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Carlito Azevedo 19 / 12 / 2005

O escritor espanhol Enrique Vila-Matas "entrou" para a literatura de uma forma muito
especial.

Logo nos primeiros anos de colégio, apaixonou-se por uma daquelas adolescentes lindas
e inalcançáveis que só quem já foi adolescente apaixonado sabe como é difícil (e
necessário) alcançar.

Traçou um plano.

Copiou numa folha de caderno um poema do grande lírico espanhol Luis Cernuda, tendo,
contudo, o cuidado de inserir, no meio do poema, um verso de sua própria autoria.
Ofereceu-o à moça.

No dia seguinte, quando recebeu os calorosos cumprimentos da, já não tão inacessível,
jovem, pode compensar a sensação de fraude com a deliciosa sensação de que, em
verdade, uma pequena parte daqueles elogios era de fato merecida, já que era autor de
um dos versos do poema.

Na semana seguinte: a mesma estratégia e outro poema de Luis Cernuda foi copiado no
caderno, agora "infiltrado" por dois versos do próprio Vila-Matas.

Novos cumprimentos, e uma sensação cada vez maior de merecimento.

A coisa seguiu assim até que a moça, totalmente conquistada, já recebia poemas inteiros
de Vila-Matas, sem a presença, agora incômoda, de Luis Cernuda.

A moça passou, mas Vila-Matas nunca mais abandonou a literatura. Embora, após a
adolescência, tenha trocado a poesia pela prosa. Inclusive porque sempre há outras
musas a conquistar, a quem dedicar poemas... algumas de nomes muito conhecidos:
"Glória", "Revolução", "Verdade"... Voltaremos a falar delas.

***

É uma pena que nem a jovem e nem Vila-Matas tenham guardado os "originais" desses
poemas. Assim teríamos uma idéia mais clara de como o autor de Bartleby e companhia
foi afirmando sua própria voz no meio do cânone, representado ali pela grandeza de Luis
Cernuda.

Afirmar sua própria voz em meio a uma tradição de tão poderosos solistas, os Baudelaire,
os Drummond, os Shakespeare, as Ana Cristina Cesar, os César Vallejo, os Paulo
Leminski, as Emily Dickinson etc, não é brincadeira...

Não é brincadeira, mas Borges conseguiu, Thomas Bernard conseguiu, Czeslaw Milosz
conseguiu, Paulo Henriques Britto conseguiu, Lu Menezes conseguiu... e não importam
aqui hierarquizações do tipo "quem é mais importante que quem"... Deixemos essa ociosa
tarefa para os que acham alguma graça em hierarquizar coisas que podem muito bem ser
vistas de uma perspectiva não-hierárquica...

Num de seus textos mais interessantes, T. S. Eliot dizia que toda vez que encontrava um
sujeito que gostava de absolutamente "todos" os autores bons, e desprezava
absolutamente "todos" os autores "não-bons", sentia que estava diante de alguém que era
mais um "bom aluno" do que um verdadeiro amante da poesia... Alguém que aprendeu
tudo direitinho...

Para ele, o sujeito realmente apaixonado por poesia deveria desgostar de pelo menos um
poeta maior, daqueles que todo mundo gosta... e deveria, por algum motivo misterioso,
trazer bem dentro do coração algum poeta menor, daqueles que ninguém gosta...
Porque na poesia acontece um pouco como no amor. Você tem todos os motivos para
gostar daquela pessoa que seria perfeita pra você... mas não gosta... Ao invés disso,
adora aquele ser que todos dizem (e você bem sabe) que não presta...

Não se incomodem portanto se os exercícios, aulas ou módulos colocarem em absoluta


convivência democrática nomes como Ezra Pound e Charles, Mallarmé e Heitor Ferraz,
João Cabral e Adília Lopes... O coração de quem ama poesia tem lugar para todos...

Como diz o poema "A acácia-meleira rosa", do poeta norte-americano William Carlos
Williams, um grande poeta que inventou seu lugar no meio da mais esplendorosa geração
de poetas dos Estados Unidos:

"E assim,
como esta flor,
eu persevero –
pela importância que isso possa ter.
Não sou,
e bem o sei,
na galáxia dos poetas
uma rosa,
mas quem, entre os demais,
me negará
o meu lugar."

***

Poesia?

O que você quer exatamente com ela?

Qual o nome da musa que te interessa?

Glória?

Revolução?

Verdade?

"Glória" eu não recomendo. Dá atenção demais ao que os outros dizem.

"Revolução" também não. É o tipo de garota que no final pode se voltar contra você.
Mesmo sabendo que você daria a vida por ela.

Quanto à "Verdade"... bem que poderia acusá-la de falta de imaginação. De viver copiando
os outros. De viver dizendo o que é certo e o que é errado. Sem falar que seus dois
irmãos, "Realismo" e "Naturalismo", são dois sujeitos fortões que não permitem a menor
liberdade com "Verdade". Mas acho que o golpe fatal que pode ser dado nessa garota é
outro: com o tempo, sempre é desmentida.

Mas não fique assim, desanimado... repare naquele outro grupinho, o das "garotas más":
"Mentira", "Fantasia", "Invenção"... e no grupo de "rapazes maus": "Logro", "Fingimento",
"Falso Testemunho"... Essa turma é boa...

É claro que não são coisas que você vai querer encontrar na chamada "vida real". Mas
para a "vida simbolizada", aquela dos poemas, dos contos, dos romances, são
ingredientes fantásticos.

*
Alguém pode perguntar assim: "Mas quer dizer então que aquele pungente e emocionante
sentimento que encontramos, por exemplo, num poema belíssimo como "Algo preto", no
qual o francês Jacques Roubaud fala do desaparecimento de sua esposa, é fingimento?"

De jeito nenhum.

Mas pense bem. Se você descobrisse que aquilo era uma invenção do Roubaud, que
nunca houve essa esposa... que era tudo ficção... o poema seria menos "belíssimo"?

Ou melhor: é menos belíssima por ser inventada a história de Anna Karenina? A história e
o final trágico de Madame Bovary são menos pungentes por sabermos que Madame
Bovary nunca existiu, ou, como dizia Flaubert, Madame Bovary era ele?

Em que melhoraria um poema como "A máquina do mundo" se soubéssemos que


Drummond realmente palmilhava uma estrada de Minas, pedregosa, quando para ele
abriu-se a máquina do mundo?

Um dos poemas mais famosos do romantismo francês é "O lago", de Lamartine, que dizia
tê-lo escrito de um jato, fulminado por uma inspiração, quando caminhava à beira de um
lago. Depois de sua morte, pesquisadores encontraram, entre os seus papéis, rascunhos
que atestam que o poema levou um bom tempo, no mínimo quatro meses, entre seu
nascimento e sua versão final... muito diversa da primeira...

Devemos gostar menos do poema por causa disso?

Se você disse sim, então talvez você goste menos de poesia do que de processos
mediúnicos... Tem gente que não acha graça nenhuma no fato do homem ter colocado um
foguete de centenas de toneladas na lua, e tê-lo trazido de volta... mas basta alguém lhe
dizer que presenciou um copo que se movia sozinho sobre uma mesa de vidente que cairá
de joelhos maravilhado...

Se você está escrevendo um romance, um poema ou um conto, não importa se o que está
narrando aconteceu ou não... O importante é saber se em algum momento, para ser mais
"fiel" ao fato real, você aceitou desligar a chave da imaginação... isso sim é imperdoável...

***

Cabe, aliás, perguntar: será verdadeira aquela história contada por Enrique Vila-Matas?

***

Bem, se você chegou até aqui, parece que está preparado para o jogo da oficina literária.
E como todo jogo, este deve começar com as regras sendo muito bem esclarecidas.

A oficina será composta por dez módulos (aulas). Em cada módulo apresentaremos um
tema específico (por exemplo: o poema em prosa, poesia e pintura, poesia e cinema,
monólogo dramático, enumeração caótica na poesia moderna etc.).

Tomemos como exemplo o caso do poema em prosa.

Contaremos um pouco do nascimento, desenvolvimento e evolução do gênero "poema em


prosa". Depois comentaremos alguns poemas em prosa, desde os Pequenos poemas em
prosa, de Baudelaire, até os atuais, que atestam a permanência do interesse dos poetas
contemporâneos pelo gênero (como exemplo cito aqui o livro As coisas, de Arnaldo
Antunes, todo composto por poemas em prosa). O interessante é se perguntar porque é
que os poetas, em dado momento (que dura até hoje) acharam que o verso já era muito
pouco para a poesia, que esta necessitava de um outro tipo de expansão...

Daremos sugestões de leitura crítica sobre o tema, para aqueles que desejarem se
aprofundar no assunto.
E, é claro, pediremos que escrevam poemas em prosa. Com sugestões técnicas que
podem ser seguidas ou não. Em geral serão sugestões que ajudem a quebrar a rigidez
dos modelos... afinal, ninguém está aqui para ser um bom aluno, todo mundo está aqui
querendo escrever poemas, falar sobre poesia...

***

Na verdade, nosso processo será um pouco como o do Vila-Matas, exposto nos primeiros
parágrafos deste texto.

Mas não é sempre assim?

Lembram do episódio Bíblico (Gênesis, 18), quando Deus queria destruir Sodoma?

Abraão intercedeu pela cidade, dizendo que se houvesse cinqüenta justos na cidade, eles
não poderiam pagar pelos injustos.

Deus aceita não destruir a cidade se encontrar ali cinqüenta justos.

Abraão depois fala em quarenta e cinco, depois quarenta, depois trinta, e no final fica
combinado que a cidade seria salva se ali houvesse dez homens justos.

Pois bem. Digam-me se não foi inserindo a própria voz e poesia nessa história tão antiga
que Jorge Luis Borges escreveu seu poema "Os justos":

OS JUSTOS

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.


O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.

(O talento de Borges foi o de, respeitando integralmente a essência da questão - ou seja:


alguns homens justos podem salvar o mundo -, colocar muita coisa que não havia na
história original... por exemplo: a idéia de que os salvadores do mundo são homens
simples, que fazem coisas simples, e nem se conhecem... esses é que estão salvando o
mundo, e não aqueles famosos "salvadores da pátria", os "Grandes Heróis" que se
arvoram em "Grandes Heróis", políticos, militares, homens públicos... Voltaremos a falar
nesse poema na aula-módulo "enumeração caótica na poesia moderna", de que ele
constitui ótimo exemplo.)

***

Esta primeira aula eu acho que contou mais como uma exposição de motivos, não é? Mas
penso que abordamos questões importantes. De todo modo, se você já quiser um
exercício ou sugestão para um poema, que tal usar o "procedimento Vila-Matas"?

Pegue um poema de algum poeta de sua preferência e insira nele uma estrofe inteira de
sua autoria... depois, pegue sua estrofe e faça o seu próprio poema... podemos considerar
que os poetas nascem uns dos outros, e que do casulo de um sai a borboleta de outro...
Não se prenda a questões como "angústia da influência", "atentado à originalidade"... tente
só se divertir um pouco...

Até breve...

Carlito Azevedo 10 / 01 / 2006

Uma das definições mais conhecidas de "poesia lírica" afirma que ela é "a expressão do
EU do poeta".

Mas o que fazer com tal definição hoje, depois do tal "EU" ter passado, nos séculos 19 e
20, pelo bombardeio pesado da psicanálise, da lingüística e da filosofia?

Se ele (ou seja, o "EU") não desapareceu totalmente, como proclamaram com certa
afoiteza os que consideravam que o poema era escrito metade pela linguagem e metade
pela sociedade (na qual o poeta teria a função de ser uma espécie de "impressora"),
depois desse bombardeio ele perdeu muito de sua pose, de sua pretensão. De
"inalterável" e "sempre idêntico a sim mesmo" passou a ser "variável e ambíguo". De
"íntegro e indivisível" passou a ser "fragmentado, estilhaçado".

Carlos Drummond de Andrade se deu conta disso e batizou uma seção de sua Antologia
poética de "Um Eu todo retorcido", imagem que não deixa de lembrar aquelas estátuas
derretidas, retorcidas, quebradas, destruídas, das cidades bombardeadas na Segunda
Guerra Mundial, estátuas que antes ostentavam, em bronze e mármore, uma olímpica
pretensão de eternidade.

Os poetas mais sensíveis não deixaram de apresentar, em seus poemas, as feridas e


escoriações dessa batalha. No poema "Últimos dias", o próprio Drummond escreveu o
famoso verso: "Adeus, composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade".
Ferreira Gullar escreveu um "Réquiem para Gullar" e Sebastião Uchoa Leite escreveu um
irônico auto-epitáfio:

aqui jaz
para o seu
deleite
sebastião
uchoa
leite

O grande poeta peruano César Vallejo termina com os seguintes tercetos o seu soneto
"Pedra negra sobre uma pedra branca":

César Vallejo morreu, pois lhe batiam


todos sem que lhes fizesse nada;
batiam firme com porrete e firme

também com um chicote; são testemunhas


as quintas-feiras e os ossos úmeros,
a solidão, a chuva, os caminhos...

Poema que traz à mente, é inevitável, o clássico de Paulo Leminski:

o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
no nosso piquenique.

Há um lindo poema de Eudoro Augusto, chamado "Barcarola", que termina assim:

Sem mais, comunico com pesar


que o projeto Eudoro Augusto
não é viável no momento.

E há o texto irônico, belo e radical, de Aníbal Cristobo que, a partir do próprio título "Ghost
Writer", brinca com essa condição fantasmagórica, zumbi, do "EU" autoral:

Ghost Writer

O poeta, e
seus procedimentos: (aqui) círculo

a que regressam as paixões, - quase


sem voz - ensombrecidas
pela imaginação.

Ângulo do poema: "que ao falar com você


exista intimidade, e que tudo
possa ser perdido

e reencontrado assim: em outros


cenários".

[...]

Aníbal
sumiu! Aníbal
está dormindo!-"

Bem, acho que não preciso chamar a atenção para o que estes poemas têm em comum.
O que ocorre aqui é que por uma mesma pressão, vários poetas (e fazem parte da lista
muitos outros, como Allen Ginsberg, Boris Vian, Régis Bonvicino, Augusto de Campos etc)
sentiram a necessidade de inscrever seu nome próprio no poema, complicando ainda mais
a questão do sujeito do poema...

Note-se que na maioria absoluta dos casos, o nome é expresso sob a forma da
inviabilidade, da desaparição, da morte, da interdição, do desajustamento ("Vai, Carlos, ser
gauche na vida!"). O "EU" que fora bombardeado pela psicanálise, filosofia e lingüística,
não veio encontrar no poema nenhum refúgio ou um socorro... Pelo contrário, também o
poema participava do bombardeio, da asfixia.

Sendo assim, o que fazer com aquela definição da poesia lírica como "expressão do EU"?
Definição responsável pela opinião, hoje já bastante desgastada, de que se um poema é
"genial", seu autor (de que ele seria a expressão mais fiel) seria um "gênio"
necessariamente.

Em vez de responder a essa pergunta, sigamos em frente observando algumas das várias
soluções que os poetas encontraram para esse "estado de coisas". Uma delas foi
justamente deixar de falar de si e falar "de coisas". O título de um livro do poeta Francis
Ponge era sintomático: Le parti pris des choses, que se poderia traduzir por "O partido das
coisas", ou "Tomando o partido das coisas".
É claro que essa poesia do objeto, objetiva, não nasceria isenta de contradições e
conflitos, como bem notou João Cabral, poeta objetivo, no poema "Dúvidas apócrifas de
Marianne Moore":

Sempre evitei falar de mim,


falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Esta permanência residual do EU, agora não mais dominante, não mais senhor todo
poderoso do poema, não mais mandarim, mas sim reduzido a ser mais uma coisa entre
coisas, um EU que duvida de si, tem sido em geral mais prolífica em bons poemas do que
as tentativas anacrônicas de ressuscitar o EU maiúsculo e imperial (sob pretexto de um
"fracasso" modernista), e do que as poéticas hiper-vanguardistas que alimentavam a
fantasia de uma objetividade total.

Outra solução, além desta, foi, e continua sendo cada vez mais, a utilização do "poema em
vozes", no qual o poeta, mais do que "alguém que fala", torna-se "alguém que escuta".

Nesses casos, o poeta parece admitir que o tão falado "interior" é o "lugar não do MEU,
não do EU, mas de uma passagem, de uma fresta por onde um sopro de fora nos toma",
como escreveu o dramaturgo francês Valère Novarina.

Esse "poema em vozes" pode ser um recorte cotidiano com intenção crítica, como em
tantos poemas de Francisco Alvim. Vejamos dois deles:

MOÇO, FORTE

Vem cá
você por acaso me chamou de ignorante
você é que me chamou
chamei a administradora
me chame outra vez
porque aí sim você vai ver
a ignorância
ora vá andando
eu estou aqui trabalhando
e você
atoa um caralho
perdi dez mil cruzeiros
por culpa de vocês
chiu olha as senhoras
chiu olha o respeito

ALMOÇO

Sim senhor doutor, o que vai ser?


Um filé mignon, um filezinho, com salada de batatas
Não: salada de tomates
E o que vai beber o meu patrão?
Uma caxambu

Interessante observar que o registro de vozes aqui funciona também ao mostrar que a
violência da subserviência "cordial" do segundo poema não é menor do que a
agressividade social do primeiro.

Mas um "poema em vozes" também pode ter intenções menos claras, menos explícitas.
Não só o "recorte" da fala no tecido social interessa a esse tipo de formato poético.
Também a invenção da fala pode abrir novas dimensões na linguagem, como bem mostra
esse esplêndido poema de Michael Palmer, um poeta norte americano nascido no início
dos anos 40 (a tradução é do poeta Régis Bonvicino):

AUTOBIOGRAFIA 4 IDEM

Voz: Você vê o tom púrpura que tomou o céu?


Outra voz: Eu diria malva, é quase malva.
V.: Existe alguma diferença?
O.V.: Uma tem mais rosa.
V.: Qual?
O.V.: Qual o quê?
V.: Qual tem mais rosa?
O.V.: Eu realmente não sei.
V.: Então, como você pode...
O.V.: Soa correto, para essa cor.
V.: Você vai sempre pelo som?
O.V.: Som?
V.: O som, o...
O.V.: O que isso quer dizer "ir pelo som"?
V.: Quero dizer às vezes que começa com sons – nada além. Você persegue, você...
O.V.: Sons musicais?
V.: Não, menos articulados.
O.V.: Como os sons ao nosso redor agora?
V.: Não, como os sons ao nosso redor agora.
O.V.: Sons que não pode ouvir.
V.: Sons que não pode ouvir.
O.V.: Você escuta sons que não pode ouvir?
V.: Não.
O.V.: Não?
V.: É antes de ouvir.
O.V.: Antes de ouvir?
V.: Ouvir é atenção. Antes da atenção.
O.V.: Malva: "Púrpura delicado, violeta ou lilás".
V.: Púrpura: "Um tom de cor entre o azul e o vermelho; uma das cores usualmente
chamada de violeta, lilás, malva etc."
O.V.: Não e mesmo.
V.: Não e mesmo.
O.V.: Não como mesmo.
V.: Não mesmo.
O.V.: Mesmo não mesmo.
V.: A forma está completa aos 36.
O.V.: Magenta.

Aqui, a linguagem, a fala, é mais do que a "moeda de troca" entre os homens, mais do que
algo reduzido à tarefa de comunicar. Sua física é diferente. Entre a inexatidão e o acerto,
entre a lógica e a anti-lógica, nossa fala é o que "abre um buraco no mundo" (Valère
Novarina).

Há algumas diferenças técnicas interessantes entre os poemas de Alvim e Palmer. O


primeiro não utiliza travessões para marcar as falas de cada personagem, falas que
também não trazem nenhuma rubrica identificatória. Mas mesmo assim podemos definir
com razoável facilidade quem fala e quando é interrompido, pois os papéis sociais se
revelam nas tonalidades e no vocabulário.

Já Palmer não só apresenta os travessões demarcatórios como identifica (por pouco que
seja) quem está por detrás dos travessões (uma voz, outra voz), mas por outro lado seu
poema torna dificilmente identificáveis os "actantes" (a não ser que, guiados pelo título,
imaginemos que essas duas vozes ou mais, já que "outra voz" pode ser sempre e a cada
vez um "outro emissor" representem a os estilhaçamento do EU autobiografado).
Um belo poema em vozes foi escrito pelo grande lírico espanhol Federico García Lorca e
se encontra no livro O poeta em Nova York:

ASSASSINATO
(Duas vozes de madrugada em Riverside Drive)

- Como foi?
- Um corte no rosto.
E ponto final!
Uma unha que oprime o talo.
Um alfinete que mergulha
até encontrar as raízes mínimas do grito.
E o mar deixa de mover-se.
- Como, como foi?
- Assim.
- Não pode ser! Dessa maneira?
- Sim.
O coração saiu sozinho.
- Ai, ai de mim.

A cena (re)criada por Lorca é identificável: duas pessoas comentam um crime na


madrugada. Mas a lírica transfiguradora e metafórica de Lorca vai buscar nessas vozes
mais do que o mero relato do crime. Como ele mesmo diz, o alfinete do poema quer
investigar as próprias "raízes do grito".

40 anos depois de publicado o livro de Lorca, o poeta mineiro Cacaso, em plena ditadura
militar, vai glosar este poema em seu livro Grupo escolar. Mas o que ouve o poeta do "país
do futuro" não é o mesmo que ouve o "poeta em Nova York":

O FUTURO JÁ CHEGOU

- Como foi?
- Com revólver, arrebentou
a cabeça. E nem o sangue bastou
para desatar seus cabelos.
O desespero cortou-se
pela raiz.
- Impossível. Como foi?
- Assim.
- Mas como?
- Dizia que estava desanimado,
que as coisas não faziam sentido.
Ultimamente
já nem saía de casa.

Talvez porque o diálogo seja uma das principais características do texto teatral (que, no
entanto, não se reduz a ele), não há como não ler esses poemas como se fossem uma
espécie de teatro-relâmpago, teatro-sintético. E é mesmo pesquisando nas margens da
poesia, onde a poesia faz fronteira com outras narratividades (cinema, teatro, prosa etc)
que os poetas parecem buscar elementos para suprir o vazio deixado pelo derretimento do
EU.

Mas além do diálogo, há outro formato bastante característico do teatro que foi adotado
com tremendo sucesso pela poesia. Trata-se do "Monólogo dramático", um formato criado
no século 19 pelo poeta inglês Robert Browning.

O monólogo dramático é simplesmente um poema em que o poeta cede a voz a um


personagem (real ou ficcional). Sem ser interrompido (o que já constituiria um diálogo), o
personagem fala. Eis um exemplo bem conhecido, de João Cabral de Melo Neto:

Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,


resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

(...)

Como todo o seu senso de humor, Jorge Luis Borges escolheu para ser o personagem de
um de seus monólogos dramáticos justamente o inventor do monólogo dramático: Roberto
Browning.

No poema de Borges, que reproduzo aí embaixo, Browning ainda é um jovem que parece
estar tendo a visão dos poemas que vai escrever e do gênero que vai inventar, pois cita
personagens que mais tarde serão personagens de seus monólogos dramáticos...

BROWNING RESOLVE SER POETA

Por estes rubros labirintos de Londres


descubro que escolhi
a mais curiosa das profissões humanas,
embora todas, a seu modo, o sejam.
Como os alquimistas
que procuraram a pedra filosofal
no fugitivo argento-vivo,
farei com que as palavras comuns
- cartas marcadas do taful, moeda da plebe -
rendam a magia que foi sua
quando Thor era o nume e o estrondo,
o trovão e a prece.
No dialeto de hoje
direi, por minha vez, coisas eternas;
tentarei não ser indigno
do grande eco de Byron.
Este pó que sou será invulnerável.
Se uma mulher compartilhar meu amor,
meu verso roçará a décima esfera dos céus concêntricos;
se uma mulher desdenhar meu amor,
farei de minha tristeza uma música,
um alto rio que continue ecoando no tempo.
Viverei de esquecer.
Serei o rosto que entrevejo e esqueço.
serei Judas, que aceita
a divina missão de ser traidor,
serei Caliban no lamaçal,
serei um soldado mercenário que morre
sem temor nem fé,
serei Polícrates, que vê com espanto
o anel que o destino devolveu,
serei o amigo que me odeia.
O persa me dará o rouxinol e Roma, a espada.
Máscaras, agonias, ressurreições
vão destecer e tecer minha sorte
e algum dia serei Robert Browning.

(Tradução de Josely Vianna Baptista)

EXERCÍCIOS:

Depois de toda essa conversa, não há muita dúvida quanto ao que vou sugerir como
exercício. Escolham uma dessas três opções (ou as três, se estiverem inspirados) e
divirtam-se fazendo poemas...

1) Um EU todo retorcido:
Faça um poema em que você escreva seu nome próprio, como nos inúmeros exemplos
aqui mostrados. Tente observar se ao escrevê-lo você está apresentando uma abordagem
auto-crítica ou auto-celebratória, auto-piedosa ou cruel, ou seja, se está vendo o seu nome
sob um prisma olímpico ou da inviabilidade.

2) Poema em vozes:
Vale aqui soltar a imaginação. Escreva diálogos que ouviu na rua ou invente diálogos do
modo que achar melhor... Não há nenhum problema se você quiser escrever até uma mini-
peça (de no máximo duas páginas). O poeta e dramaturgo alemão Heiner Müller tem
vários trabalhos que ficam numa região indecidível entre o poema e o drama, como esse
aqui, tão curto quanto belo:

PEÇA CORAÇÃO

Um- Posso pôr meu coração a seus pés.


Dois- Se não sujar meu chão.
Um- Meu coração é limpo.
Dois- É o que veremos.
Um- Eu não consigo tirar.
Dois- Você quer que eu ajude?
Um- Se não incomodar.
Dois- É um prazer para mim. Eu também não consigo tirar.
Um- (Chora)
Dois- Vou operar e tirar para você. Para quê que eu tenho um canivete. Vamos dar um jeito
já. Trabalhar e não desesperar. Pronto – aqui está. Mas isto é um tijolo. Seu coração é um
tijolo.
Um- Mas ele bate por você.

(Tradução de Marcos Renaux)

3) Monólogo dramático:
Escolha um desses personagens abaixo citados e faça-o falar no poema:

CAPITU
RASKOLNIKOFF
SUPER-HOMEM
WOLVERINE
JOANA D'ARC
BRECHT
CHE GUEVARA
CARMEM MIRANDA
HAMLET

ou qualquer um que você queira... Mas faça-o falar, tenha o prazer de ser por um momento
o "autor" da fala dessas figuras.

Espero que tenham muito prazer com essas brincadeiras...


Até breve.

Carlito Azevedo 17 / 01 / 2006

O poema em prosa seria um tema espinhoso e controverso, tão ou até mais espinhoso e
controverso quanto a questão das letras de música (são ou não são poesia?), se não
tivesse recebido, desde a origem, o aval de alguns dos mais incontestáveis poetas do
século 19, quando parece ter sido criado, pelo menos nos moldes como é conhecido e
praticado hoje.

Afinal, se Baudelaire escreveu seus "Pequenos poemas em prosa", se Rimbaud escolheu


esse mesmo formato para seus dois livros principais Uma estadia no inferno e As
iluminações, se Mallarmé, Francis Ponge, Drummond, Lautréamont, Manuel Bandeira,
João Cabral, Octavio Paz, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, César Vallejo e tantos outros,
nos quatro cantos do mundo, praticaram o poema em prosa, isso torna mais difícil, mas
muito mais difícil mesmo, o trabalho dos "fiscais de fronteira poética", essas criaturas que,
sem nenhuma ironia ou auto-ironia, adoram ficar regulamentando as coisas: "isso é
poesia, isso não é poesia".

Porque exatamente disso se trata: cruzar fronteiras como um clandestino, forçar os limites,
ampliar os limites da poesia, levar mais além os confins da poesia. Quando alguns dizem:
até aqui! Outros dizem: ir mais além! Quando alguns dizem: basta! Outros dizem: não
basta!

Mas se o poema em prosa, graças ao auxílio luxuoso desses grandes poetas, conseguiu
"direito de cidadania", nem por isso o problema que ele propõe se tornou menos radical e
revolucionário. Eu diria até que a rápida consagração do gênero deixou em segundo plano
sua questão fundamental:

O poema, para ser poema, precisa do verso?

O poema depende do verso?

É refém do verso?

Há poema fora do verso?

Bem, deixemos essas questões para mais adiante. Ou melhor, vamos dar uma olhadela
em alguns poemas em prosa para sabermos melhor do que estamos falando, e deixar que
os próprios poemas guiem nossa reflexão.

Comecemos com esse poema em prosa belíssimo do brasileiro Jorge de Lima:

O GRANDE DESASTRE AÉREO DE ONTEM

Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a
hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua
cabeleira negra e seu stradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas
na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo
sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos
poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais
rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se
dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser
o pára-quedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu
como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados
pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem
dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez,
vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre
as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

Cada um pense porque é que o autor de versos perfeitamente metrificados e versos livres
de cadências tão sutis escolheu justamente a prosa para dar conta dessa imagem tão
poderosa do desastre aéreo, mas não se esqueçam da ironia do final, quando se fala que
diante daquela chuva de sangue no céu, os "poetas míopes" viam um "arrebol". Afinal, a
miopia de alguns poetas talvez seja a responsável por eles não conseguirem ver que a
estrada da poesia não termina logo ali, vai sempre mais longe.

Vejamos agora outro poema em prosa, desta vez de um contemporâneo, Arnaldo Antunes.

As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro
quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os
pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol
evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os peixes quando nadam
junto formam um cardume. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos
dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As
máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos macacos servem como
braços. Os rabos dos cachorros servem como risos. As vacas comem duas vezes a
mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver
mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras
podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez.
Os vidros quando estão bem limpos quase não se vê. Chicletes são para mastigar
mas não para engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As
meias-noites duram menos do que os meios-dias. As tartarugas nascem em ovos
mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando
a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As
músicas dos índios fazem cair chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a
terra. Os carros fazem muitas curvas para subir a serra. Crianças gostam de fazer
perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.

Quem conhece, por pouco que seja, o trabalho de Arnaldo Antunes, sabe que ele atua no
sentido contrário daqueles "fiscais da alfândega poética" que vivem querendo impor limites
para a poesia. O trabalho de Arnaldo é justamente testar até onde vai a poesia, um
trabalho que é, no mínimo, mais divertido. Daí seus poemas-foto, poemas-desenho,
poemas-rabisco, poemas-verso (por que não?), poemas-em-prosa, poemas concretos,
pós-concretos e pop-concretos etc... Nem todas as respostas cabem num adulto, mas
todas as perguntas cabem num poema, em especial aquela: "por que é que não pode?"

Mais um poema em prosa antes de atacarmos outro lado da questão. Vamos ao começo
de tudo, vamos a Baudelaire:

EMBRIAGAI-VOS

É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para
não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e voz faz pender para a terra,
é preciso que vos embriagueis sem cessar.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto


que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na


desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou
desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o
que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala,
perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o
relógio, hão de vos responder:
- É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo,
embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como
achardes melhor.

Este poema vai ecoar em Carlos Drummond de Andrade, num poema, aliás em versos,
chamado "Poema da necessidade", que diz assim: "É preciso estudar volapuque,/ é
preciso estar sempre bêbado,/ é preciso ler Baudelaire,/ é preciso colher as flores/ de que
rezam velhos autores."
Aliás, os poemas em prosa de Baudelaire parecem ser umas das principais matrizes do
primeiro Drummond, o que demonstra a importância particularmente grande que o gênero
possui entre nós. Comparemos "A sopa e as nuvens", de Baudelaire, com o poema
"Sentimental", de Alguma poesia, livro de estréia de Drummond:

A SOPA E AS NUVENS

A louca da minha bem-amada me dava de jantar, e pela janela aberta da sala de


refeições eu contemplava as movediças arquiteturas que Deus faz com as nuvens,
as maravilhosas construções do impalpável. E dizia, comigo, através da minha
contemplação: "Todas estas fantasmagorias são quase tão belas quanto os olhos de
minha amada, a pequena louca monstruosa de olhos verdes."

De súbito senti um violento murro nas costas e ouvi uma voz rouca e encantadora,
uma voz histérica, e como enrouquecida pela aguardente, a voz da minha querida
bem-amada, que me dizia:

- Trate de tomar a sua sopa, seu maluco, mercador de nuvens!

E vejamos o que diz o poema de Drummond:

SENTIMENTAL

Ponho-me a escrever teu nome


com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,


uma letra somente
para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olha que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."

Acho que já podemos enfrentar então outros pontos da discussão:

1- O poema em prosa "canônico" não é aquele escrito em "linguagem prosaica". É aquele


que, independentemente da linguagem utilizada, abandona o verso, e segue de uma à
outra margem da página linearmente... sem quebras, como na prosa.

2- Diz Baudelaire, ao prefaciar seu livro de poemas em prosa: "Qual de nós, em seus dias
de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem
rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos
líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?"
Como quer que interpretemos essas palavras, o fato é que ele está falando em libertação
de amarras... Trata-se de levar a poesia para além do limite do verso (que contudo
continuará sendo utilizado)... Trata-se de uma necessidade de romper as formas
tradicionais e acrescentar a elas novas formas...

Pode-se argumentar que isso é, no mínimo, polêmico. Afinal, o que faria de algumas das
narrativas curtíssimas de Kafka, prosa, e de alguns textos em prosa de Max Jacob,
poesia?

Leiamos "As árvores", de Kafka:

Porque somos como troncos de árvores na neve. Aparentemente, apenas estão


apoiados na superfície, e com um pequeno empurrão seriam deslocados. Não, é
impossível, porque estão firmemente unidos à terra. Mas atenção, também isto é
pura aparência.

Leiamos "Noite infernal", de Max Jacob:

Algo de terrivelmente frio me cai sobre os ombros. Algo pegajoso se me prende ao


pescoço. Uma voz vinda do céu grita: "Monstro!" sem que eu saiba se é de mim e
dos meus vícios que se trata, ou se de longe se referem ao ser viscoso que a mim se
agarra.

E este texto de Caio Fernando Abreu? Prosa ou poesia?

MERGULHO II

Na primeira noite, ele sonhou que o navio começara a afundar. As pessoas corriam
desorientadas de um lado para outro no tombadilho, sem lhe dar atenção.
Finalmente conseguiu segurar o braço de um marinheiro e disse que não sabia
nadar. O marinheiro olhou bem para ele antes de responder, sacudindo os ombros:
"Ou você aprende ou morre". Acordou quando a água chegava a seus tornozelos.

Na segunda noite, ele sonhou que o navio continuava afundando. As pessoas


corriam de outro para um lado, e depois o braço, e depois o olhar, o marinheiro
repetindo que ou ele aprendia a nadar ou morria. Quando a água alcançava quase a
sua cintura, ele pensou que talvez pudesse aprender a nadar. Mas acordou antes de
descobrir.

Na terceira noite, o navio afundou.

Então, já conseguiu perceber porque Kafka é prosador e Max Jacob poeta? Não? Então
acertou!

E já decidiu se o texto de Caio Fernando Abreu é prosa ou poesia? Também não? Então
acertou de novo!

Porque se há romances que são evidentemente romances, e se há poemas que são


evidentemente poemas, há também "trabalhos" que ousam penetrar numa região híbrida,
agir como espiões infiltrados em território alheio... roubando dali o que bem lhe interessar.
Para esses textos, a mistura e a hibridez são mais valiosas que a obediência estrita aos
cânones...

3- Mas porque é que alguns poetas, de repente, resolveram se infiltrar no país da prosa?
Nas questões anteriores chegamos a compreender a legitimidade dessa atitude. Mas qual
a utilidade dessa atitude? O que os levou a tomá-la?
E que tal mais uma pergunta: quando Baudelaire escreveu os Pequenos poemas em
prosa, já tinha gente escrevendo verso livre, como Walt Whitman, por exemplo. Porque é
que em vez de escrever poemas em prosa, Baudelaire não escreveu poemas em verso
livre, já que também ele poderia significar uma forma "musical sem ritmo e sem rima,
bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da
alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência"?

Há aqui duas possíveis respostas: ou Baudelaire era muito conservador e queria preservar
para o verso a nobreza do metro e da rima, preferindo a prosa para seus experimentos
mais livres... ou era mais revolucionário do que todos os "verso-livristas" de então, pela
simples consciência de que o verso livre não passaria de um paliativo... ou um truque do
verso para sobreviver em novos tempos. Com Baudelaire, nada de paliativos, se é para
deixar o verso, que seja para penetrar de vez, sem pudores, no território proibido da prosa.

Bem, o que posso fazer agora, depois de deixar no ar estas questões, e além de pedir
para que escrevam e me mandem os seus poemas em prosa, é sugerir algumas leituras.
Alguns clássicos do gênero "poema em prosa" já foram lançados no Brasil, como:

- Pequenos poemas em prosa, de Charles Baudelaire (Nova Fronteira).

- Uma estadia no inferno e Iluminações, de Rimbaud (dentro do volume Prosa poética, da


Topbooks)

- Cantos de Maldoror, de Lautréamont (Iluminuras)

No Brasil, a produção de poemas em prosa se não é dominante, está presente em quase


todos os poetas contemporâneos. Cito alguns:

- Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto (Nova Fronteira, dentro da Poesia
completa)

- Carlos Drummond de Andrade escreveu poucos mas preciosos poemas em prosa, como
"Morte de Neco Andrade", de Fazendeiro do ar, "O Enigma", de Novos poemas, "Operário
no mar", de Sentimento do mundo, entre outros. Uma ótima mistura de poema em versos e
poema em prosa está no poema "Outubro 1930", de Alguma poesia.

- São clássicos os poemas em prosa de Manuel Bandeira, como "Lenda brasileira" (de
Libertinagem), "Noturno da rua da Lapa" (idem), "Desmemoriado de Vigário Geral" (de
Estrela da manhã), entre outros.

- Crime na flora, editado pela José Olympio, é uma experiência radical de Ferreira Gullar
com o poema em prosa que merece ser mais conhecida.

- Os poemas em prosa objetivistas de Sebastião Uchoa Leite e os mais surrealistas de


Leonardo Fróes estão entre os melhores poemas em prosa contemporâneos. Os de
Sebastião poderão ser encontrados em livros como Obra em dobras (Coleção Claro
Enigma), A regra secreta (Landy), e A ficção-vida (ed. 34). Os de Leonardo Fróes em
Vertigens, que reúne quase toda a sua poesia (Rocco).

- Muito singulares dentro do "formato" poema em prosa são os livros Galáxias, de Haroldo
de Campos, A teus pés, de Ana Cristina Cesar, e Me segura qu'eu vou dar um troço, de
Waly Salomão. Nestes livros, todos da fase "pós-moderna" de nossa história poética, é o
próprio poema em prosa que se vê levado a investigar seus próprios limites... Se ele
nasceu como uma explosão dos limites entre poesia e prosa, depois de duzentos anos, e
praticado por tantos nomes canônicos e oficiais da poesia, era de se esperar que também
o poema em prosa acabasse sendo uma regra, um formato, uma prisão, e que alguns
poetas se sentissem tentados a explodi-lo desde dentro. O poema em prosa norte-
americano de Ron Silliman e da "new sentence" faz isso sistematicamente, e os poemas
em prosa de Régis Bonvicino são um bom exemplo do que já se conseguiu por aí.
- Dentro do espírito irreverente e desbundado da geração 70 surgiram alguns bons
poemas em prosa. Recomendo em especial os livros Quampérios, de Chacal, e Mais dia
menos dia, de Ângela Melim.

- Um clássico: O mono gramático, de Octavio Paz, é leitura obrigatória.

Volto semana que vem com mais uma aula, mandem brasa.

Carlito Azevedo 30 / 01 / 2006

A poesia tem uma coisa fantástica: quanto a temas, ela é absolutamente não-hierárquica.

Um ótimo poema sobre um desenho de criança na parede será sempre melhor do que um
mau poema sobre os afrescos de Giotto em Pádua.

O famoso poema de João Cabral de Melo Neto sobre o ovo da galinha não é
absolutamente menos importante do que seu poema sobre Paul Klee.

O não menos famoso poema de Drummond sobre uma pedra no meio do caminho é tão
bom quanto seu poema sobre uma tela de Mondrian.

Há um belíssimo poema de Ferreira Gullar sobre bananas podres, sobre umas simples
bananas que estão apodrecendo em um prato, que não fica nem um pouco atrás de seu
poema sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer.

Porque a poesia tem algo daquela "idiotia" a que se referia, positivamente, Júlio Cortazar.
Ou seja, aquela capacidade de se maravilhar tanto com uma escultura de Rodin quanto
com uma teiazinha de aranha brilhando ao sol, sem precisar submeter-se ao estatuto
lógico segundo o qual uma escultura de Rodin é uma coisa mais importante e mais digna
de maravilhamento do que uma teiazinha de aranha cheia de minúsculas gotas de orvalho
cintilantes, e segundo o qual uma banana podre, um desenhozinho infantil numa parede,
uma pedra no caminho e um ovo de galinha são coisas que devem ser colocadas muitos
milhões de degraus abaixo da arquitetura de Niemeyer, dos afrescos de Giotto, da pintura
de Mondrian e Klee.

Com essa introdução, o que eu quero deixar claro é: não é porque hoje vamos falar de
poesia e artes plásticas, artes visuais, que vocês têm que assumir uma postura solene, um
ar de profundidade intelectual, se levar a sério demais, começar a fazer pose de
"iluminado".

Nem precisam correr atrás de livros sobre pintura... afinal, não vou pedir que escrevam
ensaios sobre esse ou aquele artista... aí sim, isso seria fundamental. Muita sensibilidade
é fundamental... A simplicidade pode gerar bons resultados também nessa área, como
prova o clássico poema de Jacques Prevert:

Para pintar o retrato de um pássaro

Primeiro pinte uma gaiola


com a porta aberta.
Depois pinte
algo gracioso
algo simples
algo bonito
algo útil
para o pássaro.
Então encoste a tela a uma árvore
em um jardim
em um bosque
ou em uma floresta.
Esconda-se atrás da árvore
sem falar
sem se mover...
Às vezes o pássaro aparece logo
mas ele pode demorar muitos anos
antes de se decidir.
Não desanime.
Espere.
Espere durante anos, se for necessário.
A rapidez ou a lentidão do pássaro
não influi no bom resultado
do quadro.
Quando o pássaro aparecer
se ele o fizer
observe no mais profundo silêncio
até ele entrar na gaiola
e quando ele assim agir
delicadamente feche a porta com o pincel.
Então,
apague uma a uma todas as grades
tomando cuidado para não tocar na plumagem do pássaro.
Em seguida, pinte o retrato de uma árvore
escolhendo o mais bonito de seus galhos
para o pássaro.
Pinte também a folhagem verde e o frescor do vento
o dourado do sol
e a algazarra das criaturas, na relva,
sob o calor do verão.
e então espere até que o pássaro decida cantar.
Se ele não cantar
é um mau sinal,
um sinal de que a pintura está ruim.
Mas se ele cantar é um bom sinal
um sinal de que você pode assinar.
Então, com muita delicadeza, você arranca
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome em um canto do quadro.

Agora, é claro que nem todos os poemas sobre pintura precisam ser tão simples... há
poemas sofisticadíssimos, herméticos, e nem por isso menos importantes... E é claro que
é recomendável ler livros sobre pintura... não só para o nosso curso, para a sua vida...
afinal, quando a gente gosta de um tema (e acredito que todo mundo que tem
sensibilidade para gostar de poesia deve gostar de pelo menos uma das muitas
manifestações envolvidas no nome "artes visuais"), é sempre bom ouvir outras pessoas
que amam e conhecem o assunto... e é sempre melhor conhecer coisas do que ignorar
coisas...

Mas faço questão de deixar claro que um mau poeta pode ter visto de perto todas as telas
de um pintor, ter lido todos os livros sobre esse pintor, e ainda assim seu poema sobre
esse pintor será um mau poema... Por outro lado, um dos mais belos poemas sobre
Picasso que já li foi escrito por um poeta venezuelano que jamais viu de perto um quadro
de Picasso e escreveu esse poema quando viu a reprodução de uma tela do espanhol na
capa de um livro.

Vamos ler mais um poema, um poema do norte-americano Lawrence Ferlinghetti, um


sujeito que sempre esteve próximo da geração beatnik. O poema se desenvolve a partir do
conhecidíssimo quadro "O beijo", de Klimt.
CONTO SOBRE UMA PINTURA DE GUSTAV KLIMT

Estão ajoelhados sobre uma cama florida


Ele
acabou de prendê-la ali
e a detém
O vestido dela
desceu e deixou
descoberto o ombro
Ele sente uma fome urgente
sua cabeça morena
inclina-se sobre a dela
faminta
E a mulher a mulher
afasta dos lábios dele seus lábios de tangerina
uma das mãos lembra a cabeça de um cisne morto
e repousa sobre
o pescoço grosso do homem
os dedos
estranhamente crispados
apertados com força
o outro braço dobrado
sobre o seio premido
a mão é uma garra lânguida
agarrando a mão do homem
a qual quer apertar a boca da mulher
contra a sua
o vestido comprido é feito
de flores de todas as cores
bordadas a ouro
os cabelos à Ticiano
cheio de estrelas azuis
E o manto de ouro do homem
arlequinal
axadrezado com
quadrados escuros
Grinaldas de ouro
caem por sobre
as pernas nuas da moça &
seus pés tensos
Ali perto deve haver
uma árvore de jóias
com folhas de vidro brilhantes
no ar de ouro
Deve ser
manhã
em algum lugar longínquo
Eles
estão calados juntos
como se num campo florido
sobre o leito estival
que deve ser dela
E ele a detém
tão apaixonadamente

aperta-lhe a fronte contra a sua

tão leve tão insistente


para fazê-la levar
os lábios aos seus
Os olhos dela estão fechados
como pétalas de botão
Ela
não vai abri-los
Ele
não é Aquele

(Tradução: Paulo Henriques Britto)

Convenhamos que é o tipo de ótimo poema que um sujeito pode escrever a partir até da
observação de uma reprodução em um fascículo da coleção "Gênios da pintura", desde
que sua capacidade de observar, imaginar, fantasiar, seja a de alguém talentoso... Só
quem não tem muito talento para fantasiar não pode fazer poemas assim.

Faço questão de afirmar isso aqui porque parece que vivemos um momento tão elitista na
poesia que daqui a pouco vão surgir críticos dizendo que quem não viu as obras originais
dos artistas está proibido de fazer poemas sobre esses artistas...

Agora leiamos um daqueles poemas formidáveis que pressupõem um conhecimento


abrangente do assunto... Um belíssimo poema do inglês W. H. Auden:

Musée des beaux arts

No que diz respeito ao sofrimento, nunca se enganaram


os velhos mestre da pintura: como entenderam bem
a sua dimensão humana; como ele ocorre
enquanto as outras pessoas comem ou abrem uma janela ou simplesmente passeiam;
como, na hora em que os mais velhos aguardam reverente, apaixonadamente
o nascimento milagroso, sempre há
crianças que não estão nem aí para ele, patinam
num lago do bosque.

Nunca eles esqueceram


que mesmo o martírio mais horrendo deve acontecer
de forma simples numa esquina qualquer, num lugar sujo
cheio de cães vadios, onde o cavalo do algoz
arraste o traseiro inocente numa árvore.

No Ícaro de Breughel, por exemplo: tudo volta as costas


calmamente ao desastre: o lavrador talvez tenha
ouvido o mergulho, um grito no ar;
mas para ele não era nada demais; o sol brilhava
como sempre sobre as pernas brancas que afundavam na água
esverdeada; e o delicado, luxuoso barco que viu,
talvez, aquela coisa surpreendente, um rapaz caindo do céu,
tinha um destino a atingir, e para ele suavemente navegou.

É o tipo de poema que pressupõe o conhecimento da obra dos "grandes mestres". Através
da observação e da comparação de seus trabalhos, o poeta notou que o que há em
comum entre eles é essa "não-monumentalização" do sofrimento. Observações
fundamentais como essa é o que encontramos nos melhores livros de arte, cuja leitura,
depois de ter feito a necessária ressalva anti-elitista, recomendo fortemente. Mas vejamos
como um poeta norte-americano, William Carlos Williams, a partir de um poema bastante
simples e sofisticado ao mesmo tempo, fala quase a mesma coisa que esse poema de
Auden, e a partir do mesmo quadro, "Paisagem com queda de Ícaro", de Breughel:

Paisagem com queda de Ícaro


De acordo com Breughel
quando Ícaro caiu
era primavera

um lavrador arava
os seus campos
todo o esplendor

do ano
formigava ali
à beira do mar

o lavrador
consigo mesmo
preocupado

suava ao sol
que derretia
a cera das asas

perto
da costa
houve

uma pancada quase imperceptível


era Ícaro
que se afogava

Essa invisibilidade, essa imperceptibilidade do sofrimento de Ícaro é a mesma que revela o


poema de Auden.

Um poema que mistura a vida e a pintura de forma muito eficaz é "Uma coca-cola com
você", do poeta norte-americano Frank O'Hara. Trata-se de um dos meus poemas
favoritos. Nele, O'Hara, que conhecia muito o tema (além de trabalhar no Museus de Arte
Moderna de Nova York escreveu, por exemplo, um belíssimo ensaio sobre a pintura de
Jackson Pollock), parece menosprezar a pintura em comparação com a vida... mas na
verdade, vida e pintura saem ganhando enormemente depois da leitura desse poema...
vejam se não é verdade...

UMA COCA-COLA COM VOCÊ

é ainda melhor que uma viagem a San Sebastian, Irún, Hendaye, Biarritz, Bayonne
ou que ficar enjoado na Travesera de Gracia em Barcelona
em parte porque nessa camisa laranja você parece um São Sebastião melhor e mais feliz
em parte porque eu gosto tanto de você, em parte porque você gosta tanto de iogurte
em parte por causa das tulipas laranja fluorescente contra a casca branca das árvores
em parte pelo segredo que nos vem ao sorriso perto de gente e de estatuária
é difícil quando estou com você acreditar que existe alguma coisa tão parada
tão solene tão desagradável e definitiva como estatuária quando bem na frente delas
na luz quente de Nova York às quatro da tarde nós estamos indo e vindo
de um lado para o outro como a árvore respirando pelos olhos de seus nós
e a exposição de retratos parece não ter nenhum rosto, só tinta

de repente você se surpreende que alguém se tenha dado ao trabalho de pintá-los


olho
para você e prefiro de longe olhar para você do que para todos os retratos do mundo
exceto talvez às vezes o Cavaleiro Polonês que de qualquer maneira está no Frick
aonde graças a Deus você nunca e assim eu posso ir junto com você a primeira vez
e isso de você se mover tão bonito mais ou menos dá conta do Futurismo
assim como em casa nunca penso no Nu Descendo a Escada ou
num ensaio em algum desenho de Leonardo ou Michelangelo que me deslumbrava
e o que adianta aos Impressionistas tanta pesquisa quando eles
nunca encontraram a pessoa certa para ficar perto de uma árvore quando o sol baixava
ou por sinal Marino Marini que não escolheu o cavaleiro tão bem quanto o cavalo
acho que eles todos deixaram de ter uma experiência maravilhosa
que eu não vou desperdiçar por isso estou te contando

Outro poema preferido é "Eco de Ausonius", de Augusto de Campos, um poema que


zomba de um pintor que tentou pintar Eco:

ECO DE AUSONIUS

Por quê, pintor, figurar-me uma face


e sujeitar uma deusa do vazio?
Filha do ar e da fala, não de inanes
sonoridades, gero-me, voz sem mente.

Tomando pela cauda as derradeiras sílabas,


divirto-me a seguir as palavras alheias.
No labirinto do teu próprio ouvido, eis-me
Eco: se puderes, pinta o som.

Gosto muito destes dois poemas de Bertolt Brecht que apresento a seguir. O primeiro fala
de uma gravura chinesa, outra de uma máscara oriental.

NUMA GRAVURA DE LEÃO CHINESA

Os maus temem tuas garras.


Os bons se alegram de tua graça.
Algo assim
Gostaria de ouvir
Do meu verso.

A MÁSCARA DO MAL

Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa,


Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado.
Compreensivo observo
As veias dilatadas da fronte, indicando
Como é cansativo ser mau.

Como vemos, neste segundo poema Brecht chama a atenção para a capacidade de
observação. É claro que diante dessa mesma escultura japonesa muitos outros poderão
dizer muitas outras coisas. Uns farão uma leitura histórica, outros darão com precisão a
data, outros ainda poderão dizer se aquela peça se inscreve numa tradição ou se ao
contrário quebra uma tradição. Para Brecht, a gravura e a máscara faziam brotar a
questão do bem e do mau.

O nome do escultor Brancusi está presente nos próximos dois poemas que leremos. O
primeiro, de Paul Celan, tece uma hipótese a partir das pedras produzidas por esse
escultor. O segundo, de Haroldo de Campos, vislumbra uma peça de brancusi na cabeça
de uma mulher que sai do metrô em Paris. Vejamos os poemas:

COM BRANCUSI, A DOIS


Se dessas pedras apenas uma
fizesse ressoar
aquilo que a silencia:
aqui, bem perto,
na ponta do cinzel-bengala deste ancião,
ela se abriria, como uma ferida,
em que terias de mergulhar,
sozinho,
bem longe deste meu grito, nela
esculpido, lívido.

(Paul Celan, tradução: Flávio Kothe)

BRANCUSI

Marfim
negro

uma cabeça brancusina


gazela ou
leoa-passarinho

túnica em tubo
dáctilo-prateada
(anéis em todos os
dedos)

mais os aros
das pulseiras
tintinabulantes
bailando a contranegro
(contra o negro: a pele
esse marfim brunido
lustre virgem
revérbero não-tacto de
dulcíssimo
jovem pergaminho)

o olhar: uma rainha em armas

(descendo do metrô em sèvres-


-babylone)

Vemos que não existe um modelo de poema sobre pintura... existem aqueles sobre
quadros imaginários (o poeta contemporâneo Júlio Castañon Guimarães é mestre nestes
"quadros imaginários"), há aqueles que tentam contar uma história a partir da cena
pintada, há aqueles que falam de imagens artísticas que voltam à nossa mente quando
estamos andando no meio da rua ou tomando um banho ou qualquer coisa de tão
corriqueiro quanto isso... Há aqueles em que se tenta observar e dar a ver o método
criativo do poeta (não conheço melhor exemplo do que o poema "O sim contra o sim", de
João Cabral de Melo Neto.

Uma boa sugestão de exercício é você tentar fazer uma série... coisa muito comum entre
os pintores, que às vezes desenvolvem um tema em uma série de quadros... Cézanne
pintou uma série de banhistas.

Ou pegue por exemplo um quadro onde haja muitas figuras humanas e faça um poema
para cada uma daquelas pessoas, um poema que seja um pouco o que cada uma delas
está pensando.

Outro exercício, mais simples, é pegar uma foto, um quadro, uma instalação, uma
escultura, uma gravura, uma imagem de quadrinhos e tentar fazer um poema sobre ele...
pode enfatizar o autor, pode, a partir dessa imagem, tentar imaginar o processo criativo do
artista...

Enfim, pode (e deve) ir ver alguma exposição na sua cidade, ou pegar um livro de arte em
qualquer biblioteca e olhar bem as imagens, observar a delicadeza ou a agressividade que
devem ter custado aos seus autores... Pense se as pinceladas agressivas ou as delicadas
mais combinam com a sua escrita, com o seu fraseado... Observe se os trabalhos que
mais te impressionaram são os de mais luz ou menos luz... coisas assim...

Enfim, tente compreender as reações que aquilo provoca em você e extraia um poema
desse atrito entre a sensibilidade exposta e construída no quadro e a sua sensibilidade.

Antes de terminar, deixo com vocês esse poema do Ferreira Gullar:

PINTURA

Eu sei que se tocasse


com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos.

Gullar não diz que quadro é esse, nem seu autor. Estamos acostumados a associar
amarelo e delírio à imagem de Van Gogh, mas o importante foi que o poeta preferiu
apenas sugerir isso... pode ser, pode não ser... talvez ele pensasse que o fundamental era
passar essa idéia de contágio pela obra... e que o "signo" Van Gogh já está tão cheio de
referências (camisetas, xícaras, papéis de parede etc) que o melhor é deixar no poema
apenas aquilo que não se consegue domar, o indomável... Ou pode ser que nem de Van
Gogh fosse o tal quadro... talvez fosse um daqueles quadros imaginários... Como disse um
pouco mais acima, a poesia inventou um milhão de formas de falar da pintura.

Abraços.

Carlito Azevedo 13 / 02 / 2006

Para que vocês entendam melhor a aula de hoje, começarei com um poema em prosa
bem curto de Max Jacob:

A MENDIGA DE NÁPOLES

Quando eu morava em Nápoles, havia à porta da minha mansão, uma mendiga a quem eu
atirava alguns níqueis, antes de subir no meu carro. Um dia, surpreso por nunca ter
recebido um único "obrigado", encarei a mendiga. Ora, como a encarasse, descobri que o
que eu tomara por uma mendiga era, na realidade, um caixote de madeira pintada de
verde que continha terra vermelha e umas bananas podres.

De onde vem a poesia desse poema?

Bem, será que ajudaria a encontrar a resposta saber que Max Jacob foi amigo e
companheiro de luta dos pintores cubistas, como Picasso e Braque, em Paris, no início do
século XX?
Talvez adiante alguma coisa, talvez não.

Mas a grande "desautomatização" do olhar proposta e realizada pelo cubismo está muito
presente nesse poema que também, à sua maneira, faz a crítica do olhar burguês, do
olhar que olha o mundo e não o vê, não é?

A escolha do "tom do poema", do formato "poema em prosa" foram fundamentais para que
ele tivesse a contundência que tem.

Mas quantas formas, formatos, linguagens, materiais Max Jacob teve que dispensar para
chegar a essa depuração da linguagem?

Hoje falaremos disso um pouco.

Escrever poesia é fazer escolhas. Eleger alguns materiais e técnicas e dispensar outras.

Ainda que sejam escolhas inconscientes.

Porque o acervo de formas, formatos, materiais, dimensões da poesia é tão grande e


complexo que é praticamente impossível você utilizar todo o material disponível.

Sabem de algum poeta cuja obra contenha epopéias e poemas concretos, sonetos
metrificados e versos livres, hai-kais e poemas surrealistas, monólogos dramáticos e
sextinas, literatura de cordel e acrósticos, poemas semióticos e baladas provençais,
quadrinhas e trovas etc. etc.?

Uma vida só é pouco, e se alguém se arriscar a cumprir todo o circuito das formas e tons
poéticos provavelmente terá escrito uma obra que vai interessar mais ao livro dos recordes
do que aos amantes da poesia.

Sendo assim, só nos resta, eleger, escolher, selecionar. Ou seja, só nos resta fazer
(consciente ou inconscientemente) a crítica das formas, dizendo que essa aqui não nos
interessa, mas aquela lá sim, esta outra não, aquela talvez...

Pois ao optar (consciente ou inconscientemente) por poemas curtos, você já está deixando
de lado os poemas longos.

E ao optar (consciente ou inconscientemente) por poemas longos, você já está deixando


de lado os poemas curtos.

E ao optar (consciente ou inconscientemente) por escrever tanto poemas curtos como


longos, deixando que cada poema dite um pouco sua dimensão na página, já está
deixando de lado as duas opções anteriores.

(Podemos estender isso indefinidamente.

Ao optar por uma linguagem coloquial, você já fez uma escolha que colocou de lado a
linguagem mais solene.

Ao optar por uma linguagem mais solene, você já fez uma escolha que colocou de lado a
linguagem coloquial.

Ao optar por uma linguagem mesclada, ora coloquial, ora solene, você já fez uma escolha
que eliminou as duas opções anteriores.

Apliquemos isso a questões como "linguagem metafórica" versus "linguagem mais colada
ao real". Ou "formas fixas de estrofação e metrificação" versus "irregularidade dos versos
e das estrofes".
Etc. etc.)

A crítica Susanne K. Langer, no seu livro Sentimento e forma, observa com muita precisão
que um poeta tende a eleger cinco ou seis materiais com os quais vai trabalhar, e que,
após essa eleição, passa a identificá-los como os materiais que contém a "essência" da
poesia.

O problema é que a partir daí, a maior parte dos poetas tenderá a condenar os que fizeram
escolhas diferentes, e admirar todos os que fizeram escolhas parecidas.

Esse é um dos poucos argumentos contra a idéia bastante comum de que o melhor crítico
de poesia é o poeta.

Só o será se levar em conta aquela frase de Ezra Pound: "Mau crítico é aquele que prefere
um mau poeta de sua escola literária a um bom poeta da escola literária adversária".

O mais comum é que os poetas que escolheram uma linguagem mais concisa, o poema
curto e econômico, acusem os que escolheram linguagens mais caudalosas e poemas
longos de verborragia e exagero.

E que os poetas que identificaram a essência poética com longos discursos por sua vez,
acusem os que escolheram a concisão e a economia de insignificância, irrelevância.

Um poeminha de Francisco Alvim resume a questão:

LUTA LITERÁRIA

Eu é que presto.

O grande erro está em julgar um material poético (a metáfora, o poema longo, o poema
curto, a forma fixa etc.), e não o talento do poeta na utilização desse material.

É claro que cada escolha define uma posição. E é preciso responder por essa escolha.

O soneto é uma forma que já foi tão usada, e tão identificada com a própria poesia,
tornando-se quase que uma "garantia" de qualidade poética, que ao eleger essa forma
hoje em dia o poeta já está tomando uma posição...

Se não for um soneto auto-irônico, ou um "soneto para acabar com os sonetos", o mínimo
que se pode dizer desse poeta é que prefere (ou não o incomoda muito) conferir ao seu
fazer poético uma certa oficialidade, e que prefere andar no território do convencional e do
bom comportamento já reconhecido.

Mas já que falamos dele, vejamos que mesmo um material tão desgastado como o soneto
pode ganhar, nas mãos de um bom poeta, uma vivacidade e uma atualidade, que estão
muito longe do automatismo que cerca o formato... pelo contrário.

No caso da série de sonetos "Até segunda ordem", do poeta contemporâneo Paulo


Henriques Britto, o que há é uma subversão da linguagem dentro do formato oficial (e
repare que o tema do poema também tem algo de crime cometido sob fachada e proteção
oficial):

ATÉ SEGUNDA ORDEM

(10 DE OUTUBRO)

Até segunda ordem estão suspensas


todas as autorizações de férias,
viagens, tratamentos e licenças.
É hora de pensar em coisas sérias.

Deve chegar mais um carregamento


até o dia quinze, dezesseis
no máximo. Fui lá em Sacramento,
mas não deu pra encontrar com o tal inglês —

será que alguém errou o codinome?


Confere aí com quem organizou
o negócio todo. Bem, amanhã

a gente se fala, que agora a fome


está apertando. (Ah, o padre adorou
o canivete suíço de Taiwan.)

(9 DE NOVEMBRO)

Tudo resolvido. O campo de pouso


até que é razoável. Mas o tal de
Carlão, hein, vou te contar. É nervoso,
não sei; parece que sofre de mal de

Parkinson, ou coisa que o valha. Mas isso


é o de menos. O pior é que o "Almirante"
desde terça tomou chá de sumiço.
Não sei que fim levou; é preocupante.

Chegou a encomenda de Lisboa.


O número é 318.
A senha: "O olho esquerdo de Camões

não vale uma epopéia". (Essa é boa!)


Não agüento mais ter que jantar biscoito.
No mais, tudo bem. Aguardo instruções.

(21 de dezembro)

Sim, recebi a carta do João.


Só que o seu telefonema da sexta
já havia alterado a situação
completamente. É, o Bento é uma besta,

mas você, também... Nessas horas é que se


vê que falta faz um profissional.
Você nunca vai ser como era o Alex.
Mas deixa isso pra lá. O principal

é que o negócio está de pé, ainda.


O que não pode é pôr tudo a perder
a essa altura do campeonato.

Não diga nada, nada, à dona Arminda.


Toma cuidado. Conto com você.
Aguarde o nosso próximo contato.

(12 de janeiro)
Por quê que ninguém me deu um aviso?
Pra que que serve essa porra de bip?
Assim não dá. Que falta de juízo,
de... de... sei lá! Eu lá em Arembipe

dando duro, e vocês aí de pândega!


O deputado, é claro, virou bicho,
e não vai mais ajudar lá na alfândega.
Meses de esforço jogados no lixo!

E agora? E o alvará do "Três Irmãos"?


E os dez mil dólares do Mr. Walloughby?
Não vou nem falar com o doutor Felipe.

Vocês que agüentem o tranco. Eu lavo as mãos.


Se alguém me perguntar, eu tenho um álibi
perfeito: "Eu estava lá em Arembipe".

(19 de janeiro)

Até esta chegar às suas mãos


eu já devo ter cruzado a fronteira.
Entregue por favor aos meus irmãos
os livros da segunda prateleira,

e àquela moça – a dos "quatorze dígitos" –


o embrulho que ficou com o teu amigo.
Eu lavei com cuidado o disco rígido.
Os disquetes back-up estão comigo.

Até mais. Heroísmo não é a minha.


A barra pesou. Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que coube na viatura,

mas deixei um revólver na cozinha,


com uma bala. Destrua este soneto
imediatamente após a leitura.

Uma coisa o poeta contemporâneo não pode ser: ingênuo.

E Paulo Henriques Britto não é nem um pouco ingênuo. Ele sabe que para arrancar
alguma faísca de vivacidade desse formato repetido à exaustão por tantos poetas, é
preciso ser irônico e auto-irônico ("Destrua este soneto/ imediatamente após a leitura.").
Ou seja, não pode continuar acreditando que o mero fato de saber metrificar e rimar já
garante a qualidade do poeta e, conseqüentemente, do poema.

Sonetos, métrica e rima já não são garantias de qualidade poética.

Assim como, versos livres, estrofação irregular também não são.

Este é o ponto: todos os materiais podem ser utilizados...

Mas não como num self-service todas as comidas podem ser escolhidas...

não como num armário todos os estilos de moda podem ser usados...
Ou melhor, poder podem, mas quem vai arcar com a conseqüência dessa indiscriminação
total é o seu poema, o seu estômago e o seu visual.

Para evitar que seu poema pareça um estômago embrulhado ou uma "perua", a única
coisa você pode fazer é selecionar, e selecionar quer dizer, fazer a crítica dos materiais
selecionados.

Nenhum dos materiais citados trazem consigo a garantia do "poético", e alguns (como a
metáfora, por exemplo), pelo simples fato de terem sido identificados por muito tempo
como a própria essência poética, trazem um perigo adicional embutido, o grande perigo
para qualquer poesia: o clichê.

Os poemas que observaremos na aula de hoje podem nos ajudar a aguçar o senso crítico.
O primeiro é de um dos principais poetas iugoslavos do século XX, Vasko Popa:

PORCO

Só quando ouviu
A faca furiosa na garganta
A cortina vermelha
Explicou-lhe o jogo
E ele lamentou
Ter-se desprendido
Dos braços do lamaçal
E à noite do campo
Tão alegre ter corrido
Corrido para o portão amarelo.

Quando nenhum elemento mais é garantia de qualidade poética, uma dúvida


enriquecedora nasce: de onde surge exatamente a força poética de um poema? Acho este
poema de Vasko Popa belíssimo.

Será pela simplicidade?


(Mas existem poemas simples que são horríveis. Além disso, há ótimos poemas
complexos.)

Será por sua concisão?


(Mas existem poemas concisos e chatos. E o longo poema Uivo, de Allen Ginsberg, por
exemplo, é ótimo.)

Será pelo jogo cromático entre a cortina vermelha e o portão amarelo?

Podemos arriscar um palpite: as elipses do poema são manejadas muito habilmente pelo
poeta.

A elipse, que já foi chamada muito lindamente de "estilo de persianas" pelo poeta Haroldo
de Campos, é aquele jeito de contar ocultando, revelar escondendo, sugerir pelo silêncio.

Obedecendo ao que foi dito mais acima, não direi que a elipse deve ser julgada (positiva
ou negativamente), o que podemos julgar, e muito positivamente, é a habilidade, o talento
de Vasko Popa no manejo da elipse.

Ele não diz nada sobre a pessoa que mora na casa. O que podemos fazer é tentar
recompor, preencher essa elipse com suposições: a de que o morador da casa estava com
fome e viu a chegada daquele porco como um milagre, por exemplo. Ou sei lá que leitura
você aí deve ter feito desse poema.

Aqui tocamos em um ponto importantíssimo.

Um poema deve possuir várias leituras possíveis.

A linguagem tem um ponto máximo de determinação.

É aquele que você usa se quer pedir a alguém que vá até a padaria e traga um litro de
leite.

Para conseguir plenamente esse objetivo, você vai emitir uma mensagem com um grau de
determinação tal que a pessoa que a recebeu não tenha a menor margem de possibilidade
de entender que o que você pediu foi que ela se dirigisse à farmácia e comprasse um
analgésico.

Mas a linguagem também tem um ponto máximo de indeterminação. Não digo que neste
ponto máximo se encontre o lar da poesia, mas sem dúvida a poesia está mais perto dele
do que do ponto máximo de determinação. Porque quando se trata de poesia, a pessoa
que recebeu a mensagem deve ter muitas possibilidades interpretativas.

Uma coisa é uma pessoa chamada João dizer:


"Meu nome é João".

Outra coisa é uma pessoa chamada João dizer:


"Meu nome é legião".

O poema deve se prestar, como dissemos, a várias leituras. E uma boa elipse, ou seja,
uma elipse bem manejada, é um instrumento formidável para criar essa zona onde muitos
sentidos são cabíveis.

Uma elipse mal manejada, contudo, resulta em carência. Sente-se que faltou algo ao
poema.

Mas vejamos outro poema, este do argentino Juan Gelman:

ANCORADO EM PARIS

De quem tenho saudades é do velho leão do zoológico,


sempre tomávamos café no Bois de Boulogne,
e era ali que me contava as suas aventuras na Rodésia do Sul.
Mas mentia, era evidente que nunca tinha saído do Saara.

Seja como for, me encantava a sua elegância,


sua maneira de erguer os ombros diante das mesquinharias da vida,
olhava os franceses pela vidraça do café
e dizia "e esses idiotas ainda fazem filhos".

Os dois ou três caçadores ingleses que tinha comido


lhe provocavam más recordações e até melancolia,
"as coisas que a gente tem que fazer para viver", filosofava,
ajeitando a própria juba no espelho do café.

Sim, tenho muitas saudades dele,


nunca se mexeu para pagar a conta,
mas sempre calculava quanto se devia deixar de gorjeta
e os garçons o cumprimentavam com especial deferência.

Nos despedíamos às margens do crepúsculo,


ele regressava a son bureau, como dizia,
não sem antes me advertir com uma pata em meu ombro
"muito cuidado, meu filho, com as noite de Paris".

Tenho muitas saudades dele, de verdade,


seus olhos às vezes se enchiam de deserto
mas sabia calar-se como um irmão
quando emocionado, emocionado,
eu lhe falava de Carlos Gardel.

Aqui, podemos desconfiar que a força poética nasce do "estranhamento". Desconfio que
Juan Gelman, que viveu exilado em Paris, só encontrou, para dar uma idéia dessa
sensação de estranhamento que é a do sujeito que de repente se vê obrigado a viver
longe de sua pátria, a imagem de um leão com que se possa beber e falar da vida e de
Gardel.

Se em nossa canção do exílio se fala que as aves que na pátria gorjeavam não gorjeavam
como as do exílio, no poema de Juan Gelman se pode imaginar que os leões que por
Paris rugiam não estavam rugindo como os da Argentina da ditadura militar.

Disse várias vezes aqui que nenhum formato, técnica ou material é garantia de qualidade
poética.

Mas quando um autor é forte e certeiro em suas escolhas, até um curriculum vitae pode
virar poema. Como no caso desse poema da polonesa Wislawa Szymborska:

CURRICULUM VITAE

Que é necessário fazer?


É necessário preencher um requerimento
E anexar um curriculum vitae.

Qualquer que seja a duração da vida


O C. V. deve ser sucinto.

Recomenda-se a concisão e uma boa seleção dos dados.


Transformar o que era paisagem em endereço.
E as vagas lembranças em datas fixas.

De todos os amores, basta o conjugal,


De todos os filhos, só os que nasceram.

Quem te conhece, não quem conheces.


Viagens, só ao exterior.
Filiações sem as razões.
Distinções sem menção ao mérito.

Escreva como se nem te conhecesses.


Como se te mantivesses sempre à distância de ti.

Silêncio total sobre cães, gatos, passarinhos,


Lembranças, amigos e sonhos.

Prêmios, mais que o valor.


Títulos, mais que a relevância.
Número dos sapatos, e não onde eles vão.

Anexar uma foto com orelhas bem visíveis.


É a forma delas que conta, e não o que elas ouvem.
E o que é que elas ouvem?
Barulho de máquinas de picar papel.

Reflexão é fundamental para o poeta. Aliás, ironizando a figura de um poeta totalmente


desprovido de talento, Machado de Assis escreveu essas linhas cômicas e perfeitamente
sérias:

"O autor de Goivos e camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia
atrás das grandes frases, - sobretudo das frases sonoras – demorava-se nelas, repetia-as,
ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise parecia-lhe
árido, e ele corria depressa por elas." (Histórias da meia-noite).

Machado é o nosso melhor exemplo de que a reflexão e o pensamento não matam o


talento e a espontaneidade, como costumam pregar os preguiçosos... (E notem que de
brinde ele ainda deixou uma crítica agudíssima sobre o gosto de certos poetas pela
grandiloqüência vazia, as frases sonoras...)

A aula de hoje foi mesmo para refletir, e o exercício proposto também vai bater nessa
tecla...

Mande um poema que tenha gostado muito de fazer e que represente, no seu modo de
ver, as suas "escolhas poéticas"... e junto com ele mande dez linhas falando sobre quais
são essas escolhas poéticas. Se puder comente também um pouco o que você NÃO inclui
na sua receita poética, e o porque dessa exclusão.

Topam a parada?

Um abraço.

Carlito Azevedo 08 / 03 / 2006

Todas as artes são primas.

Poesia e cinema são irmãs.

Pelo menos no jeito onívoro de ser.

Que outra arte, como essas duas, será "capaz de assimilar os materiais mais diversos e
transformá-los em elementos próprios"? (Suzanne K. Langer)

Veja-se o que elas fizeram com a música, por exemplo.

Certa vez, Debussy disse que gostaria de colocar música em um poema de Mallarmé.

O mestre do lance de dados então respondeu: "engraçado... pensei que já havia eu


mesmo colocado música suficiente ali".

Quanto ao cinema, desde os tempos em que era mudo já incorporava uma orquestra ao
pé da tela... imagina depois do Dolby...

Um dos maiores críticos de cinema, Michel Chion, que é aliás fabuloso compositor,
descreve um filme como uma "sinfonia audiovisual".

Que outra arte, como essas duas, soube roubar a música e fazer dela "coisa sua"?

Outra semelhança: tanto quando lemos um poema como quando assistimos a um filme, há
algo de sonho fluindo ante nossos olhos. Os cortes, bruscos ou não, dos versos e das
cenas, imprimem ao fluxo de um filme ou de um poema algo da descontinuidade dos
sonhos.

Por isso, talvez, alguns grandes poemas foram escritos tendo o cinema como fonte de
inspiração.

Há poemas sobre atores e atrizes.

Há poemas sobre filmes específicos.

Há poemas sobre diretores (quase todo poeta, até bem pouco tempo atrás, tinha o seu
poema sobre Charles Chaplin).

Há poemas sobre existirem cinemas (e recomendo muito a leitura de "Indecisão do Méier",


de Carlos Drummond de Andrade, do livro Sentimento do mundo, sobre a existência de
dois cinemas nesse tradicional bairro carioca).

Há poemas sobre uma cena específica de um filme... e aqui, não há como não citar um
dos mais belos que conheço, da poeta, compositora e performer norte-americana Laurie
Anderson, sobre uma cena de um filme de Fassbinder:

LÍRIO BRANCO

Em que filme do Fassbinder é que é? Um homem sem um braço


Entra numa florista e diz:
Qual é a flor que exprime
A passagem dos dias
Os dias que se sucedem sem fim
Puxando-nos
Para o futuro?
A infinita
Passagem dos dias
Puxando-nos infinitamente
Para o futuro?
E a florista diz:
O lírio branco.

(Tradução de João Lisboa)

Há poemas sobre os efeitos do cinema no comportamento, como esse, quase um


manifesto, do também norte-americano Frank O'Hara:

AVE MARIA

Mães da América
deixem seus filhos ir ao cinema!
mandem seus filhos sair de casa para não ver o que vocês aprontam
está certo que ar fresco faz bem para o corpo
mas e a alma
que cresce na escuridão, nutrida por imagens prateadas
e quando vocês envelhecerem como tem de acontecer
eles não vão odiá-las
nem criticá-las não vão nem saber
porque vão estar num país glamouroso
que viram pela primeira vez numa tarde de sábado ou [matando aula
talvez até agradeçam a vocês
sua primeira experiência sexual
que só custou vinte e cinco cêntimos
e não perturbou a santa paz do lar
vão aprender de onde vêm as barras de chocolate
e sacos gratuitos de pipoca
tão gratuitos como sair do cinema antes do fim do filme
com um desconhecido simpático cujo apartamento é o Céu do Edifício Terra
perto da ponte de Williamsburg
ah mães vocês vão fazer os diabinhos
tão felizes porque também se ninguém os pegar no cinema
eles nem vão saber o que perderam
e se alguém os pegar vai ser a glória
e de um modo ou de outro eles vão se divertir
em vez de ficar bestando no quintal
ou no quarto
odiando vocês
prematuramente antes mesmo de vocês fazerem alguma maldade horrível
que não a de negar-lhes os prazeres mais escuros
o que é imperdoável
depois não digam que não avisei se não seguirem meu conselho
e a família se desestruturar
e seus filhos ficarem velhos e cegos diante da TV
vendo
os filmes que vocês não os deixaram ver quando eram jovens.

(Tradução de Paulo Henriques Britto)

O fato é que, como se lê no prefácio a uma bela antologia de contos sobre o cinema (Le
cinéma des écrivains, Cahiers du cinema, 1995), "ir ao cinema, ver filmes, é algo que só se
compreende acompanhado do prazer de prolongar essa experiência através da palavra,
da conversa, até da escrita".

Pois é. E nem precisa ser escrita crítica não. Chegamos em casa, depois de um filme, e
anotamos algo em um caderno, talvez um diário íntimo, um blog, qualquer impressão
marcante do filme. Às vezes é um pouco mais do que isso... e vem um poema. Este é o
ponto que nos interessa.

Assim como é bom, após um bom filme, conversar com pessoas sensíveis e inteligentes
sobre o filme que se acabou de ver, trocar impressões, notar como outros nos chamam a
atenção para detalhes que não percebemos, e como podemos iluminar para outros
passagens que lhes ficaram um tanto obscuras, é bom ir carregando por horas, dias,
semanas, meses, anos, uma sensação forte de um filme, até que um dia... um poema...

Esta sensação de "depois do filme", quando tudo o que vemos e fazemos se torna um
pouco "cena de cinema", foi tema de um poema de Heitor Ferraz, um poema que lemos
como se fosse um pouco escrito por nós.

DEPOIS DO FILME
P/ Augusto Massi
Quando, depois do filme,
volto de carro pela avenida
(ainda úmida de chuva,
ainda úmida de imagens)

outra câmera se abre


em descontínua linha de luz
e entre um farol e outro
- paro, tudo é vermelho -

novo filme passa a rodar


dentro deste túnel de cenas
que a janela enquadra
e ao mesmo tempo barra:

pequena mão inofensiva


que num gesto de quase vôo
arrebenta o vidro nos olhos
e rebobina falsos recortes.

********************************************

Deu pra perceber qual o exercício de hoje, não é?

Poemas sobre cinema.

Não é preciso ser cinéfilo. Basta ter gostado certa vez de um filme e ter deixado que,
dentro de você, em torno dele, crescessem, como ramificações, um pouco suas e um
pouco dele, sensações, vagas lembranças, reflexões... Ou nem isso, basta apenas que
você reconheça a existência dessa sala escura onde, por vezes, preferimos mergulhar,
enfiar nossa cabeça, porque a vida simbolizada ficou pesada demais para seguir sem
aquilo...

Darei agora dois exemplos muito distintos. O primeiro é de nosso maior poeta-cinéfilo:
Sebastião Uchoa Leite, que não só escreveu vários poemas sobre filmes (como Cat
people, A woman of Paris, Black Widow, Dark Mirror etc.), como também preciosíssimos
ensaios sobre a sétima arte.

É tipicamente de cinéfilo esse delicioso poema:

OS ASSASSINOS E AS VÍTIMAS

eu bogart
decifro o falcão maltês
mas sou tragado por você mary astor
eu robert walker troco o meu crime
pelo de farley granger
ele esquece o pacto mas eu não
nós montand e signoret
matamos de susto vera clouzot
assassina perseguida pelo crime
eu delon mato maurice ronet
aposso-me da identidade
mas o cadáver dele me segue
eu clift nego
que afoguei shelley winters
mas a imagem persiste
eu o fotógrafo persigo
eu o fotógrafo persigo
o crime de vanessa redgrave
ou sou perseguido por ele?

************

O outro exemplo vem do poeta Francisco Alvim, que eu não sei se é cinéfilo ou não, mas
isso não importa. Importa que aqui o "cinema" não é um diretor, uma atriz, um filme etc. É
mesmo a concreta sala escura, buraco negro dentro da cidade, onde por vezes, como
dissemos há pouco, para ver-não ver, para sentir-não sentir o peso do tempo, entramos...

SOZINHA

— Vá ao cinema.
— Com quem?

************

Bem, Carlos Drummond de Andrade mereceria um capítulo especial neste tema, tantos e
tão excelentes são seus poemas sobre cinema. Desde o arqui-conhecido "Canto ao
homem do povo Charles Chaplin" aos mais simples, como o já citado "Indecisão no Méier".

Seria interessante organizar uma antologia com os poemas de Drummond sobre cinema.
Minha preferência particular vai para os poemas que dedicou às estrelas do cinema que
inspiraram platônicos desejos no poeta. Como:

JOAN CRAWFORD: IN MEMORIAN

No firmamento apagado
não luciluzem mais estrelas de cinema.
Greta Garbo
passeia incógnita a solidão de sua solitude.
Marlene Dietrich
quebrou a perna mítica de valquíria.
Joan Crawford,
produtora de refrigerantes, o coração a matou.
O cinema é uma fábula de antigamente
(ontem passou a ser antigamente)
contada por arqueólogos de sonho, em estilo didático,
a jovens ouvintes que pensam em outra coisa.
O nome perdura. Também é outra coisa.
Tudo é outra coisa depois que envelhecemos.
E não há mais deusas e deuses. Há figurinhas
Móveis, falantes, coloridas, projetadas
no interior da casa. Não saem nunca mais,
enquanto se esvazia o céu da Grécia
dentro de nós – azul já negro, ou neutra-cor.
Joan, não beberei por ti, à guisa de luto,
nenhum líquido fácil e moderno,
sorvo tua lembrança
a lentos goles.

************

É o caso de se pensar: por que não há mais poemas sobre as estrelas de cinema? Elas
não são mais Grandes Mitos como Greta Garbo, Marlene Dietrich etc? Mas será que não
merecem poemas pela alegria que nos dão quando iluminam a tela e nossos olhos musas
e musos como Scarlett Johansson, Zhang Ziyi, Cameron Diaz, Al Pacino, Gabriel Bernal
Granados etc. etc.?

Vocês podem fazer o poema sobre cinema que quiserem, é claro, mas eu adoraria que a
timidez e a repressão não os impedissem, como não impediram grandes poetas como
Drummond e Bandeira, de fazer poema de fã! Desde que fã sensível e inteligente, como
eles foram...

O importante é não deixar afrouxar esse laço que sempre uniu os poetas ao cinema...

Aí estão também Wenders, Godard, Truffaut, Fellini, Wong Kar Way, Ana Carolina...

Almodóvar dá poesia.

Mesmo aquelas paqueras mais ousadas dentro da sala escura podem dar poemas... como
esse, ótimo, de Oswald de Andrade, com um final maravilhoso...

LINHA NO ESCURO

É fita de risada
A criançada hurla como o vento
Mas os cotovelos se encontram
Se acotovelam e se apalpam

Mãos descem na calada da lua quadrângula


Enquanto a orquestra os cavalos o letreiro galopam

Entre saias uma lixa humana se arredonda


Mas quando amanhece
A mulher qualquer
Desaparece

* **********
Acho que aquela lua quadrângula é a tela de cinema, não é? Isso explicaria o verso "Mas
quando amanhece", que quer dizer, talvez, quando a luz acende...
Vocês também têm um poema escrito "na calada da lua quadrângula"?

PROPOSTAS DE EXERCÍCIOS

Bem. É simples. Tentem fazer poemas que envolvam direta ou indiretamente o cinema.

Uma sugestão: que tal "contar um filme" em poema? Algo como aquela narração que
fazemos, às vezes demorada, às vezes acelerada, a alguém que não viu certo filme e que
nos pede que o contemos... Aproveitem para tensionar os registros (épico, melodramático,
cômico, trágico etc)...

Uma técnica de um dos maiores poetas contemporâneos, o norte-americano John


Ashbery: ele costuma ir ao cinema (ver filmes novos mas também a produção dos anos 20
e 30) e escolher uma frase qualquer dita dentro do filme. Uma vez escolhida, esta frase
será o primeiro verso do seu poema.

Repare que o que é tremendamente clichê em um filme pode ser interessante como
recurso poético. Em um ensaio sobre montagem cinematográfica, Eisenstein cita um
"clichê" cinematográfico... mas talvez nem tenha percebido que aquilo é poeticamente
instigante... trata-se da seguinte seqüência:

1. A mão levanta a faca.


2. Os olhos da vítima abrem-se repentinamente.
3. Mãos agarram uma mesa.
4. A faca desce.
5. Olhos piscam involuntariamente.
6. O sangue espirra.
7. Uma boca solta um grito.
8. Algo pinga no sapato.
Trata-se de uma cena bem clichê... mas não dá pra fazer uns poemas bem legais com
essa técnica?

Bem, espero que tenham curtido mais essa.

Até a próxima.

Carlito Azedo 30 / 03 / 2006

A poesia moderna começa quando as ruas deixam de ser apenas a pacata faixa de terreno
destinada à passagem de quem vai visitar um parente, dar um passeio, e passam a ser o
caótico torvelinho da multidão e do trânsito, um espaço onde a paixão e a morte podem
nos surpreender a qualquer momento sem aviso prévio.

Paixão e morte, duas coisas tão caras aos poemas de todos os tempos, e que requeriam
todo um processo, toda uma linha de conduta, agora podiam surgir de súbito, do nada.

Dois poemas conhecidíssimos de Charles Baudelaire exemplificam perfeitamente esse


processo. E não é à toa que nove entre dez críticos o consideram o primeiro poeta
moderno.

O primeiro poema é "A uma passante". Aqui, a passagem rápida de uma mulher no meio
da multidão, numa rua tumultuosa e barulhenta, toca o coração do poeta... ela surge,
passa e desaparece...

Com isso, como escreveu o crítico Walter Benjamin, Baudelaire mostrava que a
experiência urbana transformava o romântico tema do "amor à primeira vista", no
moderníssimo tema do "amor à última vista". O fugaz, o efêmero, o provisório, o precário
começavam a invadir o terreno do que antes era sagrado, eterno, inamovível.

O outro poema se chama "Perda de auréola", o melhor é reproduzi-lo:

PERDA DE AURÉOLA

"O quê!? Você aqui, meu caro? Você, num lugar desses! Você, o bebedor de
quintessências!, O comedor de ambrosia! Francamente, é de surpreender."

"Meu caro, bem conheces o pavor que tenho dos cavalos e dos coches. Agora há pouco,
quando atravessava apressado o bulevar, saltando sobre a lama, através desse caos
movente em que a morte chega a galope, por todos os lados ao mesmo tempo, minha
auréola, num movimento brusco, escorregou de minha cabeça para o lodo do macadame.
Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do
que quebrar os ossos. E depois pensei cá comigo, há males que vêm para bem. Agora
posso passear incógnito, praticar ações baixas, entregar-me à devassidão como os
simples mortais. E aqui estou eu, igualzinho a você, como pode ver!"

"Deveria ao menos dar parte do desaparecimento dessa auréola, comunicar o ocorrido ao


comissário."

"Ah, não. Me sinto bem. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me aborrece. Depois,
penso com alegria que algum poeta medíocre vai achá-la e com ela, impudentemente, se
cobrir. Fazer alguém feliz, que prazer! E principalmente um felizardo que me faça rir!
Pense em X ou Z! Hein? Como vai ser engraçado!"

(Tradução Leda Tenório da Mota)

O artista, ao atravessar a rua que leva da fase pré-moderna à fase moderna, se despoja
dos ornamentos, das insígnias, dos sinais de distinção; agora, ei-lo: "igualzinho a você".
Ora, isso se passou no século XIX. Uma crítica norte-americana, Marjorie Perloff, se
perguntava há pouco algo interessantíssimo.

Se a poesia moderna nasceu quando as pessoas passaram a conviver nas ruas, expostas
a tudo o que a experiência das ruas oferece, o que estará acontecendo com a poesia
agora que as pessoas abandonam as ruas, deixam de freqüentá-la, tanto pelo medo da
violência, como pelos confortos que a tecnologia nos trouxe e que nos permitem fazer tudo
sem sair de casa?

Eis uma pergunta a ser respondida com poemas...

Leiamos um poema do poeta mexicano Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura:

PEDESTRE

Seguia entre a multidão


pelo bulevar Sebastó
pensando em suas coisas.
O semáforo o deteve.
Olhou para cima:
Sobre
os prédios cinza, prateado
entre pássaros pardos
voava um peixe.
O semáforo mudou de cor.
Perguntou-se enquanto atravessava a rua
no que é que estava pensando.

O belo desse poema é revelar um pouco a dinâmica da vida nas ruas. Baudelaire mostrou
que o amor e a morte deixavam de ser coisas motivadas por uma seqüência de
acontecimentos e passavam a existir como aparições súbitas. Mas nem todos que andam
pelas ruas se apaixonam ou morrem.

O poema de Paz talvez diga que mais fundamental do que isso, o que mudava na
dinâmica da cidade, era o próprio modo de pensar, agora mais cheio de descontinuidades
impostas pelas próprias descontinuidades da cidade.

Esbarrões, vitrines, semáforos, tudo isso impõe um movimento de andar e parar e perder o
fluxo do pensamento. Pensamos na crise do Oriente Médio até que uma vitrine nos impõe
a imagem de uma blusa e passamos a pensar no tecido, no design, na nossa necessidade
ou desejo de tê-la, e pronto... perdemos o fluxo do pensamento...

_________________

Este poema de Ferreira Gullar que leremos a seguir é quase um clássico. É um pouco o
reverso de "A uma passante". Enquanto Baudelaire vislumbra, no meio da multidão, uma
mulher que passa e pela qual se apaixona pouco antes de vê-la desaparecer, Gullar busca
no meio da multidão a mulher que não passa, que não pode passar, como que dizendo
que aquele era um tipo de amor que não sobreviveria no mundo atual, onde só existiria
enquanto inviabilidade...

PELA RUA

Sem qualquer esperança


detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial


nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.

Enquanto boa parte da poesia brasileira supõe um espectador que, de sua janela, observa
o mundo, a poesia de Sebastião Uchoa Leite é daquelas que desce às ruas e não foge ao
"contato furioso da existência":

PASSEIO

Marcelo Gama – coitado –


caiu de um trem por distração.
Não beberia naquele dia
o tal licor marasquino
e nem leria Cesário Verde (Ó Mestre
do "Sentimento d'um ocidental").
Pois bem – flanêur – ele
(Marcelo Gama)
adoraria o calçadão da Vieira Souto
e o vaivém das ondas e de gente
de gringos cor-de-rosa
a jeunes-filles-en-fleur
com hiperglândulas mamárias.
Chamaram-me para uma volta
e uma água de coco.
Ela vai mais depressa do que eu.
Esqueci as asinhas nos pés.
Eu e Aquiles
não somos mais aqueles.

A ironia corrosiva é uma característica da poesia de Sebastião Uchoa Leite. E neste


poema parece que sua intenção é ironizar os dois poemas de Baudelaire a que nos
referimos...

A morte que nos espreita nas ruas é representada, no começo do poema, pela figura do
poeta Marcelo Gama, que de fato morreu ao cair de um trem... Já o mito da passante é
rebaixado na moça que "vai mais depressa que eu", já que além de não ter mais uma
auréola, o poeta ainda esqueceu as asinhas nos pés...

Um poema de Eudoro Augusto revela a grande ópera das ruas do fim de século XX, uma
ópera surrealista e ecológica.

OFEGANTE

Até aqui a paisagem é limpa


e são claros os motivos da manhã.
O mar anda sujo, preguiçoso.
Mal tem força para brincar com as crianças
que cospem nele às gargalhadas
e nele mijam
infiltrando ainda mais a cor da dúvida
em sua espuma.
Os adultos discutem as absurdas taxas de juros
E o mito da virgindade.
Aos mais velhos desagrada sobretudo
A interferência grosseira das bases partidárias
E dos temas sexuais no café da manhã.
Uma nova ordem democrática atravessa a rua
absolutamente incógnita.
Um bando de focas percorre canhestro a orla marítima
com seus folhetos turísticos e seus bigodes curiosos.
As mais lustrosas compram jornais e chocolates
e as mais opacas atendem telefones alarmantes.
Outras se apressam em direção às limusines.
Até aqui tudo normal e atlântico:
o dia parece de vidro.
Então ele surge e subverte tudo
em questão de segundos.
Um rastro nervoso, uma respiração ofegante.
Mãos pegajosas. A tarde chega descabelada,
Cigarro no canto da boca. Nada a fazer.
O dragão respira fundo. Ele aspira
Aquele ar saturado de signos e sirenes.
Depois revira os olhos para o norte
E os aviões param no céu.
Alguém descobre que não são aviões, são estrelas cadentes.
O dragão torna-se apenas um gemido.

Neste poema de Augusto Massi a rua hesita entre ser fluxo e estática:

PONTO MORTO

A minha primeira mulher


se divorciou do terceiro marido.
A minha segunda mulher
acabou casando com a melhor amiga dela.
A terceira (seria a quarta?)
detesta os filhos do meu primeiro casamento.
Estes, por sua vez, não suportam os filhos
do terceiro casamento da minha primeira mulher.
Confesso que guardo afeto pelas minhas ex-sogras.
Estava sozinho
quando um dos meus filhos acenou para mim no meio do engarrafamento.
A memória demorou para engatar seu nome.
Por segundos, a vida parou em ponto morto.

Bem, o exercício de hoje é simples... e complexo...

Façam um poema que fale de uma rua ou de ruas...

Esse é o aspecto simples...

O aspecto complexo é outro. Não apenas falem de ruas, mas tentem compreender as ruas
em suas complexidades, dinâmicas.

Local privilegiado para as tensões mais diversas, a rua não pode ser apenas um "tema de
poesia", mas exige que o poema seja ele próprio atravessado por essas tensões que a
atravessam:

dinâmica X estática
habitável X inviável
fluxo X contenção
razão X desrazão

Vamos nessa?

Carlito Azevedo 19 / 04 / 2006

Há alguns anos, um intelectual comentava: "ouvimos centenas de canções de amor, e


depois gastamos milhares de dólares nos psicanalistas para descobrir onde foi que
erramos no amor."

Sim, porque não é mole fazer sua "educação sentimental" ouvindo coisas como "eu sei
que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar, a cada despedida eu vou te amar,
desesperadamente eu sei que vou te amar"...

Quando as coisas não dão tão certo assim como queria o cantor é claro que pensamos
que a culpa foi nossa.

Nesse ponto os poemas de amor têm pelo menos essa vantagem. Devem mandar muito
menos gente para o divã...

Já entenderam, não é? O tema de hoje é: poemas de amor.

Tema perigosíssimo, eu concordo. Afinal, se já se disse que não há originalidade que


resista a uma boa pesquisa de fontes (obrigado por essa, Bráulio Tavares), se o tema é
amor a coisa ainda é mais grave... pois depois de Ronsard, Petrarca, os provençais,
Camões, Shakespeare... é difícil não ficar com a sensação de que tudo já foi dito...

E isso para falar só nos mais famosos...


Mas basta ler um não tão famoso poeta como Mark Alexander Boyd... este sujeito,
enquanto o Brasil ainda estava sendo descoberto, já escrevia coisas assim, lá na
Inglaterra:

De areia a areia, selva a selva eu ando,


Presa da minha frágil fantasia,
Como o vime que o vento vai dobrando
Ou a folha a vogar na ventania.

Um cego pela mão me está levando,


Que uma criança fútil tem por guia
E uma mulher esguia atrai, nadando,
Nada do mar, mais ágil que uma enguia.

Triste de quem, a vida toda a arar,


Só ara a areia e semeia no ar.

Porém mais triste é aquele que se lança,


Movido pelo ímã do mal amar.
No fogo, atrás de uma mulher de mar,
Guiado por um cego e uma criança.

(Tradução: Augusto de Campos)

E sem falar no Cântico dos cânticos, em Guido Cavalcanti, nos poemas japoneses de
muito antes de Cristo...

Sim... levemos em conta tudo isso... mas levemos em conta também a quadrinha de
Maiakovski que diz:

Velha é a melodia das baladas,


Mas se as palavras combalidas
Falam daquilo que as abala,
De novo soam belas as baladas.

Portanto, nada impede que mais uma vez, mais um poeta, escreva um poema de amor.
E que ao tema dediquemos nossa conversa de hoje.

Um jovem poeta, argentino e brasileiro, Aníbal Cristobo, nascido na década de 70,


felizmente não hesitou em escrever o seu:

TEMA DE AMOR DE KRILL

Em vão esperei
na superfície do líquen, com
câimbras na mão, olhando
aquelas fotos do reconhecimento

e pensando: em como
chegarias. Me apaixonei

pelo assassino? Pelo rumor


do mar e das cigarras? O erro
poderia ser um dígito, um led
sem controle de si
mesmo – me apaixonei

pelo roçar das algas, achei


que fosse amor, que fosse o
fundo do coração.
Aqui, parafraseando o penúltimo verso do poema de Mark Alexander Boyd, o "erro poderia
ser" o fato de Krill estar no mar, atrás de uma mulher de fogo? Há mais semelhanças entre
o fundo do mar e o fundo do coração do que podemos supor?

Bem, já que apontei a pequena analogia entre o poema de Aníbal e o de Boyd (nascido em
1563!), posso aproveitar aquele trecho do "Tema de amor de Krill" ("olhando aquelas fotos
do reconhecimento", "me apaixonei pelo assassino"), que interpreto como a súbita paixão
nascida em alguém que contempla fotos numa delegacia para reconhecer um assassino,
(o que não deixa de ser uma belíssima alegoria da paixão), pois bem aproveito esse
trechinho para encaixar aqui um poema em prosa de Max Jacob, o poeta francês pré-
surrealista que é um de meus preferidos:

O QUE A FLAUTA NOS TRAZ

O viajante ferido morreu na casa de campo e foi enterrado debaixo das árvores da estrada.
Um dia, de seu túmulo, saiu uma ratazana; um cavalo que passava empinou. Oram a
ratazana largou, na corrida, uma fotografia muito roída. O viajante pedira que o
enterrassem com aquela imagem de uma mulher com belo decote. O cavaleiro que a viu,
encantado pela imagem, apaixonou-se pela fotografada.

Não quero aqui interpretar esse poema, mas note-se que depois de Baudelaire e suas
Flores do mal, o contexto em que se fala de amor pode muito bem compreender enterros,
túmulos e uma ratazana. Bem, na verdade há muita coisa a se dizer sobre esse poema.
Sugiro aqui, brevemente, que ele é o perfeito poema sobre poemas de amor. Quando
pensamos que o tema já está sepultado, uma ratazana o retira do túmulo e o primeiro que
passa torna a lhe dar vida...

Vamos em frente.

É claro que poemas de amor, pelo menos para nós, pós-freudianos, habitantes do século
XXI, têm que levar em conta que não sabemos muito bem o que é o amor, nem quais são
os limites do amor. Ou melhor, que tudo o que sabemos sobre amor tem validade muito
reduzida quando aplicado ao outro, e no amor "o outro" é pelo menos 50%, não é?

Um belíssimo poema sobre poemas de amor conseguiu incrivelmente dar voz ao "outro"
dos poemas de amor, e o que se ouve ali não é muito lisonjeiro...

O poema é de autoria do norte-americano Robert Bringhurst, e a tradução que cito foi


publicada na revista de poesia Azougue.

ESSES POEMAS, ELA DISSE

Esses poemas, esses poemas,


esses poemas, ela disse, são poemas
sem nenhum amor. São poemas de um homem
que poderia deixar mulher e filhos apenas
porque fazem barulho durante seu estudo. São poemas
de um homem que poderia matar sua mãe para reclamar
herança. São poemas de um homem
como Platão, ela disse, dizendo algo que não
entendo mas mesmo assim
me ofende. São poemas de um homem
que preferiria dormir consigo mesmo no lugar de uma mulher,
ela disse. São poemas de um homem
com olhos como estilete, mãos como as mãos de um
trombadinha, urdidos de água e lógica
e raiva, com nenhuma sombra de amor neles. Esses
poemas são tão sem coração como o canto dos pássaros,
tão ausentes de significados como as folhas de carvalho,
que, se amam, amam apenas o amplo céu azul e o mar e a idéia
de folhas de carvalho. Amor próprio é um fim, ela disse,
não um começo. Amor significa amor
pela coisa cantada, não pela canção ou pelo cantar.
Esses poemas, ela disse...
Você é linda,
ele disse.
Isto não é amor, ela respondeu, justa,

Uma coisa se pode dizer dos poemas de amor: não houve escola ou movimento literário
que não produzisse pelos menos meia dúzia de bons poemas de amor. Ou de desamor,
como vemos pelo nem sempre muito grande otimismo dos poemas de "amor". Como disse
uma vez Cacaso, "o amor que não dá certo/ sempre está por perto".

E isto vem de longe, se pegarmos o próprio Ronsard (poeta francês nascido em 1524 e
que pelo seu livro Os amores se tornou o protótipo do autor de poemas de amor –
Drummond, naquele poema sobre "Fulana", chega a citá-lo na estrofe que diz: "Sou eu, o
poeta precário/ que fez de Fulana um mito,/ nutrindo-me de Petrarca,/ Ronsard, Camões e
Capim"), pois bem, se pegarmos o próprio Ronsard, veremos que seu poema mais célebre
e celebrado lamenta a esquiva da amada, mais do que celebra as venturas do amor. Ei-lo
em tradução de José Lino Grünewald:

Quando fores bem velha, à noite junto à vela,


Sentada ao pé do fogo, enovelando e fiando,
Dirá, cantando os versos meus e te enlevando,
"Ronsard me celebrava ao tempo em que era bela".
Então na haverá, ouvindo o recital,
Serva, ao fim do trabalho e semi-sonolenta,
Que com o som do meu nome não desperte atenta
A saudar o teu nome em louvor imortal.
Estarei sob a terra e, fantasma sem osso,
Pelas sombras dos mirtos terei meu repouso;
Tu serás à lareira uma anciã encolhida
Chorando o meu amor e o teu fero desdém.
Se me crês, não espere o amanhã também:
Vive, colhe desde hoje as rosas desta vida.

Já deixando bem claro que as mudanças do mundo e do tempo é que modificam os


amores, os amados e o amor, deixando claro que este não é imutável, e muda como tudo,
o poeta português Manuel António Pina escreveu esse "clássico":

ESPLANADA

Naquele tempo falavas muito de perfeição,


da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim


e eu já não fico a ouvir-te amo antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar, como dantes.

Por quê será que o amor que não dá certo, não deu certo, nunca dará certo, encanta tanto
os poetas? Há muitas respostas. Tento aqui uma suposição. Na vida real, ou seja, na vida
não simbolizada, gostaríamos que tudo transcorresse na maior calma, na maior
tranqüilidade... quem gostaria de um amor com tantos percalços e final tão trágico quanto
o de Romeu & Julieta?

Mas na arte, bom é Romeu & Julieta. É conflito, aventura, sobressaltos, reviravoltas...

Porque ali, nas palavras que o poeta utiliza, podemos testar nossos limites e os do amor.
Diz o velho Terêncio: "Sou humano, nada do que é humano me é estranho". O mais
estranho no amor ainda é humano, e por isso não nos é estranho...

Por estar experimentando com os limites é que talvez tenhamos visto tantos túmulos, tanto
fundo do coração, tanto gesto extremo nos poemas de amor. Se as canções de amor nos
mandam para os psicanalista, talvez os poemas de amor nos tirem de lá...

O exercício que vou sugerir é mesmo o que vocês estão pensando: façam poemas de
amor.

Mas não vai ser fácil assim.

Façam uma lista de palavras que vocês acham que não faltam ou não podem faltar em um
poema de amor.

Depois façam outra lista de palavras que vocês acham que não cabem nem podem caber
em nenhum poema de amor.

Depois de feitas as listas, façam um poema de amor com as palavras da segunda lista, é
claro.

Bom trabalho.

POESIA E RISO

Sabemos que, segundo as perspectivas mais otimistas, durante alguns bilhões de anos nosso querido planeta
Terra cumpriu, astro obediente e pertinaz, a sua órbita, sem carregar na carcaça essa estranha forma de vida
chamada "homem".

E também sabemos que, por um motivo ou por outro, mais cedo ou mais tarde, essa mesma Terra será de novo
apenas uma rocha girando na engrenagem de rochas e luz do universo, alheia a qualquer forma de vida.

E teremos sido um brevíssimo segundo diante da incomensurável massa de tempo que houve antes de nós e
haverá depois de nós.

Quer dizer: só rindo mesmo de qualquer pretensão de seriedade, não é?

Concordo com aquele sujeito que escreveu que "a vida é uma grande piada cósmica".

O estranho é que não vivamos rindo o dia inteiro, e que desperdicemos esse nosso "brevíssimo lapso" com
lamentações.

Já dizia o Paul Valéry: "o ser é apenas um defeito na pureza de não-ser". Um defeito que, aliás, não tardará
muito a ser corrigido.

Só rindo.

Aliás, é disso que trata a nossa conversa de hoje.

Daquelas vezes em que, com felicidade, a poesia riu de nós, riu de si, riu de tudo, e nos fez rir de si, de nós e de
tudo. Seja o riso irônico, a gargalhada grosseirona e franca, o riso melancólico etc, todos os matizes desse ato
que nos distingue de todos os outros seres do planeta. Afinal, como disse primeiro que todos Aristóteles, o
homem é o único animal que ri.

E a poesia sempre riu, desde o começo, e principalmente da estupidez e das pretensões do homem. Este
animal que para se impor não hesitou muitas vezes (e continua não hesitando) em massacrar, torturar e matar...
Como denunciam, com um riso corrosivo, esses poemas de Nicanor Parra e Nicolas Behr:

Aparecer apareceu.
Só que numa lista de desaparecidos.

(Nicanor Parra)

Quem teve a mão decepada


Levanta o dedo.

(Nicolas Behr)

____________

Se fosse o caso de encontrar semelhanças entre a poesia e o riso, diria, baseando-me um pouco em Bergson,
que os dois trabalham no sentido da desautomatização, que os dois são um drible na rigidez.
Se há uma coisa contra a qual os poetas e artistas em geral devem lutar é a automatização da sensibilidade, da
sua produção artística.

Quando a coisa chega nesse nível, como diz João Cabral (um poeta que várias vezes reclamou porque a crítica
literária não dava a devida atenção ao aspecto humorístico de sua poesia), o melhor é passar a escrever (ou
pintar) com a mão esquerda, como se lê nesse poema, que trata do bem-humoradíssimo Miró:

Miró sentia a mão direita


demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesse


o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-se


a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.

A esquerda (se não se é canhoto)


é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.

_______________
O riso e a poesia acontecem justamente quando um "acidente" provoca uma quebra na automatização, na visão
automatizada da vida, na prática automatizada e obediente da vida.
Eis um ótimo exemplo de casamento feliz entre poesia e riso, de autoria de José Paulo Paes:

FALSO DIÁLOGO ENTRE PESSOA E CAEIRO

- A chuva me deixa triste.


- A mim me deixa molhado.

Uma visão absurda do automatismo a que somos submetidos nesse estranho consenso chamado "vida real" ou
"realidade" é brilhantemente expressa por esse texto do argentino Júlio Cortázar. Como sabemos, o "absurdo"
em Cortázar tem com principal característica prescindir de mirabolantes efeitos pirotécnicos, magias e
sobrenaturais, ocorrendo o mais das vezes como o "outro lado" do real, nas coisas mais comuns, como chaves,
jarros, bondes, camisas, fósforos, sapatos, fotos, focadas ou desfocadas, e esse é um ótimo exemplo:

A FOTO SAIU FORA DE FOCO

Um cronópio vai abrir a porta da rua e ao enfiar a mão no bolso para pegar a chave o que tira é uma caixa de
fósforos; então este cronópio fica muito aflito e começa a pensar que se em vez da chave ele encontra os
fósforos, seria terrível que o mundo se houvesse deslocado de repente, e então se os fósforos estão no lugar da
chave, pode acontecer que ele ache a carteira de dinheiro cheia de fósforos, e o açucareiro cheio de dinheiro, e
o piano cheio de açúcar, e o catálogo do telefone cheio de música, e o armário cheio de assinantes, e a cama
cheia de roupas, e as jarras cheias de lençóis, e os bondes cheios de rosas, e os campos cheios de bondes.
Assim este cronópio fica horrivelmente aflito e corre para se olhar no espelho, mas como o espelho está um
pouco de lado, o que ele enxerga é o portaguarda-chuvas do vestíbulo, e suas desconfianças se confirmam e
ele desata a soluçar, cai de joelhos e junta suas mãozinhas nem sabe para quê. Os famas vizinhos acodem
para consolá-lo, e também as esperanças, mas passa-se muito tempo antes que o cronópio saia de seu
desespero e aceite uma xícara de chá, que olha e examina muito antes de beber, não vá acontecer em lugar de
uma xícara de chá seja um formigueiro ou um livro de Samuel Smiles.

Os "cronópios" de Júlio Cortázar serão talvez descendentes de "Pluma", o inacreditável personagem do francês
Henri Michaux (que, como o argentino Cortázar, nasceu na Bélgica), cujo humor quase alucinógeno permanece
inédito no Brasil por algum mistério que me escapa. Leiam esse fragmento (o livro é todo composto por
fragmentos), e, se puderem, me expliquem porque é que o livro Plume, que narra as aventuras desse que é um
dos mais geniais personagens da literatura do século XX ainda não foi traduzido e publicado por aqui:

UM HOMEM TRANQÜILO

Ao estender as mãos fora do leito, Pluma ficou surpreso de não encontrar a parede. "Bem, pensou ele, vai ver
que as formigas a comeram..." e tornou a dormir.
Pouco depois, sua mulher agarrou-o e sacudiu: "Veja, disse a ele, preguiçoso! Enquanto você se ocupava
dormindo nos roubaram a casa." E de fato um céu intacto se estendia por todos os lados. "Ah, não há mais nada
a fazer", pensou.
Pouco depois, ouviu-se um ruído. Era um trem que vinha na direção do casal a toda velocidade. "Com a pressa
que tem, pensou, seguramente chegará antes de nós", e tornou a dormir.
Depois o frio o despertou. Estava todo coberto de sangue. Alguns pedaços de sua mulher jaziam a seu lado.
"Com o sangue, pensou, sempre surgem um monte de problemas: se o trem não tivesse passado eu estaria
bem contente. Mas já que já passou mesmo...", e tornou a dormir.
- Vejamos, disse o juiz, como o senhor explica que sua mulher tenha se acidentado a ponto de que a tenham
encontrado partida em oito pedaços, sem que o senhor, que estava a seu lado, fizesse o menor gesto para
impedi-lo, sem que sequer se tenha dado conta. Eis o mistério. Ao reside o x da questão.
- Em relação a esse assunto não poderei ajudá-lo, pensou Pluma, e tornou a dormir.
- A execução será realizada amanhã. O acusado quer acrescentar alguma coisa?
- Desculpe-me, disse ele, eu não acompanhei o julgamento.
_______________________________

Aqui no Brasil inventamos um gênero cujas ações andam muito em baixa na bolsa de valores literários: o
poema-piada. Todos o condenam como se não fosse uma coisa lá muito séria. Alguns críticos parecem quase
"desculpar" Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, ou seja,
nossos maiores poetas, por terem praticado poemas-piada durante toda a vida...

É claro que o poema-piada é apenas um capítulo na vasta matéria sobre poesia e riso, e é claro que da vasta
gama de risos (o riso corrosivo, o riso melancólico, o riso celebratório, o riso-denúncia etc.), o poema-piada
utilizou apenas uma pequena parte...

Mas talvez seja justamente porque suas "ações" na "bolsa de valores literários" andam tão em baixa (qualquer
crítico se sente um Papa da solenidade e da profundidade quando condena, em um livro qualquer, um poema
mais engraçadinho), que aí mesmo resida seu interesse... É longe das unanimidades, longe da multidão de
diluidores, longe dos prêmios literários, longe das comendas, que a poesia mais se renova...

Enquanto os formatos mais premiados, diluídos, repetidos, cultuados acabam se automatizando e adquirindo a
rigidez que os torna risíveis...

O já citado José Paulo Paes foi um dos raros a não fugir do formato "modernista" do poema-piada nem se
deixar limitar por ele, aí vão 3 de seus "clássicos":

CRONOLOGIA

A.C.
D.C.
W.C.
__

GRAFITO

neste lugar solitário


o homem toda manhã
tem o porte estatuário
de um pensador de rodin

neste lugar solitário


extravasa sem sursis
como num confessionário
o mais íntimo de si

neste lugar solitário


arúspice desentranha
o aflito vocabulário
de suas próprias entranhas

neste lugar solitário


faz a conta mais doída:
em lançamentos diários
a soma da sua vida
__

LAR

espaço que separa


o volkswagen
da televisão
______________________

O poeta carioca José Lino Grünewald conseguiu um ótimo casamento entre poema-piada e poesia concreta:
SERVIÇO PÚBLICO

bate ponto
bate papo
bate ponto

_________

Para os que alimentam algum preconceito contra o humor na poesia, e que em geral necessitam de alguma
"autoridade" para referendar ou "autorizar" seus gostos, cito aqui poemas de dois poetas perfeitamente sérios,
verdadeiras "autoridades poéticas". um deles inclusive vencedor de Prêmio Nobel (o que deve comover quase
às lágrimas – de inveja – nossos "sérios de plantão"): Octavio Paz, poeta que felizmente bebeu desde cedo nas
fontes do humor negro do surrealismo. Eis dois poemas de Paz:

EFEITOS DO BATISMO

O jovem Hassan
para casar-se com uma cristã,
foi batizado.
O padre,
como a um viking,
chamou-o Erik.
Agora
tem dois nomes
e uma só mulher.

O OUTRO

Inventou-se uma cara.


Por trás dela
Viveu, morreu e ressuscitou
muitas vezes.
Sua cara
hoje tem as rugas dessa cara.
Suas rugas não têm cara.
___________________

O outro poeta é o inglês W. H. Auden, autor desse delicioso "poema breve":

Quem poderá imaginar


Calvino, Pascal ou Nietzsche
como um róseo bebê rechonchudo?

Também aqui o poema/riso nasce do desequilíbrio entre nossa visão já fossilizada desses "grandes homens"
com suas fisionomias graves e solenes, e a face rosada do bebê que desautomatiza totalmente nossa memória.
Releia agora o poema "O outro", de Octavio Paz, e veja se não há uma ligação muito sutil entre esses dois
poemas...
___________

E já que falamos no surrealismo, um ótimo exemplo do "humour noir" dos surrealistas pode ser esse poema do
francês Robert Desnos, que retira do velho e vasto sortilégio das pragas uma inspiração para a poesia:

A POMBA DA ARCA

Maldito
seja o pai da esposa
do ferreiro que forjou o ferro do machado
com o qual o lenhador abateu o carvalho
no qual foi esculpido o leito
em que foi engendrado o bisavô
do homem que conduzia o ônibus
em que tua mãe
conheceu teu pai!

____________

Na poesia brasileira contemporânea, se há um nome absolutamente incontornável quando o tema é poesia e


humor, este nome é o de Zuca Sardan. Trata-se de nosso poeta mais original. Desconfio que o fato de seu
nome ainda permanecer tão desconhecido do público em geral, quando ao contrário realiza uma obra
absolutamente "acessível", tem a ver com a radicalidade de seu questionamento da "seriedade" da poesia.
Ninguém como Zuca empreende uma guerra tão sem tréguas contra a solenidade, contra o poeta muito cheio
de si, contra o poema muito cheio de si. Seu poema-riso às vezes se quer sutil, às vezes bem grosseirão, mas
não é nunca o que esperamos.

Há um poema de Zuca que tematiza justamente o poder do riso de demolir as hierarquias:

VEA VICTIS

Malgrado a cabeleira
De cachos empoados,
Luiz XV revelou-se
O maior republicano da França.

Num tribunal reacionário


Retrógrado e contra-revolucionário
O teriam certamente condenado
Pra deixar de ser burro.

Mas compareceu, de fato,


Àquele tribunal re-volucionário.

Então, pra se safar


Só havia mesmo
Dizer que sua pessoa... era sagrada.

Nem por isso o teriam menos


Guilhotinado.
Mas, em todo caso,
Morreria com certa dignidade.

A não ser que...


Aqueles juízes grosseirões
Começassem a rir...

"Só para ficar nu/ preciso de dez alfaiates", diz El Rey num poema de Zuca, e é bem contra essa retórica, esse
gosto pelos floreios da eloqüência, que se dirigem as setas de seu riso.
___________

Não consigo não ligar a figura de Zuca Sardan com a de dois outros poetas, com os quais encerro a conversa
de hoje. São eles o já citado Nicanor Parra, chileno, e a portuguesa Adília Lopes. No poema de Parra, o riso
desintegra nossas pretensões de progresso e evolução, nosso orgulho por nossos avanços técnicos. Chama-se:

PROJETO DE TREM INSTANTÂNEO

A locomotiva do trem instantâneo


fica no lugar de destino (Puerto Montt)
e o último carro no ponto de partida (Santiago)
a vantagem apresentada por este tipo de trem
consiste em que o viajante chega
instantaneamente em Puerto Montt no
mesmo momento em que aborda o último carro
em Santiago

a única coisa que precisa fazer a seguir


é dirigir-se com suas maletas
pelo interior do trem
até chegar ao primeiro carro

uma vez realizada esta operação


o viajante pode abandonar
o trem instantâneo
que terá permanecido imóvel
durante todo o trajeto

(Nicanor Parra)

*
O poema de Adília Lopes é revelador de uma das características dessa poeta. Trata-se de ver a coisa mais
comum (os mesmos "objetos" comuns de Cortázar) com um olhar tão livre que a coisa comum (mas por um
motivo bem diverso do absurdo de Cortázar) parece vir de Marte ou Vênus, revelada em toda a sua estranheza:

A BIFURCAÇÃO SUCESSIVA

Divido a minha vida


em duas partes
uma em que tinha orelhas
e não tinha brincos
uma em que já não tinha orelhas
e toda a gente me dava brincos
para me consolar de duas coisas
de não ter orelhas
e de não ter tido brincos
quando tinha orelhas
de todos nós assim era só eu
porque orelhas tinha duas
______

Espero que tenham curtido essa seleção do humor. Se tiverem conseguido pelo menos um risinho em algum
desses poemas já justificaram tudo.

Que tal quebrarem todas as barreiras que impedem o riso de se expandir por regiões ditas "proibidas" para ele,
como a Arte, a Poesia, o Ritual, o Solene, e deixar a poesia que escrevem rir um pouco de vocês, com vocês?

Até a próxima.

Carlito Azevedo 24 / 05 / 2006

Olá pessoal,

Como hoje é a nossa última aula (aliás, muito obrigado pela paciência!), gostaria de
começar essa conversa falando um pouco da situação da poesia no mundo, tal como a
encontrará o poeta novo, aquele que chegou à conclusão de que é, definitivamente, poeta,
e que deve arcar com todas as conseqüências desse gesto meio tresloucado de resolver
pensar por si, de se re-inventar, de pensar contra o consenso, contra as opiniões que só
são consensuais porque são as que todos adotam... as opiniões de todo mundo..., contra,
enfim, a sociedade do espetáculo, do entretenimento e da diversão (que nada tem de
diverso ou divergente, pelo contrário, funciona pelo eterno retorno do mesmo)...
Começo então citando algumas palavras do filósofo alemão Karl Jaspers, tendo tomado o
cuidado, contudo, de substituir a palavra "filosofia", empregada por ele, pela palavra
"poesia", que é o que nos interessa aqui...

Como sou dos que consideram a filosofia e a poesia "irmãs em universo" (o do


pensamento crítico), creio que a coisa continuará a fazer sentido mesmo depois de minha
interferência...
A citação, um pouco longo, se refere à oposição que as pessoas em geral fazem ao
exercício desse pensamento crítico que está entranhado na poesia e na filosofia:

"Mas como se coloca o mundo em relação com a poesia?

Há cursos de poesia nas universidades. Atualmente, representam uma posição


embaraçosa. Claro que por força da tradição, a poesia é polidamente respeitada, mas, no
fundo, é objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a poesia não tem nada a dizer
e carece de qualquer utilidade prática.

A oposição se traduz em fórmulas como: a poesia é muito complexa: não a compreendo;


está além do meu alcance; não tenho vocação para ela, e, portanto, não me diz respeito.
Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; o
negócio é abster-se de pensar no plano geral para mergulhar num capítulo qualquer de
atividade prática; quanto ao resto, bastará ter "opiniões" e contentar-se com elas.

Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a poesia e diz: a poesia é perigosa. Se eu a


compreendesse, teria de alterar a minha vida, teria de rever meus juízos.

E daí surgem os detratores que desejam substituir a obsoleta poesia por algo novo e
totalmente diverso."

Pergunto: o "espetáculo"?

"Muitos agentes do "espetáculo" vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência de
poesia. Massas são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente
usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem
sensatos. Mais vale, portanto, que a poesia seja vista como algo entediante."

Fim da citação, ou da quase citação... já que mudei algumas coisas, como, neste último
parágrafo, de onde retirei a expressão de Karl Jaspers "políticos" e coloquei "agentes do
espetáculo"... no fundo são a mesma coisa...

Pois bem... minha sugestão agora é que todos tenham em mente essas questões. Não
precisam nem concordar com o que está aí... mas é fundamental dar sua própria resposta
a esse estado de coisas... coloquemos a questão nos seguintes termos:

a. Vale a pena tentar reunir poesia e "sociedade do espetáculo"?

b. Mesmo sabendo que a sociedade do espetáculo, e sua principal arma, a TV, só admite a
figura do poeta quando devidamente "espetacularizada" pela morte (de preferência
suicídio), ou sob a forma do "sujeito maluquinho", "artista irreverentezinho", o "bobo-da-
corte pós moderninho" que fará caretas e trejeitos para a câmera, e só reforçará a idéia de
que a poesia é de fato uma coisa irrelevante?

c. Será que essa postura expressa aí na letra b é uma postura "elitista" e "antiquada" e
"fora de moda"?

d. O negócio então seria penetrar nas "brechas" do sistema do espetáculo para miná-lo
"por dentro"?

e. Alguém já conseguiu esse feito?


f. A que preço?

g. O importante é alcançar a tão desejada VISIBILIDADE?

h. Ou a invisibilidade, a arte de desaparecer, podem ser os trunfos mais valiosos do poeta


hoje?

Enfim, são questões que deixo aqui para múltiplas respostas... as mais divergentes, as
mais originais...

Pense nisso tudo e faça poemas!

Mas se acentuei a parte mais difícil da situação da poesia no mundo hoje, faço questão de
acentuar também os aspectos positivos da situação. E eles existem...

Há alguns anos, o grande poeta mexicano ficou espantado de ver como conseguem
conviver no mundo a opinião de que a poesia morreu, e, ao mesmo tempo, uma situação
em que realmente é impossível citar um único país, por mais pobre ou por mais rico, que
não conte com um grupo de poetas que editam uma revista de poesia, ou mantém uma
editora especializada em poesia, ou, em lugares mais carentes, se reúnem em praças para
ler poemas e discutir poesia...

Vá ao Paraguai e encontrará grupos de poesia, revistas de poesia ou blogs de poesia. O


mesmo encontrará na Argentina, no Chile, no Iraque, na França, na Alemanha, na
Guatemala, em Porto Rico etc...

Esse é o lado bacana: na nossa estranha invisibilidade temos uma possibilidade imensa
de interlocuções... Há países que ignoram o futebol, mas não a poesia. Há países que
ignoram o golfe, o tiro com arco, mas não a poesia.

Esse é o lado bacana...

Pense nisso também e faça poemas.

Veja as fotos da recente agitação em São Paulo, e faça poemas.

Veja uma exposição de quadros abstratos, e faça poemas.

Dê uma caminhada pelo centro da cidade, note como ela, a cidade, entra pelos seus cinco
sentidos, suas formas e cores pela visão, seus sabores pelo paladar, seus rumores pela
audição, seus esbarrões ou carícias pelo tato, seus odores doces ou acres pelo olfato,
sinta isso e faça poemas.

Experimente isso num lugar tranqüilo, e também faça poemas.

Leia os filósofos, e faça poemas.

Converse com os porteiros, e faça poemas.

Aguce o ouvido quando estiver em um transporte público ou ajuntamento popular, roube


frases dali e faça poemas.

Pegue uma edição de Os lusíadas e faça um poema usando apenas uma palavra de cada
estrofe.
Aprenda uma língua que seja considerada "inútil" no mundo das relações econômicas, e
faça um poema nela.

Cultive um jardim, e faça poemas.

Crie um cãozinho, e faça poemas.

A poesia está no mundo, e a ele se refere.

Era isso.

Um abraço.

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