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A RAINHA DO IGNOTO, DE EMÍLIA FREITAS:

DO FANTÁSTICO À UTOPIA

Aline Sobreira de Oliveira* * aline.sobreira1@gmail.com


Doutoranda em Estudos Literários pela UFMG.

RESUMO: A literatura fantástica desenvolvida entre fins do RÉSUMÉ: La littérature fantastique développée entre la fin
século XVIII e fins do século XIX, fruto das tensões entre o du XVIIIe siècle et la fin du XIXe siècle, le résultat de tensions
espírito racionalista do Iluminismo e o renascimento do ir- entre le rationalisme des Lumières et la renaissance du irra-
racional impulsionado por correntes místicas e ocultistas do tionnel entraînée par les courants mystiques et occultistes de
pensamento, foi pouco aberta a protagonistas femininas: de la pensée, ce était juste ouvert aux protagonistes féminins:
fato, em geral, a mulher aparece, em tais narrativas, como en fait, en général, la femme apparaît dans ces récits comme
espectro do mal, cúmplice de Satã, mensageira da ameaça à un spectre du mal, une complice de Satan, une messagère
estabilidade do homem e do real. Em A Rainha do Ignoto, de que menace la stabilité de l’homme et du réel. Dans A Rainha
Emília Freitas, publicado originalmente em 1899, assistimos do Ignoto, de Emília Freitas, publié à l’origine en 1899, nous
a uma reversão do papel comumente destinado às persona- voyons un renversement des rôles généralement destinés
gens femininas em narrativas não realistas do século XIX: de à des personnages féminins dans les récits irréalistes du
mensageiras do mal, elas passam a agentes do bem, atuando XIXe siècle: au lieu de messagères du mal, elles deviennent
na interseção entre magia e técnica. Tal deslocamento na agents du bien, travaillant dans l’intersection entre la magie
representação da figura feminina está atrelado a um deslo- et la technique. Ce changement dans la représentation de la
camento na própria narrativa – do fantástico à utopia –, o que figure féminine est liée à un changement dans le récit – l’uto-
conduz à reflexão sobre a relação entre gêneros literários e pie fantastique – ce qui conduit à une réflexion sur la relation
representações do feminino e, em última instância, sobre a entre les genres littéraires et las représentations féminins et,
utopia como forma de resistência frente ao apagamento ou finalement, sur l’utopie comme une forme de résistance en
à demonização da mulher em narrativas não realistas. face de la suppression du féminin, autant que sa diabolisation,
dans les récits non réalistes.​
PALAVRAS-CHAVE: Emília Freitas; Literatura fantástica;
Utopia. MOTS-CLÉS: Emília Freitas; Littérature fantastique; Utopie.
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INTRODUÇÃO Constância Lima Duarte, no sentido amplo de “todo gesto ou


Esquecido por décadas, até a publicação de sua segunda ação que resulte em protesto contra a opressão e a discrimina-
edição, em 1980,1 o romance A Rainha do Ignoto: romance psi- ção da mulher, ou que exija a ampliação de seus direitos civis e
1. Essa segunda edição foi realizada
pelo professor Otacílio Colares, cológico, da escritora cearense Emília Freitas, publicado ori- políticos, seja por iniciativa individual, seja de grupo”.4
4. DUARTE. Feminismo e literatura
da Universidade Federal do ginalmente em 1899, destaca-se por apresentar uma série de A obra ganha contornos ainda mais incomuns por desen- no Brasil, [s.p.].
Ceará. Neste trabalho, utilizo
a terceira edição do romance, características peculiares, as quais têm justificado o crescente volver um enredo repleto de elementos insólitos, um solo que
organizada pela professora interesse pela obra. também não era dos mais férteis na literatura brasileira da
Constância Lima Duarte, da
Universidade Federal de Minas Saliente-se, inicialmente, o fato de não apenas ser uma obra época. Tendo em vista as limitações deste trabalho e a com-
Gerais. Segundo a organizadora,
nas “Observações sobre a de autoria feminina, como também de desenvolver uma espécie plexidade do tema, não é possível, aqui, retomar em detalhes 5. Sobre a presença do fantástico
presente edição” que antecedem de defesa dos direitos e do bem-estar da mulher – além de decla- o desenvolvimento do fantástico na literatura brasileira no na literatura brasileira, ver, entre
o texto de Freitas, Duarte revela
rar, a partir de determinado ponto da narrativa, a superioridade século XIX. É possível, contudo, salientar que o cenário das outros estudos: LOPES, Hélio.
que a terceira edição passou Literatura fantástica no Brasil.
por um cuidadoso trabalho de feminina –, elementos pouco comuns na literatura brasileira do letras nacionais oitocentistas estava pouco aberto a manifes- In: _____. Letras de Minas e
cotejo com o que se encontrou século XIX. Quanto ao primeiro ponto, informa-nos Alcilene tações “não realistas” na ficção, tendo em vista tanto o projeto outros ensaios. Organização de
da primeira edição da obra, Alfredo Bosi. São Paulo: EDUSP,
corrigindo problemas gerados na Cavalcante2 que A Rainha do Ignoto é o primeiro romance de de formação da literatura nacional como a pouca “memória 1997. p. 265-278. (Ensaios de
segunda edição. autoria feminina publicado no Ceará; no plano nacional, sa- literária” do país, considerada um elemento indispensável na Cultura; 9); GABRIELLI, Murilo
Garcia. O lugar do fantástico na
2. CAVALCANTE. Uma escritora na bemos que diversos fatores ideológicos e sociais contribuíram constituição de uma literatura diversificada e que se permita literatura brasileira. Itinerários,
periferia do Império: vida e obra para que as mulheres fossem mantidas à margem da vida inte- desancorar do plano da realidade empírica e das questões da Araraquara, n. 19, p. 25-33,
de Emília Freitas.
lectual, sendo, portanto, escassos os nomes femininos a despon- ordem do dia e alçar voos mais altos na imaginação.5 2002; VOLOBUEF, Karin. E. T.
A. Hoffmann e o romantismo
tarem no cenário literário nacional, de modo que somente um Ressalte-se, ainda, o estranhamento causado pelo tom ul- brasileiro. Forum Deutsch, Rio de
recente esforço arqueológico tem tirado do esquecimento di- trarromântico (mesmo que contrastando com sua incisiva
Janeiro, v. 6, p. 103-113, 2002;
OLIVEIRA, Aline Sobreira de. A
versas mulheres que naquele momento se dedicaram às letras.3 crítica social) empregado por Freitas em seu romance, em medalha e seu reverso: fantástico
3. CASTANHEIRA. Escritoras
brasileiras: percursos e percalços Com relação ao segundo ponto, é possível dizer, sem grande uma fase da literatura brasileira já de transição entre os valo-
e desfantasticização em contos
de Machado de Assis. 2012.
de uma árdua trajetória. risco de incorreção, que se trata de um dos primeiros romances res realistas e naturalistas para a ficção do chamado pré-mo- 162 f. Dissertação (Mestrado em
feministas da literatura brasileira – desde que consideremos o dernismo. Se na poesia os ecos da literatura gótica ainda se Estudos Literários) – Faculdade
termo “feminismo” não no sentido de movimento articulado de Letras, Universidade Federal
faziam ouvir nos versos de um Augusto dos Anjos (ainda que de Minas Gerais, Belo Horizonte,
entre mulheres com agendas específicas, mas, como propõe 2012.

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mesclados ao imaginário orgânico de seu cientificismo par- exaustiva do romance, apenas destacando as linhas mestras
ticular), na ficção o cenário era um tanto adverso aos temas, da produção literária de Emília Freitas, em paralelo com sua
às idealizações e às ambientações da segunda fase românti- biografia. As poucas apreciações críticas sobre a obra, re-
ca: superada, em grande parte, a rigidez do naturalismo que conhecendo sua natureza singular, aproximam o romance,
marcou a década de 1880, a ficção brasileira abria espaço especialmente, à literatura fantástica, ao gótico e à ficção
para escritores de diversificada verve crítica e realista, como científica,6 mas sem se deter na conceituação desses termos.
6. COELHO. A literatura feminina no
Graça Aranha, Euclides da Cunha e Lima Barreto. A figura Brasil: das origens medievais ao
Neste trabalho, desenvolvo muito brevemente a hipó-
da donzela refletida em Carlotinha e a composição hiperi- século XX; DUARTE. A Rainha
tese de que o romance apresenta duas linhas de força dis- do Ignoto ou a impossibilidade
dealizada de Diana/Funesta/Rainha do Ignoto são exemplos
tintas e bastante marcadas: de um lado, uma narrativa de da utopia; CAVALCANTE. Uma
de como certos traços da narrativa de Freitas estão como que escritora na periferia do Império:
cunho fantástico; de outro, uma narrativa de cunho utó- vida e obra de Emília Freitas.
deslocados no tempo, habitando um universo literário já há
pico. Sem se estabelecer definitivamente em nenhum des-
muito saturado desse tipo de personagem.
ses terrenos – a narrativa fantástica está imiscuída em uma
A Rainha do Ignoto ainda está à espera de leituras de fôlego espécie de romance de costumes, o que sem dúvida dilui a
que se debrucem sobre sua composição. Tendo tido escassa força de seus efeitos; sua contrapartida utópica não toca em
repercussão à época de sua primeira edição, e considerando temas comumente encontrados nesse tipo de ficção, como
seu hiato de cerca de 80 anos, apenas recentemente têm sur- os relativos às formas de governo e à organização social –,
gido comentários críticos sobre o romance, e em geral de- é possível vislumbrar nesse romance uma transição entre
senvolvidos em poucas linhas. Entre os trabalhos críticos de- formas narrativas distintas, entrelaçada, no plano da histó-
dicados à obra de Freitas está o estudo de Alcilene Cavalcante ria contada, à mudança de universo vivenciada pelo perso-
intitulado Uma escritora na periferia do Império: vida e obra nagem Edmundo. Essa dupla transição possibilita, acredito,
de Emília Freitas, desenvolvido primeiramente como tese de uma abertura para a consideração de temas pouco comuns
doutoramento e depois editado em livro. Todavia, por em- à literatura fantástica e o reposicionamento do olhar sobre
preender um estudo de viés biográfico, um gesto de resgate personagens femininas. Para desenvolver essa proposta de
de uma autora feminina esquecida – gesto justificado e que trabalho, começo por uma breve definição de fantástico e
em si revela o estado precário da crítica em torno da obra da utopia, para, então, dedicar algumas linhas a esse suposto
escritora –, Cavalcante não se detém a elaborar uma análise movimento de transição.

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FANTÁSTICO E UTOPIA: BREVES DEFINIÇÕES É importante destacar, aqui, o papel cumprido pela ra-
É sempre arriscado traçar definições sobre o fantástico. zão na narrativa fantástica, uma vez que ela será o motor
Entendido ora como fenômeno cultural universal, ora como das ações de Edmundo em A Rainha do Ignoto. O fantástico
gênero literário, o fantástico é um termo em constante ela- dos séculos XVIII e XIX, inserido no contexto mais amplo
boração, tendo em vista as diversas configurações que assu- que deu origem ao romantismo, representa mais um des-
me ao longo dos tempos e em diferentes esferas do discurso. locamento da razão que apenas um gesto de negação dela.
Neste trabalho, limito-me à concepção de fantástico como O discurso fantástico não pretende destruir a razão, assim
manifestação literária inscrita entre fins do século XVIII e como a razão não está ausente dele; ele a problematiza, busca
fins do século XIX, iniciada na Europa e posteriormente de- testar seus limites e questionar sua supremacia, sem, contu-
senvolvida em outras literaturas nacionais, sob novas atmos- do, rejeitá-la completamente. Como afirma Italo Calvino, “a
feras – uma roupagem literária específica de um elemento personagem do incrédulo positivista que aparece frequente-
muito mais amplo, que ultrapassa os limites da literatura. mente nesse tipo de narrativa, vista com piedade e sarcasmo
porque deve render-se ao que não sabe explicar, nunca é
Podemos dizer, resumidamente, que a literatura fantástica
contestada em profundidade”.8 No limite, podemos dizer que
desse período se caracteriza por uma intromissão, no uni- 8. CALVINO. Contos fantásticos do
a razão constitui uma condição de possibilidade para a litera- século XIX: o fantástico visionário
verso tido como cotidiano, de eventos ou seres que põem em
tura fantástica: sem o conflito entre racional e não racional, e o fantástico cotidiano, p. 10.
xeque a suposta estabilidade do mundo, pelo menos segundo
não existe incerteza, não há ambiguidade. Um fenômeno
um entendimento amplamente aceito e reiterado na socie-
considerado sobrenatural seria absorvido da perspectiva da
dade. Em outras palavras, ela provoca, essencialmente, uma
fé ou da superstição, sendo imediatamente aceito como tal,
crise no mundo tal qual se acredita conhecê-lo, despertando
ainda que contradissesse as crenças e os saberes instituídos
explicações diversas e excludentes entre si para os fenôme-
acerca do mundo e da realidade. Nesse caso, adentraríamos
nos que geram estranheza. Como resume Tzvetan Todorov,
o amplo campo do maravilhoso, entendido como espaço em
“[s]omos assim conduzidos ao âmago do fantástico. Num
que o sobrenatural simplesmente existe.
mundo que é bem o nosso, tal qual o conhecemos, sem dia-
bos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento A literatura fantástica, desde suas primeiras manifesta-
7. TODOROV. A narrativa fantástica, que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar”.7 ções, traz à baila um ou vários fenômenos que contradizem
p. 148.

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as crenças compartilhadas socialmente a respeito do que é de explicação racional e a aceitação acrítica do acontecimento 11. COELHO. O que é utopia.
ou não possível, segundo uma dada concepção de realidade sobrenatural ou extraordinário, o sujeito da experiência fan-
12. É interessante notar que
e de natureza. Nesse sentido, seu lugar é, inevitavelmente, tástica é tomado ora pela dúvida (índice do exame racional), derivações do sentido de “utopia”,
o do limite das crenças e convenções, o que faz com que ora pelo medo. Esse jogo entre curiosidade e medo, bem como além de apontarem para a noção
de “lugar ideal” (isto é, de “não
atinja também, e diretamente, a noção de normalidade (isto a tensão entre uma explicação racional e uma explicação ir- lugar” passa a significar “bom
é, o que é considerado comum, o que faz parte da experiên- racional (ou do senso comum), está, como veremos adiante, lugar”), aproximam o termo ao
fantástico. Segundo o Chamber’s
cia coletiva dos sujeitos, o que está em conformidade com bastante evidente na narrativa de Emília Freitas. Etymological Dictionary of the
as “regras” da realidade e da natureza). Como atesta Irène English Language, o adjetivo
Assim como fantástico, utopia também é uma noção am-
Bessière, “é o mundo cotidiano, aquele em que vivemos, que “utópico” significa “imaginário,
pla e extraliterária que na literatura configura uma fértil fantasioso, quimérico”
perde todos os limites, todas as fronteiras”.9 Segundo Filipe (CHAMBERS. Chamber’s
9. BESSIÈRE. Le récite fantastique: produção artística. A imaginação utópica é, diz-nos Teixeira
la poétique de l’incertain, p. 224. Furtado, o fenômeno fantástico “está para além do que é ve- Etymological Dictionary of the
Coelho,11 um elemento inerente ao homem, presente em English Language, p. 543). O Le
Tradução minha. rificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por
todas as sociedades e em todos os tempos, responsável por Petit Robert eletrônico, por sua
intermédio dos sentidos ou das potencialidades cognitivas vez, registra, para o substantivo
impulsionar invenções, descobertas e revoluções; é um me- “utopia”, os sentidos de “quimera,
da mente humana, como através de quaisquer aparelhos
canismo de extensão do presente em direção a um futuro ilusão, miragem, sonho,
que auxiliem, desenvolvam ou supram essas faculdades”.10 A devaneio” (LE PETIT Robert
10. FURTADO. A construção do a partir do que no presente pode ser melhorado. Segundo
fantástico na narrativa, p. 20. narrativa fantástica atua nas bordas do que tanto o discurso 2014: Dictionnaire alphabétique
Coelho, a imaginação utópica não é delirante, mas se nutre et analogique de la langue
racional quanto o senso comum sustentam sobre o natural, française). Na língua portuguesa,
de elementos objetivos da sociedade para elaborar um paraí-
o real e o normal, provocando um embaçamento de seus o Dicionário eletrônico Houaiss
so (passado ou futuro) ao qual a sociedade almeja. da língua portuguesa registra os
contornos, sem, contudo, apagá-los definitivamente. sentidos de “projeto de natureza
Se a imaginação utópica é atemporal, o termo “utopia” tem irrealizável; quimera, fantasia”
O questionamento dos limites do real e do possível e a
uma história delineável: foi cunhado por Thomas More em (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS.
problematização da natureza e das formas de apreensão do Dicionário eletrônico Houaiss
Utopia, obra que inaugura a narrativa utópica. More recor- da língua portuguesa 3.0); já o
mundo se dão, fundamentalmente, pela ambiguidade insta-
reu ao grego para compor o nome da ilha que constitui o Dicionário etimológico da língua
lada pelo fenômeno fantástico. Há, nas narrativas fantásticas, portuguesa apresenta os sentidos
tema da obra: oύ + toπoς, “não lugar”.12 A ilha de Utopia
um ou vários acontecimentos sobre cuja natureza não se pode de “[c]oisa impossível de ser
(cuja capital é Amaurotum, “cidade do sonho”) é o espaço realizada ou obtida, sonho, desejo
emitir nenhum juízo definitivo. Oscilando entre a tentativa vão, projeto imaginário. [...]
onde More situou seu programa utópico, que incluía uma
Imaginário, inexistente, fantástico”
(BUENO. Grande dicionário
etimológico-prosódico da língua
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sociedade livre da injustiça, com divisão igualitária do tra- origem da utopia na literatura está também, ainda segundo
balho, sem propriedade privada e com liberdade religiosa Vieira, o humanismo, a transição de uma visão de mundo
garantida. teocêntrica para uma antropocêntrica; o homem passa a ser
visto como parte ativa na construção do futuro – não com
A ilha, então, a partir do marco constituído pela obra de
vistas a alcançar a perfeição, visto que ela ainda era entendi-
More, passou a ser um elemento-chave em narrativas utópi-
da, àquela época, como um atributo exclusivo de Deus, mas
cas, embora haja, claro, utopias situadas em outros ambien-
para produzir mudanças que garantam a paz. Para a autora,
tes. Arthur Leslie Thomas destaca a importância do imagi-
o cerne da utopia estaria no desejo por uma vida melhor, no
nário em torno da ilha para esse tipo de ficção:
que reside, então, o caráter crítico desse tipo de literatura.
A ficção utópica projeta caminhos para a transformação da
O fato de que uma ilha é autônoma e finita e pode ser remota
sociedade, colocando, portanto, no ser humano a responsa-
fornece todas as qualidades requeridas para colocarmos nossa
bilidade de alcançar as melhorias pelas quais se anseia.
imaginação para funcionar. É verdade que iremos encontrar
utopias no subterrâneo, sob o mar, cercadas de montanhas no Quanto à estrutura da narrativa utópica, Vieira destaca
coração da África ou da Ásia, até mesmo em outro planeta ou um roteiro comum a grande parte dessas narrativas: come-
talvez distantes no tempo em vez de no espaço; apesar disso, a ça-se com uma viagem guiada a um lugar desconhecido; há
grande maioria de utopias ainda é encontrada em ilhas.13 uma explicação da organização social, política, econômica e
13. MORTON. The English Utopia, p.
12. Tradução minha. religiosa daquela sociedade (o que garante à ficção utópica
Como esclarece Fátima Vieira,14 a ficção utópica é um um caráter notadamente descritivo); há, por fim, o retorno
14. VIEIRA. The Concept of Utopia.
produto da Renascença, momento em que há a retomada do viajante, que passa, então, a ser um divulgador do novo
de valores clássicos. A utopia de More, por exemplo, esta- conhecimento adquirido.
belece claro diálogo com a República platônica, embora não
Ainda que as narrativas utópicas representem um modelo
adote todos os seus princípios. Além disso, o surgimento
ideal de sociedade, é importante ressaltar que esse modelo
da literatura utópica está associado às grandes navegações, a
não necessariamente é bom para todos, e que, além disso,
um sentimento de novidade e esperança em torno da desco-
o ideal para determinada época ou povo pode não sê-lo em
berta de novos povos, novos mundos – não à toa a narrativa
outro contexto – em outras palavras, a utopia de alguns pode
utópica possui parentescos com a literatura de viagem. Na

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ser a distopia (δυσ + toπoς, mau lugar) de outros: como pon- que a utopia, além de ser um gênero mais antigo que a fic-
tua Gregory Claeys, “[à]s vezes, a distância entre utopia e ção científica (surgida, para Fitting, entre os séculos XVIII
distopia pode parecer alarmantemente pequena”.15 Isso sig- e XIX), não necessariamente dialoga com o imaginário e a
15. CLAEYS. Utopia: a história de
uma ideia, p. 13. nifica dizer que as utopias não lidam com valores estanques linguagem científicos –, há uma profícua confluência entre
e noções consensuais de bem-estar social, e essa dimensão esses gêneros na literatura moderna:
é importante pois permite avaliar as narrativas utópicas de
acordo com os desejos de uma determinada parcela da socie- A interseção entre a ficção científica moderna e a utopia inicia
dade em um tempo e um espaço específicos, de modo que com o que considero a característica fundamental da ficção
a obsolescência das ideias utópicas não as desqualifiquem científica, a saber, sua habilidade de refletir ou expressar nos-
como utopias. A cidade perfeita de More, por exemplo, não sas esperanças e nossos medos no que diz respeito ao futuro,
é igualmente boa para homens e mulheres, visto que a so- e, mais especificamente, a relacionar essas esperanças e esses
ciedade idealizada é paternalista, e nela as mulheres não são medos à ciência e à tecnologia.16
16. FITTING. Utopia, Dystopia and
valorizadas. De um modo geral, inúmeras ideias utópicas, Science Fiction, p. 138. Tradução
como a defesa da supremacia do Estado e de normas e con- A partir dessas breves considerações sobre o fantástico e minha.

dutas para o controle do corpo, o militarismo, a divisão da a utopia, passemos, agora, à observação de como esses dois
sociedade em classes, a repressão de desejos de ordens diver- tipos de narrativa se desenvolvem em A Rainha do Ignoto,
sas, etc., não constituem mais o ideal de organização social. verificando algumas das consequências da transição de uma
história de cunho fantástico para uma de caráter utópico.
Também a forma como se apresentam as narrativas utó-
picas se modifica conforme se transformam os gêneros li-
A TRANSIÇÃO DO FANTÁSTICO À UTOPIA EM A
terários: se a utopia de More se aproximava dos diálogos
RAINHA DO IGNOTO
filosóficos, narrativas mais contemporâneas têm se valido
de gêneros modernos, como a ficção científica, em sua cons- Os capítulos iniciais de A Rainha do Ignoto estabelecem
trução, ressaltando a importância da ciência para a melho- uma trama tipicamente fantástica.17 Edmundo, jovem ad-
17. Destaque-se que o primeiro
ria da sociedade. Peter Fitting observa que, ainda que não vogado, rico, estudado e viajado, que chega ao interior do capítulo se chama “Funesta”, e a
se possa confundir ficção utópica com ficção científica – já Ceará para resolver negócios da família, é logo apresentado ambientação inicial é noturna.

a uma história local que diz de uma mulher que vive em

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uma gruta encantada e que perturba àqueles que de lá se um sarau que posteriormente será interrompido por uma
aproximam. Edmundo, cético, racional, oriundo da cidade das artimanhas da Rainha do Ignoto:19
19. Nesse episódio, a Rainha do
grande – em suma, o “incrédulo positivista” mencionado por Ignoto, ou Diana, como se
Calvino –, primeiramente não dá atenção ao que considera Findava o dia, e as sombras da noite estendendo seu negro mostrava a Virgínia e Carlotinha,
prega uma peça nas maldosas
uma história supersticiosa e sem fundamento, fruto da ima- manto semeado de estrelas deixavam que a treva empunhasse e invejosas irmãs Alice e
ginação crédula do povo. Contudo, instigado pela constância o cetro da tristeza e do mistério! Henriqueta. Há, então, uma
exposição dos defeitos dessas
das menções a Funesta, assume diante dos boatos sertanejos O povo chama ao anoitecer “boca da noite”, pois, a boca da duas personagens, mas sem
uma atitude investigativa. Ele procura descobrir o verossí- noite é como a boca de um abismo! Ao nos aproximarmos grandes implicações em seu
mil por trás do inverossímil, “o fio da realidade perdido na- status social (o que não deixa
de uma ou da outra, sentimos uma espécie de terror pânico, de sugerir certa impotência da
quele labirinto de idéias extravagantes e fantásticas”;18 isto que não se explica, senão pelo desconhecido que nos cerca, Rainha do Ignoto em transformar
18. FREITAS. A Rainha do Ignoto:
romance psicológico, p. 33. é, não pressupõe que os rumores sobre a criatura encantada pelo ignoto que nos confunde!20
determinados aspectos da
sociedade).
do Areré, que vive apartada da sociedade, sejam de todo fal-
sos, mas rejeita a explicação do senso comum (superstição) Sobre a figura feminina, vale destacar alguns pontos – em 20. FREITAS. A Rainha do Ignoto:
e intenta, por meio da razão, revelar a verdade por trás da primeiro lugar, a associação da criatura da gruta do Areré romance psicológico, p. 95.
ignorância do povo. Temos, então, um elemento central das ao mal, presente não apenas nas superstições do povo, mas
narrativas fantásticas do período aqui considerado: a tensão também em algumas das situações em que Edmundo se de-
entre explicações distintas para um evento extraordinário para com aquele ser extraordinário. Da primeira vez que ele
(isto é, que foge à normalidade, que desafia a compreensão, vê a mulher misteriosa, ela está acompanhada de uma cria-
que gera dúvidas sobre natureza, normalidade e percepção). tura feia, medonha, das trevas, além de um cachorro preto.
Um elemento de destaque nesse plano da narrativa são Ele se pergunta, então: “Por que capricho aquela criatura for-
as ambientações góticas, que fortalecem os sentimentos de mosa, romântica e ideal misturava o belo com o horrível?”.21
21. FREITAS. A Rainha do Ignoto:
medo e perigo evocados por aquelas histórias interioranas. Liga-se a isso, claro, o tema da sedução fatal. Funesta, como romance psicológico, p. 36.
Um exemplo de construção nessa direção está na abertura potencial agente demoníaca, sedutora e maligna, sugere uma
do capítulo XIII, que contrasta a escuridão da noite com a força que condenaria Edmundo à perdição, caso se deixasse
claridade do interior da casa da D. Matilde, onde se passará levar por aqueles artifícios suspeitos. Por fim, a personagem
misteriosa encarna a ambiguidade fantástica: ora é Funesta,

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ora é Fada, ora é uma visão fantasmagórica, ora é Diana, mulher exerce uma função meramente ornamental e é in-
moça simples e trabalhadora, ainda que seja, acima de tudo, capaz de estabelecer amizades verdadeiras; uma sociedade
a Rainha do Ignoto. A figura feminina é, em resumo, um em que casamentos são arranjados por interesse, em que o
“verdadeiro enigma”.22 amor é uma mercadoria, em que os valores mais nobres são
22. FREITAS. A Rainha do Ignoto:
romance psicológico, p. 81. descartados em nome da superficialidade e das aparências. É,
Em um plano secundário (isto é, que não concorre para
também, para essa configuração que a utopia posteriormen-
a construção do efeito fantástico), temos personagens femi-
te elaborada no romance irá apontar, ao ressaltar os vínculos
ninas caracterizadas pela futilidade, pela inveja, pelo egoís-
de amizade e cumplicidade entre as mulheres, a importância
mo, pela competição. As duas jovens que se distanciam desse
do amor verdadeiro e a força feminina.
modelo frívolo de mulher são ora ridicularizadas pelas cole-
gas (Carlotinha, futura esposa de Edmundo), ora usurpadas Em resumo, os capítulos I a XXV de A Rainha do Ignoto
em seu amor e sua herança (Virgínia, uma espécie de Gata apresentam uma trama central de cunho fantástico, com a
Borralheira). O próprio Edmundo, no início do romance, empreitada de Edmundo pela descoberta da verdade por trás
revela um traço misógino: dos eventos estranhos na região de Passagem das Pedras. Há
também uma predominância de ambientações noturnas e a
Em matéria de amor não admitia a verdade, zombava de meia oscilação entre medo e curiosidade, além da representação
dúzia de corações, verdadeiros tesouros de sentimento, onde feminina associada ora ao mal, ora à superficialidade. Nesse
tinha feito despertar o mais sincero e puro afeto e, depois ia ponto, contudo, há o deslocamento de Edmundo para a Ilha
escrever folhetins, nos rodapés dos jornais dos estudantes, do Nevoeiro, e com isso a própria narrativa ingressa em um
contra a inconstância e leviandade das mulheres, rindo-se ao novo território, abandonando paulatinamente as motiva-
mesmo tempo com os amigos de ter feito no mesmo jornal, ções fantásticas e abrindo-se para temas mais característicos
com diversos pseudônimos, quatro ou cinco sonetos: a Marí- de histórias de cunho utópico.
lia, Laura, Beatriz, Leonor e Julieta.23
23. FREITAS. A Rainha do Ignoto: Em seu empreendimento investigativo, Edmundo entra
romance psicológico, p. 40.
em contato com Probo, que lhe conta que a moça do Areré
Apresenta-se, então, em especial através das tensões en-
é, na verdade, a Rainha do Ignoto, uma mulher misteriosa e
tre essas personagens femininas, uma sociedade em que a
poderosa que conduz um grupo composto exclusivamente

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por mulheres, as chamadas paladinas, em missões benfei- A realidade descortinada para Edmundo a partir de sua via-
toras por todo o Brasil; para a realização de tais missões, gem, guiada por Probo, à Ilha do Nevoeiro e de seu ingresso
saem pelo país em navios como o Tufão, de que Probo é no Tufão é utópica na medida em que revela um grupo de
um indesejado tripulante.24 Edmundo, tanto porque ele mulheres altamente especializadas (na época, algo quase im-
24. Probo é resgatado com sua
mulher, Roberta, pela Rainha é um incrédulo como porque Probo não transmite muita possível de se imaginar) que se dedicam integralmente a fazer
do Ignoto e suas paladinas em confiança, não acredita naquela absurda história sobre um o bem e melhorar a sociedade. Para tal, fazem uso não ape-
decorrência dos problemas que
o casal vivenciava por causa do grupo exclusivamente feminino, altamente organizado e nas das ciências, mas também da hipnose, empregada espe-
vício em jogos do homem. Aqui tecnicizado, liderado por uma mulher extraordinária. A vi- cialmente pela Rainha do Ignoto – elemento pseudocientífico
inicia a temática da superioridade
feminina, que encontra na
rada em sua aventura (e na narrativa) se dá, então, quando que funciona como ferramenta de transformação social e que,
caracterização negativa de Probo Probo, querendo provar a verdade e vendo em Edmundo certamente, aproxima o romance de Freitas à ficção científica,
o pico misândrico da narrativa. um potencial cúmplice no desmascaramento daquelas mu- ainda que não se possa dizer que ele pertença a esse gênero. O
lheres tão ousadas e estranhas – Probo as considera malig- espectro de ação do grupo é amplo: elas atuam desde em brigas
nas por lutarem por igualdade social e pelo fim da escravi- conjugais até em questões mais complexas e coletivas, como o
dão –, consegue fazer com que o jovem advogado ingresse problema da escravidão. O projeto da Rainha e suas paladinas
no Tufão. Note-se que a estratégia utilizada por Edmundo é resumido em um dado momento da narrativa:
para entrar no navio é se passar por Ofélia, uma adolescen-
te que enlouqueceu por amor e que se veste sempre com vamos guerrear a injustiça, proteger o fraco contra o forte, en-
uma armadura de cavaleiro; dá-se início, nesse ponto, a trar nos cárceres para curar os enfermos, lançar-nos às ondas
uma espécie de apagamento da figura masculina: o próprio para salvar os náufragos e atirar-nos aos incêndios para lhes
protagonismo de Edmundo se dilui ao passo que a narração arrebatar as vítimas! Quem não estiver pronta a perder a vida
se concentra nas ações e nos discursos da Rainha do Ignoto pela fé jurada, pode assinar seu nome no livro da covardia.25
25. FREITAS. A Rainha do Ignoto:
e das paladinas. O plano utópico, então, é, antes de tudo, romance psicológico, p. 188.
um espaço onde a figura feminina pode tomar relevo, ao Em seu texto de abertura à terceira edição de A Rainha do
se distanciar da caracterização negativa ou, na melhor das Ignoto, Duarte já havia apontado para o caráter utópico do
hipóteses, secundária que recebe no fantástico oitocentista. romance de Emília Freitas:

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A criação de uma sociedade formada apenas de mulheres, que Ignoto, ficando, no lugar, a amizade e a cumplicidade femi-
dominam a natureza, a técnica e a ciência, que ocupam cargos e ninas, sua benevolência. Ainda com relação à representação
funções com invulgar competência – tais como de general, co- feminina, a frivolidade, a inveja, o egoísmo e a fragilidade
mandante, maestra, cientista, médica ou advogada – não sugere que caracterizam as mulheres da primeira parte do romance
uma sociedade utópica, regida por leis femininas, feminista avant são substituídos por manifestações de força, solidariedade,
la lettre, que quer se diferenciar principalmente da realidade pa- altruísmo e simplicidade. Há, também, a compreensão de
triarcal, a grande responsável pela opressão das mulheres? E a Ilha que aquelas mulheres se privaram de uma vida íntima, par-
do Ignoto, representação por excelência de um espaço idealizado ticular, em nome de uma causa nobre: isto é, de agentes de
e escondido dos olhares, onde apenas as mulheres reinavam, não Satã, elas passam a agentes do bem.
pode ser lido como o não-lugar, ou como o único espaço possível
para a realização feminina? Em outras palavras: como uma ten- Assim, em resumo, é possível dizer que a passagem do fan-
tativa da autora para a superação da doxa patriarcal?.26 tástico ao utópico implica a reconfiguração de quase todos os
26. DUARTE. A Rainha do Ignoto ou temas da narrativa: apenas o amor romântico permanece, na
a impossibilidade da utopia, p. 19.
Nessa transição entre fantástico e utopia, podemos notar figura de mulheres frágeis que recebem a ajuda da Rainha e
algumas importantes transformações na narrativa. Além da suas paladinas. De resto, a visão estreita da primeira parte do
difusão do protagonismo, que deixa de estar centrado em romance, tão focada em pequenos eventos e na curiosidade e
Edmundo, há a dissolução da tensão entre racional e irracio- racionalidade de Edmundo, dá espaço a uma narrativa que se
permite espalhar-se em inúmeros temas e lugares, tocando
nal que povoa a primeira parte do romance (e que se mani-
em questões que não encontram vazão em narrativas fantás-
festa, em sua maioria, como uma representação negativa da
ticas. Igualmente, a centralidade dos personagens masculinos,
cultura interiorana, das crenças populares): não há mais mis-
detentores da razão, se dissolve diante de um protagonismo
tério a ser resolvido. Em lugar dessa tensão, há o predomínio
da ciência e da técnica como ferramentas para alcançar os feminino plural e, em grande medida, revolucionário.
mais improváveis feitos – como libertar um grupo de cem
CONSIDERAÇÕES FINAIS
escravos de uma fazenda por meio de um engenhoso plano
envolvendo hipnose. O fim da atmosfera de mistério tam- Procurei desenvolver, neste texto, uma proposta de leitu-
bém dissipa os contornos sedutores e malignos da Rainha do ra do romance A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, pelo viés

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de uma transição de um plano narrativo caracteristicamente com poucas exceções, caracterizadas como fúteis, invejosas
fantástico para um de cunho utópico. Observamos que os 25 e coadjuvantes na sociedade, e se o fantástico também é um
primeiros capítulos da obra exploram diversos temas caros campo fértil à misoginia (tendo em vista a recorrente asso-
à literatura fantástica oitocentista, como a tensão entre ra- ciação, nesse tipo de ficção, entre figura feminina e Satã), a
zão e superstição, a ambientação gótica e a demonização e a contrapartida utópica permite uma visada totalmente dife-
ridicularização da mulher, com destaque para a figura mas- rente do papel da mulher no tecido social, além de salien-
culina, racional e curiosa; enquanto, nos 45 capítulos restan- tar a amizade, a solidariedade e o altruísmo femininos. Essa
tes, há um deslocamento na história, que passa a focalizar as configuração utópica esbarra, claro, em noções que hoje são
ações de um grupo de mulheres que, lideradas pela Rainha um tanto problemáticas, como a misandria; também é por
do Ignoto, empreendem uma série de melhorias, pequenas vezes enfraquecida quando o foco da ação se concentra em
ou grandes, íntimas ou abrangentes, na sociedade. Tal des- casos particulares, sem articulação com o todo da sociedade;
locamento é duplo: implica tanto uma alteração no modo por fim, apresenta também algumas ingenuidades históricas,
narrativo (do fantástico à utopia) como uma mudança de como no episódio da libertação pacífica dos escravos. Essas
perspectiva com relação a questões diversas, como o papel de incongruências, contudo, não esvaziam a qualidade de uto-
homens e mulheres na sociedade. Assim, se o fantástico, em A pia dessa parte da narrativa: são antes índices de um proces-
Rainha do Ignoto, está voltado à problematização da natureza so de reflexão sobre inúmeras questões que, historicamente,
e da percepção de fenômenos extraordinários (daí a presença ainda engatinhavam no cenário brasileiro (e mundial).
constante da tensão entre razão e superstição e da dúvida de
Mas há algo mais. A utopia engendrada em A Rainha do
Edmundo), centrada na personagem masculina que, sozinha,
Ignoto é não apenas imperfeita ou obsoleta (segundo os pa-
lidando com o medo e com o risco de ser seduzido por um
râmetros contemporâneos) – isso qualquer utopia pode ser,
demônio, pretende descobrir uma verdade; a utopia se dedi-
sem que isso implique sua desqualificação como tal –, mas
ca a arrolar estratégias de transformação social, abrangendo,
também incompleta: a Rainha, admitindo a fraqueza do co-
portanto, uma dimensão coletiva que o fantástico ignora.
ração feminino e não suportando mais a solidão, decide pôr
Uma especial consequência dessa transição entre tipos de
fim à própria vida, o que acarreta, também, a destruição da
narrativa é, como pudemos ver, a alteração na caracterização
Ilha do Nevoeiro. Ainda que seus navios e suas paladinas
da mulher: se, em seu momento fantástico, as mulheres são,

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possam continuar sua missão, há a queda da figura de li- plano da utopia a mulher se realiza plenamente, e a mudança
derança e também da grande mestra da arte hipnótica, que da sociedade não deixa totalmente de ser um sonho distante.
tantos feitos possibilitou ao grupo. Será possível às paladinas
manter a missão sem a bússola representada pela Rainha e REFERÊNCIAS
sem seus artifícios? Uma vez que a prática desse grupo se BESSIÈRE, Irene. Le récite fantastique: la poétique de l’incertain.
pauta pela não violência, pela astúcia, pelos planos mirabo- Paris: Larousse, 1974. (Thèmes et Textes).
lantes, quem será responsável por conduzir tais complexos
BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-
projetos de mudança? O romance, ainda que não aponte para
prosódico da língua portuguesa. Vocábulos, expressões da
a dissolução daquele grupo, também não nos deixa vislum- língua geral e científica – sinônimos contribuições du tupi-
brar qualquer continuidade. A personagem Virgínia, por guarani. Santos: Editora Brasília, 1974. v. 8.
sua vez, uma espécie de espectro realista da Rainha, a única
CALVINO, Italo (Org.). Contos fantásticos do século XIX:
mulher que reunia em si as qualidades da dignidade, da co- o fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo:
ragem, do altruísmo, da sororidade, da simplicidade,27 pade- Companhia das Letras, 2004.
27. Carlotinha, assim como Virgínia,
também é caracterizada de modo ce do abandono geral e morre doente, esquecida, enquanto
positivo no romance, porém todos se divertem na soirée. Por fim, Edmundo, o potencial CASTANHEIRA, Cláudia. Escritoras brasileiras: percursos e
ainda encarna a donzela ingênua, percalços de uma árdua trajetória. Cadernos da FaEL, v. 3,
insegura e dependente da replicador daquelas pequenas e grandes revoluções, retorna n. 8, maio-ago. 2010. Disponível em: <http://www.unig.br/
realização amorosa. de sua jornada apenas para se casar com Carlotinha, jovem cadernosdafael/
de bom coração mas sem qualquer disposição para subverter ARTIGO%20CADERNOS%208%20CLAUDIA%20CASTANHEIRA.
determinações sociais. Ainda que haja aí a realização amoro- pdf>. Acesso em: 30 abr. 2014.
sa e a felicidade, encerra-se, nesse desfecho romântico, toda CAVALCANTE, Alcilene. Uma escritora na periferia do Império:
possibilidade de mudança social; no limite, Edmundo dei- vida e obra de Emília Freitas. Ilha de Santa Catarina: Mulheres, 2008.
xará de zombar do coração feminino e será um bom marido
CHAMBERS, William. Chamber’s Etymological Dictionary
para a doce e virginal esposa. Assim, apesar de empreender
of the English Language. Edited by James Donald. London;
ações de melhoria na sociedade e ressaltar a força feminina, Edinburgh: W & R Chambers, 1872. Disponível em: <https://
há um forte traço pessimista no romance: nem mesmo no archive.org/details/chamberssetymolo00donarich>. Acesso em:
9 mar. 2014.

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