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Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 2
Hobby Estranho
Abs Moraes
I.
Daí por diante, não pude deixar de reconhecer o amigo louco, bêbado,
infame e inteligente que correspondia ao Neal Cassady descrito por
Kerouac em ON THE ROAD ou minha própria similaridade com os
detetives de clássicos como Chandler, Hammet ou MacDonald.
O salto perigoso entre literatura e realidade fora dado mas eu estava longe
de entender o quanto uma pode afetar a outra.
III.
IV.
V.
VI.
O narrador de Poe teria sido infectado pelo gato preto e, por isso,
inconscientemente talvez, buscou vingar-se do animal? A pergunta foi
feita, o salto, dado.
VII.
como suas auxiliares Ana Cristina, Érica, Michele e Juliana, era uma das
pessoas mais dadas a mudanças de comportamento que conheci. Talvez
isso se devesse ao cargo que ocupava e sua inépcia em coordenar os
trabalhos, usando as outras como corroboradoras e disseminadoras de
mentiras que culminavam com o prejuízo moral dos funcionários
comprometidos com a empresa... era o que todos diziam. Ao investigá-la,
logo depois de ter trabalhado em suas ajudantes, descobri que, como as
outras, também tinha um gato. Tinha que ser a infecção.
FIM
- Ele trabalhou nela durante toda a noite. Ela estava viva o tempo todo. Ele
retirou as vísceras, mas teve o cuidado de não tocar em nenhum órgão
vital. Ele a queria viva. Creio que ele não usou uma mordaça.
Carlos sorriu.
- Por que ele costurou os olhos dela, e não a boca? Não seria mais
racional fazer com que ela se calasse?
- Não. O homem que fez isso tem um visão própria do mundo. Ele queria
que o corpo dela fosse um reflexo de como ele vê a realidade. Mas não
- Isso significa que nosso homem tem um local isolado, onde ninguém
pode vê-lo ou ouvir o que ele faz.
- Vamos sair daqui. Cibele vai fazer almôndegas e eu não quero perder o
apetite. Precisamos ir para a delegacia. Vamos deixar o legista terminar o
serviço. Rapaz, eu gostaria de saber o que está acontecendo com o
mundo...
Eu sei. Eu vi a face do mundo e conheci suas vísceras. Ele está podre por
dentro. Eu vi um grupo musical fazendo propaganda da maconha. Eu vi
mulheres defendendo o aborto. Eu vi um ex-guerrilheiro tornar-se
ministro. Somos um país fraco. Fraco. Fraco. Agora todos podem falar, em
uma orgia de opiniões. Ninguém manda. Ninguém dá ordem ao mundo.
Os bons tempos se foram. Naqueles tempos, quem ousasse discordar, era
cortado como um dedo com gangrena. Eu sei. Eu vi. Eu vi o caos para o
qual estamos indo. Mas vou consertar as coisas. Eu sou o anjo purificador.
Ele-ela se contorce sob meus instrumentos. Agora não há mais diferença
entre homens e mulheres. São todos iguais e o caos toma conta do
mundo. É o fim. É o fim. Eu via a face da morte. E vi a fraqueza e a força.
Eu sou o anjo purificador. Eu sou misericordioso e, além de seus olhos,
costuro seu membro. Agora não é nem ele, nem ela. É apenas um corpo,
pronto para ser purificado. Pego meu estilete e começo minha obra.
- Oh, meu Deus! Ainda vou abandonar esse emprego. – disse Sérgio. Se
não fosse pela aposentadoria... Carlos, antes era uma prostituta... agora
um travesti... quem é o maluco que está fazendo essas coisas?
Foram até o carro. Carlos dirigiu até a delegacia. Sérgio parecia abalado e
incapaz de dirigir.
Estou preparado para meu próximo ato. Minha próxima vítima. Ela gritará,
contorcendo seu corpo flácido, prejudicado por anos de ócio. Eu posso
ver o caos, posso senti-lo tomando cada canto deste mundo. Posso senti-
lo no ar. Eu sou o instrumento da ordem. O grito de minhas vítimas é
como um hino. Um hino de horror. Eu vi a face da morte. E vi a fraqueza
e a força. Eu sou o anjo purificador e estou esperando, impaciente, pelo
meu trabalho...
- Alô, Sérgio? Aqui é Carlos. Desculpe incomodar a essa hora, mas acho
que descobri onde está o nosso homem. Não era um triângulo. Era um A.
O ponto que faltava era exatamente no meio para formar a letra A.
Descobri que existe uma velha fábrica de pólvora nesse ponto. Para fazer
pólvora é necessário enxofre, por isso as vítimas tinhas enxofre no corpo.
Aquelas pessoas foram mortas na fábrica. Se nos apressarmos, talvez
consigamos salvar uma vida.
Sérgio foi de carro até o ponto marcado, mas não encontrou Carlos.
Havia, de fato, uma velha fábrica abandonada. O policial pegou sua arma
e entrou. Súbito sentiu uma pancada na cabeça. Então tudo ficou escuro.
- Carlos, por que você está fazendo isso? Por favor, largue essa agulha!
O grito ecoou pela fábrica. Sérgio ainda sofreria muito antes de ser
purificado.
Isso me incomodava.
Era estranho passar uma semana sequer sem receber algum tipo de
advertência do meu chefe, na verdade variações muito pequenas e nada
sutis da frase “mais uma dessa e cê tá no olho da rua!”.
Isso me incomodava.
Isso me incomodava.
Passei, pelos meus cálculos, meia hora ali, sentado, reduzido a nada,
descarregando toda a sorte de sentimentos “negativos” que havia dentro
de mim da única maneira que me era possível.
Ou foi isso que pensei na hora a respeito do meu mais novo inimigo.
Fiquei ali, lavando minhas mãos por dois ou três minutos, aguardando o
sacripanta abrir a portinha do cubículo.
Eu queria dar uma olhada naquele homem, só uma. Ver pelo menos uma
vez o brilho de seus olhos, antes de...antes de...bem, até aquele
momento, eu ainda não havia decidido o que fazer com o cara.
Ao que parece, ele não pensava da mesma maneira. Saiu e nem prestou
atenção em mim. Como se isso não bastasse, não lavou as mãos.
Fui atrás dele, o mais rápido que pude. Uma menina de blusa vermelha
passou por mim e por alguns segundos, o olhar que recebi dela me
distraiu da minha busca.
Segundos esses mais que suficientes para que minha cabeça fosse
atravessada por dois projéteis de fuzil (austríaco, calibre 5,56mm OTAN,
modelo compacto, 30 projéteis no pente, 400 tiros por minuto, munição
hollow point, a mais nova sensação entre os traficantes e ladrões de carro
forte) que arrancaram boa parte do lado direito do meu crânio, assim
como meu cérebro. Fui a segunda vítima, levando o segundo e terceiro
tiros. Uma senhora já tinha sido alvejada antes, mas a providência fez
com que o tiro pegasse num dos braços. Ela sobreviveu. Teve que amputar
um braço, mas sobreviveu.
Além de mim e da velha maneta, mais oito vítimas fatais e três mutiladas.
O idiota estava tão alucinado que ainda tentou se suicidar com a arma
É claro que nunca tive coragem de admitir isso enquanto eu era vivo.
Você sente a dor. Então, tudo escurece. Então, você acorda novamente,
no meu caso, em um beco escuro no centro da cidade. Estava chovendo,
não havia ninguém na rua. Eu me levantei e fiquei ali, sem saber o que
fazer. Então, aparece um cara e me chama pelo nome. Pergunta se sou eu
mesmo, ao que respondo “sim”. Então o cara me vem com um papo de
que eu já tinha morrido, coisa e tal, mas como não tinha sido um bom
menino, nada de “descanso” (assim mesmo, bem irônico). Eu ia ter que
ficar por aqui mesmo enquanto minha situação era reavaliada. Então,
óbvio, perguntei o que ele queria dizer com descanso. E ele me disse que
não fazia a mínima idéia.
Um adendo:
Outro adendo:
O tempo, depois que você passa dessa pra melhor, ou melhor, daquela
pra essa, não funciona exatamente da mesma maneira.
É uma técnica bem simples. Eu sou cordial e calmo num dia, e no outro
me transformo numa aparição bestial (a flexibilidade ectoplásmica em
ação) e sádica, saída do próprio inferno (figura de linguagem). Não tem
erro.
Ah! E não sou apenas eu que visito o cara. Lembram da menina da blusa
vermelha?
Vocês podem até achar que é maldade minha, que ele já está pagando pelo
que fez, que ele pirou e etc. e tal, mas a verdade é que não há muito o que
fazer aqui.
Bem, divirtam-se, mais tarde eu encontro vocês, certo? Agora, tenho uma
visitinha a fazer...
Meu coração começa a bater com força; trinco os dentes e olho ao redor,
desesperado. Tenho a sensação de fim de mundo. Acho que me matei há
pouco. Em que ano estou? Quantos anos eu tenho? Meus pulmões são
feras dentro do meu peito, acuadas pelas dúvidas que iam brotando à
minha frente. As dúvidas sempre foram pessoas para mim, pessoas que
nunca me abandonaram na minha miséria pelo existir.
— Estou... obrigado.
Olho para ela, ainda com a visão embaçada. O vestido dela era muito
bonito, mas não parecia... digamos... atual. Bem, o que importa? Como
seu o meu terno fosse moderno! Quanto mais eu me esforço para parecer
um adulto, usando roupas sérias, mais eu pareço um moleque. E odeio
isso.
P.S: talvez no outro dia alguém leia no jornal sobre o cadáver de uma
menina embrulhado em seu próprio vestido. Talvez...