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Cordeiro Edmundo Imagem
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Edmundo Cordeiro
Universidade da Beira Interior
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Imagem: simulacro, dor... 3
trabalho de “trazer a imagem ao de cima” questão pode ser: como é que eu posso fa-
não tem de passar pela, diríamos nós agora, zer deste cliché um simulacro? O simula-
"aparência visível da distorção". Quer di- cro é, evidentemente, o que é mais real para
zer: todo o simulacro é, de algum modo, ele. Donde, com a questão da realidade da
distorção, ou, em termos mais suaves, dife- imagem opera-se um deslocamento relativa-
rença. A invenção do simulacro implica a mente à questão da distinção entre real e
presença ou a existência do cliché... Muito imagem. E a noção de simulacro pode ju-
provavelmente não haveria a necessidade de stamente servir-nos para caracterizar a não-
inventar simulacros se os clichés não fossem distinção entre real e imagem (6).
simulacros degradados, como diz Klossow-
ski. E o facto de a imagem "cair"em clichés, 1.4
e ser modelo de clichés, uma vez actualizada,
parece ser, por uma razão ou por outra, ine- Klossowski define o simulacro como “um
vitável, senão mesmo constitutivo (5)... signo de um estado instantâneo”. Neste
sentido, um simulacro não é nem uma má
realidade (uma realidade menos real) nem
1.3 uma má imagem (uma imagem segunda),
A dado passo das entrevistas com David Syl- e só “degradado” pode servir para alguma
vester, Bacon enuncia duas questões ineren- coisa, só assim pode ser, digamos, apro-
tes ao seu gesto enquanto pintor: “Como é priado. No entender de Klossowski, ele é um
que eu sinto que posso tornar esta imagem signo, mas um signo especular, não um signo
mais imediatamente real para mim?” ; significante: “a imagem é especular e não
“Quem é que nos nossos dias foi capaz de especulação (7)”. O simulacro marca esse
registar o que quer que seja, e tocando-nos ponto, dizem Deleuze e Guattari,“ (...)onde a
isso como uma realidade, sem que a imagem cópia deixa de ser uma cópia para se tornar
tenha sido profundamente atingida?” Uma [pour devenir] o Real e o seu artifício (8).”
vez mais, e próximo de nós no tempo, e E quando Deleuze em L’image-temps fala na
dito por quem faz imagens, uma vez mais necessidade de “arrancar aos clichés [quer
está aqui em causa, não sei se por um lado dizer às imagens de troca, imagens, diría-
e por outro lado, mas aparentemente, pelo mos nós, cujo carácter especular foi apan-
mesmo lado, o real e a imagem. Talvez não hado pela especulação significante] uma ver-
por mera vicissitude de vocabulário, o que dadeira imagem”, podemos considerar que
é facto é que as interrogações de Bacon (a se trata de extrair o simulacro da "imagem".
abertura da primeira - como fazer para - é Ora, atingir a imagem, como dizia Bacon,
fechada pela segunda - como fazer senão as- tocá-la com violência, desfigurá-la, signifi-
sim) referem que a imagem pode ser mais cará trabalhar nela de modo a que o mo-
e menos real, e pode sê-lo imediatamente. delo e o discurso (ou a história) não a so-
Donde, o material do pintor (a sua matéria) bredeterminem de forma tal que figurativi-
são as imagens e o que este busca, o real ime- dade e receptividade estejam sempre a ca-
diato, é o efeito de imagem, ou a imagem minho de um real separado da imagem e que
efeito, quer dizer: uma imagem nova. A é sempre, ou qualquer coisa que só apro-
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memória, em imagem, nessa matéria sinaléc- dizer que a imagem percebida é uma imagem
tica que é movimento e tempo também. Tal- presente por entre as imagens reais, e que
vez muito rudemente seja esta a questão: o esse "destacamento"da imagem não se dá em
espírito conserva a matéria e a matéria enche virtude de uma iluminação que incidiria so-
o espírito; a matéria dá imagens ao espírito e bre a imagem real, mas pelo obscurecimento
o espírito dá novas imagens à matéria. Numa de certos lados dela - um destacamento do
matéria sem espírito nunca chegaria a haver objecto num quadro (num écran): é o nosso
o novo, não haveria o "discernimento"(a dis- cérebro que é o écran. Como ele diz, a fo-
tinção, a separação, a selecção) seria o per- tografia está já tirada nas coisas (Matière et
petuum mobile. Num espírito sem matéria mémoire, 188, 36): isto é, nós não acrescen-
também nunca chegaria a haver o novo, seria tamos nada às coisas, somente lhe colocamos
o perpetuum imobile. Ou ainda: o espírito na frente, digamos, uma tela negra, que lhes
introduz a qualidade no movimento ou na limita a propagação, e que as faz variar de
imagem. “ ... Não é difícil ver de que modo outra maneira, mas que
percepção e matéria se distinguem e de que igualmente as retém. Diz ele (Ibidem, 190,
modo coincidem. A heterogeneidade quali- 38): “As imagens exteriores atingem os ór-
tativa das nossas percepções sucessivas do gão dos sentidos (...) propagam a sua in-
universo deve-se ao facto de que cada uma fluência até ao cérebro. O movimento atra-
dessas percepções se estende, ela própria, so- vessa o cérebro, detém-se aí um pouco, e irá
bre uma certa espessura de duração, ao facto expandir-se em acção voluntária.” E con-
de que a memória condensa aí uma multipli- clui: “eis o mecanismo da percepção.”
cidade enorme de estímulos que nos apare-
cem juntos, embora sucessivos. Bastaria di- 2.3
vidir idealmente essa espessura indivisa de
tempo, distinguir nela a multiplicidade orde- Ora, para Bergson, as imagens exteriores,
nada de momentos, numa palavra, eliminar as imagens-movimento, não podem ser re-
toda a memória, para passar da percepção à stituídas por "imagens imóveis", isto é, por
matéria, do sujeito ao objecto.” (Matière et clichés, os quais lhe retirariam o carácter
mémoire, 217, 73 (12)) Bergson pede-nos, fundamental, o movimento.
neste primeiro momento, que nos esforce- Deixando aqui de lado a opção de De-
mos por pensar a percepção sem a memória leuze pelo cinema - para ele o cinema tra-
(objecto do IIo capítulo de Matière et mé- balha com um "o corte móvel"(L’image-
moire). E vai dizer quanto a estes dois pó- mouvement, 11), isto é, à “imagem-média”
los, que, contrariamente à diferença entre a do cinema, resultante de vinte e quatro cor-
coisa e a representação, entre a percepção e tes imóveis por segundo é inerente o mo-
a memória não há diferença de grau, mas de vimento, a que se acrescentam outros mo-
natureza: é a diferença entre a matéria e o vimentos: a montagem, a câmara móvel, a
espírito. Vai ser a diferença entre o presente dimensão temporal do plano... - por que
e o passado. Mas quando ele diz que entre é que o movimento da imagem é assim
a imagem real e a imagem percebida, não há tão importante? Porque o movimento da
diferença de natureza mas de grau, isso quer imagem-movimento, a imagem- movimento,
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é afecção do todo das imagens. O todo ou seja, a relação dos movimentos com um
das imagens das imagens-movimento não é “centro de indeterminação”, que dá origem à
estanque, há uma variabilidade inerente ao imagem-percepção. No primeiro sistema de
todo das imagens - o todo não está imóvel, imagens poderíamos falar de uma percepção
o todo não pára, não há nada que o segure... pura, quer dizer, de uma percepção ideal em
O todo é transformável. E o movimento é que não haveria propriamente centro, mas
expressão dessa transformação (13). Quer seria uma percepção que não veria nada, por
dizer: há um movimento vital, que não se assim dizer... - a não ser no cinema, por
dá no espaço e que é transformação - a ex- causa da “ consciência câmara ”... Seria este
pressão dessa transformação será a imagem o pólo objectivo ou a imagem-percepção-
nova... Um "corte móvel"da transformação, objectiva. No segundo sistema de imagens,
um corte móvel das transformações qualita- poderíamos falar de um pólo subjectivo ou
tivas que se dão no tempo. Um "corte"nesta de uma imagem-percepção-subjectiva. Por
mobilidade (uma imagem) é um corte mó- outro lado, o enquadramento, a subtração
vel da duração (uma imagem-movimento): o ou a variação das imagens em função de
movimento é um corte móvel da duração (do uma, vai implicar que o mundo se reorga-
tempo).Diz Bergson: “As imagens exteriores nize justamente em função desse “centro de
atingem os órgão dos sentidos (...) propagam indeterminação”, vai implicar, em suma, no-
a sua influência até ao cérebro. O movimento vos movimentos que constituem a resposta
atravessa o cérebro, detém-se aí um pouco, e à imagem-percepção: é a imagem-acção. É
irá expandir-se em acção voluntária.” (Ma- como se o mundo reorganizado da imagem-
tière et mémoire, 190, 38) Entramos nas três percepção, esse “arqueamento do mundo”,
grandes variedades de imagem-movimento, como diz Deleuze, me empurrasse, me obri-
das quais Deleuze dá conta enquanto con- gasse a agir.
strução cinematográfica. Na face receptora
do cérebro (imagem especial, centro de in- 2.4
determinação) constituir-se-á qualquer coisa
como uma imagem-percepção. Nesse inter- Mas há um terceiro aspecto do movimento
valo que medeia entre a recepção e a re- relacionado com o “centro de indetermi-
acção, imprimir-se-á uma imagem-afecção. nação”: é que, para além de poder ser
A resposta, a acção ou reacção, é a imagem- percebido, ou para ser percebido, o movi-
acção. “E cada um de nós, a imagem mento é igualmente sentido: afecta. Afecta
especial ou o centro eventual, nós não so- quando fica por instantes (por vezes doloro-
mos outra coisa senão um agenciamento das sos) retido no intervalo entre a percepção e
três imagens, um concentrado de imagens- a acção. É a imagem-afecção. Nela o movi-
percepção, de imagens-acção, de imagens- mento deixa de ser movimento de deslocação
afecção.” (L’Image-mouvement, 97) Em pri- para se tornar movimento de expressão. “...
meiro lugar, é a passagem do primeiro sis- Uma espécie de tendência motriz sobre um
tema de imagens (variação universal de to- nervo sensível” (Matière et mémoire, 201,
das as imagens) para o segundo (variação 57), diz Bergson, ou, como diz Deleuze,
de todas as imagens em função de uma), “ ...um esforço motriz sobre uma placa re-
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