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Cehm 1779-4684 2011 Num 34 1 2253
Cehm 1779-4684 2011 Num 34 1 2253
médiévales
Resumo
A mais antiga narrativa escrita em língua vernacula sobre a vida de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, não
tem deixado, ao longo dos tempos, de levantar perplexidades por apresentar um herói que está longe ser eticamente
exemplar. É nosso propósito mostrar que, à luz da tradição narrativa medieval, o fundador de um reino pode ser uma
personalidade ambígua, cujas culpas e respectiva expiação constituem o fundamento da sobrevivência da colectividade.
Résumé
Le plus ancien récit en langue vernaculaire concernant le premier roi du Portugal, D. Afonso Henriques, a soulevé, au fil
des temps, bien des perplexités concernant le héros qu’il dépeint et dont le manque d’exemplarité éthique n’est que trop
évident. Il est dans notre propos de montrer que, à la lumière de la tradition narrative médiévale, le fondateur d’un
royaume peut s’accommoder d’une personnalité ambiguë si toutefois ses fautes et sa capacité de les expier forment le
ciment de la survie de la collectivité.
do Rosário Ferreira Maria. Afonso Henriques: do valor fundacional da desobediência. In: Cahiers d'études hispaniques
médiévales. N°34, 2011. pp. 55-70;
doi : 10.3406/cehm.2011.2253
http://www.persee.fr/doc/cehm_1779-4684_2011_num_34_1_2253
RESUMO
A mais antiga narrativa escrita em língua vernacula sobre a vida de D. Afonso
Henriques, primeiro rei de Portugal, não tem deixado, ao longo dos tem-
pos, de levantar perplexidades por apresentar um herói que está longe ser
eticamente exemplar. É nosso propósito mostrar que, à luz da tradição
narrativa medieval, o fundador de um reino pode ser uma personalidade
ambígua, cujas culpas e respectiva expiação constituem o fundamento da
sobrevivência da colectividade.
RÉSUMÉ
Le plus ancien récit en langue vernaculaire concernant le premier roi du Portugal, D. Afonso
Henriques, a soulevé, au fil des temps, bien des perplexités concernant le héros qu’il dépeint
et dont le manque d’exemplarité éthique n’est que trop évident. Il est dans notre propos de
montrer que, à la lumière de la tradition narrative médiévale, le fondateur d’un royaume
peut s’accommoder d’une personnalité ambiguë si toutefois ses fautes et sa capacité de les
expier forment le ciment de la survie de la collectivité.
1. Ver, neste sentido, o texto do reinado de Afonso Henrique na Crónica de 1419 –Adelino
de Almeida CALADO (ed.), Crónica de Portugal de 1419, Aveiro: Universidade de Aveiro, 1998,
p. 3-84– onde começa a ser moldada a doutrina providencialista em torno do primeiro rei de
Portugal (explícita sobretudo nos capítulos em torno dos episódios milagrosos de Cárquere,
cura na tenra infância do futuro rei, e de Ourique, onde a realeza lhe é outorgada em apo-
teose pelos seus vassalos, preludiando a vitória militar contra os mouros) e a Crónica de D. Afonso
Henriques de Duarte Galvão (Alois Richard NYKL [ed.], Crónica del rey D. Affomsso Hamrriquez de
Duarte Galvão, Cambridge, Mass.: University, 1942), onde a predestinação divina transcende
o carisma pessoal atribuído ao rei, implicando todo reino de Portugal numa mesma graça e
missão sagrada. Para a forma como este percurso de investimento providencialista se processa,
ver Filipe Alves MOREIRA, A Crónica de Portugal de 1419: Fontes, Estratégias e Posteridade, (disser-
tação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, polico-
piada), Porto: FLUC, 2010, p. 82-84, 114-130, 148-150, 158-159 e 303-313.
2. Ver Sérgio Campos MATOS, História, mitologia, imaginário nacional. A história no curso dos
liceus (1895-1939), Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 135-137.
3. José MATTOSO, «As três Faces de Afonso Henriques», Penélope – Fazer e Desfazer a His-
tória, 8, 1992, p. 25-42.
4. Ver ibid., p. 31-36.
5. Monica BLÖCKER-WALTER (ed.), «Annales Domni Alfonsi Regis», in: id., Alfons I von Portugal.
Studien zu Geschichte und Sage des Begrunders der Portugiesichen Unbhangigkeiten, Zürich: Fretz und Was-
muth Verlag, 1966, p. 151-161.
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 57
Ora, a imagem de Afonso Henriques que emerge deste texto não poderia
diferir mais da veiculada pelos anais. Em traços largos, o relato, que abarca
temporalmente a vida de Afonso Henriques, constrói-se com base numa
sucessão de episódios centrados na luta do protagonista pela autoridade
soberana e absoluta no reino de Portugal, num processo que é desenca-
deado pela disputa do poder entre o futuro rei e sua mãe. As vitórias aí
celebradas resultam em conquista não de terra aos mouros mas de poder
político e privilégios aos adversários cristãos. Algumas conquistas territo-
riais são aí referidas, sim, mas em registo enumerativo, estabelecendo uma
solução de continuidade entre o clímax da narrativa e a queda do prota-
gonista. Além disso, mais do que como um guerreiro invencível, Afonso
Henriques é neste relato apresentado como um homem temível e temido,
colérico, soberbo, indiferente a restrições éticas, e que, como punição pelo
seu desregramento de juventude, termina a vida numa humilhante inva-
lidez. Citando José Mattoso, «em vez de exaltar o rei e o conquistador do
território [o relato] retrata-o como um quase matricida e como um herói
marcado pela maldição»13.
A excentricidade transgressora desta imagem de Afonso Henriques,
que chegou a suscitar dúvidas sobre origem portuguesa do relato14, tinha
tacitamente inviabilizado a sua inserção ideológica em meios clericais ou
laicos próximos da corte régia. A proposta de Filipe Moreira, ao situar o
texto sobre Afonso Henriques na alçada ideológica da corte de Afonso III,
no âmago mesmo de um projecto de produção de memória no qual a
representação favorável monarquia portuguesa era por definição essen-
cial, não pode deixar de suscitar perplexidade15. Mais ainda, baseando-se
na análise interna do relato, Filipe Moreira defende que, independente-
mente da diversidade da génese dos diversos episódios que constituem o
reinado de Afonso Henriques, a sua escolha e ordenação obedece a um
plano de redacção coerente, comandado por uma intencionalidade pró-
pria16. Com efeito, para além dos indícios de unidade em evidência na
elaboração do relato, Moreira detecta nexos narrativos e ideológicos que
se tecem entre este reinado e os restantes que formam a Primeira Crónica
Portuguesa, em particular o de Sancho II17.
Dificilmente o reinado de Afonso Henriques poderia, pois, ter sido resul-
13. Ver José MATTOSO, «A primeira Crónica Portuguesa», Medievalista, 6, Julho 2009, [em
linha], [URL: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/]. Consultado em 7 Setembro 2011.
14. Ver D. CATALÁN, De Afonso X…, p. 267-275, p. 274-275, para uma reapreciação do pro-
blema, na sequência da qual, e com base na ideologia subjacente ao relato, reconduz a «lenda»
do fundador a uma origem portuguesa.
15. Ver F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…, p. 81-92.
16. Ibid., p. 45-49, 69.
17. Ibid., p. 58-59.
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 59
21. O conde D. Henrique morre em 1112, e a rainha Urraca reina entre 1109 e 1126,
sucedendo-lhe nesse ano seu filho Afonso VII. Se tivermos em conta que o cronótopo do relato
sobre Afonso Henriques aproxima temporalmente muito a morte do Conde dos episódios
bélicos envolvendo o jovem e a mãe, que historicamente ocorrem em 1128, já no reinado de
Afonso VII, torna-se verosímil esta transferência para o «Imperador» da animosidade contra
o futuro rei de Portugal. Para uma perspectiva complementar, ver J. C. MIRANDA, «Na génese
da Primeira…».
22. PCP, p. 127.
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 61
23. Walter ULLMANN, Principios de gobierno y política en la Edad Media, Madrid: Alianza Edito-
rial, 1985, p. 33-151, apresenta uma síntese eficaz da problemática que contrapunha, nas teo-
rias políticas medievais, os fundamentos legitimadores, o alcance e os limites do poder papal
e do poder real.
24. PCP, p. 135.
62 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA
34. Pelo menos duas fontes narrativas coevas, uma de meados e outra de finais dos século XII,
a Vida de D. Telo (Aires A. NASCIMENTO (ed.), Hagiografia de Santa Cruz. Vida de D. Telo, Vida de D.
Teotónio e Vida de Martinho de Soure, Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 56-137, sobretudo p. 58)
e os Anais de Afonso Henriques (ed. BLÖCKER-WALTER, p. 152) mencionam explicitamente essa
circunstância.
35. Ver, para um enquadramento da questão e selecção bibliográfica, Maria do Rosário
FERREIRA, «Urraca e Teresa: o paradigma perdido», in: Esther CORRAL DÍAZ, In Marsupiis Pere-
grinorum, Florença: Edizioni del Galluzzo, 2010, e, para, uma selecção bibliográfica sobre
p. 201-214, sobretudo p. 204, n. 5, (versão revista disponível em linha, [URL: http://semina-
riomedieval.com/guarecer/Urraca_e_Teresa_Marsupio_Guarecer%5B1%5D.pdf]. Consul-
tado 7 Setembro 2011).
36. Sobre a fonte de Acenheiro e a sua relação com a versão crítica da Estoria de España, ver
Filipe Alves MOREIRA, «Um novo fragmento da Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal de 1341-
1342 e suas relações com a historiografia alfonsina», disponível em linha, [URL: http://semi-
nariomedieval.com/guarecer/fam2009.pdf]. Consultado 7 Setembro 2011.
37. Se abstrairmos do contexto doméstico em que se passa a prisão da Rainha Urraca,
contrastando com a batalha que na PCP antecede a cena, as semelhanças são flagrantes:
«[Afonso Henriques] prendeo seu padrasto e sua madre. E o conde cuidou aa ser morto,
e fez-lhe preito e menagem que nunca entrasse em Purtugal. E disi foi-se pera terra d’ultra
mar» (PCP, p. 128-129); «emtrou o Emperador pella casa de sa madre, e premdeo-a, e des
ahi premdeo seo padrasto, e tomou-lhe menagem de nũca mais tornar a sa madre; e foi-se o
Comde Dom Pedro de Lara comtra mar» (Cristovão Rodrigues ACENHEIRO, Chronicas, p. 128-
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 65
129, apud F. A. MOREIRA, «Um novo fragmento…»); «entro el rrey don Alfonso por el palaçio
e prendio luego a su madre; e desi a su padrasto […]. E el conde don Pedro, cuydando ser
muerto, fizo le pleito e omenaje que nunca tornase en su madre e que el salerie luego de toda
la tierra suya» (Mariano DE LA CAMPA GUTIÉRREZ (ed.), La «Crónica de Veinte Reyes», p. 651, apud
F. A. MOREIRA, «Um novo fragmento…»).
38. PCP, p. 129.
39. Trata-se de uma articulação há muito apontada pela crítica. A forma concreta como
a maldição de D. Teresa conduz o fio da narrativa, estabelecendo a ligação explicita entre os
vários episódios e assegurando um primeiro nível de coesão do relato é aprofundada e siste-
matizada por F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…, p. 25-49.
40. PCP, p. 136.
66 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA
ou, pelo menos, anterior54. Não pretendo discutir aqui qual é a ordem que
Afonso Henriques transgride. Isso, será assunto para um outro estudo55.
Apenas quero notar que a componente exacerbadamente transgressora
desta personagem, tão ligada ao seu destino sacrificial, não deve ser enten-
dida como um óbice à sua função fundadora da coroa portuguesa. O que
resta explicar –e é essa a segunda e mais funda perplexidade– é por que
razão foi a Primeira Crónica Portuguesa escolher uma modalidade de represen-
tação tão marcada pela violação de interditos, quando tinha à sua dispo-
sição a codificação ideologicamente menos problemática dos anais crúzios.
Vejamos. Por trás da encenação imagética da mãe agrilhoada, o que
o texto mostra sem o dizer é uma usurpação de poder. Ora, se Filipe
Moreira tem razão e a Primeira Crónica Portuguesa emana de facto da corte de
Afonso III, como foi referido no início deste estudo, convirá não esquecer
quem foi esse rei, e de que forma chegou ao trono, sucedendo a seu irmão
Sancho II, deposto por bula papal em 1245, e dando origem a dois anos
de guerra civil56.
O discurso historiográfico tende a enfatizar a premência das razões do
afastamento de Sancho II, sobretudo a falta de Justiça –que a Primeira Cró-
nica Portuguesa tão enfaticamente refere no reinado deste rei, retomando
finalmente, na negativa, o tópico anunciado no discurso do pai mori-
bundo a Afonso Henriques «nom lheixes a fazer justiça»57, mas deixado
em suspenso até à crise de deposição do antecessor de Afonso III– e ainda
a negar ou a minimizar a resistência do reino ao domínio do seu indigi-
tado sucessor58. Porém, alguns curtos episódios narrativos envolvendo os
54. Bastaria lembrar, uma vez mais, Prometeu roubando aos Deuses o fogo para o trazer
aos homens, ou Rómulo –figura caracterizada de «primeiro rei» das mitologias indo-europeias–
e a lenda da Fundação de Roma, tão recheada de quebras de interditos produtivas, para per-
ceber a ambivalência essencial destes heróis. Para uma sistematização do assunto, ver Pierre
BOUDROT, «Le héros fondateur», Hypothèses, 1, 2001, p. 167-180, onde ressalta o aspecto desa-
fiador e transgressor do fundador, e ainda François DELPECH, «Rite, légende, mythe et société :
fondateurs et fondations dans la tradition folklorique de la péninsule Ibérique», Medieval Folk-
lore, 1, 1991, p. 10-56, para uma perspectiva mais centrada na Ibéria, que deixa entrever a exa-
cerbação do aspecto sacrificial ligado à fundação.
55. O facto de a transgressão magna de Afonso Henriques estar codificada no relato como
um pecado contra a mãe, e a imagem mais do que desfavorável que o texto dela constrói presta-
se a reflexão, e aponta para uma interessante sobreposição com as questões relativas ao poder
detido pelo feminino na Ibéria medieval.
56. Sobre estes dois rei e as circunstâncias dos respectivos reinados, ver Hermenegildo
FERNANDES, D. Sancho II, Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, e Leontina VENTURA, D. Afonso III,
Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
57. PCP, p. 126.
58. Ver em F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…, p. 54-66, a análise e comentário deste rei-
nado na PCP, em particular a forma como a referência à justiça no contexto da deposição cria
nexos de coesão no relato global da crónica, tendentes a justificar a acção política que levou ao
trono Afonso III e a acentuar a recuperação simbólica, na figura deste rei, do estado de inte-
gridade primordial particular ao fundador.
70 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA
59. Herlânder Gonçalves DOS SANTOS, D. Sancho II: Da deposição à composição das fontes literárias
(séc. XIII e XIV), (dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, policopiada), Porto: FLUC, 2009, dedicou-se ao estudo destes textos reveladores de um
debate ético no qual os partidários do Conde de Bolonha, futuro Afonso III, são condenados
sem hesitação por uma opinião pública aristocrática que representa aqueles que entendem,
apesar da bula papal de deposição, continuar a dever fidelidade ao seu senhor jurado, Sancho II.
60. Ver L. MAKARIUS, artigo citado, p. 25-26.