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Concha Rousia

As Sete Fontes
romance

Edições ArcosOnline.com
Título
As Sete Fontes

Autora
Concha Rousia

Editor
Victor Domingos
editor@arcosonline.com

Data de edição
17 de Maio de 2005

Edição

Edições ArcosOnline.com
www.arcosonline.com

Este trabalho encontra-se registado na Inspecção Geral das Actividades Culturais, sendo
agora a sua publicação e distribuição gratuita, sob a forma de e-book, efectuada com a
autorização da autora. É permitida a sua impressão e redistribuição em papel ou suporte
digital, desde que isso seja feito sem propósitos comerciais e todo o seu conteúdo
permaneça inalterado.

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SOBRE A AUTORA

Concha   Rousia  nasceu   em   1962   numa   pequena   aldeia


muito similar a Penacova, no Sul da Galiza, entre Ginzo da
Límia   e   Montalegre,   onde   passou   a   sua   infância.
Deslocou­se   posteriormente   a   Vigo,   onde   cursou   estudos
secundários na Universidad Laboral, um internato público
para   raparigas   de   famílias   camponesas   e   operárias.   Lá
sofreu por primeira vez o choque de não poder utilizar com
normalidade   a   sua   língua   galego­portuguesa   na   sua   própria   terra,   e   iniciou
uma   militância   cultural   e   política   a   favor   dos   direitos   linguísticos   e   de
identidade   da   Galiza   que   continua   até   hoje.   Após   diversas   peripécias   vitais,
cursou   tardiamente   estudos   de   Psicologia   na   Universidade   de   Santiago   de
Compostela,   e  depois   residiu   vários anos  nos  Estados  Unidos,  completando
um   mestrado   em   Terapia   Familiar   na   Universidade   de   Maryland.   Na
actualidade   partilha   a   sua   actividade   literária   com   a   prática   da   Psicologia
Clínica perto da cidade compostelã.  As Sete Fontes  é o seu primeiro romance;
anteriormente, deu a conhecer na rede alguns relatos curtos agrupados baixo o
título “Lobos”. No ano 2004 ganhou o Certame de Narrativa Curta do Concelho
de Marim, na Galiza, com o relato “Segredo de Confissão”.

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A Suso, sempre

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PRÓLOGO

Isaac Alonso Estraviz
Universidade de Vigo
 

Acabo de ler muito atentamente e com verdadeiro prazer o romance de
Concha Rousia intitulado As Sete Fontes. Romance que começa na cidade das
Burgas, uma das cidades mais tratadas na nossa literatura. Mas este tem o seu
desenvolvimento   em   terras   provincianas,   que   não   têm   sido   ultimamente
alheias à literatura galega.
Nele   a   autora   enfrenta­se   frontalmente   ao   problema   do   caciquismo
político e religioso e à corrupção que grassa por toda a parte. Tira à superfície
uma série de problemática que faz que o nosso povo não seja o que deve ser. A
luta   entre   a   sobrevivência   e   a   falta   de   forças   ou   de   interesse   para   nos
enfrentarmos a todo um entramado de condicionamentos que não permitem
que o povo galego saia da sua submissão estúpida e lhe falte a força suficiente
para ser dono da sua história e do seu futuro, romper os laços que o inutilizam,
destripar os que não permitem que seja livre e dono do seu destino e dos seus
bens.

Pedem­me  que  ao começo deste romance diga umas palavras  sobre  as


peculiaridades da nossa variante linguística. É muito pouco o que tenho a dizer
se   estamos   a   pensar   nos   falares   populares.   O   leitor  que   pegue   no   romance
olhará isto com toda naturalidade. Mas vou fazer um bocado de história.
Na história do nosso relacionamento, tem havido um bocado de tudo. Às
vezes produto da ignorância. Na década dos cinquenta houve em Braga um
grupo que tentava publicar textos galegos com lhes mudar tão só a ortografia
dos mesmos, deixando formas e vocábulos de duvidosa autenticidade. Lá se
publicaram obras como Nos Picoutos de Antoim de Carré Alvarelhos, Seitura de

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Bouça   Brei   e   colaborações   de   personalidades   de   ambas   pátrias   na   revista
Quatro Ventos. Quer nos livros, quer na revista, os textos galegos deixam muito
que desejar. Depois e ainda hoje se segue com a mania de falar de traduções de
galego para português ou de português para galego como se de duas línguas
diferentes se tratasse.
É realmente uma estupidez, pois um texto português percebe­se muito
melhor   com   a   sua   ortografia   que   com   o   invento   ortográfico   empregado   na
Galiza,   que   tudo   desfigura.   As   palavras   galegas,   que   são   as   mesmas   que   as
portuguesas não se podem escrever de maneira diferente.
É certo que o português da Galiza é um bocado diferente se comparado
com  o  chamado  português   padrão.  Mas não se a comparação se estabelece
com os falares populares do Norte de Portugal. Falares tão portugueses e tão
galegos como os outros. Nos falares de aquém e além Minho há as mesmas
contracções:  pra,  prò,   co,   coa...   Estas  chegam   a  Lisboa   e  ultrapassam   o  seu
domínio. As mesmas formas irregulares de certos verbos:  dixe, dixeste, dixo,
dixemos, dixestes, dixerom; quige, quigeste... Pronúncia do ­v­ como ­b­; formas
verbais   graves:  amavamos,   matavamos...  Podo,   poda...  Qualquer   pessoa   que
tenha contacto e um bocadinho de ouvido para escutar os falantes, perceberá
que   isto   e   outras   cousas   mais   são   assim.   O   que   não   tiver   tempo   para   os
deslocamentos,   que  consulte   as  inúmeras   publicações   monográficas   que   de
uma ou outra maneira incidem no mesmo. O artigo indefinido  ũa, algũa, era
assim   como   se   pronunciava   ainda   em   1850   sendo   condenadas   polos
gramáticos as pronúncias que hoje são oficiais, mas que seguem a ser normais
na Galiza, no Norte de Portugal e em grande parte do Brasil. Grande parte do
que   hoje   se   considera   norma   é   fruto   de   uma   transgressão.   Para   que   olhar
despectivamente   para   pronúncias   ou   léxico   que   não   se   conhece   a   sua
existência?
Muito léxico que os portugueses definem como léxico galego, é também
português. O meu Dicionário é considerado polas gentes do Norte de Portugal
como o melhor dicionário português com que contam para consultarem nele
vocábulos,   frases,   expressões   que   não   encontram   em   nenhum   dicionário
chamado   português.   Na   história   da   lexicografia   portuguesa   houve   uma

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tendência   para   suprimirem   todo   o   léxico   nortenho   e   imporem   um   léxico
bastante reduzido do sul.
Hoje Os Lusíadas de Camões é muito mais compreensível para galegos do
que   para   portugueses.   A   maioria   das   anotações   –   excepto   aquelas   que   se
referem à Mitologia – são inúteis para galegos. As Novelas do Minho de Camilo
Castelo Branco, o mesmo que toda a sua obra resulta muito mais inteligível
para nós do que para a maioria dos portugueses. Miguel Torga, Bento da Cruz e
muitos outros – apesar de que muitas vezes se deixam levar polas modas de
Lisboa – são para nós o léxico mais normal.  A Sibila de Augustina Bessa Luís,
tem   um   léxico   tão   próprio   do   Norte   de   Portugal   como   da   Galiza,   como   da
minha aldeia. Que português é capaz de ler obras de Aquilino Ribeiro sem um
dicionário na mão.
De   Coimbra   para   o   Norte   está­se   a   perder   ou   ocultar   muito   léxico
plenamente português e plenamente galego. Infelizmente ainda se trata de um
trabalho por fazer, pois aquilo que está feito resulta muito incompleto e não sei
por que razão alguns vocábulos nem sequer se recolhem. De Trás­os­Montes
temos um  Dicionário dos Falares de Trás­os­Montes  de Vitor Fernando Barros
que estando muito bem feito, são muito poucos os verbetes recolhidos. Só em
quarenta   aldeias   galegas   recolhi   eu   13.000.  O   Falar   do   Barroso  de   Rui   Dias
Guimarães,   um   trabalho   também   muito   bem   feito,   resulta   a   todas   luzes
incompleto.  O   Vocabulário   Minhoto  de   Manuel   Boaventura   de   grandes
pretensões ficou no vocábulo  Espocar. Posteriormente,  O Falar do Minho, de
Gabriel Gonçalves, que abrange do A ao Z, tem menos verbetes do que o de M.
Boaventura. Podíamos ir citando um por um todos os materiais recolhidos e
que fazem parte de outras obras.
Que pretendo dizer com isto?   Pois que a maioria do léxico do Norte de
Portugal, melhor dito da chamada Galiza Histórica, está ainda sem recolher.
Isto faz pensar que muitos portugueses conhecedores de um padrão aprendido
nas escolas mais aquilo que ainda lhes fica da sua comarca ou de parte da sua
província, ignorantes, portanto, do seu léxico, considerem muito léxico como
exclusivo   da   Galiza,   quando   todas   essas   palavras   se   estão   a   empregar   nos
umbrais das suas casas.

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Ainda   assim,   pode   haver   algumas   palavras   que   não   tenham
correspondência   nalgum   lugar.   Isto   resulta   totalmente   compreensível,   pois
quando uma língua se fala num território extenso e com variantes orográficas e
climáticas,   logicamente   sempre   tem   que  haver   palavras   num   lugar  que   não
sejam próprias de outros. Os do interior não podemos ter o mesmo vocabulário
que os da costa. Mas estamos a falar a mesma língua e esse vocabulário é tão
nosso como deles.
Pode, portanto, que algumas palavras se empreguem na Galiza e não em
Portugal   ou   vice­versa,   mas   isso   não   quer   dizer   que   aquelas   que   são
autenticamente galegas não se considerem como autenticamente portuguesas
e que as que são autenticamente portuguesas não se possam considerar como
autenticamente galegas.
O   léxico   que   emprega   Concha   Rousia   no   seu   romance   é   galego   e   é
português, pode ser que algum vocábulo não esteja recolhido ainda, mas que
existe   estou   plenamente   convencido.   Em   trabalhos   feitos   com   portugueses,
inclusive teses de mestrado e de doutoramento me encontro com as maiores
surpresas.   Encontrar   em   Arcos   de   Valdevez   vocábulos   que   considerava
unicamente   próprios   da   comarca   de   Santiago   de   Compostela.   Ou   com   as
formas verbais tal e como se empregam popularmente na Galiza!!
Esperemos,   pois,   que   esse   puritanismo   que   às   vezes   apresentam   os
nossos colegas portugueses dê passo a uma maior liberdade de espírito e de
criatividade.   Compreende­se   que  para   um   tipo  de   literatura  oficial   haja   um
modelo mais ou menos estandarizado, mas para a poesia e para a prosa não
podemos matar o léxico que nos é comum e que está aí vivo. A obra de arte não
pode estar limitada aos estreitos cânones de abafamento. De seguirmos assim
seriam   inúteis   a   maioria   dos   vocábulos   que   recolhem   os   dicionários   e   de
aqueles  que ainda é necessário recolher. A língua tem de estar em todos os
âmbitos do saber e em todo tipo de culturas.
Acho perfeitamente válido que C. Rousia incorpore afinal do seu romance
um vocabulário com aquelas palavras que considera desconhecidas no mundo
português. Assim facilita o melhor entendimento do romance. Mas isto teria
que   ser   frequente   em   muitas   outras   obras   sejam   elas   da   procedência   que
sejam.

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AS SETE FONTES

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Angustiado,   o   discípulo   acudiu   ao   seu   mestre
espiritual e perguntou­lhe:
– Como posso liberar­me, mestre?
– O instrutor contestou:
– Meu amigo, e quem é que te ata?
Pensamento tradicional da Índia

…Como aranhas fantasmais que tecem 
o esquecimento da sua própria existência.
Castelão

Quem dera volvermos nascer,
e saber o que sabemos!
Pensamento tradicional de Penacova

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LIMIAR

A   notícia   lera­se   no   diário  Nuestra   Región  a   quarta   à   manhã.   O   jornal


quase não podia acreditar no que, porém, era uma realidade inegável. Assim,
como   sumida   por   uma   bruxa,   desaparecera   do   Museu   Arqueológico   de
Ourense uma pia de baptismo datada do século dezassete e que pesa mais de
quinhentos quilos. As autoridades interrogaram os vizinhos, poucos, pois na
vizinhança   o   que   mais   abonda   são   as   tabernas,   na   procura   de   qualquer
informação que os ponha na pista da pia. A porta não fora forçada, e a peça
fora tirada do museu com todo o cuidado, como para não danar nada ao seu
passo, o que permitia descartar qualquer acto de vandalismo. Nas tabernas da
Rua do Manco não se falava doutra cousa nos dias que seguiram à notícia e aos
feitos.   Os   clientes   das   tascas   não   desperdiçaram   a   maré   para   brincar   cos
taberneiros   e  até  algum   gracioso  chegou  a dizer  que  se bem  se  mirava  não
estava tão mal a cousa… “Agora tão sequer não poderão baptizar o vinho…”
A polícia local vigia noite e dia, desde o sucedido, as duas entradas da rua.
As fechaduras das duas portas exteriores do museu foram mudadas também
coa finalidade de tornar aos ladrões de pias. A cidade anda toda alvorotada, e o
sentir da gente fica bem reflectido nos versos do não mui conhecido poeta do
momento, um tal Budial:

Bágoas ardentes
pola pia de pedra
Bágoas escaldantes 
chora hoje a terra

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De quando em vez o diário Nuestra Región salientará o que se for sabendo
do processo de busca e recuperação da peça roubada, além de dar­nos conta
do latejar da cidade. Deste jeito esperam que os ourensãos se tranquilizem e
não percam a confiança no labor que desempenham as autoridades.

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Capítulo I

A FONTECOVA

Ainda que os seus caminhos já se tinham cruzado muitas vezes, tempo
atrás,   os   três   custodiadores   da   pia   de   pedra   não   lembravam  tais  encontros,
nem as faces, bastante mais novas, que os viveram. Estes três homens foram
destinados, sem eles saberem muito bem como ou porquê, para cuidar de que
a   pia   chegue   ao   seu   destino.   Andarão   durante   sete   luas,   que   começarão   a
contar quando chegarem à primeira das sete fontes polas que há­de passar a
pia antes de arribar ao seu destino definitivo. Terão que esconder a pia durante
o dia para que não seja vista por ninguém, e marchar às suas casas, onde não
lhes   hão­de  topar   a  falta.   Cada  noite  voltarão   a  se  reencontrar e  seguir   coa
peregrinação   até   ao   amanhecer,   e   assim   até   ao   remate   do   tempo   do   que
dispõem.   Sete   são   os   pontos   polos   que   a   hão­de   levar,   e   cada   um
corresponde­se com uma das sete fontes das que darão de beber à pia antes de
a depositar no lugar que foi destinado a ela.
A primeira noite, chegaram coa encomenda à Fontecova, o primeiro dos
sete mananciais.  Ainda havia  vagar para o arraiar do dia, polo  que antes de
esconderem a pia tiveram tempo para falar ali na beira da fonte. Nas noites
precedentes àquela, os três homens não tiveram tempo nem fôlegos para se
darem   a   conhecer.   Reinava   a   confusão   nas   suas   cacholas.   Eles   os   três
lembravam   um   sonho   em   que   ficavam   de   pé   direito   nas   portas   do   Museu
Arqueológico   de   Ourense;   Dom   Narciso,   o   cura,   mirando   aos   outros   dous
homens dissera então: “que faço eu à porta deste museu?” Os outros dous, o
Perfeuto Racha­Pedras e o ex­alcaide do concelho de Os Mouros, a quem todos
conheciam   por   Rebenta­Ruas   polo   seu   afã   de   encanar   mais   fundo   que   o
inferno; estes últimos não tinham percebido que aquelas eram as portas dum
museu,   eles   só   passaram   polas   tabernas   da   rua   sem   reparar   nunca   nele.

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Seguido daquele encontro de ensono tudo sucedera tão depressa que os três
homens não tiveram tempo nem para falarem. Agora repousavam na beira da
fonte; aquela fonte, na que com sucessivas mãos­cheias beberam eles e mais
deram   a   sua   água   à   pia,   fora   destinada,   quiçá   pola   sua   localização,   a   ser   a
primeira das sete polas que teria de passar aquela procissão nocturna.
O  Perfeuto Racha­Pedras, que andava algo torpe ultimamente, caíra no
rego   da   água   e   ficara   todo   enlamadurado;   Dom   Narciso,   para   lhe   tirar
importância ao pequeno incidente, repetia­lhe que não se preocupasse, pois
antes   de   que   chegasse   o   dia   havia­lhe   enxugar   e   trapalatrá…;   ao   Perfeuto
amargava­lhe   bem   ter   que   aturar   esses   conselhos,   sobretudo   sabendo   que
vinham   dum   cura.   Ainda   que   Narciso   afirmara   e   negara   essa   condição   na
mesma  frase  (“Fui   cura   mas… agora já  não…”) ao Perfeuto,  como  a toda  a
gente, não lhe abondava com que Narciso não dissesse missa para o deixar de
ver cura, e como uma víbora revolvia­se cara a ele: “que saberás tu, tu nem
sequer foste nunca casado e não lhe tens que dar conta do que fazes ou não
fazes pola noite à mulher!” E isso era certo, o Narciso não lhe tinha que dar
contas a mulher alguma, mas o que não sabia ainda o Racha­Pedras era que
este   cura   cada   noite,   logo   da   ceia,   tinha­se   que   escapar   do   psiquiátrico   do
Couto, onde residia desde um incidente que tivera numa freguesia que linda co
vale onde fica a Fontecova. Tampouco era certo que o Racha­Pedras lhe tivesse
que   dar   contas   à   mulher,   ainda   que   a   tinha;   e   apesar   de   que   muitos   lhe
aconselharam que o deixasse, ela seguia a o aturar. O ex­alcaide, baptizado coa
alprecha   de   Rebenta­Ruas   polos   seus   ex­votantes,   tentou   fazer   de
intermediário entre  o  cura  e  o canteiro… “Calai já, tarabelos, que sois mais
maus de aturar do que… ainda nos hão­de descobrir por vossa causa… porquê
não tratamos de esclarecer onde é que nos topamos…? Lembrais se algum de
vós esteve antes por aqui, ou lhe resulta familiar este sítio?” O cura engrunhou
o focinho e moveu a cabeça em sinal de não ter ideia de que lugar era aquele; a
escasseza de luz que manda a lua nova não ajudava muito. O Racha­Pedras
botou uma olhada mais longa e até subiu ao alto do lameiro no que fica a fonte,
depois   meteu­se   no   carroucho   e   disse:   “sim,   eu   conheço   isto,   estamos   em
terras   dum   lugar   que   se   chama   Penacova,   e   que   fica   do   outro   lado   desse
outeiro;   sei­o  eu  bem  porque  desde  o  carroucho  vi que  acolá  para  o fundo

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estão os penedos da Rainha Loba. Na base daqueles penedos tive eu há anos
uma canteira.”   “Penacova… – repetiu Narciso –, eu disse missa em Penacova
alguma vez, já vão lá alguns anos disso… o cura de Penacova tinha andado algo
desassentado… Penacova…” repetiu o cura, e ficou calado, a olhar para o chão
como tentando achar nas ervas, ou quiçá nos seus miolos, alguma ideia que lhe
dera   luz   àquela   noite   de   incertezas.  “Penacova   pertence  ao concelho   de  Os
Mouros” – disse o ex­alcaide. – “Eu fui alcaide nesse município alguns anos, há
também  já   tempo,   mas  não   me  portei   mal  cos   de   Penacova…”  E  disse  isto
como quem rosna uma queixa, manifestando a sua desconformidade com um
destino que intuía lhe vinha acima.
Começavam a desaparecer algumas estrelas, polo que esconderam a pia e
foram­se, cada quem por seu carreiro. Partiram sem despedir­se sequer, os três
sabiam,   e   então   não   era   preciso   mentá­lo,   que  à   noite   seguinte   teriam  que
juntar­se ali de novo, onde ficava escondida a valiosa peça. Esconder a pia não
era tarefa difícil, pois o lugar no que ficava a fonte estava rodeado de poulas
com   gestas   e   piornos   de   mais   de   dous   metros,   e   tojais   nos   que   se   via
perfeitamente que ninguém entrara a roçar desde havia muitos anos; portanto
escolheram   o   que   ficava   mais   à   mão   e   encaminhado   na   direcção   que
consoante   com   as   estrelas   teriam   de   seguir   na   próxima   jornada,   e   ali   a
esconderam junto cos trebelhos que usavam para a deslocar: uma espécie de
chedeiro  pequeno  sobre  duas rodas  eixadas e um pinho polo que um deles
puxava quando havia que mover a carga. Os outros dous, cada um co ombro à
roda e a empuxar. As pegadas, que ali perto da fonte se espetaram mais, e as
rodeiras, tinham de ser bem dissimuladas antes de partirem para as lavouras
do dia; feito isso, aqueles homens eram livres de voltarem ao seu cotio.

* * *

Pola   manhãzinha   em  Nuestra   Región  pode­se   ler   que   as   autoridades


andam a investigar a história da pia para ver se dão descoberto quem pôde
estar   detrás   da   sua   desaparição.   Com   esta   finalidade   fizeram   uma   visita   ao
Bispado, na rua do Progresso, no meio e meio de Ourense, já que a pia fora, e
porventura ainda era, propriedade da Igreja. Há perto de vinte e poucos anos

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  15
que  foi  sacada  da  freguesia  na que estava, e para a que fora criada, e anda
ambulante por aí; mas sobre disto o Bispado não tinha documentação que o
pudesse provar, já que nos seus arquivos, actualizados antes dessas datas, não
rezava nenhum movimento de pias. A peça fora recentemente adquirida polo
Museu Arqueológico de Ourense, numa hasta pública, e nele estava exposta até
à noite da sua desaparição. Representantes do Bispado, trás cotejar a descrição
que lhe ofereceram os agentes com as suas avelhentadas notas, sugeriram o
nome duma freguesia como possível origem da peça; porém, isso deveria ser
confirmado, pois nos arquivos não consta pia nenhuma desaparecida em tal
lugar. Ora que também se poderia tratar doutra pia e doutra freguesia, pois,
ainda que não o pareça, todas são similares.
Na secção de sociedade, o diário recolhe a notícia de como os vizinhos da
cidade velha iniciaram uma campanha de recolhida de fundos para mandar
fazer  outra  pia  exacta,  e  que  não   lhe  perca   ponto,   à desaparecida.  O jornal
também   publica   um   novo   verso   de   Budial,   e   o   anúncio   dum   adinheirado
ourensão que oferece uma soma respeitável a quem proporcionar informação
fidedigna   que   ajude   a   dar   co   paradeiro   da   pia.   O   nome   deste   enriquecido
cidadão é omitido para lhe evitar a avalancha de possíveis informadores no seu
domicílio. Aquelas pessoas que tenham, pois, algum tipo de informação que
pensem poder ser de interesse, podem achegar­se aos escritórios deste jornal,
ou ligar por telefone a um número que é facilitado também polo diário.

* * *

– Cala, Racha­Pedras, e agacha o lombo que a cousa não se há­de mover
só; deixa­o tranquilo co pinho, já te chegará a ti a rolda.
O   Racha­Pedras   seguia   um   pouco   enfronhado   porque   ontem   caíra   no
rego e hoje enterrara na lama um sapato que trazia esgalochado e molhara o
calcanhar, polo que não pára de lançar ataques a Dom Narciso, quem semelha
todo calmo e sempre com conselhos de como se hão­de fazer as cousas… –
“mas que saberá este, se é um cura qualquer…!?” Não, aquele não era um cura
qualquer, mas o Racha­Pedras desconhecia a história de Dom Narciso. Dom
Narciso não fora um cura qualquer nunca, nem sequer antes de ser cura; ele,

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  16
para começar, mália as ganas que tinha de se meter cura, contudo os pais… os
devezos de que estudasse,… de o livrar de ter que estar atado à terra como lhes
passa a eles,… que se não servia para outra cousa,… que volta e que dá­lhe, e
que tal e que sei eu… Por conseguinte, o Narciso rematou no seminário e foi­se
deixando levar. Ele era um moço alegre, mesmo tinha uma graça com ele que
facilitava a relação com qualquer, polo que os curas do internato mui pronto
ficaram seduzidos por ele e deixavam­lhe ir passando as mais das cousas que
fazia, muitas não estavam bem de todo para um futuro ministro de El Senhor,
não obstante já se formalizaria quando se ordenasse; isto que ele fazia agora
eram  cousas   de  rapaz,   que   com  a  idade  e  a  ensinança  iriam  minguando.   E
assim foi indo este moço levado polas amparadelas dos que se ocupavam da
sua  formação  espiritual,  e  que  o converteram  em  cura.   Cura  feito  e  direito;
assim, quase sem se aperceber, Narciso era o titular duma freguesia não mui
afastada da cidade de Ourense. De hoje para amanhã convertera­se em Dom
Narciso,   atrás   ficavam   os   muros   de   pedra   do   seminário   que   o   agacharam
durante uma mada ou duas de anos, e agora livre… Quem seria ele ali fora, sem
a frialdade das pedras para dar acougo à sua juventude ainda por viver? Não
tinha outro remédio que descobri­lo por si mesmo, e assim, com um talante
quase que de explorador, sem ele nem o querer, começou a sua andaina de
pastor. 
Aqueles dias primeiros na freguesia seriam no futuro lembrados por Dom
Narciso como dias livres e felizes, nos que a ilusão era o temão que guiava o seu
fazer  quotidiano.   Toda   aquela   gente   mostrando­lhe   respeito…,   e   não   só   na
igreja,   senão   também   quando   se   cruzavam   com   ele   pola   rua;   mesmo   os
homens, que só de se achegarem ao sagrado já tiram a gorra da cabeça e lhe
saúdam   com   esse   aceno   submisso,   comunicando­lhe   a   Narciso   o
reconhecimento   da   sua   superioridade.   E   o   Narciso   começou   de   sentir­se
grande, mesmo partícipe merecedor da bondade infinda do Criador… assim
foi como começaram as suas ideações gloriosas…
–  Queres tirar duma vez! Sempre estamos na mesma… parece que este
sempre anda nos viosbardos. 
Aquele   Racha­Pedras   sempre   a   tanger   no   Narciso;   soltava­lhas   sem
sequer dirigir­se ou fitar para ele a metade das vezes; mas o abade hoje parecia

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  17
não   importar­se   demasiado,   andava   o   homem   a   olhar   para   dentro   e   não
percebia   muito   as   aguilhoadas   que   coa   língua   lhe   lançava   o   canteiro;
felizmente a roda lhe mantém o poder ocupado ao Racha­Pedras, senão este
hoje saltava­lhe no pelejo ao cura; e tudo bem seguro que por causa de se lhe
atoar   o   sapato   na   lama   e   ter   que   andar   ao   couchopé   quando   saíram   do
lameiro…
À   medida   que   o   arraiar   se   achegava,   Fontecova   ia   ficando   atrás.   A
Fontecova, um manancial que fervia da terra, dava nome àquele frondoso vale.
O lameiro em que rebentavam aquelas boas águas reverdecia, e já desde longe
se diferenciava bem dos outros; mesmo se sentia latejar a água naquelas tornas
sachadas de ano em ano. Fontecova é o primeiro manancial da freguesia de
Penacova subindo polo caminho de Ameixeiras e não há viageiro da comarca
que não entrara alguma vez a saciar a sua sede com estas ricas águas. Sim, a
Fontecova   é   muito   apreciada.   E   vá   se   agradecem   os   de   abaixo   o   que   lhes
decorre. Tal é, que há uns anos quase entraram em litígio uns vizinhos porque
os herdeiros do lameiro onde abrolha a fonte não se ocuparam de desentupir
as tornas, e assim a água era toda sumida e consumida, sem que decorresse
nem  gota  para  os   campos   lindeiros  dos  vizinhos,  que  quase se atreveram  a
meter os seus sachos nas tornas da fontela. Tudo se arranjou polas boas, quiçá
porque não lhe ligou de passar por ali a nenhum advogado, ou quiçá porque
todos gostam de não ter que pleitear, ou quiçá por outras razões. Aprenderam
todos daquela que a água da Fontecova não só pertence ao lameiro no que
nasce rompendo os seus torrões, senão que os donos, logo de se servirem dela,
devem­na   deixar   marchar   para   que   livremente   banhe   outros   lameiros
próximos;   e   certo   é   que   são   muitos   e   bem   deles   os   que   se   servem   destas
águas… Como delas se serviram os três homens, que logo de se saciarem, e dar
de   beber   à   pia   que   há­de   estar   sempre   molhada,   partiram   e   caminharam.
Caminharam bem, e apesar da fraqueza mostrada polo encarregado do pinho,
como frequentemente lhe lembra o Racha­Pedras: “se faria mais um mosquito
que este palerma…!”, essa noite atravessaram as terras lindeiras a Fontecova, e
internaram­se nas carvalheiras da Lagoa. Aquela jornada avançaram avondo,
ainda que não todos ou quiçá nenhum o pudesse reconhecer… tal era o seu
fado. Esconderam a pia e os aparelhos e foram­se, cada quem por onde viera.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  18
* * *

Na   edição   de   hoje,  Nuestra   Región  pede   aos   cidadãos   o   favor   de   não


fazerem mais ligações à direcção do jornal para dar informação sobre a pia, de
não   ser   que   a   viram   passar   polas   próprias   ventas.   O   jornal   dá   queixas   da
enorme   quantidade   de   ligações   recebidas,   muitas   delas   de   bandarras   e
gandaias que nunca hão­de faltar, e que mantiveram todas as linhas do jornal
ocupadas noite e dia…
…Diz­se   que   houve   chamadas   bem   pândegas,   se   bem   que   disso   só
conhecem os vizinhos de Seixalvo onde os comentários foram espalhados por
uma recepcionista  de  Nuestra  Región.  Segundo a tal rapaza telefonista seica
houve uma mulher que se encheu de porfiar e porfiar, até ligou mais de duas
ou três vezes, dizendo  que aquilo só podia ser obra de  El Demónio  e que o
único que se podia era rezar e confiar em El Senhor. Outro comunicante diz­se
que   insistiu   em   que   ele   vira   a   pia   recentemente,   embora   não   lhe   diria   a
ninguém,   excepto   ao   senhor   milionário,   onde   é   que   ele   a   guichara.   Outros
afirmavam que viram a pia em sonhos e lhes falara dando­lhes a entender a
onde é que se encaminhava, e cousas assim polo estilo.

* * *

As noites seguintes transcorreram sem maiores intriquidências; o canteiro
parecia   menos   enraivado   co   abade,   se   calhar   porque   a   Lagoa   era   chã   e   o
Perfeuto  não   se  tinha  que  esforçar  tanto e tampouco  se  lhe ençoufavam  os
sapatos, que por certo agora levava bem amalhoados; ou também quiçá porque
Dom Narciso seguia ensimesmado com as suas cavilações e não lhe andava a
dar conselhos a ninguém; ou se calhar fosse por ambas as razões ou talvez por
nenhuma delas. O caso é que o ex­alcaide, que como de costume não tinha
muito que dizer, gozava daquela calma que reinaria nas noites que lhes levou
atravessar   a   Lagoa   de   Penacova.   A   Lagoa   de   Penacova,   como   o   seu   nome
indica, é um terreno parcialmente asolagado, se bem que eles o atravessavam
por uma parte enxoita. A planície vem­lhe bem a Dom Narciso para seguir cos

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  19
seus pensamentos,  que por certo traziam­no algo confundido… Como pôde
ele, tão bem como começara a sua andaina, rematar onde rematou? Narciso
seguia a relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde nasceram
tantos sonhos… Aquele tanto respeito que sentia ele que lhe tinham todos… e
a adoração que lhe mostravam as mulheres…! Esse era o seu deleitar sublime…
ver­se   assim   admirado   por   esses   seres   que   ele   considerava   doces   e   suaves,
ainda que, para dizer a verdade, nunca os provara. Ele entrara tão novinho no
seminário,   muito   antes   de   descobrir   os   sentires   do   corpo,   e   foi   ali   nessa
pequena freguesia onde o  corpo acordou,  correu o trecho que lhe faltava, e
alcançou   a   sua   realização,   igualando­se   corpo   e   espírito.   E   sem   decatar­se
sequer   de   como,   o   Narciso   passava   o   dia   numa   névoa   de   imagens   quase
proibidas   que   pouco   a   pouco   se   foram   encarnando…   e   até   acabou
debuxando­lhes   cara   àqueles  corpos  imaginados.   Agora   já  sempre  a mesma
cara, e a seguir também já sempre o mesmo corpo. Inevitavelmente, namorou.
Ela converteu­se no ser mais maravilhoso do mundo de Narciso, o seu sol, o
seu   temão…   e   dado   quem   ele   era   daquela,   a   sua   perdição.   Novamente   se
ergueram   os   muros   do   seminário   e   Narciso   e   os   seus   superiores
conferenciaram, e o Bispado sentenciou: “Vais­te ir a esta nova freguesia e não
volverás   ver   essa   mulher”…   Ora   ele   amava­a…  e   até  pensara…   mas   cedeu,
deixou­se resgatar, deixou­se arrapazar novamente polos seus mestres que tão
benevolamente   lhe   aconselhavam   e   lhe   perdoavam   as   suas   fraquezas   de
homem novo.
O bispo que havia daquela, ao que todos os de dentro se referiam como
“O rechonchudo Severino”, conhecia das debilidades do corpo; e ainda que ele
nunca   sentira   essa   classe   de   urgências   ardorosas   baixo   as   suas   apertadas
vestiduras,   apertadas   não   por   justas  senão   por  enchidas,   mesmo  semelhava
que se lhe ia sair o unto polas aberturas de entre botão e botão… e mais de um
diz­se   que   recebeu   uma   botoada,   ao   sair   um,   comprimido   pola   gordura
amoreada, propulsado… Pois este bispo, seica, entendia da fraqueza humana.
Este bispo mole de corpo e espírito devezia polo chocolate e mais as roscas…
era superior a ele, a sua cadeia escravizadora. Polas noites, antes de dormir,
dom   Severino   rezava   e   rezava   para   evitar   aquelas   imagens   obsessivas   de
cunquinhas   coloradas   com   corninhos   e   um   rabo   afiado.   Assim,   a   contar

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  20
ave­marias, se dormia, e pronto o sorriso se debuxava no seu rosto… nos seus
sonhos   habitavam   taças   douradas   com   brancas   asas,   e   ele   fartava­se   de
dormir…,   o   que   podia   fazer   um   homem   da   sua   condição?   Mas   à   manhã
vinham os remorsos por entregar­se assim nos sonhos. E por isso era um ser
compreensivo.   A   Narciso   serviu­lhe   essa   benevolência,   polo   menos   para   ir
aguentando.
Da Lagoa já faltava cada vez menos, e o Lombo, cheio de pinheiros, ficava
aí mesmo a os aguardar quando rematasse o dia. Agora havia que marchar, e
assim,   como   as   outras   vezes,   trás   esconderem   a   pia,   esvaeceram­se   os   três
homens.

* * *

Parece que o diário  Nuestra Región  se vai arrefecendo um pouco e cada


vez publica menos notícias ou comentários referentes à pia, talvez seja para lhe
tirar importância ao assunto e ver se a avalancha de ligações diminui, que seica
por certo tem baixado bem nos últimos dias. E também se diz que algumas das
ligações estão a ser estudadas a fundo, e que alguns informadores estiram já os
seus longos dedos, mas nada, o milionário não solta um peso até que a pia
fique no sítio em que estava, ou tão sequer localizada polas autoridades.
Na  edição  de hoje, entre louvanças à colaboração do  Bispado,  Nuestra
Región  confirma que efectivamente as autoridades, após a sua visita à rua do
Progresso, têm conhecimento exacto tanto da história da pia quanto da sua
freguesia   de   procedência,   e   poderão   iniciar   o   seu   labor   investigador
propriamente dito…
…e não é mentira nenhuma, que agora os encarregados da investigação
têm uma ideia sobre qual pôde ser a freguesia da que inicialmente se tirara a
pia   que   agora   desapareceu   do   museu.   Mas   dado   que   o   Bispado   não   pôde
corroborá­lo   nem   negá­lo,   terão   que   ser   os   agentes   quem   confirmem   a
identidade da peça e mais da freguesia da que fora levada. Em primeiro lugar
terão que confirmar que, efectivamente, nessa freguesia desapareceu uma pia e
que,   com   efeito,   se   trata   da   mesma   que   desapareceu   agora   do   museu.
Também,   enquanto,   irão   arrecadando   pistas   que   lhes   ajudem   a   descobrir

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  21
quem a pôde ter levado a primeira vez, e estudar a sua possível relação coa
desaparição mais recente. Para isto, os dous agentes vão ir visitar esse lugar e
falar cos vizinhos.
…o nome desta freguesia, que fica polo sul da nossa província, será polo
de agora omitido para não contaminar a atmosfera da investigação e enfastiar
o   êxito   das   pesquisas.   O   jornal   seguirá   a   informar   dos   progressos   que   se
produzirem. 
Na   secção   de   sociedade,  Nuestra   Región  informa­nos   de   que   os
promotores da iniciativa popular encaminhada a arrecadar fundos para uma
nova pia, idêntica à primeira e se couber mais bonita – com incrustações de
pedras semipreciosas ao redor da sua boca…–, afirmam que já quase juntaram
dinheiro   suficiente   para   a   dita  pia   substituta,   e   que   com   ânsia  aguardam  o
momento   dessa   realização.   O   jornal   faz   uma   exaltação   das   iniciativas   da
vizinhança quando se trata de lutar por salvaguardar os verdadeiros valores da
nossa sociedade.

* * *

Atravessar o Lombo não lhes custaria muito a estes três homens, ademais
era algo de baixada, não muito mas sim o justo para não ter que fazer força nas
rodas  daquele  trebelho sobre  o que levavam a pia.  À lua faltava­lhe alguma
noite   para   encher   e   essa   tanta   luz   que   lhes   lançava   ajudava­os   a   não
precisarem   dos   faróis   que   a   cotio   levavam   instalados  em  cadanseu   lado   do
chedeiro para alumiar­se. Além disso, esta lua anunciava o minguante, e é esse
o tempo que lhes resta para chegarem à Auguela, o segundo manancial do seu
percorrido.   Com   um   chisco   de   boa   sorte   rematariam   o   Lombo   em   três   ou
quatro noites e ainda lhes sobraria tempo e tempo antes da nova lua. Por este
terreno, algo de bimbarreira, Dom Narciso anda ligeiro, às vezes até deixa aos
outros   dous   atrás   e   se   vai   ele   só   coa   carga.   Esta   ligeireza   que   semelha
euforizante faz aparecer ao cura como menos sereno, menos calmo,… como se
realmente andasse na procura de algo… Algo que parece esvaecer­se­lhe cada
vez que tenta achegar­se. “Oh, claro, cara abaixo todos os santos ajudam, e este
deve   de   estar   abonado…!”   Aquele   Racha­Pedras   não   perdoava   uma,   não

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  22
desperdiçava maré para lhe botar a Dom Narciso as culpas por qualquer cousa
que este fizesse ou não fizesse. Esta vez, como outras, o alcaide quis dizer algo,
quis de novo tentar suavizar a tensão que se respirava ao redor daquela pia, e
que sempre ia dirigida do Racha­Pedras ao padre. O alcaide queria que não
houvesse tensão, o alcaide estava afeito a ter todos os apoios, a mercá­los se
fizer   falta…   por   conseguinte   ultimamente   corrigia   ao   canteiro,   porém,   sem
entrar em maior contradição com ele, e este já não lhe fazia tampouco muito
caso,   ou   melhor   dito,   nenhum.  Esta última vez o alcaide abriu a boca,  mas
antes   de   sequer   bafejar   o   Racha­Pedras   fechou­lha   de   contado:   “Cala,   cala,
advogado, que tu só dizes parvadas, não te queres nem molhado nem enxoito,
jogando sempre a duas bandas, assim nem perdes nem ganhas. Se não tens
nada com jeito que dizer, caladinho ficas mais guapo”. O alcaide emudeceu e
mouminhou algo para os seus adentros sem que o outro percebesse. 
Dom Narciso, enquanto, ajudado pola inclinação do terreno, apurava o
passo; parecia como se o seu andar se pusesse a um co seu percorrer interior,
que   hoje  é  dinâmico   e  rebordante  de  energia.  Sim,  Dom  Narciso   chegara   à
nova   freguesia   com   uma   maleta  que   não   semelhava   muito   grande,   ora   sim
cheia;  ia carregada das  ganas de o fazer tudo  bem, cheia de sãos devezos e
esperanças…  desta  vez  seria o abade ideal, o bom cristão,  o bom vizinho…
Atrás ficaria aquele Narciso moço sempre com sede de louvanças, que se sentia
tão  grande  polo   respeito  dos  homens;  agora seria um mais entre eles.  Dom
Narciso   abriu   a   abandonada   casa   reitoral   da   freguesia   e   deu­lhe   o  uso   que
levava   atrasado.   Cavou   a   horta,   criou   fazenda,   cortou   a   sua   própria   lenha,
carregou   esterco,   e  até   começou   de   ir   ao  concelho   para   ajudar   nos  labores
comunais: limpar poços, abrir os regos para a rega, ou o que fizer falta; um
vizinho responsável, ele não quer viver só do conto como um cura. E claro…, as
botas verdes de goma não ligam bem co negro da sotana… mal pensava ele que
por   aí   lhe   viriam   as   críticas.   Ora   ele   não   se   desanimou,   e   seguiu   co   seu
propósito.
  Aqueles   eram   já   tempos   de   os   curas   começarem   de   se   servir   do
automóvel… com varias freguesias para atender… mas o Narciso, fazendo um
grande sacrifício, ia a todas partes a andar, às vezes dando que dizer, porque
todos os curas da zona tinham carro; e alguns até vários. Como esse outro daí

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  23
abaixo em quase chegando à Límia que tem dous da mesma cor e da mesma
marca, mas só um com documentação; e assim lho diz aos guardas quando liga
de o pararem por ir a contramão, ou deixar o auto no meio da estrada; mas os
guardas não o multam, nem sequer o recriminam, “tenha você conta…” e é
que o negro da sotana, que por certo sempre a leva emporcalhada, ainda pode
co verde dos uniformes. Mas Dom Narciso não há­de levar sotana, e isso que
bem que lhe ajustaria, pois ele tem o corpo direito e sem barriga, não como
esses curas dos carros que andam a criar gorduras e que de não levar sotana
semelhariam pipotes cheios de pingo. 
Narciso   trabalha   e   não   precisa   das   travaduras   da   sotana,   a   ele
cumprem­lhe roupas que não pejem e permitam mover os músculos, roupas
que lhe hão­de ir avantajadas, mas não demasiado, só o justo para caberem
folgadas  e facilitar  o  movimento necessário para o trabalho; com uns  jeans,
uma camisa do comércio e umas boas botas de bezerro, vai servido. As meias
hão­de ser de lã. Porque ele é trabalhador, Narciso fez­se trabalhador e tira­lho
ao lombo cada dia, e isso… confunde aos vizinhos e amola aos outros cregos,
que engrunham os focinhos e pouco a pouco o vão isolando. Este cura, que
cada dia parece menos cura e mais labrego em boca dos vizinhos, vai ficando
mais e mais só. E cada dia lhe vêm menos fregueses à missa; e ainda quando o
fazem, às vezes tem Narciso que ouvir o que não quer… Como aquele dia que o
caneco do Rolo, que nem sequer à missa era capaz de ir sem levar um vaso
demais, acirrado polos outros, disse­lhe em plena igreja: “hoje digo eu a missa,
Dom Narciso, que você já não é cura nem é nada” E Narciso não teve outro
remédio que colhê­lo polo braço para o botar fora… Achegou­o até a porta e ali
deu­lhe   um   couce   no   cu;   depois   deu   meia   volta   e   todo   ancho   pôs­se   a
caminhar até chegar  ao  altar  enquanto dizia: “pra colhões, eu!” Os labregos
respeitam o homem que lhes ajuda no concelho, mas já não vêem nele ao cura,
e   a   igreja   fica   vazia.   Contudo   Dom   Narciso   insiste:   “Hoje   vinheste   só   tu   –
dissera­lhe   àquele   moço   um   domingo   –   pois   para   si   digo   eu   a   missa   e   os
demais   que   se   arranjem   sem   ela”   Enquanto,   os   curas   de   toda   a   contorna
desprezam o que Dom Narciso simboliza… que caráfio é isso de que os curas
trabalhem!? Isso Deus não o permita… E Dom Narciso descobre os sofreres
desta   vida.   Os   outros   sotanas­pretas   vão   tolerando   a   Narciso   porque   lho

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  24
ordenam   desde   acima,   mas   por   detrás   vêm   a   burla   e   mais   a   crítica.   Dom
Narciso vê­se só, predicando co exemplo mas só, predicando­lhes às paredes
do seu horto… 
O labrego que surgia lá dentro deste cura começou a ver a vida doutro
jeito,   começou   a   vê­la   como   realmente   fora   pintada   para   o   labrego:   dura   e
escrava. Mas a quem dizer­lho, se já ninguém o escutava? Só os moços, e por
desgraça desses cada dia ficam menos na freguesia. Mas ele resiste, e achega­se
até Ginzo para ver à gente nova e falar­lhes da injustiça, do avassalamento, dos
caciques,   dos  Guardias   Civiles  retirados,   dos   inspectores   de   granjas   de
UTECO1…  estes   dous   últimos   tipos   humanos   são   os   mais   detestados   por
Narciso, que se por ele for fazer­se­ia com eles uma boa empanada para lha
botar aos cadelos. Dom Narciso viaja no  coche de  linea, esses esfrangalhados
autocarros da Vilaça, nos que te congelas ou te abafas, ou as duas cousas a um
tempo;   os   sapatos   vão­che   ardendo   enquanto   pola   janela,   que   não   fecha,
gela­se­che a cabeça. A linea dá mil voltas antes de chegar atarricada a Ginzo,
vai   percorrendo   lugares   e   enchendo­se   até   que   não   cabe   um   cristo   mais;   a
gente   amorea­se   polo   espaço   entre   as   ringleiras   dos   assentos,   e   até   nos
degraus…   “Sente,   sente   Dom   Narciso”   diz­lhe   alguma   velhinha   que   o
reconhece;   mas   ele   declina   a   invitação   e   enquanto,   ali   de   pé,   aproveita   a
conjuntura para soltar  o  seu sermão sobre a injustiça, mas as suas palavras
vão­se por cima das cabeças e fogem polos vidros rachados do autocarro. E o
vazio entra no coração de Narciso, que já mostra tristura de pessoa abatida…
que fazer? Como aturar a angústia, a soidade, o desprezo…? Por mais que ele
tentava manter­se no bom caminho, não parecia obter resultados e vai passo a
passo cavilando mais no que ele sente, em lugar de pensar melhor aquilo do
que fala. E pensando na mágoa que o habita entra nos bares, onde não falta
quem o  convide  a um  vaso… “Beba, beba, Dom Narciso, que esta rolda vai
minha” E Narciso bebe, e conversa, e sente­se melhor, e bebe e conversa, e
bebe…e quase sem que se decate está metido no vinho. 
A Estrelinha do Luzeiro ordena­lhes a partida aos portadores da pia. Cada
um vai por seu carroucho, e como sempre sem se despedir. O Narciso parece

1
UTECO – Sigla da organização de cooperativas agro-pecuárias ourensãs, organismo que agrupava a
muitas granjas na província de Ourense nos anos 70-80, de estrutura e funcionamento caciquis.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  25
tão   canso   que   até   o   Racha­Pedras   o   percebe   e   por   primeira   vez   dês   que
compartem destino morde a língua e não arremete contra o curinha. E assim
pensativos partem os homens cara ao dia.

* * *

Vai   lá   perto   de   cumprir­se   o   mês   desde   a   desaparição   da   pia   e   as


autoridades seguem trabalhando  na procura de pistas.  Os últimos  informes,
segundo o que se filtrou ao diário  Nuestra Región,  parecem indicar que dous
agentes  foram  despachados   à  freguesia da  que  fora  tirada a  pia no  seu  dia,
antes de vir parar ao Museu Arqueológico de Ourense. Lembra­nos também o
jornal   que   é   uma   pequena   freguesia,   sem   maior   importância,   lá   no   sul   da
província, na Raia, na que os dous investigadores deslocados ali durante uns
dias se aplicarão para conseguir o que buscam. O jornal não duvida que estes
dous oficiais, dada a sua profissionalidade e ofício, não tardarão em topar as
peças   que   lhes   faltam   para   completar   o   quebra­cabeças   da   misteriosa
desaparição…
…e como se de um verdadeiro quebra­cabeças de pedra se tratasse, os
dous   homens   empreenderam   o   seu   labor.   Duvidaram   entre   deslocarem­se
cada dia desde Ourense ou parar num dos pequenos hotéis de Ginzo. Afinal
optaram, decisão do chefe, por se deslocar diariamente desde a capital, afinal
de   contas   nem   fica   tão   afastada.   Também,   dado   o   seu   conhecimento   da
reacção da gente das aldeias  ante as autoridades, decidiram ir de incógnito,
ainda que isto lhes fizer  ter que aturar certas atitudes,  que doutro jeito não
teriam porquê tolerar. 
Num   dos   números   que  Nuestra   Región  publicou   a   passada   semana
ressalta­se   como   o   milionário   do   que   se   viera   falando   anteriormente
estabeleceu relações com algum dos pretendidos informadores que resultaram
ser   uns   aproveitados   que   só   tentavam   tirar   um   peso   do   peto   do   pobre
adinheirado.
E   como   não,   também   nas   páginas   da   passada   semana   assinalou   um
espaço Nuestra Región para ressaltar e louvar a organização vizinhal da cidade

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  26
velha, e para o anúncio da apresentação dum livro de versos do poeta Budial,
que terá lugar a sexta­feira dessa mesma semana na livraria do jornal.
Polo que se vê, a Nuestra Región não chegaram os rumores que se criam
polas  ruas,   segundo   os   quais   as  cousas  andam  revoltas,   e  onde  antes havia
consenso   agora   há   desarmonia,   sem   dúvida   produzida   pola   divisão   de
pareceres   entre   os   vizinhos   que   integram   a   comissão   organizadora   da
campanha de recolhida de fundos para governar o da pia. Diz­se que de não
ser   pola   má   fortuna   a   estas   horas   já   teriam   falado   co   escultor   para   lhe   ir
encarregando a encomenda. Seica se produziram enfrentamentos entre duas
facções:   por   um   lado   estão   os   que   defendem   a   postura   inicial   de   todos,   e
querem começar quanto antes o projecto de reposição; por outro, estão os que
após   descobrirem   que   há   tanto   interesse   no   tema,   querem   gastar   o   que
juntaram fazendo uma viagem ao Caribe, e que seja o milionário o que pague
pola pia, diz­se que cada vez são mais os adeptos a ideia do Caribe.

* * *

Numas   quantas   noites   mais  remataram  de  cruzar   o  Lombo,   que   é  um


outeiro coberto de pinheirais com grandes zonas ardidas. Depois baixaram à
Auguela, onde fica a segunda das fontes polas que hão­de passar nesta andaria,
e  descansaram  umas  quantas  horas ao redor da fonte que nasce no meio e
meio da cavada dum vizinho de Penacova. As cavadas fizeram­se no monte vai
lá para perto de trinta anos. Iam vir os pinos; o pedâneo, que daquela era o tio
Serafim, deu ordem de que o que quiser podia fazer cavada para ele. Mais de
um correra então coa enxada para sachar nas terras ao redor da fontela, mas só
os primeiros puderam escolher essa sorte. Agora aquela fonte andava mui bem
cuidada   e   dava   as   melhores   morujas   que   se   possam   imaginar.   Ainda   há
vizinhos de Penacova que se achegam até ali de quando em vez a trazer água
para ir bebendo uns dias.
Os   três   homens   e   a   pia   beberam   e   beberam   daquela   água,   e   depois
sentaram ao redor da fonte e topenearam um chisco… claro, assim quedos a
qualquer  não   o  tenta  o  sono!   Estes  homens  não  tinham  prática no  diálogo:
Dom   Narciso,   acostumado   aos   seus   sermões…   sempre   aconselhando;   o

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  27
Perfeuto Racha­Pedras só sabia dar ordens, mandar, mandar, mandar… era o
seu; e que dizer do ex­alcaide… esse não só dizia embustes senão que os cria
ele mesmo e depois já não precisava escutar a mais ninguém. Não, de escutar
não sabiam muito estes três, e agora não tinham público, nem fregueses, nem
empregados,   nem   ninguém   a   quem   largar   o   contido   das   suas   cacholas,   e
andam algo confundidos. Que fazer ali no meio da noite tendo só o interior
dum mesmo para dialogar, e não vendo com muita clareza? Só restava deixar
que   fosse   o   homem   da   moca,   quem   ditara   a   conversa,   muda,   e   assim   iam
fazendo. 
Ao Narciso ficara­lhe o pensamento prendido na silveira daqueles bares
de Ginzo; ele, que agora era abstémio, polo menos no que respeita ao vinho e
outras   drogas   que   se   possam   engolir   sem   prescrição   facultativa,   não   dava
entendido como se fora metendo na bebida. Ele lembra a fortaleza que tinha e
a firmeza dos seus propósitos e parece que não recorda a angústia com que o
seu espírito tinha que carregar já desde a manhã; era como vestir um corpete
que premesse de dentro para fora. Mas essa angústia esmagadora andava agora
agachada, coa ajuda das pastilhas cada vez lembra menos, já nem sente… mas
claro,   agora   com   tanto   tempo   para   espreitar…   Agora,   enquanto   o   sono   lhe
obriga   a   deixar   pender   a   cabeça,   vai   vendo   como   os   pensamentos   se
entrecortam com  imagens  que manam do  fundo dos sonhos… são imagens
desconcertantes   que   abrolham   desse   escuro   mundo   do   que   ele   não   tem
controlo, e o que aparece é um homenzinho com um vaso na mão erguida; um
homenzinho que se cambaleia, um homenzinho que cai e desde o chão segue a
falar.  Está   rodeado   de  gente  e  ele  pensa  que  o  escuta…  mas  agora  desde  a
claridade da noite na Auguela pode ver como aqueles do seu redor se dão de
olho e riem enquanto ele solta o seu discurso sobre a injustiça e a escravitude.
Felizmente essas imagens tremebundas se interrompem e o espertam do seu
ser adormecido.
Dom Narciso  fica logo  confundido,  as lembranças que ele recorda não
eram   tão   cruas   nem   tão   vivas   como   estas   que   o   visitam   agora   enquanto
adorminha na Auguela junto à pia. Ele achega­se à pedra fria e interroga­se,
que faria ele ali com aqueles dous homens aos que nem sequer conhecia? Claro
que   ele   ultimamente   não   conhece   a   muitos   que   digamos,   mas   ainda   assim

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  28
aqueles dous não eram dos que iam à missa, e também é certo que ele leva já
bem tempo sem freguesia nem fregueses. O alcaide lembra­lhe a Dom Narciso
àqueles   inspectores   de  UTECO  que   ele   tanto   aborrecera:   bem   entrado   nos
sessenta e com algo de bandulho criado pola falta de trabalho e a preguiça. O
Racha­Pedras fazia­lhe pensar no cacholudo que sempre lhe lançava alguma
para se rir dele quando ia aos trabalhos comunais co concelho, que se pouca
cousa, mequetrefe, que se só estorvava, e até trabalhoso lhe deixava cair para
humilhá­lo; e assim dia trás dia e ano trás ano enquanto durou a sua estadia na
freguesia   de   Ameixeiras,   última   na   que   ele   dissera   missa   e   da   que   fora
arrancado de jeito brusco e definitivo. E agora achava­se Dom Narciso ali com
aqueles   companheiros   que   ele   jamais   teria   escolhido.   Porquê   era   ele
merecedor de tal castigo? Ele sabia que cara ao final não actuara bem de todo
em Ameixeiras, contudo ainda andava o homem tentando de adivinhar como
fora ou como não, quando se topou com aqueles dous, e prendido a eles ficava
pola pia. Mas o porquê não o alcançava ainda nem de longe… e assim seguia
cedendo ao sofrer; que por certo, naquele novo jeito em parte consistente em
não saber, não lhe era de todo desagradável. Assim, deixando­se levar polo seu
fado   ia   passando   as   jornadas   nocturnas,   que   hoje   eram   descansadas,   mas
amanhã viriam as subidas e os esforços que levarão a sabe Deus onde. Aquela
noite  o  Narciso  bebeu  muita  água, quiçá por terem espertado nele ressacas
passadas, esquecidas pola mente mas não polo corpo que as sofrera e agora as
sentia. O pior ainda era quando à manhã havia que trousar até a figadeira; logo
viria aquele nojo, o arrependimento e a rábia que não topando outra forma de
expressão se encarregava de o devolver aos bares de Ginzo, ou às tabernas da
freguesia.   Mas   agora   só   bebia   água,   dês   que   o   meteram   no   psiquiátrico   só
bebia água, muita água. Donde lhe vinha toda aquela sede que parecia não dar
saciado? Porque, de algures lhe teria que vir, não é? Dês que os batas­brancas
se encarregavam da sua dieta bem suplementada com pílulas, venha água e
mais  água.  Mas  agora,  vendo   correr aquela tanta água que se espargia  pola
cavada abaixo, Dom Narciso sentia­se melhor, quase se sentia bem. E ainda
teve tempo de perguntar­se que seria o que se andava passando polos miolos
dos seus companheiros. 

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Ainda   que   tanto   o   Racha­Pedras   como   o   Rebenta­Ruas   representavam
para Narciso a duas castas de gente bem desprezadas por ele, e coas que ele
nunca se juntaria, agora vendo­os assim, decaídos, coas cabeças topeneantes,
sentiu   compaixão;   afinal   de   contas,   ele   tinha   prática   nesse   assunto   de
compreender e perdoar, como lhe acai a um servidor da religião… ainda que
ele   não   fosse   um   homem   muito   religioso.   E   Narciso   fez   um   esforço   e   quis
imaginar àqueles homens sendo bons e generosos; quis imaginar a filhos que
os viam como heróis, quis imaginar a mulheres que os queriam, ainda que não
os chegassem a amar, e também a vizinhos que os apreciavam ou tão sequer
que os reconheciam como tais vizinhos,… e Narciso sentiu inveja. Eles, ainda
que não conscientes disso, tinham filhos, ou quiçá os tivessem; eram casados,
e ademais tinham vizinhos… enquanto ele ficava só; só e incompreendido, só e
anónimo, só e no psiquiátrico, só e sem visitas, só e isolado… desaparecendo
do   contacto   cos   outros,   desaparecendo   das   lembranças   dos   que   o   tinham
conhecido, dos que quase lhe puderam ter sido amigos, desaparecendo do seu
próprio pensar, desaparecendo… E Narciso fez um esforço por recuperar­se,
por sentir­se de novo, por sentir­se novo, ou polo menos por sentir­se. Este
esforço introspectivo, ao que ele não estava afeito, fez que Narciso corresse o
sono   e   se   mantivesse   esperto   o   resto   da   noite,   de   jeito   que   deixaram   de   o
amolar as imagens procedentes do seu passado inconsciente, se bem é certo
que ainda o mancava a esteira por elas deixada e que o afundia na mais escura
soidade.   E   ali   em   frente   dos   companheiros   entregados   às   escrebadelas,
obrigados polo sono, e portanto alheios a tudo, Narciso chorou, e foi ele quem
se encarregou de avisar de que a  Estrelinha do Luzeiro  andava a pestanejar.
Sem mediar palavras nem olhadas, os três homens, logo de se espreguiçarem e
de cumprir com as obrigas últimas, partiram pola calada naquela manhã de
Março, um Março que por sorte vinha tépido este ano; se o tempo seguia assim
não teriam que aturar mais chuvas nem geadas. 
Na   Auguela   entraram   na   segunda   lua   e   já   com   um   pé   na   primavera
viajariam ao altinho do Zebreiro onde se topa o terceiro manancial das suas
obrigas.   Mas  isso   há­de  ser   amanhã;   agora   há  que   partir,   e os  três   homens
marcharam asinha pisando sem decatar­se algumas das florzinhas amareladas
de São Bento que a primavera espargira já nas abrigosas beiras da fontela.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  30
* * *

Nuestra Región, faz uma resenha no diário de hoje na que se adivinha qual
vai ser o cometido, e mais o paradoiro, dos agentes lá pola beira da Rousia,
mesmo correndo o risco de que alguém pudesse deduzir o lugar exacto ao que
se   dirigem.   Mas   o   jornal,  fazendo   alarde   do   conhecimento   que   tem   da
realidade   social   do   país,   não   duvida   em   fazer   públicos   estes   comentários.
Parece como se soubessem que as suas páginas nunca serão lidas lá por essa
parte do  mundo.   Excepto  por   algum exemplar atrasado que algum visitante
deixar para ajudar a prender o lume. É sabido que o papel do jornal é quase tão
bom como a frôncega da gesta para pegar na labareda enquanto o lume não
enteia, ainda que lareie mais asinha. De qualquer jeito, por se ligara de que os
olhos se pousarem no papel antes de tempo, bastará com evitar a menção do
nome do lugar.

* * *

Quando os agentes chegaram à freguesia olharam polos vidros da igreja
para ver se dentro estava a pia. O relógio de pedra do campanário andava aí
polas dez e meia da manhã, hora esta mui propícia para não topar às gentes do
campo nas suas casas; e menos neste tempo de sementeiras e cavas, mas isso,
como haviam de o adivinhar os agentes da cidade? A igreja semelhava vazia,
excepto por uns bancos de madeira e dous ou três santinhos pequenos. Pia não
viram. 
Entraram   no   lugar   polo   caminho   da   Ranha,   e   nada   mais   apagar   o
automóvel que levavam, avistaram a um homem de pêlo abrancaçado que se
passeava, cigarro em mão, eira abaixo, eira arriba. Aquela, ainda que os agentes
não o sabiam, era a eira da festa, mas agora não estávamos no tempo da festa e
a eira estava vazia, excepto por esse indivíduo que se movia devagar pola sua
superfície como se não tivesse pressa, como se não tivesse a onde ir. E claro
que não tinha outro sítio a onde ir, mas isso os detectives, julgando polo passo
do homem, já o intuíam; ainda assim quiseram avantar a andar e falar com ele

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  31
não fosse que se escapasse. Aquele que eles viam não havia de marchar, mas,
como   iam  eles  adivinhar  que   aquele homem tinha  por  ofício o  de gandaia?
Senão,   como   ia   ele   andar   a   passear­se   àquela   hora   naquelas   manhãs   de
esterco, sementeiras, e vessadelas? Trás a olhada através dos vidros da igreja
apuraram o passo cara ao homem do que saía um fio de fumo gris, e que agora
visto mais de perto lhes parecia de pêlo como mais prateado, e isso que era
novo. Aviaram o andar não fosse o demo…
– Bons dias! Poderia dizer­nos você como se chama?
– Pois claro que poderia, eu poderia lhes dizer a vocês como me chamo,
mas depois vocês saberiam mais de mim que eu de vocês… Ora, também é
certo que eu já sei que vocês não são de por aqui, senão não teriam arrimado
tanto o auto ao alpendre, porque saberiam, inda que não fossem deste mesmo
lugar, que esse alpendre está mui bem orientado e baixo o seu telhado nunca
entram chuvas nem orvalhos, o que o faz atractivo para as andorinhas e polo
menos quatro  delas  andam  a fazer o ninho para este ano… eu não lhe vou
contar a vocês, que ademais seguro que já o sabem, do danento efeito dessa
lama na chapa, mas ainda lhe é pior o ácido das cagadas… mas não devem
preocupar­se demais, pois este é lugar de muita água e sempre poderão vocês
dar­lhe uma lavadela ao carro antes de marcharem e assunto arranjado… Vejo
que a sua matrícula…
E   aqui   foi   onde   o   detective   de   mais   idade   e  graduação   o   interrompeu
porque   lhe   parecia   que   aquele   homem   não   tinha   intenção   de   parar   ali.   O
detective ergueu algo a mão e disse:
–  Mire, agradecemos­lhe a advertência, e para que veja que não somos
pontilhosos, pois não é preciso que nos diga você o nome; isso é, o nome tanto
tem, se quer podemos­lhe chamar senhor… M, por exemplo.
– Senhor M? Mas eu não me chamo senhor M, ademais não gosto muito
de como se ouve: “senhoreme”… Por não dizer que por M começa a morte, e o
medo, e a missa, e a merda, e …
– Vale, vale! Escusamos o nome, nós o que queríamos saber é se você sabe
algo que nos possa dizer duma pia que havia em tempos aqui na igreja e que
agora já não está, que deveu desaparecer já há uns quantos anos…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  32
–  Claro! Para vocês que tudo o sabem medir, há uns quantos anos mas
para mim a cousa se passou tal que ontem… e olhem vocês bem o que lhes
digo, nessa pia recebi eu o meu nome, sim, sim… esse nome que me faz eu e
que a vocês parece que tanto lhes tem, vamos, que o mesmo lhes dá lé como
cré… pois não, a verdade é sempre única, como única há­de ser a sua fórmula
e a palavra que a nomeia, olhem… 
–  Mire…,   a   nós   não   nos   interessam   os   nomes,   o   único   que   queremos
saber é se você sabe algo da pia!
–  Pois claro que sei algo da pia, os que parece que não se decatam são
vocês…  não  lhes acabo   de  dizer que eu recebi o nome nessa pia? E sim, já
sabemos que quando te escolhem um nome não se sabe ainda se vai ser bonito
ou feio até muito mais tarde, porque o nome fá­lo a pessoa… e o dia que te
molham a cabeça na água ainda o nome está de estreia, ainda que depende de
quem   to   escolhesse,   também   tem   a   sua   história,   quase   sempre   se   escolhe
aquele do que gostam os padrinhos, afinal de contas eles são os que te levam à
pia. Vocês sabem quem era o meu padrinho? Como o vão saber…! Porque se o
soubessem já se teriam decatado que não me podia chamar ‘Senhoreme’… eu
figuro­me que ‘Senhoreme’ só se pode chamar…
O   agente   mais   novo   escacaranhava­se   com   o   riso   e   ao   mais   velho
iam­se­lhe apequenando os olhos e engrunhando o coiro da testa.
–  A nós tanto nos tem quem se possa chamar senhor M ou quem não.
Olhe, se você não sabe nada da pia, pois diga­no­lo e não nos faça perder mais
o tempo e ao mesmo tempo tampouco perderá você o seu!
–  Mas   eu   não   lhe   disse   que   eu   sei   muito   da   pia?   Se   não   vão   topar   a
ninguém que saiba mais que eu dessa pia…! Dessa ou de outra qualquer de
todas as pias que há aqui neste lugar… por exemplo, sabiam vocês que só aqui
há mais de trezentas pias…? Das quais polo menos cem são de madeira; a estas
últimas é mais apropriado chamá­las barquelas, e que…
– Mire, não nos interessam essas trezentas pias ou barquelas, a nós só nos
interessa   a   pia   que   havia   na   igreja,   e   parece   que   você   não   nos   está   a   dar
informação, polo que será melhor marcharmos a ver se topamos alguém com
quem poder falar.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  33
–  Eh,   que  eu   não   os   mandei   vir,   eu  só   me  limito   a   responder   às  suas
perguntas… Ora, se você – ele dirigia­se só ao mais velho dos agentes, o mais
novo estava algo mais retirado tentando dissimular o seu sorriso – não entende
mais   que  de   cousinhas   mui   concretas,  pois   mais  lhe   vale   sair   daqui   e   ir­se
embora…   e  ademais   não   são   trezentas  pias   ou  barquelas;   desculpe   mas   eu
disse  trezentas  pias,   das  quais polo menos  cem são de madeira, e a essas é
apropriado chamá­las barquelas, mas às outras duzentas não, não senhor, não
o   é;   para   que   me   entendam…   é   como   se   eu   dissera:   havia   ali   trezentos
automóveis, dos quais cem eram furgonetas, seguro que a você não lhe parece
apropriado   que   dissera   que   havia   trezentas   furgonetas,   vamos   digo   eu…   e
perdoe o exemplo mas parecia­me a mim que você não colhera o matiz…, e é
que se bem todas as barquelas são pias, não todas as pias são barquelas, nem
servem para fazer a velha rima:

Vai­te névoa nevoarela 
filha do cão e da cadela
Vai comer a lavadura
que te ficou na barquela

…e   se   repetes   estas   palavras   a   névoa,   por   fecha   que   ande,   acaba


afastando; também senão está um perdido, pois coa névoa perde­se o tino, e se
andas por fora ou num monte sem carreiro…
O Ciro percebeu então de que aquela névoa que agora apartava era a que
saía   polo   tubo   de   escape   do  Ford   Escort  gris   que   já   se   afastava   caminho
adiante…
– Quanta pressa traziam esses, assim não se pode falar sequer… – disse o
Ciro para si, enquanto seguia a olhar com certa nostalgia como o automóvel se
afastava,   e   com   ele   as   possibilidades   de   companhia;   pois   neste   tempo   de
sementeira   todo   cristo   anda   nos   eidos   e   ele   aborrece­se   um   pouco;   se   tão
sequer lhe deixassem a taberna aberta… 
Em ocasiões como estas o Ciro era mais consciente da sua singularidade,
ele era diferente dos demais… que não serviam para outra cousa que não fosse
trabalhar; não, ele estudara nos livros, e prova tinha para todo aquele incrédulo

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  34
que   a   quisesse   ver.   Debaixo   da   cama   guardava  Ciro   uma   mala   cheia   deles;
alguns já se vão vendo velhos, mas ele muito os estima… “ai, se eu não me
tivera juntado com más companhias… hoje seria eu alguém e de mim não se
ririam!” E tampouco se riem tanto, pois sabem que leu nos livros, e ademais…
“olha para aí que bem vive!” 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  35
Capítulo II

A FONTE DA AUGUELA

A   Auguela,   apesar   do   seu   nome,   tem   uma   água   mui   boa,   e   os   três
caminhantes   assim   o   apreciaram,   mas   já   iam   sendo   horas   de   marchar.
Estreando lua, logo de lhe dar o último golo à pia, começaram a andaina para o
alto do Zebreiro, lá a Fonte da Cunca os aguarda. Aquelas são águas de altura e
as próximas noites serão noites de muita subida nas que Dom Narciso segue
sem apear o pinho, e isso vá se o manca. Por estes empinados montes muitas
vezes quase perde o homem a consciência. Certamente vê­se­lhe apoucado e
até  por  momentos   semelha  que lhe vai faltar o ar e vai desfalecer. Dês  que
deixaram a Auguela tudo eram costas; a terra chã das cavadas durara menos de
uma noite. Aquele pedaço ainda fora tolerável e deixara­lhe fôlegos ao homem
para tentar relembrar as suas vivências de jeito pausado. Ele queria a terra chã,
ele queria dar volta para trás, mas não encontrava o jeito. Ele queria lembrar e
relembrar   os   dias   dourados   da   sua   primeira   freguesia,   onde   tudo   era   paz,
respeito   e   amor…   e   não   agradecia   nada   aqueloutras   visitas   inesperadas   de
imagens que eram mesmo aborrecíveis, sobre as que não tinha controlo, e que
apareceram muito mais tarde na sua vida. Como aquela visão que o andava
mesmo acossando dês que começara a subida.
Naquela   via­se   a   ele   próprio   com   um   saco   ao   lombo   caminhando   em
pleno   sol   de   meia   tarde;   e   que   haveria   no   saco?   Ai,   sim,   o   saquete   estava
atestado   de   livros,   e   como   pesavam   os   condenados!   Havia   livros   grossos   e
outros mais delgados, isso sim, todos eles velhos e escuros, e precisando uma
amparadela; nalguns, antes de os ler, havia que mudar as folhas que estavam
co de acima para abaixo. Dês que ele chegara à freguesia de Ameixeiras falara
sobre   o   tema   dos   livros   paroquiais   co   responsável   da   zona,   mas   estoutro,
menos afeiçoado às leituras, não lhe dava tanta urgência ao assunto. Por fim

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  36
parece que coalhara a ideia da restauração. Sim, essa ideia fora de Narciso, o
que   não   pensava   ele   era   que   para   a   levar   a   cabo   o   fariam   assistir   a   uma
juntança   com   todos   os   outros   cregos   da   contorna.   Porém  ao  outro,   ao que
chamam arcipreste, que leva duas freguesias ademais de mandar nos demais
curas,   não   lhe  amargava   perder   o  tempo,   que  tem   muito   e  não   sabe   como
gastá­lo. 
Ele é certo que, ademais de mandar, diz missa em duas igrejas; e daquela
os   cregos   já   começavam   de   andar   algo   mais   atarefados,   não   porque   lhes
aumentara a clientela, que vai a menos cada dia, senão porque são menos os
empregados e têm que se repartir as freguesias; a uns tocam­lhes menos, como
lhe passa o manda­mais, para isso manda, e a outros tocam­lhes mais, como
lhe passa a Dom Narciso, que lhe vamos fazer. Esta espécie de chefe dos outros
leva   Os   Mouros   e   Vilarinho,   que   por   certo   são   duas   freguesias   que   têm   as
igrejas mesmo pertinho uma da outra… uns dez minutos caminhando devagar.
Ora que isso tanto tem porque este abade, que está ele mui bem cevado, tem
dous carros; os dous da mesma cor e coa mesma documentação… para que
malgastar. O ser o homem agradecido e engordar com tanta facilidade faz que
alguns se refiram a ele como “O Cacholas”, porque realmente lembra o pobre a
um desses que… fora a alma e a figura… são como nós. Sim, ou se calhar ainda
os   do   cortelho   se   semelham   mais   aos   humanos   normais   que   este   cura   de
sotana   sempre   emporcalhada,   ele   sempre   mal   asseado;   mas   isso   sim,   bem
motorizado. Diz­se que vê­lo comer dá risa e nojo… “um bocado no chouriço e
o que resta para o bolsão e a colher outro, e assim enquanto durar o que há
acima   da   mesa…   depois   vai­se   para   a   casa   com   um   fardel   escondido   por
dentro da sotana cheio de chouriços encetados e pedaços de toucinho e magro,
e   o   que   dera   arrebanhado…   e   a   sotana   resplandecendo   desde   longe   coas
pingadas da gordura…” O pobre não tem vergonha, até há quem lhe chama
porco à cara e a ele tanto lhe tem. E apesar de não conhecer as normas para
circular pola terra, nem topar melhor sítio para arrumar o carro que o meio e
meio da estrada, ele vai­se salvando… se calhar o da mesma marca e cor dos
dous carros é para que se lhe localize bem, não vá ser o Demo e o for Deus
confundir,   ligara   o   homem   de   ter   que   morrer   na   estrada.   Pois   como   as
freguesias lhe ficam mesmo uma à beira da outra, e com tanto carro, o homem

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  37
não sabe que há­de fazer co tempo que lhe sobra logo de fartar­se de comer e
de beber, que isso também lhe ocupa. Mas os dias no verão são longos e há que
topar   o   jeito   de   enfastiar   os   outros   mais   ocupados   com   as   suas   muitas
freguesias, e bem  longe  umas  das outras. E isso que alguns, ou melhor dito
algum, não tem nem carro; ei­lo caso de Narciso, ele é homem de caminhar, e
amargar  não   lhe  amarga,  contudo  há vezes que a cousa  já é demais. Como
aquele dia, que ainda por riba era no verão, e na Raia o ar que se bafeja neste
tempo de seitura é mais seco que os fumos do Inferno, e ele co saco dos livros
ao lombo. Certo é que se oferecera o mandariqueiro a o levar a ele, e mais os
livros, até Vilamenor, onde se ia celebrar a reunião para tratar o tema. E assim
combinaram: passaria por Ameixeiras, que ademais ficava de caminho, bem
cedo de manhã, e recolheria a Narciso e a sua moreia de livros pesados. Os
livros   eram   bons   mas,   co   tempo   e   a   falta   de   cuidados   do   predecessor   de
Narciso, baloreceram tanto que sem abri­los sequer já te entravam as ganas de
espirrar com tantos mofos flutuando ao seu redor. Se não se lhes botava uma
mão a bulir não durariam muito mais do que os pobres levavam rengueleado
polas enormes gavetas do armário da… ali seria a sacristia se a houvesse, que
numa igreja tão pequena não faz falta tal… o crego não toca a campa até que já
está   vestido,   e   ademais   os   refaixos   não   os   quita,   então   digamos   que   esses
caixões estão por ali aposentados perto do Santo António, que seguro que se
sente ali mui bem tão abrigadinho, qualquer não o estaria.
O   Santo   António   tem   algo   de   mão   coas   mulheres,   que   são   as   que
distribuem os espaços e os atavios; ele anda mui bem pintadinho e tem mui
bons mantéis. Outra que tinha bons mantéis é a Virgem do Carmo, mas esses
caíram­lhe duma promessa que fizera a Maruxa da Cristalina quando se lhe
pusera o meninho a morrer; e vá que bem lhe curou depois! Então ela buscou e
buscou até que encontrou o melhor mantel que se puder comprar, e não lhe
amargou  gastar o dinheiro que daquela não  sobrava. E contudo logo veio o
Aurélio, que foi abade em Penacova, e marchou co raio do mantel para outra
freguesia… E claro…! Quem se atreve a lhe dizer nada…? Ademais de lispar os
mantéis,   ainda   arramplou   com   cousas   de   mais   valor   e   mas   ninguém   disse
nada, ou polo menos à cara... Oh, por detrás qualquer fala! O que levava as de
perder dês que se desmantelara a igreja era o Santiago, até o deixaram ao pobre

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  38
sem   espada   e   agora   anda   o   homem   com   um   livro,   e   não   era   por   ser   Dom
Narciso afeiçoado a ler, pois quando ele veio a Penacova para lhe botar uma
mão ao seu colega Aurélio que não regulava o homem lá mui bem, o Santiago
já andava metido nas leituras… quem sabe, quiçá foi algum desses anarquistas
que diz que ainda há no lugar… ou algum inocente que pensara que como o
Santiago   mora   em   Compostela   se   calhar   estranhava   a   vida   universitária,   e
ademais ali em Penacova, a quem ia o pobre espetar coa espada…? 
Daquela, quando Dom Narciso passou por Penacova, já faltava pouco por
escaralhar, de isso já se encarregara o titular da paróquia, o tal Aurélio, que por
certo fez um bom trabalho, e logo vai e põe­se tolo… “Tolo, o que se diz tolo,
diz­se que já estava, e que o dissimulava…” Outros dizem que de tolo nada,
que faz o tolo mas que é mui avisado… o que se passa é que agora tem medo
polas   falcatruas   que   leva   feito…   Contudo,   quando   a   Dom   Narciso   lhe
mandaram  ir substituir  ao  crego de Penacova,  em parte por ser o que mais
perto estava, ainda andavam, de milagre, alguns livros por ali. Ele juntou­os cos
de Ameixeiras para restaurá­los todos. Daquela, Dom Narciso ocupava­se de
quatro freguesias, e ei­lo cura a correr de missa em missa coa hóstia na boca,
com   perdão.   Às   vezes   acabavam­se­lhe   as   existências   e   velaí   o   homem
amassando e cozendo um pãozinho chato, a jeito de bica do testo, acima da
prancha de ferro da cozinha, para repartir depois na missa. Não, algumas vezes
não era fácil não ter carro para servir­se, co bem que lhe iria em ocasiões como
aquela na que aguardou e aguardou polo seu colega­chefe, o da cabeça grande,
e vendo que não parecia que se fosse apresentar não teve outro remédio que
botar o saco ao lombo e meter­se ao caminho em pleno meio­dia.
O plano inicial, tal e como lhe explicaram a Narciso, era jantarem todos
juntos na reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, onde os convidara o Laruças,
alcunhado   assim   polos   vizinhos   de   Penacova   e   outros   lugares.   O   Laruças,
apesar de não ser pessoa à que lhe encha dar, pois tivera o homem o detalhe de
convidar ao jantar, e depois da enchente teriam tempo de falar de como seria
melhor considerarem a devandita restauradela essa dos livros, que tão urgente
lhe   parecia   ao   abade   de   Ameixeiras.   Por   certo   o   lugar   da   reunião   não   fora
escolhido por Narciso, que a casa do Laruças é a que mais longe fica de todas,
não obstante, como o iam levar em carro, ficou o homem conforme. O que não

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lhe   acabara   de   caber   na   sua   cabeça   de   cura   teimudo   era   a   ideia   de   que   o
Laruças,   nada   conhecido   polas   dádivas   senão   por   todo   o   contrário,   se
mostrasse tão generoso convidando ao jantar a tanta boca, seriam polo menos
sete ou oito comensais. Que rareza era aquilo de que o Laruças se oferecera a
dar nada, ele que até se se terçava era dos que, malpocado, ainda se atrevia a
levar o que não era dele. 
Assim foi como  lhe arramplou com uma porta de cerejeira ao tio João.
Sim, já sabemos que a cerejeira não é a melhor madeira, mas ainda assim e
tudo aquela era uma porta que dava que ver, tão enramada… já lhe oferecera o
Maragato não sei quanto por ela, e ele de parvo não lha deu, e deixou­a ali
debaixo   da   solaina   exposta,   afincada   na   parede.   Mal   pensava   ele   que   na
Terça­feira   de   confissão   viria   o   Laruças,   logo   de   repartir   penitências,   e  não
daria   resistido   à   chamada   da   formosura   da   porta.   Mas   como   ia   o   tio   João
adivinhar isso, o tio João não sabia muito de curas porque ele só ia à missa o
obrigado – baptizados, casamentos, enterros… para que não se dissesse que ele
era um desses que lutara contra Franco, e ainda que isso era certo e toda a
gente o sabia, o tio João tinha que dissimular, não fosse que o foderam… mas
ainda assim ele não conhecia bem os curas, e não podia imaginar que uma
Terça­feira   de   confissão   viria   algum   deles   roubar   aquela   porta   que   ele   já
herdara. Ademais, ele pouco sabia do Laruças, que só vinha a Penacova aos
enterros   e   ajudar   no   dia   este   da   confissadela,   que  era   cousa   séria  naqueles
tempos. O tio João ficou amolado pola rouba da porta mas não quis o homem
dar que falar e deixou a cousa assim, sem lhe pedir contas ao ladrão. 
Como  tampouco  as conhecia Dom Narciso, senão já se teria decatado,
como   lhe   passou   depois,   de   que   aquilo   de   se   juntarem   em   Vilamenor   da
Boulhoeira fora um plano argalhado polo Laruças coa ajuda e colaboração do
da   cachola   grande.   O   que   pretendiam   era   amolar   a   Narciso   e   ver   se   o
espaventavam e se ia a dizer missa a outra parte; tão bem que eles estavam
antes de chegar este padre trabalhador, e que ademais visita as tabernas. Não,
beber não é que esteja mal mas… não tanto, e por riba em público. Mas estes
dous   tampouco   conheciam   bem   a   Dom   Narciso   nem   a   sua   teimosia   e
resistência. Narciso estava afeito a caminhar e sofrer passando fome e até sede
se fizer falha. Portanto, aquele dia, botou o pesado fardel dos livros ao lombo e

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caminhou duro até bater na porta da reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, a
mais de duas horas de caminho. 
Passava   bem   já   da   hora   do   jantar,   mas  estes,   como  eram   curas,   ainda
andavam nela quando sentiram a pesada aldraba de ferro bater na porta de
fora com uma força do demo. “Quem raios...!” E todos os cregos se puseram à
espreita enquanto a criada do Laruças baixava asinha as escadas de pedra e lhe
dava a volta à cravelha do portalão. O Narciso passou sem mediar palavra coa
criadinha,   à   que   porém   dedicou   uma   olhada   de   esguelha;   era   aquela   uma
mulher pequena e estava algo desmelhorada, Narciso pensou que o Laruças
não lhe devia dar boa vida, e isso ainda aumentou o seu reganho. Com aquele
rauto dele passou ao meio do pátio e desde ali berrou­lhes aos de dentro, que
estavam a guichar desde a janela que dá a fora quem era que petara. “Onde
está o porco de Vilarinho que me deixou chantado?” Foram as palavras que
subiram até à mesa na que ainda ficavam restos de comida e bebida. Foi um
desses curinhas menores que estavam na reunião o que saiu ao patamar e lhe
pediu   a   Narciso   que   passasse   dentro,   que   não   estava   bem   formar   ali   tanta
liorta.   O   Narciso   nem   escutou   àquele   comparsa,   e   seguiu   botando   berros
enquanto   caminhava   para   a   escada:   “Parece­vos   bonito,   que   enquanto   vós
estais aí jantando cos colhões sentados eu tenha que vir carregado co saco às
costas Aguiar abaixo?” 
Por   fim,   passou   para   dentro   e   sermonou­os   bem,   falando   da   falta   de
palavra e do mal que estava isso de confundir a um e trapalatrá… os outros
escutavam   mas   não   ouviam   nada,   logo   da   comilotada,   com   aquela   carne
assada   e   um   vinho   que   coroava,   todo   o   sangue   lhes   baixara   ao   bandulho
deixando as cabeças sem rego; e estas caíam de quando em vez co topeneio da
sesta, e o Narciso acelerava­se todo ao ver que não lhe prestavam atenção. E
coa   fome   que   ele   trazia!   Pois   comer   não   comera   nada   ainda   que   algo   já
molhara antes de sair de casa. Daquela, já à manhã cedo tinha que lhe meter
algo ao corpo, senão não dava o homem encadilhado. Aqueles dias já ninguém
em Ameixeiras, nem em Penacova, lhe fazia grande caso, e por riba estoutros
sacerdotes que deviam de o animar e o apoiar vão e enraivam­no mais… pois
era o que lhe cumpria! Narciso estava começando a fartar­se, e agora enquanto
o lembra a caminho da Fonte da Cunca, fecha os olhos e puxa do pinho com tal

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serenidade que parece uma jugada. Ele nunca esquecerá a sensação causada
pola dureza dos livros nas costas, e davam boa conta disso os maçoucados das
suas carnes que duraram vários dias; mas aqueles trilhados contra as costelas,
por feios que pareceram, não foram o que mais mancara a Dom Narciso, nem o
que o levara a tomar medidas. Visto o que lhe fizeram, e ainda por riba se riram
dele fazendo que o escutavam enquanto dormiam… aquilo não podia seguir
assim.   Teria   que   se   preparar   para   defender­se  dessas   feras   negras,   algumas
com sotana. 
Aquele dia, e mesmo na beira da Raia, decidiu que haveria de cruzar para
comprar com que se defender, dele não se ia rir nem Deus. Tampouco era nada
novo, outros muitos já a traziam, e a ele, que sempre ia andando, boa falta lhe
fazia. Foi esta resolução a que lhe dera acougo aquele dia na casa do Laruças; e
agora, ao lembrá­lo, sente o alívio que deveu sentir aquele dia, pousa o pinho e
toma alento enquanto se relaxa com ambos os olhos fechados. Quando os abre
vê o punho do Racha­Pedras que lhe vem direitinho às ventas, mas a tempo ele
se agacha e esquiva o golpe, mas não o insulto que o acompanha: “Animal, que
quase nos fazes cair! Quantas vezes te teremos que dizer que antes de parar
avises!” Como já era hora para a partida aí morreu o conto e Narciso, sem dizer
rem,   marchou   embora,   como   marchara   aquele   dia   de   Vilamenor   da
Boulhoeira, e para o outro dia à manhã colheu o andante caminho da fronteira,
que daquela seica se diz que havia, ainda que ninguém de por aqui a vira. Mais
adiante,   logo   de   se   informar,   pensou   que   poderia   ter­se   aforrado   aquela
viagem, pois há muitos que lhe poderiam ter arranjado uma dessas pistolinhas
sem ele se mover da casa; mesmo ali em Penacova diz­se que havia quem as
trazia, e em Gomesende, e noutros sítios; mas então ele não o sabia e lá foi, e
veio­se à noite prà casa carregado e sem medo já. Medo?… U­lo?

* * *

Do que não se esqueceu  Nuestra Región, no seu apartado de sociedade,
foi de fazer referência aos da associação da cidade velha, que como todos nós
lembraremos, dedicam­se a recadar fundos para mandar reconstruir a pia, ou
polo menos essa era a sua intenção inicial. É de domínio público que andam

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agora divididos em três bandos. Por um lado estão os que querem reconstruir a
pia com exactidão fotográfica a respeito da antiga, estes até diz­se que querem
falar  cos  negociantes  daquela  comarca para extrair dos montes da freguesia
donde nasceu a pia a pedra que seria precisa para a cópia, e em tais cousas
andam enquanto tratam de convencer a uma das outras facções para que os
apoie. Outro dos grupos também quer a reconstrução da pia, ora, porque não
melhorá­la algo? E dado que dinheiro têm, seica o que querem estes é que ao
redor   da   boca,   a   meia   quarta   da   borda,   se   lhe   faça   um   colar   de   pedras
semipreciosas fazendo ondinhas para que diga mais bonita. Este assunto das
pedrinhas de cores afasta­os dos puristas e faz que ninguém tenha maioria, e
que   a   porfia   siga   viva.   Entanto,   o   terceiro   grupo,   que   já   se   distanciara   dos
outros há algumas semanas, segue cos olhos postos no Caribe e até andam a
mirar agências de viagens e sítios aos que iriam de não ser polos teimudos dos
outros.
Felizmente há gente para animar­nos nestes tempos de monotonia, como
o poeta Budial, que nos oferece um novo verso em Nuestra Región co que nos
regala o sorriso. Seica diz também que a apresentação do seu livro não teve
tanto êxito como em princípio coubesse augurar. Qualquer poderia concluir
que o interesse das gentes destas terras pola palavra escrita, apesar dos poetas
e escritores que daqui saíram, não medra.

* * *

Dês   que   se   fizera   com   aquela   amiga   de   coronha   recoberta   de   osso


esbrancujado em Montalegre, ou quiçá em outro lugar, Dom Narciso não se
sentia   tão   só;   esta  era   uma   seguidora   fiel,   a   onde   ia   ele   ia   ela   e   se   algo   se
passava ela responderia por ele, que mais seguridade precisa um homem? A
primeira vez que a deixou ver em público foi numa dessas tabernas que ele
frequentava;   ergueu   um   nada   o   pulôver   e   tirou­a   da   cintura   onde   a   levava
oculta;   sem   mediar   palavra   com   ninguém   pousou­a   mesmo   perto   da   sua
bebida   como   quem  pousa   o   bilhete   para   que   lhe  cobrem.   Naquela   taberna
quase sempre eram todos conhecidos dele, e se às vezes havia algum forasteiro
já  se  lhe  informava  de  quem era aquele cura.  Narciso fazia o parvo mas de

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parvo  não   tinha  nada,  e  bem  via  como  lhe  davam  de  olho   aos que  fitavam
surpreendidos   quando   ele   começava   de   discursar…   “vem   contente   hoje   o
Narciso”…   ele   quase   adivinhava   os   comentários   que   pola   calada   se   faziam
“é­che o cura de Ameixeiras, que lhe dá algo à bebida”. Mas aquele dia quando
pousou a sua pistola acima do mostrador, perto da cunca do vinho, ninguém
se trujiu; não, não houve piscadela de olhos nem comentários polo baixinho.
Outra vez sentia Narciso que retornava aquele respeito que noutrora sentira
que todos lhe tinham lá na sua primeira freguesia. Por fim respeitado de novo,
agora ninguém ria. 
O   dono   do   bar,   que   era   quem   sempre   estava   por   trás   do   balcão,   era
homem afeito a estas cousas, e foi o menos sobressaltado dos presentes. Na
sua   taberna,   pola   proximidade   com   um   clube   da   estrada   505,   entravam   às
vezes indivíduos de aspecto suspeitoso, e alguma vez vira­lhe a algum, quando
arredou o casaco para tirar a carteira, assomar a coronha duma destas. Aqueles
davam   mais   medo   que   Dom   Narciso;   aqueles   aquelavam­te   o   ânimo   só   de
vê­los.   A   vestimenta,   essa   face   meia   sem   barbear,   esses   olhos   apequenados
sempre fitando com rancor, essa voz que arrelava as palavras, e os movimentos
de gorila, eram os sinais que lhe serviam ao taberneiro para identificar a estes
chimpa­figos   que   viviam   nada   mais   que   de   lhe   chuchar   a   bolsa   a   quatro
coitadas. As pobres prostitutas sempre encerradas como toupas na cova­terra;
sempre fechadas nesses prédios de Ginzo para que não pudessem fugir; só as
deixavam sair quando o negócio o requerer, e daquela bem que as vigiavam.
Estes sim que eram animais, e a estes temia o taberneiro, mas quando viu que
Narciso   sacava   a   pistola   e   a   pousava   acima   do   balcão,   achegou­se   a   ele   e
disse­lhe polo baixo: “Guarde isso Dom Narciso, que ainda se vai meter você
num compromisso” O cura sorriu para o taberneiro e disse: “de mim não se vai
rir ninguém” e a seguir guardou a arma. 
Apesar de que a gente que havia na taberna não se assustou, eram os de
sempre,   os   que   se   viam   ali   a   cotio,   sim   que   lhes   sobressaltou   um   chisco   a
pistola. E se por acaso começaram a rir menos quando o cura estava a soltar
uma das suas paroleadas, nenhum deles temia a Dom Narciso, sabiam que era
um   bom   homem,   se   quadra   algo   tarabelo   demais;   mas,   ai,   tampouco
ignoravam que o álcool e o ferro misturados não fazem boa jeira, e a partir de

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então   andaram   os   homens   com  tino,   e  algum   até  deixou   de  ir  por   ali  uma
temporada até que comprovou que não se passava nada. E foi assim como o
Narciso sentiu chegar até ele de novo aquele respeito do que ele tanto gostava.
Começou de sentir­se poderoso, e ia cada vez apresentando àquela sua amiga
de coronha de osso velho em mais encontros. Pouquinho a pouco toda a gente
era sabida de que o Narciso portava arma. Já nunca saía da casa sem ela; a
pequena pistola formava parte dos hábitos do sacerdote. Às vezes, estando na
taberna,   algum   incluso   lhe   pedia  que  a ensinara,   e ele  não  se fazia  rogado;
sacava­a,   mostrava­a   entrementes   a   cofiava   como   quem   acarinha   a   um
cãozinho,   e   volvia­a   guardar.   Alguma   vez   escutou   a   um   dizer   que   aquela
pistoleta   era   engraçada   mas   não   era   nada   grande,   que   mesmo   parecia   um
brinquedo, que ele sabia de gente que as trouxera desse mesmo sítio donde ele
trouxera a sua e que eram do nove largo… Aquilo deixou a Narciso amolado;
agora que tinha o homem tudo outra vez controlado vem esse comentário e…
raios   te  partam,   deixa   ao   homem  desarmado!   Esse   mesmo   dia   se  informou
Narciso de quem eram os que traziam tal contrabando, e antes duma semana
já tinha ele o seu nove largo. Ali, na mesma taberna, como sacara a pequena a
primeira vez, sacou agora em vez desta a grande. Esta era negra, como um cão
grande de raça; os que lá estavam calaram, até se diria que se assustaram. Dom
Narciso   ficou   um   nada   surpreendido   por   aquele   tanto   silêncio,   tampouco
tencionava   assustá­los;   Narciso   só   queria   respeito   e   não   que   lhe   tivessem
medo. O taberneiro olhou para Narciso, mas esta vez não abriu o bico. Narciso
guardou a arma e diz­se que naquela taberna nunca mais a volveu sacar. Ele
sempre a levava nos  bolsos, ou  na cintura, escondida,  e sentia­se o homem
mais seguro e mais respeitado sem ter nem sequer que ensiná­la. 
Coa boa sensação de ter atingido uma meta, marchou Narciso a saudar
um novo dia, e o mesmo fizeram os outros dous homens. Levavam já um terço
da subida ao Zebreiro. Desde onde deixaram hoje escondida a pia puderam ver
a Veiga do Fojo e os Penedos da Cabana. Atrás, pola esquerda, ficava já a Vela
de Penalapa. Os Penedos da Cabana, pola parte de detrás, chegam quase até
Gomesende, formando uma serra que vai minguando a modinho até rematar
numa espécie de sarriço estreito. Por detrás da Cabana passam as paredes dos
lobos, que vão morrer lá na Veiga do Fojo, onde ficam, como o seu nome bem

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indica,   os   restos   do   que   foi   o   poço   onde   caíam   os  lobos.   Tanto   as  paredes
quanto o fojo foram feitos há mais de cem anos coa finalidade de atrapar e dar
cabo dos lobos, que eram as animálias que mais inçavam por estes montes. 
Eram tantos os que havia que às vezes matavam até vinte ovelhas duma
volta, e a gente não teve outro remédio que artelhar o das paredes. Quando se
faziam as corridas vinha gente de toda a província e espalhava­se por todos os
lindes do Zebreiro; depois, quando tudo estava pronto e toda a gente no seu
sítio, desde a Vela de Penalapa acendia­se o lume para avisar a todos de que
começava   a   troula.   A   gente   organizava   uma   autêntica   verbena   com
instrumentos   musicais   tais   como   latas   de   azeite   ou   do   pimentão   vazias,
caçoulas de ferro e chaves, e cousas desse estilo; e os animais espaventados
polo barulho iam­se metendo mais e mais na boca das paredes. Já perto do
final,  onde  aparecia  o   cocho   – que  era  um buraco bem  fundo  – as paredes
iam­se juntando. Àqueles pobres não lhes restava mais caminho que saltar e
cair no fojo da morte. Os anos foram passando e do buraco só fica um resto
quase inapreciável, o tempo e mais a falta de uso foram­se encarregando de
cegá­lo. Das paredes fica algo mais, nalguns sítios ainda levantam bem, mas
noutros estão esborralhadas. Dos lobos fica a memória; já só cria uma loba lá
em   Penacereija.   Agora   nestes   montes   há   só   javalis   e   corças   e   outros
animalzinhos,   mas   lobos   não,   como   daquela   não,   desses   não   ficam.   Então
tinha­se­lhes   medo   porque   te   comiam   a   fazenda,   ou   o   que   ligara.   Nesses
montes tão grandes se se te perdia algum animalzinho, lá ia. Havia uma cheia
de   cantares   e   coplas   que   davam   boa   conta   desses   acontecimentos,   porém,
também foram, como os lobos, desaparecendo; a alguns salvou­se­lhes, como
às paredes, um bocado:

 Chove, neva, escarrapateia, 
fogem os lobos do monte prà aldeia.

Numa   ocasião   perdeu­se­lhes   o   cavalo   a   duas   irmãs,   vizinhas   de


Penacova, e o pândego que havia daquela na aldeia ofereceu­se a lhe botar o
responso para que estivesse o animal a salvo; mas confundiu­se e em lugar do
responso saiu­lhe a cantiga que ainda ressoa hoje polo lugar:

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Lobos que andais polos montes
avivai bem os sentidos
que anda o cavalo da Flores
e o da Mercedes perdido.
E se os lobos não o topam 
que o esfandanguem cem mil diabos.

“Ai, dianhos te não levem, tu é que a arranjas…!” As duas mulherzinhas
ficaram   desesperançadas.   Daquela   no   Zebreiro   havia   muita   vida.   Agora,   de
descontado   os   javalis,   as   corças,   os   teixugos,   os   raposos,   os   coelhos,   as
gardunhas,  as doninhas,   toda  uma cheia de pássaros e outros animalzinhos
pequerrechos como o ouriço­cacheiro, já só ficam estes três homens da pia.
Também   é   certo   que   lá   no   pico   mais   alto   dos   montes   da   contorna   está   a
emissora   desde  onde   se  vigia   para  que  não  ardam os  pinheiros.  O Zebreiro
agora está coberto de pinheiros, e há que guardar de que não venha um lume e
os larpe. Um homem que dedicou alguns anos da sua vida a esta vigilância foi o
Ciro. Subia aí pola tardinha caminhando até acima; já sabemos que ao Ciro não
lhe amarga caminhar. Mas agora já nunca sobe arriba, mas é só por mor de não
andar ele lá muito bom. Agora há outros mais novos que sobem. Pois logo mais
lhes vale aos da pia ter conta dos faróis, não vão ser avistados desde o alto.
Claro que, se não vêem lume, quem pode crer que ande alguém polas touças
ou   os   pinheirais…?   “Será   a   Santa   Companha”,   chancearão   os   dous   vigias   e
seguirão a velada “dorme tu que eu já miro, e depois cambiamos”.

* * *

Nuestra   Región  segue   sem   mencionar   o   destino   dos   agentes   que


supostamente seguem lá pola Raia na procura de informação, ou se calhar já se
vieram e não se sabe nada.
O   que   sim   menciona  Nuestra   Región  é   que,   segundo   parece,   o
adinheirado   cidadão   que   diz­se   que   se   oferecera   a   dar   uma   boa   mão   de
bilhetes   àquele   que   proporcionasse   informação   fidedigna,   segue   com   essas

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intenções, porque não tem tido sorte e não pôde polo de agora fazer a sua boa
obra. Pola sua porta passeiam­se diariamente pessoas a procurá­lo. Apesar de
que   o   jornal   não   dava   pistas   do   domicílio   do   tal   rico,   seica   houve   quem   o
adivinhou, e desde então não pára de lhe chegar gente à porta. Ali o seu criado,
ou se se preferir, secretário, tem ordens de não soltar nem um real. Ele disse
que até que se veja a pia ele não dá nada, que senão não é obra benéfica e nem
sequer lhe serve para reduzir impostos. Pois também tem razão o homem, ao
ter de fazer uma boa obra que lhe vai, seguramente, contar no Além, porque
não que seja qualificada de benéfica e que também lhe sirva no aquém? Há
quem quer fazer o bem, e tem dinheiro com que fazê­lo, mas não pode… e
diz­se que anda o coitado do homem amolado.

* * *

Os  homens  da  pia   seguem sem  descanso,  noite vai  e noite vem,  a sua


escalada para o alto do Zebreiro. Às vezes mesmo lhes custa topar sítio polo
que   possam   ir   esgardunhando.   Na   parte   das   touças   tiveram  sorte   porque  a
rodeira segue aberta; aquela é uma rodeira feita durante vários séculos, por ela
encheram­se   de   subir   carros   e   mais   carros   que   ano   trás   ano   baixariam
carregados   de   lenha   para   quentar   as   lareiras   de   Penacova,   e   ainda   outras
doutros lugares onde havia menos monte. Organizavam­se os carretos, com
sete ou oito jugadas, e levava­se a lenha a Ginzo, ou onde for preciso. Hoje já só
sobem de quando em vez os tractores, mas avonda para manter o vieiro aberto.
Logo   as   touças   vão   ficar   detrás   e   adiante   aguardam   as   plantações   dos
pinheiros. Andar por entre estas árvores de folhas afiadas tem a vantagem de
estar bem protegidos e contra à manhã poder marchar sem ter que levar muito
trabalho em esconder a sua mercancia. Às vezes acodem às devassas, e se vão
na direcção   atinada,  usam­nas como se fossem  caminhos; nestes casos  têm
que andar com mais cuidado para não ficar muito ao descoberto, ora que aqui
no meio destes montes quem os vai pensar. Se alguém os visse faria o mouco
para que ninguém possa dizer que virou tolo.
Dom Narciso segue a puxar polo pinho, ora com força, ora com raiva, e
enquanto e assim, tira também da memória e vai vendo o homem como foi que

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ele   veio   bater   àquele   cárcere   do   que   o   tiraram   asinha   para   o   levar   ao
psiquiátrico no que ainda passa os dias, e do que tem que escapulir­se para vir
cumprir co seu destino. O Narciso estava afeito a que o andaram trazendo e
levando,  e mais  ou  menos  ele sabia quem manejava os fios,  mas agora não
tinha nem a mais remota chispa de claridade sobre quem, ou quê, dirigia os
seus andares. O único que sentia ele era que uma força o empurrava monte
arriba e que não podia detê­la, nem sequer sabia o homem se queria pará­la.
Algo lhe transmitia a sensação de que por primeira vez se dirigia a algures. Mas
não é novidoso que Dom Narciso se sinta bem sendo guiado, a isto está­che ele
bem afeito, quiçá afeito demais, e portanto não tinha lá muita manha co de
dirigir­se só, e cada vez que o tentava acabava perdendo o norte e outra vez o
pilhavam   e   o   amarravam   curto,   como   faziam   agora   os   senhores   das   batas
brancas. 
Mal   pensavam   todos   naquela   residência   que   Narciso   fosse   capaz   de
argalhar extravagantes artimanhas para escapulir­se, e fazê­lo ele sozinho. Ele
já descobrira que se estás calado e não dás que fazer, pois és considerado bom
e bem se vê que vais curando; e que melhor jeito de estar calado que não estar!
A ausência pode ser mui informadora das andanças de qualquer se se conhece,
mas se se pensa que esse vulto de almofadas é um homem que descansa, logo
não te diz nada. E a ausência passa pola calada noite trás noite polo leito de
Narciso.   Ora,   a   Narciso   não   se   lhe   pode   esquecer   esconder   as   pílulas   de
diversas cores que lhe dão a tomar antes de ir à cama; ele faz como que as
engole   enquanto   as   oculta   como   pode   baixo   a   língua,   depois   cospe­as   no
retrete e lá vai o homem curando. Se as enviasse para abaixo não teria outro
remédio que ocupar de noite o sítio das almofadas, e claro, isso não é o que ele
tem que fazer. Ele não está quase nunca seguro do que deve ou do que deve
não fazer; ora, co das pílulas não tem dúvidas. Oxalá tivera as cousas assim de
claras quando se dedicara a acumular armas.
A   cousa   começou   por   uma   pistola   pequena,   logo   seguiu­lhe   o   negro
nove­largo, e mole e mole, como diziam as más línguas, montara o homem
uma armaria na reitoral. Ora, muitos não acreditam no que se ouve: “isso são
lendas  e  trapalhadas”.  Uns  que sim, outros que não,  mas sem criada  que o
pudesse ir falando, porque Narciso não tinha a ninguém para servi­lo, não se

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  49
podia   estar   certo   de   tudo.   Se   tão   sequer   tivesse   uma   criadinha…   Narciso
sempre   soube   governar­se   só,   ou   ao   menos   ele   ia­se   arranjando;   às   vezes
algum de brincadeira perguntava­lhe que como era que não tinha criada para
servir­se dela como os outros curas… que colhesse uma, que não fosse parvo.
Ele meio a sério meio a brincar admitia estar cansado, mas que o seu cansaço
não lhe vinha dos trabalhos que lhe podia aforrar a criada senão de ter que
aturar a tanto alpavarda na freguesia, é que não há Deus que os dê levado a
caminho, e isso que ele tentara­o tudo… e mas olha que de nada lhe serviu.
Mesmo agora, dês que conseguira essas amigas de ferro, algum domingo em
lugar de tocar a campa botava­lhe uns tiros ao ar desde o pátio; mas não vale,
os de Ameixeiras perderam a fé completamente, ou já não têm nem vergonha,
e não visitam a igreja mas que quando se vêm obrigados, alguns cos pés por
diante…  E   Narciso  ei­lo  a  protestar, agora as suas  dissertações  em lugar de
versar sobre a injustiça e a humilhação só falam do que ele quereria que se
passasse, e isso que nem sequer ele o sabe. Portanto anda o homem danado e
vai dizendo que já foi falar co bispo e que lho deixou bem claro: “…que se não
me   cambia   de   freguesia,   que   caso”   Mas   nada,   o   bispo   não   o   cambiava   de
freguesia e o Narciso andava doente sem ter sequer moça buscada. Porque será
o que fosse mas, a diferença de outros curas, a Narciso nunca se lhe conheceu
moça. Se a teve sabe­o ele, mas de falar por essa causa não te deu nada. E claro,
sem moça, como ia casar o pobre do abade? 
Ali seguia em Ameixeiras. O porquê o bispo não lhe cambiava de freguesia
ninguém   o   sabe,   é   um   desses   mistérios   inexplicáveis.   Mas   não   seria   de
estranhar que ao bispo lhe custasse algo muito encontrar outro que quisesse
vir   para   o   posto   de   Narciso.   Ameixeiras,   depois   de   que   uns   moçotes   se
montaram uma vez, há já muitos anos, a cavalo dum cura, não tem mui boa
sona entre os abades. E isso que depois fizeram­lhas pagar; ai fizeram, fizeram,
a um deles, que era primo do Colmeias, mataram­no daí a logo da broma. Bem
seguro que o tal crego dera conta dele, e naqueles tempos a Guardia Civil não
se fazia rogada. O caso é que pouco a pouco a distância entre o Narciso e os
vizinhos   de   Ameixeiras   foi   medrando   e   o   que   se   via   vir   era   um   divórcio
traumático. Se o bispo o tivesse escutado… 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  50
Algumas cousas diz­se que são bem certas, como quando dizia a missa
com as pistolas no altar pousadas. Era um contraste bem grande ver aquela
pistola tão preta perto da Sagrada Hóstia tão branca. No entanto os que dizem
que fez muitas vezes uso das armas em público mentem, ele só as ensinava; e
quando tirava tiros era em privado, ora claro… ele não podia impedir que os
vizinhos de Ameixeiras os escutassem. Mas o Narciso em público só disparou
uma vez, e pôde ser um acidente, quem o sabe, isso nunca se dará aclarado. O
caso   é   que   a   Dom   Narciso   foram­lhe   apondo   cousas,   como   mulheres   não
tinha… filhos não se lhe podiam apor… pois a ordenar­lhe histórias! 
Escusado é dizer que ele cos outros abades não se levava dês que… desde
sempre, dês que chegara à freguesia. Estoutros faziam que não o conheciam e
só   se   juntavam   com   ele   nos   enterros   de   obrigado;   nestas   ocasiões   Narciso
aproveitava para zangá­los; melhor dito ele tentava­o, porque os outros não lhe
faziam   caso   nenhum,   nem   sequer   o   escutavam.   Narciso   andava   ao   dele,   e
enquanto  os outros  ainda  andam no adro  co defunto,  às voltas co “ora pro
nobis” dos responsos pagados, ele aguarda dentro da igreja e vai falando. E os
outros que não param de cantar e ele dá­lhe que dá­lhe a falar. Dentro há gente
que o escuta, ou ao menos que não tem outro remédio que ouvi­lo. Algumas
destas pessoas são maiores, ou estão cansas por ter vindo ao enterro a andar e
querem ir pilhando sítio, que depois enchem­se as bancadas e logo de pé não
se está nada bem. Ele qualquer que for o motivo que os fez entrar a sentar, eles
estão   ali   e  a  Narciso,   aborrecido de esperar, já lhe abondam como  público,
enquanto os outros curas não entram e anda o funeral polo sagrado. Algumas
vezes diz­se que dizia: “tanto a chiba de Vilarinho como a cabra de Vilamenor,
já podiam parar de berrar e ir comer verças às hortas” e cousas assim. 
Claro que se bem se mira, a quem não lhe rende o tempo numa igreja
aguardando? Ele nas igrejas já se sabe… e até há gente que não dá passado o
tempo nem com missas nem com cânticos. Como dizia o Afonso logo de sair ao
adro: “minha madrinha, que longa se me fez a missa, ai, como me rende aqui o
tempo! Cada segundo uma hora… E ali a fazer que rezo, e sem entender nada
de nada, só movendo um chisco os beiços para não passar vergonha…!” Parece
que isto de se aborrecer na igreja não é nenhuma novidade; e se ainda por cima
já tens aquilo mui visto, como deve de lhe passar a Narciso, pois não fica outro

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  51
remédio que o tomar com paciência. E a paciência não era precisamente o que
lhe sobrava por aquele então a Dom Narciso. Sobrar, sobrar, há quem diz que o
único que lhe sobravam eram as armas; é que… onde se viu outra…? 
A alguns vizinhos parece­lhes mentira que a Guardia Civil não tenha feito
algo,   saber   bem   que   o   sabem,   porque   uma   cousa   é   fazer   o   cego,   e   outra
querer­nos fazer cegos a todos. Houve vezes que a sacou mesmo na presença
deles,   e   eles   foram­se   para   outro   lado.   Como   ainda   lembram   todos   os   que
estavam   presentes   na   antiga   escola   de   Ameixinhas   (lugar   que   não   deve   ser
confundido com Ameixeiras) aquele domingo de eleições. Narciso cumpria coa
sua obriga, ele no fundo sabia mais que muitos o que tinha que fazer mas não
encontrava   o   jeito,   e   ainda   por   riba   agora   coa   bebedela   tudo   se   lhe   punha
anuviado… mas contudo ele cumpria co seu dever e antes de dizer a missa
sequer, ia votar. E isso que bem reganho que lhe dava porque, como toda a
gente sabe, no concelho de Os Mouros tudo está sempre amarrado; é­vos este
um concelho onde, se se me apura, há mais caciques que gente. Ele o caso é
que   aquele   dia   as   cobrejantes   estradas   andam   transitadas   polas   furgonetas
carregadoras dos votantes; vazio irá detrás o autocarro oficial. Há quem diz que
uma vez dentro da  dekauve  lhe dão à gente o boletim para que saibam por
quem têm que votar; há quem diz que lhe cambiam a que levam se não é do
partido   deles…   Mas  isso   nem  sequer  teria  sido  preciso,   Os  Mouros   e a  sua
comarca andam ainda enraizados nos hábitos tradicionais e de todos é sabido
que o intercâmbio é a chave de toda interacção social. Se o voto fosse secreto
toda a gente poderia ir votar sem medo, mas ele que vai ser! Todos sabem a
quem dá um o voto, e sendo assim, pois não o vais dar a câmbio de nada e que
pensem  que  tu és  parvo,   pois  logo… aí vai o boletim… vá a câmbio doutra
cousa  que   me  deste,   ou   fizeste,   ou  hás­de  dar   ou  fazer…  e  senão  para  que
nabiça ia um ir lá tocar a chanca. Nos Mouros contam­se cos dedos duma mão
os que votam só para escolher representantes, e ainda te sobram dedos. O voto
de   Narciso   tampouco   é   secreto   para   ninguém,   e   não   é   porque   a   Igreja   se
presente às eleições, ou que ele fosse a votar­lhes; ele é um homem de ideias e
ainda que vista os hábitos as ideias não as perde. Os outros curas tampouco as
perdem e o domingo desde o púlpito sagrado muitos deles fazem propaganda,
nem proibições nem o caralho. E todos, ao sair da missa, direitinhos a lhe votar

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  52
àquele  que   disse   o  abade.   Ora   Narciso   não   é  como   os   outros   e  por   isso   as
cousas não se lhe arranjam.  Mira que já lho  dizia sua mãe “filho,  não faças
isso… olha que na terra dos lobos há que uivar como eles” mas a Narciso não
se lhe dobra a língua para uivar como os outros, e anda o homem só e meio
calado. Aquele dia das eleições, e logo de introduzir o sobre co boletim polo
buraco da urna, sacou Narciso a pistola e em presença de todos os da mesa e
muitos  outros   que  havia,   apontou­lhe  à  caixinha  transparente,   na  que  já  se
viam  três   ou   quatro  furgonetas  de votos,  e enquanto os  canos  da sua  arma
roçavam o metacrilato dissera: “arranjai­vos, que senão arranjo­vos eu!” Mas
os papelinhos seguiram ali pousados tão inertes como antes; e uma vez mais os
votos, apesar da advertência de Narciso, não se arranjaram. Aquela vez diz­se
que há quem viu como a parelha da Guardia Civil saía da casinhola para não
ter que o ver. A Guardia Civil só andava ali para que ninguém não fosse depois
dizer   o   que   não   era;   e   que   não   fossem   vir   logo   a   denunciar   aos   honrados
trabalhadores das  furgonetas  por dar­lhes o boletim aos que carrejavam. Os
guardas civis eram testemunhas do bom transcorrer e da normalidade com que
a gente entrava, só, e quase sempre polo seu próprio pé, e votava. E nem seria
cousa com jeito ter que prender o cura, e isso em domingo e tudo, e sem ter
permissão, e…, deixa andar! E assim foram passando os meses e os anos, e as
eleições…, e mas não vale...
Aquela noite fizera­se­lhe mui curta a Narciso, e até teve que ser avisado
polos companheiros de que eram horas de ir parando. Desde a devassa que
sobe em direito das touças, tudo para acima, até a Regueira Funda, que vai ter
ao pé do Penedo do Leão, podia ver como a Estrelinha do Luzeiro pestanejava
em presencia daquela claridade que queria vir; e os três homens apuraram­se a
esconder tudo e ir­se bulindo asinha.

* * *

Logo   de   deixar   a   Ciro,   co   seu   fio   de   fumo   ainda   seguindo­lhe,   os


detectives detiveram o  carro a meio caminho  entre a Coanheira  e a Lajeira,
perto   dum   souto   de   castanheiros,   e   baixaram   andando   polas   poulas.   Em
chegando perto das casas do Eiró avistaram uma mulher que andava apanhado

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  53
verças numa horta rente ao caminho, pola parte de abaixo. Era uma mulher já
metida   em   anos,   pequeneira,   pouco   mais   levantava   que   as   verças   nas   que
depenicava   uma   folha   aqui   e   outra   acolá,   com   tino   de   não   deixar   umas
covelheiras mais despidas que outras; se a viram logo foi polo contraste da cor.
Vestia toda inteira de preto, com excepção dum avental riscado, um desses que
se cingem à cintura com uns arrebites que atam cara atrás. A mulher erguera a
olhada   quando   sentiu   o   carro   e   viu   como   dous   desconhecidos   baixavam
campo abaixo; quando viu que eles se achegavam à sua mera, botou a apanhar
nas verças fazendo como se não os vira…
– Bons dias, senhora.
– Buenos­dias…
–  Olhe,   nós   vimos   de   Ourense   e   estamos   interessados   em   qualquer
informação que nos possa dar sobre um assunto que se passou… 
O homem seguiu falando e acrescentou nova informação, mas a tia Maria
não escutou além dessa primeira frase. Na cabeça da mulher ressoaram fortes
as   palavras:   “Ourense”…   “interessados”…   “assunto   que   se   passou”…   e   co
zunido dos ecoares dessas poderosas palavras não pôde ouvir mais nada; e isso
que ela para andar nos noventa e tantos anos ouvia bem. 
–  Olhem, eu sou­lhes velha e já não sirvo mais que para apanhar aqui
duas verças para o caldo…
–  Não,   se   nós   não   queremos   que   você   faça   nada,   nós   só   queremos
informação   sobre   uma   pia…   se   você   nos   pudesse   responder   a   umas
perguntas…
De   novo   esse   ressoar   aboujador   das   palavras   que,   ressaltando   elas,
acovilham as outras, deixando­as assim escangalhadas por entre as perneiras
das verças: “queremos informação”… “responder”… “perguntas”…
–  Mas olhem o que lhes vou dizer, aqui neste lugar, coma nos outros da
sua comarca, que têm ido a menos nos últimos tempos e já não hã tanta gente
como   havia   dantes…   que   vai   haver!   Se   aqui   eram   polo   menos   oitenta   os
vizinhos de jugada e agora ficam dous com vacas, e isso poucas… mas agora
leva­se mais o ter ovelhas. Ai, quem o diria algum dia! Essa Veiga cheia de vacas
e Deus te livre de que entrasse ali uma ovelha, e agora…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  54
A   Maria   decatou­se   dos   acenos   de   impaciência   que   os   homens
manifestavam sem querer e apurou­se a acrescentar: 
– …pois bem, ainda assim e tudo, há gente que entende algo, eu não sirvo
para nada…, dês que um vai velho só serve para ir passando o tempo que lhe
puder restar.
–  Sim,  senhora,  entendemos bem o que nos  quer dizer e sabemos que
quando um vai para velho a memória vai indo a menos e…
A   Maria   não   aguardou   que   o   detective   rematara   o   discurso   sobre   as
fraquezas da memória, e não perdeu tempo em agarrar­se àquela palavra como
o náufrago a um canhoto, e apurou­se a dizer :
–  Isso é…, a memória não lhe me serve para nada…, olhem lá…! Hoje à
manhã   quando   me   ergui,…   cedo   porque   eu   não   gosto   de   estar   à   preguiça
esperta na cama, de perder o tempo na cama não gosto nadinha…, homem se
estivéssemos no inverno ainda tinha um passe… pode um estar ali quente até
que esteja o lume aceso, mas agora neste tempo que vai bom… pois não gosto
de lacazanear e ergo­me cedo… Pois verão, quando me ergui almocei, e agora
se mo perguntassem não lhe saberia dizer o que comi, ou o que não…, ainda
que eu, desde há muitos anos sempre almoço o mesmo; mas desde que um vai
velho   já   não   che  é  o  mesmo…;   desde   que   um   tem  o   caminho   andado   não
vale…, quem fosse novo outra vez e sabendo o que sabe…!
–  Pois ainda não é você tão velha, e seguro que sabe mais do que você
pensa…
“Sabe”…   “sabe”…   “sabe”…,   que   teimosos   eram   aqueles   dous!   Melhor
dito um, o mais velho, porque o mais moço ainda não desfechara a boca…
–  E eu que vou saber, eu não lhes sei nada, se dantes deica pouco não
íamos  à escola,  e ademais só  havia  o  Catón  e o  Silabario,  como vamos nós
saber… não, não, nós como quem diz não sabemos nada, perguntem­lhe vocês
aos novos que esses agora lêem muito nos livros e não é milagre que saibam, co
tempo que lhe dedicam não fazem favor; mas uma já não serve para falar coa
gente…, uma só serve para ir chouchando enquanto Deus o quiser.
–  Depois   havemos   de   ir   falar   coa   gente   nova   do   lugar   mas   primeiro
queríamos   que   você   nos   dissesse   se   sabe   algo   relativo   a   uma   pia   que
desapareceu…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  55
–  Não, eu não lhes sei nada da pia que desapareceu, ademais disso há
tantos anos que qualquer se vai acordar agora …
– Então você… acorda­se?
– Eu? Eu como me lhe hei­de acordar…! Aos meus anos! Foram vocês os
que o mencioram trazendo a cousa ao rego, e não eu…, eu já não se pode um
fiar do que se acorda e do que não. Agora nós, chegado este tempo, que pouco
nos resta já por andar, só servimos para estorvar…, estorvar e dar trabalho.
Os agentes insistiram e insistiram mas não puderam tirar cousa com jeito
daquela   conversa.   Amolados   por   não   obter   muita   mais   informação   que   da
primeira, foram­se rua fora caminho do Eiró. Bem que lhes amargou deixar a
velha   com   as   suas   verças   mas   nem   fazia   jeito   forçá­la   muito,   ao   cabo   ela
parecia algo confusa, e quem sabe, se calhar era certo que lhe não defendia
muito a memória. Contudo e isso eles tiveram que bulir de ali co rabo entre as
pernas, ou como se diz por Penacova… “saiu­lhes a porca furada” 
O   agente   mais   novo   parecia   não   alvoriçar­se   muito;   andava   ele   algo
distraído olhando para a paisagem que neste lugar parecia sobrar por todos os
lados.   Ele   viera  de  Barcelona  destinado   a Ourense  uma  temporada,  e ainda
andava  o   homem  tentando   entender a  língua   e  mais   a  paisagem,  ambas  as
duas cousas irmãs na estranheza para ele. Coa língua já se ia defendendo na
cidade,   mas   quando   chegou   a   esta   aldeia   compreendeu   de   que   tinha   que
afundar algo mais, encontrava muitas palavras que não tinha jeito de acotegar
no seu  delgado dicionário;  mas ele insistia e co passo do tempo havia de ir
aprendendo. Palavras e carvalhos, assim tudo revolto, verde e são, entravam
polos seus saturados sentidos e iam fazendo o seu efeito; “sim homem, sim, se
o que faz  falta é querer…”; e a ele vontade não lhe faltava, foi por isso que
quando se decidiu a vir desde a beira do Mediterrâneo pensou que de seguro as
similitudes do galego co seu catalão natal lhe facilitaria a sua adquisição, polo
menos   à  primeira.   Claro  que  quiçá lhe teria  sido  melhor  ir  um  chisco  mais
arriba no território galego, digamos por exemplo à Corunha; ora, se calhar ir ali
não   lhe   servia   para   os   seus   propósitos   de   adquirição   da   língua.   Diz­se   que
muitos habitantes daquela cidade, apesar de passarem a vida inteira nela, não
conseguiam  aprender nunca,  logo a escolha não fora tão má como pudesse
parecer. Ourense, e em particular esta zona da Raia, tem um jeito de falar bem

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  56
diferenciado,  e às vezes custava­lhe entender o que dizia a gente ainda que
fosse sabendo o que queriam dizer as palavras. Olha o catalão, para que logo
nos venham dizendo que são… o que não são… Já gostaria eu de que outros,
mesmo alguns de dentro da casa, fossem…, eu bem me entendo.
Entrementes, a tia Maria seguia na horta: “por sorte marcharam… pensei
que não me dava livrado deles, que dianhos andarão a procurar,… e mira que
vir­me cá com isso da pia… como que alguém vai ser tão inocente de lhes crer
que   andam   interessados   pola   pia…   a   mim   não   me  enferram,   alguma   outra
cousa terão tramada… e claro, não lho vão dizer assim a qualquer; pois logo de
mim tampouco vão levar muito…” A tia Maria, como a maioria das viúvas e
outras pessoas que passam muito tempo em soidade, tinha o são costume de
falar só… De que outro jeito ia senão ela escutar a voz humana? E certo é que
quando uma fica viúva por muito tempo estranha tanto a voz do companheiro,
e estranha tanto a voz  de dentro… A Maria havia já tempo que se afizera a
escutar só a sua voz, e por isso não era fácil que agora alguém chegasse e lhe
fizesse dizer o que ela não quer só por não dar aturado os devezos de falar. Se
os   agentes   tivessem   ficado   por   ali   acochados   perto   do   cadabulho   da   horta,
teriam escutado o que a Maria acabou dizendo sobre da pia; porque já que lhe
lembraram a cousa ela aproveitou­a para manter a sua conversa, pois certo é
que  quando  um  conversa  só  custa­lhe mais  encontrar temas sobre  dos  que
falar. Mas os agentes tinham tanto apuro por encontrar informantes que não
puderam   perder   nenhum   do   seu   precioso   tempo   espreitando   a   uma   velha.
Ademais, se alguém os via, que ia pensar? E como iam eles adivinhar que ela
falava só? Consequentemente os dous homens recolheram as suas ânsias de
saber e foram­se rua abaixo; ali no meio do lugar toparam­se com gente mais
nova.

* * *

Estas noites de lua cheia eram de grande ajuda para os três homens, que
assim   não   tinham   que   alumiar­se   cos   faróis   nem   passar   medo   de   ser
descobertos. Os medos que eles traziam, em particular os de Narciso, eram­che
bem outros, bem não escuros e frios. Os temores que se rebuliam dentro do

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  57
peito   de   Narciso   vinham­lhe   da   sua   cabecinha,   pois   por   aquele   solitário
Zebreiro lobos dos que amedrontar­se já não havia. Mas apesar da muita luz
que a lua derramava na devassa pola que eles subiam, aquelas noites foram as
mais  negras,   as  mais  escuras  e criminais para Narciso.  Ele via  como aquele
homem,   ou   crego,   que   protagonizava   o   seu   passado,   andava   já   sempre
desencarreirado. Era a sua uma cruzada perdida e mal levada por ele. Agora já
só em contra dos caciques da zona. Não ficava nunca claro, nem sequer para
ele,   quanta   gente   caía   dentro   dessa   categoria.   De   seguro   que   ademais   dos
clássicos,   os  de toda  a  vida,  os que toda a gente pode distinguir  polos  seus
traços identificadores: bem mantidos, soberbos, e com mal gosto para quase
todo,   especialmente   para   vestir,   Dom   Narciso   também   incluía   entre   os
caciques  contra  os  que   erguera  aquele  combate  de falares  incendiários,   aos
inspectores de granjas de  UTECO  e aos guardas civis retirados. Cada quando
que   ele  agora  se   topava  com   um   desses,   montava  um   cristo   verdadeiro.   Às
vezes até saca a sua arma e então a cousa vai piorando. E claro, via­se vir a
desgraça.   Agora   até   no   sagrado   se   enfrentava   a   estes   indivíduos,   para   ele
indesejáveis; mais dum, seica farto de o ouvir, faz por evitar todo o possível
contacto  que  os   possa   pôr  num compromisso.  Apesar do cautelosos  que se
volveram   alguns,   particularmente   para   não   dar   que   dizer,   há   vezes   que   a
ocasião requer a presença dum. Como lhe passou ao Saturnino no enterro da
sua tia em Ameixeiras. 
O   sobrinho   da   Hermesinda   era   um   dos   caciquinhos   de   pouca   monta
repudiados por Narciso, um desses que entre outros têm o ofício de carregador
de  furgoneta no dia  das  eleições;  felizmente, vivendo noutra  freguesia eram
mínimas   as   ocasiões   nas   que   se   cruzavam   ele   e   o   abade.   Mas   morreu   a
Hermesinda e o tal sobrinho não teve outro remédio que assistir ao funeral que
tinha lugar em Ameixeiras. Já estava a defunta no sagrado, pronta a entrar na
igreja, quando por entre as caras dos ali presentes avistou Narciso ao cacique.
Interrompe os “ora pro nobis” e os “secula seculorum” e algo rosnou baixinho.
Depois começou a dizer que a Hermesinda era uma ateia que nunca lhe ia à
missa   e   que   não   deveria   ter   sepultura   no   sagrado...   E   ele   é   certo   que   a
Hermesinda   ultimamente   não   assistira   com   frequência   a   cumprir   coa   sua
obriga   do   domingo,   mas   por   razões   que   lho   impediam,   pois   desde   fazia   já

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  58
algum tempo ficara a mulher tolheita de tudo, e não lhe valiam as pernas para
nada, quase não se podia mover. O Narciso não pára de rosnar e rosnar, e os
vizinhos surpreendidos por aquele despropósito não sabem o que hão­de fazer
e olham uns para os outros até que finalmente todos os olhares se dirigem ao
sobrinho da defunta, ao Saturnino, para ver que é o que se faz, pois ele é o mais
achegado   dos   da   gente   dela.   A   Hermesinda   tivera   um   filho   de   viúva   mas
morrera­lhe e agora só lhe ficava uma irmã e o sobrinho para defender o seu
nome.   Aquelas   tantas   olhadas   acurralam   o   Saturnino,   e   mais   que   ajudá­lo
põem­no cara ao precipício. Não tem outro remédio que obrigar o abade a que
cumpra co seu dever de sacerdote. E assim, com essa determinação, começa a
caminhar   em   direito   ao   abade,   enquanto   a   cara   se   lhe   vai   acendendo   polo
reganho  e  a  vergonha  que  já  são   inevitáveis, e diz­lhe que aquilo ele não  o
permite, e que será polas boas ou polas más, mas ele enterra a defunta. Então
foi quando o Narciso tirou a arma do peto e apontou ao Saturnino enquanto
lhe dizia: “se te moves meto­te um tiro” O Saturnino ficou cravado no chão
como   um   espeque   e   o   encarnado   da   cara   trocou­se   em   céreo.   Narciso
segue­lhe   apontando   enquanto   lhe   diz   que   não   se  apure,   que   ele   não   quer
matá­lo, só pretende capá­lo, e por isso lhe vai tirar aos colhões. 
Nesse momento todas as olhadas vêem como, efectivamente, a inclinação
dos canos do nove largo indicam que a bala, de sair disparada, passaria por
essa zona de entrepernas, mesmo onde se juntam as brilhas e se decolgam as
partes. Alguns dos presentes, que não gostam do caciquinho, sorriem, e para os
seus adentros, bem que se alegram do que ali se está a armar. Mas ninguém
abre a boca, e a cousa continua. Narciso segue coa teima de que ele à velha não
a enterra e que em vez disso lhe vai enterrar um cacho ali ao sobrinho, um
cacho que lhe sobra porque ele não é homem nem é nada… Aquilo semelha
estancado  e mesmo parece que vai durar eternamente. Alguns pacificadores
começam de falar… “que remate co enterro e logo depois já terá tempo de lhe
arranjar lá as contas ao sobrinho…” mas nada, Narciso segue na sua postura e
apontando ao Saturnino. Estava tão atento ao que se passava por diante dos
seus olhos  que  não  se apercebe de que por detrás se lhe vai arrimando um
homem, um guarda civil retirado, vizinho do Saturnino, e até amigo dele. 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  59
O guarda retirado, acostumado a actuar pola sua conta e sem permissão
de ninguém, decide então meter­lhe uma punhada ao cura no braço co que
aponta,   para   ver   se   solta   a   pistola.   Todos   viram   como   o   braço   de   Narciso
baixava e a arma se disparava. Um homem caiu ao chão, todos pensam que
está morto. A bala, trás passar por entre os joelhos do Saturnino, foi bater no pé
do João,  um  moço de Penacova que estava ali no enterro como o resto dos
vizinhos. Ao João levaram­no à urgência e tudo ficou em nada, a bala não lhe
causara mais do que uma ferida leve. Aquilo parecia­lhes aos que o atenderam
um   milagre…  o   projéctil   atravessara   o  artelho  e  não  causara   nenhum  dano
nem em osso nem em ligamento nenhum. 
O João volveu logo para a casa sem rancores para ninguém: “Ele a mim
não   me   tirava,   foi   sem   querer”.   Ao   João   não   lhe   fizeram   assinar   nenhuma
declaração,   mas   aquilo   não   livraria   a  Narciso  do  castigo.  Narciso   foi  levado
num   furgão   da  Guardia   Civil,   diz­se   que   os   chamou   o   colega   retirado,   o
encarregado de lhe meter a punhada afortunada… A reitoral onde morava o
Narciso   foi   esquadrinhada   e  por   fim   soube­se   a   verdade   sobre   a   lenda   das
armas;   já   sorriem   os   que   assim   o   antecipavam:   em   casa   de   Narciso   havia
muitas armas de Deus, ademais das pistolas havia escopetas e rifles e até uma
metralhadora. Os refistoleiros dizem que só de munições encheram uma teiga,
que de enchê­la de grão levaria uns treze quilos. Ninguém parece alegrar­se,
excepto o guarda civil e o cacique, do que lhe passou a Narciso. Uns dizem que
o   pobre   está   tolo,   outros   que   se   foi   da   bebida…   e   todos   parecem   estar   de
acordo   em   que   se   alguém   tomara   medidas   antes,   isto   não   teria   porquê   ter
passado,  já  que tanto o bispo como as autoridades estavam informadas das
andanças  do  cura.   As  gentes  de Ameixeiras, o mesmo que os das freguesias
vizinhas, sabem que a eles ninguém lhes faz caso até que algo que já não tem
remédio se passa… “Pois anda que não estava toda a gente sabida do que se
passava e do que não” 
Agora andam todos os da freguesia à espreita a ver o que fazem co crego…
“Para aqui que não se lhes ocorra mandá­lo outra vez”, dizem alguns; “já verás
que pouco dura no cárcere”, dizem outros; “coitado homem”, dizem os mais
deles. Não, a gente não queria a Narciso de volta, um homem que faz essas
cousas,   ainda   que   seja   por   causa   do   álcool,   não   serve   para   cura.   Com   este

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acontecimento, e outros do mesmo estilo, as gentes de por aqui já aprenderam
a fazer­se escolhidas, e depois disso têm­se visto abades rejeitados por alguma
freguesia. Como lhe passou ao Laruças da Boulhoeira. A cousa vinha passando
dês que o Aurélio, que era o pároco de Penacova e outra freguesia daí abaixo,
tolejara  de  tudo  e  tiveram  que o substituir;  à primeira viera Dom Narciso  a
dizer algumas missas, se calhar cada quinze dias ou assim, pois o homem não
dava   feito.   Depois,   quando   se   passou   o   que   se   passou   no   enterro   da
Hermesinda, pois claro, já não pôde vir mais o Narciso e daquela o bispo quis
mandar o Laruças. Então foi quando os vizinhos de Penacova, especialmente
uma   mulher   que   vai   muito   à   missa,   se   revolveram   como   as   cobras.
Telefonaram   ao   bispo   desde   o   locutório   da   taberna,   onde   estava   o   único
telefone que havia daquela, e asseguraram­lhe que se vinha o tal da Boulhoeira
já podia estar preparado porque ninguém lhe iria à missa; e claro, o bispo não
se atreveu e mandou a esse rapaz que há agora. 
Narciso   fora   detido   e   julgado   num   santiamém.   Meteram­no   no
psiquiátrico, pois somente a tolémia podia justificar o fazer da Igreja naquele
assunto,  e  só   a  loucura   podia   dissimular   um  chisco   a  ençoufada  face   desta
instituição, que por certo, não anda ela lá mui limpa por este lado da terra. Sem
contar a sotana do Cacholas de Vilarinho, que vai sempre emporcalhada, nem
os costumes do Laruças de arrepanhar o que não é dele nem de Deus, ficam, e
ficarão, outras muitas cousas por limpar e aclarar. Por exemplo, que feito foi
dos altares da igreja de Penacova. Quando o Aurélio, o abade desta freguesia,
que por certo viera corrido a pedradas da de Medouchos – ainda que aqui isto
tardou em se saber –, pois quando ele levou os altares disse que os ia queimar
ali   no   pátio   da   reitoral   de   Aguins,   a   outra   freguesia   da   que   também   se
encarregava.   Mas   ninguém   cheirara   ao   ardido,   nem   vira   bafeirada   de   fumo
nenhum… daquela ainda não estava tão tolo como para destruir coas chamas
aquela   beleza;   tolo   pôs­se   depois,   e   não   é   milagre,   de   novo   um   fá­las   mas
depois,   de   velho,   paga­as.   É   certo   que   aquelas   colunas   torneadas   cos   seus
cangalhos de uvas, e santinhos, e mil chinguilinadas, precisavam um repasso.
Os dourados já diziam grises, e os prateados não se distinguiam das manchas
de humidade. Precisavam que alguém lhes botara uma mão, mas não assim. O
Aurélio pedira­lhes aos homens de Penacova que lhe ajudaram a carregá­los

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num   carro   e   levá­los   à   reitoral   de   Aguins.   Primeiro   seica   fizera   contas   de
enterrá­los,   mas  logo   se  se  desenterrassem   seria  um  escândalo,   e  disse  que
melhor os queimaria, que era ainda mais fácil. O que fez ou não fez só ele o
sabe. Por conseguinte o de Narciso já chovia sobre molhado e o próprio bispo
era conforme com colhê­lo e confiná­lo…, ora não no cárcere, que isso diz mui
mal. Melhor que seja um tolo: vamos, asinha a crucificá­lo. E assim foi como o
Narciso se encontrou naquele psiquiátrico. Ali soube que era um doente e que
iam a tratá­lo, mas a ele já tanto lhe tinha. Primeiro viria a desintoxicação do
álcool: coa ajuda dumas pílulas e umas injecções nem se aperceberia de que
lhe faltava o vinho. E era certo, o Narciso andava à primeira como um fantasma
adormecido   polos   andares   daquela   residência.   Depois,   pouco   a   pouco,   foi
espertando   um   algo,   mas   seica   não   tem   mostrado   muitos   devezos   de   se
recuperar. Os doutores parecem não dar co cerne da sua loucura, mas também
lhes está custando encontrar indícios que lhes permitam confirmar que já está
bem  e  soltá­lo.   Tudo   isto  mantêm­no secreto os batas­brancas e diz­se que
andam   algo   danados   por   não   dar   entendido   o  que   é  que   lhe   passa   a   Dom
Narciso;   porque  parecer  parece um  tolo,  mas depois não  parece que o seja
deveras.
Entretanto, no Zebreiro as lembranças iam empurrando a Dom Narciso
monte arriba, tal que um cavalo, caminho da Fonte da Cunca. Parecia­lhe que
já não tinha mais nada para tirar do saco escuro dos miolos, porém não sentia
o   homem   alívio   nenhum;   nem   lhe   parecia   que   aquela   nova   possessão,   ou
reconstrução, ou como quer que se lhe chame, o levasse a sítio nenhum. Ali
apegado àquela pia seguia ele, e mesmo se tinha figurado que porventura era
tudo um sonho e que agora co susto, onde houvera um disparo e tudo, teria
acordado… Mas não era assim, e sabia que teria de seguir algo mais naquele
caminho nocturno. Como um condenado que não conhece a duração do seu
castigo, assim se sentia Narciso. E que madurecido andava! Já não sabia em
que   lado   afincar   o   pinho   para   turrar   daquele   chedeiro   tão   carregado.   Em
ambos ombros tinha esfoladuras que já lhe levantaram a pele mais duma vez…
as fêveras do seu coiro passaram nalguma ocasião a se fundir coas do tecido do
lenço da camisa. As maniotas iam­se acumulando umas por riba das outras;
aquela era uma dor física impossível de aturar, e às vezes via­se o homem na

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obriga de se esconder como se fosse um animal e com ambas as mãos sujeitar
bem   o   pinho   e   apoiá­lo   no   lombo   dobrado,   e   mesmo   na   cabeça.   Quando
chegou  ao  alto, mesmo ao  pé  da fonte, soltou  o pinho e decatou­se de que
aquela fora a sua última jornada na dianteira, já não podia mais. Ele seguiria às
voltas coa carga, ora para o pinho já não lhe davam os fôlegos. Deixou­se cair
ao  longo  da  fonte,  co   olhar no céu estrelado.  A  terceira lua estava pronta a
começar,   e   ele   seguia   sem   muita   clareza,   fora   ou   dentro.   Os   três   homens
tiveram   quase   meia   noite   de   descanso  e   tempo   para  saciar   as   suas   sedes  e
cumprir co ritual de dar de beber à pia; depois esconderam a vida que levavam
e   deixaram   o   Zebreiro   até   a   noite   seguinte.   Aquela   última   subida
escorrichara­lhes as forças a todos, por sorte amanhã começaria o descenso, e
bem seguro que seria mais fácil. Mas isso seria amanhã.

* * *

O   diário  Nuestra   Región  leva   vários   dias   sem   oferecer   cousa   com   jeito
sobre o tema não resolvido da pia. Tudo se vai em bons desejos, mas sem nada
que aportar aos seus leitores. Assim, alguns, devecidos polas novas que não
chegam,   começaram   a   mandar   notas   de   protesta   à   redacção   do   jornal,
acusando­os de falta de formalidade; porque ora nem se menciona o tema ora
se se trata é de jeito casqueiro, pouco sério. Algumas das cartas recebidas nos
seus escritórios parece que levam mui má raça, segundo os comentários do
próprio jornal, e não merecem ser arejadas na sua publicação. O diário afirma
que se alguém tem algo positivo e de ajuda, que o pode comunicar, e se não é
assim, que não lhes façam perder o tempo. 
Contudo e isso a gente segue a vê­las vir sem nada fiável sobre assunto
que nos concerne e preocupa.
Contudo,   os   da   cidade   velha   seguem   coa   sua   dança   de   infrutuosas
reuniões e não saem disso, não dando­lhe a  Nuestra Región nem sequer uma
escusa para seguir falando deles tão sequer, e tampouco é cousa de lhe botar a
culpa ao jornal por não nos oferecer informação do bem que esta organização
resolve   as   suas   diferenças.   Não   se   pode   fazer   notícia   se   não   se   tem   algum
indício, ainda que seja mínimo, ainda que seja mentira… mas algo, sobre o que

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criar. A verdade seja dita, nem estes da cidade velha, nem as autoridades, lhe
estão facilitando nada a Nuestra Región a sua tarefa informativa.

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Capítulo III

A FONTE DA CUNCA

Apesar   do   descanso,   que   bem   merecido   tinha,   Narciso   seguia   meio


arrelado das costas; custava­lhe um nada endireitar o martirizado sarriço, e o
coiro da parte alta do corpo seguia encetado em vários sítios. Mas não era essa
terrível dor física a que trazia o homem revolvido, não, o que lhe remexia nas
suas entranhas surdia da escuridão que ainda sentia rebolir lá dentro. Narciso
sabia que tinha de seguir aquela andaina, mas não sabia para onde se devia
dirigir. Foi assim como se decatou de que lhe chegara a hora de soltar aquele
temão que até agora levara. Não, a Narciso já não lhe valiam as forças para o
pinho,   polo   que   quando   naquela   primeira   noite   desta   terceira   lua   nova
trataram de se pôr ao caminho, o Narciso recuou da dianteira e situou­se atrás
da roda esquerda.
O   Perfeuto   Racha­Pedras   dum   brinco   apoderou­se   da   dianteira,
decatando­se assim ele, e anunciando co seu gesto, de que lhe chegara a ele a
rolda.   Desde   a   Fonte   da   Cunca   até   a   Veiga,   onde   encontrarão   o   quarto
manancial,  tudo  será  baixar.  O Racha­Pedras terá um fácil começo, aqui no
alto, e até passar do Penedo do Leão a pendente não será nada pronunciada, o
que lhe ajudará a começar com bom pé a sua andaina.
Aos três homens lhes amargava ter que deixar aquele recanto da Cunca. É
esta   uma   fonte   singular,   à   que   quiçá   seria   mais   adequado   chamar   fontes,
porque sai em duas cochas separadas, mas à que toda a gente se refere como
fonte   porque   ambas   têm   idêntica   água.   Ambas   as   duas   de   pedra,   uma
quadrada e a outra circular, mas as duas com água de idênticas propriedades.
Precisamente   polas   qualidades   que   se   lhe   atribuem   recebe   o   seu   segundo
nome: Fonte da Fame. Todo aquele que sofre por falta ou merma de apetite
não tem mais que beber um golo destas águas e aí mesmo se lhe abre, e as

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ganas, por mui bico­furado que um for, são mais grandes que nunca. Dar­lhes
aos cativos de beber destas águas de quando em vez está considerado o melhor
remédio contra os maus hábitos alimentares que costumam ter as crianças. Já
se sabe que a água toda desgasta: “a água lavra o caminho, e não como o vinho,
que sabe no focinho”. Ora, o desta fonte sai­se dos lindes do comum. Um jeito
de comprovar os poderes destas águas é botar um coiro duro nelas e aguardar;
de ali a um pedaço o coiro começa de amolecer e vai­se pondo esbrancujado
como   se   estivesse   entrecozido.   Para   os   de   Penacova   este   método,   sendo
objectivo e portanto livre do efeito da possível sugestibilidade, é a evidência
definitiva das qualidades medicinais destas águas. Porque a gente de Penacova,
que   não   é   parva,   bem   sabe   que   depois   de   subir   desde   a   aldeia   até   o   alto
caminhando,   vem­lhes   a   fome   até   às   pedras,   e   por   isso   a   cousa   podia   ser
enganosa. Ora, co método do coiro, que há­de ser de jamão bem curado, não
fica dúvida nenhuma. 
Para maior deleite desta riqueza transparente construiu­se uma mesa cos
seus bancos de pedra e até uma forninha para poder assar ali se se quiser. Ora
que, na frescura daquele monte, como comer de seco não há, e o que mais
presta é o jamão co pão centeio. A mesa e a fornalheira são bonitos adornos de
pedra, e atraem às gentes de fora se por ali ligara que viessem, que por certo
não   é   este   o   caso.   Estes   três   homens   da   pia   foram   os   únicos   visitantes
forasteiros em subirem lá acima durante a corrente primavera, e quem sabe se
os últimos. 
Contudo,   eles,   após   o   seu   descanso   e   logo   de   saciar   a   sede   da   pia,
colheram   o   andante   para   o   Sudeste,   caminho   da   Veiga.   O   Perfeuto   vai   na
cabeceira, e os outros dous detrás de ambas as rodas. O Alcaide vai sumido
numa quase inexistência, ambos os outros, embebidos lá nas suas cousas, não
lhe fazem muito caso. Por um lado Narciso parece como se hoje andara algo
ausente; e o Perfeuto, em contraste, vai bem esperto e ágil, mesmo semelha
que o espírito que lhe falta aos seus companheiros ele lho tirara. Salta por cima
de carpaços, uzeiras, carquejas e mais tojos, ou o que se ponha por diante, com
um passo bem ligeiro. Os outros dous fazem o que podem, ora mais que ajudar
dir­se­ia que ainda o freiam, mas o Perfeuto não se apercebe e segue coa sua
marcha acelerada rodeira abaixo. Ao Perfeuto Racha­Pedras havia mui poucas

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cousas que o frearam, ele era homem botado para diante. Nisso ele não saíra a
seu pai, que era acovardado e pouco homem. Ainda quando viera o tremor da
terra lá polo ano sessenta e nove, creu que eram os ladrões que lhe andavam às
voltas coas entradas da casa para lhe roubar o dinheiro que aquele mesmo dia
fizera coa venda duma almalha. O homenzinho sentou na cama e tremendo
como um junco, marelinho, ali ficou diante da sua mulher envergonhada, até
que um vizinho, trás ouvir os berros, lhes acudiu. Mas o Perfeuto não herdara
aquela  habilidade  do  seu  pai de se pôr amarelo e de tremer; ele era tudo  o
contrário, um homem acendido e de prontos bravos. E ainda que aquela raça
que ele tinha não lhe vinha mal a cotio, alguma que outra vez também o metia
nalguma leia. 
De rapaz ele já se tinha por valente e outros mais velhos não se atreviam a
importuná­lo. E bem leda que se sentia a sua mãe, mesmo se lhe enchia a boca
ao   falar   no   valor   do   seu   filho.   Era   aquela   uma   mulher   de   falar   fácil   e   sem
cancelas,  e às vezes  dizia mais do que, se quadra, era adequado. Dês que o
Perfeuto   foi   garoto,   logo   de   cumprir   nove   anos   ou   dez,   ela   via   nele   a   um
homem; e foi por aquele então quando começara a dizer, diante de quem for,
que agora na sua casa já havia um homem, mas que o tivera que parir ela. O
coitado do marido, que não era tão coitado, pois por diante calava e fazia que
ria   a   broma   mas   logo   depois   seica   lhas   fazia   pagar   caras…   que   ele   bom
tampouco não che era…, não era, não, que ia ser, senão que lhe perguntem ao
Perfeuto polas marcas que as vergalhadas da correia do seu pai lhe deixaram
muitas  vezes  no   lombo…   Claro   que   muito   tempo   isto   não   durou   porque   o
Perfeuto fez­se homem asinha e repunha­se cara ao pai, que pouco a pouco se
foi apoucando; mas antes de se fazer o rapaz grande muita malheira lhe meteu
o seu pai. Contam os vizinhos que uma vez até o atou com uma corda como se
fosse um animalzinho, bem rente para que não pudesse burlar as vergalhadas,
e depois brigou nele até que um vizinho lhe acudiu e lho tirou... “Mas tu seica
viraste   tolo,   deixa   o   rapaz   que   ainda   vais   fazer   uma   desgraça!”   A   mãe   do
Perfeuto muitas vezes nem se decatava, mas tampouco pensava ela que aquilo
fosse   tão   mau…   “A   poder   de   golpes   aprendem   até   as   pedras”.   Por
consequência o rapaz teve de aprender asinha a se defender. Praticava muito
malhando noutros rapazes da aldeia, um pequeno lugar perto de Ginzo. Isto

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  67
trazia os vizinhos quase sempre de mal coa família. A dizer verdade a família do
Perfeuto Racha­Pedras nunca se levou bem de todo co resto dos vizinhos do
lugar. O pai do Perfeuto, ao que lhe diziam Hermínio, o pobre já morreu, viera
casar ali coa Balbina, a que foi a mãe do Perfeuto, Deus os perdoe. O Hermínio
já trazia com ele a alcunha de Racha­Pedras quando veio aqui casar, e assim
lhe ficou   a  este  filho  mais  velho.  Diz­se que a alprecha lhe vinha dum avó,
quem também se tivera que valer da sua manha coas pedras para ganhar um
jornal aí nas canteiras do Montefurado, co que seica o Perfeuto guarda muita
semelhança; ainda que isto mui em contra da Balbina, que sempre se arranja
para lhe encontrar parecido cos dela. Ora os da gente dela vinham tirando a
ruivos e de olhos garços, enquanto que o Perfeuto, e mesmo o seu pai, eram
morouchos   e   de   pêlo   algo   crencho.   Ele   polo   que   for,   esta   família   nunca
assentou completamente, e de quando em vez levantavam o voo e marchavam.
Passaram muitos anos em Alemanha e alguns outros em Barcelona. Às vezes
retornavam como se fossem ficar na aldeia para sempre de vizinhos e de ali a
nada preparavam a bagagem e… bota­lhe um cão ao rastro! Foram tendo filhos
e deixando­os por aí espargidos num sítio e noutro trabalhando, enquanto eles
seguiam coa sua movedela de cá para lá até que morreram os velhos, que tanto
ele quanto ela nunca o foram; morreram sendo mui novos. Os filhos partiram o
capital,   que   andava   meio   à   poula,   e   aqui   só   volveu   o   Perfeuto   para   se
encarregar  da  vida  dos  Racha­Pedras; e assim foi como ficou  coa lavrada, e
mais coa alcunha da família. 
O Perfeuto leva o pinho com tanta celeridade que aos outros dous até lhes
custa dá­lo seguido. Dom Narciso já caiu num fachonco um par de vezes, e
para o pouco que pode ajudar coa carga tampouco vai ir a mata­cavalos. O
Alcaide, já farto de ter que correr, sentou dum brinco na traseira do chedeiro e
vai ali trás da pia fazendo de contrapeso, que como é costa abaixo não vem mal
de todo. O Perfeuto segue baixando caminho do Penedo do Leão, alheio aos
andares   dos   que   vêm   na   traseira;   leva   a   cabeça   algo   quente   de   tanto
pensamento   descontrolado   que   lhe   traz   a   soidade   do   pinho.   As   suas
lembranças   andam  aos  brincos,  escolhendo   algo  aqui  e  algo  acolá   para  lho
trazer à cabeça, e isto causa­lhe muito desassossego. Porquê não será capaz de
ver   com   clareza   certas   cousas   que   pensa   que   lhe   têm   passado.   Como   essa

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  68
imagem   persistente   que   se   lhe   apresenta   subitamente   e   não   dá   tirado   do
sentido.   Vê   a   sua   irmã   com   cinco   ou   seis   anos,   deitada   no   patamar   do
vizinho… acochada num saco como se fosse um cãozinho, assim ali a dormir.
Ele teria então sete anos, se os tinha, e não entendia mui bem o que se passava
em casa; como é que a Esperança estava ali a dormir na escada dos vizinhos?
Agora enquanto puxa do pinho apercebe­se do mal que tiveram de passar de
meninhos… e a pobre Esperança sempre com tanto medo… ela escondia­se
quando pensava que o seu pai lhe queria bater, e depois ele fechava­lhe a porta
e deixava­a fora toda a noite. E a mãe? Porquê não lhe acudia à meninha? E o
Perfeuto   vai  lembrando   como   a  sua  mãe  gostava   da   aguardente,   e  às   vezes
tinha­a visto deitada no escano co garrafão ao lado, parecia estar dormida mas
o certo é que estava borracha. Pobre Esperancinha! – pensa agora o Perfeuto,
enquanto lembra aquela vez que a sua mãe não estava, diz­se que fora visitar a
um primo que andava para morrer, ou algo assim lhes disseram a eles – O caso
foi que a sua mãe passou uns quantos dias fora da casa. Durante aqueles dias
eles passaram muita fome, fome e medo. Houve vezes de o seu pai marchar
para fora e não volver no dia, nem para o seguinte; alguns dizem que tinha uma
amiga lá na Ribeira, e que aproveitava a ausência da mulher para ir onda ela.
Ele quando o pai marchava, como era algo tacanho, deixava­lhes tudo fechado
com chave e os coitados não tinham nem um zarapulho de pão para levar à
boca. Recorriam a tudo, alguma vez escondiam batatas no palheiro da erva ou
no   combarro  da   lenha,   assegurando­se   de  que   o  pai   não   as  pudesse   topar,
senão… Ainda assim, havia vezes nas que passavam o dia quase inteiro sem
comer;   em   mais   duma   ocasião   tiveram   os   dous   meninhos   que   baixar
caminhando até ao rio e varrer a roda do moínho para fazer umas papinhas ou
uma bica do testo e não esmorecer.
Mentes   estas   dolorosas   lembranças   andam   aos   pinotes   na   cabeça   do
Perfeuto,  ele  fecha os   olhos   e  segue andando sem muito controlo,  e não  se
apercebe de que se saiu da rodeira e vai polos tojos abaixo, como levado do
demo,  nem  sequer  sente   as  picadelas  nas  canelas.   Dom  Narciso   segue  pola
rodeira, e tem que botar uma carreirinha aos poucos para não despistar­se dos
companheiros.   O   Alcaide   continua   sentado   na   traseira   do   chedeiro,   vai
agarrado aos dous estadulhos de trás com ambas as mãos, e tudo lhe cumpre

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para  não   sair   disparado   polos   brincos   que   dá   o  carreto.   Desde   a  rodeira,   o
Narciso vê  como a  cabeça  do Alcaide sobe e baixa como se se movesse aos
saltos, e assim é, leva o cu como um pandeiro, mas dali não se move…, vá, que
o levem! Narciso olha para o Racha­Pedras e quase se estremece, ele já se viu
primeiro naquele pinho e conhece a força coa que é capaz de te manejar como
um   bonifrate;   ele   sabe   da   ligação   coa   que   te   jungem   essas   sogas   invisíveis.
Durante  uns   momentos   ao  Narciso  vêm­lhe   ganas   de   ir  lá  e   botar­lhe  uma
mão, mas as aguilhoadas de dor que lhe chegam desde a parte das omoplatas
fazem­lhe engrunhar o focinho e desistir de tal ideia. Ademais ele já o levara a
sua jeira, e agora tinha que deixar andar; afinal ele não sabia bem para onde
tinha   que   tirar,   e   nem   sequer   daria   andando   ao   passo   do   Racha­Pedras.
Portanto decidiu, em total conformidade coas maçaduras do seu corpo, seguir
pola rodeira. Isso sim, sem tirar os olhos de acima do Perfeuto. Aquele Perfeuto
alheio ao seu entorno mais imediato, olhos fechados, canelas que não sentem
o   sangue   que   sai   das   tantas   picadelas   dos   tojos,   sem   ouvir   os   gemidos   do
Alcaide   que   como   um   mostrengo   segue   a   ser   lançado   arriba   e   abaixo   no
chedeiro. Aquele Perfeuto seguia o seu andar cara ao Penedo do Leão como um
meninho   que   não   sabe   ter   controlo,   ou   que   realmente   não   o   tem.   Quando
chegou ao pé do penedo parou, olhou para o céu e viu a Estrelinha do Luzeiro,
como se lhe quisesse piscar o olho, e sem sequer reparar se os outros vinham
detrás ou não marchou­se. Os outros dous fizeram outro tanto e ali ficou a pia
arrimada à base das pedras. Narciso foi o último em se marchar, em parte polo
bocado que teve que andar desde a rodeira ao penedo. 
Só que aquele não era o Penedo do Leão; ao se saírem da rodeira vieram
bater um pouco mais ao Leste e aqui onde chegaram não é o Leão senão as
Fatigas. Se tivessem levantado a vista para a beira do penedo teriam visto um
buraco na parte baixa da peneda que lá no alto assoma a jeito de solaina ou
corredor. Desde abaixo aquele parece um simples furado na rocha, algo no que
alguém passou o tempo, golpe vai e golpe vem na pedra. Às vezes no monte a
gente, e ainda mais se anda um só e nem sequer tem com quem falar e muito
menos   jogar   à   porca,   não   dá   passado   o   tempo   e   acode   a   cousas   que   o
distraiam. Ora que se um se atreve de subir acima, e se tem o poder para o
fazer, porque se precisa poder e manha para dar posto o pé do outro lado do

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furado,   então   o  que  vê  é  algo  mais que  um  cocho   que  atravessa  o  penedo.
Diz­se que há tempo, quando estes montes andavam cheios de gado, os moços
se   dedicavam   a   ver   quais   deles   eram   capazes   de   subir   e   quais   não;   ainda
estavam também os que não se atreviam de o tentar. As moças, de andar ali co
gado, não se dedicavam a essas competições, ademais levando saia, tampouco
parecia bem ensinar assim as pernas. Algumas seica subiam quando não havia
homens   por   ali   ao   seu   redor,   então   refuciam   as   saias   para   a   cintura   e
brincavam polos penedos arriba. 
Quando   se   chega   arriba,   à   primeira   um   esquece­se   de   olhar   para   o
buraco, desde o alto avistam­se tantos vales e regatas e lugares… que um fica
por um instante descolocado. Parece como se de súbito um estivesse noutro
sítio. Depois, quando já se começam de distinguir os lindes do conhecido… ali
anda A Boulhoeira, e Penalapa; por acolá fica Bande; ali o monte do Castro, e a
Rousia, e o Larouco; lá em baixo anda a Límia, e… agora é quando um repara
no buraco; e aí vem a surpresa que realmente desconcerta o curioso. O penedo
não debalde se chama das Fatigas, quiçá pola sua feitura a jeito de carrelas ou
fatigas de pão apoleiradas umas em riba das outras. O buraco está dentro do
que semelha uma silhueta humana afundada na pedra do alto. A um supor,
vem sendo uma marca como a que deixaria o corpo que se deitara na neve cos
braços apegados, só que a marca está feita na pedra e portanto o que a lavrou
fez algo mais que deitar­se na dura rocha; ora, também é mais pequena que os
corpos da gente de agora. Seica diz­se que naquele lugar sacrificavam a gentes
noutros tempos mais antigos, e que o buraco se fez para que por ele decorrera
o sangue do que era ali cuinchado até que estinhava, e a lenda não diz mais
nada. Por ter­se desviado da rodeira, os três homens amanhã terão que ir um
nada de través, pois de passar polo Leão ninguém os há­de livrar.

* * *

Uma leda nova fez­se pública ontem nas páginas de  Nuestra Región; na
secção   de   ecos   de   sociedade   informa­se­nos   de   que   o   senhor   aquele
adinheirado, sim, esse que anda a querer fazer uma obra benéfica e que se vê
obrigado   a   demorá­la   e   demorá­la,   pois   seica   topou   uma   moça   e   anda   o

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homem mais feliz que um aparvado. Ele já fora casado mas agora, por razões
que o jornal não entra a detalhar, morava só. Diz­se que até parece mais novo,
para aí vinte anos, agora parece o pai da moça e não o avó, como antes. O que
conta é que ele agora namorou e é feliz, e o demais são­che lérias. Desde o
jornal mandam­lhes os parabéns a ele e a essa beleza que vai apegada a ele tal
que uma lapa.
Num   apartado   no   que   o   jornal   recolhe   notícias   de   há   cem   anos,   lê­se
como este diário fazia público o anúncio da próxima corrida de lobos que se
está a preparar lá nos montes do Zebreiro, que ficam na freguesia de Penacova,
bem ao sul desta província, mesmo nos lindes do Couto Misto. Também se diz
que os vizinhos de Penacova andam já a reparar em se as paredes estão prontas
para a corrida; a eles o que lhes importa é que venha muita gente e liquidar a
uma boa cheia de feras, que por ali não as precisam. A notícia estava escrita
num castelhano ortopédico que não desmerece do que Nuestra Región usa na
actualidade.

* * *

Aquela noite, quando se juntaram os homens da pia, olharam­se por um
instante e mesmo semelhava que se quiseram botar a falar, mas não fizeram
tal, e seguiram calados; calados como eles são. O Perfeuto pensou que quiçá
teria   gostado   de   dizer   que   sentia   tê­los   desviado   do   caminho,   mas   as
condenadas   das   palavras   não   só   não   saíam   senão   que   se   tornavam   para
adentro e faziam­no rabear; faziam­no sentir torpe e parvo como um meninho,
felizmente aquilo não durava muito. Cada vez que isto sucede ele põe­se da cor
da   cereja   e   com   essa   pujança   colhe   o   pinho   e   arranca   sem   esperar   por
ninguém. O Narciso quis dizer que aguardara, “…que te ajudamos” mas calou;
ademais cumpriam­lhe as forças para dar andado. O Alcaide, sem imutar­se,
meteu uma carreirinha, e dum brinco saltou ao carro, tomara­lhe gosto a ir
sentado e que o levassem. Narciso apurou o passo e foi a correr ao seu posto e
arrimando o seu esfolado ombreiro fez o que pôde. Numa ocasião em que se
parou o carro, Narciso aproveitou para lhe meter um empurrão ao Alcaide e
botá­lo   abaixo.   Pilhara­o   descuidado   e   fê­lo   cair   ao   chão   como   um   saco.

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Ergueu­se pronto e resmungando colocou­se na roda que lhe tocava. Aquele
estrume polo que agora cruzavam, que havia já tempo que teria agradecido que
o gadanhote o roçara, transportou ao Perfeuto a outra noite passada em que
ele e outro rapaz, andariam nos treze anos, lhe entraram a roubar os coelhos a
uns vizinhos da aldeia do lado. O Perfeuto, afeito a ter­se que desfazer da fome,
aprendera logo a dar co jeito de topar comida. E naquela corte dos Carrascos
havia   mais   coelhos   que   os   que   puder   haver   hoje   na   melhor   granja.   Eles
foram­se lá de noite quando os dous velhos dormiam e arramplaram co que
puderam   dar   apanhado,   quatro   coelhos   polo   menos   bem   levaram.   Aqueles
dous velhos, aos que a dentadura já não lhes defendia grande cousa, eram de
pouca  ração,   e  os   coelhos   inçavam e  inçavam que não  havia  quem  os  dera
controlado. Por conseguinte, quase lhes fizeram favor, porque aqueles velhos
orgulhosos,   que   se   tinham   por   ricos,   não   queriam   vender   o   que   tanto   lhes
sobrava. Aquela noite o Perfeutinho, como lhe chamava a sua avó, andou às
apalpadelas,   às   escuras   pola   corte  adiante,   na   procura   daqueles  bichos   que
fugiam   como   raios;   nas   mãos   levou   bem   picadelas   dos   tojos,   mas   valer   a
pena… quem sabe, se calhar valeu­lhe. Agora enquanto cruza o Zebreiro e se
pica nas canelas quase quer arrepender­se das mais das cousas que fez; mas já
se sabe… ele era novo, e o juízo não lhe chegava… quem não ia desculpá­lo?
Uma   vez   entre   ele   e   outro,   igual   era   o   mesmo   que   lhe  ajudou   no   dos
coelhos, convenceram a uma velha que andava canda eles no monte co gado,
de que eles tinham um remédio para curar as verrugas. A pobre da velhinha,
que em inocente não tinha quem lhe ganhasse, disse que sim, que os deixava
que   o   tentaram,   porque   estava   já   mui   farta   de   padecer   por   causa   daquelas
verrugas que tanto lhe afeavam as mãos. Já até se oferecera ao São Bentinho.
Um deles pegou na mulher para que parara enquanto o outro, trás queimar no
lume um cacho duma polaina, lhe ia pingando o plástico derretido no coiro
verruguento. Os berros que a mulherzinha meteu aboujaram até os penedos
que os fizeram ressoar aqui e acolá, chegando até à aldeia, e diz­se que dês que
ela  faltou,   anos   mais   tarde,   os   berros  se  volveram  a  escutar  alguma  vez.  Às
vezes  o Perfeuto   sente­os   de  noite  na cama  e  acovilha­se  coas   mantas pola
cabeça, mas os berros persistem e não se marcham até que se cansam. Porquê
lhe   tardara   tanto   em   vir   a   ele   o   juízo?   Todas   as   lembranças   parecem

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desagradáveis,  e  ele  devece  por  agarrar­se a algo que seja mais prazenteiro.
Como aquela vez que se emborcalhara com uma moça no lameiro. 
Tudo   começara   como   um   jogo   de   rapazes,   andar   às   emborcalhinhas
campo abaixo. Primeiro botava­se um e depois o outro e assim iam rodando
até o fundo tendo tino de não bater coa cabeça numa pedra das do caminho.
Que bem o estavam a passar, riam­se como tolinhos, e a subir arriba e aos rolos
outra vez para abaixo.  À primeira ele aguardava a que ela chegara ao fundo
para logo ele botar­se; mas pouco a pouco foi adiantando a sua saída até irem
quase juntos. Tal foi  assim que agora iam quase apegados e os seus corpos
alguma vez se roçavam; isto começou de o acender e numa das vezes pilhou à
moça por baixo e ali mesmo a forçou sem atender as suas súplicas. A verdade é
que a ele custava­lhe entender como se passara tudo, ele não tinha planos de
botar­se assim à rapariga, ele teria quinze anos e experiência em como aturar
certos   pulos,   pouca,   ou   nenhuma.   Ela   era   do   tempo   dele   mas   aquele   dia
sentira­se avelhentada, como se alguém de súpeto lhe roubara a sua infância;
roubara­lha e escondera­lha para sempre num sítio secreto; um sítio ao que ela
já não daria jamais chegado, o sítio onde se guardam os sonhos, um sítio para o
que ela tem já o caminho borrado. E desde agora em diante terá que ver mui
bem com quem anda, e velar­se mais dos homens, forem desconhecidos ou
não.  Quando  ele rematou aquele jogo,  ao que já só  ele jogava,  liscou de ali
asinha e deixou­a só, deitada na erva à beira dos salgueiros. Este fugir a correr
seguia sendo o modo  de  actuar do Perfeuto, liscar e não olhar para trás. Se
aquela vez tivesse torcido a cabeça e mirado, teria visto como as bágoas caíam
em fio polas meixelas da Ana, e talvez o sofrer dela reflectiria no dele, a modo
de espelho que obriga a deixar que a luz fure pola menina do olho; e quiçá…
Mas não, ele era teimoso naquele seu jeito de dar a volta e bulir asinha;
nisso   guardava   parecido   co   jazer   familiar,   acovilhar   o   lixo   que   não   praz
contemplar e desaparecer; e acordar num sítio novo, um sítio limpo. Onde um
é um desconhecido e nada nem ninguém tem a habilidade de reflectir cousa
nenhuma. Ai, que bem se respira o ar que não sai das ventas das conhecias!
Mágoa   só   é  que  esta   ficção   não   dure,   e  sem   um  o  querer   sequer  logo   essa
familiaridade  das  cousas  fá­lo  volver  a um ao seu,  volver ao rego, e não  há
maneira… só fugir de novo  aprazará o ferro ardente nas carnes curtidas,  só

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fugir te leva a um lugar onde tu ainda pensas que podes descobrir um eu novo,
o teu eu livre, o verdadeiro. Mas o Perfeuto não planeia as suas escapadelas,
não, a ele apresentam­se­lhe como a única alternativa possível, e portanto sem
uma   possibilidade   real   de   eleição.   Logo   então   para   que   lhe   iam   servir   os
remorsos, se ele era inocente, vítima dum capricho do destino que o maneja?
Não, o Perfeuto não mirava para trás, detrás só concebe sombras, sombras e
mais sombras, e as vezes os berros da velhinha  à que queimaram a mão co
plástico ardendo. Que bem se sentia ele quando se achegava à fria pedra da pia
para escondê­la no escuro. Aquela pedra não lhe reflectia nada negro dele, e ali
junto a ela  não sentia os berros que o faziam tapar­se pola cabeça no leito,
entrementes a sua mulher, que é algo coitada, não diz nada quando sente que
ele se converteu em novelo e quiçá até ande a tremer. 
Ela cala. A Virtudes depreendeu a estar no seu sítio, a ouvir e engolir sem
dizer nada. Ela sente algo de mágoa quando o vê assim, a boa mãe que leva
dentro gostaria de acarinhá­lo e ao passo frear o desacougo que lhe causa o
sofrimento alheio. Ela, como o resto das mulheres, foi bem ensinada para curar
dos   demais…   com   mensagens,   que   como   agulhas,   se   lhe   foram   espetando
desde pequeninha: “Cuida ali do teu irmão, que fica só… Limpa­lhe os mocos
ao pequeno, que lhe chegam ao focinho… Faz­lhe a cama ao teu primo, que
senão não dorme a gosto à noite… Lava­lhe o pano das mãos a teu tio, que é
solteiro e não tem quem o governe… Cose­lhe as calças ao outro… Leva­lhe
tantinho leite ali a tal ou qual… Vai por tantinha água fresca à fonte para que
almoce teu pai”… E quando foste medrando a cousa não melhorou senão ao
revés…   Ir   a  seitura,   e  andar  lá  brigando  como  eles,  ao limite  do  teu  poder,
depois volves à pressa para lhe ajudar à tua mãe co jantar… levar tudo à mesa,
e mais servi­los, e a retirá­lo todo, e esfregar bem a louça coa água fria que
primeiro   hás   de   ir   procurar   à   fonte…   e   agora   corre   ao   poço   enquanto   eles
botam a sesta aí na sombra da figueira; e tu ainda tens tempo de lhe pôr sabão
a uma tina de roupa… e vamos, deluva bem as calças contra o lavadoiro de
pedra para que amoleça… esfrega duro e bule asinha em rematar, não vês que
já   chama   por   ti   tua   mãe…?   A   correr   para   as   leiras   que   a   seitura   já   volveu
começar… e tu vais e sentes­te bem porque lhe adiantaste o trabalho a tua mãe
que  cos  pequeninhos  não  dá feito… e toda a tarde andas na sega e à noite

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volves para a casa malhada como o que mais… e volta a ajudar coa ceia… e a
acomodar os porcos e as vacas… e eia, a carrejar água e lenha para amanhã,
que   ainda   não   há   butano   para   cozinhar…   e   ajuda   a   tua   mãe   a   deitar   os
pequeninhos e se ainda te sobra tempo, que não ganas, repassa essas meias
que tem comesto o calcanhar… E pouco a pouco o fitar que descobre onde é
que se te precisa vai­se alargando e alargando até que te excede, abrange tal
que   em   ti   não   cabe…   tanto,   que   sai   de   ti   e   se   mete   nos   demais…   e   eles,
conhecedores disso, tirarão dos fios invisíveis e porão em marcha a marioneta
em que te tens convertido, e ti afanarás­te em cuidar de tudo e de todos e dos
que   estarão   por   vir…   E   vais­te   vendo   no   que   eles   te   devolvem,   no   que   te
manifestam,… e ti queres­lhes agradar e até te pintas os beiços de encarnado…
Pensas em todos e te esqueces sempre de alguém, de ti… não tens tempo de
olhar­te no espelho  da  tua  alma e ver ao ser humano que também tu levas
dentro, que sofre, que sente, o que trazes tão descuidado e que quer dizer que
não,… ou que sim, ou o que lhe dê na gana… Mas a Virtudes tardará muito,
demasiado, em contemplar­se neste espelho e segue sem poder ver nela nada,
e cala, e segue velando na noite até que ele enfim se destapa e ronca forte. A
Virtudes faz tudo o que for preciso com tal de não enraivar ao seu homem,
tudo é pouco se com isso se pode evitar o peso da sua mão. Ele é muito forte, e
não é que o faça por mal, que nem sequer se apercebe do sofrer dela. Ele não se
apercebe de nada. 
Que   novinhos   casaram!   Ela   cumprira   os   dezasseis,   e   ele   já   viera   de
Alemanha, com aquelas cadeias de ouro que por aqui ninguém levava, alguns
chamavam­lhes   chocalhos   polo   desconforme   do   tamanho,   e   ela   deixou­se
engaiolar. E a cousa vai indo, e a Virtudes sempre alegre, e até sente que ele a
ama, e quem sabe, talvez ele, ao seu jeito, sim que a ama e não o sabe sequer.
Este   homem   sabe   tão   poucas   cousas,   e   às   vezes   as   que   sabe   nem   pode
exprimi­las; se alguém lhe oferecera um canistrelo de palavras que ele pudesse
ir escolhendo e gastando sem temor a ficar em branco. Mas que bem se sentia
ali onde a pia, muda pedra centenária que como ele ouvia e calava. Aquelas
duas   noites   que   lhes   levou   ir   das   Fatigas   ao   Leão   fizeram­se­lhe   a   ele   mui
curtas,   quiçá   porque   o   pedaço   não   era   mui   grande,   ou   porque   os   outros
ajudaram mais, ou porque… que sei eu! Ele como for, o Perfeuto encontrou­se

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no pé do penedo sem decatar­se do esforço que lhe custara. De aqui em diante,
e até baixar a Currelo, por debaixo da Cabana, a pendente vai ir medrando e a
cousa não lhe vai ser tão voluntária; mas isso não será agora, e que bem que a
Estrelinha do Luzeiro aguardara a que chegaram até o Penedo do Leão para
apagar­se. Agora sim, agora havia que marchar. O Perfeuto e mais o Alcaide
marcharam primeiro. 
Dom   Narciso,   deixando­se   levar   polo   cansaço   e   a   tentação   que   lhe
oferecia o sítio, sentou no chão e estirou as costas magoadas contra o penedo.
A frescura da pedra fez­lhe chegar um alivio lá mui adentro, depois desfechou
os olhos e viu no céu uma luz cintilante que vinha direitinha ao alto do penedo
no que ele estava recostado. Trás do sobressalto inicial Narciso pensou que se
tratava   duma   estrela   que   antes   de   que   rematasse   a   noite   ainda   queria   que
alguém a vira botar­se. Ora Dom Narciso, como tantas outras vezes, não podia
estar mais enganado. Pois ainda que ele o ignorava, aquele penedo, o do Leão,
era o  sítio  ao  que chegavam os  martelos que do Castelo da Rainha Loba  se
lançavam. Os penedos da Rainha Loba custodiam a outra beira de Penacova,
eles lá ergueitos. Se o Narciso tivesse querido, ou se sequer tivesse manifestado
algo   de   interesse,   as   gentes   de   Penacova   poder­lhe­iam   ter   contado…   que
agora já não se passava, mas que em tempos as gentes que moravam pola zona
do Leste, como estavam os mais altos e de tudo se apercebiam primeiro que
ninguém, quando viam que se achegava o inimigo, lançavam um martelo que
ia dando voltas polo ar e atravessava todos estes vales até bater no altinho do
Penedo do Leão, e deste jeito avisavam a todos os moradores do Zebreiro. As
histórias não dizem nada de que os martelos se usassem para avisar do outro
lado também. Semelha que os perigos vieram sempre por esse lado, o da Límia,
o de…onde agora fica a Castela… e nunca polo da Raia. Como quer que fosse,
o dos martelos caiu em desuso e agora já só sobe a gente lá aos penedos da
Rainha Loba  para ver o  mundo desde o alto e para colher cacos  de olas de
barro escachadas polas mãos dos nossos antepassados. Pouco a pouco estas
gentes   que   habitavam   todas   e   cada   uma   destas   fragas   foram   reduzindo   os
lugares   onde   assentavam,   e   de   sete   passaram   a   quatro,   e   logo   à   última
juntaram­se todos no que hoje se chama Penacova. Prova disto são os nomes
que ainda se usam para designar a estes montes. Há para aí três sítios distintos

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que recebem o nome de Cemitério, lá no meio do monte, e se ali cavas, saem os
ossos dos que foram os nossos antepassados. Outro sítio chama­se a Igreja, e
outro pertinho a Missa, e assim se poderia seguir até aborrecer a um santo.
Ademais a estas cousas já ninguém lhes dá importância, e como ia um cura
perder o seu santo tempo escutando essas parvadas? Narciso era um homem
pragmático,   e  de   martelos,   por   aqueles   tempos,   só   entendia   quando   os   via
debuxados ao lado duma fouce, ou se ligava que tiver que trabalhar com eles
para fazer algum arranjo na casa. Não, a Dom Narciso chegava­lhe com pensar
que  aquela fora uma estrela que chegara ao fim da sua viagem polo espaço
celeste e que a ele lhe tocara ver a sua derradeira luz. Se Narciso tivesse sido
um homem mais religioso, quiçá teria visto a silhueta dum santo que desde o
céu   o   iluminava   para   lhe   ensinar   o   bom   caminho.   Ora   Dom   Narciso   era
parente   dos   ateus,   e   portanto   um   romântico,   um   sonhador,   e   aquele   dia
marchou contente.

* * *

No   apartado   de   ecos   de   sociedade  conta­nos  Nuestra   Región,   como


parece   que   o   senhor   adinheirado,   ao   que   não   estaria   mal   de   todo   que
chamássemos Benigno, visto que outro nome não lhe temos e esse não parece
casar mal coa sua pessoa, organizou uma viagem de noivos para ele e a sua
amiguinha   polas   terras   do   Caribe…   “Olha   lá   como   gosta   de   passear   o
peneireiro …” mais dum ainda há­de estourar pola inveja, como se o velho lhe
tivesse   a   culpa.   Homem,   casar   diz­se   que   não   casaram   por   não   sei   que
miudalho de uns papéis que ainda tem assinados coa sua mulher, Hortênsia.
Polo que dizem, à rapariga tanto lhe tem casar como não… se vê que o dela é
um amor cego, ou sabe Deus se não tem outras manhas para ir mungindo o
velho. Ou porventura o Benigno, que parvo de tudo não há­de ser, pois mirai
para aí como juntou riquezas onde outros juntaram fomes, não se acaba de fiar
das intenções da mocinha e vai­lhe fazendo lérias e concessões mas sem passar
polo altar, nem assentar no livro sequer, não for que depois ela se lhe marche,
pois não seria a primeira vez que isso se passa. Afinal, cada um negoceia como

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sabe, ou co que pode. E quem não te diz a ti as cousas que eles não cavilarão
para os seus adentros? O jornal manifesta o seu contento pola felicidade do
senhor Benigno e só lhe magoa que não casara, e a poder ser na Igreja. E é que
já se sabe que Nuestra Región lhe tem muito ‘aquele’ ao fulano. A que ainda vai
resultar que este caráfio de Benigno lhes unta a fraldiqueira? Tanta graxa que
lhe dão…, já cheira!

* * *

Esta noite Dom Narciso chegou em primeiro e teve tempo para reviver a
sensação prazenteira que lhe deixara a noite passada, nunca antes vira ele tão
próxima, nem tão intensa a luz duma estrela. Dom Narciso, apesar das suas
revelações interiores, ainda não tinha achado acoito nos seus adentros mais
profundos,   mas   semelhava­se­lhe   a   ele   que   ultimamente   tinha   melhores
habilidades   para   captar   a   boa   essência   das   cousas…   Quando   chegaram   os
outros dous, a um tempo ainda que por caminhos separados, ele já estava de
pé   direito   onde   a   pia   e   preparado.   O   Perfeuto   vinha   sério   tal   que   capador
quando está coas mãos na massa. O Alcaide, como sempre, nem se sabe. Pola
calada,   como   era   o   seu   costume,   ocuparam   os   seus   postos,   e   só   a   voz   de
Narciso   rompeu   o   cerco   do   silêncio:   “Ânimo   companheiros,   que   seguimos
costa abaixo!” O silêncio dos outros devolveu­lhe a Narciso as suas próprias
palavras.   Puseram­se   ao   caminho,   a   costa   abaixo   era   algo   de   bimbarreira
nalgumas partes e os dous de atrás em lugar de puxar tiravam polas pontas do
sedenho,   e  assim  freavam  algo a carga, não  fosse esmagar ao de diante. Ali
seguia   o   Perfeuto,   tratando   de   manter   a   calma   entrementes   se   lhe   vinha   o
mundo em cima. Igualzinho que sentira quando chegara à Alemanha, sendo
ele já rapazolo. Daquela, sofrera polo silêncio que amuralhavam todas aquelas
palavras   em   língua   estranha.   Ele   estava   afeito   aos   falares   da   sua   língua
conhecida, que quando lhe entrava nos miolos não maçava como sim o faziam
aquelas   palavras   alemãs.   Por   sorte   aquela   estadia   durara   só   uns   anos,   não
muitos, ora que a ele lhe pareceram bem longos. De ali foram a Barcelona e
aquilo era outra cousa. Ele seguia sem entender as palavras, mas as melodias
do catalão eram­che menos estranhas e não lhe faziam estourar a cabeça. 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  79
O da Alemanha fora muito, ele ainda hoje recorda com terror quando a
polícia   quase  deteve  ao  seu   pai porque o amo dera queixas dele. O seu pai
trabalhava numa fábrica de não sei que cousa, ele com dizer­te que quando
entravam à manhã pola porta, ainda que fosse no inverno, já se tinham que
despir aí mesmo e a suor já lhes começava a cair, era­vos demais, saíam de ali
derretidos, não me estranha que todos morreram novos. Ele como quer que
fosse   o   dono   daqueles   fornos   deu   conta   do   Hermínio.   A   cousa   se   passou
durante um fim­de­semana em que o Hermínio andava a trabalhar nos jardins
da casa do seu chefe, como a cotio fazia. E vá casaria que tinha o amo daquela
fábrica, só de terreno ao redor poder­se­iam sementar mais de três tegas de
pão   se   o   lavrassem,   que   não   era   esse   o   proveito   que   lhe   tiravam.   Eles
tinham­no todo coberto de erva, e com plantinhas agarradas ao chão perto da
casa, e outras mais grandes por aqui e por acolá, e árvores de muitas classes. O
pai do Perfeuto cuidava de toda aquela vida nos fins­de­semana: segava a erva
e empacava­a com uma máquina pequeninha, apanhava as folhas e metia­as
em   sacos   de   papel   que   tinham   folhinhas   debuxadas   por   fora,   decotava   as
árvores quando lhe mandavam… e assim o Hermínio apanhava algo mais de
paga. O mau veio quando apanhou mais do que lhe era dado. E não é que ele
roubasse ao amo, polo menos na casa não o fazia, ainda que tivesse a falta, que
a tinha, não  ia  ser  tão parvo.  Não, o que a ele o perdeu foi arrepanhar uns
coelhinhos que por ali passeavam. Como ia o homem saber que aos da casa
não lhes incomodava que lhe pasceram no seu campo, e lho deixassem todo
lixoso… tanto como eles gostavam da limpeza? Até pensou que lhe faria favor
se lhos caçava. E que maneira de lho pagar, botando­lhe a polícia, que quase
lhe houve de custar  um desgosto! Foi assim deste jeito como aprendeu que
aqueles coelhos, ainda que não fossem de ninguém, deviam ser respeitados. E
ainda por sorte quando chegou a polícia estava ali um de Mogueimes, um tal
Servando,   que   sabia   algo   de   alemão,   e   foi   o   que   lhe   valeu,   que   senão   co
balbuciamento de espanhol dos polícias alemães e mais o do Hermínio, quem
sabe a que se armaria. Pois claro, contudo e isso, o pai do Perfeuto ficou sem
trabalho  e  uma  vez  mais encheram as malas co enxoval e meteram­se num
autocarro   rumo   a   Barcelona.   Todos   tão   contentes,   ali   tão   sequer   poderiam
caçar   coelhos.   Enquanto   empurrava   na   pia   o   Perfeuto   lembrou   os   muitos

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  80
coelhos   que   ele   pilhara   naqueles   montes   de   Penacova   enquanto   teve   ali   a
canteira.  Apanhou   quantos   pôde,  e assim  desquitou­se polos  que não  pôde
papar  por   culpa   dos   alemães.   Sempre   a  culpa   há­de  ser  de  alguém;  grande
como o demo e mais não tem quem a queira de gana. Por certo o Perfeuto não
sentia nenhuma atracção por ela; e isso que ele fizera das dele, e tinha motivos
para querê­la. No dos coelhos fez alguma que outra falcatrua. Por exemplo, ele
não diferenciava entre tempo de caça ou de veda, para ele era tudo o mesmo.
Ele andava por aqueles montes das fraldas da Rainha Loba e apanhava quanto
coelhinho havia. Punha laços a moreias, ainda que estivesse proibido, para ele
não o estava. Metia o furão nas toqueiras para que botara ao coelho para fora, e
depois com um saco esperava­o na boca da entrada para que se metesse no
fardel, e a golpes contra o penedo o matava. Cos laços pilhou teixugos, raposos,
javalis,  e tudo  o  que cair neles; a ele tanto lhe tinha com tal de ver algo ali
atrapado à manhã. E agora enquanto se acorda disso parece que sente como
um amargor na gorja, não gosta de sentir isso e cospe, e o amargor converte­se
em carraspeira que se estende por toda a goela e obriga­o a tossir, mas nada,
aquilo   segue   ali.   Felizmente   a   Estrelinha   do   Luzeiro  resgatou­o   de   ter   que
seguir a pensar. Chegaram quase a Currelo, mesmo à beira do caminho que
une Penacova e Gomesende. Desde este ponto pode­se já adivinhar lá no pé do
Laspedo a Fonte de Requeijo, aquele é o seu próximo destino. Não semelha
longe já, ainda que eles ignoram o sítio, terão tempo avondo para chegarem
antes de que se esgote o que lhes resta de lua. Marcharam, ora primeiro de
partir,  o Perfeuto  tossiu e tossiu,  e quase trousa ali a figadeira. O Alcaide já
colhera o caminho, e o Narciso demorou­se ali um nada, quedo, afincado na
parede dum lameiro; olhou um pedaço para o céu mas vendo que não vinha
nenhuma luz a o despedir marchou, marchou co seu andar devagar.

* * *

…Quando os dous agentes, logo de deixar à tia Maria coas suas verças,
foram rua abaixo para o meio do lugar, toparam­se com um moço que levava
um sacho no ombreiro. Sem saber se vem ou vai, eles achegaram­se a ele e,
como sempre, foi o mais velho o que encetou a conversa.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  81
– Bons dias rapaz, para onde vais?
– Bons dias… vou pra aí!
Polo tom do rapaz deduziram que a ele não lhe amargava a conversa. E
estavam no certo, em particular quando a conversa era com gentes que vieram
de fora da contorna; e eles semelhavam de muito mais acolá. 
– Refiro­me a que se vais a trabalhar para algum lado.
–  Homem, se lhe parece o sacho levo­o assim de atavio no ombreiro…
que pergunta…! E ademais, quem o quer saber?
–  Nós vimos de Ourense e andamos tratando de esclarecer um assunto
relacionado com uma pia que houve noutrora neste lugar…
O rapaz sorriu como pensando “olha os chalados estes”, afincou o sacho
no chão enquanto espreitava o que os outros falavam, depois disse:
–  Olhem que se  se vão  fiar do que dizem que houve em tempos neste
lugar, vão vocês arranjados…! vão, ho, digo­lho eu!
–  Homem,   não   digo   eu   que   vá   crer   o   que   possam   dizer   as   histórias
populares, mas o da pia não é conto nenhum, que para isso estão os papéis que
registram o feito.
–  Os papéis? Pois vá, como se os papéis soubessem o que vai neles. Se
vamos a isso também logo há que crer que o Senhor Santiago andou montado
no seu cavalo polos penedos da Rainha Loba adiante matando mouros.
– Homem…! Não me irás tu comparar uma lenda, ainda que eu disto que
dizes nunca ouvi nada, com um feito histórico constatável.
– Eu não lhe sei mui bem de feitos constatáveis, mas se quer provas suba
você ao Castelo da Rainha Loba e veja cos seus próprios olhos as marcas das
pegadas do cavalo polas rochas arriba.
– Homem! Não me quererás tu dizer que crês que o cavalo pôde deixar as
pegadas marcadas na rocha?
– Mas… por quem me toma? Como lhe vou eu dizer isso, nem que fosse
um parvo!  Eu  não creio  nada de nada, se não me engano são  vocês  os que
andam a indagar sobre alguma dessas trapalhadas.
O agente que levava a carga daquela conversa começava a mostrar acenos
de   impaciência.   Não   podia   ser,   uma   vez   mais   estava   indo   a   cousa   rumo   a
nenhures e àquelas horas da manhã já pouca gente, quem não andara no seu

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  82
labor, poderiam topar. Aquele rapaz parecia não devecer por marchar a onde é
que fosse, e mesmo semelhava que gostava daquela visita dos forasteiros. Ele
sempre  ali   enterrado   na   aldeia   cos   de  sempre,   tanto   quanto   ele   gostava   da
gente   que   souber   falar   doutros   mundos,…   mas   estes   dous   pareciam   meio
parvos, mira que andar interessando­se por essas cousas do passado! 
–  Mira   rapaz,   tu   és   novo   e   não   aprendeste   ainda   a   ver   com   clareza   a
diferença que há entre as lendas propriamente ditas e os feitos históricos.
– Pois porquê não mo explica você, que parece estar bem informado?
–  Mira,   uma   lenda   é   um   dito   popular   que   a   gente   repete   e   repete   de
geração   em   geração,   mas   sem   que   exista   nada   que   demostre   que   isso   se
passara de verdade, entendes…?
– Percebo.
– …E um feito histórico é uma cousa que aconteceu, talvez há também
muitos anos, da que temos uma prova irrefutável que demostra que se passou
de verdade; compreendes? Vês agora a diferença?
– Dou­me conta, mas não sei se colhi bem a diferença. Vejamos: segundo
você, ante um feito que ocorreu, passar o tempo que passar desde então, se o
que  assim o viu ocorrer o escreveu num papel, é que a cousa foi certa e se
passou de verdade; ora, se o que fez foi gravá­lo numa pedra então é que não
foi certo, e pode tê­lo inventado; não sim?
– Pois vá que tens tu uma maneira estranha de misturar as cousas. Mira,
não tem nada que ver uma cousa coa outra; podes crer­me porque é assim,
digo­cho eu.
– Eu poderia crê­lo, mas só porque você o diz, que parece que algo sabe, e
tão   sequer   não   é   de   por   aqui;   mas   se   tanto   sabe,   porquê   lhe   preocupam
parvalhadas sobre uma pia da que por certo eu não ouvi falar na minha vida, e
bem pudesse ser uma lenda como a do Senhor Santiago? Quem lhe diz a você
que o da pia não é inventado? Porque a mim, se lhe hei­de dizer a verdade, não
me lembra nada.
Naquele momento o detective fez um cálculo rápido e decatou­se de que
sem dúvida a pia fora sacada da igreja de Penacova anos antes de nascer aquele
rapaz. E que seguramente ele já recebera as águas baptismais na nova. Que era
uma pia distinta; mas desta nova cunca, com base de ferros negros e rodinhas,

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  83
que devem de ser de adorno pois no chão de lousas não roucham, não sabia
muito o detective, já que jamais a tinha visto; quando eles olharam desde o
átrio para adentro polas vidraças não a viram; claro, co pequena e pouca cousa
que é, não é milagre. O que sim imaginaram, e com razão, é que ali haveria, em
vez da original, uma pia substituta, por ruim que puder ser. Porque tampouco
era o caso que por causa  da avarenta natureza dos abades se fosse deixar à
gentinha   sem   baptizar   ou   sem   poder   molhar   os   dedos   para   fazer   o
por­la­señal. Mas o detective não sabia como era esta substituta; não sabia da
sua cor gris e esbrancujada, como parida polo cimento e mais a areia, o que
amiúde faz parecer que a água se enlourara, tingindo­se duma cor arruelada, e
daquela à gente dá­lhe reparo meter ali a mão, por mui bendita que for… Para
a água como a pedra não há, Deus sabe que fazem um matrimónio perfeito,
mas aqui veio um cura e divorciou­as. Mas este moço novo que nem sequer
recebera as águas  baptismais  na pia de pedra,  não  sabia nada do  assunto  e
tampouco se importava. É como se a água suja que lhe botaram pola cabeça
abaixo o dia do seu baptizado lhe enturvara o sentido que lhe teria de vir. Ele já
fora ensinado a valorar cousas que valham de verdade. Ele sabe mui bem o que
quer e até diz­se que já sabe onde procurá­lo. Qualquer dia colhe a mala e não
volve até que o possa fazer como é devido… com um bom carro, bem equipado
com   aparelho   musical,   roupas   de   marca…   e   o   que   mandar   a   moda   no
momento. Ora que ele já sabe onde ir procurar tudo isso. Tem um irmão em
Barcelona, que leva lá já bem anos, e se quadra vai parar onde ele; ou senão vai
para Canárias, que seica se ganha bem. Este moço novo só aguarda o momento
de partir, mas a paciência já não lhe aguardou, essa foi­se­lhe há anos… 
A gente daqui vê como os seus filhos, passada a primeira infância, lhe são
roubados sem poderem eles fazer nada, nada mais que deixá­los marchar cos
seus amos e calar. Dentro de pouco, este colherá os seus sonhos e quiçá saia
voando. Cambiará o sacho pola pá e a erva polo cimento, e pouco a pouco irá
conquistando essas cousinhas que agora tanto anseia possuir. E quiçá algum
dia   regresse   à   sua   terra,   e   construirá   uma   casa.   Levantará   mui   asinha   as
paredes com tijolos e cimento, esquecendo­se da pedra já para sempre… Mas
para isto faltam anos e ele agora tem de ir sachar nas batatas que o que é de
Deus não o há­de levar o Demo. 

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– Tu és mui novo, rapaz, e ainda che falta muito por aprender, mas a nós
já se nos fez tarde e temos que pensar em irmo­nos indo. Ademais, tu não vais
a algures com esse sacho?
– A que algures hei­de ir, ó? A nenhures é a onde se pode ir aqui, que isto
não vale nada.
A olhada do rapaz parecia caída no chão, perto donde afincara o sacho
desde o começo da conversa; mas ele não olhava ao chão, nem tão sequer o
via, ele mirava longe, mui longe, tão longe que a sua olhada se perdia. Os dous
agentes despediram­se dele e marcharam de volta para o seu carro. Ambos os
homens  foram   andando   devagar   e   calados.   Calados   mas  dizendo   as   cousas
coas caras para os que com eles se cruzaram. Ninguém se cruzou. O mais velho
levava   um   gesto   que   era   a   mistura   da   sua   contrariedade   e   a   mágoa;   algo
ambígua lhe resultaria a quem lha vira. Na cara do mais novo, Riba, que poucos
mais anos tinha que o rapaz que acabavam de deixar, podia­se ver a dor do que
sente  o   sofrer   dum   irmão   e   não   lhe  pode  valer;   também  há   nessa   cara   um
assomo   de   esperança   como   emanado   dum   conhecimento   prévio,   do
conhecimento   do   que  sabe  que  as  cousas   podem   ser  diferentes…   Riba  não
perde   a   esperança   para   esta   terra,   que   tão   bonita,   ainda   que   estranha,   lhe
parece. 
O rapaz colhera o sacho e com ele ao ombreiro marchara para… por aí.

* * *

Narciso seguia sendo o primeiro em chegar cada noite onde a pia, não se
sabe se polo desacougo que lhe trouxera a primavera ou porque anda o homem
buscando   novas   luzes   ao   amparo   da   escuridão   e   a   soidade.   Ele   quando   os
outros chegam, no meio da noite negra, o Narciso já leva ali um bom bocado.
Estas últimas jornadas têm sido algo monótonas; de quitado esse tossir que se
lhe pôs a Perfeuto na gorja, e que parece não ter pressa de se lhe ir, tudo segue
com   normalidade.   Os   vales   que   andam   a   atravessar   mostram,   apesar   da
escuridão  que obriga  a  adivinhar,  uma beleza que reborda por onde quer…
tudo florido e coberto duma erva que dá cem nomes à cor verde. Mágoa destas
touças de Penacereija que se tornaram de cor preta; quando os homens saíram

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para fora das carvalheiras olharam­se as mãos riscadas polos tições ardidos, e
vendo  o  cómicos   que   estavam  quase  lhes  houvera  de  dar  o  riso  se  não  lho
congelara na face o saber que esses riscos eram o sinal da morte que o lume
segara  havia  poucas   semanas.   Quem  seria  o  bruto que  foi  capaz de  atentar
contra tanta beleza, trocando­a em luto poeirento e cinza. 
Dom Narciso odiava esta atitude arrasadora que tinham alguns homens;
ele estava bem certo de que eram homens os que prendiam o lume. Ele não
dava   imaginado,   por   mais   que   o   tentasse,   a   uma   mulher   causando   tanta
destruição. Para ele estes seres, jungidos mais rente à terra, vinculados a ela
pola   sua   própria   realidade   cíclica,   possuíam   uma   maior   capacidade   para
suportar pacientemente as incomodidades e a lentidão que impõe a natureza e,
por   certo,   não   as   via   capazes   de   semelhante   violência.   E   quem   sabe?
Porventura não lhe falta razão; mas para que serve esta análise, seja certa ou
falsa? 
O   Perfeuto   também   anda   a   pensar   por   culpa   dos   tições,   ora,   as   suas
cavilações são bem outras. E como não o hão­de ser se aquela vez quase perde
o carro por causa do lume…? E que mais tem quem o plantara! Ele precisava
despejar os arredores daqueles penedos para poder rachar a pedra. O lume à
pedra não lhe faz mal, pois logo quem vai andar levando trabalho a cortar nas
carvalheiras e roçar o monte baixo que tanto abunda. Um fósforo faz o trabalho
da limpa e depois ele racha a pedra. Sim, o Perfeuto usava com frequência o
método da mecha e sempre lhe tinha dado bons resultados até aquele dia no
que quase lhe custou um desgosto. Ele, como sempre, punha o lume quando
tinha a canteira parada e assim ninguém lhe podia botar as culpas ainda que
soubessem bem que fora ele … “Este lume foi prendido o domingo quando nós
não   estávamos   aqui   e   por   pouco   nos   arde   o   compressor,   que   não   é   o
mesmo…” Alguma vez incluso deixavam que lhes ardesse alguma ferramenta
que já não servia ou algum outro ferrancho para dissimular. E claro, a situação
ia­se   pondo   cada   vez   mais   negra,   mas   ninguém   vira   nunca   cos   seus   olhos
próprios ao Perfeuto co fósforo na rascadeira. Ora, que aquele dia que o lume
se larejara tão asinha, houve de o assar como uma sardinha dentro da lata. Ele,
para   que   ninguém   o   pudesse   olhar   desde   a   aldeia,   escondia   o   automóvel
arrimando­o bem dentro da rodeira entre a folhatada, e depois subia monte

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  86
arriba para soltar a chispa. Depois baixava a escape e tinha tempo e tempo para
marchar   pola   pista   que   sobe   para   Chão­de­Lamas   sem   que   ninguém   lhe
pudesse seguir o rastro. Sempre lhe tinha saído o plano à perfeição, mas aquela
vez   ao   raio   do   fotingo   deu­se­lhe   por   não   querer   acender,   e   ele   volta   que
dá­lhe,  e  o ar  que ia achegando o bruar da labareda. Ele começa de se pôr
nervoso e olha lá para arriba e vê que as chamas galopam mui à pressa; e ainda
que  andam  retiradas  já  se  começam de sentir os  estalos  da madeira que se
retorce ao ser abrasada. Também se podem já ver pássaros que vão daqui para
acolá, magoados por não poder levar nos seus voares as crias pequerrechas do
ninho…   E   ele   ali   atrapado   na   folhagem   enquanto   o   inferno   anda   a   baixar.
Blasfema como ninguém podia fazê­lo, da sua boca saem palavras que mesmo
se poderia dizer que botam lume, mas de nada lhe servem. Não, ele não podia
deixar   que   lhe   ardera   assim   o   auto   e   ainda   por   riba   que   se   riram   e   o
descobriram; portanto, como um animal rabioso empurrou e empurrou, e coa
ajuda   do   terreno   deu   separado   o   veículo   dos   carvalhetes   que   estavam
destinados às chamas; depois, já no caminho de terra batida, como havia algo
de pendente, pôde arrancar o motor sem ter de usar a bateria, que parecia ser a
fonte do problema. O Perfeuto liscou dali como um foguete e diz­se que aquela
vez aprendeu a sua lição e que nunca mais deixou o carro perto do lume. Ora
bem, do lume seguiu fazendo uso, ele não vê nada mau em beneficiar­se duma
técnica   de   limpa   que   não   lhe   custa   dinheiro   nem   lhe   dá   muito   trabalho.
Mesmo agora, se não fosse porque não vai só, e ademais não está mui seguro
de rumo a onde teria que empontar as chamas, já teria usado o seu isqueiro por
estes montes. Enquanto anda ele com estas incendiárias lembranças, trata de
se acordar de qual foi a última vez que pôs lume. Dês que fechou a canteira já
não precisa usar este método para abrir­se caminho, e disto há já uns aninhos,
polo que não dá encontrado o que busca na sua saturada cabeça. Com esses
pensamentos   traz   o   homem   os   miolos   quentes   e   não   se   apercebe   de   que
andam   já   pola   Veiga   fora;   atrás,   pola   esquerda,   ficou   Guriz,   e   já   estão   no
pedaço   do   cabo   para   chegar   à   Fonte   de   Requeijo.   Quando   quis   acordar,   já
estava ali ao pé mesmo do pipel de pedra. 
O primeiro foi apagar a sede que levava e mais ver, enviando os golos com
força, se isso que lhe fazia tossir se lhe tirava duma vez da gorja; ora por mais

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  87
que bebeu o pruício seguiu no seu sítio. Os outros dous homens molharam
também  um   nada   e   cumprindo   o  mandato   deram   água   à  fartura   à   sedenta
pedra. Que bem sabia aquela água! E com aquele deleite cristalino ali ficaram
quedos co seu silêncio. Dom Narciso espreitava o som da água que bulia rego
abaixo para ir ao encontro do regueiro que a há­de ir ajudando na sua travessia
para o mar. O Perfeuto  seguia  co  seu pensamento posto nos lumes que ele
plantara,   não   acertava   com   adivinhar   qual   fora   o   último   monte   que   fizera
desaparecer, ou transformar de verde a preto. Cos dedos ia o homem contando
lumes,   como   seguindo   uma   ordem   cronológica   guiada   pola   sua   pobre
memória,   mas   nada,   acabaram­se­lhe   os   dedos   e   não   dá   encadilhado   à
resposta   que   busca.   Enfastiado   polo   desacougo   que   lhe   causava   não   poder
lembrar,  marchou   sem  despedir­se.  Ninguém  se surpreendeu. O Alcaide fez
outro   tanto.   Dom   Narciso   ficou   só   e   em   silêncio   por   uns   instantes,   depois
marchou a modinho e olhando para o céu.

* * *

No   apartado   de   notícias   de   há   cem   anos,   recolhe­se   hoje   em  Nuestra


Región o da corrida de lobos que se mencionara com anterioridade e que teve
lugar o sábado e por certo seica foi um êxito completo. Mais de quinze lobos
caíram no buraco, polo que a festa foi a rachar. 
Depois de encarar as animálias para o fojo e obrigá­las a saltar para que
fossem topar a morte lá no fundo do buraco, toda a gente baixou para a aldeia
e a troula continuou até bem entrada a noite. Ora, como cabia esperar, sobre
isto Nuestra Región não oferecia informação, nem comentário. A gente, tanto a
da aldeia, quanto a que viera de fora, baixou para o lugar a montar a foliada. A
maior parte do tempo passaram­na na corte onde guarda o tio Manuel o boi. É
um boi manso, e passa todo o tempo deitado lá num recanto remoendo ou
comendo na erva que lhe sobrou no presel; de vez em quando olha para aos
bailarins e segue no seu pacífico jazer. A gente dançou ao ritmo dos mesmos
instrumentos que horas antes usaram para escorrentar as feras. Toda a gente
gozou   e   se   divertiu   quanto   quis.   Houve   alguma   que   levou   a   roca   para
dissimular a sua presença na corte, mas ali ninguém fiou.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  88
Capítulo IV

A FONTE DE REQUEIJO

Do meio e meio da terra vem nascer mesmo no pé do Laspedo. Lá como
pode, fura entre as lajas da dura rocha e cai abaixo sobre outra pedra lisa que a
modo de leito a recolhe e a agarima, para mui passeninhamente deixar sair a
sobrante pola pipela a caminho do rio. Porque se chama Requeijo ninguém o
sabe, mas não seria de estranhar que tivesse algo que ver coa esquisitice desta
água. Nesta fonte, por estar ali na beira mesmo da Veiga, que se enche sempre
de gado, toda a gente molha um nada à hora da merenda. Lá pola direita, um
pouco mais abaixo, fica a Pedrosa, que é um monte baixo mui pelado e coberto
todo de pedras. Mas não são estes uns pedregulhos escangalhados por ali onde
quer; não, na maioria dos sítios as pedras topam­se juntas e amoreadas, como
acovilhando algo. Ninguém sabe o que ali há, nem o que ali se passou, se é que
é certo que se passara. Só se diz que há muito tempo se enterrara ali a um
general.   O   certo   é   que   haverá   por   aí   uns   cinquenta   anos   um   forasteiro
adinheirado que viera de não se sabe onde encarregou ali umas escavações na
procura   de   algo.   Cavaram   todos   os   homens   de   Penacova,   e   assim   foram
pagados, mas nada ali não saiu, e aquilo segue tudo empedrado.
Os três homens da pia reconheciam, cada um para os seus adentros e pola
calada, que aquela água tinha algo que lhe dava tal suavidade no paladar como
nunca antes tiveram experimentado. Como o tempo lhes chegava – a lua nova
ainda   não   se   encetara   –   aquela   noite   parecia   que   não   tinham   pressa,   e
enquanto bebiam e davam água à pia repousaram à beira da fonte, coas costas
afincadas   na   peneda   que   há   em   frente   do   manancial.   Depois   o   Perfeuto,
quando teve o seu corpo bem saciado e com reservas para a noite, colheu o
pinho e pôs­se ao caminho sem consultar a ninguém, como é o seu costume;
os outros dous seguiram­no e pouco a pouco tudo volveu à rotina de sempre.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  89
Vão agora Lama abaixo e cruzando para onde fica o Penedo Esmigalhado; eles
não   hão­de   subir   tão   arriba,   pois   a   rodeira   vai   por   aqui   mais   à   beira   do
regueiro.   O   Perfeuto   hoje   não   parece   que   ande   lá   o   homem   com   tantas
pujanças   como   as  que   o   outro   dia   lhe   fizeram   sair   da   rodeira   e   ir   bater   às
Fatigas. Não, hoje vai ir polo caminho traçado sem afastar­se mais que umas
polegadas ali onde lhe faça falta para evitar que a roda vá ao buraco quando o
houver.   Parece   que   a   tosse   lhe   foi   a   menos,   mas   não   se   lhe   tirou
completamente  enquanto  ele  segue  às  voltas,   também  hoje,  co  assunto  dos
incêndios, e segue sem encontrar qual foi a sua última queima. De seguro que
foi nos montes de Penacova. 
Ele   montara   aquela   canteira   com   tantas   ilusões…   co   dinheiro   que
ganhara   na   Alemanha   mercou   as   máquinas   que   precisava   para   rebentar   os
penedos e um camião para carregar depois a pedra. Tudo começara bem. A
pedra  saía­lhe quase  debalde  e as ganâncias engordavam como as vacas do
moinheiro no inverno. Em menos dum ano já tinha comprado outro camião e
pagava a quem o guiava. Nos salários também pouco se lhe ia, trazia homens
do lado de lá da Raia sem papéis e nem seguro lhes pagava. Pouco a pouco, coa
força destes homens mal pagados, a pedra ia­se transformando em dinheiro
que  se  amoreava nas mãos  do  Perfeuto.  Quando  se acaba um penedo,  pois
venha   lume   e   a   arrancar­lhe   a   alma   ao   monte,   que   aqui   há   muito   que
arramplar. Os vizinhos de Penacova, ainda que fartos polos estouros que não
param   em   todo   o   dia   e   que   salpicam   a   tranquilidade   destas   terras   de
sobressaltos inecessários, fizeram o que a cotio sabem fazer quando se trata de
defender­se contra o mal que vem de fora… nada. Não fizeram nada. Um por ti
e   outro  por   mim  foram   passando   a  cousa   e teve de  ser  o   destino  o  que   se
encarregara   do   Perfeuto.   E   olha   que   lhe   dava   reganho   ao   Perfeuto   ter   que
lembrar o mal que rematou o que tão bem principiara. 
Durante as noites que lhe levou chegar ao seguinte ponto no seu destino
ele   tentou   com   todas   as   suas   forças   evitar   que   lhe   viessem   à   cabeça   as
lembranças dos acontecimentos que o levaram a ter de vender os camiões e
mais as máquinas para dar pago aos advogados. Mas se por algo se caracteriza
o Perfeuto é por saber arrumar assuntos e deixá­los apodrecer ao seu antojo até
que rebentam e então não há remédio; mas, por enquanto, a cousa vai indo

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mais ou menos pola calada e ele tenta levar a sua mente em branco, e vá se isso
lhe ajuda a manter­se na rodeira. Dom Narciso agradece aquela tranquilidade
que até lhe permite de quando em vez levantar os olhos do húmido carroucho
e  voar  montado   no  alto   dos  seus  sonhos  na procura  das  estrelas.  Penacova
quase sempre tem um céu limpo de nuvens nas noites da primavera, sobretudo
quando entra o mês do São João. Desde onde andam hoje eles às voltas, as
estrelas poder­se­iam contar por milheiros e nunca se daria rematado. Pouco
mais se vê que o amplo espaço celeste que os cobre a modo de manto negro e
prateado, e depois o grande pano vai caindo e vai morrendo lá na borda onde
se junta cos montes que debuxam ondulado o seu remate. Dom Narciso vai
ledo   no   seu   andar,   que   contrasta   coa   apatia   do   Alcaide   e   coa   teimosia   do
Racha­Pedras.   Narciso   sabe   que   ainda   lhe   faltam   por   passar   jornadas   de
sofrimento, porque ainda não sente que chegasse a onde a sua intuição lhe diz
que deveria chegar… Mas que mais pode haver na escuridão do não lembrado?
Ele agora prefere deixar que o rodeiro rouche e o vá empuxando aonde quer
que ele vá. O Perfeuto também teria preferido seguir na mesma de não pensar;
mas olha que lhe estava a custar, ele tinha que fazer um verdadeiro esforço
para não ver­se assaltado polas imagens que fotografaram, mui ao seu pesar, os
seus derradeiros dias na canteira de Penacova. Por vezes era tal o esforço que
até   se   lhe   ouvia   como   falava   só;   ia   ele   ensimesmado   numa   discussão   com
alguém, que aos outros se figurava invisível, com quem desatava a sua fúria
soltando mais blasfémias que palavras. Esta conversa levava­a ele num falar
mui baixinho,  e os outros dous compreendiam que não se estava a dirigir a
eles. E se assim fosse preferiam fazer o mouco e, como a Virtudes, ouvir e calar.
Dês que começaram aqueles diálogos, que haveria que denominar monólogos
de palavrões, parece que o Perfeuto guiava algo mais devagar o carro; como se
aquele falar lhe roubasse a energia que a cotio o fazia ir às carreiras e sair­se do
caminho. Os de trás seguiram fazendo como que não ouviam nada e às vezes,
para dissimular ainda melhor, assobiavam um chisco. 
Ao   remate   da   noite   deixaram   a   pia,   ainda   com   muita   água,   perto   do
Castelo Velho, que fica na metade do caminho entre Requeijo e o pé do Castelo
da   Rainha   Loba,   onde   lhes   aguarda   a   quinta   fonte.   No   Castelo   Velho
encontram­se   também   cachos   de   olas   partidas   se   se   rabunhar   um   nada   na

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terra, que perto dos penedos mesmo parece cinza, ligeira e duma cor como
griseira. Mas os penedos deste Castelo Velho não retêm lenda nem nada que os
faça ressaltar, em contraste cos seus vizinhos da direita, os penedos da Rainha
Loba;   estes   sim   que   sabem   como   atrair   os   mortais,   erguendo­se   esbeltos   e
desafiantes.   São   prova   palpável   da   divindade   para   alguns   habitantes   deste
lugar que insistem, ante o materialismo que os abafa – a eles e ao seu modo de
viver minimalista – em que… sim, eles bem sabem que o homem pode fazer
muitas cousas… casas, carros, aviões… mas os penedos da Rainha Loba! Esses
não os fez homem nenhum, esses só uma Mão Poderosa os pôde fazer. Assim é
como a Conceição se refere a Quem os criou: “a Mão Poderosa”, que é quem de
tocar cada uma das cousas e milagres que acontecem no mundo natural, e no
sobrenatural.   Ela   é  a  que  faz  andar  o mundo…  Mão  Poderosa, se te tivesse
nomeado noutro sítio farias quiçá da Conceição uma filósofa, mas aqui, nesta
beira  da  Raia,  passarás  sem  influência alguma no  saber dos mortais, desses
mesmos que tanto conhecimento derramam pola nossa terra adiante. Os ecos
dum   Deus   alheio   aboujam   já   para   sempre   o   espírito   do   Nosso   próprio,   e
connosco morrerá, e connosco morreremos,  e ninguém nunca saberá quem
somos. Nada mais duro e doloroso que a existência que sabe do seu não existir
vindeiro. 
Ele,   como   queira   que   for,   estes   penedos   têm   um   encanto   que   não
desaparece   co   andar   dos   tempos.   Mas   os   três   viageiros   das   estrelas   pouco
sabem ainda e para ali se dirigem ignorando a onde chegam. Agora, deixando
tudo   escondido,   foram­se   ao   encontro   da   luz   do   dia.   Hoje   Dom   Narciso
marchou canda os outros.

* * *

Nuestra Región  anuncia a apresentação dum novo livro do poeta Budial,
que terá lugar na livraria do jornal. O livro é um conjunto de poemas que o
autor criou ao redor do tema da primavera…. A mais de um, o tema fará­lhe
lembrar aquelas tediosas redacções que na escola se obrigava a escrever aos
meninhos e meninhas cada ano…  “La primavera es bonita; a mi me gusta la
primavera,   las   flores   nacen   y   los   pajaritos   cantan…,  senhorita  já   rematei   a

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redacción…”  E entrementes os montes rebentavam pola pujança que a terra
lhe   fornece   desde   dentro,   e   se   tapavam   coas   flores,   e   ainda   assim   eram
ignorados…   e   os   meninhos   e  as   meninhas   não   tinham   jeito   de   descobrir   a
primavera. Vai neles e não a conhecem. Quem podia encontrar o carreiro entre
aquelas estéreis palavras da redacção e o verdadeiro milagre de cores que de
súpeto cobre a terra…? Os poemas de Budial fazem uma reflexão sobre essa
destruição   do   mundo   que   está   arredor   de   nós,   e   que   em   lugar   de   ser
interiorizado,   criando   harmonia   interior,   é   bloqueado,   tornado   para   fora,
ignorado, instalando­se nos nossos miolos um olho de vidro que dirige o olhar
a esse mundo… Um olhar que há­de o não ver, que há­de o negar, para o odiar,
para   desejar   eliminá­lo,   para   lhe   deitar   lixo,…   e   para   quiçá   algum   dia
queimá­lo… Escusado é dizer que  Nuestra Región  não tem suspeita qualquer
sobre as inquedanças do poeta, mas quem se atreve de decifrar um poema,
ainda que o lera. Ele escreve…

Sem esperanças de ver­te te miro, tojo amarelo
De ti aqui não dizem nada, estranha uzeira avinhada
Fora gestas e carpaços, dos jardins assenhorados.
Primavera estéril dos livros aqui exportados…
carregados coas primaveras grises de outros lares.

O poema segue e segue e se estende por mais de duas ou três páginas das
que Nuestra Región não nos fala.

* * *

Com aquele caminhar pausado foram­se achegando estes peregrinos da
noite   aos  refaixos   da   Rainha   Loba.  De  súpeto  o Perfeuto,  que  vai  à cabeça,
sentiu água nos sapatos e, olhando para onde o tinham levado os pés, viu­se
rodeado de pedras rachadas que resplandeciam como fantasmas no meio da
escuridão. Perfeuto tirou co pinho e botou a correr monte arriba; ia levado do
demo. Os outros dous seguiram­lhe os passos e assim chegaram ao alto dos
penedos   da   Rainha   Loba.   Na   fugida   para   arriba   o   Perfeuto   ia   voando,   aos

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poucos botava as mãos à cabeça e a apertava tapando os ouvidos, mas sem
diminuir o passo. Os companheiros correram quanto puderam, evitando tojos,
carvalhos   e   carpaços,   mas   não   lhe   deram   alcance   até   chegarem   ao   alto.
Chegaram   boqueando,   Perfeuto   estava   acochado   no   chão   na   junta   de  dous
penedos numa pequena fárria, chegara arriba desfeito, não parecia o mesmo
homem, e quiçá não o fosse. Os companheiros quiseram perguntar polo que
lhe   passava,   mas   não   o   fizeram,   algo   lho   impediu,   e   Perfeuto   com   toda   a
certeza tampouco lhes teria contado do que escapava, ele apenas conseguia
ficar ali no chão  tremendo  como um junco.  Apesar do muito que correu  as
lembranças  deram­lhe  alcance.  Foi  assim  como  descobriu  que  os  berros  da
velhinha   das   mãos   queimadas   se   tornavam   muito   mais   terroríficos   ao
apresentarem­se acompanhados doutros berros. 
Berros   de   homens.   Homens   que   para   ele   trabalhavam   de   sol   a   sol.
Homens   da   Raia,   dum   lado   e  mais   do   outro.   Homens  que   arriscam  a   vida.
Homens mui mal pagados. Homens sem seguro, e sem as condições mínimas
de segurança no trabalho. Homens sem horário. Homens sem papéis, e sem
direito   a   reclamar   nada.   Homens   sem   voz.   Homens   que   trabalhavam   até   o
esgotamento. Homens aos que um dia se lhes acabaram os fôlegos antes que a
tarefa   e   não   deram   corrido   a   tempo   para   escaparem   quando   já   prendera   a
mecha… Um deles caiu morto no chão; era o mais velho, pai de família. E aí
começaram os pesadelos do Perfeuto. Juízo trás juízo para evitar o cárcere. As
ganâncias derretidas no processo. Agora não tinha nada mais que os berros dos
que  foram  sacudidos  pola  pólvora enraivada,  que obrigam a ser lembrados.
Tudo perdido. Ele sente­se o mais desgraçado de todos. Mas ele não sabe que
do outro lado da Raia, a poucos quilómetros de Penacova, há vidas arruinadas,
viúva   sem   homem   na   casa   e   com   pequenos   por   criar…   filhos   para   sacar
adiante, o mais velho de doze anos e o mais pequeno no colo, foi tudo o que
lhe deixou àquela mulher o estourido da canteira. 
O   Perfeuto   comprimiu   quanto   pôde   as   suas   lembranças,   à   força   de
premer na cabeça, mas os efeitos foram os mesmos. Via­se o homem acabado.
E   os   companheiros   pola   mágoa   que   lhes   dava   aguardaram   ali   até   que   ele
ordenou de baixar. Botaram um bom pedaço lá no alto. Naquela trapa da noite
e   ao   silêncio,   a   Dom   Narciso   espertou­lhe   a   imaginação   e   pareceu­lhe   ver

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como se o penedo que ficava enfrente, pola parte de detrás da Rainha Loba, se
cobrira com uma melena de cabelo ruivo, algo ondulado. Pronto desbotou tal
ideia,   pois   aquilo   não   tinha   jeito.   Não   podia   ser   tal.   Pensou   que   a   falta   de
dormir de noite já lhe estava afectando, e ele era dado às visões, polo que não
acreditando   naquilo,   pôs­se   a   olhar   para   outro   lado.   Quando   o   Alcaide   lhe
perguntou se ele não vira nada… “e logo que ia ver?” – Narciso dissimulou.
“Nada,   nada”   –   o   Alcaide   tampouco   acredita   naquela   melena   dourada   que
baixa pola pedra abaixo. Aquele era o Penedo da Mulher. Em tempos a melena
foi de verdade, mas agora só se pode adivinhar polos riscos que o pente foi
lavrando rocha abaixo cada quando que ela se penteava. São poucos os mortais
aos que ainda lhes está permitido ver, sempre no lusco­fusco, aquele cabelo
que durante séculos acarinhou o penedo, diz­se que alguns também ouvem o
estrondo que se produziu quando a mulher por querer colher o pente, que lhe
resvalara rocha abaixo, caiu. Agora tudo fica lenda. Agora tudo fica nada.

* * *

…Os   detectives   chegaram   perto   da   eira   da   festa   e   com   alívio


comprovaram que não se passeava por ela o homem do cabelo prateado… 
–  Eh! Olhai aqueles dous que trajados vêm! Mágoa que tenha passado o
Entroido, pois havíamos­lhes fazer comer farinha até polos olhos, com essas
roupas mesmo parece que vão chamando por ela.
– Deixa­os lá aos pobres, que quem sabe na procura de que andam.
– E de que será?
– Olha que aí te vêm para cá… 
– Não virão aqui onda nós?!
–  Deixa­os vir, que mal nos vão fazer? Divertiremo­nos um pouco à sua
conta.
As três moças estavam sentadas no maçadoiro da porta da escola, era logo
meia  manhã   e  não  parecia   que tivessem muita pressa por marchar;  parecia
como se aguardassem por algo ou por alguém. Os dous agentes caminharam
até onde as moças estavam e saudaram­nas.

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–  Bons dias  moças,  poderíamo­vos fazer umas  perguntas…?  Se quereis
perguntamo­vos uma por uma, e seguimos assim à rolda.
– Bons dias moços… ai, se vos parece escolhei qual quereis que conteste
às   vossas   perguntas,   que   devem   ser   mui   importantes   a   julgar   pola   vossa
vestimenta… 
– A nós tanto nos tem, ide uma e logo outra, e assim vamos indo à rolda. 
– Ai sim! Assim vamos indo à rolda nós, e com vós, como vamos fazer…?
Perguntais os dous à vez, ou primeiro tu e logo ele?
– Não, eu sou o que faz as perguntas, ele é o meu ajudante.
– E a que che ajuda, se se pode saber? Porque se tu fazes as perguntas, que
lhe deixas a ele?
–  Mirai, não me comeceis com leas, que depois se perco o tino do que
ando a fazer, não dou encadilhado bem a cousa. 
–  Não   será   por   nossa   causa   que,  a   se   meter   você   num   sarilho,   nós   só
queríamos saber que faz este moço tão guapo se o dele não é perguntar.
– Não faz nada, vem comigo, não vos deveis preocupar dele.
– Não é que nos preocupemos, a nós o que se nos perdeu no assunto? É
simples curiosidade.
– Pois menos curiosidade e mais colaboração, que já vamos outra vez por
mau caminho.
–  Olha tu, que de mau caminho nada! Nós estamos aqui sentadas e não
nos   pensamos   mover   para   ir   a   nenhures   convosco,   ademais   estamos
aguardando polo  bomboneiro  que já passou para Gomesende, e talvez depois
ao vir de volta passa e não o sentimos. 
– Mui bem, então movamos a cousa para rematar antes de que chegue o
dos bombóns e vos marcheis com ele.
– E dá­lhe com marchar, já vos dissemos que nós não nos movemos daqui
até  que   chegue   o  bomboneiro,   e  não   traz   bombóns,   que   traz  bombonas2  de
butano, vós sim que estais bombóns…!
– Entendido…! Agora, se sois tão amáveis, poderíeis me dizer que sabeis
sobre uma pia que desapareceu daqui há bastantes anos? Seríeis vós pequenas.

2
Bombona: botija de gás (castelhanismo).

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  96
– Se há tantos anos, como quer que lhe digamos o que se passou…? E já
que pareceis meios adivinhos, quanto tempo pensais logo que nós temos? 
–  Não sei o tempo que tendes, e mal aproveitado tampouco não parece
que o tenhais… Mira, porque não nos contas tu que pareces a mais velha?
– Eu se quisesse algo sei, mas eu desses temas não falo.
– Pois logo eu tampouco direi nada.
– E de mim ide esperando outro tanto.
–  Pois   olha   que   começamos   bem   a   cousa!   A   ver   se   antes   de   nada
aclaramos   quem   das   três   está   disposta   a   contestar   algo   do   que   nós
perguntamos. E ademais, por que dianhos não quereis falar no tema?
– O tema tanto nos tem, é a Igreja a que nos dá reganho. 
– Mas a pia já não tem relação nenhuma coa Igreja, agora pertence a um
museu de Ourense.
–  Que pertença ao que quiser, a pia sempre será da Igreja, e essa é uma
instituição de homens, e ali as mulheres não pintam nada, portanto de mim
polo menos não vão sacar uma palavra. 
– Pois de mim tampouco.
– Nem de mim, ademais essa pia foi roubada à gente deste lugar polos que
vão de santos, e a gente por burra ainda lhe segue indo à missa.
– Olha as mocinhas! Pareceis mui opinadas.
– Que pareçamos o que quisermos, ademais a vós… que se vos perdeu por
aqui?
–  Nós estamos ao cargo duma investigação sobre o paradeiro da pia,…
que   raios   se   passa   aqui   neste   lugar,   que   ninguém   nos   responde   às   nossas
perguntas?
–  Homem!   É   que   vós   fazeis   umas   perguntas   mui   estranhas.   Se   nos
perguntares  por   cousas   mais  divertidas em lugar de temas relacionados cos
velhacos da Igreja e as suas falcatruas, outro galo cantaria.
– E que quereis que vos perguntemos, se esse é o tema que nos interessa?
– Pois já vos podiam interessar outras cousas menos aborrecidas, vamos
digo eu.
–  Não, se a nós tampouco nos interessa tanto que digamos, nós não o
escolhemos, veio­nos encarregado de arriba, se por nós fosse…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  97
–  Pois   logo,   porque   não   o  mandais  amolar   e   que  o   investiguem  os   da
sotana que outra cousa que ranhar não têm, e ademais o que se passara ou
deixara de se passar coa pia foi por causa deles?
– …E falando de cousas que vos interessam, ademais de isso da pia, que
outras cousas vos têm causado impressão por estes lares?
–  Homem,  pois   não   temos visto muito,  mas a julgar  polo  presente,  de
moças não anda mal este lugar…
–  Ai!   obrigadas   polo   piropo   mas   não   era   preciso,   na   nossa   casa   há
espelhos…
As   três   moças   riram   abertamente   e   coa   naturalidade   do   que   goza   da
liberdade que lhes outorga o conhecido, a liberdade do domínio do mundo no
que se sucedem estes acontecimentos. 
– A soberba, polo que vejo, também vos chega.
–  Não   é   soberba   nenhuma,   é   conhecimento   de   causa   …   é   que   vós
tampouco ignorais que ides bem engabachados?
– Pois sim que o sabemos, mas isto é parte do nosso trabalho…
–  Ai, pois não sabia eu que para ir por aí com essas perguntas que vós
fazeis tínheis que ir emperiquitados.
– Isto? Mas se só é um traje, o que conta é o que vai por debaixo…
– Olha lá o que falava da soberba…
–   …E   por   riba   nós   não   lho   podemos   negar,   que   não   temos   essa
informação privilegiada…
– Homem, pois isso boa solução teria, e já que o dia já se anuviou para o
assunto da pia, a ver se ainda se vai arranjar a cousa…
– Eu não me faria demasiadas ilusões, porque se bem certo é que até que
se arrancam as batatas não se pode falar no que há debaixo da terra, nós temos
melhores moços aguardando na verbena…
– E logo onde é a verbena?
– Em Fontearqueira, e nós pensamos ir a ela se encontrarmos quem nos
leve.
– Se calhar ainda podemos chegar todos a um apanho…
–  De   apanhar   ninguém   disse   nada,   mas   se   queredes   ir   à   verbena   nós
podemo­vos ensinar o caminho…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  98
– Pois logo combinamos assim e, se vos parece bem, passamos por aqui
às sete para irmos juntos.
– Pois que seja logo às sete… já que não pode ser mais cedo, e logo de aí
em diante já veremos…
Desde  o  maçadoiro   as   três  moças  olharam  como   os  detectives subiam
para   ir   para   a   Coanheira   a   caminho   do   seu   veículo;   depois,   arrimando   as
cabeças um nada, mouminharam algo e riram­se, riram­se com aquela pícara
inocência que ainda não perderam…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  99
Capítulo V

 A FONTE DO GALO

Quando   Perfeuto   se  sentiu   um   pouco   recuperado   saiu   do   seu   acocho,


pôs­se de pé e marchou por um caminho que passava por longe donde ficara a
pia. Os  dous  companheiros  compreenderam que  ele não lhes ajudaria mais
aquela noite, assim que desceram e foram cumprir co ritual de dar de beber e
mais beber eles. Aquela fonte nascia no meio dum chão cheio de cachos de
pedra. Tanto Dom Narciso como o Alcaide pensaram que aquela fonte estava
bem descuidada, ou melhor dito esnaquiçada; acordaram­se de que o Perfeuto
lhes dissera à primeira que ele tivera ali uma canteira, e aos dous se lhes veio à
cabeça se ele teria algo que ver com aquela desfeita, e se isso explicaria a sua
fugida nada mais acercar­se ao lugar. Sabendo que não poderiam satisfazer a
sua   curiosidade,   pois   a   ver   quem   é   capaz   de   fazer   falar   ao   Racha­Pedras,
esconderam a pia e marcharam cada um por seu sítio. 
Dom   Narciso,   enquanto   caminhava,   ia   pensando   no   que   se   passara
enquanto estavam lá em riba no alto do Castelo da Rainha Loba. No do cabelo
dourado não quis pensar mais porque cuidava que era fruto da falta de sono ou
do seu sentidinho, que às vezes colhia para onde não devia. Mas além disso, a
ele parecera­lhe ver um cavalo subindo polos penedos arriba, e isso ainda que
pareça difícil não é impossível, pois toda a gente sabe que esses animais podem
subir   escadas e alpendres  bem inacessíveis. Por  conseguinte a imagem, que
ademais durara pouco, não lhe parecera desatinada de todo; polo menos não
até que viu como cavalo e cavaleiro com espada, logo de chegar ao ponto mais
alto do penedo, desapareceram como por arte de magia. Narciso achegou­se
àquela  rocha   para  comprovar  se polo  lado  de atrás, como ele pensava,  lhes
seria   fácil   baixar   e   esfumar­se   tão   asinha   como   o   fizeram…,   nem   que   os
sumisse uma bruxa! Portanto arrimou­se à rocha e até trepou por ela pisando

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  100
polas marcas que sobem derredor a jeito de escada. Desde arriba pôde ver que
o único sítio polo que se podia aceder ao alto da rocha, e baixar dela, era por
onde ele acabava de escalar; qualquer outro acesso era, para qualquer animal,
fora os pássaros, impossível. Por conseguinte a desaparição do cavaleiro e mais
do   seu   cavalo   eram   um   mistério.   E   quando   já   ia   baixando   e   descartando   a
imagem   como   absurda   e   irreal,   tudo   uma   ilusão,   descobriu   que   o   cavalo
deixara na rocha as suas pegadas, pois logo não fora um sonho…!   “Mas que
estou   a   pensar…   as   pegadas   na   pedra…!”       “Pois   tampouco   há   de   que   se
estranhar”  diriam  os de  Penacova; toda a gente é sabida  que o Santiago do
Cavalo   Branco   subia   e   andava   polos   penedos   adiante   a   perseguir   e   matar
mouros. Isto, que a Narciso lhe parecia impossível, não era conto nenhum para
os   vizinhos   de  Penacova,   que   todos   desde mui  pequenos  sobem   ao  alto  de
quando em vez para apalpar as pegadas com forma de ferradura que seguem a
dar fé da sua história. Ora, não se atrevem a ir contando­o por aí a qualquer;
ademais…   “isso   se  passou   antigamente”   frase  esta   que  serve  para   referir­se
tanto ao que aconteceu nos tempos do reinado da Rainha Loba, como ao que
aconteceu na infância dos habitantes de mais de sessenta anos. 
O forasteiro, com um sorriso de ironia nos beiços, caminha pola aldeia
pensando que estas gentes têm que ser bem ignorantes para se referir a um
tempo   tão   recente   co   qualificativo   de   “antigo”   O   forasteiro   gaba­se   da   sua
superior   formação   intelectual   que   lhe   permite   estabelecer   essa  diferença.   O
que o forasteiro não conhece, ou quiçá sabe mas não entende, é que desde esse
“antigamente”   ainda   que   só   passaram   cinquenta   e   tantos   anos,   passaram
vários   séculos   de   História.   Nesse   curto   espaço   temporal   produziram­se   tais
mudanças, e a tal velocidade, que o tempo não se pode já medir de jeito tão
simples   como   faz   o   forasteiro.   E   mais   não   é   preciso   aludir   à   Teoria   da
Relatividade   para   o   entender;   baste­nos   um   simples   exemplo   que   mostre   o
desenfreio do ritmo de tal mudança; isto é: a transformação do arado de pau,
também chamado romano, no arado vertedeira do tractor. 
Escusado   é   dizer   que   Dom   Narciso   não   era   conhecedor   da   realidade
histórica, ou fantástica, depende onde se queira pôr o acento, de Penacova, e
agora estava a pagar por isso; por conseguinte, temendo­se que aquilo ia de
mal a pior, afastou­se da rocha e volveu ao campinho onde estavam os outros

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  101
dous para aguardar que o Perfeuto ressuscitasse. O Alcaide estava adormecido
à beira dum piorno e Narciso deitou­se olhando para o céu; e numa dessas viu
que uma luz saía do alto do castelo e se ia cruzando o amplo pano estrelado
caminho do Zebreiro onde desapareceu. Aquela visita fez mui feliz a Narciso,
que cuidou que se tratava da sua amiga que afinal ainda andava polo espaço
celeste e viera­o saudar de novo. Na verdade, aquela noite a sua estrela fizera
uma travessia mui estranha; apesar de que as suas noções de física não iam
muito mais lá da Lei da Gravidade, Narciso intuía que aquilo não podia ser tal;
como podia uma estrela viajar tanto espaço em tão pouco tempo? Ademais,
primeiro subiu mui alto e depois foi baixando mais a modo. Aquilo, somado ao
do cavalo,  confundira­o tanto  que fechou  os olhos e escutou  em silêncio,  e
então ouviu cousas, mas tampouco fez caso. Como ia ele dar creto aos berros
duma cabra ali no meio do monte…? De noite, e com tantos lobos quantos
sempre tem havido… Não podia ser, não podia ser. As gentes de Penacova não
falavam   muito   da   cabrinha   de   ouro,   e   não   porque   pensaram   que   era   uma
história   ridícula,   senão   porque   todos   e   cada   um   deles   mantinha   a   secreta
ambição   de   topá­la   e   fazer­se  rico…     “E   tu   que   farias   se   a   encontrasses…?
Sabes que há­de ser entregue a um museu…”  “Homem, pois eu – os pequenos
sempre com soluções à mão – meteria­a numa saca e pensariam que levava
batatas”   Mas Narciso não  conhecia das grandes aspirações dos vizinhos da
pequena Penacova, e tentou pensar noutra cousa  para aboujar os berros do
animal e nem sequer abriu os olhos para comprovar se havia tal chiba ou era
outra dessas alucinações que emanavam do ar daquele estranho lugar. Aquilo
não podia ser, não podia. E deste jeito também evitou ter que ser testemunha
da chegada dos de Pexeirós. Os de Pexeirós subiram até ao alto do castelo para
matar a Rainha Loba. Aqueles eram vales ricos mas à faminta rainha nada lhe
chegava   e   cada   dia   tinha   que   comer   uma   vaca;   e   até   ao   alto   tinham   que
levar­lha;   só   que   os   de   Pexeirós   aquela   vez   levaram­lhe   a   morte,   e   assim   o
refere o cantar:

Matastes a Rainha Loba 
Fidalgos de Pexeirós
Matastes a Rainha Loba 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  102
Fidalgos ficastes vós

E esta é a razão pola que os de Pexeirós ficaram livres da paga do conde.
Todos os demais tiveram que a pagar até não há muito… perto de há cem anos;
ora bem, os de Pexeirós não volveram soltar um real. E logo quem raios serão
esses de Pexeirós? E eu que sei, serão os de Ameixinhas… Mas Narciso ignorava
também aquela história, o que o fazia vulnerável, não por ignorá­la, senão por
não pertencer à comunidade que lhe daria sentido, e não lhe ficou outra que
fechar os olhos e ao mesmo tempo evitar ver aquela ringleira de vacas, todas
ruivas elas e galhadas, que subiam polo lado dos campos arriba. Eram as vacas
que ao longo dos tempos foram subindo para ser devoradas pola Rainha Loba.
Mais   tarde,   enquanto   caminha   de   volta   para   as   obrigas,   no   seu   caso   são
pequenas ainda que não fáceis de aturar, que lhe traz a luz do dia, Narciso não
pára de cavilar naquela luz prateada que navegara todo o céu aquela noite; não
podia ser, não podia ser… e tentou todo o dia esquecer­se do assunto.
Quando à noite seguinte chegou à Fonte do Galo, onde deixaram a pia, fez
tudo o possível por não olhar para o céu. Narciso já não podia confiar no que
lhe diziam os seus sentidos; e ele não estava ao tanto do brilho prateado que
podem soltar os martelos, enquanto dão voltas polo ar até chegar ao alto do
Penedo do Leão para avisar aos compatriotas da presença de intrusos nos seus
domínios. Só lhe ficava não olhar para nenhures enquanto aguardava; e assim
fez. Depois dum bocado sentiu pegadas que se achegavam a ele; era o Alcaide,
a cotio o derradeiro em chegar; miraram um para o outro e escusaram­se as
palavras, sabiam que era cousa deles dous tirar a pia daquela fonte que parecia,
apesar das suas frias águas, ter escaldado ao Perfeuto. Cumprindo co ritual de
apagar   a   sede   da   pia   deram­lhe   de   beber   por   última   vez   naquele   triste
manancial e puseram­se ao caminho. O Alcaide, sem dizer nada, agarrou­se ao
pinho, ali era terra chã e não parecia que fosse difícil guiar aquele carro. Dom
Narciso colocou­se na roda esquerda como era o seu costume ultimamente, e
começaram   a  chouchar   para   onde   as  estrelas   lhes   indicavam   o   caminho.   A
poucos metros donde estava a Fonte do Galo, que se identificava pola presença
de cachotes de granito espalhados por ali adiante sobre um terreno lamacento
que no meio formava uma poceca, apareceu o Perfeuto. Saiu de detrás dumas

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  103
gestas floridas. Encolhido, coa olhada no chão, e sem dizer nada, foi­se colocar
detrás da roda que ficava livre. Naquele instante Narciso sentiu uma grande
ternura   para   o   seu   companheiro   e   olhando­o   por   debaixo   da   copa   da   pia
disse­lhe   num   tom   que   a   Perfeuto   lhe   transmitiu   tranquilidade   e   mesmo   o
arrolou como a um neno no berço: “Um dia chegaremos a ser nós outra vez”.
Mal rematou aquela frase que saíra quase ela soa pola sua boca, Narciso pôs­se
a analisar o seu conteúdo e pensou que lhe teria que ter dito outra cousa, que
aquilo que lhe saíra polos beiços parecia raro… chegar a ser nós outra vez…
que raios andaria pola sua cabeça? Horamá abrira a boca, oxalá não tivera dito
nada  ou tivera pensado em  que dizer antes de falar; agora já era tarde para
mudá­lo. Contudo, a Perfeuto tanto lhe tinha o que quiseram dizer as palavras
juntas ou por separado; ele abraçara a música que lhe levavam e sentira­se por
primeira vez irmanado co cura. 
Na dianteira  o  Alcaide  sentia  o peso  da  soidade  que como  uma névoa
vasta sempre anda ali diante; agora entendia a escravitude do pinho, na roda,
se te vês mui apurado ainda podes endireitar um nada as costas, mas o pinho
não   se   deixa   soltar   assim   como   assim.   Que   pouco   gostava   ele   de   que   o
jungissem tão apertado! Ele não é que ele fosse amigo de não fazer alianças,
que as fazia, mas reservando­se sempre o direito de poder rachá­las ou safar­se
delas. Ele sempre foi claro com isso, e ninguém poderia dizer que ele era um
mau   governante.   Ele   nascera   para   político,   já   o   diziam   em   casa…   “Este
vai­che­nos   sair   ministro…  olhai   pra   aí   a  manha   que   tem   para   livrar­se   do
trabalho!”  Sim,   era certo que  ele sempre  convencia à sua  mãe para que lhe
deixasse escolher tanto à hora do trabalho como na mesa. “Assim leva as boas
talhadas, não é burro não, o condenado”. Mal teve idade convenceu a seu pai
para   que   movesse   tudo   o   que   havia   que   mover,   e   coa   ajuda   do   abade,   o
fizessem alcaide. E assim foi, mal rematara o serviço militar e já tinha a vara do
mando. Mui contente estava ele, e que feliz fez à sua mãe, e ao pai encheu­o de
orgulho. Ele seria um bom governante e ao mesmo tempo levaria a sua talhada.
Ainda agora se acorda de quando asfaltou a primeira estrada,… “Bota fino o
chapapote   que   o   que   há   dá­se   bem   gasto”   E   o   contratista   fazia­lhe   caso   e
apertava a bilha do alcatrão para que rendera mais; havia que ter contente ao
Alcaide, que senão a próxima obra se quadra não lha dava. E assim a estrada

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  104
ficara igual de bonita, só um bocadinho mais delgada. E o peto do Alcaide, ao
que por aquele então ainda não chamavam Rebenta­Ruas, medrava. Ele não é
que quisesse roubar ao Concelho, não, não, livre­o Deus. Sucedia que ele era
tão bom administrador que sempre lhe sobrava, e claro, depois já não podia
volver   a   investir   o   já   gastado,   e   tinha   de   ficar   com   ele.   E   certo   é   que   um
concelho   como   o   de   Os   Mouros   precisa   ter   um   alcaide   que   não   vá   por   aí
parecendo  mal;  isso,  compraria boas roupas,  que vestir bem é parte do  seu
trabalho.   Ele   ia   por   aí   adiante   representando   ao   concelho   e   tinha   que   ir
elegante. Homem…, o que sobrara da estrada era algo muito para o meter em
trajes! E se fizera uma granja…? Um bom alcaide tem que saber de negócios…
e   que   melhor   jeito   de   aprender   que   montar   um   negocio   próprio?   Assim
demostrará a todos o empreendedor que é, e renovar­lhe­ão o cargo. 
Com   nostalgia   lembrava   ele   agora   aquela   época   em   que   só   tinha   que
convencer aos de arriba para que o deixassem seguir sendo alcaide. Que bem
se estava sem essa trangalhada das eleições! E o caras que lhe saíam… Nos seus
começos   tudo   fora   como   a   seda,   nem   se   tinha   que   preocupar   por   esses
indivíduos de barbas que depois mais adiante lhe começaram a fazer a vida
impossível. Barbudos e mulheres, não queres caldo…duas cuncas. Ai, mas para
que se queria ele lembrar dessa parte dos barbudos e das da saia, que por certo
não   gastavam?   Ele   queria   que   só   se   tivesse   gravado   na   sua   cabeça   aquela
primeira época do seu mandato, quando ele ordenava e mandava com total
liberdade, essa sim que era maioria absoluta. E mira que lhe durou anos, os
mesmos que lhe durara a granja…, não, que a granja ainda lhe dura, embora a
traga trespassada. Que doce lembrança a daquela estrada tão negrinha como o
pez! Mágoa que por culpa dos camiões da pedra que baixam de Penacova se
enchesse toda de buracos. E que culpa ia ter o alcaide de que se fizera uma
canteira  lá no  alto?  Ele só  lhes dera a permissão requerida. E claro, ei­los a
pedir que lha governasse… esta gente não entende de orçamentos fechados! E
ele bem que lho explica a quem o quisser saber. Mas eles, venha que dá­lhe coa
devandita estrada, e ao final teve que acabar solicitando um orçamento novo e
arranjar­lha. Olha que não lhe chegava bem como estava… de terra batida lha
tinha que ter deixado, como esta pola que andam hoje eles e a pia, e nem conta
se dariam.  Quanto mais  lhe  dão mais pedem, é o conto de nunca acabar, e

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  105
agora com isso da liberdade e de tantas trapalhadas a alguns subiram­se­lhe os
fumos à cabeça.
Com   estes   monólogos   do  pensar   andava   o  Alcaide   entretido   e  não   lhe
rendera tanto a jornada como em dias passados. Isso fez­lhe sentir­se mui bem
consigo.   Ele   pensava,  a  julgar   polo  que vira  cos  que  lhe  precederam,  que o
tempo se lhe faria eterno ali só naquela dianteira, ora não foi tal. Ao menos esta
primeira noite a cousa se passou a escape. Andaram um bom pedaço, estavam
agora atravessando já a Missa para depois baixar pola Alobada para o Castelar,
onde lhes aguarda o sexto e penúltimo manancial desta andaina. Arrimaram a
pia  e   mais   o   resto   das  cousas   a   um  penedo   que  havia   não   muito   longe   do
caminho e foram­se. Antes de se separar definitivamente Narciso olhou para a
rocha e pareceu­lhe que tinha lã; lã? Que raro, e depois pensou que não podia
ser e foi­se como quem não vira nada. E o certo é que aquele penedo podia ter
algo de lã, não em vão se chamava “o penedo de se ranhar as ovelhas”. Mas
Dom Narciso, que não sabia nada de pastoreio, polo menos com esta casta de
ovelhas, e escamado  polo  da melena dourada da outra noite, não se deixou
arrastar polo que bem podia ser real. Marchou embora. Os três marcharam, e o
dia não tardou em inundar os vales todos de luz.

* * *

Hoje Nuestra Región, que nos oferece toda a sua portada em galego, põe
uma   nota,   no   interior,   protestando   polos   comentários   que  alguns   cidadãos,
apoiados   por   certos   programas   de   rádio,   andam   a   fazer   sobre   o   estilo
jornalístico deste diário. Parece mentira que nesta altura, depois do muito que
eles levam feito, e demostrado, tenham que se ver na obriga de redefinir quem
são, e de reiterar a seriedade que os caracteriza; porque  Nuestra Región  é um
jornal sério que tem ido atingindo cada vez maiores quotas de compromisso
social   e   cultural.   Um   jornal   que   nos   últimos   anos   tem   incrementado
notavelmente   a   sua   sensibilidade   em   prol   da   conservação   do   nosso
património, como exemplo baste ver a portada do diário de hoje…
…Claro,  senão  nas  notícias  da televisão  quando  disseram:  “a imprensa
galega   por   inteiro   saca   hoje,   17   de   Maio,   Dia   das   Letras   Galegas,   as   suas

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portadas   em   galego”,   figura­te   o   mal   que   ficaria   se   tivessem   que   dizer:   “a
imprensa galega, com excepção de  Nuestra Región, saca hoje, 17 de Maio, as
suas  portadas   em  galego”.   Isso   ficaria  muito   feio;   e  por   culpa   da  frase  essa
fazem o esforço como os outros, e logo então! 
A   alguns   intelectuais   diz­se   que   esta   frase,   que   já   se   está   fazendo
tradicional e se repete cada dezassete de Maio, isto é, uma vez ao ano, lhes
parece uma redundância. Vejamos: “a imprensa galega saca hoje, 17 de Maio,
as suas portadas em galego” – Homem pois a mim não me parece raro,… a
imprensa galega não as vai sacar em chinês… – Pois eu digo­che a ti que aqui
há algo que não me… a ver que te parece estoutro: “a imprensa espanhola saca
hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego” a que se ouve muito melhor? –
não che digo que não, não obstante tampouco pode ser, porque não toda a
imprensa espanhola saca as suas portadas em galego – Pois também vais ter
razão… a ver  logo  assim: “a imprensa espanhola na Galiza saca hoje, 17 de
Maio, as suas portadas em galego. – Olha, a mim parece­me bem, mas para já
com tanta imprensa  espanhola que me vai estourar a cabeça. – Eu não  sou
quem de fazer isso… se por mim fosse já podia dizer até: “a imprensa galega
saca hoje, primeiro de Abril, as suas portadas em castelhano” – E a que vem
isso do primeiro de Abril? – O primeiro de Abril todos os burros vão onde não
devem de ir. – Ah já, o dia das pulhas! Pois aqui burros não faltam. – Não ho!
Também cho digo, aqui há muitos e bem deles…
São   estes   pensamentos   dialogados   que,   se   bem   que   revelam   a
bidimensionalidade da personalidade dos galegos, não servem para sustentar a
tese que ultimamente está a ganhar prestigio nas melhores universidades da
Península   e  que  vai  em   favor  de  postulados   sobre  a   bidimensionalidade   da
personalidade na gente das nações que se vêem submetidas ao avassalamento
por parte doutras culturas mais poderosas. Ora bem, nos postulados originais
destas teorias,  que cada dia estão mais na moda, supõe­se que o monólogo
dialogado   se   levaria   a   cabo   nas   duas   línguas   que   representam   a   ambas   as
culturas. Isto é, que a pessoa alternaria, de jeito sucessivo, as duas línguas, a
própria e a assumida como própria, que estarão em constante luta até a pessoa
morrer, e diz­se que logo disso as línguas seguem na sua polos cemitérios. 

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O mais problemático parece ser encontrar uma denominação para estes
tipos. O monólogo precedente não encerra dificuldade visto que se trata dum
caso   galego­galego,   isto   é,   que   tem   como   língua   própria   o   galego,   e   como
língua   assumida   como   própria   o   galego;   mas   como   já   dissemos   este
caso­exemplo não nos serve para apoiar a hipótese da bidimensionalidade. Ora
bem, aos que têm como língua própria o galego e como língua assumida como
própria   o   castelhano,   ponhamos   por   caso,   poder­se­ia   um   referir   como
“gastelhanos”, por aquilo de pôr primeiro a raiz da língua materna. Por outro
lado,   para   os   que   têm   como   língua   própria   o   castelhano   e   como   língua
assumida como própria o galego… é verdade, esses não existem. E que me diz
dos que procedendo de fora destas terras, de Terra Ancha por exemplo, tomam
o   galego   como   língua   assumida   como   própria?   Ah,   já   percebo!   É   diferente,
nestes casos o galego nunca desloca no seu ego mais interno à língua própria,
que seguem sempre a saber qual é, por muito que amem o galego… Por certo
este colectivo vai em aumento! Curiosamente este grupo e o dos gastelhanos
aumentam a um ritmo similar. – Pois olha que seria muito bom que viessem
mais desses para cá. –Isso, ora… o que fazemos cos gastelhanos? – Pois que se
decidam duma vez, que a vida não lhes vai durar sempre e vão­se ir para o
outro   mundo   coa   retesia.   –  Eu   sei   dum   que   estando   já   às   portas   da   morte
resolveu o assunto e despachou ao curinha que o atendera toda a vida e quis
que lhe administraram os últimos sacramentos em galego… “coitado, te perdió
el sentidinho” Frase que, em boca da sua mulher, mostra o domínio gastelhano
no que se movera o moribundo até o momento da lucidez final… E quando
chegou o novo sacerdote tranquilizou­os a todos… “não se preocupem vocês
que tem a minha absolvição, e Deus já lhe perdoou” – E é que isto de ser crente
é   um   negócio   feito...   vais   e   arrependes­te   no   último   momento   e   já   está,   a
recolher benefícios como se fosses um santo toda a tua vida…!

* * *

Quando os viageiros da noite retornaram junto à pia, Dom Narciso fê­lo
cos   olhos   fechados   para   não   ter   que   ver   a   lã   que   não   podia   existir,   mas   a
curiosidade   foi   mais   forte   que   ele,   o   que   não   é   milagre   nenhum,   e   com

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dissimulo   passou   a   mão   como   cofiando   o   baixo   ventre   do   penedo.   Em
realidade ele só buscava tentar a dura pedra para que as visões não se burlaram
mais   dele.   O   sentir   sedoso   entre   as   pontas   dos   dedos   fez­lhe   estremecer   e
retirou a mão bem asinha. Agora,  enquanto iam baixando pola esquerda do
Jungal e as Ribeirinhas, para as touças do Castelar, ia pensando naquele mole
apalpar que topara no penedo. Lã não podia ser. Seguro que são musgos, quem
sabe como é o tocar do musgo? Sobretudo com esta humidade que põe tudo
tão meloso. Quanta gente vistes por aí acarinhando os penedos, e menos cos
olhos fechados…? De seguro que eram musgos que neste tempo estão verdes e
amantinhos. Com aquela conclusão tranquilizadora deixou a questão. 
Aquela   noite   Perfeuto   parecia   menos   encolhido,   desde   a   penúltima
jornada   o   seu   aspecto   tinha­se   humanizado   bastante.   Enquanto   o   Alcaide
seguia co pinho às voltas, hoje não parecia que lhe foram tão bem as cousas. O
terreno colhera  um  nadinha  de inclinação mas a ele parecia não lhe ajudar
muito. Ele andava que parecia um rabioso a quem ninguém lhe fizera nada.
Mas sim que lhe fizeram, sim. Se Perfeuto e Narciso souberam polo que ele
tivera de passar. Ele nascera para alcaide, isso ninguém o discute, e agora já
não o era. Isso não podia ser, é essencialmente erróneo que se lhe frustre a um
homem a sua vocação assim, sem mais explicações. E tudo por culpa dos das
barbas.   Olha   que   lhe   iam   bem   as   cousas   a   ele   sem   democracia.   Mas   nada,
houve que se adaptar e não ficou outro remédio. Ora, a que as mulheres vão ao
concelho e ainda por cima levem calças, a isso não se dava adaptado. E por
culpa disso teve que deixar a alcaidia. Não, não foram justos com ele; depois de
tantos anos cumprindo no seu posto vão e dão­lhe uma patada. E ele mira que
se esforçou por adequar­se ao que fosse preciso. Ninguém poderia dizer que
ele   fosse   um   reaccionário.   Houve   que   escolher   partido   para   meter­se,   pois
vamos, ao que a Deputação me mande, que para isso são os que me dão os
orçamentos das obras. Que depois é preciso mudar e meter­se noutro partido
mais grande, pois que não se fale mais. Se é preciso ainda se compra outro fato.
Não será por falta de casacas… E mira que ele era um alcaide agradecido, ele é
certo que o chefe da Deputação fizera muito para lhe ajudar a ele a manter o
seu posto vitalício de alcaide d'Os Mouros; mas ele também lho pagara. Isso
ainda  se  pode  ver hoje:  “Edifício  Multifuncional  José Luís Bande”, “Avenida

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José Luís Bande”, “Praça José Luís Bande”; esta última com estatuazinha do tal
J. L. Bande e tudo, uma cabeça de pedra à que o alcaide se refere como o busto
de Bande. Por causa da cabeça esta já se têm montado algumas liortas:
– E quem diz que é esse da cabeça de pedra?
– Um tal Agusto de Bande.
–  E  que  faz  a  cabeça  dum de Bande aqui nos Mouros? Eles têm o seu
próprio concelho.
–  Não, homem, não – veio o terceiro em discórdia – que não se chama
Agusto, nem é de Bande. Este é o busto do senhor Bande, o chefe da Deputação.
–  Mira,   pois   não   se   chamará  Agusto  nem   será   de   Bande,   mas   daqui
digo­che eu que não é, e mais olha onde o foram pôr… no meio da eira da
Festa, de espantalho.
–  É   que   esta   já   não   é  a   eira  da   Festa,   agora  chama­se  Praça   José   Luís
Bande.
– E dá­lhe cos de Bande, pois já podiam fazer as praças no seu concelho e
pôr ali as cabeças.
– Mira que sois pesados vós co de Bande também…
– Pesado é ele, que é de pedra, que senão…
Sem esquecer­nos do Vertedouro Incontrolado Municipal J. L. Bande. Se
bem que aqui a cousa não está nada clara tampouco, acontece como coa eira
da Festa. Não, se o do vertedouro está mais claro que a luz do dia, que desde
quase a Fontecova já se vêem branquejar as máquinas de lavar, as neveiras, e
toda clase de refugalhos e trapalhadas porcalheiras inclassificáveis que ficaram
antiquadas para a vida moderna, e que já não servem mais que para se desfazer
delas. São­vos estes seres mecânicos nada fáceis de apodrecer; alma não terão,
mas custar, custa­lhes morrer uma boa cheia de tempo, e enquanto agonizam
levam por diante não só a paisagem senão a vida toda do monte, e a do rio
Eiroá,   que   baixa   entusiasmado   desde   o   alto   do   Zebreiro   para   chegar   à
Golpelheira e ver­se assim acurralado por latas oxidadas, tijolos esnaquiçados,
canhotas   de   castanheiros   menosprezadas   depois   de   arrancadas   nos   soutos
queimados… O rio Eiroá, onde noutrora moíam os moinhos, e o pão cozia nos
fornos graças a esta água que baixava até a beira d'Os Mouros. E que culpa
tinha   o   alcaide?   Ele   não   era   o   que   deitava   ali   todos   esses   cadáveres   da

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industrialização; e mais esses reganhudos que não lhe querem bem sempre lhe
estavam atacando por culpa de que a gente botara ali o que já não lhe fazia
jeito, ou não queriam. E que lhe ia fazer ele? Não quereriam que se pusesse ali
de guarda noite e dia. Mas esses insaciáveis não pararam aí, não; eles dá­lhe
com que a Golpelheira não era nenhum vertedouro e que por conseguinte era
responsabilidade do Concelho mantê­la limpa. E ele vai e não se lhes ocorre
outra   cousa,   porque   diz­se   que   não   pôde   ser   ninguém   mais   que   eles,   que
plantar ali um cartaz na beira da estrada que baixa de Penacova? E não se lia
“Proibido deitar lixo” não, que esse tão sequer ainda podia ter quiçá ajudado;
não,   o   que   se   lia   no   devandito   cartazinho   era   “Vertedouro   Incontrolado
Municipal José Luís Bande”, e houve que o tirar, e eles ei­los a o pôr outra vez,
e uns a o tirar, e outros a o pôr… E não houve outro remédio que chantar lá um
guarda   dia   e   noite   para   parar­lhes   os   pés   a  esses…   Quando  alguém  depois
vinha ali a lhe fazer o funeral à sua  Westinghouse, após quinze anos de fiéis
serviços, ficava confundido, pois eles não contrataram a enterrador nenhum,
nem pensavam que ninguém assistiria a estes últimos ritos. 
– Olhe! – dirigindo­se ao guarda – aqui é onde se deixam as cousas que já
não valem?
–  Ai, eu não diria  tal, olhe que algumas ainda lhe estão boas! Que não
todas as que vêm ficar aqui são velhas…
– Quero dizer que se poderia eu deixar aqui esta máquina de lavar que já
não entrefuga lá mui bem e…
–  Pois  com  efeito,   deixe  você  o que  quiser, ou  melhor dito,  o que não
quiser. 
– E logo você para que está aqui? Se não é muito perguntar…
–  Eu?   Pois   para   que   uns   vândalos,   que   seica   são   do   que   não   há,   não
chantem aqui o cartaz de Vertedouro. 
– Mas olhe…, e logo isto não é um Vertedouro?
–  E eu que sei! A mim disso ninguém me disse nada, eu estou aqui pra
vigiar   por   se   ligaram   de   vir   os   do   cartaz   esse…   e   agora   despida­se   da   sua
lavadora e deixe­me que tenho muito que fazer… que se isto segue assim ainda
vou   ter   que   me   repartir   entre   aqui   e   a   praça   do   Bande,   que   seica   esses   já
ameaçaram  com que não  voltam a fazer um cartaz novo e que no lugar do

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cartaz   vão  colocar   o   cabeção   de   pedra   que  dizem   que  iria   mais  acorde   cos
despojos urbanos do vertedouro, que não é tal, por certo.
– E por causa disso o vão fazer ir a você até lá a Bande?
–  Não mulher, não, que vão fazer! Marche, marche tranquila, que a sua
máquina de lavar não vai estranhar nada aqui.
– Pois logo, até outro dia, e perdoe.
Que a gente se confundisse quanto quiser, mas ele tinha que mostrar o
seu agradecimento ao chefe da Deputação. Também é certo que ele aqui desde
o seu posto no Concelho lhe ajudava a arrecadar os votos que tanto precisava o
seu patrão para o partido. A ver quem ia de casa em casa a repartir boletins na
véspera das eleições! Ai, é que o Bande não pode estar em todas as partes…!
Pois  que  vão  os   alcaides!  E   ele  ia,  que  ademais   assim  ia  mantendo   o  forno
quente para as Municipais, que eram as que realmente lhe coziam a ele o pão.
A ver quem fazia as promessas, de aldeia em aldeia, de casa em casa…  “se me
votas fago­che um poço para regar a leira toda”   “Pois nem que eu fosse um
parvo, voto, voto, inda que depois caia nele e afogue, e hei levar à mulher e o
filho”   “Leva também o tio velho que para votar vale qualquer”   “Mas olhe que
ele não lhe serve para nada… está tolheitinho e não se pode mover”   “Pois o
levais num cesto desde o carro até a mesa eleitoral”…  E assim de casa em casa,
ninguém sabia o duro que era o seu trabalho. Não era Rebenta­Ruas a alcunha
que lhe ligava a ele não, a ele teria­lhe ficado muito melhor o de Casalandreiro,
porque nisso consistia o seu trabalho em época de eleições, sempre de casa em
casa.   E   depois   ter   que   os   convencer   de   que   ele   representava   a   melhor
alternativa, a única alternativa possível de eleição. Por sorte contava coa ajuda
do pároco de Vilarinho, que sempre teve claro o que era ser um homem de
sotana, ainda que a leve emporcalhada, e organizava magustos ou o que for
preciso à hora dos meetings dos outros, e assim ninguém se apercebia nem que
se apresentassem. Quanto trabalho para ao remate perdê­lo todo. Às vezes ter
que improvisar discursos, e à medida da situação, porque liga de estar ali na
taberna algum mais duro de roer. Como aquela vez na cantina de Penacova…
já tinha pago o vinho de todos os presentes, já apertara bem as mãos e lhes
dera os boletins de voto, já estava a cousa quase pronta e chega o Manuel e lá
se foi tudo prò nabo. Ele não vai o mui… e se lhe ocorre perguntar­me que por

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quem me apresentava….?   “E tu de que partido vens sendo, se não é muito
perguntar?”   Essas foram as palavrinhas exactas que o Manuel lhe soltara, e
assim ficaram gravadas nos miolos do Alcaide. Justamente agora quando já era
escusado, quando já estava tudo meio bem atado, ter que andar coa política.
Mas eu, que daquela ainda era de centro, dei­lhe uma resposta bem atinada:
“Mirai, eu sou de centro, porque no centro é onde melhor se está”   A julgar
polas caras que o guichavam dir­se­ia que aquilo não fora mui convincente;
sobretudo a do Manuel, com aquele meio sorriso como dizendo “pilhei­te…!”
E   agora   que   me   lembro   dele…   daquela   o   Manuel   gastava   algo   de   barba
também. Então o orador que levo dentro, o que sempre convencia à minha
mãe   para   aquilo   das   boas   talhadas,   saiu   ao   resgate:   “Mirai,   para   que   me
entendais todos vou­vos pôr um exemplo que nem precisa das palavras… Se
um de vós está, ponhamos por caso, a cortar fatias no jamão, donde vos parece
que   tirará   melhores   talhadas,   polas   bordas   ou   do   meio?   Claro   que  sim!   No
centro está sempre o melhor, no jamão e em tudo!” Ao Manuel mudara­lhe a
cara,   em   vez   do   sorriso   tinha   agora   uma   enruga   na   testa,   mas   não   era   de
enraivado, não, era como se dissesse “estou pensando”… e de repente o sorriso
outra vez na face, agora, quando a cousa volvia ir bem e todos se mostravam
satisfeitos e calmos, outra volta que vai ele e diz: “Mui escolhido o exemplo;
mas agora responda­me a mim também: se passar por onde um rio e ligar de
cair, onde quer melhor ir parar… a uma borda ou ao meio?”   O que mais lhe
doera foram os comentários dos outros: “Homem, caralho – dissera o tio Rua,
que eu já contava com ele – se caires na borda ainda te podes agarrar mesmo
que  só  for a  umas  ervinhas,  e esgardunhas para fora; ora bem, se caíres no
meio ainda te podes afogar”   A taberna encheu­se de risadas, que desde fora
podiam escutar  até  as  mulheres… O Manuel deu meia  volta, como boi que
vence ao outro na chega, e pediu uma cerveja desprezando assim o seu vinho.
E ele ter que aturar aquelas burlas depois de lhes ter pagado o vinho e tudo…
Claro que depois quando fora de casa em casa tanto o Rua quanto os outros
asseguraram­lhe que votariam por ele… ali na taberna, pois claro, tiveram­se
que pôr do lado do do lugar, mas… “não se preocupe você, pode contar co
nosso voto”   “então pra que ríeis?!” 

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E ele contava e recontava, e antes de se abrirem as urnas para o reconto
ele   já   sabia   o   que   sacara.   Chegava­lhe   com   contar   os   que   trazem   as
furgonetas…   “Quantos   carregastes   já?”     “Dezasseis   de   Fontearqueira   –
incluindo o do cesto –, dezanove de Lourelos, quinze de Penacova e quatro de
Ameixeiras”   “Mecagoe  nos de Ameixeiras que sempre me fazem igual… vão
seguir sem as luzes públicas outro par de aninhos mais, a ver se aprendem…!”
“E ti quantos levas?”  “Oito de…”  E assim ia um por um até rematar o conto.
Bom, então tenho já cento quarenta e sete justos, se as contas não me falham.
Isto de contar os carregados nas furgonetas era, e segue a ser, um método fiável
e por conseguinte usado; e não só polo Alcaide,  os  dos  outros  partidos não
ignoram que ali dentro dos carros se fazem repartições. E poucos são os que se
atrevem a contar o que ali se passa, e quando o fazem fazem­no tarde demais…
–  Sim homem sim, quando fôramos co Mulas, bom, tu não foras que já
votaras, pois tal como cho conto, tirou­me o voto e rompeu­mo em pedaços, se
não foi certo que não veja mais a luz do dia.
– Qual voto?
–  O que levava da casa, e isso que o trazia bem guardado; mas ele coa
teima: “ensina­mo a ver se vale”, e eu de burra…
– Ai raio o nunca parta! Olha ti o galopim; e tu ficarias danada, não sim?
–  Pois   logo   não   ia   ficar,   como   querias   que   ficasse…   a   fé,   que   fiquei
rabiosa!
– E logo depois tu não fizeste nada?
–  Eu? E eu que ia fazer, eu não sei ler nem cousa  nenhuma, e pra não
parecer  que  não  me  apercebia nem donde soprava o ar  pois não tive outro
remédio que meter o que ele me dera. 
–  Olha  lá o  languiceiro,   e isso que che é sobrinho e tudo;  não,  se esse
tem­che boa saia, parece um alpavarda e depois mata­as calando!
–  Ai, digo­te que aquele dia quase estouro co reganho, e eu que queria
votar o que me dera a tua rapaza, e vai o fada…!
Pois como iam deixar escapulir a uma e enfastiar a recontagem? Assim
deste jeito era muito mais fácil…! Por cada burro seu molho, e a cousa não
falhava.   Porque   na   verdade  isso  dos  inquéritos  à  saída da escola,  onde  está
agora o colégio eleitoral, e também se velam ali os mortos, não se sabe mui

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  114
bem porquê, mas não funciona. Por muito que os profissionais do jornalismo
se esforcem por o fazer bem, não che é nada…
– Mire senhora, você já votou?
– Sim, senhora, já votei.
– E poderia dizer­me você, se for tão amável, para quem votou?
–  Olhe, você tem que perdoar mas a mim disseram­me que o voto era
secreto.
– Sim que o é, o voto é secreto.
–  E mas vai você e pergunta­mo; e logo não vê que se lho digo a você já
não é secreto?
– Pois tem você razão, e perdoe.
– Não há de quê, mulher, não há de quê…
E o certo é que o voto não era secreto, que ia ser! Aqui toda a gente sabe
para quem vota  toda a gente. E a Conceição tem vários filhos com barba, e
filhas dessas que não levam saia, e escusado é que lho diga à jornalista porque
toda a gente o sabe…todos fora a jornalista, claro. “Se não saís destas eu já não
vou   votar   mais,   que   já   canso   de   andar   arriba   e   abaixo,   eu   e   dous   mais   no
autocarro eleitoral” No mundo tradicional que vai dentro da cabeça das gentes
desta terra, este não é jeito de guardar os segredos, aí expostos ao público em
caixinhas de vidro. No mundo tradicional, que mais de um levamos dentro, os
segredos, se os houver, nunca deve de saber­se que existem, senão não se dão
guardado. 
Em resumidas contas, que ao Alcaide não se lhe escapava nenhum voto
sem contar. E antes do fecho das mesas já ia encarregando a ceia num bom
comedeiro   da   Límia   para   ele   e   os   seus   sequazes.   Ali   comerão   e   beberão   à
fartura, mas antes de que comece a ceia, ou cousa nenhuma, ele repartirá­lhes
as pagas, cada um polo que carrejou. Porque ele era bom pagador, e pontual,
antes de sair os resultados já tem os homens pagados. Ele era um homem de
palavra, e cumpridor. As mais das cousas que os outros lhe apunham não eram
tal, ou eram miudalhos sem importância. E esses condenados que tudo têm
que saber. Mira que foram descobrir o da retenção dos votos por correio; pois
ninguém lhe fora lá co conto e mas eles souberam­no. Mas já não podiam fazer
nada,   depois   de   retidos   tanto   tempo   já   não   contavam.   E   é   que   o   voto   por

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  115
correio também tem esse defeito de não ser secreto. Mas eles não os abriam, de
isso   não   podiam   acusá­los…   “de   quem   vem   este?”   “Este   vem   de   fulana   ou
sicrano…” Pois a escondê­lo. Mas não é certo que os abrissem sem permissão,
isso são tudo calúnias que lhes levantam os outros …esses, esses sim que... E
ademais   isso   das   retenções   são   miudezas   comparado   coas   intenções   dos
nossos   rivais,   que   mesmo   se   lhes   lê   na   cara   que   se   pudessem…
cuinchavam­nos! Eu com eles a sós não me queria topar, e menos no dia das
votações… e a alguns das furgonetas já lhes fizeram recuar… não, digo­te eu
que  são de  caralho  virado… felizmente por aqui dos novos não se faz caso,
gente nova e lenha verde só faz fumo. Tão sequer, a conta dos anos ainda lhes
vamos   ganhando,   e   eles,   ainda   por   riba,   assim   que   vão   servindo   vão­se
marchando às cidades, e a cousa ia indo; mas numa dessas vão e sacam um
representante no Concelho, e ainda por riba uma mulher… o que me faltava…!
O   Alcaide,   travado   polo   mau   génio   daquela   lembrança,   parou   de   súpeto   e
disse­lhe aos outros que já chegava por aquela noite, que ele já estava canso e
que as noites não se acabavam num dia, polo que… E ao olhar para o Perfeuto
lembrou­se de todos os homens indomesticáveis cos que se tinha ele topado ao
longo  da  sua   andaina  polas   freguesias do  concelho  quando ia pedir o voto.
Perfeuto estaria canso e abatido mas ainda levava na face aquele ar indomável.
E vai o Alcaide e soltou­lhe:
– E tu de que raios estás feito?
–  De   pedra,   eu   estou   feito   de   pedra…   e   tu   porquê   o   perguntas,
manteigueiro do caralho?
O   Alcaide   marchou   mal­humorado,   manteigueiro   ele?   Que   caraino
acredita   esse   Racha­Pedras   que   ele  é…?   Maldição,   porque   é   que   sempre   se
tinha ele que topar com esses seixos no caminho? Perfeuto também marchou, e
Narciso ficou só por uns instantes. Ainda havia vagar para a rompida do dia, e a
ele chegava­lhe bem o tempo. Arrimou­se à boca da pia e viu como a lua cheia
bailava   lá   dentro   dela,   no   bambear  das  ondinhas   que   ainda   havia  na   água.
Assim com aquela tanta luz, parecia­lhe que a pedra fora perdendo o grisalho e
cada vez estava mais amarelada… como se se misturasse o dourado coa cor das
avelãs. Uma cor que lhe outorgava à pia um esplendor que ele nunca tinha
visto. Pensou que seguramente seria polo efeito daquelas águas que sempre a

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  116
mantinham húmida. Narciso não queria cavilar no assunto; ele tinha a mente
jogando às adivinhas,… de que estaria feito ele…? Se o Perfeuto estava feito de
pedra, e o Alcaide de manteiga,… de que se supõe que estaria feito ele? Seguro
que de algo intermédio. Por mais voltas que lhe dava não se lhe ocorria nada. E
pôs­se então a pensar em matérias das que ele gostaria estar feito. De pó das
estrelas,   ou   da   luz   delas,   ou   de…  Não,   isso   não   valia   porque   ele  sempre   ia
escolher   materiais   que   lhe   fossem   gratos,   ou   nobres.   Faria   algo   diferente,
tentaria   imaginar   os   materiais   dos   que   quer   o   Alcaide   quer   o   Perfeuto
pensariam que estava ele feito. Até lhe saiu em forma de diálogo:
– E eu Perfeuto, de que crês que estou feito eu?
– Tu? Tu… de queijo. 
– Porque o dizes? 
– Porque és brando mas ainda se te pode tragar, não como ao repugnante
esse da manteiga, que te anoja o bandulho.
– Queijo! Bom, a mim não me desgosta o queijo, contudo… que classe de
queijo? Duro, brando, de vaca, de ovelha, de…?
– Um queijo calado, assim é como deverias ser, que os queijos não falam.
Mas a ideia de ser de queijo não acabava de ser do seu agrado; a ver o que
pensava o Alcaide… 
– E tu, Alcaide?
– Eu, quê?
– De que pensas que estou feito eu?
– Tu? De hóstias amoreadas umas em riba das outras.
Não,   aquilo   não   lhe  estava   a   dar   a   sensação   que  ele   andava  a   buscar.
Deitou­se no chão e agora olhava para a lua que desde o alto do pano negro da
noite   dependurava,   e   ficou   calado.   Os   braços   estirados   no   chão,   os   joelhos
dobrados   –   E   tu,   lua,   de   que   pensas   que   estou   feito?   Enquanto   aguardava
olhando para o céu, por uns instantes os dedos entretiveram­se enredando nas
ervinhas  do   chão  e  mais  na   terra.  – Não  me vais dizer  nada, eh?  E  Narciso
sentou e viu como por debaixo das unhas assomava a terra húmida e negra…
de terra! Eu estou feito de terra, de terra e de todas e cada uma das maravilhas
que   há   nela,   de   terra,   da   minha   Terra…   E   marchou   contente   cantarujando
aquela melodia dum  cantar que de neno lhe entoava a sua avó, e que a ele

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  117
agora se lhe juntava com um verso que não acertava a saber donde lhe viera…
E cantarujou:

Leva a terra com ele 
sem ele sabê­lo…
Naaarará…narará
narararaina…
Leva a terra com ele 
sem ele sabê­lo…

Quem sabe, quiçá as cantigas da sua avó encerrassem alguma mensagem
que   ele   nunca   se   parara   a   decifrar,   e   que   agora   ao   se   lhe   misturarem   com
aquelas rimas ele sentia cobrarem um sentido verdadeiro, um sentido que não
descobrira   enquanto   cavava   na   horta   da   reitoral   em   Ameixeiras.   Talvez
tampouco a sua avó sabia destas mensagens das músicas, mas cada quando
que ele as escutava, ou as cantava, faziam­lhe sentir­se outro, faziam­lhe sentir
que era o Narciso que ele queria ser, o que ele era realmente e não dava sido de
todo… sem  poder  ver com clareza quais eram as silvas que o prendiam. Se
calhar   isso   de   misturar   a   terra   e   o   céu   dentro   dum   não   sempre   dá   bom
resultado…   Narciso   sonha  com  encontrar  uma  estrela  que  possa  escutar  os
seus nararainas sem ter de subir­se ao céu, sem ter de renunciar à terra, da que
está feito.

* * *

Os dous agentes eram para os de Penacova dous forasteiros semelhantes a
outros muitos que tinham cruzado já antes polo lugar. Alguns de passo para a
Raia   e   outros   buscando   informação   acerca   da   Rainha   Loba;   estes   últimos
sempre rematavam subindo aos penedos do  Castelo para embrulhar no seu
pano das mãos algum queixil, aparentemente humano, e metê­lo no bolso do
seu gabão. 
Estoutros   forasteiros   chegaram   hoje   ao   lugar   com   uma   boa   sensação.
Começavam a gostar de respirar tão livremente como o podiam fazer naquele

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  118
lugar,   enchendo   os   seus   pulmões   uma   e   outra   vez   como   se   quisessem
oxigenar­se; certo é que donde vêm eles tampouco está o ar mui poeirento que
se diga; ora isso sim, há muitos automóveis. E ali não havia automóveis, ou se
os havia estavam guardados ou andavam por aí nas estradas, longe daquele
paraíso.   Ainda   que   o   trabalho   seu   ia   devagar,   eles   começavam   a   se   sentir
cómodos.   Ia   como   tinha   que  ir   porque   ali   era   assim,   em   Penacova   tudo   ia
devagar, e não valia que eles quisessem correr, que ademais já não queriam.
Quando entravam em Penacova era como se tivessem que botar um freio às
suas   ânsias   profissionais,   e   até   desandar   um   pedaço   do   andado   antes.
Penacova ia tão a modinho que se diz que não chegaram ao presente, ou polo
menos   não   ao   presente   dos   detectives.   Penacova   andava   lá   num   ponto
intermédio entre a era dos martelos da Rainha Loba e a do telefone. E diz­se
que às vezes os do lugar topam­se com gente que corre muito, muito mais que
eles, e que os passa, e despois vêem­nos lá adiante escangalhados. Também se
diz que às vezes vêem, ainda que pareça mentira, outros que vêm ao pra atrás,
como aquele que vem de volta. Com estes já não se podem entender…
– Não, que isso do sulfato não está bem, tínheis vós razão dantes, não se
deve usar;  agora já  também  o têm descoberto os cientistas, fazei­me caso e
parai de botá­los…
–  Olha…! E que queres, que vá eu ali à leira das batatas e espavente os
escaravelhos com um folhato…? E logo então para que raios serve se não o
sulfato? E agora, que já gastamos o dinheiro…!
– Mirai, que a celulose não vos é nada boa para a pele, por não falar dos
carvalhos, e ademais aqui tendes agua à fartura, devíeis usar os cueiros laváveis
como os que se gastavam dantes. 
–  E que me mije o meninho no colo…? Porque isso era o que acontecia
dantes, agora com estes descartáveis e com tantos adiantos, está uma sempre
preparada…   e   não   quererás   que   volvamos   ao   da   verça   em   vez   do   papel
higiénico, porque a horta fica longe,… é que dantes era ali o retrete.
Por   sorte   a   estes   que   vêm   de   volta   não   lhes   calha   amiúde   passar   por
Penacova, que senão… já não saberiam se seguir ou ficar parados. Às vezes os
de Penacova escutam cousas dessas na televisão, mas então fica a cousa no que
é… “é película,… fazem­no ver”

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  119
Como quer que fosse, ele aos dous agentes ainda mal não chegavam a
Penacova e até o coração lhes começava de ir devagar, quiçá tinha algo que ver
coa altitude da  montanha  que, como diria o outro, não é o mesmo.  Ora de
certo, quem o sabe? Aquele dia sentiam­se eles muito à vontade caminhando
pola rua do Rego abaixo, iam em mangas de camisa e sem gravata. Na mão o
bloco das perguntas e na cara um sorriso amigável. Quando chegaram onde a
casa do Ferreiro viram a porta da forja fechada e olharam para arriba… a porta
do corredor estava aberta, e lá dentro, sentado no escano, estava o tio Serafim,
que lhes acenou coa mão para que passassem adentro. O tio Serafim ia algo
velho, e dês que já não valia para a forja, que fora a companheira que marcara
o   latejar  do   seu   coração   ao  longo   da   vida,   ficava  só   no   corredor   ainda   que
gostara bem de ter companha. Eles passaram e sentaram a petição do ferreiro;
Riba sentou ao lado dele no escano, e o seu chefe numa cadeira à direita, quase
enfrente do tio Serafim. 
–  Olha,   olha…  então   vocês   são   os   forasteiros   que  andam   a  visitar   este
nosso mundo…
– Pois sim, somos nós… 
E entretanto o mais velho dos agentes dizia isto, olhou para o tio Serafim,
que  teria  bem  para  aí  uns   noventa e tantos,  e viu que na orelha  levava um
audiofone. À primeira pensou que era uma fatalidade, mas depois pensou que
não era tão má cousa que o tivesse porque é certo que nestas idades quer mais
quer menos todos lhe topam a falha ao ouvir, e assim sequer, sabemos que nos
ouve.   Acrescentou:…   e   já   que   estamos   aqui,   poderíamos­lhe   pedir   que   nos
contara o que souber você da pia?
–  Sim, sim eu bem que lia, e ainda leio se tenho o que, escusado é dizer
que o que é vagar não me falta. Olhem, trai­me o meu neto os jornais atrasados
que vai juntando ao longo do ano, é que ele vive fora daqui e claro, trai­mos
quando lhe ligar. E eu leio tudo o que vem neles, até as temperaturas todas do
mundo. O outro dia saiu uma carta dum homem que falava disto mesmo, não
das temperaturas… senão de se se lia ou se não lia. E publicaram­lha aí no
diário, sim, sim…como lho conto, agora um pode mandar as cousas aos jornais
e eles publicam­nas e não se passa nada. Não é como dantes, que havia que
andar medindo mui bem o que se dizia, quanto mais o que se escrevia… Ora

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  120
este fulano que escrevia no jornal do outro dia, desses que me guarda o Daniel,
penso que era num dos boletins de Agosto, a ver se o tenho… é uma notícia
que inda não tem nem um ano… 
O  tio  Serafim   fez   ademães  de  querer   buscar   na   moreia   de   jornais   que
tinha ao seu lado no escano e depois disse…
– Mais não é preciso que o colha, posso­lhes repetir o que dizia…, o que
escrevera a carta tinha um nome assim como catalão, é que o Daniel mora em
Barcelona, … não me vem arestora à cabeça como se chamava, ora o que dizia
inda não me esqueceu, e isso é o que conta… Pois diz­se que segundo conta o
tal catalão que escreveu a carta, que eu não tiro nem ponho, se por mentira
veio   que   por   mentira   vá…   mas   segundo   o   tal…   Albert,   veio­se­me   agora   à
cabeça, chamava­se Albert, Albert… não sei que mais. O tal Alberte diz que,
segundo uns estudos que se fizeram, os políticos de agora deixam muito que
desejar a respeito dos seus hábitos de leitura. Que manda…! Poder falar assim
dos governantes…!
E baixando um chisco a voz o tio Serafim acrescentou:
– …E seica, que olha que eu não sei se o crer, que esse presidente que há
agora, esse último que entrou das direitas, é o que menos lê de todos eles. Ele
diz­se que a cousa vai a menos e que se isto segue assim, que os livros chegará
um dia no que desaparecerão.
– Pois homem, pois é,… E da pia, que me diz você da pia?
– Como? Que o que lia? Pois o que podia. Dês que o Daniel me guarda os
jornais não tenho queixa, mas antes lia até o que vem nos macetes do tabaco…
o que ligasse. O caso é ler algo, para não perder aquele costume, depois de que
o tens colhido, claro. Porque também vos direi que aprendido ninguém nasce.
E não é assim de hoje para amanhã que um lhe colhe o gosto à cousa. Não, que
vai ser. À primeira custa até de manter a vista no carreiro… quanto mais! Vem
sendo como o da arada; a primeira leira na que te atreves a ir detrás da rabiça,
minha   madrinha   querida…!   Não  te  quero  nem   contar   como   vão   ficar   esses
regos,   não   há   nenhum   direito.   Ora   depois   mole   e   mole   a   cousa   vai­se
compondo e uma vez que o sabes fazer já é pra sempre. Esse saber não há
quem cho tire, nem  o partem irmãos.  Pois  isto da leitura é­vos o mesmo,  é
questão de apontar bem co temão as palavrinhas e não soltar a rabiça; e se

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ligasse que te saltaras uma linha, pois já volverás ao rego, o caso é não perder a
paciência. Também, e seguindo co do arado, cumpre que se tenha boa relha,
que isso sei­vo­lo eu bem que apontei umas quantas. Se a relha não é boa o
arado vai aos golpes e colhe­che para onde quer, mesmo podes enrelhar uma
vaca,  ora  que,  se  a  relha   defende…! A relha vem a ser como o interesse do
leitor… se gostas do que lês não há linha que se possa resistir; isso é, por dura
que   esteja   a   terra,   mesmo   à   hora   da   decrua,   se   a   relha   está   apontada   a
consciência – e eu deixava­as como se fossem cutelos, Deus me perdoe – rego
vai e rego vem, abres a terra sem te dar conta. Tudo tem a sua ciência, e se dás
com ela, qualquer que seja a tarefa que empreendes, de ali em diante todos os
santos te hão­de ajudar… 
Quando o detective chefe escutou isto último espertou­se­lhe um grande
interesse   de   repente…   Tinha   sentido   o   que   dizia   o   velho   ferreiro,   e   isso
explicaria  porquê   eles  ainda  não  deram  convencido  a  ninguém  de  que lhes
contara o da pia… “Claro, agora compreendo” Entrementes ele andava com
estas reflexões, o tio Serafim seguia falando, e Riba procurava que não se lhe
escapasse nenhuma das palavras que saíam da boca do homem sem analisá­la
bem primeiro. 
– …e agora há muito que ler, não lhe é como nos meus tempos, dantes só
liam os mestres e mais os curas. O cura inda porventura era um homem mais
lido   que   o   mestre,   polo   menos   naqueles   tempos,   talvez   agora   têm   baixado
também…
Essas   últimas   palavras   sobre  o   saber  dos  cregos   foram   a  convergir   cos
pensamentos   do   detective,   que   andava   a   buscar   onde   podia   topar   esse
elemento científico que lhe abriria o caminho das perguntas como relha que
labora na terra… Claro, o abade, como não se lhe teria ocorrido antes? Iriam ao
lugar de repouso onde morava dom Aurélio, o velho abade, e falariam com ele.
Se há alguém que saiba algo esse será ele. Aquela entrevista ajudara­os mais do
que   eles   poderiam   ter   antecipado,   e   com   mais   atenção   que   antes   escutava
agora o que o Serafim ia dizendo.
– …pois olha que te anda a cousa bem ao revés, agora que se pode ler o
que se quiser, pois não vai a gente e se nega…? Claro que tampouco fica já
quem are as terras, nem quem aponte uma relha… se quadra vai tudo junto,

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fruto   da   mesma   doença…   mas   eu   estou   falando   demais,   falem   vocês   que
seguro   que   têm   cousas   mais   importantes   que   contar;   eu   só   sou   um   velho
ferreiro que já nem ofício tem, nem ninguém a quem lho deixar, quanto mais
saber do que falar.
– Não, você disse cousas que nos serão de grande ajuda….
E enquanto o detective dizia isto, o tio Serafim botou a mão e pôs­se a
apalpar na orelha, mentres dizia: 
– Perdoe você, que não escutei o que me dizia… é que tinha a cousa esta
baixada para não me aboujar enquanto eu falo… siga, siga, que agora já lhe
ouço bem.
– Nada, é que nós já nos temos de ir indo.
–  Pois que mágoa que tenha de ser assim, porque com vocês dava gosto
de falar.
Despediram­se do senhor Serafim, que ficou lá no seu escano com um
dos velhos diários na mão e entoando uma canção que a eles lhes pareceu mui
agradável,   ainda   que   desde   abaixo   não   podiam   entender   o   que   dizia.
Perguntaram­se se o senhor Serafim baixaria o volume do aparelho da orelha
para não ouvir as suas próprias melodias, ou se pola contra, aproveitando que
ouvia bem agora, queria saborear a sua cantiga. Contentes por ter dado coa
ideia de visitar ao velho abade marcharam rua arriba em direcção ao seu carro.

* * *

Atinara   bem   o   Alcaide   querendo   parar   mais   cedo   a   outra   noite…


dissera­lhes aos  companheiros  que lhes chegava bem o tempo,  e assim era,
numas poucas noites estarão na sua próxima fonte, a Fonte do Jardim. Só umas
quantas   jornadas   mais,   portanto   ele   guiaria   devagar,   para   quê   matar­se   se
tinham   lua   avondo   para   chegarem.   Na   verdade,   pensava   o   Alcaide,   que
também tivera sorte, por aqui por onde andam o terreno tornara­se agradável e
ademais   ao   irem­se   achegando   à   aldeia   os   caminhos   andam   algo   melhor
governados e tudo são facilidades. Deve de ser o seu destino, que sempre se
encarrega de lhe dar a ele a melhor parte. Talvez haja muitas cousas que já iam
no seu sino, como aquilo de nascer para ser alcaide para sempre. E vão esses,

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que não fazem mais que fumaceira, e fazem­lhe perder a cabeça. O desses não
tinha  nome,  fazer  que  se  torça assim o destino dum homem… que nascera
para mandar. Aturou­os quanto pôde, e mira que nas aldeias onde havia destes
ele sempre lhes dava graxa…, fazendo como que os entendia. E mas eles não se
contentavam com nada. As últimas obras públicas que ele recorda ter feito em
Penacova,   quase   os   tem   que   obrigar   a   aceitá­las   e   compreender   os   seus
benefícios. Ele queria­lhes fazer uma calçada como tinha feito noutros lados.
Deu­lhes   a   escolher   por   onde   é   que   a   queriam.   Polo   meio   do   lugar   estava
descartado porque senão depois já não passam nem os carros, ou os tractores,
que vêm a ser o mesmo. Isso qualquer o entende, e eu compreendi­o também.
Mas logo vai e ofereço­lhes fazer uma calçada ao longo da estrada que vai do
lugar até ao cemitério, e vão eles e dizem que não, que eles não gostam… que
não sei quê de estragar a paisagem rural, e não sei quantas cousas mais. Vou eu
com toda a minha boa intenção de lhes levar algo de progresso e modernidade
e saltam­me com essas parvadas… e não sei que mais do meio ambiente... E
que ademais os mortos não precisavam de calçadas para os seus passeios, que
havia  que  fazer   algo  mais  polos  vivos…  Vamos,   que ainda  se  riram à conta
minha.   Pois   logo…   que   vos   parece  se em  lugar   de nessa   estrada  fazemos   a
calçada da aldeia até à Ranha?   “Sim claro, mui atinado, para que passeiem as
ovelhas que são as que vão para esse lado… ou senão para subir­se por elas e
coa carretilha ir às verças…”  Pois logo não faço nada e assim não me meto em
sarilhos. E eles venha é dá­lhe co que eles queriam…  “nós queremos empedrar
aí abaixo a canelha que vai ao Campo, e falando do cemitério, ali não nos viria
mal uma bilha para colher água, que há que a andar carrejando desde o meio
da  aldeia…   isso   sim   que   faz   boa   falta”.   “Olha   que  são   burros”   –  pensava   o
Alcaide –, “não entendestes nada, o dinheiro já está aprovado e, ou vos coloco
as aceras, ou ficais sem nada”  E aí foi onde quase lhes ganhei a partida, porque
alguns avarentos, que não podem rejeitar nada, começaram de reformular o da
calçada essa da estrada…   “Homem, se os vai devolver…, melhor é isso que
nada”       “Mas   olha   que   sois   néscios,   e   não   vos   valorais   nada   –   seguia   um
lenha­verde, ou até penso que era ‘uma’ – a calçada aqui escaralha a paisagem,
que é o único que nos fica já, ainda que já está bem escaralhada…”   “Mais olha
que lá ao monte a calçada não chega, não escaralha tanto a paisagem, vamos

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  124
digo eu, ora eu muito disso não entendo…” – o avarento treme só de pensar
que um peso escape – Mas eles, nada, seguiam e seguiam e seguiam… “Mirai o
que   vos   digo!”   –  segue   a   dizer  a  da  saia   verde,   enquanto  saca  as   mãos   dos
bolsos dos seus  jeans  e as move gesticulando – “…uma calçada cara à Ranha
ficaria   tão   bonita   como   uma   vezeira   de   ovelhas   pascendo   na   Praça   do
Obradoiro  em Santiago de Compostela”   E lá gargalhadas, e eu, canso já de
tanta risada dos de Penacova, estive para marchar, mas afinal, e para não ficar
tão mal, porque alguns ainda me votavam, os mais deles eu diria, autorizei o da
bilha para o cemitério, e marchei dali como fugindo do inferno. Mas eles nunca
se contentam, parece que não lhes chega nada. Arranjei­lhe os poços de lavar,
onde havia um velho de pedra, no seu lugar fiz três novos com cimento, um
para beber o gado e outro para lavar, e o outro para…, três, para que não se
queixem,   e   tampouco   gostaram   deles.     “Nós   queremos   que   nos   arranjem   o
forno que está caindo aos cachos”.  E para que querem o forno se não cozem?
Vão lá para aí vinte anos que não cozem nada e acordam­se agora de se lhes
chove no tendal, ou que se o pavilhão precisa uma porta nova, e dá­nos algo
para a pá, o rodo e mais o vassoiro, e que não lhe metam tijolos refractários,
que para cozer é preciso usar os de barro… Pedir, pedir, pedir,… e os que mais
pedem são os que menos me votam; ora claro, por não ficar mal cos velhos,
que são dos que me eu nutria…, e por certo não de todos, que em Penacova já
desde a época de Franco houve desses revirados que falavam de política e que
não iam muito à Missa; claro que enquanto não morreu o Velho estavam todos
calados, e eu feliz como o rapaz que queria ser alcaide. Ora dês que morreu o
Velho, estes, junto cos barbas­verdes, e mais algumas mulheres, fizeram­me a
vida impossível… até que quase perco o sentido, e aconteceu o que tinha de
acontecer. 
Estes pensamentos traziam ao Alcaide triste e mal­humorado. Porquê não
o   queriam   todos?   Se   ele   era   o   melhor   alcaide   que   tiveram,   ainda   mais   que
melhor,  ele  era  quase   que   o  único  alcaide  que  tiveram…  e  mas  alguns  não
depreenderam a querê­lo. Em que falhou? Que teria que ter feito que não fizera
para   contentá­los?   E   com   aqueles   pensamentos   chegara,   quase   sem   ele
decatar­se, à primeira fonte da sua guiada. Era cedo, e depois de beber eles e
mais dar­lhe a sua parte à pia, sentaram à beira daquele formoso manancial.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  125
Era a Fonte do Jardim. Com uma água esquisita. Com uma paisagem nocturna
única.

* * *

Por certo que Nuestra Región não volveu a mencionar o assunto aquele do
velho…   sim   homem,   sim,   aquele   que   namorara   e   se   fora   lá   ao   Caribe   coa
mocinha aquela nova em lua­de­mel sem casar nem nada. Eia, isso sim que
está bem feito! Comer o mel sem aguentar o aguilhão…! Quem sabe, se calhar a
cousa não foi adiante e não vão arejar assim o sofrer do pobre homem, que já
lhe chega bem com não poder fazer a sua obra benéfica e teve por riba que
perder tão pronto a moça, agora que lhe saíra. Ou diz­se que pôde morrer, que
era bem velho… homem, velho, velho, não era, mas com esses desgastes que se
diz que lhe levava fazer vida de… de como se fosse moço, vá! Pois não se diga
nada…, olha que os golpes fazem amolecer até as pedras. Mas não, mulher,
não pode ser, que se morrera já se teria sabido polo jornal, não sim? Pois claro,
não iam desaproveitar uma ocasião como esta para lhe brindar homenagem a
um homem que lutou toda a sua vida por… polo que fosse, isso é o menos
importante… Mas um homem lutador bem merece ser reconhecido  quando
morrer,   senão   é   como   se   não   tivesse   vivido.   E   ele   viveu,   vá   que   viveu.   E
viveu­che bem. Mas agora de morto Nuestra Región já nem sequer se lembra de
que ele queria ter feito a sua obra benéfica, e por culpa de que ninguém topara
a pia ia ele ter que deixar este mundo sem cumprir esse desejo… ele, que não
estava afeito a deixar assim como assim um desejo sem saciar. Homem! É que,
se calhar, ultimamente andava tão saciado doutras cousas que nem sequer se
apercebeu  que ia deixar este mundo sem fazer a obra essa. Ele quereria ser
lembrado por algo mais que por ter ido ao Caribe coa mocinha essa que… que
quem sabe que andará agora fazendo a pobre. Terá­lhe deixado algo o velho?
Mira   que   se   ainda   por   riba   vai   e   não   lhe   deixa   nada,   sim   que   seria   foda…
Homem pois é, mas ela já sabia bem a que se expunha, ora que uma cousa é
saber e outra saber… Porque se soubera não teria… ou talvez sim… A gente
é­che mui má de entender, e isso são­che tudo murmurações, ou pensamentos
dos que não lhe querem bem. Seguro que ele está por aí vivo, o que se passa é

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  126
que há gente à que lhe dá reganho que os ricos vivam tantos ou mais anos que
os   pobres.   Homem,   pois   também   não   estaria   mal   que   fosse   uma   cousa
proporcional… tu queres viver melhor, pois gasta­se­che a cousa antes, e agora
morres novo… e tu, aquele outro de acolá,  vais­te sacrificar e não  dilapidar
nada, … pois vais viver algo mais… e assim se calhar isso de ser milionário não
tinha  tanto  aquele, e a  gente seria menos invejosa uma da outra, e não lhe
desejariam a morte a ninguém…, vamos digo eu… Ora quem o sabe, se calhar
nem morreu. 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  127
Capítulo VI

A FONTE DO JARDIM

Entre   coucheiras   de   juncos   e   de   fentos,   onde   a   primavera   espargiu


generosa as suas flores, ali, no meio da regata húmida e frondosa, abrolha a
Fonte do Jardim. À sua esquerda ficam as touças do Castelar, que bem seguro
recebem esse nome por subirem­se os seus carvalhos quase até às fraldas do
Castelo Velho. Em frente, os lameiros da Alobada descansam agora, nem a água
da rega precisam receber de noite; são eles ricos e fazem sentir rico a quem os
contar entre as suas meras. Fazem sentir afortunado a quem tiver a sorte de os
ver, ainda que só fosse estando de passo e no meio da escuridão, como lhes
acontece a estes três viageiros da noite. A humidade desta fraga que estoura de
tanta   vida   que   mantém,   carvalhos,   vidoeiros,   castanheiros,   amieiros,
salgueiros, sabugueiros, cepas de vimeiros, azevinhos, loureiros, sanguinhos,
ameixeiras, espinheiros, gestas, piornos, uzeiras, carquejas, tojos, carpaços,…
dá­lhe ao verde o seu senso plural. Nenhum dos três homens sentira nunca,
apesar de que a luz que os alumia não sobrava, um abraço como o que a Mãe
Natureza lhes estava dando  no Jardim, e que cada um ao seu jeito estava a
experimentar. 
Ainda havia vagar até que chegara a hora de marcharem, portanto os três
e a pia beberam e gozaram das sensações que mesmo os anovavam. Beber e
empapar­se.   Dom   Narciso   sentia­se   um   coa   terra   e   quis   incorporar   à   sua
vivência   àqueles   seus   companheiros…   se   eles   eram   parte   da   terra,   daquela
deviam,   por   força,   formar   parte   também   dele.   E   Narciso   olhou­os   com   tal
franqueza   que   os   dous   homens   pareceram   sentir   aquele   abraço   emocional.
Perfeuto quis torcer a cara, dar a volta e olhar para outro lado, mas não o fez e
em  vez  disso   resistiu.   As   bágoas   em fio   face   abaixo.   Dentro  a  batalha  entre
sentires que semelhavam contrários, e afinal, a calma. Enxugou os olhos coas

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  128
costas das mãos e ajoelhou­se cara à fonte e bebeu. Com cada golo enviado
sentiu   como   aqueles   pedaços   negros,   que   se   lhe   desfizeram   coa   luta,   eram
lavados e expulsados fora dele. Já não os sentia.  Já não  mancavam… fora o
medo aos espelhos da alma, fora o medo à mornura do olhar amigo, fora o
medo   a   querer­se   a   si   mesmo.   Por   primeira   vez,   num   tempo   que   a   ele   lhe
parecera eterno, Perfeuto gostava de olhar o seu próprio reflexo na água limpa
do Jardim. Ergueu­se, caminhou até Narciso, e pondo uma mão sobre o seu
ombreiro,   disse:   “graças   amigo”.   “Não   se   merecem,   irmão”   foram   as   tenras
palavras   de   Narciso.   Sentaram   nas   pedras   da   beira   do   caminho   e   os   dous
buscaram o Alcaide coa olhada. 
O Alcaide, de costas para eles e a fonte, lá a uns poucos metros, estava de
pé direito cos braços caídos em frente dos carvalhos. Ele também quisera ter
experimentado   o   que,   a   julgar   pola   sua   reacção,   fizera   estremecer   o   seu
companheiro.   Ele   também   recebera   a   mirada   de   Narciso,   ora…   recebera­a
realmente?   Porque   ele  não   sentira   nada.   Que   levava   ele   dentro   que   parecia
filtrar   tudo   o   que   até   ele   chegava   deixando   assim   estéreis   os   mais   sinceros
intentos de comunicação? De que dianhos estava ele feito? Nem sequer seria de
manteiga, que a manteiga tem a capacidade de tremer e até de se derreter co
calor. E ele não sentia nada. Ele era como aqueles carvalhos aos que tanto lhes
tem  que   chova   ou   vá  calor.  Ele  devia estar feito de pau. De  madeira seca  e
velha.   E   com   aqueles   pensares,   que   não   sentires,   foi­se   bosque   adentro   e
desapareceu.   Até   a   noite   seguinte   não   o   volveram   ver.   Narciso   e   Perfeuto
falaram e beberam e deram água à pia…   “Toma tu amiga, que nos trazes a
todos por duros caminhares” dissera Perfeuto com um tom que a Narciso lhe
parecera   tranquilo   e   até   tenro.   Narciso   achegou­se   com   as   suas   mãos
carregadas   de  água   para   lhe  dar  também  ele.   E   os   homens  perguntaram­se
polas sedes da sua companheira de pedra; mas não tentaram topar resposta
em vãos exercícios intelectuais. Não, a sua não era realmente uma pergunta,
era só um querer fazer próprio o sentir da pia de pedra. Uma pedra que cada
vez se via  mais  reluzente e dourada.  Aquela noite quando  a esconderam na
beira da folhagem da carvalheira, trataram­na com muito agarimo… como se
fosse um ser vivo. Até um deles dissera: “aí ficas sozinha até amanhã à noite”.
Mágoa   que   o   outro   companheiro   não   pudesse   participar   daquele

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  129
renascimento, onde andaria o Alcaide? Aguardaram um bocado. Não chegava.
Narciso e Perfeuto marcharam juntos para o dia.

* * *

–   …Vês  tu   como   levava   eu  razão,  e  Nuestra   Región  não   falou  nada   do
abade esse que assou os santos?
– E a ti que mais che tem, se tu só lês o chiste do Carrabouxo? 
– Que terá que ver isso! Eu bem vi que não puseram nada de nada, ainda
que eu não o pensasse ler, eu para perder o tempo chega­me co chiste.
– Pois não fazes mal de todo, porque eu leio quase por inteiro o que diz o
jornal e ao cabo sempre penso que foi uma perda de tempo…
– Ai pois logo por sorte a ti tempo não te falta! Que senão…
–  Quê?   O   que   me   sobra   a   mim   é   vagar,   que   aqui   nesta   Delegação   da
Conselharia não há nada que ranhar…
– Então tanto che tem, dum jeito ou doutro há­lo ter que matar…
–  É o  que eu digo, e o jornal vem­me ali de graça,  oh, senão também,
caralho! Um cão por ele não malgastava, não tivesses medo.
– Homem, eu o chiste guicho­o ali na taberna, e depois passo pra ali um
pedaço de parola cos gandaias do Pardieiro e já não che tenho vagar para mais
nada, mas tu lá sem nada co que te distraíres, nem gente à que atender, que
vais fazer…?
–  Nada homem, nada, se não fosse por  Nuestra Región encheria­che­me
eu de pensar…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  130
* * *

…Os   agentes   iniciaram   aquela   entrevista   carregados   de   expectativas,   e


fizeram um trabalho excepcionalmente paciente. De não ser assim já se teriam
marchado nos primeiros minutos, logo de ver que o abade desconfiava tanto
deles. E eles volta a lhe assegurar que não tinha de que se preocupar, que eles
vinham de boa fé; mas isso da boa fé já não era suficiente para aquele homem
algo avelhentado pola vida de semi­reclusão voluntária, ou por vai saber tu o
que…
– …
–  Não, não tem nada de que se preocupar, como já lhe disse, nós só lhe
queremos falar dum assunto relacionado com uma das últimas freguesias onde
você disse missa, mas não deve apurar­se, que nós só estamos interessados em
ver se a sua memória nos poderia guiar nalguma direcção para poder seguir
investigando   o   tema   que,   desde   há   uns   meses   já,   nos   ocupa   e   ao   que   não
damos entrado bem.
– …
–  Sim, pode­se dizer que nós somos como… vá, que pertencemos assim
como à Polícia; mas nós só vimos a falar com você para ver se logramos alguma
pista que nos leve a saber algo da pia desaparecida.
– …
– Não, nós não pensamos que fosse você, que já nos disse que não sabia
onde fora parar quando a levaram do museu, mas a nós o que nos seria de
grande ajuda é saber se você tinha alguma informação de quando a pia fora
levada de Penacova por primeira vez, e não desta última desaparição.
– …
– Não, nós só estamos interessados pola pia. Nem os altares barrocos nem
os confessionários, nem mantéis ou cousas polo estilo nos preocupam neste
momento…

Mentres o mais velho dos agentes seguia a levar o peso daquela monótona
conversa,   Riba   tratava   de   imaginar   os   altares   barrocos   dos   que   o   abade   se
pusera   a  falar.   É  certo   que  eles  não   entraram dentro da igreja  nunca,  entre

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  131
outras cousas porque eles visitavam Penacova em dia solto e daquela a igreja
estava  fechada.  Quando   se  encontravam  com alguém  a quem lhe poderiam
quiçá   perguntar   pola   chave,   preferiam   aproveitar   para   lhe   fazer   perguntas
relacionadas coas sua investigações, e a cousa foi indo sem que eles passaram
nunca   adentro,   tendo   que   conformar­se   coa   olhada   através   dos   vidros   da
janela que dá à parte de atrás do sagrado. A igreja estava fechada para evitar
que  desaparecera  nada…  Mas  como  dizia o  outro… – “Pois  não  sei eu  que
haviam  de levar da nossa  igreja, como não levem o abade, outro dianho de
cousa ali não fica!” – “Mira que eu conheço bem igrejas, e mais nunca vi uma
tão desvalijada como a nossa” – “Homem, está calada por Deus, que até lhe
arrancaram as lousas da parte em alça onde estavam colocados os altares…
agora, Deus me perdoe, parece uma corte para as vacas” – “Mesmo dá reganho
ouvir missa assim … e que me dizes dos poucos santinhos que ficaram?”  “Isso,
felizmente alguém teve a ocorrência de os esconder das rapinheiras mãos do
pároco   durante   aquela   temporada,   que   senão   também   teriam   desaparecido
canda o resto, e nós ficávamos a vê­las vir” – “Ai, eu hoje vou­vos ir à missa do
Corpus   a   Ameixeiras,   que   ali   tão   sequer   ainda   não   desfizeram   a   igreja”   –
“Contudo, os cregos roubam muito de Deus…”   Pedaços de conversas como
esta   batem   de   vez   em   quando   nos   miolos   do   abade,   e   isto   deixa­se   notar
porque ele relampa muito os olhos e põe­se como se vira o demo ou a sua
própria  senha…   mas   neste   instante   o   senhor   abade   escuta   o   que   lhe  diz   o
detective e parece sossegado.

– …nós não temos nada na sua contra, ao revés, eu diria que nos merece
você o respeito devido a um servidor da comunidade… em certo jeito como
nós mesmos. E esta é precisamente a razão pola que o seu testemunho nos
parece de grande valor. Você passou muitos anos naquela freguesia e tratou
com toda a gente que poderia ver ou estar interessada na pia que desde sempre
estivera ali na igreja… Aguardo que não duvide das nossas intenções, dou­lhe a
nossa palavra. – disse assim, sem sequer consultar o Riba coa olhada. 
O abade ficou calado um pouco, como processando o que lhe diziam…
ou   quiçá   estivesse   sendo   visitado   por   algum   daqueles   diálogos   que   desde
dentro do seu crânio lhe boureavam a cabeça, e depois pôs­se a falar outra vez. 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  132
Riba   aproveitou   a   desorientação   do   abade   para   seguir   a   trazer   à   sua
memória   lembranças   da   Igreja   de   Penacova.   Ultimamente   andaram
limpando­a por fora e ficara com essa cor amarelada característica da pedra
velha que a ele lhe parecia formosíssima. – “andam a ponhê­la mui gabacha” –
sentira   Riba   numa   conversa   um   dia   –   “se   calhar   é   que   também   a   querem
levar… claro que só têm que levar as paredes, o resto já lá o têm…” – “e por
sorte   os   homens   daquela,   quando   marchara   o   abade   com   tudo,   não   lhe
deixaram levar o relógio, que senão… onde ele iria?” – “Não saberíamos nem a
hora que é” “Ele não, filha, não”. Riba participava da admiração colectiva para
aquela pedra com forma de homem que está lá na direita onde começa de se
erguer o campanário, e que dá a hora co sol. A Riba dera­lhe algo que matinar a
diferença que havia entre a hora que marcava o seu relógio de pulso e o de
pedra, quase duas horas… uma hora era explicável, por aquilo da mudança
para o aforro de energia, lá onde suponha tal, ora duas… mas não tardou em
aperceber­se   de   que   a   hora   que   se   veste   nas   agulhas   dos   relógios   é   a   do
Mediterrâneo,   ainda   que   aqui   se   viva   na   do   Atlântico,   como   na   vizinha
Montalegre. O abade pôs­se de novo a falar:
– …
–  Mire eu não posso fazer outra cousa que dar­lhe a minha palavra; ora
bem,   posso­lhe   prometer   que   o   que   saia   desta   reunião   não   terá   nenhuma
repercussão negativa para você. Só queremos que nos ajude na procura da pia,
não prejudicá­lo a você.
– …
– Não, a você ninguém o acusou de nada, nem há denúncia de nenhum
roubo   de  altares  ou   confessionários  ou  cousas  assim… que já sabemos  que
você   levou   tudo   isso   mas   não   foi   para   vendê­lo,   que   não   serviam.   Não   se
incomode,   que   já   mais   gente   nos   disse   que   os   altares   andavam   caindo   e
precisavam que  alguém lhes  botasse uma mão… Ora como o orçamento co
que você se tinha que arranjar não lhe abundava para governá­los, pois que
decidira  outro   meio  para   resolver   o  assunto  antes   de que  lhe  caíra   o  Santo
António em riba, que já andava buligando lá no alto da repisa. E sim, também
sabemos que por causa disso você colocou o santo no chão, num recanto junto
co Santiago, a quem lhe partira a espada e mais perdera o chapéu, e coa virgem

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  133
do Carmo, que andava ela mui mal pintada… e quando depois marchou cos
altares esqueceu os três ali no chão… e que quando volveu por eles para os
levar para a incineração final, não os topou por lado nenhum e logo mais tarde
compreendeu que a gente os levara e os escondera nas suas casas, que também
cumpre valor; e também nos disse que afinal os devolveram à Igreja, mas que
ao Santo António lhe fizeram um banco de madeira, ao Santiago lhe colocaram
um livrinho tapando o pedaço de espada rota que lhe ficava na mão e levava
agora um chapéu feito de palhas… desses de ir à seitura, e que à virgem do
Carmo traziam­na toda pintada que era um primor… E claro, já era tarde para
os levar e se desfazer deles… ora já sabemos, que no­lo repetiu você muitas
vezes,   que   não   eram   para   vender   nem   cousa   nenhuma…   que   isso   só   lho
apunham as más línguas, mas de certo não tinha nada. Que você sim que o
queimara tudo no pátio da reitoral da outra freguesia de abaixo, porque em
Penacova você já não tinha reitoral, que a vendera nada mais chegar, e que
agora no que fora a reitoral de Penacova estava a taberna, que era a única tenda
que havia no lugar, e da que se servia a gente para comprar desde aspirinas até
lixívia,   sem   esquecermo­nos   do   tabaco,   as  pilhas  e  os   pitos   congelados…  E
claro que tem razão… por culpa de estar ali a taberna… que tampouco se podia
fazer ali lume no meio do pátio e que ardera tudo junto cos altares e todas essas
cousas douradas e retorneadas fora de moda… Mas nós já o sabíamos e não
desconfiamos, como outros fazem, de que você não lhe chispara um fósforo a
tanta cousa inservível… E também concordamos com você em que a ideia de
queimá­los era melhor que a de enterrá­los no horto… que sim, que você à
primeira   dissera­lhes   aos   vizinhos   de   Penacova   que   os   enterraria   como   lhe
sugeriram  eles…  mas  que  logo você  pensou­o melhor  e que creu que se se
enterravam   tardariam   em   apodrecer   e   sairiam   quando   se   cavasse   ou
esgaravatassem os cães e não pareceria nada bem, portanto escolheu o lume
que derrete tudo a escape… E não se alvorice, que nós sabemos que não é certo
que lhes dissera o do lume para poder ir levando tudo para a outra freguesia e
depois vendê­lo tudo a um museu ou a um coleccionista privado de… donde
disse você que dizem que era o tal coleccionista?
– …

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  134
–  Não, se eu já sei que é tudo inventado por esses de Penacova que já
deixaram de crer nos curas e agora levantam­lhe contos para a gente ir por aí
pensando que os abades são todos uns aproveitados e uns desalmados... mas
não  se   preocupe  que   nós  isso já lho  sabíamos.  E  não  acreditamos  nisso   do
coleccionista que diz­se que viera de fora daqui, e que nem sabia falar o galego,
nem tão sequer o castrapo, e que lhe enchera a bolsa de dinheiro… ademais
tem você razão, quanto pensam eles que lhe podiam dar por uns altares aos
que   já   não   lhes   brilhavam   os   dourados   e  nos   que   alguns   santos   buligavam
entre as colunas retorneadas dos cangalhos…? E ademais eram mais antigos
que Matusalém, … nós cremos o que você diz, e por isso gostaríamos de que
nos falasse algo da pia…
– …
– Homem…! Como vamos nós pensar que você tentou queimar a pia? Já
sabemos  bem que  não, que ademais à pia ao ser de pedra não  lhe passaria
nada…   já   nos   ficou   claro   que   você   só   lhe   plantou   lume   aos   altares   e   os
confessionários e mais aos santinhos que deu apanhado… e também já nos
contou   que  alguns   se  lhe  escaparam…  e que não  era  culpa sua,  que fora a
gente a que os escondera nas casas… tampouco ia ir você de casalandreiro a
meter as ventas a ver se estava ali o Santo António ou algum dos outros. E tem
muita razão ao pensar que esses de Penacova ainda se haviam de rir à conta de
você se o fazia… e lhe diriam: – “Passe, passe senhor abade, que o santinho
está­lhe aqui connosco ceando ao quente…” E agarrando um tição desses mais
gordos da lareira acrescentariam: “ai, que se chamuscou um nada no lume o
coitado…! Se vê que bebeu muito vinho na ceia e deu­lhe o sono e caiu no
lume… mas olhe,  assim ainda lhe dará menos trabalho a você, não sim? Se
quer   rematamos   aqui   o   trabalho   e   assim   tão   sequer   ainda   nos   quenta   as
canelas…” E tudo o diriam só para burlar­se enquanto escondiam o santinho lá
no   fundo   da   ucha   entre   a   brancura   dos   lençóis   de   linho,   ou   envolvido   nas
roupas do casamento que guardam no mesmo sítio, ou até debaixo da erva no
presel do boi chegariam a esconder a Virgem… – “Porque em casa se calhar
dá­se­lhe por entrar a dom Aurélio e… a um cura não se lhe pode dizer que não
passe   assim   como   assim…   e   ademais   eles   coa   sua   lábia   vão­te   enredando,
enredando, e quando te queres dar conta já lhe disseste do ninho, e porventura

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  135
nem te apercebes… ai, mas eu amolei­o de raio! A ver se se atreve de entrar à
corte onde o boi!”  Por isso você não fez por topar os santinhos que faltavam, e
depois,   claro,   quando   apareceram   já   era   tarde…   e   não   é   certo   que   o
coleccionista não lhos fosse a querer… ainda que alguns dizem que depois da
repinta que lhe meteram à virgem do Carmo não havia Deus que a quisesse… e
isso   que   lhe   colocaram   bonitas   alfaias   a   jogo   coa   sua   coroa…;   contudo   já
sabemos que isso do coleccionista era mentira. Que você só fez o que fez, e
mais nada. 

A cousa seguia e seguia, mas o abade não soltava prenda, e tiveram que
marchar, mas não sem antes falar cos encarregados daquele lugar de repouso
por se escutaram a Aurélio falar alguma vez do assunto que lhes interessava.
Segundo   os   cuidadores,   havia   já   tempo   que   Aurélio   se   empenhava   só   em
repetir   a   história   da   queima   daquele   património   da   Igreja   de   Penacova   ou
património   de   todos,   segundo   a   gente,   deixado   ali   polos   antepassados,   e
roubado polos curas. Ele houve um tempo em que o crego chegara quase a
aceitar a ideia de que quiçá pudesse ser que tivessem razão os que diziam que
os vendera ao coleccionista  que viera da Terra Ancha. Alguns incluso diz­se
que lembram como o tal coleccionista presumia de experto e que até se gabava
de que sabia onde, e a quem lhas fazia. E assim aproveitando a ignorância dos
que desconhecem o valor do que têm, e pensam que ainda lhes fazes favor se
lho liquidas, ele ia­se pondo cada vez mais rico. “Pode­se­lhes roubar tudo o
que   têm   e   nem   se   apercebem,   …se   me   apuras   até   a   língua   lhes   poderia
arrancar, ainda que a levem na boca, e ainda que a levem fechada; porque a
mim,   como   sabem   que   são   de   fora,   não   me   ladram”   diz­se   que   dizia   o
coleccionista, se bem ele dizia­o na sua língua, que por certo não a deixava
descansar muito, que seica latricava até polos cotovelos. Ora esta aceitação da
possibilidade da venda e do coleccionista não durara muito, apenas uns meses,
e de volta coas luminárias. Os cuidadores não acreditam que queimasse nem
os santos nem os altares, bem seguro que os levou, e por riba com enganos
para que os vizinhos lhe carregaram tudo no carro… E a gente, de parva, não
desconfiara   nada,   e   isso   que   ele   repetia­lhes   a   todos:   “tende   conta,   que   os
quero intactos” ou talvez alguém sim que compreendera, mas tampouco era

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  136
boa cousa  ir contra o abade, que daquela ainda tinha algo de autoridade,  e
mais lábia para te fechar bem o bico se o abrias sem a sua licença. Ora bem,
enquanto  o  andava  rondando a imagem do coleccionista,  parecia o homem
mais   sossegado,   e   todos   desejavam   que   a   aceitara   definitivamente,   mas   ele
nada,   volta   co   lume,   e   daí   não   há   quem   o   tire.   Não,   eles   não   crêem   que
queimasse nem os santos nem os altares, porque senão, para que queria andar
co  trabalho de os levar para a freguesia de baixo,  onde ninguém, por certo,
cheirara o fumo nem cousa nenhuma? Ou é que para carbonizar os santos e as
outras trapalhadas não lhe chegava a eira das Cabras, mentes elas andam no
monte? Ou a da Linheira, que o linho deste ano já está maçado e mais fiado, ou
mesmo   a   da   Festa,   que   antes   de   que   se   celebre   já   se  haviam   de   apagar   as
chamas… E ademais fazendo­o ali teria muito quem lhe botara uma mão e lhe
ajudara a chegar o lume… “Eh tu, que fica atrás um cangalho de uvas que caiu
daquela coluna retorcida que botaste…!”   “Ai, pois bota para cá, caralho, que
estes para fazer vinho não valem…”   “E aquele santinho pequerrecho, de pêlo
crespo e dourado, como dis ti que se chama,… ou chamava?”   “Aí che passo o
braço da santa Luzia que deste lado não arde, e por aí tendes mais brasa…”
“Eh,   olhai  a  cor   da  labareda   que  faz  o  manto  daquele santo…!”    E  assim  a
foliada   teria   sido   para   todos…   e   ademais   a   gente   poderia   aproveitar   para
queimar os farrapos velhos, como faz uma vez ao ano, e aforrar­se­ia um lume,
e mais lenha e trabalho. Porque a roupa velha, só, não arde de gana e há­de
andar­se   sempre   a   remexer   e   acrescentar   lenha…   olha   se   teriam   ajudado
aqueles altares velhos tão sequinhos como estavam... 
Afinal   de   contas,   tudo   aponta   a   que   teria   sido   mais   fácil,   e   de   mais
proveito, que se armasse  a fogueira ali em Penacova. Isto era prova de que,
efectivamente, o da queima era uma escusa que dom Aurélio utilizava para não
ter que dizer que o vendera todo e se lucrara. O agente que dirigia a conversa
insistiu­lhes   uma   vez   mais   aos   cuidadores   que   tentassem   fazer   memória   e
lembrar qualquer comentário que dom Aurélio pudesse ter feito sobre uma pia
de pedra que também levara o mesmo caminho que os confessionários e todo
o demais. Mas a sorte tampouco estava ali para eles hoje, e logo de dedicar
muito tempo e esforço marcharam daquele lugar de repouso, perto da cidade
das  Burgas,   esgotados.   Foram­se  com  um  ar  de desesperança  e também  co

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desassossego que lhes deixara a teimosia do velho abade co lume; tanto dá­lhe
com as chamas que mesmo lhes parecia agora que saíam do inferno.

* * *

Narciso e Perfeuto chegaram de novo às beiras do Jardim. Vinham juntos,
e quando se iam achegando à fontela viram que ali, frente aos carvalhos, no
mesmo sítio que a noite antes, estava o Alcaide. Não se imutou sequer ao sentir
que   eles   chegavam,   semelhava   como   se   andasse   meio   hipnotizado   polas
árvores. Os seus companheiros fitaram um para o outro sem saber mui bem o
que fazer; ali ficaram de pé direito olhando ao seu companheiro, que seguia
sem   mover   um   músculo.   Depois,   Narciso   e   Perfeuto   sentaram   nas   mesmas
pedras que ocuparam a noite anterior, e miraram em silêncio para o Alcaide
que seguia ali tão quedo como os carvalhos que encarava. O tempo começou
de passar, mui a modinho à primeira e algo mais ligeiro depois, ou assim lhes
pareceu a eles. O Alcaide, que seguia em reunião com as árvores, semelhava
mesmo estar fora da dimensão temporal. Narciso e Perfeuto até duvidaram se
seria real aquela silhueta ou simplesmente era o espectro da noite anterior. Um
espectro não podia durar tanto, não podia ter resistido após todo o dia ao sol.
Em todo o caso seria a senha que já se andava deixando ver, sinal de que a
morte rondava já ao homem ausente. Para nenhum dos dous era de agrado a
ideia de que o seu companheiro fosse abandonar este mundo assim sem avisar,
sem rematar a travessia na que andavam, porque aquele não podia ser o final,
pressentiam que não. 
Diferentes  teorias   sobre   aquela   imagem   foram­se   sucedendo.  E  se   não
fosse o Alcaide? A dúvida fez­lhes saltar dos seus assentos de pedra, desde ali
eles não lhe viam o rosto… e com aquela escasseza de luz que havia, bem podia
ser outro o que ali estava de pé… e tão perto da pia… A pia! Perfeuto correu até
onde a esconderam a noite anterior enquanto Narciso se achegava ao homem
que, teso como uma candeia, ali seguia chantado sem se trugir. Era o Alcaide,
ou polo menos tinha as suas feições, ainda que não correspondesse à olhada
de Narciso nem quiçá sequer o vira. O Alcaide tinha os olhares perdidos pola
janela que mirava para o seu interior, na que ele se afincava desde havia uns

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dias.   O   que   via   deixava­o   sem   resposta   possível.   E   assim   ficou   até   que   de
súpeto,   quando   já   os   companheiros   estavam   sentados   de   novo   e   mais
tranquilos,   logo   de   saudar   a   pia   e   molhá­la   coa   água   fresca   do   Jardim,
desapareceu como a noite anterior. 
No céu algumas nuvens tapavam as guias que a cotio eles seguiam para
não errar no seu caminho. Perfeuto e Narciso perguntaram­se para onde é que
teriam que tirar aquela noite, mas ao não achar estrelas que os guiassem, ali
ficaram.   Falaram.   Escutaram.   Sentiam­se   cantar   as   cloucas   do   regueiro   do
Pradonovo. A água da fontela guardava silêncio. Seria verdade o que se diz de
que as águas de noite dormem? Aquelas do Jardim baixavam com tal sigilo, que
de   não   ser   polas   ervinhas   que   se   bambeiam   lá   no   meio   do   rego,   ninguém
poderia crer que estivessem em movimento. Certo é que viajam por terra chã
aqui nas beiras do recanto da fontela, e ademais o seu passear transcorre sobre
uma   almofada   de   morujas   onde   nem   os   passos   dum   gigante   soariam.   Mas
outras águas não corriam com tanta sorte; a algumas mesmo ao toparem­se
num dos remates da terra, só lhes restava tirar­se aos saltos polos rochedos
abaixo, fervendo como o caldo que escapa do cu do pote. Estas sim que hão­de
andar bem cansas de tanto brinco, e seguro que quando se lhes vem a noite,
dormem. Os vizinhos de Penacova polo menos assim o pensam, ainda que não
todos são do mesmo parecer…
–  Mas mulher! Como vai dormir a água? Isso que tu dizes não tem jeito
nem direito.
–  Pois não o terá mas eu digo­che a ti que dorme. Olha que aquela que
ferve a cachão lá em Chão­de­Lamas, que de dia mete medo o barulho que ela
arma, pois vai e colhe pola noite e dorme… se quadra é que aproveita o estar lá
agachada detrás do Penedo do Peão para dormir, ora diz­se que dorme toda a
noite.
– Parecer­lhe­á à gente, porque se calhar não a têm sentido rugir, ora, daí
a que durma…
– E logo diga­me, porquê não se sente? Porque de dia bem barulho que ela
mete, que até ressoa lá pola Xaravelha, por detrás do Castelo Velho e o Penedo
da Uzeira… mas de noite está calada, nem sequer um chio.

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–  Pois porque a gente não se pararia a espreitar ou não se achegaria o
suficiente para a sentir, que queres que eu che diga…
–  Pois eu tenho­me posto a espreitar e tenho ouvido até os ouleos dos
lobos quando andam à janeira, mas a água jamais a pude escutar.
– Ora mulher! Tu achegaste­te alguma vez de noite lá ao fundo de Aguiar
para ver se a cachoeira dormia ou ficava esperta?
–  Pois  não,   que  não  sou   tão valente  e tenho  medo,  e ademais não  me
havia de tirar as minhas dúvidas, que já é sabido que se te achegas muito, pois
quiçá já a espertas e daquela já não sabes que pensar.
–  Pois   daquela   já   sabes   que   está   esperta   e   ponto,   que   mais   queres
descobrir?
–  Eu queria saber se antes de que eu, ou qualquer outro, se achegasse o
suficiente como para poder senti­la, ela dormia.
– E como pensas que vai dormir?
– Coma nós, ficando caladinha e indo rego abaixo sem aperceber­se… 
– Pois há gente que fala mentres dorme, e alguns até se levantam, diz­se
que lhes chamam sonâmbulos.
–  Pois  não  pensara  eu  nisso… talvez os que pensam que as águas não
dormem é que sentiram a alguma sonâmbula dessas…
– Que não, mulher, que a gente sonâmbula faz cousas mui raras. Mira, aí
tens  por exemplo o  que fizera a Maruja da Cristalina dias antes de marchar
para Alemanha. Uma noite seica se ergueu e ceivou todas as portas das cortes,
deixando   sair   vacas,   bezerros,   porcos   e   ovelhas,   e   até   às   pitas   lhe   abriu   o
buraco do poleiro. Quando deram com ela ia tangendo tudo polo Eiró fora, em
direcção à Pedralta, caminho dos lameiros do Campo do Val, ou das leiras da
Portelinha, de seguro ninguém o sabe. Mas ela marchava coa fazenda toda para
algures.
– Ai! E como lhe colheria o sentido para ali…?
– Quem sabe…, se calhar é que se lhe fazia muito isso de ter que marchar
tão novinha para Alemanha e deixar aqui a sua vida, e não descansava nem tão
sequer de noite.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  140
– Não che digo que não, porque isso de marchar­se e deixar o sítio dum
não toda a gente o dá aguentado, para alguns diz­se que mesmo é como se lhe
entrara um andaço que não dão botado para fora.
– Diz­mo a mim, que o levo no sangue…
– E logo tu de quem o herdaste?
–  Da   minha   avó,     a     mãe     da   minha   mãe,     Deus     a     tenha     no     Céu,
chamavam­na Felesvina, eu não a acordei de viva. Ela, no que pegava no sono,
erguia­se, desfechava a porta com jeito, pola calada, e marchava a caminhar
desde aqui até Penalapa, donde viera para casar co meu avô. Deus os perdoe
aos dous. Ao chegar lá metia­lhe um bom susto a todos quando sentiam andar
na  cravelha   da  porta   para  entrar.  Quando  viam que  era  ela, então é que  se
assustavam deveras, porque cuidavam que algo mau ocorrera e que ela lhes
vinha avisar. Depois de descobrir o que lhe passava já não se assustavam tanto;
mas à primeira chegou­lhes bem.
– E logo porquê não lhe fechavam a porta e escondiam a chave onde ela
não a topara?
– Depois já o faziam, mas o meu avô à primeira até chegou a pensar que
ela se queria afastar dele e que por isso se marchara; e olha que ele a queria…
diz­se que quando a primeira noite que se ergueu e não topou a sua mulher na
casa, por pouco morre do desgosto, e até se lhe retirou a fala, e não sei que
mais.   Depois   quando   a   vieram   guiar   as   irmãs   dela   e   lhe   explicaram   o   que
acontecia, ele já se tranquilizou, e depois já guardava ele sempre a chave. Ela
era gostante do trato, pois tampouco lhe fazia graça saber que ia a andar de
noite por esses montes, e com tantos lobos que havia daquela! 
– E com isso a ela tirar­se­lhe­ia a mania, claro, não é milagre.
–  Que   se   lhe   havia   de   tirar!   Cada   vez   que   o   meu   avô   se   esquecia   de
esconder a chave, à manhã…u­la mulher? Rematou por atá­la com um rebite
ao pescoço… a chave, se entende…
– Daquela a tua avó sim que não teve mais escapatória.
– Mas olha que diz­se que ela se arranjava para dar­se uma escapada de
quando em vez lá a Penalapa, onda os dela.
– E como é que se arranjava se o homem lhe tinha a chave bem guardada?

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  141
– Pois às vezes andava co gado lá no monte e dava­lhe o sono e quando
queria ter tino já estava em Penalapa.
– Que problema para o teu avô!
–  Homem cala, que afinal acabou por rifar com ela, apesar do bem que
seica se entendiam…
– E daquela ela sim que pararia coas fugidas…
– Parar? Ele não; daquela nem sequer aguardava a prender no sono, que
ainda esperta colhia o andante e ia­se cos dela.
– E o teu avô a aguardá­la, não sim?
–  Em primeiras sim, mas depois à última acordaram de irem viver lá a
Penalapa; ali os dela também tinham muito capital, e a ela tocara­lhe uma boa
mera, assim trabalhavam o daqui e mais o de lá.
–  Pois   fez   bem   o   teu   avô   indo­se   para   lá   com   ela,   assim   quiçá
descansariam algo melhor.
–  Pois olha que  eu  não  diria tanto, que seica depois ela alguma vez se
escapou de lá para cá.
–  Que complicado che é isso de ser sonâmbulo, logo não me estranha a
confusão da gente co das cachoeiras…
– Não me venhas lá outra vez com isso de que a água dorme, que eu estou
farto dos dormires raros…
– Não che me estranha nadinha…! E mais já deverias estar afeito… sendo
da gente de quem vens sendo… a saber o que andarás a fazer tu pola noite!
–  Se tens muito interesse deixa a porta desfechada hoje à noite e verás
como o descobrimos juntos…
– Ai sim, homem! Era­che a conta! Eu para isso prefiro estar bem esperta,
que não sei das tuas intenções, e não me fio…
–  Pois para saber se che sirvo, primeiro hás­de me ter que provar… – e
arrimando a boca à orelha dela murmurou­lhe o velho cantar:

Esta noite hei­de ir alá,
meninha não tenhas medo,
deixa­me a porta atrancada
c'uma palha de centeio

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  142
A   Aurora   sorri   coa   cumplicidade   do   que   goza  por   sentir­se   parte   dum
mundo  próprio,  um mundo  para eles dous.  Um mundo fechado para os de
fora, para os que a palha de centeio se converteria em tranca de carvalho seco
que  só desde dentro se pode tirar. Ela sorri,  e vendo como o Manuel se vai
caminhando, imagina que um dia ela talvez terá que levar um rebite com uma
chave ao pescoço.
Narciso e Perfeuto falaram e falaram e aos poucos  espreitaram para as
touças, a ver se sentiam ao Alcaide, mas ele não apareceu. Onde se meteria
aquele   homem?   Se   tão   sequer   ele   mesmo   o   soubesse   poderia   quiçá   dar
resposta   àquela   e  outras   perguntas   que   o   acossavam,   e   já   não   se   teria   que
esconder   entre   os   carvalhos   que   tão  pacientemente   o  acolhiam  dia  e noite.
Ninguém   o   estranhava,   contrariamente   ao   que   noutrora   pudera   pensar
Narciso, o Alcaide não tinha mulher nem filhos; ele tudo o perdera por salvar a
alcaidia,   e   afinal   também   a   perdeu,   e   agora   até   ele   anda   perdido.   Os
companheiros aguardaram toda a noite mas ele não saiu. Eles marcharam. O
Alcaide passou o dia entre os carvalhos e de tanto silêncio foi­se­lhe abrindo a
janela da esperança; ajudado polas fisgas que por entre as canas das árvores
lhe baixavam a luz do céu, foi acougando. O pior eram as noites, ele não queria
ser   visto;   nem   sequer   polos   seus   companheiros,   que   de   seguro
compreenderiam o seu  sofrer;  nem sequer naquela penumbra nocturna. Ele
queria que só o vissem os carvalhos. 
De   dia   passeava   as   touças   arriba   e   abaixo,   observando   cada   rebento
daquela tanta beleza… aqui fechava os olhos e enchia os foles do peito coa
recendência da flor dum sabugueiro, …acolá arrancava as flores dos são­joãos,
e fazia­as estralar contra a palma da mão esquerda, …observava a pujança coa
que   os   gamões   das   abrótegas   subiam,   com   aquela   humidade   parece   que
mesmo se viam medrar. Quando a fome o avisava de que já passava outro dia
sem   comida,   ele   rebulia   nos   carpaços   e   coas   póutigas   maduras   que   topava
distraía o seu cativo apetite. Tanta beleza, tanta riqueza, e ele tão feio. Ele tão
pobre. Ele tão pouca­cousa. O que mais lhe amolava era não ter­se apercebido.
Saber   que   fora   protagonista   daquela   vida   de   tanto   despropósito,   de   tanta
ruindade, de tanta desconsideração com os demais e não ter­se apercebido de

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nada. Ter sido sempre como um carvalho que habitara entre os humanos  e
nem sequer se soubera carvalho. Mas talvez ele não fosse carvalho, que é esta
árvore nobre e amiga da sua terra. Não, ele fora pinheiro, de beleza ausente e
perene. Ele fora algo mais essa árvore monótona. Mas não, ele ainda fora pior
que o pinheiro que se deixa levar ali onde o plantam e vai medrando. Ele fora
algo mais activo no seu afã de destruir, mesmo a vida, ao seu redor. Ele fora…
sim,  ele fora eucalipto. Ele  envenenara a terra que o sustenta. Ele fizera­lhe
pouco fácil o viver a outros. Ele fora um estrangeiro que nascera aqui. Ele não
fora carvalho, que ia ser! Mas agora queria ser, como o carvalho, merecedor da
touça que o alberga. E ali ficaria até que o sentisse. Até que olhasse a sua mão e
visse   os   musgos   prateados   que   sobem   como   se   duma   pôla   de   carvalho   se
tratasse. Deitou­se no chão e recebeu o abraço da terra almofada que o acolhia
sem críticas, com silêncio aceitador que só se rompeu para lhe murmurar no
ouvido   o   anúncio   daquele   renascer   possível:   “Tu   também   Ovídio,   se   o
desejares,  tu  também podes  ser meu filho” E ele entrega a sua  alma àquela
mensagem.   Ele   quer   ser   filho   da   terra,   como   o   carvalho,   como   a   mesma
pedra…

* * *

Hoje Nuestra Región, num editorial eloquente e quase profundo, analisa a
função   dos   meios   de   comunicação   na   consecução   do   bem   social,   e   à   sua
contribuição   na   procura   da   justiça   e   a   transformação   da   sociedade.   Não   é
preciso   dizer   que   a   meta   do   jornal,   neste   senso,   é   conduzir   a   opinião   em
direcção   à   consolidação   de   uns   valores   (morais   e   espirituais)   cos   que   o
periódico comunga. O artigo faz uma reflexão sobre o papel que aos meios lhe
corresponde   à   hora   de   resolver   enigmas   como   o   da   desaparição   da   pia   do
museu. Este facto, que a muitos lhes poderia parecer pouco transcendente de
um ponto de vista social, não é tal para Nuestra Región, que sustém que do que
se trata não só é do seu valor material e artístico, ou se se quer até patrimonial,
senão do seu valor como símbolo de religiosidade popular, etc. etc.
Foi também num número desta semana onde teve cabida uma entrevista
ao   poeta   Budial,   após   receber   este   um   prémio   de   poesia   galega

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  144
contemporânea. E também foi assim como se deu a conhecer por primeira vez
o   nome   do   poeta,   Castor   Ribeiro,   que   ademais   da   poesia   tem   afecção   pola
antropologia   e   mais   a   arqueologia…   quem   sabe,   se   quadra   um   dia   destes
vemo­lo lá polos penedos da Rainha Loba dum pau matar duas lebres…

* * *

Narciso   e  Perfeuto   vieram  juntos   de   novo   também   esta  noite;  dês   que
chegaram às terras do Jardim juntam os seus atalhos lá onde lhes é possível e
fazem o resto do caminhar em companhia um do outro. Que lhes aguardaria
hoje? Poderiam seguir já a sua andaina? O céu, por primeira vez em bastante
tempo,   estava   despejado,   e   a   noite   estava   clara   com   lua   grande.   Estaria
aguardando   o   Alcaide   como   as   noites   passadas?   Narciso   e   Perfeuto   já
depreenderam   a   falar   entre   eles,   e   bem   que   aproveitavam   aquela   nova
habilidade, e agora perguntavam­se, mentres seguiam o caminho para a beira
da   fontela,   se   seria   possível   que   um   dia   o   Alcaide   se   unisse   a   eles   no   seu
conversar. Chegaram ao Jardim. Surpreenderam­se de não ver o Alcaide ali de
pé frente aos carvalhos. Beberam. Deram água à companheira, à qual com cada
golo parecia que lhe envivecia mais a cor dourada. Sentaram nos assentos que
já são  habituais  para  eles, Narciso sempre ocupa  o da esquerda, o que está
mais perto das carvalheiras. Onde andará esta noite o Alcaide? 
De   súpeto   sentiram   aquelas   palavras   que   acompanhavam   a   figura   do
homem  que  as  pronunciava  enquanto saía de entre  as árvores:  “Aqui  estou
companheiros, e eu sou Ovídio.”  Os dous homens miraram a Ovídio como se o
vissem por primeira vez, mostrando surpresa por aquela naturalidade coa que
se apresentava  ante eles.  Narciso  achegou­se à fonte e com ambas as mãos
apanhou a água fria que lhe levou a Ovídio: “Toma irmão, pareces rendido.”
Ovídio   bebeu   sem   dizer  nada,   depois   deu   um   fundo   suspiro   e  agradeceu   a
Narciso aquela  água   que  tanta falta lhe  fazia. Perfeuto não  queria ficar fora
daquela   reunião   e   fez   chegar   a   sua   voz   até   onde   os   outros   dous   homens
estavam:   “Hoje   pareces­me  outro,   Ovídio”     “Graças,   Perfeuto,”   –  respondeu
Ovídio – “hoje sou outro, e quanto me alegra que ti o tenhas notado”.  Ovídio
contou­lhes   da   sua   tortura   interior,   e   do   seu   espertar.   Contou­lhes   do   que

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sentira e do desprezo tão grande que se dedicara a si mesmo. Da sua luta no
silêncio das touças. Da luta ganhada e do perdido na batalha. Do passado e do
esquecido.   Ovídio   contou­lhes   tudo   o   que   pôde  dar   lembrado   dum   Alcaide
ruim, dum homem vazio que nunca se dava enchido. Pouco a pouco foi­lhes
debuxando com palavras, com punhos fechados que se sacodem no ar, quem
ele fora. Os olhos de Ovídio fecharam­se enquanto lembrava, ora para atrair os
recordos mais facilmente, ora para evitar ver as olhadas dos que o escutam.
Quisera ficar calado mas as condenadas das lembranças querem sair; ele sabe
que   deve  ser  julgado,   e  aceita   essa  imposição   como   um  jeito  de   começar  a
render contas polo que fez… embolsar­se o dinheiro que devia ter ido a obras
públicas;  castigar as  aldeias nas que havia pessoas que não votavam ao seu
partido; contratar no concelho, ou na deputação, ou onde fosse, aos filhos dos
que lhe ajudavam a manter a sua rede caciquil funcionando, condenando aos
que   não   se   deixavam   dominar   à   emigração;   burlar­se   dos   seus   próprios
votantes referindo­se a eles  como “a granja de pombos que me votam” que
ademais, segundo ele mesmo dizia, era a granja que mais ganâncias lhe dava…
E por último, Ovídio admitiu o mais baixo ao que chegara: bater­lhe a uma
pessoa,   uma   mulher,   uma   secretária   do   concelho;   e   não   por   quem   ela   era,
senão   por   quem   ele,   coa   sua   olhada   deformada,   via   nela.   Ele   chegara   a   tal
extremo de precisar controlar aos demais que perdeu o controlo de si próprio.
Aquilo custara­lhe a Alcaidia. Daquela pensou que isso era o pior que lhe pôde
ter   passado,   agora   sabe   que   estava   bem   errado.   Ovídio   falou­lhes   da   sua
cegueira,   e  enquanto  o   fazia   seguia  com os  olhos  fechados  e com as  mãos,
agora abertas, gesticulava como para pôr em cena o que pensava, o que queria
que viram, o que queria ele que ocorresse agora. Estava envergonhado de si
próprio…   Depois   calou   e   as   bágoas   que   caíram   face   abaixo   ocuparam   o
silêncio que deixaram as palavras e as mãos gesticulantes. Perfeuto e Narciso
deixaram que respirasse para adentro aquele instante e se anovara com ele,
depois cada homem por seu lado deixou cair cadansua mão nos ombreiros de
Ovídio. Não disseram nada. Ninguém disse nada, e por primeira vez o silêncio
era silêncio e estava calado. Por fim acharam as palavras que os achegavam,
que os punham em contacto e agora nem tão sequer precisavam delas. Sem
mais demora colheram a pia, e depois de lhe dar a sua água, puseram­se ao

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caminho. 
– Faltar­nos­á muito?
– Não sei, mas tanto tem, eu acho que poderíamos seguir ainda que fosse
por toda a eternidade.
–  A mim dá­me no corpo que não há­de ser tanto, e só de o pensar já
parece que vos estranho.
Sabiam   que   ainda   lhes   aguardava   caminho   por   diante   mas   ignoravam
quanto. Intuíam que não seria tanto quanto o que já levavam andado. Aquela
noite o carro rodou sereno, como se andasse de passeio. E aquela noite o carro
cantou;   quiçá   já   tivesse   cantado   antes   mas   aquela   noite   os   três   homens
sentiram   o   seu   musical   rechouchio.  Polo   Pradonovo   arriba,   aquela  noite   as
cloucas calaram para espreitar o ranger daquele carro. Subiram polo caminho
das   leiras   da   Igreja   e   viram   como   o   centeio   já   agachava   a   cabeça,   isso   era
indicativo de que a espiga já estava carregada e os gadanhos já não haviam de
tardar em levar ali a seitura. A luz da noite não lhes permitia ver a cor daquela
messe tão granada, mas pola caída da espiga adivinharam que já iria tirando a
marelinha com algo mais de verdor lá no fundo da palha. Pararam um pouco à
beira   da   parede,   e   admiraram   aquela   abundância,   e   os   três   desejaram   ser
seitureiros.   Imaginaram­se   segando   aquela   leira   de   pão   entre   os   três,   e
calcularam quanto lhes levaria. Até chegaram a repartir os trabalhos:
– Tu serias o ateiro, Perfeuto, que polo corpo que tens bem se vê que se
che daria bem apanhar as gavelas… E ti Ovídio, a julgar por como és capaz de
dobrares o lombo, em fouce não haveria quem pegasse em ti… E eu, mesmo
para   dar   as   vencelhas   bem   sirvo,   ora   que   tampouco   me   amargaria   segar,   e
pouco se me poria para vestir os zagões e atar os molhos.
Co bom humor que os rondava chegaram às eiras do Penedo, deixando os
lameiros   da   Carrancova,   e  os   nabais  da  Praça,   à   sua   esquerda.   Desde  onde
andam arestora já quase se adivinha o começo da aldeia, e intuem que aquele é
o seu destino, quiçá o ponto final da sua andaina. Amanhã teriam vagar para
descobrir   isso,  mas  agora  é  a  hora de partir, não  for que  alguém  madrugue
hoje, mesmo para ir à seitura, e os veja. E com boa sensação por primeira vez
os   três   homens   marcharam  a  uma  e  polo   mesmo  caminho.  Atravessaram   a
Canelha   do   Fojo   e   subiram   pola   Tapada   para   as   leiras   da   Burata,   e   ali

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perderam­se. Quando baixavam viram como a névoa ia subindo da Límia por
ali arriba; amanhã será dia de calor e de segada.
E tal como a névoa prognosticava, o dia veio ardente e os de Penacova
aproveitaram   para   deitar   o   centeio   que   ainda   estava   de   pé;   e   se   eles
desandaram um nada o caminho que levaram ontem à noite, teriam visto que
aquele pão que queriam segar eles já estava agora amedouchado no meio da
leira, mas não sem antes enredar ali um bom bocado da manhã aos seitureiros.

* * *

Os três homens chegaram juntos aquela noite, se alguém os tivesse visto
pensaria que eram viageiros que estavam de passo, seguramente a caminho da
Raia.   Metia­lhes   algo   de   respeito   andar   tão   perto   da   aldeia;   quando   se   iam
achegando avistaram as primeiras casas, logo de passarem o cemitério; eram as
casas dos do Penedo. Estremeceram­se de pensar o que se passaria se alguém
os via, que iam pensar que eram? Se nem sequer eles estavam mui certos do
que pensar de si próprios, quanto mais se as gentes do lugar os descobriam
assim de noite e coa pia. Aquela incerteza dos ânimos durou só uns segundos.
Não tinham de que se preocupar, eles estavam a ser guiados por uma força
alheia às suas vontades e que os levaria aonde tivessem de chegar. Noutrora
teriam permanecido sujeitos à ideia do perigo, que lhes impediria de seguir.
Agora já são quem de saber que o seu poder é limitado, e portanto também a
sua responsabilidade; eles só são parte dum destino que os leva pola terra, e às
vezes até os arrasta, mas já não vão sem guia, não vão vagando sem rumo nem
meta no horizonte. Até as mesmas estrelas se ordenaram lá no céu para que
eles   o   entendam.   Ora,   paradoxalmente,   estes   três   homens   sentiam­se   mais
livres,   apesar   do   grande   peso   que   têm   que   levar   com   eles.   Fazem­no   com
vontade,   fazem­no   com   aceitação,   e   como   não,   fazem­no   com   amor.   Por
conseguinte, fora temor, só deviam de ter muito tino como fizeram até agora. 
À lua nova faltava­lhe pouco para se estrear. A sua próxima fonte estaria
perto  e  seria a  última,  ainda que talvez não  fosse esse o final. Vendo que a
aldeia estava tão cerca decidiram ir sem a pia até ao meio do lugar para ver se
estava tudo despejado. Atravessaram o caminho do Eido e passaram por onde

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o   forno,   já   desde   ali   viram   o   arco   de   meio   ponto   que   anunciava   a   Fonte.
Achegaram­se e ajoelharam­se os três a um tempo para provar as suas águas.
Aquela não era a primeira vez que eles bebiam naquele manancial, ora sem
dúvida aquela  era  a  primeira  vez que bebiam juntos.  Que  bebiam a mesma
água.   Repousaram   sentados   na   pedra   da   beira   esquerda   e  conversaram   um
pouco,   em   voz   baixa,   não   fosse   que   alguém   os   sentisse,   das   experiências
passadas que cada um tivera naquele lugar. E veio­lhes a hora da partida antes
da   fim   da   conversa,   e   falando   marcharam   sem   trazer   adiante   a  pia,   que   os
aguardou até à noite seguinte.

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Capítulo VII

A FONTE

Penacova, apesar de não ser uma aldeia lá mui grande, conta com uma
mitologia   abundante   e   quiçá   desproporcionada,   difícil   de   manter   viva   à
medida   que   desaparece   a   sua   povoação.   Neste   marco   mitológico   destaca   a
Fonte como símbolo essencial do seu mito fundacional. Inicialmente, as terras
que pertencem hoje a Penacova estavam povoadas por gentes que se repartiam
polo vale em sete assentamentos diferentes, espalhados por Aguiar, a Pedrosa,
a   Auguela,   o   Zebreiro,…   posteriormente   os   assentamentos   reduziram­se   a
quatro e finalmente decidiram juntar­se todos e construir a aldeia conhecida
hoje por Penacova. Todas as vivendas se construíram inicialmente ao redor da
fonte;   esse   foi,   e   é,   o   lugar   chamado   O   Meio   da   Aldeia,   ainda   que   na
actualidade, dês que a povoação se foi alargando pola Fonteuceira fora, já não
seja o seu centro geográfico. 
Sim, ali no meio de Penacova ergue a Fonte orgulhosa o seu arco de meio
ponto, e protege com ele os seus mais de dous metros de fundura. Toda ela
revestida   de   pedra   até   à   mesma   nascença   onde   abrolha   a   água   com   um
bule­bule que só se pode perceber quando é esvaziada cos caldeiros para ser
limpada até que, como se fosse de prata, reluz o seu interior. Ela é a riqueza de
Penacova.   Durante   centos   de   anos   abasteceu   de   água   a   uma   povoação
inteira…  gente,   terra   e  gado.   Ao  lado   do   arco  foi  construída   uma  poça que
acada a água que lhe sobra à Fonte. Um reguinho talhado na ancha pedra que
os separa vai carrejando a água para a poça, onde sacia a sua sede a fazenda e
que é esvaziada, ceivando­lhe o boqueiro para que a água saia a cachão, a rolda
polos vizinhos quando chegado o verão se reinstaura cada ano o reparto da
água, cada quem segundo os direitos de rega herdados por cada terra. Sempre
igual…   “comprei   esta   mera   e   com   ela   as   sete   horas   de   rega   que   lhe

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pertencem… hoje vem a mim a rolda, tapo às doze e ceivo às sete; atrás de mim
tapa o Maximino…” E aquele reguinho liso, afundado polo passo da água e
mais   do   tempo   vai   fazendo   o   seu   trabalho.   No   meio   desse   rego   há   uma
cochinha mais funda onde bebem as crianças… “tu és mui pequena, ainda não
podes beber na Fonte, ajoelha­te na pedra e bebe aqui na pipela” A Fonte era a
riqueza da aldeia, mas naquela sua fartura encerrava também os seus perigos.
As mães não se cansam de lho repetir às suas filhas e filhos… “À Fonte não te
me achegues, prendinha, que pode colher­te e depois não tenho meninha…” E
as crianças tardavam em querer­se achegar para beber olhando para a fundura
como   sim   o   hão­de   fazer   de   grandes…   e   certo   é   que   em   toda   a   história
lembrada nunca caiu ninguém nela. 
Louvada e temida; partícipe da vida mesma, mas também da morte se se
terçar. Salvadora. Abafadora de lumes que ameaçaram o lugar. Salvou casas e
palheiros, combarros e ainda leiras de pão. Infinda fartura que nunca na vida
estinhou, ainda que o seu caudal se visse afectado polas obras que o concelho
de   Os   Mouros   impôs   sobre   a   vontade   da   gente.   Noutrora,   o   verdadeiro   e
legítimo concelho de Penacova se juntaria e co seu pedâneo à frente, jamais
teria   permitido   achegar   aquelas   gábias   tão   profundas   a   que   dessangraram
assim a Fonte. Mas agora são­che tempos de água corrente nas casas e a da
Fonte só vai à mesa à hora do jantar, e já não é tão importante o seu caudal.
Ainda   assim   segue   sendo   visitada   por   todos   os   do   lugar;   incluso   os   da
Coanheira e os do Eiró, que têm fontes mais próximas, se vêm a servir dela
quando as suas no verão agostam. Mas ela, alheia ao passo do tempo, ou à
mudança de estação, sempre tem o mesmo caudal, e a mesma temperatura, o
que faz que se sinta mais fresquinha durante o verão, e mais borna no tempo
frio. Agora,  quando os três homens da pia se arrimam adiante a beber nela,
ei­la frescura agradável. 
Era a segunda noite perto da aldeia, e os três estiveram de acordo em que
antes de ir onde tinham escondida a pia deveriam dar uma volta polo meio do
lugar   e   comprovar   que   tudo   estava   tranquilo.   Passaram   ao   lado   da   Fonte,
beberam, depois colheram o andante caminho do Penedo onde lhes aguardava
o   início   da   travessia   de   hoje.   Ovídio   seguia   a   cargo   do   pinho   e   os   outros
ocupavam   cada   um   seu   lado   do   carro.   Caminharam   um   bocadinho   mui   a

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modo, para evitar que o carro cantasse. O seu andar era tão passeninho que
nem sequer parecia que se movessem. Apesar do vagar do seu caminhar foram
penetrando   na   aldeia.   Reinavam   o   silêncio   e   mais   a   calma.   Ainda   mal   não
chegaram onde o forno, que está quase no cabo da aldeia, quando lhes pareceu
sentir vozes. Pararam. Espreitaram e depois achegaram­se ao combarro onde
sempre fica algo de lenha das últimas fornadas e esconderam a pia e mais o
carro. Agora o forno não coze porque já vem o padeiro co pão à casa e a gente
não quer andar com esse trabalho de quentar e requentar. Ademais com tão
poucos como ficam para fazer pão, não dariam juntado lenha para manter o
forno.   Agora   o   que   se   leva,   em   vez   do   pão   centeio,   é   fazer   ali   enchentes   e
foliadas quando chega a gente no verão. Assar ali uns cabritos ou uns anhos,
uns lagostins e mais umas empanadas… ainda que sempre há a que vem lá coa
encomenda   do   pão…   “pois   logo   já   que   está   quente   deixai­me   meter   um
pãozinho que já trago a massa levedada, e só me resta dar­lhe a forma aí no
tendal…” E os olhos de todos os presentes tendem com ela… ritual das suas
infâncias que jamais esquecerão. E apesar da fartura que se anda a cozinhar
todos ficam pendentes do humilde pão… “olha que vigia bem o pãozinho, não
se nos queime…” E esta é tarefa difícil desde que na restauração lhe meteram
os tijolos refractários para minguar o pavilhão que se fazia algo grande para tão
pouca gente. “Escaralharam o forno, assim como está não serve”. Haverá que
vigiar amiúde. A longa pá penetra no pavilhão e colhendo o pão no seu colo,
achega­o fora onde os olhos das crianças, hoje medradas, comprovam que já
vai estando…
Noutrora cozia o forno a metade dos dias do mês, e o primeiro em sair
eram as bolas das crianças… “Hoje coze a minha tia Dorinda, e fará­me uma
bolinha”… aquele dia sim que prestava a merenda… E prà festa… a de roscões
que ali cabiam! Todas as mulheres a bater os ovos nos grandes caldeiros de
zinco,   e   entrementes   fala­que­fala.   Que   longo   era   o   processo…   e   elas
bate­que­bate e os seus homens quenta­que­quenta; e entre uns e outros ia­se
montando já ali a festa…  “A ver se ides acabando de bater, que isto já o temos
quente e são horas de ir metendo…”     Entretanto as crianças só tinham uma
cousa   nas   suas   mentes…     “que   rematem,   que   rematem   para   empeçar   a
lamber…!”  E que longa a espera para meter os dedos no que sobrara ao encher

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  152
as formas…  “mamã, já está batido?”  “Logo, logo, já vai estando” …  “e quanto
mais vai tardar…?”  “Aguarda filhinha, aguarda, que há que ter mais paciência”
E assim era como as crianças aprendiam a aguardar. Assim iam depreendendo
co ritmo próprio das cousas.
Saber aguardar é um dos princípios, ou assim polo menos o definiria o
filósofo da Índia, que regem a vida em Penacova. Porque o da espera não se
dava só o dia dos caldeiros de interior doce da víspora da festa. Não, o de saber
esperar   impregnava   cada   dia,   cada   hora,   cada   segundo   da   vida…   “mamã,
tenho um buraco na ponta deste sapato, quando me vão comprar uns novos?”
“Pois  quando   venha  a  feira,   …hoje estamos a  primeiros,…  pois   por  aí polo
catorze haverá que ir por eles a Ginzo” … “Tenho fome, quando vai estar o
jantar pronto?”   “Trai­me uns guiços mais de lenha que já o imos apurar”   E
assim se ia construindo a fortaleza interior. O mais difícil, e prova já definitiva
de madureza dum rapaz, era andar no monte co gado e aguardar sem comer a
merenda.   Claro   que   primeiro   viera   o   adestramento…     “Papá,   comemos   a
merenda?”   “Aguarda filha outro nada que depois o tempo rende e ainda nos
volve   dar   a   fome”     E   a   nena   aguentava.   E   por   fim,   quando   aquela   hora
chegava… “Vais buscar o bornal ali ao salgueiro onde o deixámos colgado...?”
Ela   não   corre,   que   voa,   e   já   parece   que   polo   caminho   vai   saboreando   os
bocados. Depois comerão a modinho, mentres falam do que comem, e mais do
bom   que   está   aquele   pão   e   mais   o   mimo   que   o   acompanha…   tantinho
toucinho   ou   um   chouriço,   ou   o   que   houvesse,   e   ao   remate   se   ligar   de   que
meteram   uma   onça   de   chocolate…   ela   colhe­a   na   mão   e   antes   de   comê­la
debate­se: “Se te como não te tenho, se te tenho não te como”  e ao final dum
só bocado a chapa. E assim se ia construindo a habilidade que empapa todo o
fazer dos do campo: a espera. Saber esperar. 
O mestre hindu ainda iria mais longe e afirmaria que esta nena, que tem
que  aguentar  as  ganas  de  comer mentres passa o tempo que irá vagarinho,
olhando   como   pasce   o   gado,   hoje   no   monte,   como   o   próprio   Siddhartha,
praticará as três virtudes do sábio: esperar, jejuar, e meditar… e quiçá não lhe
falte razão, mas quem tem vagar para pensar nessas cousas agora…?
Os três homens da pia, após de dissimulá­la coa lenha, tiveram também
que esperar para indagar as origens daquelas vozes que pareciam vir do fundo

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  153
do lugar. Narciso, caminhando acachapado pola beira das meras da cortinha,
achegou­se à Fonte e sentiu que as falas vinham de mais longe. Eram umas
vozes   procedentes   da   rua;   o   seu   soar   era   de   preocupação   mas   não   de
desespero. A curiosidade levou a Narciso a achegar­se pola beira de atrás das
casas para as eiras de Baixo; ali, arrimando­se à parede, foi avançando polo
lateral até que foi quem de entender o que diziam as falas… Não se passava
nada   grave,   eram   os   do   tio   Taranheira,   que   lhe   paria   uma   vaca;   Narciso
espreitou um pouco e regressou onda os companheiros a informá­los do que
se passava. Decidiram que seria melhor não achegar­se mais de momento e lá
ficaram,  ao  lado  do  forno.  Depois foram procurar  algo de lenha que tivesse
folha para cobrir melhor a pia e que não se visse nada; mas apesar de que tudo
estava   bem   coberto   decidiram   que   um   deles   ficasse   a   curar   dela.   Ovídio
ofereceu­se   voluntário,   e   nenhum   dos   outros   o   deu   convencido   de   que   ele
precisava descanso, que levara maus dias. Ele insistiu em que a ele era a quem
menos lhe iriam topar a falta durante o dia, e pediu­lhe aos companheiros que
se   fossem   tranquilos,   que   ele   ficaria   ali   deitado   debaixo   do   chedeiro   numa
pouca palha, e teria vagar de descansar. Marcharam. Ovídio ficou só para o
resto da noite e mais o dia seguinte. 
Pola manhãzinha acordou co cantar dos pássaros que andavam a chamar
polo   novo   dia.   Ovídio   sentiu­se   privilegiado   por   gozar   daquele   concerto
matutino, e até se ergueu e se arrimou à parede do combarro para olhar como
por  trás  dos  penedos da  Rainha Loba chegavam as primeiras raiolas de sol.
Respirou   fundamente   e   deixou   que   aquele   ar   da   manhã   lhe   acarinhara   os
cabelos e a  face. Durante o dia assomou muitas vezes o focinho àquele seu
miradoiro, sempre com escrupuloso tino para não ser descoberto. Desde ali
pôde ver os andares da gente de Penacova. O Primeiro que viu foi uma moça
que   vinha   com   uma   jarra   de  vidro   a  buscar   água   à  Fonte.   A   moça  chegou,
ajoelhou­se e bebeu; depois encheu a jarra e marchou de volta. E viu fazendas
passar   e  beber  no   poço   da   água,   e  viu   gentes  e   mais   cães,   e  a  carrinha   do
padeiro   que  passou   para   o  Penedo   a   deixar­lhe   ali   o  pão,   e  depois   foi­se  a
Penalapa, onde só fica um vizinho, e dali a um bocado viu­o passar lá por em
riba,   polo   caminho   do   Gorgolão.   E   Ovídio   aguardou,   no   mesmo   sítio   onde
noutrora   aguardavam   as   crianças  enquanto   desesperavam   co   seu   olhar   nos

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  154
caldeiros e relambendo os bicos. Aguardou, e teve assim maré de praticar essa
arte tão típica do lugar, a que a noite lhe devolvera os companheiros. 
Não se fizeram rogados, não essa noite; Narciso e Perfeuto vieram cedo e
com   eles   cada   um   carrejava   seu   bornal   com   merenda.   Ovídio,   no   alto   da
moreia   da   lenha,   tal   que   num   trono   sentado,   comeu   como   um   rei.   Depois
aguardaram um bom pedaço. Tempo não lhes faltava, porque ainda que a lua
estava   pronta   a   se  encetar,   a   Fonte   estava   ali   mesmo   e   em   nada   de   tempo
chegariam até ela. À pia ainda lhe ficava água da que lhe botaram no Jardim,
logo   não   havia   apuro.   Havia   que   assegurar­se   bem   primeiro   de   que   tudo
estivesse  preparado   para  dar  esse passo em direcção  do  meio de Penacova.
Bem   cruzada   a   meia   noite   meteram­se   por   entre   as   casas   e   percorreram   a
aldeia com muito sigilo. Não se ouvia nem um chio. Todos dormem. Na beira
dalguma casa até sentiram roncadas. E um cão de acolá, perto da Fonteuceira,
que   ladrava   sem   descanso,   depois   ficou   também   quedo.   Tudo   ficou   quedo;
tudo menos eles, que volveram a colher a pia e começaram a sua andaina a
caminho da Fonte. 
Cem   metros   escassos   de   distância   que   lhes   levou   mais   de   duas   horas
andar. Iam tão a modichinho para que o carro não cantasse que apenas davam
desbastado.   Por   fim   chegaram   à   Fonte.   Deram­lhe   água   a   fartura   e   eles
beberam  de  novo.  Depois,   adivinhando  que a  igreja  era  o  próximo  destino,
calcularam o que lhes levaria chegar com aquele passo que traziam. A distância
entre   a   Fonte   e   a   porta   do   sagrado   vinha   sendo   umas   três   vezes   a   que
acabavam de atravessar desde o forno. Não podiam tentar nada naquela noite
que ia mais de mediada, precisavam bem uma inteira. Buscaram o sítio mais
ajeitado  na  direcção  desejada  para deixar ali a pia escondida.  Encontraram,
detrás   duma   casa   velha,   um   palheiro   de   erva   seca   acabado   de   fazer,
exactamente ao lado dum sabugueiro. Por detrás da parede na que se afincava
o palheiro, e arrimado ao sabugueiro, havia sítio avondo para esconder a pia e
mais os trebelhos. Esconderam bem todo, desde fora não se podia ver nada,
nem sequer adivinhar que houvesse ali cousa nenhuma. Aproveitaram o tempo
que lhes sobrava para achegar­se à igreja e ver se as portas estavam boas de
abrir ou como era. 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  155
A porta pequena precisava duma chave, mas a grande podia­se desfechar
desde dentro movendo o enorme passador que se mete por um buraco feito
adrede   na   parede.   Rodearam   o   edifício,   indo   pola   esquerda   do   sagrado,   e
abriram a janela que dá à parte traseira, e que fica por dentro algo alta mas por
fora a rés do chão. Desde ali empuxaram a folha da janela, e esta cedeu um
nada. Depois Dom Narciso, lembrando que por dentro, no peitoril, podia haver
trapalhadas,  meteu  a sua mão delgada e tirou  para fora o que havia… uma
copa de vidro com tampa, na que, dês que desaparecera a urna do altar, se
guardam as hóstias consagradas que sobram; uma jarrinha diminuta, também
de vidro, para carregar água da fonte para misturar co vinho de missa; e poucas
cousas mais. Livre o passo de atrancos, foi Perfeuto o encarregado de baixar
por  dentro  da  parede  e  ir  às  apalpadelas por entre as bancadas até dar coa
porta grande e comprovar que era fácil de abrir. Desfechou o passador e assim
comprovaram   que   tudo   estava   pronto   para   dar   o   passo   definitivo   à   noite
seguinte. Perfeuto fechou de novo desde dentro, e caminhou até onde estava a
janela para esgardunhar pola parede arriba para fora, ali os outros aguardavam
para dar­lhe a mão e mais acotegar as chilindradas primeiro de fechar a janela,
não fosse haver um enterro ou algo e lhe topassem a falta. Depois regressaram
onde o palheiro que  escondia a pia e os três estiveram conformes com que
ninguém   iria   ali   rebulir   detrás;   este   era   um   palheiro   novo   e   a   gente   ainda
andaria a gastar o refugalho do velho. Por conseguinte, não era preciso ficar ali
de  guarda   durante  o  dia,  nem sequer prudente, já que  estando  no  meio  da
aldeia alguém os podia sentir remexer e descobri­lo tudo. Marcharam cedo. A
noite seguinte será uma noite longa, uma noite na que haverá que ir devagar.

* * *

Os   detectives,   desanimados   pola   falta   de   êxito   das   suas   pesquisas,


dirigiram­se  a Penacova  com  poucas  esperanças de encontrar algo que lhes
fosse ajudar no seu labor. O do cura não saíra nada bem, e do que atingiram
cos vizinhos de Penacova tampouco tinham que alardear. Em que falharam?
Ou melhor… em que falhou o detective chefe? Já que a responsabilidade foi
sua,   ainda   que   a  culpa   fosse   de  não   poder   seleccionar   melhor   as   fontes   de

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  156
informação.   Penacova   era   um   sítio   tão   pequeno   que   eles   não   podiam
desperdiçar   o   testemunho   de   ninguém,   por   conseguinte   enquanto   viam   a
alguém já se apuravam a pilhá­lo, e claro, isso não lhes funcionara, e ainda por
riba  co  da   camuflagem…  Talvez  as gentes  daquele  lugar  não  respondessem
bem quando estavam na presença de desconhecidos, e por isso a cousa não
fora adiante. Ou pôde ser que lhes tocaram primeiro todos os maus, e agora os
que lhes faltavam por ver eram os que haviam de falar. Algo lhes dizia que não
havia de ser assim,  mas eles,  sem desanimar­se, quiseram provar mais uma
vez. – “Se desta volta não achamos nada que valha a pena, não perguntaremos
mais, e que seja o que tenha de ser.” O detective chefe declarou assim ao seu
companheiro   o   plano   de   acção   quando   estavam   já   no   auto   a   caminho   da
aldeia, e prosseguiu “Riba, hoje a cousa vai ou racha” Riba ficou quedo, não
abriu   o   bico,   em   parte   por   não   estar   seguro   de   entender   bem   o   que   o   seu
companheiro   queria   dizer,   e  em   parte  porque   apesar   de  que  as   palavras  se
dirigiam a ele, a entoação coa que se apresentavam indicava que não era assim,
e que não era precisa resposta alguma. 
Chegaram, arrumaram o automóvel na eira da Festa. Não viram a Ciro.
Colheram o caminho que baixa para a Fonte, ali torceram à direita para o meio
do lugar, neste trecho não se cruzaram com ninguém. Quando se iam achegar
ao  cruze  que   vai  para  o  Eiró   viram  a um  homem  debaixo  dum  corredor.  O
homem   acabava   de   pousar   algo   no   chão   e   dirigia­se   à   porta   da   corte,
presumivelmente para desfechá­la. Ao detective deu­lhe no corpo que aquele
homem andava a fazer algo e quiçá não tivesse vagar para lhes dispensar a eles;
porém,  e trás  ver  que  pola aldeia não andava muita gente, decidiu tentá­lo.
Aquele homem pouco mais teria de sessenta e tantos, seria moço feito quando
ocorrera  o  da   pia   e  ainda  era   o suficientemente  novo como  para lembrar  a
história. Justamente o homem que tinham andado a procurar todos estes dias.
Agora faltava descobrir se lho quereria contar, ou se tinha tempo, ou… já se
verá!   Apuraram   o   passo   e   desde   a   distância   já   lhe   foram   avisando   da   sua
intenção de falar com ele.
– Eh…! Bons dias senhor…!
O homem soltou o fecho da porta e em lugar de desfechar deu a volta cara
a eles.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  157
– Bons dias, logo, para vocês também.
– Mire, você seguro que já ouviu falar em nós… somos os que vimos lá de
Ourense para perguntar sobre a pia que havia em tempos aí na igreja e que
desapareceu. 
– Ah…! Mui bem, mui bem; sim já ouvi pra aí algo.
E   o   homem   volveu   botar   a   mão   ao   fecho,   e  esta   vez   sim   desfechou   e
empuxou para trás a porta. 
– Mas, seria você tão amável de contestar­nos a umas perguntas sobre o
assunto da pia?
– Como não, vocês perguntem, que eu enquanto vou jungindo, que senão
depois faz­se­me tarde.
O Manuel, mentres falava, ia tirando a tranca, que afincada num buraco
feito   adrede   na   parede   sujeitava   por   detrás   a   outra   folha   da   porta.   Depois
empurrou­a coa mão até que se sentiu bater contra a parede do cortelho. Ali,
ainda deitadas, havia duas vacas grandes, uma amarela e outra mais arruivada.
Eles fizeram­lhe uma pergunta, mas o Manuel não a escutara, e seguiu a falar.
– Vá, bonitas, que há que se erguer, que a manhã já vai logo mediada! – e
olhando para os agentes acrescentou – Hoje fez­se­me algo tarde para jungir
porque   me   enredei   pra   aí   algo   mais   da   conta   coa   esterroa   duma   mera   de
batatas,   que   as   estavam   a   comer   as   ervas   e   já   davam   vergonha.   Elas   –
referindo­se às vacas – já não estão sem nada, comeram tantinha erva, e agora
só jungo para levar o carro à poula onde tenho umas gavelas de estrume já
roçado, e mentres eu carrego elas têm vagar de pascer no lameiro. E depois, ao
meio­dia, trazemos o carro dos tojos para casa, que mesmo estão as cortes a
chamar por eles. Neste tempo, depois de tanto estercar para as sementeiras,
ficam as cortes varridas, e a fazendinha sem cama, e agora que já metemos a
erva toda, há que estar prontos para a carreja, que já logo vão lá oito dias que
rematámos a sega, e como dizia o outro… volta feita não tem pressa… Mas
perdoem vocês que eu falo muito, e a vocês isto seguro que lhes aborrece…
Então, por primeira vez dês que andam coas suas perguntas por Penacova
adiante, o Riba abriu a boca e apurou­se a dizer a escape:
–  Não, disso nada, todo o contrário, parece­me mui interessante o que
você conta do seu trabalho…

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  158
Ainda  o  Riba  não  rematara a frase e já se estava a arrepender de a ter
formulado… pois supõe­se que ele não deveria ter dito nada, e muito menos
aquele comentário tão determinante para a direcção da conversa. O detective
mais velho, que era intermédio em idade entre o seu companheiro e o Manuel,
não teve outro remédio que mostrar o seu acordo, não fosse ele ali fazer­lhe
àquele homem, que quase poderia ser seu pai, um desprezo. Ora, por ganas
não   foi,   porque   mália   a   graça   que   lhe   fazia   a   ele   estar   ali   aos   viosbardos
escutando àquele homem porolar sobre a vida do campo. Nem que ele não
soubera   como   era   a   cousa.   Ele   procedia   das   terras   do   Deza,   duma   aldeia
pequerrecha na que lhe tocara lidar até que aprovou os exames para polícia.
Malditas   as   ganas   que   ele   tinha   agora   de   perder   o   tempo   com   aquelas
parvadas.   Olha   que   não   roçara   ele   tojos   antes   de   ir   para   Santiago   àquela
academia que tanto lhe custara a seu pai pagar. Seu pai também tivera vacas, e
bem delas por  certo, mas agora já só ficam três ou quatro… ele já não está
seguro, há tanto tempo que não vai por lá, e dessas cousas polo telefone não
fala. Claro que as de seu pai eram leiteiras, não como as que ele via agora na
corte do Manuel, que são galhardas e fortes. Muito ao seu pesar o detective
teve   que   reconhecer   que   aquelas   eram   uns   formosos   animais,   e   cos   seus
correões enramados para lhes colgar as suas campainhas…, não, não levavam
chocalhos… E assim foi como o labrego que adormecia lá nas profundidades
dos miolos do polícia acordou de súbito, e sem saber como, disse:
– Se quer eu posso­lhe ajudar, que a mim isso de jungir ainda não se me
esqueceu de tudo.
– Ai sim? E logo donde vem sendo você? Se não é muito perguntar…
– Da comarca do Deza, mesmo à beira de Lalim…
E   enquanto   eles   falavam   o   mais   novo   olhava   para   o   seu   chefe,   e   não
acreditava no que via… mesmo semelhava outro; por primeira vez viu como a
cara do seu superior se relaxava enquanto lhe botava a mão àquele jugo, que
em olhos do catalão deveria ser levado a um museu… que peça bem talhada na
madeira, e polida polos anos e as mãos que tantas vezes a colheram para, sobre
as molidas, pousá­la na cabeça das vacas e depois atar… E o labrego­detective
escutou­se a si próprio perguntando polas sogas que, segundo disse o Manuel,
ia cosendo seu pai, que para isso ainda se arranjava… e que bem cosidas estão!

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  159
Coas polegadas em cruz, com uns malhões delgados para que não mosseguem
ao animal na cabeça. Ainda que só lhe toquem aqui onde nasce o corno, mas
esta é­che zona delicada…
–  Ai, vá que o é! Ainda uma vez um homem daqui deste lugar, vendo­se
acurralado por um boi que andava ceive pola veiga de Sampaio, não teve outro
remédio que repor­se cara a ele… e meteu­lhe tal cajadada, – dantes gastava­se
muito   o  cajado   –  justamente  a rentes  do  pêlo,  onde se apegam  o coiro  e o
corno; e o boi caiu ao chão como um trapo; depois ergueu­se e marchou meio
desorientado… Mas o Emílio era­che um homem que… amiguinho, havia que
tirar o chapéu… Dantes aqui havia muita gente digna de admirar…
Riba estava determinado a não intervir mais, já bastante tivera coa sua
estreia   momentos   antes.   Ora   tampouco   era   preciso   já,   porque   o   pobre
detective de Lalim estava­se vendo acurralado em si mesmo… e o labrego, que
tantos   anos   estivera   lá   dentro   dele   agachado,   sem   causar   maiores
desassossegos,  estava  agora  tirando­lhe o mando  e dirigindo;  ele próprio se
pasmava quando escutava os falares que saíam da sua própria gorja, até lhe
mudara o sotaque e falava agora com voz menos afectada e mais harmoniosa.
O seu companheiro teve que torcer as orelhas com as mãos para adiante para
entender   o   que   o   seu   chefe   dizia,   enquanto   seguia   admirado   pola
transformação daquele homem. Que dianhos lhe tinha passado para mudar até
a fala? Como ia o Riba adivinhar que o seu chefe levava um labrego dentro, um
labrego   que   aquele   dia   colhera   as   rédeas   e   dirigia   o   fazer.   Com   que
naturalidade se desenvolvia hoje o seu chefe, com que serenidade de carácter;
e por primeira vez o frio respeito que sentira até então por ele trocou­se em
afecto.   Mas  lá   dentro  do   seu   superior   não   tudo   era   tão  fácil;   o  polícia,  que
queria só passear­se pola cidade, revolvia­se como as serpes e vinha­lhe roubar
do prazer que tanto lhe estava a prestar. 
– Temos tempo o que quisermos, pois se tal vamos com você e conta­nos
polo caminho – disse o detective enquanto seguia a cruzar a soga por riba da
cabeça da Marquesa. 
– Isso estaria bem, que eu gosto da companhia.
– E eu também – dissera o Riba, mas ele próprio se deu conta de que os
outros não o ouviram, ainda que a ele tanto lhe tinha, ele sentia­se afortunado

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  160
de estar ali presenciando a arte de jungir. Uma arte da que ele só ouvira falar, e
não amiúde pois este ofício que de tanto durar semelha eterno, não só para
quem o observa senão para quem o pratica já passou; este ofício já passou. O
próprio Manuel não ignora isto…
– Mete­lhe um bom saculeão co ombreiro aí por baixo mentres apertas a
soga,   que   essa   Marquesa   é­che   uma   condenada   que   torce   o   pescoço   a
propósito, e se não repara um sempre há­de ficar folgada. Em câmbio, a esta
Toura é uma ledícia jungi­la… mira, é melhor que tu te passes para este lado e
eu me encarrego da Marquesa que já lhe tenho o falho tomado… pois nem tem
jeito que te deixe a ti o pior trabalho quando aqui hoje és o meu convidado.
O Manuel passou por trás do detective, ao que quiçá deveríamos começar
a   chamar   Rafael,   pois   esse   é   o   nome   que  lhe   puseram   seus   pais,   ou   senão
Canchés, que era o nome que lhe deram de pequeno na aldeia… e tudo por ter
as pernas um nada torcidas, cancheadas no meio para fora. Depois foram­lhe
endireitando   e   já   ninguém   lhe  chamava  assim,  ainda   que   agora  mesmo  ele
pouco se teria importado. O Manuel, que quer ser educado, passou por trás
dele e mostrou­lhe como tinha que fazer­se coa Marquesa, que era algo pícara
e escapava da juntura. Em câmbio, a sua companheira, que tinha a força dum
boi, era outra cousa. A Toura era doce para o amo, que podia levá­la como se
ela falara…
– Esta até se teve que afazer a que lhe chamáramos Toura, pois também
era Marquesa quando a mercamos lá em Gomesende. Compramo­lha ao tio
Justo, e inda agora quando a vê lá no monte se se juntam os gados, ele chama­a
Marquesa, e ela bem que cho conhece, apesar do novinha que era quando se
veio   para   onda   nós.   Daquela   já   vinha   amansada,   e   olha   tu   que   também   a
amansaram à direita, como estoutra que nós tínhamos na casa; e tivemos que
ensinar à Toura, que era mais nova, a ser jungida à esquerda, e parece que não
lhe custasse aprender. E agora pode ser jungida às duas mãos, e digo­te eu que
com poucas vacas se pode fazer isso.
– Olha, que bem sabe jungir você, a mim já se me acabava a soga e a você
ainda lhe dá para outra volta.
–  Não   faço  favor  nenhum,  é­che  o ofício  que tenho,   e não me amarga
tampouco ter que fazê­lo.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  161
E  enquanto dizia isto ia  colocando o temoeiro nas mossas  do meio do
jugo,   nesse   espaço   que   fica   entre   as   cabeças   das   vacas,   e   que   as   distancia;
depois mandou­as ir de ceia­cú e elas recuaram, sem ele precisar de aguilhada,
até  que   estiveram   postas   cada   uma   pola   sua   beira,   rente   ao   carro.   Então   o
Manuel ergueu o pinho e afincou­o no ombro, para logo o amarrar ao jugo co
temoeiro, mentres dizia…
– O carro está preparado, agora a ver se a mulher nos dá a merenda por se
nos  desse algo  de  fome…  “Aurora,  olha que eu já che estou pronto pra me
ire…! Trazes­me logo esse bornal abaixo se fazes favor…? E mete algo aqui pra
estes amigos…”
A seguir das palavras do Manuel baixou ligeira a Aurora, poder­se­ia dizer
que não lhe dera tempo de cumprir coa sua encomenda. E assim era, ela já
tinha a merenda pronta e por triplicado para quando ele ordenar de marchar.
Ela   escutara   a   conversa   e   já   ia   por   diante   do   planeado   por   o   Manuel   e   os
forasteiros. 
– Olha que cho meti neste de material que é algo mais avantajado do que
o que levas a cotio para ti só. 
E enquanto falava alongou o braço, desde o penúltimo banço da escada,
achegando   o   bornal   para   o   seu   homem.   O   Manuel   colgou­o   ao   ombro   e
dedicou  um sorriso à sua mulher. Os dous forasteiros saudaram à mulher e
deram­lhe   as   graças   por   pensar   assim   neles.   Ela,   sem   rematar   de   baixar   a
escada, respondeu os seus saúdos e disse “não se merecem” O Manuel chamou
a   jugada   adiante,   e   sacaram   o   carro   da   corte.   Rodou   pola   rua   do   Eiró   e
dirigiu­se ao caminho das Lamas do Santo. O Manuel e o Rafael iam diante
conversando,   o   Riba   ia   detrás   à   espreita.   Chegaram   à   poula   e   soltaram.
Enquanto as vacas pasciam, em baixo no lameiro, eles carregaram o carro cos
tojos. Tinha razão Manuel, não eram muitos. Depois puseram­se à merenda.
Sentaram à sombra do carvalho, evitaram a do vidoeiro que diz­se que não é
tão   sã,   e   entre   bocado   e   bocado   foram   falando.   O   Rafael   já   se   esquecera
completamente do detective e o Riba seguia a observar. 
– Estou seguro de que tu com esta jugada já tens carrejado mais grandes
carros que o que hoje te ajudamos a carregar…

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– Pois não te enganarias, que com estas duas já tenho carregado mais do
que me daria o tempo para contar…
E   o   Manuel   contou­lhes   das   valentias   da   sua   jugada.   Dos   carretos   de
lenha que trouxeram este mesmo ano da decota de uns carvalhos das touças do
Castelar. Contou­lhes do muito que ele era quem de meter no carro duma vez,
e do bem que o fazia cantar… “não podias nem andar cem metros sem untar o
eixo… não se fosse a queimar de tanto fretar contra das treitoiras… e ao o untar
sentias como o unto rijava tal que se o rustriram numa caçoula” Ao Manuel
enchia­se­lhe a boca falando do valentes que eram as suas vacas, sobretudo a
Toura, que já vencera a dous bois cos que tinha lutado… “e isso há mui poucas
que   o   façam”…   e   que   em   toda   a   comarca   não   havia   outra   que   se   pudesse
igualar com ela… 
–  Pois   é,   estas   duas   pode   que   sejam   a   minha   última   jugada…   mas
enquanto eu viver delas não me hei­de desfazer… ainda que nos façamos bem
velhos…
– E logo não tens filhos que continuem coa lavoura?
–  Não   homem,   não.   Tenho   um   rapaz   que   se   marchou   para   Alemanha
quando era novo, esteve lá alguns anos e fez dinheiro. Agora voltou mas para aí
em   Ginzo   e   disto   não   quer   saber   nada…   também   como   não   precisa…   e
ademais   se   ele   vier   gastaria   só   o   tractor,   assim   que   quando   eu   morra   tudo
morrerá comigo…
O Rafael enchera­se de mágoa, mágoa de que todo aquele mundo que ele
hoje revivera fosse desaparecer… E quem era ele para falar, se tinha um capital
de   primeira   lá   no   Deza   abandonado.   Ele   não   era   quem   de   dar   exemplo   a
ninguém…
– Deve de ser bem duro não ter quem lhe possa herdar a um no ofício.
– Podes estar bem certo, e senão pergunta­lhe a teu pai, já verás o que te
diz.
Aquela frase última do Manuel cravou­se dentro do Rafael, que lembrou a
conversa  que  não  fazia  ainda  muito mantivera com seu pai, que seguia coa
teima de que se tinha que ir morar mais perto e botar mão da vida… que ele já
não defendia para a granja e os lavradios... E desde tão longe, desde quase a
mesma beira da Rousia, por fim recebera ele a mensagem das palavras de seu

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  163
pai. Agora vê que eram as palavras dum náufrago, e não as dum pai caprichoso
que o quisesse controlar a ele… Que mal entendera ele o seu velho. E que bem
lhe fizeram as palavras do Manuel, até se esquecera da pia. Agora, ao a lembrar
de novo, a Rafael entra­lhe a curiosidade; mas é uma curiosidade de labrego
que quer saber como foi que se sacou daqui, e não uma ânsia profissional de
detective.   Lançou­lhe   uma   pergunta   a   Manuel   de   tal   jeito   que   ele   não   a
pudesse rejeitar:
–  Qual dirias ti, Manuel, que foi a cousa mais pesada que viste carregar
num carro em toda a tua vida? – O Manuel sorriu e disse…
– Já vejo por onde vais, tu queres­me levar à pia…, mas não che é cousa
tão fácil de explicar…
–  Pois   homem,   aqui   entre   nós,   devo   admitir   que   tenho   as   minhas
curiosidades por saber como se deu sacado da igreja e mais do sagrado.
– E isso mesmo me pergunto eu… e deixa­me dizer­che que ainda que eu
não sei nada, não tinha pensado contar­vos cousa nenhuma, mas tu caralho…,
ganhaste a minha confiança, e agora não tenho outro remédio que responder
eu também. Sei que posso confiar em ti. Ademais já che disse que não se sabe
bem o que se passou… e tampouco ninguém presta já atenção a estes falares. 
E Manuel foi­lhes contando como crê ele que tiveram de fazer para sacar
a pia da igreja, porque tanto ele como os outros vizinhos tinham a sua teoria
sobre   o   roubo   bem   elaborada   e   aperfeiçoada   nas   muitas   conversas   e
pensares…   E   com   uma   mistura   de   raiva   e   triste   pesar   polo   acontecido,
conta­lhes como teve que ser de noite quando a levaram… porque ninguém
escutou nada… como tiveram que ser vários os ladrões, pois é uma pia mui
grande   e   mui   pesada…   como   ninguém   sabe   quem   foi  mas   toda   a   gente   os
conhece, e como a ele lhe enfastia que esses moinantes sigam passeando­se
entre   a   gente   alheios   à   justiça   e   aos   castigos…   Rafael   perguntou­lhe   quem
foram logo os que a levaram…
– Isso ninguém o sabe… mas todos sabemos que foram eles… quem ia ser
mais que os curas?
– Mas ainda que fosse o abade… alguém lhe teria que ter ajudado…
–  Pois ajudariam­lhe os outros, que os curas também têm força… e não
fazem favor… co mantidos que estão os condenados…! E bem seguro que ali

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  164
onde o transformador  da  luz  um camião estaria à sua espera para levá­la…
mesmo   ali   onde   entra   o   do   Pito   para   carregar   os   bezerros   quando   há   que
empontá­los para o matadoiro…
– E para onde a levariam?
– …como tenho que mandar eu a uma bezerra, filha da Marquesa, que
agora já não me atrevo de a amansar, e se souberas o que me amarga… mas
assim   é   a   vida…   uma   almalha   tão   boa,   parecida   à   mãe.   O   pai   é­lhe   de
Ameixeiras…   aqui   em   Penacova   já   não   há   boi   para   botar   às   vacas,   quanto
mais… 
– E porque levariam a pia?
–  E eu que che sei filho…, levariam­na para a vender como fizeram cos
santos e as outras cousas, que havia muitas e bem delas, e agora está a igreja
vazia…   e   a   parva   da   gente,   que   é   uma   ignorante,   começando   pola   minha
Aurora, eia, a lhe dar aos curas para que comprem isto ou aquilo… Eu se fosse
vós falava  co  abade a  ver se  se lhe escapa algo… que ele saber tem­no que
saber.
– Co senhor abade já falámos, fomos lá o outro dia mas esse tal Aurélio já
não lhe anda lá mui bem da memória, e não nos soube dizer cousa com jeito.
– Não, se o Aurélio não estava aqui aquela temporada. É certo que já tinha
levado os altares e os confessionários e mais os santos e as roupas todas que
deixara   o   seu   predecessor.   Mas   a   pia   não,   a   pia   levou­se   estando   aqui   o
Narciso,   que   viera   uma   temporada   a   substituir   ao   Aurélio,   que   depois   de
roubar à igreja diz­se que não se sentia o homem lá mui bem; teria remorsos…,
afinal de contas tinha que seguir a mentir cada dia desde o altar e predicar o
“no   robarás”   a   uma   gente   que   seria   incapaz   de   roubar   nem   o   valor   duma
agulha; e a gente ter­lho que aguentar… Mas os remorsos não o mataram, não
tivesses   medo,   e   depois   de   ali   a   nada   ainda   veio   de   segundas   para   aqui   e
tivemos que o aturar até que por fim se marchou de vez. Mas a pia já não estava
quando ele veio de segunda… claro que isso não impede que fosse obra dele,
os curas sabem também operar desde a distância, afinal de fontas ele seguia a
ser o mandaricas da freguesia ainda que o Narciso dissera os responsos por
ele… Não penso eu que o tal Aurélio se deixasse tirar assim um caramelo da
boca… se calhar é que não se atrevia; porque de ali a logo de levar os altares e

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  165
todo o demais, tratou também de levar o homem de pedra que marca a hora co
sol lá no arranque do campanário. Mas então o Emílio, o mesmo que tombara
ao boi coa sardoada, disse­lhe: “se lhe põe você a mão em riba ao homem de
pedra   não   volva   subir   a   Penacova   para  dizer a  missa,   porque  não   baixa”;   e
daquela bem seguro que artelhou outro plano para asegurar­se de que não lhe
botassem a ele a culpa…
– E não protestaram vocês… nem nada?
– E a quem lhe íamos reclamar? Quem nos ia escutar…? Graças se não nos
botavam as culpas… os curas têm­che estudos e sabem­se cobrir bem para não
ser descobertos… e ademais conhecem à gentinha e actuam como o lobo que
sabe por onde vai a vezeira… Eu era novo daquela, acabava de casar e tinha à
mulher esperando um filho… e já não lhe pude pôr Dario naquela pia. Todos
ficamos   danados,   mas   então   não   sabíamos   mais,   e   fizemos   o   único   que
sabemos fazer bem por aqui… aguentar… E olha que se nos levam feito quatro,
e não só os cregos, não… Ora isso sim, eles levam a palma das falcatruas. 
Enquanto   escuta,   pensamentos   pouco   benévolos   para   cos   ladrões   das
igrejas  ocupam   o   pensamento   de   Riba…   e   isso   que   ele   não   sabia   até   onde
podia   chegar  aquele  fada  do   Aurélio,   quem uma  vez  no  enterro  dum moço
novo de Ameixeiras se atreveu a dizer que “Deus escolhia a quem pagava a
pena salvar e a quem não… e que havia que ser mui bons para poder gozar de
tal   privilégio…”   E   mil   merdas   mais   saíram   ainda   cagadas   pola   sua   boca
enquanto   Ameixeiras   se   tinha   que   despedir   daquele   moço   e   entregar­lho   à
terra… Um moço que não chegava aos vinte anos, são e forte, a quem o Minho
coas suas trampas em forma de remoinhos arrancara dos seus pais, e dos seus
amigos, e dos seus vizinhos, e de nós todos… E vem o lobo do Aurélio e faz­nos
sentir de novo desprotegidos, indesejáveis nos olhos de Deus e impotentes no
nosso destino… e todos sabem que o disse porque o moço estava­se deixando
medrar   a   barba   e   já   não   ia   pola   missa   e   também   depreendera   a   falar   de
dignidade e de justiça, e de respeito, e de direito a pensar por nós mesmos… E
no seu enterro vem a animália do Aurélio e coa sua cruenta falta de piedade
derriça nos corações dos presentes como fera na carniça… enquanto à gente
lhe começa a ferver o sangue e cheia de rábia sai ao átrio e debate­se em que
fazer… Uns querem­lhe ajustar as contas mas outros os refreiam, e uma vez

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  166
mais,   a   gente   faz   o   único   que   sabe   fazer   bem:   aguentar,   aguentar   e   dizer
amém… Se Riba chegasse a saber isto… mas ele, como havia de o saber? E o
reganho que sentia foi­se­lhe dissipando quando ficou de novo prendido nos
falares do Manuel… 
– E logo então já perdestes a esperança de a volver ver?
–  Eu não acho que a possa já ver em vida, mas isso não quita para que
chegue um dia em que os homens se tornem civilizados e aprendam a respeitar
que as cousas têm o seu sítio, e que a esse, e a nenhum outro, pertencem, e
ninguém lho deve usurpar nem mudar, nem… mas isso são os meus pensares
quando me colhe para aí o sentido, abofé, como penso que antes do fim do
mundo a nossa pia há­de volver ao seu sítio, ainda que alguns já não o dêmos
acordado…
– Pois que esperanças tão honoráveis tem você para o ser humano…
– Não sou eu só o que cavila nisso; aqui entre nós, hei­che dizer que em
Penacova não há pessoa de mais de trinta e tantos que não tenha a esperança
de que um dia a pia volva. 
– E porque ninguém nos quis falar no tema quando andámos a perguntar?
–  Pois   em   parte   porque   não   há   muito   que   dizer,   e   ademais   éreis   uns
estranhos… agora eu já vos conheço, mas tudo leva o seu tempo… isto é­che
como todas as cousas, por mais que te mates, e corras, num mesmo dia não
podes juntar a sementeira coa sega. E também em parte porque a gente não
gosta de lembrar as desgraças que se levam passado… assim polas boas, sem
que seja por uma boa razão…
– Ora, nós tínhamos uma boa causa, nós também buscávamos a pia.
– E para que a buscáveis, se se pode saber…? Acaso a ides retornar aqui ao
seu sítio?
– Não, nós nem sequer sabíamos que este era o seu sítio…
–  Pois  aí tens a tua  resposta, não  lhe dês  mais voltas.  Vós andáveis ao
vosso, e nós ao nosso… E digo eu, quando será o dia que andemos todos para o
mesmo   sítio?   Porque   assim   não   chegamos   a   nenhures,   já   o   vistes   vós
mesmos… e aqui já começamos a estar fartos…
Produziu­se um silêncio trás do qual Manuel ergueu arriba e disse: – “Já
vão sendo horas de se pôr a andar!”   Não se sabia se se referia a que já eram

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horas de ir jungindo ou se se estava a referir a esse caminhar da gente para um
mesmo fim. Ou quiçá tudo fosse parte duma mesma cousa. Tangeu as vacas
para arriba, jungiram, levaram o estrume à casa. Manuel insistiu­lhes muito em
que ficaram a jantar… mas Rafael disse que não tinham nada de fome, que
depois   do   bom   almoço   que   ele   lhes   dera   já   se   escusava   jantar…   que   lhe
agradeciam o convite mas que deveras não podiam… e que já passariam outro
dia que lhes ligara de vir a Penacova.
–  Pois   logo   tomo­vos   a   palavra   e   aqui   vos   aguardo;   cada   quando   que
venhais sereis bem recebidos. Esta casa e o que há nela estará ao vosso dispor e
ao de quem convosco tragais. 
Agradecendo a amizade coa que o Manuel os despedia marcharam para o
carro. Como sempre, o mais velho era o que guiava. Quando já baixavam da
Ranha, Rafael disse­lhe a Riba – “Hoje, se ti não tens outro compromisso, em
lugar de parar na cidade vamo­nos chegar até às terras do Deza, que a mim já
me vão sendo horas de dar por ali uma volta”  “Irei com sumo gosto com você”
“Pois logo não se fale mais, e podes­me tratar de tu, que eu não sou tão velho…
poderíamos ser irmãos… e hoje vou­te ensinar uma terra bonita de verdade…
uma das zonas mais formosas que há no mundo… já verás, já”.  E marcharam a
caminho das terras do Deza; nem sequer se acordaram de parar em Ourense.
Não volveram tampouco por Penacova.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  168
DESCOBRIMENTO

Aquela  madrugada marcharam mui cedo,  e como ainda havia tempo e


tempo  antes  de   que  o   dia   viera,   foram­se   caminhando   devagar   pola  rua   da
Arribada para a eira da Festa e de ali subiram à Ranha. Com sigilo afastaram­se
das casas e depois começaram a falar. De quando em vez viam­se assaltados
por um medo súbito que lhes sacudia só de pensar que alguém pudesse dar co
lugar onde ficava a pia. Por vezes viram­se dando volta e indo a caminho de
Penacova outra vez, e depois tiveram que se refrear e seguir a se separar da
aldeia e do que tinham escondido nela. Sabiam que o mais prudente e também
o mais seguro era deixá­la ali só todo o dia… E eles não tinham outro remédio
que aturar os seus próprios e legítimos medos… 
À noite voltaram ligeiros; chegaram, como já sempre fazem, juntos os três.
Era um pouco mais cedo do habitual, as ânsias de chegar fizeram­lhes apurar o
passo   caminho   arriba.   Chegaram   asinha,   e   não   puderam   fazer   mais   que
aguardar até que tudo ficasse tranquilo e quedo. Não bulia uma folha, era uma
noite   sereninha   e   cheia   de   estrelas,   todas   cravadas   neles   tal   que   olhos
vigilantes; a lua parecia que se via medrar, logo queria ser cheia. Apegados às
casas avançaram mais à pressa que outras noites, quando quiseram dar conta
iam  galgados…  que  imprudentes! E diminuíram  a marcha durante  o último
trecho que cobriram mui a modinho adrede, como de castigo. Com cada passo,
seu pensamento de perigo, e seu estremecimento polo corpo arriba enquanto o
coiro   se   arrepia.   Por   fim,   uma   última   alancada   e  já   se   dobra   a   esquina   em
direcção   ao   recuncho   do   palheiro.   Nas   caras   dos   três   homens   reflecte­se   a
ledícia de chegar… o palheiro via­se inteiro, tal como eles o tinham deixado.
Tudo   parecia   indicar   que   ali   ninguém   tinha   tocado,   contudo   haveria   que
passar atrás e ver se era assim… Passam pola beira do paredão e lá, entre a erva

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e o sabugueiro, vêem estar a sua pia apoleirada no chedeiro, tal como eles a
deixaram.   Quase   querem   correr   e   abraçá­la,   mas   em   lugar   disso   vão­se
achegando e…, como casualmente, com um braço rodeiam­na dissimulando
um meio  abraço  e  sentindo  um abraço pleno.  Apesar do muito que tinham
avançado   todos,   algo   parecia   interpor­se   impedindo­lhes   exprimir   o   que
sentiam.   Alegraram­se   de   ter­se   apercebido   dos   seus   próprios   sentimentos,
ainda   que   não   soubessem   como   mostrá­los   ante   a   pia.   Era   como   se   ela
conhecesse algo mais deles, algo que eles não lembram, e que faz que se vejam
como meninhos, como meio despidos na sua presença. Mas faltava tempo por
andar, quem sabe, talvez dariam atingido essa sensação que agora lhes estava
restando intensidade à manifestação do seu sentir. Se quadra eles não eram tão
merecedores como pareciam ser. Ainda faltava uma jornada para ganhar o que
ficava por conseguir. Uma jornada. Coa esperança nas suas olhadas saíram a
percorrer o lugar. Tudo semelhava tranquilo, deixando adivinhar que as gentes
andariam  já   a  dormir.   Estamos   no  tempo  da   carreja,  e  toda  a  gente  sabe  o
moídos que andam os corpos. Chega co que se há­de madrugar à manhã. Antes
da rompida do dia já vão os carros a caminho das leiras onde aguardam os
medouchos   e   as   rodas   feitos   cos   molhos   segados   e   atados.   Tudo   há­de   ser
carrejado num dia, e que não chova. A ninguém se lhe ocorreria ir­se dormir e
deixar  a meda aberta e  sem  rematar.  Uma jornada, estes labregos,  como os
homens da pia, só contam com uma jornada. E como os deles, os seus cálculos
tinham   que   ser   mui   precisos.   Antes   de   começar   o   pé   da   meda   dever­se­ia
calcular  as pousadas  de  messe que colhia  aquela casa; a messe não deveria
sobrar, mas tampouco podia faltar para rematar a meda como é devido… Co
orgulho na olhada baixa o mestre da meda, que depois de levar bem os seus
cálculos   chega   ao   cabo   e   diz­lhe   aos   de   abaixo   “falta­me   um   molho   para
fechar…” e um molho é tudo o que falta para livrar o carro. E havia que o fazer
tudo numa jornada. Os da carreja fazem polo dia o que eles hão de ter que
fazer na noite que lhes falta. 
Vieram,   comprovando   que   polo   rueiro   não   havia   nada   que   pudesse
impedir  o  seu  passo.   Mui  devagar,  como  a  noite  anterior,   ou  mais  se  cabe,
começaram a sua andaina. Hoje andariam por entremeio das casas e não se
podia escapar nem um chio do eixo, não só porque pudesse espertar a gente,

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  170
senão   porque   ao  o   ouvir   alguém   pudesse   pensar   que  outros   colheram   já   a
dianteira em madrugar e iam indo a caminho das leiras para a carreja. Não se
podia  cometer  nem  um  erro.   Deviam ter a exactidão  do  bom levantador de
medas   e   assim   como   não   lhes   podia   faltar   o   tempo   para   dar   chegado,
tampouco se podiam permitir que lhes sobrasse. Avançaram passeninho, e tal
como tinham calculado levou­lhes a noite toda chegar. Estavam para abrir as
portas do  átrio quando a  Estrelinha do Luzeiro  lhes dedicou  o seu primeiro
pestanejo… ainda havia vagar para que essa amiga se despedira desde o céu…
Conseguiram passar pola entrada do átrio e passo a passo foram­se arrimando
à porta da igreja. Narciso corre à janela que dá à parte traseira, abre uma fisga e
mete o braço com jeito para livrar o peitoril de por dentro, depois pousa os
objectos   de  vidro   na  erva   e  empuxa   a  folha  contra   a  parede;  ele mesmo  se
dependura para adentro. Corre ao fundo, ele conhece bem os andares e escusa
de ir às apalpadelas, abre o portalão para dentro e agarra o pinho. Passam coa
pia. 
Uma vez dentro já se sentem mais tranquilos, as grossas paredes dão­lhe
acovilho às suas falas e rugires. Levam o carro até o alto da igreja, primeiro
tiveram que arredar uns  bancos e mais uns reclinatórios. Ali à esquerda, tal
como Narciso agora lembra, estava o sítio da pia… se um reparasse, e houvesse
luz, ainda se poderia ver a diferença na cor da pedra do chão. Fizeram recuar
para esse lugar o chedeiro, Narciso manteve o pinho ergueito enquanto os seus
companheiros iam deixando resvalar a pia pouquinho a pouco polas tábuas.
Finalmente,   a   borda   da   pedra   da   base   tocou   no   chão,   então,   enquanto   os
outros dous sujeitavam a pia para que não caísse de golpe, Narciso foi tirando
do   pinho   e   movendo   a   modichinho   o   carro   adiante.   Por   fim   a   base   inteira
apoiou­se   naquele   chão   de   pedra   no   que   estivera   toda   a   vida,   e   o   chão
estremeceu   co   pousar   dela.   E   eles   puderam   por   fim   deixar   sair   o   ar   das
respirações   contidas.   Asinha   tiraram   o   carro   e   esconderam­no   na   casa
esborralhada que há por riba do átrio, na que já só vivem sabugueiros e silvas…
“aqui  ninguém   virá   rebulir   de  momento,   e  depois   já   se  verá…”   Volveram  a
correr   à   igreja.   O   dia,   pronto   a   despontar,   ameaçava   com   descobri­los.   A
Estrelinha do Luzeiro  já se tinha acovilhado debaixo da luz que começava de
querer   banhar   tudo   por   este   lado   da   terra.   Enquanto   Ovídio   e   Perfeuto

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  171
acotegavam os bancos movidos e mais os reclinatórios, Narciso correu à parte
de atrás do átrio, recolheu a copa e mais a jarrinha de vidro e volveu a escape.
Depois   subiu­se   num   móvel   de   gavetas   enormes   onde   guarda   as   roupas   o
abade, fechou a janela e recolocou os frágeis objectos detrás, no peitoril. Os
companheiros pregam­lhe que se apure, que o sol não se faz rogado para sair e
se não bolem asinha não se sabe o que pode acontecer… 
Narciso pegou um brinco e caiu ao chão justamente quando a primeira
raiola de sol entrava pola janelinha lateral, uma abertura estreita na parede,
demasiado   estreita   para   ser   chamada   propriamente   janela,   mas   o
suficientemente ancha e esbelta como para não catalogada como troneira. No
alto, na parte de fora, remata com umas ondas a jeito de concha de vieira que
está coroada polas cinco estrelas da mitra de Santiago, e por ali entram os raios
de luz quando chegam do Leste. Os dous companheiros viram como Narciso e
a   luz   chegavam   abaixo   a   um   tempo.   Narciso   ergueu­se   a   correr,   e   já   se
dispunha a botar­lhe a ultima olhada a pia, a jeito de despedida, quando viram
que da água iluminada saía um resplendor dourado no que se podia ver uma
imagem   nebulosa,   como   se   estiver   formada   por   essas   multitudinárias
partículas que dançam nas franjas de luz quando estas atravessam a escuridão,
mas que pouco a pouco foi aclarando até que a puderam ver com nitidez. Era a
imagem duma mulher nova que corria com um meninho nos braços, apegado
ao seu peito. O pequeno semelhava recém­nado… a mulher asinha achegou a
cabecinha da criatura à borda da pia e coa outra mão botou­lhe uma mada de
água, como se dum baptizo se tratasse… depois já, tranquilamente, marchou
com ele para a casa. Os três homens não o sabiam, mas aquela era a Áurea, que
acabava  de  parir,   mãe  solteira e só,  a quem sem ajuda nenhuma lhe levara
tempo demais dar a luz à criatura. Temendo que não chegasse ao outro dia,
correra a socorrê­lo. A visão daquela luz apagou­se mas após ela veio outra, e
depois outra, e outra, e outras mais… e os três homens ali ficaram presos, sem
poder fazer mais nada que desfechar os olhos e deixar entrar aquelas imagens
da luz… E viram como uma velhinha de estranhas roupas entrava com uma
jarra  de  barro  e   a  enchia  da   água da  pia;  depois  persignou­se e marchou  a
correr   para   levar­lha   à   Conceição,   que   parira   dous   meninhos,   gémeos   dum
ventre,   o   primeiro   e   mais   pequerrecho   nascera   bem,   mas   ao   mais   grande

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  172
saíra­lhe primeiro um braço… e também viram como a tia Esperança, com as
suas mãos esbeltas e sábias, lhe ajudava a recolocar­se na postura da nascença,
mas   o   meninho   precisava   outros   cuidados…   e   vendo   que   se   lhe   queria   ir,
botaram­lhe na sua cabecinha a água de socorro da jarra… depois choraram…
e   a   ledícia   de   parir   um   filho   vivo   viu­se   assumiçada   pola   perda   do   seu
irmãozinho…   e   viram   também   como   nas   mãos   do   seu   pai   umas   tábuas   se
convertiam numa caixa pequena… e o pai caleou­a por fora para que dissera
branca…  depois   achegaram­se  ao   sagrado   e  arredaram   um  nada   a   terra   da
sepultura da sua avó, há poucos dias enterrada, e deixaram­no ao lado dela
para toda a eternidade. E esse mesmo dia de luto e despedida foi também dia
de   baptismo   para   o   outro   pequeno   que   se   salvara   e   que   sem   dúvida   já
estranhava o latejar do irmão que o deixara para sempre. E mal essa imagem se
apagou apareceu uma mulher chorando, baptizara o seu meninho havia tão só
dous meses e agora tinha que o destetar e marchar longe a dar o seu leite a
filhos que não parira. Era a Erundina, que chorava bágoas de sangue por ter
que   lhe   roubar   o   leite,   que   era   dele   e   só   dele,   ao   seu   meninho   para   o   ir
malvender e assim poderem comer todos. Ela marcha chorando em silêncio,
mas   a   intensidade   da   sua   dor   não   passa   desapercebida,   e   mesmo   se   deixa
sentir nos berros do seu filho, que até aos vizinhos, só de o ver sem a sua mãe
tão   pequeno,   faz   chorar…   E   o   pranto   do   meninho   trocou­se   em   pranto   de
gentes   grandes,   eram   homens   e   mulheres   que   choravam   a   meninha   da
Dorinda, que lhe morrera. Três anos escassos entre nós e agora fora­se para
sempre. Todos os da aldeia de luto, a morte duma meninha é nunca fácil de
entender… e quando lhe botaram a terra por riba à caixa, a Dorinda mirou ao
vazio   e   perdido   parecia   para   sempre   o   seu   olhar…   Depois   viram   como   a
Dorinda se prostrou no leito e se negava a comer cousa nenhuma. Os da casa já
desesperam;   entram   então   os   vizinhos   e   todos   juntos   revivecem   a   dor,   e
choram juntos outra vez, e assim até que os prantos foram botando para fora a
negrura do seu sofrer e a Dorinda volveu comer. Logo que aquela imagem se
foi viram como uns homens corriam pola beira do átrio arriba, entre quatro
levam suspendido um colchão, e sobre dele ao Delmiro, que andando fazendo
na casa, caíra­lhe a trave enriba e deixara­o arrelado… têm que chegar até Os
Mouros   onde   podem   colher   um   auto   para   o  levar   a   Ginzo,   ou   se   quadra   a

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  173
Ourense,   antes   de   que   seja   tarde   demais.   E   depois   viram   como   os   quatro
homens voltavam cansos, com eles traziam o colchão e a esperança de que o
Delmiro se salve. E unida àquela imagem chegou a duma mulher berrando,
que no meio da rua chora e também maldiz, porque seu filho tem de se ir à
Alemanha, e aquela mulher duplica­se e agora são duas as que berram, e logo
três e depois quatro, em pouco tempo já são todas as mães da aldeia as que
têm que chorar os filhos que lhes rouba a emigração. E a tristura enche os lares
de Penacova; depois pouco a pouco passam os dias e as semanas e por fim o
sorriso se debuxa nas suas caras ao ver chegar uma carta. Para o Natal chega
um giro de marcos que ao se converter em pesetas muito rende. E vem o verão
e de repente um dia, mentres andas cavando na horta, sentes à vizinha que te
chama para que volvas, que che está um filho à porta… “Qual? Qual deles?”
repetes ti enquanto tiras co sacho por enriba das ervilhas e corres pola mera
arriba sem mirar onde pões o pé… tanto tem qual deles seja, tens quatro lá na
Alemanha   e   a   todos   estranhas   tanto   como   o   palpitar   do   coração   se   cho
quitaram como chos quitaram a eles. Quando vês o teu rapaz tão gabacho lá de
pé   onde   a   porta,   sentes   uma   ledícia   breve   e   depois   chorais   os   dous,   num
abraço, pola alegria de ver­vos. E aquela mesma cena repete­se de casa em casa
e de ano em ano… E, pouco a pouco, canda os filhos vêm os netos, e Penacova
recobra no verão a vida que durante todo o ano parece adormecida… mas é
uma alegria breve, logo volvem a soidade o silêncio e a escasseza do rebulir das
crianças polas ruas do lugar. E a vida do campo, já cíclica de por si, torna­se
cíclica   outra   vez   com   estas   idas   e   vindas…   Idas   e   vindas   de   gentes   que   se
avelhentam, que se transformam e se vão convertendo em estranhos, e todos
presos nesse caminho que leva à morte, à extinção… O cíclico dentro do cíclico
na   espiral   que   leva   a   nenhures,   ou   a   algures…   E   quando   as   imagens   já
pareciam chegar ao seu remate o resplendor rachou em três, e de cada raiola
emanou sua imagem, uma para cada um. 
Ovídio vê numa delas a um alcaide arrogante e ruim que insiste em passar
a gábia pola beira mesmo da Fonte… porque se andam com cuidados gastarão
todos os tubos, e para quê tantos rodeios e gastos desnecessários… E a gábia
passa   a   ser   vizinha   da   Fonte   e   ainda   mais   funda   que   ela;   favorecida   pola
inclinação do terreno e o fácil decorrer ao longo do cimento, rouba­lhe a sua

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  174
água… Que desprezível lhe parece agora a Ovídio aquele homem que se fazia
chamar  alcaide! Apesarado pola sua própria imagem deixa­se cair no banco
que acabava de colocar; como pôde ele ter estado tão cego? Mas agora que via,
teria   que   ser   capaz   de   o   amanhar…   Fazer   emendas.   Estava   determinado   a
restaurar o que devia.
Entrementes Perfeuto senta na pedra fria do chão, o que viu ele não o
deixava melhor parado que ao companheiro. Viu a um espoliador da pedra que
pouco a pouco se vai achegando a um penedo que no alto tem uma fonte que o
banha; aquela era a Fonte do Galo. Na fronte do penedo havia afundada para
dentro a silhueta duma grande pia, agora dá­se conta de que é a mesma que
andaram a carrar… Viu também como uns pedreiros muito mais velhos que ele
a arrincavam do penedo cos seus cinzéis e martelos sem esnacar mais do que
era inevitável, deixando  a silhueta para sempre ali esculpida, protegida pola
água que a banhava… E chega ele e com um só petardo rebenta fonte, silhueta
e água. Que casta de besta era ele? Sentia­se desprezível mas não tentou fugir
daquele   sentir,   pola   contra   deixou   que   esse   sentir   lhe   ajudara   ao   seu
pensamento   a   encontrar   o   jeito   de   repará­lo…   Ainda   estava   a   tempo   de
reparar…, e ali no chão ficou a cavilar.
Narciso   estava   agora   ajoelhado   e   prostrado   ao   pé   da   pia,   como   se
estivesse   rogando   ser   perdoado.   E   assim   era,   porque   ele   vira   a   um   homem
cambaleando­se mentres desfecha a porta da igreja para que um comando de
curas dirigido polo Aurélio entre e marche coa pia. Logo levam­na em silêncio
até o alto do lugar onde a carregam no camião do fulano que a há­de levar, é o
mesmo forasteiro que diz­se que já tinha levado os altares tempo atrás. E agora
marcha com ela, e os bolsos do Aurélio se incham, e assim foi como pôde ir a
Vigo a comprar prédios para os sobrinhos… ele dirá que é bom aforrador, mas
toda a gente sabe que da paga que lhe dão não os podia sacar e que se dedica a
roubar… depois tolejou… alguns dizem que tolo já estava, outros dizem que de
tolo nada, que o nome que lhe pertence é o de ladrão, ladrão e criminal. Um
criminal  que chegou  a  Penacova fugindo das pedradas que lhe lançavam as
mulheres de Medouchos, onde não o deram aguentado mais… por ladrão e por
rufião… e por não sei quanto mais. E Narciso agora sente as cutiladas da dor
que noutrora lhe anestesiara o álcool. E em voz baixinha, só para ele e a pia,

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  175
suplica ser perdoado… Incansável e prostrado no chão repete: “nunca mais,
nunca mais…”
Ainda  andavam os   três  homens tentando endireitar­se e orientar­se na
confusão   que   lhes   deixaram   aquelas   imagens   quando   sentiram   vozes
procedentes do fundo do átrio. A correr erguem­se e colocam­se nas bancadas
da cabeça, de costas à entrada. A gente vai entrando e situando­se como lhes
manda o costume: as mulheres mais atrás, polos bancos que há no fundo e à
esquerda da igreja; e os homens, ou o homem, que se vem um já são muitos,
ocupando os assentos do alto, arrimadinhos ao altar, mesmo à direita do abade
se missasse de cu para eles, porém isso já não está na moda, polo que agora os
homens,   se   viessem,   estariam   à  esquerda   do   padre.   A  gente   era   pouca,   ora
seguia passando adentro; porquê entravam era um mistério que eles deveriam
tentar resolver se não queriam que a ansiedade os rilhasse por dentro… que
por fora já se encarregavam as olhadas das mulheres desde lá atrás. Tentando
não  ladear   as  faces   para  que  ninguém  reconheça  o  seu  perfil,  permanecem
imóveis… e aguardando que se lhes ocorra algo que pudesse justificar, no caso
de   ser   preciso,   a   sua   entrada   na   igreja,   e   ademais   entrando   assim…
arrombando porta e tudo… Entrementes a gente que entrava ia repartindo as
olhadas entre os três homens e a pia, de admiração por esta, e interrogantes
para os forasteiros. Não podiam crer que lhes devolveram a pia, a que era deles
para sempre, a que os viu vir ao mundo a todos, a que antes de entrar nesta
igreja por primeira vez já bebera nas sete fontes dos sete Penacovas distintos
que   povoaram   estes   vales,   a   que   era   sua   e   só   sua   e   dos   penedos   que   lha
deram… E enquanto a gente ia entrando eles seguiam ali arriba imóveis. Quiçá
a gente ainda se marcha… Mas ninguém se moveu do seu sítio, e de ali a um
pouco entrou o abade, e quando se deu a volta, viram­lhe a cara de ledícia que
levava, mesmo semelhava que tinha presenciado um milagre. Ele era um rapaz
novo, de feições suaves e, se não fosse sacerdote, quase se poderia dizer que
atractivas. A gente parecia conforme co jeito de dizer missa deste abade que ia
acorde coa sua idade: curta. A gente gostava dessa brevidade, para quê perder
muito tempo se se pode arranjar com menos… “E logo… já saístes da missa?
Pois   olha,   hoje   colocou­vo­la   à   pressa…”,   burlam­se   os   novos.   “Ele   di­la
correcta, como é, mas não se anda lá com sermões nem trapalhadas para lhe

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  176
fazer a um perder mais tempo”, respondem os velhos. Este cura parecia ter um
estilo   que   à   gente   não   lhe  desagradava…   Vamos,   a   bulir   a   escape!   E   não   é
porque tenham pressa, que muitas vezes ao sair da missa botam uma hora de
conversa pola rua fora antes de volverem para casa. De qualquer jeito o remate
precoce   daquelas   missas   parecia   servir   a   um   e   a   outras.   Mas   aquele   dia   o
pároco   parecia   transformado,   e   aplicou­se   a   fundo,   e   ademais   dos   serviços
mínimos que sempre lhes prestava, meteu­lhes um sermão sobre a qualidade
do saber dar… que nem rediola. Usou metáforas e exemplos do bom fazer que
aparecem   nas   escrituras   cristãs,   e   do   bem   que   fazia   sentir   o   regalar…   não
obstante não lhe serviu de nada o sermão porque o contido das suas escolhidas
palavras chegou aos ouvidos das gentes em forma de bla­bla­blas, e ninguém
reparou no que o abade dizia. Elas tinham bastante com cumprir co seu dever,
que têm automatizado,… ora de pé,… ora de joelhos,… ora podem sentar­se,
ora fazer a “por­la­señal” ou o “nombre­del­padre”… mas fazer isto não requer
pensar, e assim enquanto cos gestos do corpo fazem que fazem, a cabeça anda
às voltas para adivinhar quem são os três forasteiros que sem lugar a dúvida
foram os que lhe ajudaram ao abade a devolver­lhes a pia. Cada um para os
seus   adentros   mantém   um   monólogo   dialogando   consigo   mesmo,   que   se
poderia estandarizar do seguinte jeito:
“Pois aquele do meio, o do pêlo abrancaçado, parece­che­me o Domingos
de Ninhodáguia… não, não pode ser, que este é muito mais alto… pois logo a
ver se vai ser… e aquele da esquina… que me leve o demo se não é o Perfeuto
das canteiras…! Pois logo os outros também hão­de ser de por aqui,… a ver se
me arrimo à ponta do banco e vejo algo mais desde ali… porquê estarão tão
atentos, que nem sequer ladeiam a face…? Polas roupas parecem gente coma
nós, ora vão algo mais descuidados… claro que para carregar essa pia tiveram
que suar… Não me digas que aquele vai ser o alcaide velho… olha lá…”
Enquanto a gente segue coa sua adivinhadela, os três homens fazem o
próprio por outro lado, e de quitado o Narciso, que sim lhe atende para ver se
dá   pilhado   chave   que   lhes   ajude   a   sair   da   situação,   os   outros   tampouco
entendem nada do discurso desse cura arrapazado que tanto latrica hoje. Ao
remate do sermão Narciso avisou­os de que podiam estar tranquilos, a cousa

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  177
não   parecia   ir   mal   encaminhada…   Tudo   dito   num   murmúrio   e   coa   mão
apoiada na cara tapando a boca para dissimular o movimento dos beiços:
–  A julgar polo que disse o abade no sermão, ele pensa que a gente é a
responsável de que esteja aí a pia, logo por esse lado estamos salvados…
–  Mas donde sacarias tu isso, se não se lhe entende uma palavra do que
sai pola sua boca?
– E que vai pensar a gente?
– Pois que lhe viemos ajudar ao abade a devolver o que é deles, e que não
tinha que ter sido nunca roubado, e eu fui responsável, polo que a ninguém lhe
estranhará  ver­me  aqui  participando.  Logo podemos sentar  e descansar um
pouco, que a cousa parece controlada. 
–  Não   sei,   não   sei…  a   ti   parece­che   normal   que   fite   tanto   para   nós   o
abade?
–  Homem  não   lho  hás­de tomar  a mal, ele pensa que  somos  possíveis
novos clientes para engordar a vezeira, que tem arrarado muito… e anda­nos a
fazer as beiras…
Narciso e Perfeuto riram um nada.
– Se não parais ainda nos vão botar fora…
–  Isso é o que eu quereria, que isto está­se­me fazendo interminável…
donde caralho tirais tanta lábia os curas, que não há Deus que o dê aturado…?
–  Eu   já   não   sou   cura,   irmão,   que   esgarcei   o   hábito…   que   muito   me
apertava e mesmo me parecia que me ia esmagar ou pôr louco… 
– E digo eu… ao abade não lhe estranhará que a gente traga uma pia tão
grande assim polas boas?
–  Ao abade não lhe vai estranhar nada, ademais por aqui a gente ainda
anda  com   isso   das   oferecedelas…  e ele  pensará   que   esse  foi  o  motivo,   e  aí
morrerá o conto… Olha, esta igreja foi enchida no seu tempo antigo graças aos
esforços das gentes que então viviam… agora, graças ao fazer dos curas volvia a
estar vazia, e já vês que pouco a pouco se volve encher… – E que razão tinha
Narciso –, o altar do meio que agora havia fora regalado por um vizinho que se
oferecera quando  se  viu a morrer… e os outros dous comprou­os  a gente a
escote, e há pouco pedira­se­lhes que deram também para governar o telhado
e comprar casulas novas, que as que o Dom Narciso velho deixara já foram

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  178
roubadas, e quiçá vendidas também… e também lhe pediu para livros e para
não sei que mais… e a gente a dar, e a dar… E ninguém parece importar­se de
que este ano não se vão colher feijões, porque o sistema de rego precisava dum
escote para meter uns meios tubos e evitar que a pouca água que fica se escape
polas toupeiras e não dê chegado às meras… mas à gente não lhe fica dinheiro
que dar para mais escotes este ano… o cura pediu antes de que chegasse a
rega… e agora já lá vai o dinheiro… E assim, mole e mole, irá­se enchendo a
igreja outra vez. E um dia, talvez dentro de alguns anos, chegará outro cura que
precise para lhe comprar os prédios aos sobrinhos, e volverá vendê­lo todo…, e
volta a começar de novo o conto; portanto ao abade não lhe vai estranhar nada,
e nada dirá.
–  Pois   olha,   e  eu  que  pensava  que os  curas  vos entendíeis melhor coa
gente …
– Não me volvas chamar isso, que eu já estou curado… E aguardo que me
chegue o tempo desta vida para reparar o mal que fiz co hábito…
–  Perdoa   homem,   que   a   ti   não   te   queria   ofender,   já   sei   que   ti   te   tens
governado…
–  Vós segui a falar e vereis como ainda havemos de ir fora antes de que
remate o segundo acto. 
– Se ainda fosse como no teatro que te dão intermédio, e se não gostas da
representação   já  te  vais  embora… mas aqui se te marchas nota­se muito, e
todos   os   olhos   cravados   em   ti…como   para   perguntar:     “Passou­te   algo?”
“Desmaiaste?”     Pois   já   verás   quando   tenhas   de   sair   de   primeiro   e   todas   as
mulheres do fundo te reconheçam…
– E porquê vou sair eu primeiro…? Que saiam elas e eu vou detrás… 
– Não che são as cousas assim.
– Pois já é hora de as mudar.
– Calai duma vez…!
Narciso então acordou­se de três raparigas que vieram alguma vez à missa
quando ele estivera naquela freguesia substituindo ao Aurélio… sim, vinham e
sentavam­se nos bancos dos homens, e se sentavam abaixo era para lhe dar
nas  ventas  a  todos  e  sair  elas  as primeiras… pois  só por  isso,  e nada  mais,
vinham   à  missa   alguma   vez,… e  até  se  perguntou   por  onde  andariam…  de

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  179
certo que não iam estar na igreja, ora que quando souberam que a pia voltara
entrariam a tocar com as suas mãos a pedra na que todos os seus antepassados
puseram a mão primeiro… quanto daria ele por poder falar com elas, agora de
tu a tu…!
– Parece que estamos a chegar ao último acto…
Por   fim   mandou­os   em   paz   e   eles   os   três   saíram   tão   completos,   e   as
mulheres viram saciadas as suas curiosidades. Trás dos homens vão­se elas, e
agora, enquanto o abade anda dentro a pelejar cos saiotes para despir­se, todos
estão a saudarem­se polo átrio… Quando o pároco dá saído vê como os três
homens já  se vão para fora.  Então  chama­os com um berro  e um aceno da
mão, e eles pensam que aquele pasmão ainda os vai descobrir…
– Eh! Aguardai aí, bons homens, que ainda vos tenho que dar as graças…!
– Não se merecem, e ademais já no­las deu você desde o altar…
Narciso apurou a dizer aquilo para lhe tapar a boca ao cura, não fosse
falar   mais   do   que   eles   desejavam   que   se   soubesse.   Aguardaram   a   que   se
achegasse a eles e amigavelmente fizeram como que charlavam… sem dizer
nada   que   a   gente   pudesse   interpretar.   Aquela   naturalidade   coa   que   se
desenvolveram confirmou­lhe à gente que os três vieram a ajudar coa pia. E
coa   mesma,   toda   a   gente,   de   dous   em   dous,   foi   deixando   o   sagrado,   e
parando­se polos recunchos da aldeia para falar. Os três caminhantes também
se foram   e  o  abade,  vendo­se  só no átrio, também marchou.  E aqui  não  se
passou nada. Os vizinhos não sacarão nunca o assunto a reluzir, não fosse o
demo, já lha levaram uma vez… e o abade fez o mouco. O bispo não chegou
nunca   a   saber   nada   de   nada,   e   as   autoridades   fecharam   o   caso.   Bom,   isto
último não está totalmente claro. 
Segundo   o   jornal  Nuestra   Región,   não   é   que   o   fecharam   senão   que   o
abandonaram. Na verdade, o mais novo dos agentes nunca se ocupara a sério
dele; ele andava ali camuflado de detective para fazer um estudo de campo sem
que ninguém se desse conta. E por certo, não se chamava Riba por catalão, que
ainda que nascera em Barcelona era filho de galegos, e galego se declarava ele
também, ainda que fale tão bem o catalão como o idioma de Rosalia. E agora já
anda  lá por  Barcelona  tentando escrever a sua tese na área da antropologia
social. Já lhe tem um título buscado: “Bi­dimensionalidade e suicídio cultural

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  180
dos galegos” Ainda não sabe se encontrará quem lha publique na nossa língua;
em   Barcelona   mandará   uma   síntese   à  Revista   Catalana   de   Estudis
Transculturals e sairá co título “Bidimensionalitat i suicidi cultural dels gallecs”
Escusado   é   dizer   que   os   de  Nuestra   Región  não   lhe   vão   publicar   nem   uma
entrevista,   quanto   mais…   e   vá   que   lhes   amola   que   se   ande   a   falar   dessas
cousas…! E vai­nos falar de bi­dimensionalidade ele, precisamente ele que tem
duas ou três falas, ele podia valer como exemplo da bi­dualidade essa… Mas a
Camilo Riba, filho e neto de Camilos Ribas – todos, até ao confim das memórias
familiares, eram galegos e ele tem clara a sua identidade – não dá crédito às
críticas   que   lhe   possa   fazer   um   panfleto   ao   que   o   qualificativo   de   folha
paroquial lhe assentaria melhor que o de jornal. A ele agora o único que lhe
consome o seu tempo é a sua tese, que há­de ser brilhante. 
De vez em quando pára­se a pensar nas possíveis críticas que os membros
do júri lhe possam fazer e vai introduzindo mudanças no corpo do texto que
ajudem a argumentar as posturas que ele agora, no momento de redigir, toma.
A   quem   mais   teme   é   ao   professor   Loureses,   sendo   como   é   natural   duma
freguesia   achegada   a   Penacova,   ainda   que   agora   pare   em   Barcelona.   Ele
aguarda que o professor Loureses lhe critique a sua excessiva psicologização na
terminologia, e lhe diga quiçá que bota em falta uma interpretação de corte
mais   simbólico   que   fosse   capaz   de   dar   conta   de   toda   a   complexidade   do
elemento   mágico,   inseparável   da   vida   de   Penacova.   Camilo   aproveita   estas
projecções que faz para ir fazendo os ajustes que lhe permitam sair airoso o dia
da sua dissertação. Contudo, o que Camilo Riba jamais poderia ter adivinhado
é uma das perguntas do professor Loureses, uma sobre as serpes voadoras e os
seus poderes. E daquela Camilo terá­se que arrepender de não ter perguntado
mais aos vizinhos enquanto andava por Penacova… Mas se fizera isso as suas
observações já não seriam tão objectivas… e esse será o argumento usado para
mitigar   o   efeito   da   pergunta.   Claro   que   sim,   não   interferir   co   objecto   da
observação fora o seu lema, e bem difícil que lhe foi às vezes… por isso não
lhes   pôde   perguntar   nada…   e   ademais,   que   ia   a   pensar   a   gente,   e   o   seu
companheiro, se entre as perguntas sobre a pia lhes solta uma sobre cobras
voadoras? Não, isso qualquer entenderia que não se podia fazer. E isso que se o
tivesse feito a gente bem que responderia, pois falar disso era­lhe bem mais

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  181
fácil que falar da pia. Ao cabo, o das serpes essas que voavam acontecia lá por
longe; daqui de Penacova, que se saiba, só as viu o Teófilo, quando andava polo
Norte, e mais diz­se que… “Eram grandes como os temões dos arados, e polo
lombo fora, dos dous lados, estavam cheias dumas asas pequeneiras… como as
conchas das vieiras… Quando erguiam o seu voo, já te podias vigiar. Elas não
mordiam, não, o perigo delas vinha do poder da sua sombra… se che roça a
sombra   duma   dessas,   por   nada   que   seja,   aí   mesmo   ficas   tolheito   e   para
sempre… por conseguinte as gentes andam sempre à procura da sombra das
árvores para que não lhes roce a delas jamais…” Contudo, apesar de não saber
nada disso, Camilo sairá bem airoso, e o professor Loureses alegrará­se de ver
como os galegos ainda somos quem de nos observarmos e de nos criticarmos,
e   fazemo­lo   bem,   ainda   que   às   vezes   para   poder­nos   ver   com   clareza   nos
tenhamos   que  afastar  da  nossa  terra. Ele  mesmo vê tudo  o relativo à nossa
cultura   com   mais   clareza   dês   que   está   aqui   em   Barcelona,   onde   lhe   é
reconhecido o respeito que merece mais que na sua própria terra, não só como
professor   senão   também   como   galego.  Esta  tarde  achegar­se­á   a  algum  dos
bares dos Nou Barris dos tantos nos que se escuta falar na nossa língua, e quiçá
presencie   algo   que   lhe   permita   manter   as   esperanças   da   supervivência   da
nossa   cultura.   Que   desconcertantes   lhe   resultam   as   cousas   que   se   estão   a
passar na nossa terra… mas quando vê gente como Camilo Riba, que desde
aqui é capaz de ir­se até lá coa sua olhada invulnerável frente ao raquitismo, a
tentar   resgatar  o  que   ainda   se puder  salvar…  põe­se  contente e  até  alberga
esperanças de que nos salvemos, de que um dia nós também sejamos um país
normal…   Quiçá,   desta   geração   de   galegos   criados   fora,   livres   da   influência
directa da bidimensionalidade essa da que falava o já doutor Riba, possam sair
homens e mulheres que voltem a ajudar aos que andam hoje já a lutar contra o
suicídio colectivo, contra a desmembração e a auto­mutilação crónicas. 
“Homem   Loureses,   que   gosto   saudar­te”   Era   C.   Rousia,   que   desde   a
entrada do Cinco Estrelas o convidava a passar…  “Olá! Que fazes tu por aqui?
Olha que também che é casualidade, precisamente hoje venho eu dum júri de
tese no que um colega falava da nossa terra, mais falava da tua que da minha,
se calhar viste­o por lá, haverá um ano que visitou aquilo, e…”  Conversam um
bom   bocado,   os   dous   têm   vagar   e  querência  de  fazê­lo…   Depois  C.   Rousia

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  182
despede­se dele: “Já me  tenho de ir,  alegrou­me deveras ter­me encontrado
contigo,   e  não   te  preocupes   tanto,  que  qualquer  dia  se  resolve…  isto  é­che
como dantes quando às mulheres, logo de três dias parindo, lhes davam a água
de   ferver   os   cornozelos…   ‘parir   ou   rebentar’   diziam   então…   e   quando   as
parideiras  enviavam para abaixo aquele xaropote amargo já tanto lhes tinha
morrer   como   não…   algumas   já   estavam   mais   mortas   que   vivas…   pois   nós
também nos livraremos… qualquer dia acaba­se o sofrimento… tanto sentir­se
vulnerável… e isso que eu ainda sou nova, mas há gente que já leva uma vida
longa nesta merda… e de que nos estranhamos ao ver como muitos e eles se
passam ao outro bando e preferem que os seus filhos se alimentem do montão
grande de esterco…? Eles, como os vermes, só pensam na própria subsistência,
e devoram a maçã que lhe serve de alimento, e assim destruem o seu próprio
universo…   eles,   os   coitados,   só   pensam   que   se   estão   a   afastar   do   mal   que
ameaça   com   extingui­los,   e   fogem   moribundos   a   esconder­se   debaixo   do
escudo   do   inimigo,   porque   assim   tão   sequer   já   não   se   apercebem   de   que
morrem… correm sem dar­se conta de que quando se albergam lá debaixo já
estão   mortos…   Fogem   espantados   por   um   espelho   que   lhes   devolve   uma
imagem   de   si   próprios   como   seres   feios   e   desprezíveis,   ora   eles,   tal   que
esganados, não podem ver outra cousa no espelho que têm diante; botam­lhe a
culpa à língua, pois é a diferença que mais ressalta, e contra ela arremetem… E
arrasam a terra tal que mortos viventes que como os vermes se arrastam por
riba dela… Não, não me invejes porque me vou para lá, compadece­me…”

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  183
UM ANO DEPOIS

Trás   o   jantar   cos   membros   do   júri,   como   manda   a   tradição,   Camilo


dedicou­se a andar passeando solitário polas ruas de Barcelona. Sentia­se feliz.
Os membros do júri felicitaram­no por tão brilhante trabalho e, naturalmente,
deram­lhe a máxima qualificação. Agora só lhe faltava encontrar uma revista
galega que lhe ajudara a dar a conhecer os seus descobrimentos. Mas não hoje,
hoje não queria pensar… hoje queria sentir… como fazia quando andava lá por
Penacova com Rafael a primavera passada… Rafael… que seria feito dele? Não
volveram a falar desde o dia em que se despediram em Santiago quando Rafael
o fora levar ao aeroporto. Teria que lhe telefonar… e porque não agora que
tinha tempo? Após a dissertação tinha umas semanas de descanso e ainda não
planeara   o   que   fazer   com   elas.     E   enquanto   se   enchia   de   imagens   da   sua
Barcelona natal, ia pensando no que gostaria de fazer nessas duas semanas.
Pensou que gostaria de ver a gente de Penacova… A Manuel e a sua mulher
Aurora,   e   lembrou   aquele   rebite   encarnado   que   lhe   vira   a   ela   colgando   do
pescoço… daquela não podia falar mas se a visse agora havia de lhe perguntar
polo seu significado… também gostaria de ver ao Ciro e dizer­lhe que era todo
ouvidos, que lhe podia contar todas as histórias de pias que desse lembrado…
E que seria feito daquele moço, cos seus sonhos de escapar lá a Canárias…? E a
tia Maria? Seguirá podendo apanhar nas suas verças…? E o tio Serafim? Toparia
quem   lhe   abra   a   forja…?   E,   claro,   as   três   moças   do   maçadoiro…   sim,
definitivamente queria ver às do maçadoiro, a ele amolara­lhe não poder ter
falado mais durante aquela fase da sua investigação, mas assim são as cousas.
Agora podia volver e arranjar tudo… explicar­lhes porque estivera tão calado. E
enquanto   anda   ele   com   aquelas   evocações,   as   imagens   do   passado   vão­lhe
entrando misturadas com as que lhe regala a cidade que se move ao seu redor

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  184
enquanto   ele   anda…   que   formosa   é   esta   Barcelona…   e   enquanto   revive   as
lembranças nasce nele a imagem duma gesta florida da primavera de Penacova
que se mistura coa dum formoso lagarto de porcelana… Se pudesse colher e
dobrar o mapa da Ibéria… e juntar Penacova com Barcelona… E ele pensava
que aquela era uma ideia mui original que se lhe acabava de ocorrer a ele…
como se nota que passara pouco tempo em Penacova! Ele marchara antes do
Agosto e nunca escutara aos que cada ano a finais desse mês têm que se pôr ao
volante   para   irem   a   Barcelona   de   volta:   “Ai,   quanto   quilometro   inútil   polo
meio… se se pudesse dobrar o mapa… com uma alancada já chegava!”   Mas
ele,   sem   nada   saber   disto,   aquele   dia   ia   dobrando   o   mapa   e   saltando   de
Penacova a Barcelona com toda a facilidade. Ainda que o que ele fazia era uma
superposição que lhe permitia andar polos dous sítios a um tempo, e ele ia
escolhendo dum e doutro, criando assim o seu mundo ideal… Um mundo no
que ambas as duas realidades tinham plena razão de ser; onde nenhuma é pior
nem melhor, senão dous mundos irmãos… e pensando naquilo, e sentindo a
imensidade   dos   seus   universos,   foi­se   na   procura   dum   telefone.   Falou   co
Rafael, que muito se alegrou de o escutar. E quase sem aperceber­se sequer já
estava no aeroporto de Santiago de novo… 
–  Mesmo parece que foi ontem quando me vieste trazer ao aeroporto e
logo vai lá um ano…
– E polo que me contaste, para ti não foi mal aproveitado… 
– Não tenho queixa, mas conta­me agora de ti, que ainda não me contaste
nada…
O  reencontro fora  intenso,  tal que de parentes se tratasse, e depois  de
visitar   Compostela,   aquela   mesma   tarde   volveram   às   terras   do   Deza   onde
Camilo gozou duma familiar acolhida. Logo planearam uma visita a Penacova.
À primeira não estavam mui certos de se o deviam fazer, eles já não eram quem
foram, e talvez também já ali as cousas andavam doutra maneira… porque não
deixar tudo como está, e reter aquela lembrança tão suave e doce que ambos
conservavam? Camilo tinha outros sítios que visitar, lá pola Fonsagrada onde
moram os da sua gente pola parte de seu pai, e podia adiantar a sua marcha…
Mas não há­de ser tal… e puseram­se ao caminho para o outro dia à manhã. 

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  185
Quando iam subindo pola estrada d'Os Mouros, mesmo em chegando a
Ameixeiras, avistaram a um grupo de gente toda junta na beira do caminho.
Rafael   conduzia   devagar   e   puderam   ver   como   de   dous   em   dous   se   iam
metendo todos na taverna. Pararam o automóvel e, danados pola curiosidade,
entraram   no   bar   eles   também,…   afinal   de   contas,   era   um   lugar   público   e
ninguém   lhes   ia   dizer   nada,   ainda   que   aquilo   parecia   uma   reunião…   um
conselho, diria a gente. Ficaram de pé direito na esquina do balcão, perto da
porta.   A  gente,   alguma   sentada  e outra   de   pé,  olhava   para  um  homem   que
tinha agora a palavra e começava a falar…
–  Pois eu peço­vo­lo deveras a todos… e já vos digo que a candidatura
está aberta… e eu seria mui gostante de que alguém de Ameixeiras se unisse a
ela…   já   há   gente   de   Penacova   também   apontada,   e   de   Fontearqueira,   e   de
todos os lugares, se me apuras até de Penalapa levaremos gente… já só ficais
vós para as listas estarem completas, e mais estarmos todos representados… 
Um   homem   de   uns   sessenta   e   tantos   anos   falou   então,   e   parecia
representar bem o sentir de todos, porque todos acenaram coa cabeça ao que
ele dizia, …e disse que não se devia estranhar se a gente semelhava um bocado
remissa, mas que já escarmentaram muito… e não precisamente na cabeça dos
outros… que eles tinham os seus reparos para fiar­se da política… 
– Eu compreendo o que me dizes, Severo, e não te falta razão nenhuma,
contudo tens que admitir que todos nos equivocamos, e que de não ser assim
não se precisariam as segundas oportunidades… 
E   o  orador  seguiu   a  falar  das  segundas   oportunidades e  do  muito  que
aprende a gente quando não sabe o que tem e o perde… e assegura­lhes que se
o apoiam não se vão arrepender… A Camilo e a Rafael parecia­lhes que aquele
homem   falava   com   sinceridade,   e   perguntaram­lhe   ao   de   detrás   do   balcão
quem era – “É o velho alcaide, que se quer apresentar outra vez”… E o orador
seguiu a falar, mesmo semelhava que tinha pressa por sair eleito outra vez,… e
que certo era, ele tinha assuntos pendentes que resolver, assuntos que estavam
à  sua   espera  e  ele  já  não   via  a hora de poder  começar…  à  Fonte ser­lhe­ia
devolto o seu  caudal,  ainda que ele  mesmo tivesse que  abrir  o buraco  coas
mãos e fazer um muro de contenção… e ademais tinha ele outras contas que
saldar e havia de ir pouco a pouco até pagar por todas; e com essa esperança

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  186
seguia a falar, e a gente a interpelar. Rafael e Camilo foram­se embora e não
ouviram como rematava aquele meeting, no que o orador, que estava a deixar
medrar a barba ou talvez se esquecera hoje de se barbear, se empregou a fundo
para  colocar   a  sua  mensagem  dentro das  cada vez mais  atentas cabeças da
gente. 
Camilo e Rafael chegaram a Penacova, e em vez de meter­se para a aldeia
decidiram dar uma volta co automóvel polas pistas, primeiro foram caminho
de Penalapa e ao passarem A Tapada colheram o caminho que polas Lamas do
Baio leva à Travessa; ali pararam e saíram do auto, estavam no pé do Castelo da
Rainha Loba. Sentiram um bouchear intermitente que vinha de lá do fundo das
carvalheiras.   Atraídos   pola   sua   natural   curiosidade,   caminharam   por   um
carroucho   estreito   entre   os   carvalhos   e   foram   ter   a   um   lugar   onde   havia
cachotes de pedra escangalhados. Ali nascia o boureio e não tardaram em dar
co responsável, um homem de mediana idade que semelhava estar a fazer uma
escultura, ou algo parecido. A eles surpreendeu­lhes que aquele homem, em
vez de começar por uma grande rocha e ir tirando o que lhe sobrasse, parecia
fazer ao revés, e andava a juntar cachotes e fazendo­os casar uns cos outros e
mais com um plano que parecia consultar lá dentro da sua cabeça. O homem
nem reparou neles, e continuou a colher e a provar pedaços de pedra nos ocos
que faltavam. Eles olharam um pouco para aquele pedreiro que parecia cego
para tudo menos para aquelas pedras e os seus martelos, e só descansava para
botar uma olhada lá para os montes da Rousia, ou cara aos vales da Límia, com
um olhar que mostrava que ele também tinha outras contas por pagar. Camilo
e   Rafael   admiraram   a   habilidade   que   parecia   ter   nas   suas   mãos,   depois
marcharam. Debateram­se entre dar a volta e ir buscar o automóvel ou baixar
polo monte abaixo até chegar ao meio de Penacova. Decidiram deixar o seu
veículo para mais tarde, e foram­se caminhando até às casas. Primeiro foram
dar   uma   volta   polo   lugar.   Eram   muitas   as   lembranças   guardadas   e   agora
também,   por   ambos   os   dous,   prezadas,   ainda   que   algumas   não   fossem   tal
quando   as   viveram.   A   Camilo   amolou­lhe   não   dar   visto   as   três   moças   do
maçadoiro e até quis ficar sentado ao pé da casa da escola, enquanto Rafael ia
visitar o Manuel, mas aquilo não estava bem, e resignando­se a ser lembrado
polo   seu   silêncio,   marchou   co   seu   amigo   a   caminho   do   fundo   da   aldeia.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  187
Recebeu­os a Aurora, o Manuel andava no monte… “chega este tempo e não
há quem pegue nele em casa… tem tanto labor do que botar mão… hoje foi
amorear tantinha erva, ao passo que levou o gado para o monte… como lhe vai
amolar não os ter visto… se não fosse tão longe davam­me ganas de ir na sua
procura…!”     A   eles   também   lhes   amargou   não   ver   o   Manuel,   mas
conformaram­se com ver a Aurora, e perguntaram­lhe que tal iam as vacas, e
se   levaram   para   o   matadoiro   a   bezerra   da   Marquesa   ou   a   criaram…   “Já,
homem, já; onde ela vai! E mais, muito lhe amargou ao meu homem ter­se que
desfazer   dela…”   disse­lhes   Aurora   com   uma   fala   carregada   de   saudade.
Marcharam. Passaram por diante da casa do Serafim e botaram uma olhada
para o corredor… Não viram a ninguém, o ferreiro não estava sentado no seu
escano ao lado dos jornais que lhe juntara o seu neto Daniel este último ano.
Deram­lhes ganas de subir e bater, mas decidiram seguir, e ao reparar na porta
da   forja,   viram   que   estava   aberta;   lá   dentro   um   homem   soprava   as   brasas
ardentes  nas   que  já  se  estava  a  temperar  o ferro.   Aquele  homem  não  era  o
Serafim;   era   um   homem   muito   mais   novo   que   ele,   um   homem   que   agora
deixava descansar os  foles  e com as tenazes sacava o reluzente ferro  e com
força começava a bouchear nele. Com cada golpe, sua estrela de faíscas que se
funde e esvaece no espaço que o rodeia. Aquele homem era o Narciso, ainda
que eles nunca o saibam, e enquanto seguem o seu caminho Rego arriba, vão
escutando   como   os  bateres  do martelo deste novo ferreiro  se misturam cos
ecoares  duma   canção…   aquela   melodia  faz­lhes   lembrar   o   velho   ferreiro,   e
como então tampouco agora entendem o que diz a letra… e marcham. Mas
não   é   de   estranhar   que   a   não   entendam,   o   próprio   Narciso,   que   a   canta,
tampouco acaba de saber o que quer dizer. A melodia segue­lhe a lembrar as
cantigas que de pequeno lhe ensinava sua avó, ora na poesia intui­se uma força
nova,   uma   força   que   em   lugar   de   amolecer   o   seu   espírito   vai   fazendo­o
resistente,   tão  rijo   como   o   próprio   ferro   no  que  boura.   E   enquanto   golpeia
decata­se   de   que   o   ferro   reluzente   mais   que   relha   parece   espada,   e   nesse
instante   entende   o   sentido   da   sua   canção…   e   com   mais   força,   se   couber,
golpeia   agora   enquanto   vai   calculando   se   haverá   relhas   de   avondo   para
desterrar o selvagismo que assola a Terra.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  188
GLOSSÁRIO

Definições   e/ou   sinónimos   segundo   os   usos   na   Galiza.   Este


glossário   foi   elaborado/adaptado   a   partir   do   Dicionário   Estraviz
(disponível na Internet em www.agal­gz.org/estraviz/).

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  189
A Argalhar  v.   tr.  (1)   Inventar   mentiras.   Mentir.
Tramar. (2) Armar ou promover embrulhos. (3)
Abofé  adv. Certamente, em verdade.  Abofé que o Discorrer,   inventar   contos   ou   histórias.   (4)
fez: em verdade que o fez [de a + boa + fé].  Conceber um plano com uma finalidade prática.
Aboujar v. tr. Aturdir a berros e com forte ruído. Arramplar  v. t. Arrepanhar, arrebatar .
Acadar  v.   tr.   (1)   Recolher,   colher.   (2)   Alcançar, Arrelar  v. i. e r.  (1) Fadigar­se  com o muito  peso
conseguir. (3) Dar no alvo. [lat. accaptare]. que se leva às costas. (2) Dobrar­se com a carga.
Acaer  v.   i.  (1)   Ser   próprio,   ajeitado,   ajustado: (3) Derrear.
acae­lhe   bem   a   alcunha.  (2)   Assentar   bem, Artelhar v. tr. Articular, organizar.
favorecer: acae­lhe bem o vestido. [lat. accadere]. Assolagar v. t. Anegar, submergir, alagar.
Acochar  v.   tr.  (1)   Cobrir.   Abrigar.   (2)   Ocultar. Assumiçar  v.   t.   e   r.  Fazer   parecer   mais   pequeno,
Esconder.   (3)   Proteger.   Amparar.   v.   r.   (1) menos importante.
Abrigar­se bem na cama. (2) Meter­se na cama a Atarricado adj. Atestado, abarrotado, atarracado.
causa de uma doença [de cochar]. Avantar v. tr. Ir para adiante. Adiantar. Avançar.
Acotegar v. t. Arrumar. Avondo adv. (1) Avonde, abundantemente; (2) adj.
Acougo  s.   m.  (1)   Acto   ou   efeito   de   acougar   ou Suficiente [lat. Abunde].
acougar­se,   acoito   (2)   Sossego,   tranquilidade,
calma, repouso.
Agarimar v. tr. (1) Proteger, amparar. (2) Arrimar a
B
outrem algo que o abrigue e lhe dê calor. (3) Por Bágoa s. f. Lágrima.

ext.  Tratar   com   carinho.  v.   r.  (1)   Pôr­se   ao Balorecer v. i. ou v. t. Bolorecer. 

agarimo   de   alguém.   (2)   Pôr­se   ao   abrigo.   (3) Barquela s. f. Recipiente de madeira em que se põe

Abrigar­se bem com roupa. a comida aos porcos.

Alancada s. f. Passo muito largo.  Bica do testo s. f. Pão de trigo comprimido e chato

Alcaide  s. m. Autoridade administrativa espanhola que se coze numa tigela.

que   corresponde   a   presidente   da   câmara   em Bimbarreira s. f. Pendente, encosta.

Portugal. 
Alpavarda  s.   m.   Papa­moscas.   Pessoa   sem Bourar v. i. Golpear, bater, malhar.

resolução. adj. Atontado. Aparvado. Simples. Boureio  s.   m.  (1)   Algazarra,   tumulto.   (2)   Faina,

Alprecha s. f. Alcunha. trafego. 

Amalhoar v. tr. Atar com amalhó. Bouchear v. i. Martelar.

Amalhó s. m. Cordão de coiro para atar os sapatos. Broma s. f. Brincadeira, piada.

Amedouchado  adj.   Disposto   em   forma   de Bruar v. i. Rugir, zoar.

medoucho, ou meda pequena. Buligar v. i. Mover­se, bulir, oscilar.

A modo loc. adv. Com jeito, muito de vagar.
Amoreado  adj.   Posto   em   moreia   ou   montão. C
Amontoado.
Cachote  s.   m.  Pedaço   de   pedra   de   cantaria   sem
Apanho  s.   m.  (1)   Acomodo,   arranjo:  tenho   este
lavrar. Pedra grande desprendida de um penedo.
apanho para ir vivendo. (2) Trato ilícito e oculto
Cadanseu/Cadansua  adj.   Cada   um   seu/sua:  iam
com pessoa de distinto sexo.
com cadanseu carro.
Apoleirar v. tr. e r. Empoleirar.
Canchês  adj. e s.  Aquele que tem as pernas tortas
Arestora  adv.   t.   A   esta   hora.   Neste   momento.
ou arqueadas, cambaio.
Agora. [lat. hac + ista + hora].

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Cão  s.   m.  Denominação   popular   duma   antiga Clouca s. f.  Sapela ou rã pequena.
moeda de dez cêntimos de peseta. Cocho  s. m.  Buraco. Toca. Fojo. Esconderijo, lugar
Cara a prep. (1) Indica direcção: marchou­se cara à secreto,   pequeno   refúgio   de   um   animal.     [lat.
vila. (2) Aproximação temporal: recolhe as vacas copulu]. 
cara a tarde. (3) Aproximação local: cara a serra Combarro  s. m.  Lugar onde se guarda a lenha do
vê­se o nevoeiro. inverno, lenheira.
Caráfio  Interjeição que denota surpresa ou enojo Comesto p. p. irreg.  de comer.  adj. (1) Consumido,
(eufemismo de caralho). acabado,   extenuado.   (2)   Que   foi   comido:
Carpaço s. m. Carrapiço. comesto   dos   cães,   dos   vermes.  (3)   Carcomido,
Carrela s. f. Talhada, fatia.  roído, gasto: comesto polos anos. 
Carroucho s. m. Carreiro difícil de transitar.  Conhecias s. f. persoas conhecidas; conhecidos. 
Casalandreiro  adj.  Diz­se   da   pessoa   amiga   de Cornozelo  s.   m.  Cornição,   cornecho,   crava­
andar polas casas alheias. gem­do­centeio, doença do centeio causada por
Castrapo  s.  m. pop.  despect.  Variante dialectal do um   fungo   que   contém   alcalóides   de
idioma   castelhano,   muito   influída   polo propriedades medicinais e psicotrópicas.
galego­português, falada na Galiza. Coucheira  s.   f.  Conjunto   de   plantas   ou   ervas   da
Cativo s. m. Menino. mesma espécie  que se  distingue no terreno do
Ceia­cú  adv.  Com   retrocesso,   movendo­se   para resto pela sua espessura e altura.
trás. Couchopé   (Ao)  loc.   adv.  A   pé­cochinho,   andar
Ceivar  v. t.  (1) Soltar o gado que estava atado. (2) apoiando um só pé no chão.
Soltar   os   animais   do   jugo.   Desjungir.   (3)   Dar Cova­terra  s. f.  Esconderijo debaixo da terra onde
liberdade a uma pessoa:  o juiz mandou ceivá­lo vivem as toupeiras.
por   ser   inocente.  Deixar   livre.   (4)   Destapar   as Crego s. m. Clérigo [lat. Clericu].
águas. Crencho  adj.   Crespo,   riço,   enguedelhado:  tem   o
Ceive  adj.   Livre,   sem   nenhum   tipo   de   atadura, cabelo crencho (var: crecho).
falando de animais, terras. Creto s. m. Crédito, credibilidade, fama, confiança.
Chantar v. t. Plantar de estaca, espetar. Cuinchar  v. i.  cuincar, grunhir, particularmente o
Che Gram. Forma do pronome pessoal de segunda porco.   v. t.  por extensão, cravar­lhe o cutelo ao
pessoa quando funciona como objecto indirecto, porco para o matar, provocando que cuinche.
comum na Galiza em substituição da forma te:
vou­che   dar   o   que   che   prometi;   não   cho   posso
contar.  Forma de dativo de «solidariedade» (no
D
Daquela  adv. t. e m.  (1) Naquela ocasião, naquele
diálogo   designa   um   interlocutor   a   quem,   sem
tempo:  já   daquela   falavam   de   vir.   (2)   Então,
recair   nele   nem   direita   nem   indirectamente   a
nesse   caso:  daquela,   não   o   pago;  daquela   não
acção   verbal,   de   algum   modo   interessamos   ou
temos mais que falar [de de + aquela].
implicamos   no   que   enunciamos,   como
Dar  +   particípio   verbal  Construção   que   expressa
concedendo­lhe   simpaticamente   participação):
capacidade ou possibilidade de o sujeito atingir
dói­che­me muito a cabeça; quando vem? –  Não
a acção do verbo (exemplo: dar chegado a tempo:
cho sei.
ser capaz de chegar a tempo).
Chinguilinada  s.   f.  Cousa   miúda   e   de   pouca
Decatar­se v. r.  Dar­se conta, aperceber­se. 
importância.
Decolgar v. i. Colgar; pendurar. 
Chouchar v. i. Rolar: a pedra foi chouchando monte
Decotar  v.   tr.  Cortar   por   cima   ou   em   volta,
abaixo.
especialmente pôlas de árvores.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  191
Decrua  v. t.  Acto de decruar; primeiro amanho ou Esnaquiçar  v.   tr.  Fazer   pedaços   alguma   cousa,
lavra da terra para a sementeira.  destroçar,   esnacar.  v.   r.  Fazer­se   pedaços,
Deica pouco loc. adv. Quase, perto de. romper­se.
Deluvar  v. tr. (1) Esfregar suavemente:  deluvar os Estinhar v. i. e t. Estiar, deixar sem líquido. 
olhos   pola   manhã.  (2)   Esfregar   com   força   a Estrelinha do Luzeiro   Estrela da Manhã. 
roupa. Estrume  s. m.  (1) Mato, palha e despojos vegetais
Deputação  s. f.  Câmara territorial de província, na que   se   empregam   como   cama   do   gado   para
Galiza. obter esterco.  (2) Resíduos vegetais   misturados
Desacougo  s.   m.  Desassossego,   inquietude, com os excrementos dos animais, com os que se
intranquilidade. Desacoito adubam as terras para as fertilizar.
Devandito  adj.  Que   já   fica   dito.   Mencionado
anteriormente.
Devezer  v.   i.  Sentir   um   intenso   desejo   por   algo
F
Fachonco  s. m.  Buraco pequeno que se enche de
(devezo).
água. 
Devezido adj. Com devezo ou apetência insaciável.
Fárria  s.   f.  (1)   Classe   de   rocha   de   estrutura
Devezo s. m. Ânsia ou desejo muito intenso de algo.
piçarrosa, da mesma composição que o granito,
mas submetida a distinta pressão geológica. (2)
E Abertura estreita entre rochas.
Emborcalhar­se  v.   tr.   e   i.  Rebolar­se   polo   chão Fento s. m. Feto.
como os animais. Fotingo s. m. pop. Automóvel de pouca potência. 
Encadilhar  v.   tr.  Entrançar,  enrestiar.  Por   ext. Frôncega s. f. Fronça. 
Organizar as acções na direcção ajeitada. Fame s. f. Fome. [lat. Fame].
Escrebadela s. f.  Sonadela, sono curto e ligeiro.
Ençoufado adj. Sujo, manchado, lixado.
Enferrar v. i. Enganar. 
G
Gesta  s.f.  giesta,   nome   de   algumas   plantas
Engabachado  v.   i.  Gabacho,   muito   bem   vestido,
subarbustivas   da   família   das   Leguminosas,   de
como para uma festa. 
talo   lenhoso,   com   polas   delgadas   e   flexíveis   e
Ensinar  v.   t.  (1)   Transmitir   conhecimentos   e
flores   amarelas   ou   brancas,   algumas   das   quais
competências   a;   (2)   Mostrar,   deixar   ver;   (3)
são   espontâneas   na   Galiza   e   Portugal.   [lat.
Indicar, sinalar.
Genista].
Entear v. i.  Avivar o lume. v. t. Avivar­se o lume.
Guichar  v.  t.  Espreitar,  vigiar, observar desde  um
Entroido s. m. Entrudo. 
lugar oculto para não ser visto.
Enviar  v. tr.  (1) Mandar alguém ou alguma cousa:
enviar um criado às compras.   (2) Tragar:  enviei
um   osso   do   frango.  v.   i.  Tragar,   comer   sem H
mastigar:  este,   em   vez   de   tragar,   envia  [lat. Ho   Interjeição que exprime certeza.
inviare]. Homem da moca  s. m. Personagem fantástica que
Enxoito adj. Enxuto. representa   o   sono,   e   dá­nos   mocadas   para
Escacaranhar­se v. ref. Perder­se de riso.  induzi­lo.
Escarrapatar  v. i.  Remexer  a terra com as unhas,
esgaravatar.
I
Intriquidência s. f. Complicação, embaraço.

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J Meixela  s.   f.  Maçã  do   rosto.  Cada   uma   das   duas
proeminências do rosto debaixo dos olhos. [lat.
Jamão  s.   m.  Variedade   de   presunto   preparado   à maxilla].
moda da Galiza. Mentres adv. t. Mentes, enquanto, entretanto. [lat.
Janeira s. f. Cio dos gatos e outros animais. de um interim].
Mera  s.   f.  (1)   Parte   da   herança   que   toca   a   cada

L herdeiro. (2) Parte comunal que lhe corresponde
a cada vizinho [gr. meros]. Porção.
Lacazanear v. i. Andar à preguiça.  
Moinheiro  adj.   e   s.  Pertencente   ou   relativo   ao
Larejar v. i. Arder mui rápido o lume.
moinho ou à moagem.  s. m.  O que tem ao seu
Larpar v. tr. Engolir rapidamente.
cargo um moinho.  
Latricar v. i. Falar à toa, sem sentido e berrando.
Mole e mole  Pouco a pouco. 
Lea  s.   f.  (1)   Luta,   briga,   peleja.   (2)   Complicação,
Molida s. f. Protecção que levam as vacas e os bois
enredo, confusão.
para   que   não   moleste   o   peso   ou   a   carrega   ao
Ligar de  Acontecer por um acaso. Calhar de.
jungi­los; molídia.
Liorta  s.   f.  (1)   Confusão,   enredo,   barafunda.   (2)
Mornura s. f. Mornidão, tepidez.
Disputa, peleja.
Moruja  s. f.  Morugens, planta herbácea frequente
Liscar  v.   i.  (1)   Marchar,   ir­se.   (2)   Fugir:  liscou
nos terrenos areosos, e nas fontes. 
quando viu a polícia.
Mouminhar v. tr. Falar polo baixo. Murmurar.
Lispar v. t. fig. Larapiar, roubar.
Lumieira s. f. Peça longa de pedra ou madeira que
se   põe   sobre   os   marcos   das   portas   e   janelas. N
Lintel.  Neno/nena s. m./f.  (1) Ser humano de pouca idade.
(2) Moço/Moça novo/a. 

M
Maçoucado adj. Que tem maçaduras. O
Mada s. f. Quantidade de cousas que cabem numa Ola  s.   f.  (1)   Vasilha   arredondada   para   preparar
só mão, mão­cheia. comidas.   (2)   Recipiente   de   barro   para   carrejar
Mália  interj. Mal  haja:  mália  quem te  criou.  conj. agua. (3) Caçoula de barro na que se guardam os
Apesar de: mália que não ando bem, irei. chouriços.   (4)   Recipiente   de   madeira   para
Malhões s. m. Correias de coiro com que se atam os guardar   ou   maçar   o   leite.   (5)   Medida   de
socos ou chancas, amalhões. Cordões. capacidade equivalente a 16 litros.
Malpocado  adj.   e   s.  Infeliz,   coitado,   desgraçado. Ombreiro s. m. Ombro.
adv. Mal­pecado. Ouleo s. m. Uivo. 
Mancar v. tr. Magoar, lastimar, ferir.
Maniota  s.   f.   (1)   Freio   para   prender   a   mão   dos
animais. Peia. (2)  pl. Dor que se sente nalguma
P
Passeninho adv. Devagarinho.
parte  do corpo depois  de realizar um exercício
Pedâneo  adj. (1) Antigamente, juiz que numa vila
muito violento ou muito seguido.
ou aldeia julgava de pé. (2) Alcaide duma aldeia
Marelo adj. Amarelo. 
[lat. pedaneu].
Matinar  v.   t.   e   i.  Pensar   com   empenho   e
detidamente alguma cousa. Cavilar, discorrer.

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Peso  s.   m.  Denominação   popular   na   Galiza   da Queixil  adj.   Queixal.   Do   queixo.  s.   m.  (1)   Dente
antiga   moeda   espanhola   de   cinco   pesetas. molar.   (2)   Mandíbula   inferior   do   porco.   (3)
Moeda espanhola que valia cinco pesetas. Queixada, mandíbula. 
Petar v. i. (1) Chamar dando golpes numa porta. (2) Quadra (se) adv. Talvez, quiçá. Se é do caso, pode
Fazer   ruído   andando,   trabalhando   com   um acontecer que: se quadra, vem hoje. Dar quadra:
martelo, etc. (3) Pegar, golpear. dar razão, lembrar­se.
Pinho  s.   m.  Parte   do   carro   de   bois   por   onde   se
puxa,   e   que   habitualmente   se   amarra   co
temoeiro ao jugo.
R
Rabunhar  v.   tr.   Ferir   com  as   unhas.   Esgaravatar,
Pipela, ou pipel  s. f.  Cano lavrado na pedra,  polo
ranhar, arranhar. 
que sai a água duma fonte.
Ranhar  v. tr. e i.  Arranhar. Esfregar a pele com as
Porca s. f. (1) Jogo que consiste em fazer um buraco
unhas. Não ter que ~ não ter que fazer.
grande   (porca)   e   vários   pequenos   (quichos)   e
Rauto s. m. (1) Rapto. (2) Arrebato [lat. raptu].
com cajados intentar uns jogadores meter a bola
Rechouchio s. m. Trinado, gorjeio. 
de urze ou de outro material dentro, no entanto
Recuncho s. m. Recanto, canto. 
lho   impedem   os   outros.   Os   jogadores
chamam­se   porqueiros   e   têm   que   defender   a Refaixo s. m. Espécie de saia curta e rodada, que se

porca   e   o   quicho   para   impedir   que   os   outros leva   de   baixo   da   saia   de   fora.   Saia   de   baixo.

metam   a   bola   no   buraco.   No   caso   de   que   a Saiote.

alguém lhe colham o quicho tem que seguir com Refistolar v. i. Remexer tudo buscando algo.

a porca. Quando a bola entra no grande têm que Refistoleiro  s.   m.  Diz­se   da   pessoa   que   remexe

se mudar os que guardam os buracos pequenos tudo buscando algo.

com rapidez e o que meteu a porca sempre tem Refucir v. t. Arregaçar.

que ficar depois num pequeno; o buraco grande: Reganho s. m. Raiva.

cocha  e os pequenos  guichos; o buraco grande: Renguelear v. i. Andar de jeito rengo ou derreado.

cocha;   os   pequeninhos:  cochinhos.   (2)   A   bola Ringleira  s.   f.  Linha   de   cousas   ou   pessoas   em

redonda para jogar. (3) Buraco grande no jogo da ordem. Fileira.

porca. Dar tronos, significa meter a cabeça (bola) Rolda s. f. (1) Turno no reparto da água de rega. (2)

na   buraca   e   apertá­la   com   os   paus.   A   «trela» Turno, vez. [lat. rotula].

consiste em pôr os cajados na porca e meter­lhe Roscão s. m. Doce elaborado com farinha, ovo, leite
a   cabeça   no   buraco   ao   que   não   quer   seguir e açúcar, cozido no forno.
jogando [lat. porca]. Rouchar v. i. Andar da roda, rodar.
Poula  s.   f.  Terreno   de   pousio,   inculto,   mas Rustrir v. tr. (1) Frigir algo em azeite, manteiga ou
cultivável. gordura,   alho,   etc.,   para   condimentar   um
Póutega:  s. f.  Pútega; planta herbácea, comestível, manjar. [fránc. hraustjan,prov. raustir].
da família das Raflesiáceas, parasita das raízes de
várias   plantas,   que   se   encontra  na   Galiza  e   no S
Norte e Centro de Portugal, também conhecida
Sarriço  s. m.  Espinhaço muito visível num animal
por coalhadas.
fraco.
Presel s. m. Pesebre.
Saculeão  s.   m.  Sacudidela,   empurrão,   particu­
Pruício s. m. Pruído, comichão, prurido.
larmente o que se dá co ombro debaixo do corno
da vaca, mentes se puxa pola soga com a que se
Q junge, para que fique melhor apertada.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  194
Santa Companha  s. f. Procissão de almas penadas Trousar v. tr. (1) Vomitar; (2) Trouçar, trasfegar.
que, segundo as crenças tradicionais da Galiza e Tega  s.   f.  Teiga.  (1)   Medida   de   capacidade   para
do Norte de Portugal, percorre de noite as fragas cereais com valores diversos segundo as zonas.
e caminhos para ir recolher as almas das pessoas (2) Recipiente de madeira usado para a medida
que morrem ou para anunciar­lhes a sua morte.  de áridos. (3) Quantidade de grão que colhe na
Sedenho  s. m.  Corda   grossa  para  atar a carga  do tega.
carro, adival. Trugir v. i. Mover­se (vai sempre acompanhado da
Seica  adv. de dúvida. Acaso, talvez, quiçá, parece; negação não: não te trujas).
dá origem a numerosas locuções ou modismos
com certo matiz interrogativo.  Seica estás  tolo?:
que   dizes,   fazes   ou   te   propões?  Seica,   seica:
U
U  adv.  ant.   Onde.   Forma   um   pronome
quiçá,   quiçá.  Seica   sim:   parece   ser  certo,   pode
interrogativo   referido   tanto   a   pessoas   como
ser. Seica sim?: de modo que é certo.
cousas: u­lo, u­la [lat. ubi].
Seitura s. f. (1) Acto ou efeito de segar. (2) Época de
Uzeira s. f. Urzeira.
segar os cereais. Ceifa, sega [lat. sectura].
Senha  s.   f.  Na   mitologia   popular   galega,   imagem
fantasmal duma pessoa que não está presente, V
cuja visão anuncia a próxima morte desta. [lat. Vaso s. m. Copo.
signa, pl. de signu]. Velaí interj. Eis aí: velaí o que fez.
Solaina s. f. (1) Sítio ou paragem onde dá o sol. (2) Vê­las vir (estar a ~) Ficar pasmado.
Lugar   aberto   com   balaustrada   de   pedra,   com Vencelha  s. f.  Vencilho,  corda feita de palha e de
uma grande escada de aceso que acostuma ser a um só lado, empregado para atar os molhos.
entrada principal nos paços galegos.  Vieiro s. m. Caminho. [lat. viariu].
Sona s. f. Fama, creto, renome. Vindeiro adj. O que está por vir, que está próximo.
s. m. pl. Sucessores, os que hão de nascer ou vir

T depois.
Viosbardos s. m. Gambozinos; Andar aos ~ andar
Tarabelo s. m. Taramela, pessoa tagarela. desnorteado.
Tendal s. m. Tendedeira, lugar da casa do forno em
que se tende a massa e se faz o pão. 
Z
Topenejar  v.   i.  Dar   cabeçadas   com   o   sono,
Zagões s. m.  Espécie de avental de coiro que se usa
dormitar. 
na faina de atar os molhos ou gabelas da messe.
Trebelho  s.   m.  Aparelho   empregado   numa
Zarapulho s. m. Migalho.
determinada actividade.
Troula s. f. Diversão buliçosa, pândega.

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Índice

Ficha técnica 2
Sobre a autora 3
Dedicatória 4
Prólogo 5

Limiar 11
Capítulo I – A Fontecova 13
Capítulo II – A Fonte da Auguela 36
Capítulo III – A Fonte da Cunca 65
Capítulo IV – A Fonte de Requeijo 89
Capítulo V – A Fonte do Galo 100
Capítulo VI – A Fonte do Jardim 128
Capítulo VII – A Fonte 150
Descobrimento 169
Um ano depois 184

Glossário 189
Índice 196

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Edições ArcosOnline.com
www.arcosonline.com

Literatura
ode a um poeta naturalista (narrativa)
A Busca Entre o Vazio (narrativa)
O Livro Verde das Verdades (poesia)
é preciso calar o monólogo (poesia)
Antes do Fim (narrativa)
Histórias Que Acabam Aqui (contos para a infância)
As Sete Fontes (romance)

Actualidade e cultura
A Língua Portuguesa no Alto Minho (ensaio)
European Writings on Psychology (textos científicos)

Humor
O Bando dos 6 ou 7 (crónicas)
O Malogrado Capitão Osório (folhetim)

Em preparação:
A Vida Extrema (poesia)
O Salústio Nogueira (romance)
Lince Ibérico – Revista Literária de Expressão Ibérica

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