
Acochar v. tr. (1) Cobrir. Abrigar. (2) Ocultar. Assumiçar v. t. e r. Fazer parecer mais pequeno,
Esconder. (3) Proteger. Amparar. v. r. (1) menos importante.
Abrigarse bem na cama. (2) Meterse na cama a Atarricado adj. Atestado, abarrotado, atarracado.
causa de uma doença [de cochar]. Avantar v. tr. Ir para adiante. Adiantar. Avançar.
Acotegar v. t. Arrumar. Avondo adv. (1) Avonde, abundantemente; (2) adj.
Acougo s. m. (1) Acto ou efeito de acougar ou Suficiente [lat. Abunde].
acougarse, acoito (2) Sossego, tranquilidade,
calma, repouso.
Agarimar v. tr. (1) Proteger, amparar. (2) Arrimar a
B
outrem algo que o abrigue e lhe dê calor. (3) Por Bágoa s. f. Lágrima.
Abrigarse bem com roupa. a comida aos porcos.
Alancada s. f. Passo muito largo. Bica do testo s. f. Pão de trigo comprimido e chato
Portugal.
Alpavarda s. m. Papamoscas. Pessoa sem Bourar v. i. Golpear, bater, malhar.
Alprecha s. f. Alcunha. trafego.
Amalhoar v. tr. Atar com amalhó. Bouchear v. i. Martelar.
Amalhó s. m. Cordão de coiro para atar os sapatos. Broma s. f. Brincadeira, piada.
medoucho, ou meda pequena. Buligar v. i. Moverse, bulir, oscilar.
A modo loc. adv. Com jeito, muito de vagar.
Amoreado adj. Posto em moreia ou montão. C
Amontoado.
Cachote s. m. Pedaço de pedra de cantaria sem
Apanho s. m. (1) Acomodo, arranjo: tenho este
lavrar. Pedra grande desprendida de um penedo.
apanho para ir vivendo. (2) Trato ilícito e oculto
Cadanseu/Cadansua adj. Cada um seu/sua: iam
com pessoa de distinto sexo.
com cadanseu carro.
Apoleirar v. tr. e r. Empoleirar.
Canchês adj. e s. Aquele que tem as pernas tortas
Arestora adv. t. A esta hora. Neste momento.
ou arqueadas, cambaio.
Agora. [lat. hac + ista + hora].
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 190
Cão s. m. Denominação popular duma antiga Clouca s. f. Sapela ou rã pequena.
moeda de dez cêntimos de peseta. Cocho s. m. Buraco. Toca. Fojo. Esconderijo, lugar
Cara a prep. (1) Indica direcção: marchouse cara à secreto, pequeno refúgio de um animal. [lat.
vila. (2) Aproximação temporal: recolhe as vacas copulu].
cara a tarde. (3) Aproximação local: cara a serra Combarro s. m. Lugar onde se guarda a lenha do
vêse o nevoeiro. inverno, lenheira.
Caráfio Interjeição que denota surpresa ou enojo Comesto p. p. irreg. de comer. adj. (1) Consumido,
(eufemismo de caralho). acabado, extenuado. (2) Que foi comido:
Carpaço s. m. Carrapiço. comesto dos cães, dos vermes. (3) Carcomido,
Carrela s. f. Talhada, fatia. roído, gasto: comesto polos anos.
Carroucho s. m. Carreiro difícil de transitar. Conhecias s. f. persoas conhecidas; conhecidos.
Casalandreiro adj. Dizse da pessoa amiga de Cornozelo s. m. Cornição, cornecho, crava
andar polas casas alheias. gemdocenteio, doença do centeio causada por
Castrapo s. m. pop. despect. Variante dialectal do um fungo que contém alcalóides de
idioma castelhano, muito influída polo propriedades medicinais e psicotrópicas.
galegoportuguês, falada na Galiza. Coucheira s. f. Conjunto de plantas ou ervas da
Cativo s. m. Menino. mesma espécie que se distingue no terreno do
Ceiacú adv. Com retrocesso, movendose para resto pela sua espessura e altura.
trás. Couchopé (Ao) loc. adv. A pécochinho, andar
Ceivar v. t. (1) Soltar o gado que estava atado. (2) apoiando um só pé no chão.
Soltar os animais do jugo. Desjungir. (3) Dar Covaterra s. f. Esconderijo debaixo da terra onde
liberdade a uma pessoa: o juiz mandou ceiválo vivem as toupeiras.
por ser inocente. Deixar livre. (4) Destapar as Crego s. m. Clérigo [lat. Clericu].
águas. Crencho adj. Crespo, riço, enguedelhado: tem o
Ceive adj. Livre, sem nenhum tipo de atadura, cabelo crencho (var: crecho).
falando de animais, terras. Creto s. m. Crédito, credibilidade, fama, confiança.
Chantar v. t. Plantar de estaca, espetar. Cuinchar v. i. cuincar, grunhir, particularmente o
Che Gram. Forma do pronome pessoal de segunda porco. v. t. por extensão, cravarlhe o cutelo ao
pessoa quando funciona como objecto indirecto, porco para o matar, provocando que cuinche.
comum na Galiza em substituição da forma te:
vouche dar o que che prometi; não cho posso
contar. Forma de dativo de «solidariedade» (no
D
Daquela adv. t. e m. (1) Naquela ocasião, naquele
diálogo designa um interlocutor a quem, sem
tempo: já daquela falavam de vir. (2) Então,
recair nele nem direita nem indirectamente a
nesse caso: daquela, não o pago; daquela não
acção verbal, de algum modo interessamos ou
temos mais que falar [de de + aquela].
implicamos no que enunciamos, como
Dar + particípio verbal Construção que expressa
concedendolhe simpaticamente participação):
capacidade ou possibilidade de o sujeito atingir
dóicheme muito a cabeça; quando vem? – Não
a acção do verbo (exemplo: dar chegado a tempo:
cho sei.
ser capaz de chegar a tempo).
Chinguilinada s. f. Cousa miúda e de pouca
Decatarse v. r. Darse conta, aperceberse.
importância.
Decolgar v. i. Colgar; pendurar.
Chouchar v. i. Rolar: a pedra foi chouchando monte
Decotar v. tr. Cortar por cima ou em volta,
abaixo.
especialmente pôlas de árvores.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 191
Decrua v. t. Acto de decruar; primeiro amanho ou Esnaquiçar v. tr. Fazer pedaços alguma cousa,
lavra da terra para a sementeira. destroçar, esnacar. v. r. Fazerse pedaços,
Deica pouco loc. adv. Quase, perto de. romperse.
Deluvar v. tr. (1) Esfregar suavemente: deluvar os Estinhar v. i. e t. Estiar, deixar sem líquido.
olhos pola manhã. (2) Esfregar com força a Estrelinha do Luzeiro Estrela da Manhã.
roupa. Estrume s. m. (1) Mato, palha e despojos vegetais
Deputação s. f. Câmara territorial de província, na que se empregam como cama do gado para
Galiza. obter esterco. (2) Resíduos vegetais misturados
Desacougo s. m. Desassossego, inquietude, com os excrementos dos animais, com os que se
intranquilidade. Desacoito adubam as terras para as fertilizar.
Devandito adj. Que já fica dito. Mencionado
anteriormente.
Devezer v. i. Sentir um intenso desejo por algo
F
Fachonco s. m. Buraco pequeno que se enche de
(devezo).
água.
Devezido adj. Com devezo ou apetência insaciável.
Fárria s. f. (1) Classe de rocha de estrutura
Devezo s. m. Ânsia ou desejo muito intenso de algo.
piçarrosa, da mesma composição que o granito,
mas submetida a distinta pressão geológica. (2)
E Abertura estreita entre rochas.
Emborcalharse v. tr. e i. Rebolarse polo chão Fento s. m. Feto.
como os animais. Fotingo s. m. pop. Automóvel de pouca potência.
Encadilhar v. tr. Entrançar, enrestiar. Por ext. Frôncega s. f. Fronça.
Organizar as acções na direcção ajeitada. Fame s. f. Fome. [lat. Fame].
Escrebadela s. f. Sonadela, sono curto e ligeiro.
Ençoufado adj. Sujo, manchado, lixado.
Enferrar v. i. Enganar.
G
Gesta s.f. giesta, nome de algumas plantas
Engabachado v. i. Gabacho, muito bem vestido,
subarbustivas da família das Leguminosas, de
como para uma festa.
talo lenhoso, com polas delgadas e flexíveis e
Ensinar v. t. (1) Transmitir conhecimentos e
flores amarelas ou brancas, algumas das quais
competências a; (2) Mostrar, deixar ver; (3)
são espontâneas na Galiza e Portugal. [lat.
Indicar, sinalar.
Genista].
Entear v. i. Avivar o lume. v. t. Avivarse o lume.
Guichar v. t. Espreitar, vigiar, observar desde um
Entroido s. m. Entrudo.
lugar oculto para não ser visto.
Enviar v. tr. (1) Mandar alguém ou alguma cousa:
enviar um criado às compras. (2) Tragar: enviei
um osso do frango. v. i. Tragar, comer sem H
mastigar: este, em vez de tragar, envia [lat. Ho Interjeição que exprime certeza.
inviare]. Homem da moca s. m. Personagem fantástica que
Enxoito adj. Enxuto. representa o sono, e dános mocadas para
Escacaranharse v. ref. Perderse de riso. induzilo.
Escarrapatar v. i. Remexer a terra com as unhas,
esgaravatar.
I
Intriquidência s. f. Complicação, embaraço.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 192
J Meixela s. f. Maçã do rosto. Cada uma das duas
proeminências do rosto debaixo dos olhos. [lat.
Jamão s. m. Variedade de presunto preparado à maxilla].
moda da Galiza. Mentres adv. t. Mentes, enquanto, entretanto. [lat.
Janeira s. f. Cio dos gatos e outros animais. de um interim].
Mera s. f. (1) Parte da herança que toca a cada
L herdeiro. (2) Parte comunal que lhe corresponde
a cada vizinho [gr. meros]. Porção.
Lacazanear v. i. Andar à preguiça.
Moinheiro adj. e s. Pertencente ou relativo ao
Larejar v. i. Arder mui rápido o lume.
moinho ou à moagem. s. m. O que tem ao seu
Larpar v. tr. Engolir rapidamente.
cargo um moinho.
Latricar v. i. Falar à toa, sem sentido e berrando.
Mole e mole Pouco a pouco.
Lea s. f. (1) Luta, briga, peleja. (2) Complicação,
Molida s. f. Protecção que levam as vacas e os bois
enredo, confusão.
para que não moleste o peso ou a carrega ao
Ligar de Acontecer por um acaso. Calhar de.
jungilos; molídia.
Liorta s. f. (1) Confusão, enredo, barafunda. (2)
Mornura s. f. Mornidão, tepidez.
Disputa, peleja.
Moruja s. f. Morugens, planta herbácea frequente
Liscar v. i. (1) Marchar, irse. (2) Fugir: liscou
nos terrenos areosos, e nas fontes.
quando viu a polícia.
Mouminhar v. tr. Falar polo baixo. Murmurar.
Lispar v. t. fig. Larapiar, roubar.
Lumieira s. f. Peça longa de pedra ou madeira que
se põe sobre os marcos das portas e janelas. N
Lintel. Neno/nena s. m./f. (1) Ser humano de pouca idade.
(2) Moço/Moça novo/a.
M
Maçoucado adj. Que tem maçaduras. O
Mada s. f. Quantidade de cousas que cabem numa Ola s. f. (1) Vasilha arredondada para preparar
só mão, mãocheia. comidas. (2) Recipiente de barro para carrejar
Mália interj. Mal haja: mália quem te criou. conj. agua. (3) Caçoula de barro na que se guardam os
Apesar de: mália que não ando bem, irei. chouriços. (4) Recipiente de madeira para
Malhões s. m. Correias de coiro com que se atam os guardar ou maçar o leite. (5) Medida de
socos ou chancas, amalhões. Cordões. capacidade equivalente a 16 litros.
Malpocado adj. e s. Infeliz, coitado, desgraçado. Ombreiro s. m. Ombro.
adv. Malpecado. Ouleo s. m. Uivo.
Mancar v. tr. Magoar, lastimar, ferir.
Maniota s. f. (1) Freio para prender a mão dos
animais. Peia. (2) pl. Dor que se sente nalguma
P
Passeninho adv. Devagarinho.
parte do corpo depois de realizar um exercício
Pedâneo adj. (1) Antigamente, juiz que numa vila
muito violento ou muito seguido.
ou aldeia julgava de pé. (2) Alcaide duma aldeia
Marelo adj. Amarelo.
[lat. pedaneu].
Matinar v. t. e i. Pensar com empenho e
detidamente alguma cousa. Cavilar, discorrer.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 193
Peso s. m. Denominação popular na Galiza da Queixil adj. Queixal. Do queixo. s. m. (1) Dente
antiga moeda espanhola de cinco pesetas. molar. (2) Mandíbula inferior do porco. (3)
Moeda espanhola que valia cinco pesetas. Queixada, mandíbula.
Petar v. i. (1) Chamar dando golpes numa porta. (2) Quadra (se) adv. Talvez, quiçá. Se é do caso, pode
Fazer ruído andando, trabalhando com um acontecer que: se quadra, vem hoje. Dar quadra:
martelo, etc. (3) Pegar, golpear. dar razão, lembrarse.
Pinho s. m. Parte do carro de bois por onde se
puxa, e que habitualmente se amarra co
temoeiro ao jugo.
R
Rabunhar v. tr. Ferir com as unhas. Esgaravatar,
Pipela, ou pipel s. f. Cano lavrado na pedra, polo
ranhar, arranhar.
que sai a água duma fonte.
Ranhar v. tr. e i. Arranhar. Esfregar a pele com as
Porca s. f. (1) Jogo que consiste em fazer um buraco
unhas. Não ter que ~ não ter que fazer.
grande (porca) e vários pequenos (quichos) e
Rauto s. m. (1) Rapto. (2) Arrebato [lat. raptu].
com cajados intentar uns jogadores meter a bola
Rechouchio s. m. Trinado, gorjeio.
de urze ou de outro material dentro, no entanto
Recuncho s. m. Recanto, canto.
lho impedem os outros. Os jogadores
chamamse porqueiros e têm que defender a Refaixo s. m. Espécie de saia curta e rodada, que se
porca e o quicho para impedir que os outros leva de baixo da saia de fora. Saia de baixo.
alguém lhe colham o quicho tem que seguir com Refistolar v. i. Remexer tudo buscando algo.
se mudar os que guardam os buracos pequenos tudo buscando algo.
com rapidez e o que meteu a porca sempre tem Refucir v. t. Arregaçar.
que ficar depois num pequeno; o buraco grande: Reganho s. m. Raiva.
cocha; os pequeninhos: cochinhos. (2) A bola Ringleira s. f. Linha de cousas ou pessoas em
redonda para jogar. (3) Buraco grande no jogo da ordem. Fileira.
porca. Dar tronos, significa meter a cabeça (bola) Rolda s. f. (1) Turno no reparto da água de rega. (2)
consiste em pôr os cajados na porca e meterlhe Roscão s. m. Doce elaborado com farinha, ovo, leite
a cabeça no buraco ao que não quer seguir e açúcar, cozido no forno.
jogando [lat. porca]. Rouchar v. i. Andar da roda, rodar.
Poula s. f. Terreno de pousio, inculto, mas Rustrir v. tr. (1) Frigir algo em azeite, manteiga ou
cultivável. gordura, alho, etc., para condimentar um
Póutega: s. f. Pútega; planta herbácea, comestível, manjar. [fránc. hraustjan,prov. raustir].
da família das Raflesiáceas, parasita das raízes de
várias plantas, que se encontra na Galiza e no S
Norte e Centro de Portugal, também conhecida
Sarriço s. m. Espinhaço muito visível num animal
por coalhadas.
fraco.
Presel s. m. Pesebre.
Saculeão s. m. Sacudidela, empurrão, particu
Pruício s. m. Pruído, comichão, prurido.
larmente o que se dá co ombro debaixo do corno
da vaca, mentes se puxa pola soga com a que se
Q junge, para que fique melhor apertada.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 194
Santa Companha s. f. Procissão de almas penadas Trousar v. tr. (1) Vomitar; (2) Trouçar, trasfegar.
que, segundo as crenças tradicionais da Galiza e Tega s. f. Teiga. (1) Medida de capacidade para
do Norte de Portugal, percorre de noite as fragas cereais com valores diversos segundo as zonas.
e caminhos para ir recolher as almas das pessoas (2) Recipiente de madeira usado para a medida
que morrem ou para anunciarlhes a sua morte. de áridos. (3) Quantidade de grão que colhe na
Sedenho s. m. Corda grossa para atar a carga do tega.
carro, adival. Trugir v. i. Moverse (vai sempre acompanhado da
Seica adv. de dúvida. Acaso, talvez, quiçá, parece; negação não: não te trujas).
dá origem a numerosas locuções ou modismos
com certo matiz interrogativo. Seica estás tolo?:
que dizes, fazes ou te propões? Seica, seica:
U
U adv. ant. Onde. Forma um pronome
quiçá, quiçá. Seica sim: parece ser certo, pode
interrogativo referido tanto a pessoas como
ser. Seica sim?: de modo que é certo.
cousas: ulo, ula [lat. ubi].
Seitura s. f. (1) Acto ou efeito de segar. (2) Época de
Uzeira s. f. Urzeira.
segar os cereais. Ceifa, sega [lat. sectura].
Senha s. f. Na mitologia popular galega, imagem
fantasmal duma pessoa que não está presente, V
cuja visão anuncia a próxima morte desta. [lat. Vaso s. m. Copo.
signa, pl. de signu]. Velaí interj. Eis aí: velaí o que fez.
Solaina s. f. (1) Sítio ou paragem onde dá o sol. (2) Vêlas vir (estar a ~) Ficar pasmado.
Lugar aberto com balaustrada de pedra, com Vencelha s. f. Vencilho, corda feita de palha e de
uma grande escada de aceso que acostuma ser a um só lado, empregado para atar os molhos.
entrada principal nos paços galegos. Vieiro s. m. Caminho. [lat. viariu].
Sona s. f. Fama, creto, renome. Vindeiro adj. O que está por vir, que está próximo.
s. m. pl. Sucessores, os que hão de nascer ou vir
T depois.
Viosbardos s. m. Gambozinos; Andar aos ~ andar
Tarabelo s. m. Taramela, pessoa tagarela. desnorteado.
Tendal s. m. Tendedeira, lugar da casa do forno em
que se tende a massa e se faz o pão.
Z
Topenejar v. i. Dar cabeçadas com o sono,
Zagões s. m. Espécie de avental de coiro que se usa
dormitar.
na faina de atar os molhos ou gabelas da messe.
Trebelho s. m. Aparelho empregado numa
Zarapulho s. m. Migalho.
determinada actividade.
Troula s. f. Diversão buliçosa, pândega.
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 195
Índice
Ficha técnica 2
Sobre a autora 3
Dedicatória 4
Prólogo 5
Limiar 11
Capítulo I – A Fontecova 13
Capítulo II – A Fonte da Auguela 36
Capítulo III – A Fonte da Cunca 65
Capítulo IV – A Fonte de Requeijo 89
Capítulo V – A Fonte do Galo 100
Capítulo VI – A Fonte do Jardim 128
Capítulo VII – A Fonte 150
Descobrimento 169
Um ano depois 184
Glossário 189
Índice 196
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 196
Edições ArcosOnline.com
www.arcosonline.com
Literatura
ode a um poeta naturalista (narrativa)
A Busca Entre o Vazio (narrativa)
O Livro Verde das Verdades (poesia)
é preciso calar o monólogo (poesia)
Antes do Fim (narrativa)
Histórias Que Acabam Aqui (contos para a infância)
As Sete Fontes (romance)
Actualidade e cultura
A Língua Portuguesa no Alto Minho (ensaio)
European Writings on Psychology (textos científicos)
Humor
O Bando dos 6 ou 7 (crónicas)
O Malogrado Capitão Osório (folhetim)
Em preparação:
A Vida Extrema (poesia)
O Salústio Nogueira (romance)
Lince Ibérico – Revista Literária de Expressão Ibérica
Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 197