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Jeferson Ramos1
Resumo: Neste artigo reúno reflexões sobre a constituição da subjetividade da sexualidade entre meninos em
contexto campesino. O artigo se utilizou de três entrevistas com homossexuais masculinos que vivem atualmente
em contexto urbano, mas que vivenciaram suas infâncias no interior do estado do Paraná entre os anos 1960 e
1970. Longe de construir um quadro representativo da vivência sexual no interior, o presente artigo busca
compreender a emergência de sentimentos, desejos e orgasmos que fugiam à norma heteronormativa e
expunham a possibilidade de uma dinâmica de prazeres sem nomes e que tinham efeito apenas por serem fruto
de desejos aflorados em brincadeiras e jogos sexuais. O objetivo da pesquisa, foi contribuir no rompimento dos
silêncios historiográficos e históricos acerca das vivências sexuais do campo, evidenciando que a compreensão
dos desejos e orgasmos que ocorriam e ocorrem neste lugar, podem apontar para uma dinâmica de prazeres
constitutiva da experiência da infância e juventude.
Resumé: Dans cet article, je rassemble des réflexions sur la constitution de la subjectivité de la sexualité chez les
garçons dans un contexte paysan. L'article a utilisé trois entretiens avec des homosexuels de sexe masculin qui
vivent actuellement dans un contexte urbain, mais qui ont vécu leur enfance à l'intérieur de l'état de Paraná entre
les années 1960 et 1970. Loin de construire une image représentative de l’expérience sexuelle à l’intérieur, le
présent article cherche à comprendre l’émergence de sentiments, de désirs et d’orgasmes échappant à la norme
hétéronormative et exposant la possibilité d’une dynamique de plaisirs anonymes qui n’exercent leur effet que
parce qu’ils sont le fruit désirs ont fait surface dans les jeux sexuels et jeux. L’objectif de la recherche était de
contribuer à la perturbation des silences historiographiques et historiques sur les expériences sexuelles sur le
terrain, en démontrant que la compréhension des désirs et des orgasmes qui se produisaient et se produisaient à
cet endroit pouvait indiquer une dynamique de plaisirs constitutifs de l’expérience de l’enfance et de la jeunesse.
Considerações iniciais
1
Graduado em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná/UNICENTRO, mestrando em
História no Programa de Pós-Graduação em História Global da Universidade Federal de Santa Cataria/UFSC e
integrante de Laboratório de Estudos de Gênero e História/LEGH/UFSC.
criminalizavam. O surgimento do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual e do jornal
alternativo Lampião da Esquina, em 1978, configuraram o nascimento da luta organizada e
hoje é uma memória importante para os coletivos LGBT+. Além desse marco oficializado,
outras pesquisas revelaram, mais recentemente, a emergência de tentativas de luta organizada,
em cidades como Belo Horizonte, ainda nos anos 1960 (MORANDO, 2015).
Sem rejeitar a relevância dos trabalhos e seu potencial na constituição da experiência
histórica de homossexuais, lésbicas, travestis e transexuais, é importante observar que a
maioria destas pesquisas, partiram de experiências de adultos urbanos ou se centraram no eixo
Rio-São Paulo.
Uma rápida pesquisa, em alguma plataforma virtual de trabalhos acadêmicos,
permitirá verificar a escassez de estudos historiográficos sobre as dinâmicas de prazeres em
contextos campesinos, por exemplo, no presente e no passado. Notadamente, para o sul do
Brasil, as pesquisas que se voltaram para o campo, tenderam enfocar as lutas pela terra, a
agricultura, o agronegócio e a educação, temas que possuem ampla relevância, tendo em vista
os índices da concentração de terra e renda, bem como da violência que as sustentam.
Todavia, são temas e abordagens dessexualizados, não apontando para outros campos de
interesse e de mesma relevância. Além dessa constatação geopolítica de silenciamento,
também verificam-se que os trabalhos existentes enfocam timidamente faixas etárias
anteriores à vida adulta (LAVERDI, 2009), ou de pessoas na velhice, acessando, em seu
turno, documentos de experiências de sujeitos adultos, formados, trabalhadores, militantes,
sobretudo urbanos.
Diante desse cenário, o presente artigo objetiva discutir, com a historiografia
contemporânea, em que consiste esse silenciamento, bem como, apresentar notas acerca de
minhas pesquisas sobre o tema da memória da sexualidade na infância camponesa, na busca
por compreender os modos de subjetividade inerentes às dinâmicas de prazeres que se
desenvolveram entre meninos do campo nas décadas de 1960 e 1970, contribuindo, desta
forma, com o rompimento dos silêncios, acerca desta questão, ainda que a presente proposta
não esgote as possibilidades de compreensão do tema aqui discutido.
Para a realização da pesquisa, foram feitas três entrevistas, com homossexuais
masculinos paranaenses, entre 2018 e 2019, os quais relembraram e contaram sobre suas
infâncias, e como se deu a construção da subjetividade de suas experiências sexuais, tendo em
vista a normativa heterossexual e o espaço em que viviam.
Para os fins a que se destinam minha proposta neste texto, sistematizei a estrutura do
mesmo da seguinte forma: na seção Um outro lugar dos silêncios políticos de Clio, discuto,
brevemente, a ausência de menções sobre o campo ou regiões de interior, nos trabalhos sobre
gênero e sexualidade, notadamente naqueles que se dedicam à historiografia LGBT+. Na
seção seguinte, O despertar do ser diferente, começo a análise das lembranças dos
entrevistados, lembranças estas, sobre os primeiros momentos diante dos sentimentos que
atraiam meninos a outros meninos, ou aos homens, com os quais conviviam. Em Uma
dinâmica de prazeres, o foco recai sobre as experiências objetivas de prazeres vivenciados no
interior, principalmente, colocando em questão os orgasmos mútuos entre os meninos,
orgasmos compartilhados em meio a brincadeiras e jogos sexuais. Para finalizar, na seção O
pacto de silêncio, analiso o mecanismo de ocultação da dinâmica dos prazeres entre os
meninos, que não apenas refletia um reforço à masculinidade hegemônica, publicamente
ostentada, mas, na mesma chave, uma das condições de possibilidade da dinâmica dos
prazeres. Nessa seção, busco compreender o funcionamento do pacto, e questiono sobre a
possibilidade de seu rompimento, e das consequências do mesmo e como o meio urbano e
central fez parte extensiva desse processo reconfigurando o problema através do dispositivo
do “assumir-se”.
No ano de 2014, o historiador Elias Ferreira Veras e a historiadora Joana Maria Pedro,
publicaram um artigo intitulado Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das
homossexualidades no Brasil, na revista Tempo e Argumento, cujo objetivo era tanto fazer um
balanço da produção histórica e historiográfica sobre as “homossexualidades”, quanto tecer
questionamentos acerca da escassez de pesquisas, tendo em vista que a historiografia havia,
desde meados do século XX, aberto espaço para novos sujeitos, novos objetos e novas
abordagens, principalmente, nos avanços dos campos da história social e da história das
mentalidades, de matriz francesa (VERAS; PEDRO, 2014). Entretanto, os autores não
mencionaram a ausência de trabalhos sobre o espaço campesino, como sendo um silêncio
político, assim como aqueles sobre espaços urbanos.2
2
É preciso lembrar, que, no final do século passado, a historiadora Magali Engel (1997), publicou um capítulo
sobre o lugar da sexualidade na historiografia francesa e brasileira. A autora não focou sua atenção na
homossexualidade, mas apontou que tem sido um objeto de pesquisa valoroso dos recentes trabalhos e que desde
os anos 1980 o campo estava em desenvolvimento no país, ainda que contasse com poucas e localizadas
pesquisas. A autora reforçou, ainda, o quanto pesquisas sobre sexualidade contribuem na compreensão das
vivências sociais e das ideias, portanto, constituiria um eixo de análise promissor à historiografia brasileira.
Mais tarde, no ano de 2018, Veras e Pedro voltaram a publicar o texto, desta vez numa
coletânea dedicada às conexões entre História e Teoria Queer; como pôde ser verificado, o
campo de estudos sobre as “homossexualidades”, bem como as demais personagens da sigla
LGBT+ (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), estava crescendo, ampliando
discussões e assumindo sujeitos invisibilizados, em experiências pouco documentadas
(NETO; GOMES, 2018), no entanto, mais uma vez, não aparecem pesquisas sobre moradores
das regiões interioranas, e de contexto campesino, tanto no texto dos autores quanto na
coletânea.
Alguns anos antes da denúncia sobre os silêncios de Clio, feita pelos autores citados,
James Naylor Green, Lance Arney, Ronald Polito e Marisa Fernandes, publicaram alguns
textos, dedicados ao arrolamento de fontes e questões sobre as homossexualidades masculinas
no Brasil, tanto em Homossexualidade no Brasil: uma bibliografia anotada (2003), quanto
em Frescos trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil (1870-1980)
(2006) ou mesmo, no artigo Homossexualidades e a História: recuperando e entendendo o
passado (2012) de Green. Em todos estes importantes espaços de divulgação de
possibilidades de pesquisa, o campo enquanto lugar social que depende de uma abordagem
própria, esteve ausente.
Diante desse processo, cabe caracterizar o problema como sendo não apenas um
silêncio de Clio, uma vez que há desafios significativos para as investigações de espaços não-
urbanos e não-centrais, quando o assunto é a sexualidade, mas, da mesma forma, constitui em
silêncio dos silêncios de Clio, pois os autores que discutiram as ausências historiográficas
relativas às homossexualidades, não mencionaram estas mesmas ausências em relação ao
espaço rural e camponês. É preciso, portanto, adentrar na geografia dos lugares, tanto quanto
na geopolítica dos corpos, questionando-se da geopolítica dos silêncios através da geografia
dos desvios. Esse é meu objetivo principal aqui. 3
Os entrevistados para a pesquisa, que resultou neste artigo, são, Carlos Antônio,
Antônio Carlos e Antônio Luiz Martins Harrad Reis, mais conhecido como Toni Reis,
3
Dentre a bibliografia, historiográfica e antropológica, sobre questões sexuais da infância camponesa, e de modo
mais geral, da sexualidade camponesa, é preciso citar, Laverdi (2009), Ferrari, Barbosa (2014), Passamani
(2007), Rogers (2006) e Paiva (2015).
fundador do Grupo Dignidade, em Curitiba, Paraná.4 À exceção de Antônio Carlos, que mora
em Ponta Grossa, Carlos e Toni, residem, atualmente, em Curitiba. Seus relatos sobre o
passado no interior, se dão desde os atuais espaços onde vivem, para os quais se deslocaram
entre os anos 1970 e 1980, quando iniciavam a juventude, entre 18 e 20 anos de idade. No
caso de Antônio Carlos, é o lugar de sua atuação profissional atual.
Iniciarei a análise das entrevistas, por Carlos Antônio, que é tio de Antônio Carlos,
contatado através da entrevista com o sobrinho. A cidade natal de Carlos é Japurá, localizada
na região noroeste do estado do Paraná, local onde nasceu em 1956. Sua família presenciou a
fundação oficial da cidade, que ocorreu em 1964.
As lembranças de suas primeiras experiências, que implicaram em sexualidade, se
referem a sentimentos e desejos que, como ele sintetizou, eram “só fantasias”. Não havia o
horizonte de uma prática concreta, pois, quando menino, o universo da prática nem sempre
era uma resposta imediata, ou possível, ao que se sentia.
O “despertar do ser diferente”, ocorria, sobretudo, no campo da sensibilidade,
daqueles sentimentos que se misturavam a desejos, mas que não faziam muito sentido, “sentia
atração e até sentimentos que afloravam, só que não eram experimentados através de
contatos” (Carlos Antônio, 2019), comentou. Carlos relatou ainda, que não praticava
concretamente aquele sentimento, “por medo”, pois, não havia referências que traduzissem o
que se sentia e que poderiam servir-lhe de sustentação. Por outro lado, havia a “dúvida”, uma
vez que não se tinha uma compreensão consistente do que era aquele sentimento. De início,
ele se manifestava apenas por uma confusão, aliado a isso, não havia informações sobre
sexualidade onde ele morava, era um tema que cada um trabalhava conforme as experiências
e os códigos morais, ritualizados no âmbito da família e da religião.
O contexto do interior do estado do Paraná, era marcado por forte presença católica, a
qual constituía os contornos que as concepções sobre o corpo e a sexualidade assumiam entre
os moradores, mesmo que permanecessem não ditas verbalmente. E essas concepções,
estavam saturadas pelo entendimento da moral sexual heteronormativa, sendo não apenas
pilar de sustentação social, mas considerada um dado natural, estendida à possibilidade da
conjugação carnal, que estaria, por sua vez, comprometida com a reprodução. A igreja era, no
4
A pedido de dois dos entrevistados, os nomes Carlos Antônio e Antônio Carlos, são fictícios, somente Toni
Reis concordou em manter seu nome verdadeiro. As entrevistas com Carlos e Antônio, ocorreram pelo aplicativo
whatssapp, através do qual foi possível contatá-los sempre que necessário e pelo fato de poderem responder às
questões em vários momentos do dia. A entrevista com Toni Reis, se deu pessoalmente, quando de minha visita
ao CEDOC Dr. Luiz Mott, do Grupo Dignidade, em Curitiba, Paraná.
contexto do interior, uma das principais instituições que atribuíam inteligibilidade e coesão à
vida social.
A existência de códigos de moralidade sexual, no entanto, era concomitante com tudo
que lhe escapava à ordem, em realidade, se constituíam performaticamente. Sendo a
sexualidade, uma construção relacional, os sentimentos de Carlos, ainda que perfazendo uma
diferença através da incompreensão, encontravam suas condições de possibilidade no interior
mesmo do contexto em que vivia. Era pelos homens que dividiam com ele o mesmo espaço,
que se desenvolvia sua atração, o que significava que eram homens na sua maioria casados e
heterossexuais. Segundo Carlos, esse era um empecilho a qualquer contato.
Note-se, entretanto, que a dicotomia heterossexual/homossexual, é uma elaboração
histórica, e estava ausente no contexto do interior nos anos 1960. Carlos explicou, desta
forma, a impossibilidade dos contatos, por ter passado a residir em Curitiba, nos anos 1970,
onde essa separação se tornava cada vez mais forte e atualmente encontrando-se estabelecida.
No entanto, pode-se refletir que, a percepção de ausência de contatos sexuais entre homens no
interior, ou sua total impossibilidade, é o efeito dos silêncios reiterados como segredos das
próprias práticas, caso ocorressem. O fato de alguns nunca terem experimentado ou visto, não
significa que não existissem. E esse processo explica a própria experiência de Carlos.
Quando questionado sobre seus amores de infância, Carlos comentou sobre uma
menina, que teria sido o principal alvo de seu desejo, “minha primeira paixão, amor de
verdade, foi por uma mulher. Foram muitos anos, 12 anos de minha infância, adolescência,
marcou muito minha vida. Então tinha meu foco para viver esse sentimento” (Carlos Antônio,
2019). A menina de que falou Carlos, não teria lhe correspondido nesse amor, todavia, ele
alimentou aquele sentimento por muito tempo. Segundo comentou, não foi uma fuga daqueles
outros sentimentos que lhe atraiam aos homens, ambos coexistiam.
A coexistência dos sentimentos, era o que reforçava lugares políticos específicos de
manifestação dos mesmos. Enquanto seu amor pela menina era expresso publicamente, seus
sentimentos de atração e desejo por homens, permaneciam uma experiência íntima, nunca
contada a ninguém. Esse modo de experiência dos prazeres, reforçava a dicotomia
público/privado, e mais do que isso, era face da mesma operação de normalização pública da
conduta heterossexual e de seu prazer correlato, forjada pelas instituições sociais locais, além
de ser a engrenagem do silêncio sobre as experiência do desejo entre meninos.
Com Toni Reis, o “despertar do ser diferente”, expressão que utilizou em seu livro
autobiográfico, Direito de amar (1996), se deu em termos próximos ao que ocorreu com
Carlos, são as suas experiências que passarei a analisar.
Toni, nasceu em Limeira, distrito de Coronel Vivida, no dia 20 de junho de 1964.
Morou naquele povoado, até o início de sua adolescência, com a mãe e seus irmãos, depois
mudou-se para Quedas do Iguaçu, cidade localizada na região oeste do estado. Foi nessa
cidade, segundo comentou, quando estava com 14 anos, que se percebeu gay, termo utilizado
por ele na entrevista.
Assim como Carlos, o “despertar do ser diferente” em Toni, se deu por um conjunto
de sentimentos que, de início, eram incompreensíveis. Essa incompreensão gerou, por um
tempo, a rebeldia de Toni contra todos à sua volta. Era considerado um menino desobediente,
agressivo e não respeitava a autoridade da mãe e da professora da escola. Quando ouviu pela
primeira vez o termo viado, estava em uma fila no colégio, e um colega perguntou: “o
Antônio Luiz não joga bola por quê? Acho que ele é viado”, como resposta ao colega, Toni
relatou que o agrediu. Para sua mãe, contara que o garoto havia dito que ele era “filho da
puta” e viado, uma forma de equilibrar o acontecimento, retirando a ênfase de ter sido
chamado de viado, e obter o aval de sua mãe, o que, de fato conseguiu, “bem que fez, meu
filho. Tinha que bater mesmo” (REIS, HARRAD, 1996, manuscrito s/p).
O termo viado, era o que se empregava numa situação pública, com o objetivo de
ofender, do ponto de vista da diferença comportamental, um outro sujeito que no lugar de se
identificar com o código da masculinidade, é associado à feminilidade. Daniel Welzer-Lang
(2004), caracterizou esse processo como fundamento da homofobia, para ele, a operação
homofóbica, se daria pela realocação do homem na estrutura das relações sociais de sexo, este
deixaria de ser identificado com o que se define o masculino, o viril, e seria identificado com
o feminino, numa concepção misógina desse feminino, que a entende pelas dicotomias
força/fraqueza, ativo/passivo, razão/emoção. No contexto de infância de Toni, o termo
homofobia não faria sentido, pois também estava ausente o termo homossexual. Entretanto, a
violência simbólica pressuposta pelo termo viado, ancorada na percepção visual da diferença
binária de sexo e gênero traduzida no comportamento, refaz a mesma operação aludida pelo
sociólogo acima.
Segundo Toni, “se falava muito [...] “viado” (Idem). Mas, “viado” era um nome feio
para xingar as outras pessoas. Não tinha conotação sexual”, com isso, queria dizer que nem
sempre a interpelação por este termo, se dava em função de um conhecimento pelos demais
dos sentimentos de desejo e atração de Toni, e sim pela sua conduta ser associada ao
feminino, no caso, o fato de não gostar de jogar bola com os outros rapazes.
Toni comentou ainda, que em várias situações, quando sentia-se atraído por alguém,
ou presenciava um contexto masculino que o excitava, corria para um lugar onde pudesse se
masturbar. Acontecia isso nas aulas de Educação Física, motivado pelo sentimento de atração
pelo professor, que, segundo ele, era “bonito, louro, alto e forte. Usava abrigo sem cueca e
mostrava um volume bastante avantajado. Sentia uma grande atração sexual por ele. Durante
as aulas, não conseguia me concentrar nos jogos, por isso me sentia diferente dos demais”
(Ibidem), mas também em outras ocasiões, principalmente quando na companhia de amigos
ou ao final das brincadeiras em grupo com os vizinhos.
“Era muito desconcertante”, por um lado aquelas experiências se ligavam a formas de
prazer, por outro, o expunham a situações constrangedoras que lhe promoviam sentimentos de
incompreensão, de diferença em relação aos demais, tudo motivado pelo mesmo contexto
elucidado para o caso de Carlos, analisado acima.
Mesmo sem entender aquilo que sentia, Antônio relatou que se incomodava com o
modo como as travestis da rua onde sua avó morava, em Curitiba, eram tratadas pelos
moradores. Numa possível forma de reconhecimento, Antônio não concordava com a
violência que sofriam, talvez por ser também alguém que se sentia deslocado e acuado boa
parte do tempo, devido ao que acontecia em seus pensamentos. Seu incômodo, não foi
explicado, mas pareceu se delinear por uma outra forma de não-identificação, agora, relativa
às condutas de discriminação praticadas por homens, cuja masculinidade se reafirmava nas
referidas práticas.
Teresa Adada Sell (2006), coletou relatos de homossexuais masculinos no início dos
anos 1980, em Florianópolis, e neles podem ser percebidas linhas discursivas parecidas com o
que expus até aqui, alguns dos entrevistados tiveram infâncias transcorridas no contexto
campesino e discorreram sobre as ideias e sentimentos sobre esse período relativamente à
homossexualidade. O “despertar do ser diferente” foi definido, recorrentemente, como uma
experiência da infância, explicada a partir de um conjunto de sentimentos confusos, expressos
pela noção de distância em relação aos demais. Essa diferença, é esboçada pelo conjunto de
práticas sociais que, por serem generificadas, atribuem os contornos da pertença sexual em
sujeitos cujas identificações, não se dão nos termos das expectativas sociais. Foi esse
sentimento de diferença em relação aos demais, de incompreensão, que constituía a noção de
que eram sentimentos de outra natureza, pois os próprios sujeitos da diferença, colocavam
como natureza do sexo a heterossexualidade.
Um dos entrevistados, nomeado de Entrevista “A”, relatou de forma clara, os
contornos da pertença sexual pela diferença: “eu me lembro de ser homossexual desde
pequeno. Não é que em pequeno soubesse, mas me sentia diferente dos homens em geral. Em
termos de brinquedo, modo de pensar, de agir, etc.” (SELL, 2006, p. 42). Reforçando a
estrutura binária, os sujeitos explicavam o sentimento de diferença que sentiam, pela
identificação com o universo feminino, muitos, inclusive, apontaram que na infância havia o
desejo de ser mulher. Como se tratavam de experiências anteriores à subjetivação
homossexual, quando não havia o sujeito (auto) declarado homossexual, definido pela
pertença a um grupo social, a constituição dos contornos que identificavam sujeitos
desviantes da corporificação da masculinidade, se dava pelo termo viado, principalmente, mas
também por outros. Além disso, no contexto rural, como poderá ser visto na próxima seção,
muito desse universo, era mantido em sigilo, através do que defini como sendo um pacto de
silêncio. Ser viado não era uma (auto) identificação, em realidade era parte do mesmo
universo de incompreensão, pois era expresso através de uma violência verbal que recrudescia
mentes já inquietas e angustiadas.
Os entrevistados de Sell, montaram seus relatos acerca das experiências sexuais,
costurando-as às suas (auto) declarações identitárias atuais à entrevista, numa forma de
linearidade causal, bem como, após a diáspora para cidades maiores. Como a psicóloga
coletou as entrevistas no início dos anos 1980, quando o processo de subjetivação
homossexual urbano se estabelecia a partir de jornais, movimentos organizados e outras ações
individuais e de conscientização coletiva, ao processarem a experiência do passado em forma
de uma memória marcada pelas disputas do seu presente, a infância, foi tomada pelos
entrevistados, como fundação da sexualidade gay, como origem da homossexualidade, o
mesmo ocorrendo para os entrevistados do presente artigo.
No entanto, do ponto de vista histórico e geracional, é preciso fugir aos essencialismos
identitários, e iluminar as experiências de prazer no que elas tinham de múltiplas. Com isso,
compreendo que é equivocado perceber nas experiências de infância, algo que seria a
fundação ou a instituição da homossexualidade, ainda que inconscientemente. O fato dos
sujeitos virem a se assumir homossexuais na vida adulta, que foi o caso de todos os
entrevistados para o presente artigo, não encontra em seus passados, necessariamente as
razões primeiras de tal inclinação sexual. O passado não contém a razão de ser do discurso
presente.
Segundo explicava a psicanálise lacaniana, nos anos 1960 e 1970, seria durante a
infância que deveriam ser inculcadas as expectativas sociais acerca da pertença sexual das
crianças, mas sobretudo nos meninos, pois precisariam desidentificar-se da mãe e seguir o
modelo masculino representado pelo pai (STOLLER, 1973; LATTANZIO, RIBEIRO, 2017).
A infância, seria o terreno crucial de constituição do sujeito sexual nos termos da partilha
sexual binária. Para o psicanalista norte-americano, Dr. Robert Stoller, era dever dos pais
inculcar desde cedo a certeza da masculinidade nos meninos, pois, segundo ele, o fato de
possuir um pênis, não teria a mesma força persuasiva que o sentimento da pertença e do
reconhecimento tácito da existência de dois corpos profundamente distintos (STOLLER,
1973).
Os saberes da psicanálise não eram, necessariamente, alheios às regiões interioranas.
Através da imprensa, muito desses saberes circulava entre populações afastadas dos centros
urbanos, assim como através dos poucos médicos que atendiam no interior. A própria teologia
católica, ritualizava esses saberes ao endossar a natureza da conjugalidade heterossexual e da
diferença sexual binária (RAMOS, 2019). As reflexões de Stoller, bem como de outros
psicanalistas e psicólogos seminais do início do século XX, como Harry Benjamin, John
Money e Ralph Greenson, forjaram os esquemas de concepção acerca do desenvolvimento da
sexualidade e dos seus desvios, confirmando do ponto de vista científico e teórico, aquilo que
se pensava mais amplamente acerca da relação homem/mulher. A partir das teorias criadas
por estes especialistas, autoridades locais, norteavam suas falas públicas e o modo como
orientavam seu trabalho.
Longe de buscar uma explicação estrutural acerca da formação da consciência e
prática sexuais, meu objetivo é apontar para o não-dito da sexualidade infantil: sua dinâmica
constitutiva. Ainda que as explicações psicanalíticas de Stoller, estivessem implicadas em
questões urbanas e partissem de experiências da classe média e alta, em que as mães poderiam
ficar em casa com os filhos e quem sairia para o trabalho eram somente os pais, é possível
fazer relações compreensivas entre este campo do conhecimento, e os quadros analíticos da
infância camponesa.
As experiências da infância, notadamente relativas à sexualidade, são comumente
esquecidas ou silenciadas, são compartilhadas apenas entre aqueles que participaram das
situações em questão, dificilmente chegando a constituírem-se em documentos para a
historiografia. Os silêncios sociais sobre estas experiências, parecem se reproduzir nos
silêncios científicos sobre sua existência. Negar a possibilidade da sexualidade infantil é
também outra disputa política, em que se encontra o assunto, uma vez que as forças
conservadoras que atuam na sociedade, tendem a suprimir as possibilidades de
desenvolvimento de discussões que nomeiem as experiências e as façam integrar camadas da
memória pública, com sentido e espaço de manifestação.
Por outro lado, são experiências que dependem de documentos orais, pois jamais
figurarão em textos e imagens, afinal, é da ausência de sua inscrição pública que elas se
mantêm, a exceção de figuras públicas e militantes, como Toni Reis. Diante deste cenário, se
torna fundamental o reconhecimento da importância da História Oral, como instrumento de
rompimento dos silêncios que envolvem a questão, tanto aquele científico quanto o social,
pelos próprios sujeitos.
Meu objetivo, na presente seção, é compreender, a partir da noção de dinâmica dos
prazeres, como se delineavam as experiências sexuais dos entrevistados, quando ainda nos
anos de infância. Nomearei de dinâmica dos prazeres, uma vez que a noção de prazer não
comporta uma identidade e sim uma relação em toda a sua dimensão. Acredito que a partir
desse conceito, seja possível capturar experiências em que não estava em questão um caráter,
um tipo de sexo, e sim uma circunstância de prazer vivenciado, é, portanto, um conjunto de
experiências possíveis, cujo terreno fértil, a psicanálise tentou circunscrever, enquadrar,
classificar, dizer que ali já existia uma lei e que ela deveria somente ser trazida à luz da
consciência.
No livro de memórias de Toni Reis, Direito de amar (1996), é possível encontrar uma
fronteira nítida entre a inteligibilidade sobre o prazer que o termo homossexualidade atribuía,
tornando-o um tipo de sexo, e o outro momento, quando este conceito não era conhecido, e as
experiências sexuais tinham um valor de prazer, ou seja, não tinham um nome, nem o
precisavam. O uso do termo homossexualidade é, além de uma inteligibilidade urbana e
científica, uma lógica de sentido dos adultos, pouco operava no universo infantil, o qual
prescindia de termos técnicos.
Retornarei, agora, à análise dos relatos dos entrevistados. Na entrevista realizada
com Carlos, não foi possível adentrar em profundidade nas lembranças da infância, quanto à
dimensão sexual. Segundo ele, nunca houve a possibilidade de um contato entre ele e outro
menino. Isso era impensável. Relatou apenas que fora “muito assediado por mulheres” e que
também manifestou interesse e atração em meninas. Essa atração convivia, harmoniosamente
com o que sentia por meninos, sendo apenas diferente por esta última não ser manifesta. As
respostas de Carlos, tenderam a ser sempre mais curtas que aquelas concedidas por seu
sobrinho, algo que dificultou extrair mais informações, mesmo que eu tenha me utilizado da
técnica de repetir objetivos, nas três seções de questões, sempre que um tema tenha ficado um
pouco vago.
Com Toni, a questão documental foi diferente. Sendo uma figura pública, conhecida
nacional e internacionalmente, por sua luta histórica em prol da população LGBT+, foi
possível encontrar vestígios não apenas pela entrevista, mas em outros espaços de inscrição de
suas memórias no tempo, a exemplo de seu livro autobiográfico. Tanto Toni quanto Antônio,
os quais conseguiram obter uma formação acadêmica na vida adulta e se tornar lócus de
enunciação da questão LGBT+, o processamento de suas experiências em forma de memória
se mostrou mais denso que aquele concedido por Carlos, que seguiu um rumo distinto em sua
vida. Com isso, não quero dizer que a ausência de formação acadêmica, tornou Toni e
Antônio pessoas mais articuladas que Carlos, na verdade, foram espaços onde se tornou
possível debater, ler e tratar do tema, constituindo em espaços de fala, diferentemente de
Carlos, que além da entrevista concedida não tem os mesmos espaços para tratar do tema
abertamente. Poder falar, é condição para nomear e fazer existir.
Foi no livro de memórias de Toni, que encontrei inúmeras experiências de sua infância
que contornavam as dinâmicas de prazer e orgasmos mútuos que se promoviam. Para
caracterizar esse momento, Toni Reis recordou dos “jogos sexuais” que praticava com os
demais meninos, e que se constituíam em brincadeiras que colocavam em questão a
experiência de prazeres sexuais entre crianças, “no interior, jogos sexuais entre crianças é
absolutamente normal”, argumentou. As brincadeiras sexuais de que Toni Reis recordou,
tinham um repertório variado: “concurso de punheta”, forma de masturbação para saber quem
alcançava mais longe com a ejaculação, mas, também “tinha dias quando só havia meninos
que se conheciam melhor e então dizíamos: - Cada um toca no outro, aí fica melhor”, e todos
se masturbavam reciprocamente, a outra forma era saber quem conseguia ejacular mais de três
vezes. Modos de provocar prazer e sentir prazer entre meninos. Toni Reis chamou de
“sacanagenzinhas de piá” (REIS, HARRAD, 1996, manuscrito s/p).
O menino que ganhava a maioria dos concursos era por quem Toni Reis se sentia
atraído, um rapaz loiro e forte, “eu gostava de ficar perto dele porque seu “negócio” era
maior. Ele sempre era um dos ganhadores, parecia uma olimpíada gay” (Idem). Atrações e
desejos que contornavam a sexualidade de Toni Reis.
Nesse tempo todo, com todas essas brincadeiras, nunca ouvi alguém falar a
palavra homossexual ou gay. O que se falava muito era “viado”. Mas “viado”
era um nome feio para xingar as outras pessoas. Não tinha uma conotação
sexual. Simplesmente fazíamos porque gostávamos. Até minha adolescência
não me sentia diferente de ninguém. Fazia tudo por instinto, não conhecia a
palavra homossexualidade, muito menos seu significado. “Viado” para mim
era apenas uma palavra para ofender a pessoa. Só a partir dos catorze anos
comecei a me sentir bastante diferente dos meus colegas. Senti que não
pertencia àquela cultura, àquela forma de viver (REIS, HARRAD, 1996,
manuscrito sem página).
O conceito de pecado?
É, o conceito de pecado, a gente se masturbava, depois ficava com grilo de
consciência. Quando chegava a época em que o padre ia lá fazer a confissão,
a gente ia lá e descarregava, contava tudo para o padre. Ia para casa e ficava
uma semana assim, uma semana ou quase duas, sem se masturbar, se
aguentando assim e depois não aguentava mais e se masturbava, sabe? Daí
vinha o grilo de consciência. E o padre vinha com aquela coisa, a mesma
história (SELL, 2006, p. 171).
Então, havia brincadeiras com coleguinhas, mas de ver pipi, nada de ficar
peladinho e fica brincando assim com os meninos, [...] tinha um primo meu
que de vez em quando a gente, ele batia punheta pra mim e eu ficava
constrangido com aquilo, mas achava aquilo tesão, mas não... era muito
travado, aquilo para mim era uma coisa muito travada. Ele batia punheta pra
eu assisti, eu chegava em casa e batia punheta sozinho, na verdade aquilo era
muito forte pra mim (Antônio Carlos, 2019).
O pacto de silêncio
Considerações finais
Entrevistas
Referências bibliográficas
GREEN, James N.; POLITO, Ronald. Frescos trópicos: fontes sobre a homossexualidade
masculina no Brasil (1870-1980). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
HITE, Shere. O relatório Hite: um profundo estudo sobre a sexualidade feminina. São Paulo:
DIFEL, 1980.
MORANDO, Luis. Por baixo dos panos: repressão a gays e travestis em Belo Horizonte
(1963-1969). In: GREEN, James N.; QUINALHA, Rena H. Ditadura e homossexualidades:
repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdUFSCar, 2015. (pp. 53-82)
REIS, Toni; HARRAD, David. Direito de amar: a história de um casal gay. Curitiba, 1996.
(Manuscrito digitalizado s/p). Cortesia de Toni Reis.
SELL, Teresa Adada. Identidade homossexual e normas sociais. 2. Ed. Florianópolis: Editora
da UFSC, 2006.
VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)vi
sibilidade das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6,
n.13, p. 90 ‐ 109, set./dez. 2014.
VERAS, Elias F.; PEDRO, Joana Maria. Outras histórias de Clio: escrita da história e
homossexualidades no Brasil. In: NETO, Miguel R. de Sousa; GOMES, Aguinaldo R.
História e teoria queer. Salvador: Devires, 2018. (pp. 123-142)
WELZER-LANG, Daniel. Os homens e o masculino numa perspectiva de relações sociais de
sexo. In: SCHPUN, Monica Raisa. Masculinidades. São Paulo: Boitempo, 2004. (pp. 107-
128)