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Você disse “popular”?

Pierre Bourdieu
Collège de France

Tradução de Denice Barbara Catani


Este texto foi publicado sob o título “Vous avez dit ‘populaire’?”,
em Actes de la recherche en sciences sociales ,
nº 46, março, 1983, p. 98-105, Paris.

POPULAIRE adj. (Populeir, XIIe; lat. Popu- au peuple, au plus grand nombre. Henri IV était un
laris). 1° Qui appartient au peuple, émane du peuple. roi populaire. Mesures populaire. “Hoffmann est
Gouvernement populaires. “Les politiques grecs qui populaire en France, plus populaire qu’en Allemagne”
vivaient dans le gouvernement populaire” (MON- (GAUTIER). 4° Subst. (Vx). Le populaire, le peuple.
TESQ). V. Démocratique. Démocraties populaires. In- ANT. (Du 3°) Impopulaire.
surrection, manifestation populaire. Front populaire:
union des forces de gauche (communistes, socialistes,
As locuções que comportam o epíteto mágico
etc.) Les masses populaires. 2 ° Propre au peuple.
de “popular” estão protegidas contra a análise pelo
Croyance, traditions populaires. Le bon sens popu-
fato de que toda crítica de uma noção que diz res-
laire. - Ling. Qui est crée, employe par le peuple et n’est
peito de perto ou de longe ao “povo” corre o risco
guère en usage dans la bourgeoisie et parmi les gens
de ser imediatamente identificada como uma agres-
cultives. Mot, expression populaire, locution popu-
são simbólica à realidade designada — logo, ime-
laire. Latin populaire. Expression, location, tour popu-
diatamente fustigada por todos aqueles que se sen-
laire. À l’usage du peuple (et qui en emane ou nom).
tem no dever de tomar o partido e defender a cau-
Roman, spectacle populaire. Chansons populaires. Art
sa do “povo”, assegurando, assim, os lucros que
populaire (V. Folklore). - (Personnes) Qui s’adresse au
também podem ser obtidos, sobretudo nas conjun-
peuple. “Vous ne devez pas avoir de succes comme
turas favoráveis, com a defesa de “boas causas”.1
orateur populaire” (MAUROIS). Qui se recrute dans
le peuple, que frequente le peuple. Milieux, classes
populaires. “Ils ont trouvé une nouvelle formule: tra- 1 O fato de os custos da objetivação científica serem
vailler pour une clientele franchement populaire” particularmente elevados para um ganho especialmente fra-
(R OMAINS). Origines populaires. V. Pléibéien. Bals co — ou negativo — não significa nada para o estado do
populaires. Soupes* populaires. 3° (1559). Qui plait conhecimento nessas matérias.

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Você disse “popular”?

Isso vale para a noção de “linguagem popular”, que afastada dos dicionários legítimos. Também não se
a exemplo de todas as locuções da mesma família deixará de incluir os operários de origem urbana que
(“cultura popular”, “arte popular”, “religião po- a palavra “popular” evoca quase automaticamente,
pular” etc.) define-se apenas relacionalmente, como enquanto os camponeses serão rejeitados sem mais
o conjunto daquilo que é excluído da língua legíti- justificativa (sem dúvida por se saber que estes estão
ma, entre outras coisas, pela ação contínua de in- destinados à região, ao regional). Mas nem mesmo
culcação e imposição mesclada de sanções que é se chegará a perguntar — e eis aí uma das funções
exercida pelo sistema escolar. mais preciosas das noções muito amplas, dessas que
Como os dicionários de gíria ou do “francês abrigam de tudo — se seria ou não necessário excluir
não-convencional” revelam com toda clareza, o lé- os pequenos comerciantes e em especial os gerentes
xico dito “popular” é o conjunto de palavras ex- de restaurantes, que sem dúvida a imaginação po-
cluídas dos dicionários da língua legítima ou que pulista rejeitará mesmo que em termos de cultura e
aparecem ali afetadas por “marcas de uso” negati- língua eles estejam indiscutivelmente mais próximos
vas: fam., familiar, “isto é, corrente na língua fala- dos operários do que dos empregados e executivos
da comum e na língua escrita mas um pouco livre”; médios. E, em todo caso, é certo que o fantasma —
pop., popular, “isto é, corrente nos meios popula- mais alimentado de filmes de Carné do que de obser-
res das cidades, mas censurada ou evitada pelo con- vações — que orienta com mais freqüência a adesão
junto da burguesia cultivada” (Petit Robert, 1979, folclórica de trânsfugos nostálgicos para os represen-
p. XVII). Para definir com todo o rigor essa “língua tantes mais “puros”, mais “autênticos” do “povo”
popular” ou “não-convencional”, que seria muito exclui liminarmente todos os imigrantes, espanhóis
proveitoso passar a chamar de pop. — para impe- ou portugueses, argelinos ou marroquinos, sudaneses
dir que as condições sociais de sua produção sejam ou senegaleses, os quais, como se sabe, ocupam na
esquecidas — seria necessário precisar o que se co- população dos operários da indústria um lugar mais
loca sob a expressão “meios populares” e o que se importante do que no proletariado imaginário.2
entende por uso “corrente”. Bastaria submeter a um exame análogo as po-
Tal como os conceitos de “classes populares”, pulações que supostamente produzem ou conso-
“povo” ou “trabalhadores”, conceitos de geometria mem o que se chama de “cultura popular” para en-
variável cujas virtudes políticas se devem ao fato de contrar a confusão na coerência parcial que quase
que se pode ampliar à vontade o referente até incluir sempre recobre as definições implícitas: o “meio”,
nele — em período eleitoral, por exemplo — os cam- que desempenha um papel central no caso da “lin-
poneses, os executivos e os gerentes ou, ao contrá- guagem popular”, será aqui excluído, assim como
rio, restringi-lo somente aos operários da indústria, o lumpemproletariado, enquanto que a eliminação
isto é, aos metalúrgicos (e a seus representantes no- dos camponeses já não será tão evidente, ainda que
meados), a noção de “meios populares”, de exten- a coexistência dos operários,que são inevitáveis,
são indeterminada, deve suas virtudes mistificadoras, com camponeses não se faça sem dificuldades. No
na produção erudita, ao fato de que qualquer um caso da “arte popular”, como poderá evidenciar um
pode, como num teste projetivo, manipular incons- exame desta outra objetivação do “popular” que
cientemente essa extensão para ajustá-la aos seus são os “museus de artes e tradições populares”, o
interesses, preconceitos ou fantasmas sociais. Assim, “povo” pelo menos, até recentemente, reduzia-se
em se tratando de designar os locutores da “lingua-
gem popular”, todo mundo estará de acordo em pen-
sar sobre o “meio”, em nome da idéia segundo a qual 2 É conhecido o papel que podem desempenhar seme-
os “machões” desempenham um papel determinante lhantes exclusões, conscientes ou inconscientes, na utiliza-
na produção e circulação da gíria, decididamente ção que o nacional-socialismo faz da palavra völkisch.

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aos camponeses e aos artesãos rurais. E o que di- tão profundamente encerradas na rede de represen-
zer da “medicina popular” ou da “religião popu- tações confusas que os sujeitos sociais engendram,
lar”? Neste caso, os camponeses, ou as campone- para as necessidades do conhecimento corriqueiro
sas, são tão imprescindíveis quanto os “machões”, do mundo social e cuja lógica é a da razão mítica.
no caso da “língua popular”. A visão do mundo social e, em especial, a percep-
ção dos outros, de sua hexis corporal, da forma e
Em seu esforço de tratar como uma “língua” —
do volume de seu corpo e sobretudo de seu rosto,
isto é, com todo o rigor que se costuma reservar à lín-
mas também da sua voz, da sua pronúncia e do vo-
gua legítima — todos os que tentam descrever ou es-
cabulário, organiza-se, de fato, segundo oposições
crever o pop., lingüistas ou escritores, são condenados
interconectadas e parcialmente independentes, das
a produzir artefatos quase sem relação com o falar
quais se pode fazer uma idéia recenseando os re-
coloquial que os locutores mais estranhos à língua
cursos expressivos depositados e conservados na
legítima empregam em suas trocas internas.3 Assim,
língua, em particular no sistema de pares de adje-
para se conformar ao modelo dominante do dicioná-
tivos que os usuários da língua legítima empregam
rio, que só deve registrar palavras atestadas “por fre-
para classificar os outros e julgar sua qualidade e
qüência e duração apreciáveis”, os autores dos dicio-
nos quais o termo que designa as propriedades im-
nários do francês não-convencional apóiam-se exclu-
putadas aos dominantes representam sempre o va-
sivamente nos textos4 e, operando uma seleção no
lor positivo.6
interior de uma seleção, submetem cada linguajar em
estudo a uma alteração essencial no tocante às fre- Se a ciência social deve ter uma posição privile-
qüências que fazem toda a diferença entre as lingua- giada para a ciência do conhecimento cotidiano do
gens e os mercados nos quais o falar é mais ou menos mundo social, isso não é somente com uma intenção
tenso ou pouco à vontade;5 esquecem, entre outras coi- crítica e com vistas a desembaraçar o pensamento do
sas, que para escrever um linguajar que, tal como o mundo social de todos os pressupostos que ele tende
das classes populares, exclui a intenção literária (e não a aceitar mediante as palavras e os objetos que elas
a transcrição ou os registros), é preciso ser oriundo das constróem (‘linguagem popular’, ‘gíria’, ‘dialeto’ etc.).
situações e mesmo da condição social na qual ele é
falado; esquecem também que o interesse pelos “acha-
dos” ou o simples fato de se fazer uma adesão seleti- refere-se às conversas de um homem (“Some já daqui”), de
quem ela rapidamente diz: “É assim que ele fala, é um ve-
va, ao excluir tudo o que se encontra também na lín-
lho malandro de Paris, não tem dúvida, ele tem um jeito meio
gua padrão, confunde a estrutura das freqüências. cafajeste, com aquele boné sempre de lado, a gente logo vê!”.
Um pouco mais adiante a mesma pessoa reemprega a pala-
Se, a despeito de suas incoerências e incerte-
vra “grana” pouco depois de ter contado as conversas de
zas, e também graças a elas, as noções pertencen-
um gerente de restaurante na qual a palavra apareceu (cf.
tes à família do “popular” podem prestar muitos Y. Delsaut, 1975, p. 33-40). A análise empírica deveria li-
serviços, e até no discurso erudito, é porque elas es- mitar-se a determinar o sentimento que os locutores têm da
inclusão de uma palavra na gíria ou na língua legítima (ao
invés de impor a definição do observador) o que permiti-
ria, entre outras coisas, compreender vários traços descri-
3 Cf. H. Bauche (1920), P. Guiraud (1965), e, também,
tos como “falhas”, que são o produto de um senso de dis-
na mesma perspectiva, H. Frei [1929] (1971). tinção mal-investido.
4 Cf. J. Cellard e A. Rey (1980, p. VIII). 6 É por essa razão que, sob a aparência de girar em
5
Basta indicar, por exemplo, que no discurso colhi- círculo ou no vazio, como tantas definições circulares ou
do no mercado mais informal — uma conversa entre mu- tautológicas da vulgaridade e da distinção, a linguagem
lheres — o léxico da gíria está quase totalmente ausente; só legítima torna-se, com tanta freqüência, privilégio dos
aparece, no caso observado, quando uma das interlocutoras dominantes.

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Também esse conhecimento prático contra o qual a estruturam o mundo social segundo as categorias
ciência deve se construir — e de início esforçando-se de alto e baixo (a linguagem “baixa”), do fino e do
por objetivá-lo — é parte integrante do próprio mundo grosseiro (as palavras grosseiras), do licencioso (as
que a ciência visa a conhecer: ele contribui para fazer brincadeiras pesadas), do distinto e do vulgar, do
esse mundo contribuindo para constituir a visão que raro e do comum, da ordem e da negligência, logo,
os agentes podem ter e orientando por ela suas ações, da cultura e da natureza (não se fala de “gíria de
em particular aquelas que visam a conservá-lo ou a bandidos” e de “palavras cruas”?). São essas cate-
transformá-lo. Assim, uma ciência rigorosa da socio- gorias míticas que introduzem um corte nítido no
lingüística espontânea que os agentes operam para continuum dos linguajares, ignorando, por exem-
antecipar as reações dos outros e para impor a repre- plo, todos os entrecruzamentos do linguajar rela-
sentação que querem dar de si próprios permite, en- xado dos locutores dominantes (o fam.) e do lin-
tre outras coisas, compreender uma boa parte daqui- guajar tenso dos locutores dominados (que obser-
lo que, na prática lingüística, é o objeto ou o produto vadores como Bauche ou Frei incluem no pop.), e
de uma intervenção consciente, individual ou coleti- sobretudo a diversidade extrema dos linguajares que
va, espontânea ou institucionalizada: por exemplo, são globalmente lançados na classe negativa de “lin-
todas as correções que os locutores se impõem ou lhes guagem popular”.8
são impostas — na família ou na escola — com base Mas, por uma espécie de desdobramento pa-
no conhecimento prático, parcialmente registrado na radoxal, o que constitui um dos efeitos corriquei-
própria linguagem (o “sotaque parisiense”, “marse- ros da dominação simbólica, os próprios domina-
lhês”, “faubourgueano” ou de subúrbio* etc.), de cor- dos, ou pelo menos certas frações dentre eles, po-
respondências entre as diferenças lingüísticas e as di- dem aplicar ao seu próprio universo social princí-
ferenças sociais, bem como a partir de uma correção pios de divisão (tais como forte/fraco, submisso;
mais ou menos consciente de traços lingüísticos mar- inteligente/sensível, sensual; duro/frouxo, flexível;
cados ou identificados como imperfeitos ou falhos direito, franco/torto, astucioso, falso etc) em cuja
(notadamente em todos os hábitos lingüísticos do tipo ordem se reproduz a estrutura fundamental do sis-
“diz-que-diz-que”), ou, ao contrário, como formas de tema de oposições dominantes em matéria de lin-
valorização e distinção.7 guagem.9 Essa representação do mundo social re-

A noção de “linguagem popular” é um dos


produtos da aplicação de taxionomias dualistas que 8 Mesmo aceitando a divisão que está no princípio da
própria noção de “linguagem popular”, Henri Bauche ob-
serva que “a fala burguesa no seu uso familiar apresenta
* A tradução “sotaque parisiense” corresponde a numerosos traços comuns com a língua vulgar” (1920, p.
accent pointu que é a forma pela qual os habitantes da re- 9). E, mais adiante: “As fronteiras entre a gíria — as diver-
gião sul da França se referem à pronúncia dos parisienses, sas gírias — e a linguagem popular são algumas vezes difí-
que consideram desagradável. Sotaque “faubourgueano” ou ceis de determinar. Também são bastante vagos, por um
de subúrbio corresponde a accent faubourien, expressão que lado, os limites entre a linguagem popular e a linguagem
designa o sotaque de bairros parisienses periféricos, ditos familiar e, por outro, entre a linguagem popular propriamen-
populares. (N. T.) te dita e a linguagem de pessoas comuns, simplórias, daque-
7 Sendo determinado o papel que a sociolingüística las que, sem serem precisamente do povo, têm falta de ins-
espontânea e as intervenções expressas das famílias ou da trução ou educação: aqueles que os ‘burgueses’ qualificam
escola (que ela suscita e orienta) desempenham na manu- de simples” (idem, p. 26).
tenção ou na transformação da língua, uma análise socio- 9 Ainda que por razões complexas, e que será neces-
lingüística da mudança lingüística não pode ignorar essa sário examinar, a visão dominante não ocupe aí uma posi-
espécie de direito ou de costume lingüístico que comanda ção central, a oposição entre o masculino e o feminino é um
principalmente as práticas pedagógicas. dos princípios a partir dos quais se engendram as oposições

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tém o essencial da visão dominante por meio da cas ou outras, é dirigida tanto contra os domina-
oposição entre a virilidade e a docilidade, a força e dos “comuns” que a ela se submetem, quanto con-
a fraqueza, os verdadeiros homens, os “machos”, tra os dominantes ou, a fortiori, contra a domina-
os “valentões” e os outros, seres femininos ou efe- ção enquanto tal. A licença lingüística faz parte do
minados, destinados à submissão e ao desprezo.10 trabalho de representação e evidencia o que os “ma-
A gíria, de que é feita a “linguagem popular” por chões”, sobretudo adolescentes, devem providenciar
excelência, é o produto desse desdobramento que para impor aos outros e a si próprios a imagem do
leva a aplicar à própria “linguagem popular” os “valentão” desiludido de tudo e pronto a tudo, que
princípios de divisão dos quais ela é produto. O se recusa a ceder ao sentimento e a sacrificar-se às
sentimento obscuro de que a adequação lingüísti- fraquezas da sensibilidade feminina. E, de fato, a
ca encerra uma forma de reconhecimento e de sub- degradação sistemática dos valores morais ou esté-
missão, destinada a fazer duvidar da virilidade dos ticos, na qual todos os analistas reconhecem a “in-
homens que a ela se sacrificam,11 junto com a bus- tenção” profunda do léxico da gíria, é de início uma
ca ativa da diferença distintiva, que faz o estilo, afirmação de aristocratismo, mesmo quando con-
conduzem à recusa do “fazer demais”. Isto leva a segue, ao se difundir, corresponder à propensão de
rejeitar os aspectos mais fortemente marcados do todos os dominados a incluir a distinção, ou seja,
falar dominante, em especial as pronúncias ou as a diferença específica, no gênero comum, na univer-
formas sintáticas mais difíceis, simultaneamente a salidade do biológico, por meio da ironia, do sar-
uma pesquisa da expressividade, baseada na trans- casmo ou da paródia.
gressão das censuras dominantes — principalmen- Forma distinta — aos próprios olhos de alguns
te em matéria de sexualidade — sobre uma vonta- dominantes — da linguagem “vulgar”, a gíria é o
de de se distinguir das formas de expressão corren- produto de uma busca de distinção, mas dominada
tes.12 A transgressão das normas oficiais, lingüísti- e condenada; daí produzir efeitos paradoxais, que
não podem ser compreendidos, encerrando-os na
alternativa da resistência ou da submissão, que co-
mais típicas do “povo” como massa fêmea, versátil e ávida manda a reflexão comum sobre a “linguagem (ou a
de prazer (segundo a antítese da cabeça e do ventre). cultura) popular”. Basta, com efeito, sair da lógica
10 É o que faz a ambigüidade da exaltação do falar da visão mítica para perceber os efeitos de contra-
“autêntico”: a visão de mundo que aí se exprime e as virtu- finalidade que são inerentes a toda posição domina-
des viris dos “machões” acham seu prolongamento natural
da; uma vez que a busca de distinção leva os domi-
no que tem sido chamado “direito popular” (cf. Z. Sternhell,
nados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo
1978), combinação fascistóide de racismo, nacionalismo e
autoritarismo. E compreende-se melhor a aparente bizarrice mesmo em nome do que são dominados e constituí-
que representa o caso de Céline. dos como vulgares, segundo uma lógica análoga à
11 Tudo parece indicar que, com o prolongamento da que leva os grupos estigmatizados a reivindicarem
escolaridade, o personagem do “machão” se constitui hoje o estigma como princípio de sua identidade, é neces-
a partir da escola e contra todas as formas de submissão que sário falar de resistência? E quando, inversamente,
ela impõe. eles trabalham para perder o que os marca como
12 O que leva a excluir inconscientemente a própria vulgares e para se apropriar do que lhes permite se-
possibilidade de uma diferença (de tato, de invenção, de rem assimilados, pode-se falar de submissão?
competência etc.) e de uma busca de diferença é um dos
efeitos do racismo de classe, para o qual todos os “pobres”,
como os amarelos e os negros, se assemelham. A exaltação
indiferenciada do “popular” que caracteriza o populismo seiras ou, o que dá no mesmo, pode levar a reter apenas aqui-
pode conduzir, assim, a um êxtase ingênuo diante de mani- lo que foge ordinariamente do “comum” e a considerá-lo
festações que os “nativos” julgam ineptas, imbecis ou gros- como representativo da linguagem ordinária.

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Para escapar aos efeitos do modo de pensamen- duz a audácias desesperadas do aristocratismo de
to dualista que leva a opor uma linguagem “padrão”, pária, são um modo de fazer parte de um mundo
medida de toda linguagem, e uma linguagem “po- sem saída, dominado pela miséria e pela lei da sel-
pular”, é preciso voltar ao modelo de toda produ- va, a discriminação e a violência, onde a moralidade
ção lingüística e redescobrir o princípio da extrema e a sensibilidade não trazem nenhum proveito.13 A
diversidade dos linguajares que resulta da diversidade moral que constitui a transgressão como dever im-
de combinações possíveis entre as diferentes classes põe uma resistência ostensiva às normas oficiais,
de habitus lingüísticos e de mercados. Entre os fatores lingüísticas ou outras, que só pode ser mantida per-
determinantes do habitus que parecem pertinentes manentemente ao preço de uma tensão extraordi-
do ponto de vista da propensão a reconhecer (no nária e, sobretudo para os adolescentes, com o re-
duplo sentido) as censuras constitutivas dos merca- forço constante do grupo. Como o realismo popu-
dos dominantes ou a se beneficiar das liberdades ne- lar, que supõe e produz o ajustamento das esperan-
cessárias oferecidas por alguns mercados livres de ças às oportunidades, ela constitui um mecanismo
uma parte, e, de outra parte, da capacidade de sa- de defesa e de sobrevivência: aqueles que têm obri-
tisfazer às exigências de uns e de outros, pode-se as- gação de se colocar fora da lei para obter as satis-
sim apontar: o sexo, princípio de relações muito di- fações que outros obtém nos limites da legalidade
ferenciadas com os diferentes mercados possíveis — conhecem bem o alto custo da revolta. Como bem
e, em particular, no mercado dominante —; a gera- observa Paul E. Willis (1978, especialmente p. 48-
ção, isto é, o modo de geração, familiar e sobretudo 50), as poses e posturas de bravata (por exemplo,
escolar, da competência linguística; a posição social, com relação à autoridade e diante da polícia) po-
caracterizada, principalmente, do ponto de vista da dem coexistir com um conformismo profundo para
composição social do meio de trabalho e das trocas tudo o que toca às hierarquia, e não somente entre
socialmente homogêneas (com os dominados) ou he- os sexos; e a dureza ostentatória que impõe o res-
terogêneas (com os dominantes, no caso, por exem- peito humano não exclui de maneira simples a nos-
plo, do pessoal do setor de serviços) que ela favore- talgia da solidariedade, isto é, da afeição que, ao
ce; a origem social, rural ou urbana e, nesse caso, an- mesmo tempo, plena e reprimida pelas trocas alta-
tiga ou recente e, enfim, a origem étnica. mente censuradas do bando, exprime-se ou se trai
Certamente, é com os homens e, entre eles, nos momentos de abandono. A gíria — e aqui está,
com os mais jovens e os menos integrados, atual- com o efeito de imposição simbólica, uma das ra-
mente e sobretudo de forma potencial, na ordem zões de sua difusão, bem além dos limites do “meio”
econômica e social, como os adolescentes oriundos propriamente dito — constitui uma das expressões
de famílias imigradas, que se encontra a recusa mais exemplares e, se pudermos dizer ideais, com a qual
marcante à submissão e à docilidade implicadas na a expressão propriamente política deverá contar,
adoção de maneiras de falar legítimas. A moral da isto é, compor, da visão edificada, no essencial, con-
força — que encontra seu complemento no culto da tra a “fragilidade” e a “submissão” femininas (ou
violência e nos jogos quase-suicidas, moto, álcool
ou drogas pesadas, onde se afirma a relação com o
futuro para aqueles que nada têm a esperar do fu- 13 Os jovens “machões” oriundos de famílias imi-
turo — é, sem dúvida, apenas uma das maneiras de gradas representam sem dúvida, um limite ao qual podem
fazer da necessidade, virtude. A opção ostensiva chegar até a recusa total da sociedade “francesa”, simboli-
zada pela escola e também pelo racismo cotidiano; repre-
pelo realismo e pelo cinismo, a recusa ao sentimento
sentam a revolta de adolescentes oriundos de famílias mais
e à sensibilidade, identificadas a uma compaixão desprovidas econômica e culturalmente que, com freqüên-
feminina ou efeminada, essa espécie de dever de cia, encontra sua origem nas dificuldades, decepções ou
dureza, tanto para si como para os outros, que con- fracassos escolares.

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efeminadas), que os homens mais desprovidos de dotados de capital econômico e cultural, sem dú-
capital econômico e cultural têm da sua identida- vida, têm uma sensibilidade para as exigências do
de viril e de um mundo social inteiramente ordena- mercado dominante e uma capacidade para respon-
do sob o signo da dureza.14 der a elas que as aproxima da pequena burguesia.
Quanto ao efeito da geração, este se confunde no
É preciso cuidado, entretanto, para não ignorar
essencial com o efeito das transformações do modo
as transformações profundas que sofrem, em sua fun-
de geração, isto é, do acesso ao sistema escolar que,
ção e sua significação, as palavras ou as locuções em-
sem dúvida, representa o mais importante dos fa-
prestadas quando passam para o linguajar comum das
tores de diferenciação entre as idades. Entretanto,
trocas cotidianas. Nesse sentido alguns dos produtos
não é certo que a ação escolar exerça o efeito de
mais típicos do cinismo aristocrático dos “machões”
homogeneização das competências que ela se atri-
podem, em seu uso comum, funcionar como uma es-
bui e que se tem tentado imputar-lhe. De início,
pécie de convenção neutralizada e neutralizante que
porque as normas escolares de expressão, mesmo
permite aos homens dizer, nos limites de uma estrito
quando aceitas, podem permanecer circunscritas,
pudor, a afeição, o amor, a amizade, ou simplesmen-
em sua aplicação, às produções escolares orais e
te nomear os seres amados, os pais, os filhos, a espo-
sobretudo escritas. A seguir, porque a Escola ten-
sa (o uso, mais ou menos irônico, de termos de refe-
de a distribuir os alunos em classes tão homogêneas
rência como “a patroa”, “rainha-mãe” ou “minha
quanto possível, segundo os critérios escolares e,
burguesa” permitem, por exemplo, escapar às formas
correlativamente, do ponto de vista dos critérios so-
“minha mulher” ou o simples prenome, percebidos
ciais, de maneira que o grupo dos pares tende a exer-
como familiares demais).15
cer efeitos de tal natureza que, conforme se desce
No extremo oposto na hierarquia das dispo- na hierarquia social dos estabelecimentos e ciclos,
sições com relação à linguagem legítima estariam, e, portanto das origens sociais, a oposição aos efei-
sem dúvida, as mais jovens e as mais escolarizadas tos produzidos pela ação pedagógica é mais forte.
entre as mulheres, que, mesmo ligadas pelo ofício E enfim porque, paradoxalmente, ao criar grupos
ou pelo casamento ao universo de agentes pouco duráveis e homogêneos de adolescentes em ruptura
com o sistema escolar e, através dele, com a ordem
social, colocados em situação de quase inatividade
14
Manifestação exemplar desse princípio de classifi- e de irresponsabilidade prolongada,16 — esses agru-
cação e da amplitude de seu campo de aplicação, é o caso pamentos homogêneos aos quais são relegadas as
daquele pedreiro (antigo mineiro) que, convidado a classi- crianças das classes mais desprovidas e, principal-
ficar os nomes de profissões (num teste concebido sobre o
mente, os filhos de imigrantes, sobretudo magre-
modelo de técnicas empregadas para a análise componencial
binos — tem-se, sem dúvida, contribuído para ofe-
de termos de parentesco) e a dar um nome para as classes
assim produzidas, exclui com um gesto de mão o conjunto recer as condições mais favoráveis à elaboração de
das profissões superiores, cujo paradigma para ele era o uma espécie de “cultura delinqüente”, que se expri-
apresentador de televisão, dizendo: “todos pederastas” (Pes- me, entre outras manifestações, por um linguajar em
quisa de Yvette Delsaut, Denain, 1978). ruptura com as normas de linguagem legítima.
15
De modo mais geral, pelo fato de que a evocação Ninguém pode ignorar completamente a lei
mais ou menos brutal das coisas sexuais e a projeção ate- lingüística ou cultural e todas as vezes que os do-
nuante do sentimental sobre o plano do fisiológico com fre-
qüência têm o valor de eufemismos por hipérbole ou antí-
frase e que, inversamente e por meio da negação, dizem mais 16 O equivalente dessa situação só se encontra sob a
por dizer menos, é que esse léxico muda completamente de forma do serviço militar, que era, sem dúvida, um dos prin-
sentido ao mudar de mercado, com a transcrição romanes- cipais lugares da produção e da inculcação de formas de falar
ca ou a adesão lexicológica. da gíria.

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minados entram numa troca com os detentores da formas mais pesquisadas (da gíria) decresce à me-
competência legítima e, sobretudo, quando se en- dida que decresce a tensão dos mercados de com-
contram em situação oficial, eles são condenados petência lingüística dos locutores: mínima nas tro-
a um reconhecimento prático, corporal, de leis de cas privadas e familiares (nesse caso, estão em pri-
formação de preços os mais desfavoráveis às suas meiro lugar as trocas no seio da família), onde a
produções linguísticas, que os condenam a um es- independência em relação às normas do linguajar
forço mais ou menos desesperado de correção ou legítimo marca-se sobretudo pela liberdade, mais ou
ao silêncio. Em todo caso, pode-se classificar os menos plena, de ignorar as convenções e as conve-
mercados com os quais se defrontam segundo seu niências do linguajar dominante, sem dúvida, ela
grau de autonomia: desde os mais completamente encontra o apogeu nas trocas públicas (quase ex-
submetidos às normas dominantes (como aqueles clusivamente masculinas) que impõem uma verda-
que se instauram na relação com a justiça, a medi- deira pesquisa estilística, como os torneios verbais
cina ou a escola) até os mais completamente livres e lances ostentatórios de certas conversas de café.
dessas leis (como aqueles que se constituem nas pri- Apesar da enorme simplificação que supõe,
sões ou em bandos de jovens). A afirmação de uma esse modelo evidencia a extrema diversidade dos
contralegitimidade lingüística e, ao mesmo tempo, discursos gerados, praticamente, na relação entre as
a produção de discursos fundada na ignorância mais diferentes competências lingüísticas corresponden-
ou menos deliberada das convenções e das conve- tes às diferentes combinações de características vin-
niências características dos mercados dominantes culadas aos produtores e às diferentes classes de
são possíveis apenas nos limites dos mercados livres, mercados. Mas, o modelo permite, por sua vez, es-
regidos por leis de formação de preços que lhes são boçar o programa de uma observação metódica e
próprias, isto é, nos espaços próprios das classes reconhecer os casos das figuras mais significativas,
dominadas, antros ou refúgios de excluídos — dos entre as quais se situam todas as produções lin-
quais os dominantes são de fato excluídos, ao me- güísticas dos locutores mais desprovidos de capital
nos simbolicamente —, e para os detentores habi- lingüístico: primeiramente, as modalidades de dis-
tuais dotados da competência social e lingüística que cursos oferecidas por virtuoses nos mercados livres
é reconhecida nesses mercados. A gíria do “meio”, mais tensos — isto é, públicos — e em especial, a
enquanto transgressão real dos princípios funda- gíria. Em segundo lugar, estariam as expressões pro-
mentais da legitimidade cultural, constitui uma afir- duzidas pelos mercados dominantes, ou seja, pelas
mação conseqüente de uma identidade social e cul- trocas privadas entre dominantes e dominados ou
tural, não somente diferente, mas oposta, e a visão pelas situações oficiais que podem tomar a forma
de mundo que aí se exprime representa o limite para da palavra embaraçada ou confusa pelo efeito da
o qual tendem os membros (masculinos) das clas- intimidação ou do silêncio, a única forma de expres-
ses dominadas nas trocas lingüísticas internas à clas- são que, com freqüência, resta aos dominados. E
se e, em especial, nas mais controladas e regulares enfim, os discursos produzidos pelas trocas familia-
dessas trocas, como aquelas do café, que são domi- res e privadas — por exemplo, entre mulheres —,
nadas por completo pelos valores da força e da vi- essas duas últimas categorias de discursos sendo
rilidade, um dos únicos princípios de resistência sempre excluídas por aqueles que, ao caracterizar
eficaz, junto com a política, contra as maneiras do- as produções lingüísticas pelas características úni-
minantes de falar e agir. cas dos locutores, deveriam, segundo a boa lógica,
Os próprios mercados internos se distinguem incluí-los na “linguagem popular”.
segundo a tensão que os caracteriza e, simultanea- O efeito de censura que exerce todo mercado
mente, segundo o grau de censura que impõem, e relativamente tenso exerce pode ser observado no
pode-se levantar a hipótese de que a freqüência das fato de que as conversas em lugares públicos reser-

Revista Brasileira de Educação 23


Pierre Bourdieu

vados (pelo menos em certas horas) aos homens adul- versa mantida depende da qualidade dos participan-
tos das classes populares, como alguns cafés, são tes, que depende, por sua vez, da qualidade da con-
fortemente ritualizadas e submetidas a regras estri- versação, logo, de quem está no centro e deve saber
tas: não se vai ao bar somente para beber, mas tam- negar a relação mercantil, afirmando sua vontade e
bém para participar ativamente de um divertimen- sua capacidade de se inscrever como um participante
to coletivo capaz de proporcionar aos participantes comum no circuito das trocas — com a “ronda do
um sentimento de liberdade com relação às necessi- gerente” ou os jogos de dados oferecidos aos fregue-
dades comuns, de produzir uma atmosfera de eufo- ses habituais — e assim contribuir para colocar em
ria social e de gratuidade econômica para a qual o suspenso as necessidades econômicas e as obrigações
consumo de álcool, com certeza, só pode contribuir. sociais, que se espera do culto coletivo da boa vida.18
Estão lá para rir e fazer rir e cada um deve, na me- É compreensível que o discurso articulado nesse
dida de suas condições, lançar na troca suas boas mercado só aparente liberdade total e naturalidade
palavras e brincadeiras, ou no mínimo, levar sua con- absoluta para aqueles que ignoram as regras ou os
tribuição à festa, colaborando com o sucesso de ou- princípios: assim, a eloqüência apreendida pela per-
tros pelo reforço ao riso, com exclamações de apro- cepção externa como uma espécie de verve desabri-
vação (“Ah! É isso aí!”). A posse de um talento de da não é nem mais nem menos livre em seu gênero
animador, capaz de encarnar, ao preço de um tra- do que as improvisações da eloqüência acadêmica.
balho consciente e constante de pesquisa e acumu- Ela não ignora nem a busca do efeito, nem a aten-
lação, o ideal do “tipo brincalhão”, que traz em si ção ao público e às suas reações, nem as estratégias
uma forma aprovada de sociabilidade, é uma forma retóricas destinadas a captar benevolência ou com-
de capital muito precioso. Nesse sentido, o bom ge- placência; ela se apóia nos esquemas de invenção e
rente de bar acha na sabedoria das convenções ex- expressão considerados mais próprios a dar àque-
pressivas, conveniente a esse mercado, brincadeiras, les que não os possuem o sentimento de assistir a
boas histórias, jogos de palavras que sua posição manifestações fulgurantes da fineza de análise ou da
permanente e central lhe permite adquirir e exibir. lucidez psicológica ou política. Pela enorme redun-
E também acha no seu conhecimento especial das dância que sua retórica permite, pelo lugar que dá
regras do jogo e das particularidades de cada um dos à repetição de formas e fórmulas rituais que são as
jogadores, dos prenomes, apelidos, manias, defeitos, manifestações obrigatórias de uma “boa educação”,
especialidades e talentos de que pode tirar partido, pelo recurso sistemático às imagens concretas do
os recursos necessários para suscitar, entreter e tam- mundo conhecido, pela obstinação excessiva com
bém conter, por apelos ou discretos chamados à or- que reafirma, até mesmo na renovação formal, os
dem, as trocas capazes de produzir a atmosfera de
efervescência social que seus clientes vêm procurar
e que se deve oferecer a eles17. A qualidade da con- ser exercida até mesmo no plano político, ainda que o tema
seja tacitamente tabu nas conversas dos cafés — em razão
da comodidade e da segurança que detêm graças, entre ou-
17 O pequeno comerciante e, sobretudo, o gerente de tras coisas, à sua disponibilidade econômica.
restaurante, particularmente quando detém as virtudes da 18 Seria necessário verificar se, além dos gerentes dos
sociabilidade que fazem parte dos requisitos profissionais, cafés, os comerciantes e, em particular, os profissionais da
não são objeto de nenhuma hostilidade previsível ou regu- “boa conversa” e da “lábia” — os camelôs e os vendedo-
lar por parte dos operários (contrariamente ao que tendem res ambulantes de feiras e mercados, e também os açouguei-
a supor os intelectuais e os membros da pequena burguesia ros e os cabeleireiros, num estilo diferente, qual seja, que
com capital cultural, que deles estão separados por uma corresponde a estruturas de interação diferentes —, não
verdadeira barreira cultural). Eles dispõem, com bastante contribuem mais do que os operários, simples produtores
freqüência, de uma certa autoridade simbólica — que pode ocasionais, para a produção de invenções ou achados.

24 Jan/Fev/Mar/Abr 1996 Nº 1
Você disse “popular”?

valores fundamentais do grupo, esse discurso expri- pular”, é preciso dizer que a forma mais freqüente
me e reforça uma visão de mundo profundamente dessa linguagem é o silêncio. De fato, é ainda segundo
estável e rígida. Nesse sistema de evidências, incan- a lógica da divisão do trabalho entre os sexos que
savelmente reafirmadas e coletivamente garantidas, se resolve a contradição resultante da necessidade de
que assinala para cada classe de agentes sua essên- afrontar os mercados dominantes sem se sacrificar
cia, logo, seu lugar e sua categoria, a representação à busca de correção. Por se admitir (e de início en-
da divisão do trabalho entre os sexos ocupa um lu- tre as mulheres, que podem fingir deplorá-lo) que o
gar central, talvez porque o cultivo da virilidade, isto homem é definido pelo direito e dever de constân-
é, da rudeza, da força física e da grosseria ríspida, cia a si, que é constitutivo de sua identidade (“eu sou
instituída como recusa eletiva do refinamento efe- como sou”) e pode manter-se num silêncio próprio
minado, seja uma das maneiras mais eficazes de lutar a lhe permitir salvaguardar sua dignidade viril, ele
contra a inferioridade cultural na qual se encontram incumbe freqüentemente a mulher — socialmente
todos aqueles que se sentem desprovidos de capital definida como flexível e submissa por natureza —
cultural, sejam ou não ricos de capital econômico, de fazer o esforço necessário para afrontar as situa-
como os comerciantes.19 ções perigosas: receber o médico, descrever-lhe os sin-
No extremo oposto, na classe dos mercados tomas e discutir com ele acerca do tratamento, to-
abertos, o mercado de trocas entre familiares (e es- mar as providências junto à professora ou à assis-
pecialmente entre mulheres) distingue-se pelo fato tência social etc.20 Segue-se que as “falhas” ligadas
de que a própria idéia de busca e de efeito está qua- por princípio a uma busca infeliz de correção ou a
se ausente, de maneira que o discurso que aí circula uma preocupação de distinção mal-orientada e que,
difere na forma, como se viu, daquele das trocas pú- como todas as palavras deformadas, principalmen-
blicas do café: é na lógica da privação, mais do que te as médicas, são substituídas sem piedade pelos pe-
na da recusa, que ele se define com relação ao dis- queno-burgueses — e pelas gramáticas da “lingua-
curso legítimo. Quanto aos mercados dominantes, gem popular” — são, sem dúvida, muito freqüen-
públicos e oficiais ou privados eles sugerem, aos mais tes entre as mulheres (e elas podem ser xingadas por
desprovidos econômica e culturalmente, problemas “seus” homens — o que ainda é uma maneira de re-
tão difíceis que, a se ater à definição dos linguajares meter as mulheres à sua “natureza” de afetadas e de
fundados nas características sociais dos locutores que causadoras de embaraços).21
adotam implicitamente as formas da “linguagem po- De fato, mesmo nesse caso, as manifestações de
docilidade jamais são destituídas de ambivalência e
sempre ameaçam retornar como agressividade à me-
19 Essa representação assinala, no masculino, uma na- nor “resposta brusca”, ao menor sinal de ironia ou
tureza social — a do homem “resistente” e “incansável”, ava- de distância que converta os homens em homena-
ro de confidências e que recusa os sentimentos e as sensibi-
gens obrigatórias da dependência estatutária: aquele
lidades exageradas, sólido e inteiro, “íntegro”, franco e con-
fiável, “com o qual se pode contar” etc. —, que a dureza
das condições de existência lhe impuseram, mas que ele se
20 É óbvio que essas condutas estão sujeitas a varia-
sente no dever de escolher porque ela se define por oposição
à “natureza” feminina, fraca, doce, dócil, submissa, frágil, ções segundo o nível de instrução da mulher e, sobretudo
cambiante, sensível, sensual, e ao “invertido” (“contrário à talvez, segundo a diferença de níveis de instrução entre os
natureza”, efeminado). Esse princípio de divisão atua no seu esposos.
campo de aplicação específico, isto é, no domínio das relações 21 Observa-se que, segundo essa lógica, as mulheres
entre os sexos, e também de uma maneira muito geral, im- têm sempre suas razões em sua natureza (meio confusa). Os
pondo aos homens uma visão estrita, rígida, em uma pala- exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito: no caso em
vra, essencialista, de sua identidade e, mais geralmente, de que a mulher é incumbida de resolver algo, se ela tem êxito
outras identidades sociais, para além de toda ordem social. é porque era fácil; se fracassa é porque não soube fazê-lo.

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Pierre Bourdieu

que, ao entrar numa relação social muito desigual, Assim, parece que as produções lingüísticas e
adota de modo bastante visível a linguagem e as ma- culturais dos dominados variam profundamente se-
neiras apropriadas, expõe-se a ser constrangido a gundo sua inclinação e atitude para beneficiar-se das
pensar e a viver a reverência escolhida como submis- liberdades reguladas oferecidas pelos mercados li-
são obrigatória ou servilidade interessada. A imagem vres, ou para aceitar as obrigações impostas pelos
do empregado doméstico, que deve uma adequação mercados dominantes. Isso explica que, na realidade
ostensiva às normas dominantes da conveniência ver- polimorfa obtida ao se considerar todos os lingua-
bal e dos uniformes, persegue todas as relações en- jares produzidos por todos os mercados para todas
tre dominados e dominantes, e principalmente as as categorias de produtores, cada um daqueles que
trocas de serviços, como testemunham os problemas se sente no direito ou no dever de falar do “povo”
quase insolúveis colocados pela “remuneração”. É pode encontrar um suporte objetivo para seus in-
por isso que a ambivalência com relação aos domi- teresses ou seus fantasmas.
nantes e seu estilo de vida — tão freqüente entre os
homens que exercem funções no serviço doméstico,
PIERRE BOURDIEU (1930) é professor do Collège
os quais oscilam entre a inclinação à resignação an-
de France desde 1982, cadeira de Sociologia. Dentre seus
siosa e a tentação de se permitir familiaridades que
inúmeros livros destacam-se La reproduction (1970), Leçon
degradam os dominantes alçando-se até eles — re- sur la leçon (1982), Homo academicus (1984), La noblesse
presenta, sem dúvida, a verdade e o limite da rela- d’État: grandes écoles et espirit de corps. (1989), Réponses:
ção que os homens mais desprovidos de capital lin- por une anthropologie réflexive (1992), La misère du monde
güístico e destinados à alternativa da grosseria e da (1993) e Raisons pratiques: sur la théorie de l’action (1994).
Vários de seus livros estão traduzidos para o português e o
servilidade mantêm com o modo de expressão do-
mais recente foi editado entre nós em 1996, A economia das
minante.22 Paradoxalmente, é apenas nas ocasiões
trocas linguísticas: o que falar quer dizer (original de 1992).
em que a solenidade justifica a seus olhos que eles
se situem no registro mais nobre, sem se sentirem
ridículos ou servis — por exemplo, para falar do seu
Referências bibliográficas
amor ou para manifestar sua simpatia no luto —, que
eles podem adotar a linguagem mais convencional,
BAUCHE, H. (1920). Le langage populaire: Grammaire,
porém a única conveniente por seu sentido para dizer syntaxe et vocabulaire du français tel qu’on le parle dans
as coisas graves, isto é, nas próprias ocasiões em que le peuple de Paris, avec tous les termes d’argot usuel. Pa-
as normas dominantes sugerem que se abandone as ris: Payot.
convenções e todas as fórmulas feitas para manifestar CELLARD, J. & REY, A. (1980). Dictionnaire du français
a força e a sinceridade dos sentimentos. non conventionnel. Paris: Hachette.
DELSAUT, Y. (1975). “L’économie du langage populaire”.
Actes de la recherche en sciences sociales 4, jul.
22 A intenção de infringir uma marca simbólica (pela
FREI, H. ([1929] 1971). La grammaire des fautes. Paris/
injúria, pela tagarelice ou pela provocação erótica, por exem-
Genebra: Slatkine Reprints.
plo) ao que é percebido como inacessível guarda a mais ter-
rível confissão de reconhecimento de superioridade. Assim, GUIRAUD, P. (1965). Le français populaire. Paris: Presses
como bem mostra Jean Starobinsky (1970, p. 98-154), “a Universitaires de France. Col. Que sais-je?, n° 1172.
conversa grosseira, longe de preencher a diferença entre os STAROBINSKY, Jean (1970). La relation critique. Paris:
segmentos sociais, a mantém e agrava, sob o colorido de Gallimard.
irreverência e de liberdade, transborda no sentido da degra-
STERNHELL, Z. (1978). La droite revolutionnaire, 1885-
dação, é a autoconfirmação da inferioridade” (refere-se às
1915: Les origines françaises du fascisme. Paris: Seuil.
conversas dos domésticos a propósito de Mademoiselle de
Breil; cf. J.J. Rousseau, Confessions, III, in Oeuvres Com- WILLIS, P.E. (1978). Profane Culture. London: Routledge
plètes, Paris, Gallimard; Pléiade, 1959, p. 94-96). and Kegan Paul.

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