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Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.

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Hobby Estranho
Abs Moraes

I.

Os cabelos ajustados com perfeição em um coque na parte anterior da


cabeça da mulher no carro ao lado despertaram mais uma vez minhas
imaginação e curiosidade. O monturo preto de brilho acetinado denotava
correção a toda prova, indicava um comportamento quase compulsivo-
obsessivo com a aparência. Sim, a aparência. Num mundo regido pela
extrema importância dada à superfície, muitas patologias perigosas
passam desapercebidas. Seria o caso dela?

Ao entrar no prédio de escritórios, cruzei com o boy da agência de


turismo. Brincos e piercings adornando a cabeça que culminava num
orgulhoso moicano ostentado à custa de paciência diante do espelho e
uma quantidade perigosa de gel glicerinado. Na idade dele, o importante
é pertencer a um grupo. Dentro de dez anos ele olhará constrangido para
fotografias que documentarem suas tentativas de tribalizar-se, mas no
momento em que nossas sombras se sobrepuseram no chão encerado do
saguão do prédio, pude ler com clareza em seu sorriso metálico a opinião
que tinha a meu respeito. Muito desabonadora, claro. Mas sarcasmo não
é província exclusiva de adolescentes e “sorriso” é meu jeito eufemístico
de demonstrar o meu,

substantivando assim o esgar dúbio do rapaz. Mais uma vez a aparência é


prevalente, mesmo que a patologia ainda não se tenha manifestado.

Já acomodado em minha mesa e estudando gráficos e planilhas


desenhadas na fosforência verde da tela do computador, não consegui
deixar de olhar insistentemente a cabeça de um colega na mesa vizinha.
Como um frenologista amador, senti a tentação de pedir-lhe permissão
para apalpar seu crânio seminu, resultado de um corte de cabelo popular
hoje em dia que, de muitas maneiras, é similar à tosa inflingida a animais
domésticos para prevenção ou tratamento de doenças de pele. Seria o
toque um instrumento eficaz na detecção de uma doença mental? Meus
dedos formigariam em contato com cabelo tão curto quanto uma barba
de três dias?

Cabelos ou cortes de cabelo não são facilmente associados aos seus


donos e suas idiossincrasias ou, pelo menos, àquelas que vão além da
superfície.

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II.

Hobbies nascem da necessidade de distração das agruras da vida diária e


podem tornar-se tão massacrantes quanto elas, tão rotineiros e obsessivos
quanto o coque perfeito da mulher no carro ao lado, à espera do sinal
verde para o prosseguimento de seu percurso. O meu consistia da
observação atenta dos outros, de seus tiques, hábitos e aparências e da
comparação posterior dos dados levantados com arquétipos literários.

Seu nascimento deu-se em minha fase cervejas-sexo-casual-escatologia-e-


gargalhadas-altas

que coincidiu com a descoberta da literatura polêmica e sexista de


Charles Bukowski. A identificação inevitável ocorreu num quarto de
motel barato, pós-coito, em que lia o inconsequente CARTAS NA RUA
que relata, quase autobiograficamente, a relação do autor com uma
ninfomaníaca. A descrição de minha parceira do momento (que se lavava
no banheiro impessoal, usando miniaturas de sabonete e sachês de
shampoo) no livro era perfeita da cabeça aos pés, externa e internamente,
e não tinha sido escrita por mim.

Daí por diante, não pude deixar de reconhecer o amigo louco, bêbado,
infame e inteligente que correspondia ao Neal Cassady descrito por
Kerouac em ON THE ROAD ou minha própria similaridade com os
detetives de clássicos como Chandler, Hammet ou MacDonald.

O salto perigoso entre literatura e realidade fora dado mas eu estava longe
de entender o quanto uma pode afetar a outra.

III.

Fui rejeitado, na adolescência, por todos os grupos aos quais quis


pertencer. Minha falta de aptidão para os esportes foi um dos fatores
determinantes para que isso acontecesse. A religiosidade de minha
família, outro.

Quando entendi que os adultos com que tinha contato não se


interessavam por mim e minhas fantasias juvenis, resignei-me a atravessar
esta fase da vida com o mínimo possível de contato humano (é claro que,
com a chegada da puberdade, desejei todo o contato humano possível
com o sexo oposto). Isso significou ter sempre à mão algo para ler nos
intermináveis vinte minutos de recreio e não houve repelente mais eficaz
contra os outros pré-pubescentes de plantão.

Em casa, porém, o mesmo expediente não funcionava tão infalivelmente


e, dentro de minha cosmologia maniqueísta em que tudo se devia à
vontade combustível de Deus, agradeci aos céus quando o primeiro gato
de rua fixou residência.

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Seria mais preciso se dissesse gata e acrescentasse um adendo: recém-
parida, sua cria alojada numa das cestas de roupas da área de serviço
coberta. Pareceu estranha a indiferença de minha mãe aos animais e foi
bizarro descobrir que ela os alimentava e, depois de uns poucos dias, que
transferiria a tarefa a mim. Sem impecilhos, sem é-pecado-e-você-vai-
queimar-no-inferno-por-isso. Eu cumpria satisfeito a nova obrigação. O
animal adulto já havia se recuperado o bastante para desaparecer por
horas a fio e o filhote, já quase desmamado, era gracioso com seus modos
felinos e instintivos ainda não domesticados. Assim, ao descobrir que as
pálpebras

do bichinho amanheciam grudadas por uma secreção amarelada, dispus-


me, entre mordidas e arranhões, a limpá-los com água corrente e
paciência até que pudessem ser abertos sem dor. Nos apegamos um ao
outro e com o crescimento a panterinha passou a ser bem mais
importante que qualquer outro animal que tive em qualquer outro
momento de minha vida. Até, é claro, que o dito momento passou e
como todos os gatos adultos suas prioridades mudaram de conforto e
brincadeiras para conforto e procriação. Assim como as minhas, claro. O
interesse crescente pelo que se escondia sob as saias de uniforme e shorts
de ginástica das coleguinhas de escola foi só o primeiro sinal de
mudança.

O contato com o gato, claro, nunca saiu de minha memória. Na verdade,


recentemente manifestou-se com muita força devido a uma associação
livre de idéias

decorrente de meu hobby.

IV.

Há pouco mais de um ano comprei uma edição em inglês de contos e


poemas de Edgar Allan Poe, meu companheiro mórbido, entre outros
mais alegres, da hora do recreio. Relendo os contos aleatoriamente, fixei-
me na narrativa estranha e familiar de “The black cat”. Nela, conduzido
por um narrador-personagem que fala de seu amor pelos animais e
subsequente mudança comportamental atribuída ao consumo do álcool,
descobri que meu hobby de equalizar pessoas e personagens era um tanto
limitado.

Quantos foram os indivíduos que passaram por grandes mudanças,


extremas até, de comportamento que conheci em anos recentes?

Um punhado? Dezenas? Mais, certamente muitos mais.

Como, então, encontrar um que correspondesse ao narrador do conto de


Poe? Eu não tinha os meios para isso e a frustração cresceu e tornou-se
motivo de insônia e sonhos acordados.
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A revelação veio com a percepção do corte padronizado de cabelo de
meu colega de trabalho. Havia, então, um elemento comum, um elo de
ligação entre todas as pessoas que deixaram convicções arraigadas de
lado para adotar a imprudência suicida como novo modo de vida.

V.

No mundo literário, no cerne da mimesis, tudo é perfeito, todas as


engrenagens giram sem espaço para a aleatoriedade, o mecanismo do
relógio universal cartesiano se realiza em todo seu potencial.

No mundo de Poe, em particular, havia a necessidade de que o culpado


fosse punido, mesmo que seu crime tivesse sido acidental. A narrativa
funcionava com uma lógica interna própria, inalienável. O cadáver oculto
no final de “The black cat” tornaria o crime do narrador perfeito, sem
pistas, exceto que... isso não seria permitido. Se fosse, equivaleria no
mundo real a ignorar a lei da gravidade sem o uso de nenhum aparato
mecânico, pela simples força de vontade. O culpado comete o crime
porque quer ser apanhado e, no fim, ao perceber que isso pode não
acontecer, reage de modo a entregar as provas incriminadoras às
autoridades. É assim em “The black cat” e em outras narrativas do mesmo
autor. No conto citado, no entanto, o gato emparedado com a esposa
assassinada funciona como alarme para a polícia.

O gato era o padrão, descobri logo a seguir.

VI.

Durante as intermináveis horas de análise e consultoria contábil, costumo


navegar pela rede

inconsequentemente, um recurso funcional para manter-me em dia com o


mundo além dos números, borderôs, faturas e planilhas. A informação
que faltava para completar o quebra-cabeças angustiante em que meu
hobby se transformara chegou a mim durante a leitura de notícias num
site de divulgação científica.

“O manipulador”, dizia o link em que cliquei quase porato reflexo.

Assim aprendi rapidamente a respeito do Toxoplasma Gondii, o


manipulador citado no cabeçalho do texto. Segundo pesquisadores da
Universidade Carlos, em Praga, o toxoplasma é um parasita que, depois
de infectar o hospedeiro, esconde-se do sistema imunológico no cérebro.
Não era nenhuma novidade, haja visto que se trata de um dos parasitas
humanos mais comuns no mundo, já tendo infectado entre 30 e 60% da
população global. A opinião médica sempre insistiu que o toxoplasma é

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quase sempre inofensivo, com potencial para afetar apenas mulheres
grávidas e pessoas com o sistema imunológico enfraquecido. Ou era isso
o que se pensava... Jaroslav Flegr e seus colaboradores descobriram que
roedores, os “hospedeiros intermediários” do parasita, podem ser
manipulados por ele de modo a comportarem-se mais imprudentemente,
tornando-se mais ativos e menos temerosos de coisas novas e até sentindo
atração por urina de gatos, o que os torna mais vulneráveis a ataques
felinos, exatamente o que o “manipulador” quer. Afinal, o toxoplasma
precisa infectar o gato, o “hospedeiro definitivo”, para completar seu ciclo
vital e espalhar seus genes.

Gatos. Mudança de comportamento. Padrão.

Prossegui a leitura. A pista encontrada não validava minha teoria, não


completava o quebra-cabeças, não me fazia sentir que o salto entre
literatura e realidade de que consistia meu hobby fora dado. Faltava algo
ou assim pensei até descobrir que a pesquisa se estendeu de ratos para
homens. Apesar do pouco incentivo evolutivo que o toxoplasma teria na
manipulação de cérebros humanos, os pesquisadores pensaram em como
há semelhanças entre estes e os dos roedores e deram o passo mais
lógico, passando a conduzir uma série de testes com voluntários, alguns
com a infecção latente e chegando a um resultado assustador: os homens
infectados reproduziam um aspecto da manipulação em roedores. Eles
tendiam a ser mais independentes e

ousados. A pesquisa se encerrava com a inevitável coleção de números.


Flegr e equipe testaram amostras de sangue de 146 pessoas envolvidas em
acidentes de automóvel, parcial ou totalmente responsáveis por eles, e de
outras 446 pessoas num grupo de controle. Havia mais portadores do
toxoplasma no grupo de acidentados. A ligação óbvia com a imprudência
e tempo de reação retardado dos roedores foi como um estalo em minha
cabeça. Todos os dados se alinhavam, todas as peças, finalmente,
encontravam seu lugar na imagem que formavam.

O narrador de Poe teria sido infectado pelo gato preto e, por isso,
inconscientemente talvez, buscou vingar-se do animal? A pergunta foi
feita, o salto, dado.

VII.

“A por centagem alta me preocupa”, eu disse enquanto trabalhava em


Edna. Por algum motivo ela não respondeu. Talvez tivesse a ver com a
broca de furadeira elétrica partida e no meio do percurso em direção à
sua massa encefálica, não sei dizer. Os espasmos musculares iam e
vinham, mas eu não sabia se devia atribuí-los a algum desequilíbrio
químico do cérebro causado pelo composto de controle mental do
parasita, à broca, ou às marteladas que desferia contra sua cabeça na

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tentativa de descobrir o manipulador escondido na matéria cinzenta.
Edna, assim

como suas auxiliares Ana Cristina, Érica, Michele e Juliana, era uma das
pessoas mais dadas a mudanças de comportamento que conheci. Talvez
isso se devesse ao cargo que ocupava e sua inépcia em coordenar os
trabalhos, usando as outras como corroboradoras e disseminadoras de
mentiras que culminavam com o prejuízo moral dos funcionários
comprometidos com a empresa... era o que todos diziam. Ao investigá-la,
logo depois de ter trabalhado em suas ajudantes, descobri que, como as
outras, também tinha um gato. Tinha que ser a infecção.

A tarefa a que decidi me dedicar depois da descoberta era mais


interessante ainda que meu hobby, pois me deu um novo propósito e
trabalho para a vida inteira.

Eu livraria meus iguais dos sofrimentos trazidos pela influência do


parasita.

A possibilidade de ser apanhado foi uma de minhas preocupações


quando resolvi levar a cabo minha missão.

Mas eu tinha o álibi perfeito.

Também possuíra um felino.

FIM

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Purificação
Gian Danton

Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo


purificador. Este mundo está podre. Bichas andando pelas ruas.
Ecologistas clamando contra o direito sagrado de explorar a natureza.
Tudo é podridão e decadência. Minhas mãos tremem quando o metal
penetra na pele. Ela grita e a coisa... a coisa ruim em mim fica rija. Jovens
se beijando impudicamente na frente de todos. Eu sou clemente e
bondoso. Eu fecho seus olhos para que ela não veja o lixo... a podridão..
a decadência... ela grita como se tivesse um orgasmo... então eu desenho
um retrato do mundo em sua pele.

Sérgio regurgitou pedaços de cebola, pão e carne de hambúrguer.

- Ah, droga! Eu não deveria ter comido aquele sanduíche...

Carlos olhou à volta, incomodado com os curiosos. Chamou um policial e


ordenou:

- Diga para as pessoas se afastarem e isole a área.

Os dois policiais estavam em um terreno baldio. No meio do mato, caída


e despida, havia uma mulher morta.

Sérgio pegou um lenço e limpou a boca.

- E então, o que acha?

Carlos coçou o cavanhaque.

- Ele trabalhou nela durante toda a noite. Ela estava viva o tempo todo. Ele
retirou as vísceras, mas teve o cuidado de não tocar em nenhum órgão
vital. Ele a queria viva. Creio que ele não usou uma mordaça.

- Às vezes me pergunto como você consegue descobrir essas coisas, como


consegue entrar na mente desses doentes...

Carlos sorriu.

- Fui treinado para isso.

- Por que ele costurou os olhos dela, e não a boca? Não seria mais
racional fazer com que ela se calasse?

- Não. O homem que fez isso tem um visão própria do mundo. Ele queria
que o corpo dela fosse um reflexo de como ele vê a realidade. Mas não

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queria que ela visse, por piedade. No entanto, ele sente prazer com o que
faz e queria ouvir os gritos dela. Muitas vezes, a reação de alguém
sentindo dor é parecida com a de uma pessoa tendo um orgasmo. Prazer
e dor estão juntos desde o início da humanidade. Pinturas nas cavernas
mostram um casal copulando e se espancando. Ele queria sentir o prazer
de vê-la sofrendo.

- Isso é doentio. – cortou Sérgio.

- Isso significa que nosso homem tem um local isolado, onde ninguém
pode vê-lo ou ouvir o que ele faz.

Sérgio puxou o outro para longe do corpo.

- Vamos sair daqui. Cibele vai fazer almôndegas e eu não quero perder o
apetite. Precisamos ir para a delegacia. Vamos deixar o legista terminar o
serviço. Rapaz, eu gostaria de saber o que está acontecendo com o
mundo...

Eu sei. Eu vi a face do mundo e conheci suas vísceras. Ele está podre por
dentro. Eu vi um grupo musical fazendo propaganda da maconha. Eu vi
mulheres defendendo o aborto. Eu vi um ex-guerrilheiro tornar-se
ministro. Somos um país fraco. Fraco. Fraco. Agora todos podem falar, em
uma orgia de opiniões. Ninguém manda. Ninguém dá ordem ao mundo.
Os bons tempos se foram. Naqueles tempos, quem ousasse discordar, era
cortado como um dedo com gangrena. Eu sei. Eu vi. Eu vi o caos para o
qual estamos indo. Mas vou consertar as coisas. Eu sou o anjo purificador.
Ele-ela se contorce sob meus instrumentos. Agora não há mais diferença
entre homens e mulheres. São todos iguais e o caos toma conta do
mundo. É o fim. É o fim. Eu via a face da morte. E vi a fraqueza e a força.
Eu sou o anjo purificador. Eu sou misericordioso e, além de seus olhos,
costuro seu membro. Agora não é nem ele, nem ela. É apenas um corpo,
pronto para ser purificado. Pego meu estilete e começo minha obra.

- Oh, meu Deus! Ainda vou abandonar esse emprego. – disse Sérgio. Se
não fosse pela aposentadoria... Carlos, antes era uma prostituta... agora
um travesti... quem é o maluco que está fazendo essas coisas?

O travesti estava aos pés deles. Seus cabelos longos e loiros se


espalhavam pelo mato, tingidos de vermelho. Seus olhos costurados
pareciam ter fitado a morte. Haviam se passado apenas dois dias desde
que encontraram a prostituta.

- Carlos, na época da ditadura as coisas eram muito mais fáceis.


Estávamos lutando contra terroristas. Nós batíamos um pouco neles e eles
falavam. Tudo se resolvia...

- Você deve se acostumar aos novos tempos.

Sérgio estava agachado, ao lado do corpo, examinando-o.

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- Veja, há alguma coisa aqui. – pegou no corpo do cadáver e trouxe na
ponta do dedo um pouco de pó amarelo. Cheirou. É enxofre.

- Enxofre? Isso significa alguma coisa?

- Havia enxofre no corpo da prostituta assassinada...

Sérgio enrugou a testa. Carlos puxou-o.

- Vamos sair daqui. Precisamos de um mapa da cidade.

Foram até o carro. Carlos dirigiu até a delegacia. Sérgio parecia abalado e
incapaz de dirigir.

- Enxofre. – disse, depois de algum tempo. Parece que ele cometeu um


erro...

- Psicopatas nunca cometem erros. – corrigiu Carlos. Eles não deixam


pistas. Só são apanhados quando querem... Talvez aquele rapaz que
encontramos no mês passado tenha algo a ver com isso...

Havia um grande mapa da cidade na delegacia. Eles o desenrolaram


sobre uma mesa e começaram a marcar os locais em que haviam sido
encontrados os corpos. A união dos três pontos formava um triângulo
perfeito.

Estou preparado para meu próximo ato. Minha próxima vítima. Ela gritará,
contorcendo seu corpo flácido, prejudicado por anos de ócio. Eu posso
ver o caos, posso senti-lo tomando cada canto deste mundo. Posso senti-
lo no ar. Eu sou o instrumento da ordem. O grito de minhas vítimas é
como um hino. Um hino de horror. Eu vi a face da morte. E vi a fraqueza
e a força. Eu sou o anjo purificador e estou esperando, impaciente, pelo
meu trabalho...

Sérgio acordou com o telefone tocando. A mulher, ao seu lado na cama,


roncava placidamente. Ele ligou o abajur e atendeu.

- Alô, Sérgio? Aqui é Carlos. Desculpe incomodar a essa hora, mas acho
que descobri onde está o nosso homem. Não era um triângulo. Era um A.
O ponto que faltava era exatamente no meio para formar a letra A.
Descobri que existe uma velha fábrica de pólvora nesse ponto. Para fazer
pólvora é necessário enxofre, por isso as vítimas tinhas enxofre no corpo.
Aquelas pessoas foram mortas na fábrica. Se nos apressarmos, talvez
consigamos salvar uma vida.

Sérgio foi de carro até o ponto marcado, mas não encontrou Carlos.
Havia, de fato, uma velha fábrica abandonada. O policial pegou sua arma
e entrou. Súbito sentiu uma pancada na cabeça. Então tudo ficou escuro.

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Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo
purificador. Acorde, vamos, acorde! Psicopatas não deixam pistas. Eles
não se deixam apanhar. Minha vítima abre os olhos.

- Você? Carlos, Meu Deus! Que brincadeira é essa? Me desamarre...

Psicopatas deixam apenas rastros de pão ao longo do caminho... para que


a vítima caía na armadilha.

- Carlos, por que você está fazendo isso? Por favor, largue essa agulha!

Eu vi a face do mundo. Eu olhei para o globo e vi seu rosto distorcido. Vi


cabeludos drogados, vi homens que se vestem como mulheres, vi
subversivos se tornando ministros e até presidentes, vi policiais
esquecerem seu dever de manter a ordem e a paz. Você deveria estar do
meu lado, SÉRGIO, cortando os membros cancerosos da sociedade. Mas
não. Você se tornou complacente, deu ouvidos à libertinagem. Seu corpo
está podre e eu vou tirar a podridão de você. Eu vi a face da morte. Eu vi
a fraqueza e a força. Eu sou o anjo purificador.

O grito ecoou pela fábrica. Sérgio ainda sofreria muito antes de ser
purificado.

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Paraíso Perdido
Marcio Massula Jr.

Minha mulher não falava comigo havia dias.

Isso me incomodava.

Era estranho passar uma semana sequer sem receber algum tipo de
advertência do meu chefe, na verdade variações muito pequenas e nada
sutis da frase “mais uma dessa e cê tá no olho da rua!”.

Isso me incomodava.

O dinheiro ficava cada vez curto. Era nosso aniversário de casamento e a


única coisa na qual eu pude pensar que se encaixava na faixa de preço
permitida pelas minhas posses era uma coletânea do TEARS FOR FEARS.
Aquela que todo mundo tem.

E eu nem sabia se ela gostava daquela música ou não.

Isso me incomodava.

Eu estava a ponto de explodir.

O problema todo começou quando meu organismo, que a essas alturas


do campeonato também estava contra mim, interpretou de maneira
bastante subjetiva meu estado de espírito.

Eu havia acabado de entrar no shopping, procurando desesperadamente


pelo banheiro mais próximo.

Passei, pelos meus cálculos, meia hora ali, sentado, reduzido a nada,
descarregando toda a sorte de sentimentos “negativos” que havia dentro
de mim da única maneira que me era possível.

Dentro de uma privada.

Isso, com certeza, me incomodava.

Mas, pasmem, nem nesse momento de introspecção eu tinha paz!

Vendo as coisas hoje, acho que era pedir demais mesmo.

O cubículo ao lado também estava ocupado.

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Meu “companheiro de labuta”, se é que posso chamar assim, não
conseguia simplesmente deixar que o sistema fisiológico agisse por conta
própria. Não. Para ele, devia haver um ritual ou procedimento misterioso
que envolvia uma sucessão infindável de grunhidos, tilintares metálicos,
tossidos e mais um ou dois tipos de ruído que um ser humano pode emitir
mediante potencial constrangimento.

Ou foi isso que pensei na hora a respeito do meu mais novo inimigo.

E isso me incomodava. Muito.

Consegui sair antes dele.

Fiquei ali, lavando minhas mãos por dois ou três minutos, aguardando o
sacripanta abrir a portinha do cubículo.

Sentia-me como um predador.

Projetei minha consciência até as savanas africanas. Eu lá, majestoso,


imponente, espreitando, aguardando a hora certa de dar o bote, enquanto
uma equipe extasiada de fotógrafos e cinegrafistas da NATIONAL
GEOGRAPHIC, protegidos pela distância proporcionada pelo zoom de
suas máquinas, documentava toda a selvageria implícita numa simples
refeição.

Então, minhas preces foram atendidas.

Eu queria dar uma olhada naquele homem, só uma. Ver pelo menos uma
vez o brilho de seus olhos, antes de...antes de...bem, até aquele
momento, eu ainda não havia decidido o que fazer com o cara.

Ao que parece, ele não pensava da mesma maneira. Saiu e nem prestou
atenção em mim. Como se isso não bastasse, não lavou as mãos.

Fui atrás dele, o mais rápido que pude. Uma menina de blusa vermelha
passou por mim e por alguns segundos, o olhar que recebi dela me
distraiu da minha busca.

Segundos esses mais que suficientes para que minha cabeça fosse
atravessada por dois projéteis de fuzil (austríaco, calibre 5,56mm OTAN,
modelo compacto, 30 projéteis no pente, 400 tiros por minuto, munição
hollow point, a mais nova sensação entre os traficantes e ladrões de carro
forte) que arrancaram boa parte do lado direito do meu crânio, assim
como meu cérebro. Fui a segunda vítima, levando o segundo e terceiro
tiros. Uma senhora já tinha sido alvejada antes, mas a providência fez
com que o tiro pegasse num dos braços. Ela sobreviveu. Teve que amputar
um braço, mas sobreviveu.

Além de mim e da velha maneta, mais oito vítimas fatais e três mutiladas.
O idiota estava tão alucinado que ainda tentou se suicidar com a arma

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descarregada. Nem preciso dizer que assim que perceberam que o cara
era, ou melhor estava, inofensivo, caíram em cima dele, como naquele
filme que saiu há pouco tempo, aonde mais de cem caras sobem em cima
de outro. Só que este cara não consegui jogar todo mundo pra cima.
Desculpem, sinceramente não me lembro do nome do filme. Depois
daquilo ficou meio difícil lembrar das coisas.

O fato é: a vida após a morte não é, definitivamente, o que eu esperava.

Nada de sujeitinhos de branco tocando harpas e trombetas enquanto você


sobe por uma escada rolante, branquíssima, para chegar lá em cima e
encontrar um velho barbudo e bonachão, também de branco, com um
livro muito semelhante a um catálogo telefônico, sem páginas amarelas,
claro, que encontraria seu nome, daria-lhe os parabéns, um tapinha nas
costas e deixaria você entrar por uma porta alvíssima e muito brilhante,
terminando assim, de forma digna, ma carreira de bons serviços prestados
a humanidade.

É claro que nunca tive coragem de admitir isso enquanto eu era vivo.

Você sente a dor. Então, tudo escurece. Então, você acorda novamente,
no meu caso, em um beco escuro no centro da cidade. Estava chovendo,
não havia ninguém na rua. Eu me levantei e fiquei ali, sem saber o que
fazer. Então, aparece um cara e me chama pelo nome. Pergunta se sou eu
mesmo, ao que respondo “sim”. Então o cara me vem com um papo de
que eu já tinha morrido, coisa e tal, mas como não tinha sido um bom
menino, nada de “descanso” (assim mesmo, bem irônico). Eu ia ter que
ficar por aqui mesmo enquanto minha situação era reavaliada. Então,
óbvio, perguntei o que ele queria dizer com descanso. E ele me disse que
não fazia a mínima idéia.

Um adendo:

Suas tripas estavam expostas, penduradas na cratera que havia em sua


barriga. E o mais incrível é que aquilo não incomodava. Não do jeito
normal, quero dizer. Nos poucos momentos que passamos juntos, tentei
tomar coragem e perguntar como ele fazia para não tropeçar nos
intestinos, mas em nome dos bons modos, deixei a idéia de lado.

Outro adendo:

O tempo, depois que você passa dessa pra melhor, ou melhor, daquela
pra essa, não funciona exatamente da mesma maneira.

Bem, o que importa é que estávamos em meu enterro. O caixão estava


fechado. Segundo ele, aquela era a última chance que eu teria de ver
todas as pessoas pelas quais eu sentia alguma pontada de amor ou
simpatia. Esses momentos de catarse-atávica-coletiva funcionam como
uma espécie de droga para nós.

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Uma droga que você experimenta apenas uma vez.

Tudo depende da proporção de pessoas para quem você foi de alguma


forma importante. Se foi bem quisto pelos parentes e amigos, ótimo. Se
ninguém vai ao seu enterro, o problema é seu.

Mais um dos estranhos mecanismos que rege o lado de cá.

Próximo passo: diversão.

Embora eu esteja, tecnicamente, pagando meus pecados, alguns direitos


básicos ainda me são garantidos.

Um deles é assombrar o cara que me matou.

Depois do tiroteio e do suicídio fracassado, o cara foi preso e a televisão


transformou tudo num circo, como sempre. Algo fez com que o rapaz,
jovem, profissional liberal e rico ficasse com um parafuso solto e passasse
os últimos dois meses antes do tiroteio no shopping alvejando mendigos e
traficantes (palavras dele) pela cidade. E ninguém se deu ao trabalho de
ligar os pontos até que o sujeito metralhou algumas pessoas numa área
nobre cidade. Coisas da vida.

Virgílio - esse era o nome do extripado que me acompanhou. Bêbado


profissional. Morto por um casal de Pit Bulls entediados - disse que eu não
precisava fazer muito. Só meu aspecto, que era o de quando morri (já
disse isso?), já seria suficiente para fazer o cara se borrar todo. Eu resolvi ir
um pouco mais além.

Costumo visitá-lo todos os dias.

É uma técnica bem simples. Eu sou cordial e calmo num dia, e no outro
me transformo numa aparição bestial (a flexibilidade ectoplásmica em
ação) e sádica, saída do próprio inferno (figura de linguagem). Não tem
erro.

As vezes trago notícias do lado de fora, sobre a família que o ignorou,


sobre as famílias que ele destruiu, etc. Não funcionou muito das primeiras
vezes, ele se preocupava mais em gritar e chamar os enfermeiros do que
ouvir o que eu tinha a dizer. Depois, com o tempo, parece que ele foi se
acostumando com a idéia e limitava-se a ficar encolhido num canto,
chorando, tremendo e rezando.

Ah! E não sou apenas eu que visito o cara. Lembram da menina da blusa
vermelha?

O engraçado é que realmente o cara surtou na época dos assassinatos, ou


seja, foi um caso de insanidade temporária. Não, eu não sei os detalhes
técnicos.

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Ele, teoricamente, está são nesse momento, mas digamos que minhas visitas
contribuíram para que os enfermeiros e psiquiatras pensassem diferente. E
agora até o próprio sujeitinho está pensando que pirou.

Vocês podem até achar que é maldade minha, que ele já está pagando pelo
que fez, que ele pirou e etc. e tal, mas a verdade é que não há muito o que
fazer aqui.

Bem senhoras e senhores, é isso.Desculpem a minha tagarelice, mas eu não


costumo ver muita...gente por aqui, ainda mais assim, em grupos. O ônibus
caiu aonde mesmo?

Bem, divirtam-se, mais tarde eu encontro vocês, certo? Agora, tenho uma
visitinha a fazer...

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Lâmina na névoa
Josiel Vieira

A escuridão vai esmaecendo, torna-se pardacenta e vira uma névoa


entremeada de ventos e chuviscos. Está chuviscando; olho para meu
reflexo numa poça d’água. Estou de terno. Eu sei que sou um professor e
estou vindo da aula. Engraçado; há alguns momentos poderia jurar que eu
era outra pessoa. Mas sou um professor. Sinto as gotas geladas batendo
em meu rosto, sinto o vento de vez em quando tentando arrancar meu
chapéu. Ouço o ecoar metálico dos meus sapatos lustrosos na calçada.

Mas o vento pára e de repente um gigantesco silêncio se abate sobre as


coisas. Está tudo tão silencioso que tenho dificuldade até para respirar.
Olho ao redor; estou dentro de um parque. Vejo o estilo do coreto e dos
bancos, em art noveau. As árvores de tronco negro salpicado de líquens
brancos e rosas formam uma única abóbada verdejante sobre mim; a
folhagem move-se lentamente, e algumas gotas caem. Mas não há ruído
algum.

Deus, o que está acontecendo com o mundo? Sinto o ar opressivo; por


uns instantes tenho uma vertigem a desabo num banco de ferro pintado
de branco. Estava molhado, e os fundos de minhas calças se molham de
maneira bem desagradável, como a me chamar para a realidade. Mas
sequer sei se é manhã ou tarde.

Meu coração começa a bater com força; trinco os dentes e olho ao redor,
desesperado. Tenho a sensação de fim de mundo. Acho que me matei há
pouco. Em que ano estou? Quantos anos eu tenho? Meus pulmões são
feras dentro do meu peito, acuadas pelas dúvidas que iam brotando à
minha frente. As dúvidas sempre foram pessoas para mim, pessoas que
nunca me abandonaram na minha miséria pelo existir.

O verde das árvores tem refulgências cristalinas, e começa a me ofuscar.


Com a visão embaçada, vejo uma pessoa se aproximar – antes duvido
realmente que esteja vendo uma pessoa. Mas ela se senta ao meu lado. Eu
não esboço nenhuma reação; não a cumprimento nem nada. Só o suor e
a agonia saem de meu rosto de dentes entrecerrados. Sinto a pessoa
desabotoar meu paletó e ajeitar meus cabelos molhados. Olho para ela. É
uma menina bem jovem, tem uns dezoito anos, e veste um vestido branco
que vai até os pés.

— O senhor está melhor?

— Estou... obrigado.

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— É professor?

— Sim, como soube?... ah, claro, são os livros que eu carrego.

Olho para ela, ainda com a visão embaçada. O vestido dela era muito
bonito, mas não parecia... digamos... atual. Bem, o que importa? Como
seu o meu terno fosse moderno! Quanto mais eu me esforço para parecer
um adulto, usando roupas sérias, mais eu pareço um moleque. E odeio
isso.

— Não deveria odiar tanto as coisas – ela disse vendo o quanto eu


amassava inconscientemente os livros de psicologia entre a palma da mão
– além disso, você parece ser atormentado por dúvidas.

— Como sabe? – eu pergunto olhando o pequeno crucifixo dourado no


pescoço sensual dela. Eu gostaria que essa garota fosse algum fantasma do
século passado ou retrasado; ou então que eu tivesse voltado ao passado.
Porque eu gostei realmente dela. Daria tudo para chupar aquele pescoço.
Mas conforme eu tentei dialogar com ela, a minha voz se tornou um
murmúrio de bêbado e minha língua se enrolou de uma forma análoga à
maneira como o corpo dela foi se enrolando no vestido branco até virar
um apavorante casulo. Eu estava sentado ao lado de um casulo que
abrigava um bicho ignorado.

Apanho os meus livros e o meu chapéu e vou-me embora, como se fosse


a coisa mais normal do mundo deixar para trás da gente uma incógnita.

Algo cortante... uma lâmina na névoa.

Quando pequeno , quando questionavam se eu sabia de cor a lição, eu


costumava dizer que deu um “branco”. E dizia assim, como se fosse a
coisa mais normal do mundo, responder às dúvidas com o esquecimento.

P.S: talvez no outro dia alguém leia no jornal sobre o cadáver de uma
menina embrulhado em seu próprio vestido. Talvez...

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