Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Ela era velha. E porca. A higiene definitivamente não era uma de suas
maiores virtudes, se é que tinha alguma. Seu quarto era sua fortaleza e alter
ego. Tão escuro quanto ela própria, mal projetado, ocupado por móveis de gosto
no mínimo duvidoso. Ali a velha porca passava a maior parte de seu dia, de seus
dias.
Miho se fazia presente para tentar lembrar à velha que ela ainda estava
viva, com características e necessidades humanas. Bem, na verdade era mesmo
basicamente pra dar uma bruta faxina, pois se isto não acontecesse a situação
daquele apartamento facilmente poderia migrar de caótica para catastrófica. Na
semana passada Miho tirou de baixo do sofá várias formigas, muitas, muitas
delas. Estavam se banqueteando com a coxa de frango enrolada no pano de
cozinha que dava ali o ar pútrido de sua graça já há alguns dias. O mau cheiro
era insuportável. A velha muitas vezes pensava serem detritos seus os tabletes
de naftalina perfumada que sua sobrinha caridosamente deixava nos pontos mais
estratégicos, em locais de passagem de ar e distantes dos chutes da anciã.
Talvez por isto mesmo Miho soubesse que na semana seguinte os encontraria
intactos, imóveis, perfeitamente inalterados.
A última coisa que alguém poderia esperar de uma pessoa assim, tão
deslocada no tempo e no espaço, é que fosse sistemática e previsível. E era.
Como era robotizada! Seus dias em pouco diferiam, mês após mês, ano após
ano. Não havia calendário em lugar algum, relógio só o da torre, visível apenas
pelo basculante do banheiro. A pontualidade de suas ações repetitivas era um
espanto. Todos os dias ao cair da escuridão a velha, já com o único par de
pantufas que possuía, hidrofóbico, preparava o café para se deitar. Será que ela
não sabe que cafeína prejudica o sono? Mas o que eram alguns miligramas de
cafeína perto de uma dose máscula de sonífero que ela conseguia sem receita
médica e sem dinheiro do sempre tão cuidadoso porteiro?
Enquanto sua mente lhe permitia, arrastava-se pelo quarto a cada trinta
minutos para retornar a agulha da vitrola, agulha esta casada com aquele risco
enorme no meio da última faixa. Ela nem possui mais a curiosidade de saber
como termina aquele dueto na composição de Ary Barroso e muito menos vira o
LP. Afinal, se sua vida não tinha Lado A, por que haveria de tê-la a bolacha? Se o
sol a desperta esbofeteando-lhe a face todos os dias do inverno da mesma
forma, por que ela se atreveria a modificar a ordem do universo e ouvir outras
canções? Se até a lua tinha seu lado negro, não o teria também sua relação com
a vitrola? Razões que sua psicodélica razão nem desconfia. Fato é que o risco da
última faixa é a trilha sonora de sua entrada triunfal ao mundo dos loucos, e,
horas depois, da entrada vitoriosa do sol pela fresta da janela. Todos os dias
entre onze horas e meio dia este evento ocorria. Era impossível preservar o
desejável estupor com esta luz nos olhos. De pé, pantufas nos pés, pés no
abismo. E tinha início nova etapa da mesma espera dolorosa. A espera da hora
de novamente encarar seus medicamentos manipulados, seu cigarro, seu
travesseiro...
Ela odiava o alvorecer, que em seu mundo se dava ao meio dia, pois era
quando estaria mais frontalmente exposta ao mais próximo daquilo que se tem
por realidade.
Evitava olhar para o baú de couro de vaca no canto daquele cômodo, onde
repousavam incólumes dezenas de livros, quase todos nunca lidos. Restos de um
passado que nunca vivera realmente. Era como a lápide de uma jovem morta há
anos, antes mesmo de ela própria nascer. Como seria esta jovem hoje? Aí está o
pensamento mais proibido de todos. Ela sequer cogitava pensar em pensar em
algo parecido. Por isto nunca mais se abaixara diante dos livros, nem mesmo
para pegar a bituca de cigarro que no baú caíra certa vez afrontando a ditadura
do branco-e-preto daquilo que um dia foi uma vaca malhada. Miho certamente se
encarregaria. E se encarregou mesmo, até com certa satisfação, pois a vaca
malhada agora é chique que nem ela: Tem tatuagem e é tricolor.
Nutria pela tia um grande afeto, já que Miho era a única pessoa viva com
quem a velha porca mantinha diálogo de mais de cinco minutos (se é que um
monólogo intercalado por vários “hum-hum” espaçados pode ser classificado
como diálogo!). Mas mesmo assim Miho sabia que a velha precisava ouvir sua
voz, sentir seu abraço, ser admoestada, ser tratada como criança às vezes. Bem
pode ser que estas ações a conservassem em formol, quase viva, ainda neste
século. Caso contrário sabe-se lá o que poderia ser da vida (?) da velha.
Eles se namoricavam, é verdade, mas uma relação definitiva era algo que
Vanderval jamais especulou para si. Claro que gostava dela! À sua maneira.
Adorava seus seios, suas coxas, sua cintura deformada pela cinta modeladora,
sua boca deliciosa, seus longos cabelos e suas unhas vermelhas que pareciam
ávidas por carne fresca. Se cheirasse melhor poderia até ser a mulher de sua
vida, mas ninguém é perfeito. Ele pensava com taquicardia nas anáguas
sobrepostas que estaria manuseando naquela mesma noite. Já ela se sentia a
mais preparada e amada das moças, uma vez que lera todos os romances de
sabonete e, portanto, possuía vasta experiência em relacionamentos afetivos,
adorando atender esporadicamente como consultora sentimental das amigas.
Tão experiente que não se esquecera do laxante no dia anterior “que é para
murchar a barriga”.
Não foi.
Pronto! Estava dado o tiro de partida de uma corrida que jamais teria fim.
Justo ela que nunca foi uma pessoa que podia ser rotulada de mentalmente
sadia, agora com o grande trauma da rejeição para administrar. A idade não
favorece. Contar com o apoio dos pais nem pensar. Amigas? Que amigas? Essas
só servem para os momentos alegres de deboche de outrem. Para as frustrações
nunca serviam.
O pote de rapé pela metade é inútil para fazer viver seu vizinho santo
Antônio, tão empoeirado quanto detonado por marcas de objetos pontiagudos,
ambos esquecidos em cima do guarda roupa. O boneco tinha mais cicatrizes que
Silvester Stalone em seus rambos e rockys e estava mais pra voodoo que pra
santo.
Há alguns anos a tia era comumente vista usando uma trança embutida
que, com relativo sucesso, domava fios rebeldes. Mas como tudo evolui, ela
descobriu que um simples lenço resolve o problema. Até o pano de cozinha já
demonstrara desta forma mais uma das mil e uma utilidades que o sábio oráculo
chamado TV já dizia. Para ela, o fácil é o certo.
***
Ao debruçar-se sobre ela e sentir seu odor que não era de todo terrível,
mas certamente contrastava com o que seus outros sentidos captavam, ele
titubeou. Não entendia porque simplesmente não conseguia a ereção, mas via
sua tão aguardada chance escoar pelos seus braços. Ele próprio na “hora do
parabéns”, quando todos estavam com a atenção sendo direcionada a um único
tema, sorrateiramente batizara o ponche com vodka para deixar sua
companheira mais receptiva. Todos os demais efeitos desta travessura seriam
colaterais e, portanto, desprezíveis. Tinha até uma prévia do relato que faria no
outro dia aos seus amigos, claro, com os devidos acréscimos que é para manter
a fama. Mas seu corpo resolvera dissociar-se de sua mente desejosa e deixá-lo
na mão. Ou pior: resolvera dar ouvidos à sua insegurança e falta de confiança.
Não. Isso pode acontecer com qualquer um, menos com Vanderval, ainda
mais na sua primeira vez. Ele já espalhara por todo o bairro que era homem
sexualmente ativo e de larga experiência, mas o fato era de que não conseguia
dar vida ao personagem que tanto alimentara nos sonhos e devaneios. Vanderval
era macho, muito macho, batia nos irmãos menores e pichava as viaturas da
polícia. Espiava donzelas nuas por todas as frestas quanto possíveis e carregava
objetos tão pesados que lembrava as proezas hercúleas. Pelo menos na sua
própria imaginação. Como um varão desses poderia sucumbir diante de uma tão
frágil criatura? Ainda mais adornada por frufrus amarelos e rendinhas?
O outrora belo jovem que um dia teve seu nome sussurrado ao ouvido
agora era mais conhecido na cidade como “seu” Almeida, o porteiro bonachão,
gente boa, solícito a ajudar a todos, em especial à senhora do 202. Um denso,
largo e escuro bloqueio psicológico de sua ex a impedira de ver naquele senhor
inofensivo o mesmo jovem que amara décadas atrás e que lhe dilacerara a vil
existência. Melhor assim, para ambos. Para ela, contribuía para a preservação
daquilo que ainda a identificaria como ser humano . E para ele, pois poderia
planejar e levar a cabo suas sádicas lucubrações de vingança e transferência de
culpa, incólume, bem ao lado de sua vítima.
Quando viu que não foi e nem seria reconhecido pela “vaca maldita”
esteve muito próximo de seu primeiro orgasmo real.
Ah! Como era boa a sensação de ver aquela mulher que lhe roubara a
virilidade irrompendo um cômodo após outro, julgando ser mentira o assobio que
verdadeiramente ouvia! Valia todo o sacrifício.
Pela Rua dos Andradas subia agora um senhor calvo, de boné e calça de
tergal, com os olhos opacificados pelo tempo, mas ainda cheios de sagacidade.
Levava consigo seu acerto trabalhista em um envelope pardo A4. Subira por ali
inúmeras vezes. Neste percurso já sentira frio, calor, dor, desesperança, fome,
ódio, rancor e o peso de uma existência vazia. Mas desta vez o sol lhe brilhava
no rosto de uma maneira diferente, bem diferente.
Ao assobiar a mesma música rua acima, agora o astro rei lhe parecia
muito mais resplandecente, mais claro, mais vivo, mais leve. Sentia-se jovem de
novo.
Este é meu primeiro conto. Não foi submetido ainda a revisão ortográfica e
gramatical.
Favor remetê-los a:
mlbatista@hotmail.com
Grato,
Marcelo Batista
Grata,
Miho Washington