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Cahiers d'études hispaniques

médiévales

Afonso Henriques: do valor fundacional da desobediência


Maria do Rosário Ferreira

Resumo
A mais antiga narrativa escrita em língua vernacula sobre a vida de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, não
tem deixado, ao longo dos tempos, de levantar perplexidades por apresentar um herói que está longe ser eticamente
exemplar. É nosso propósito mostrar que, à luz da tradição narrativa medieval, o fundador de um reino pode ser uma
personalidade ambígua, cujas culpas e respectiva expiação constituem o fundamento da sobrevivência da colectividade.

Résumé
Le plus ancien récit en langue vernaculaire concernant le premier roi du Portugal, D. Afonso Henriques, a soulevé, au fil
des temps, bien des perplexités concernant le héros qu’il dépeint et dont le manque d’exemplarité éthique n’est que trop
évident. Il est dans notre propos de montrer que, à la lumière de la tradition narrative médiévale, le fondateur d’un
royaume peut s’accommoder d’une personnalité ambiguë si toutefois ses fautes et sa capacité de les expier forment le
ciment de la survie de la collectivité.

Citer ce document / Cite this document :

do Rosário Ferreira Maria. Afonso Henriques: do valor fundacional da desobediência. In: Cahiers d'études hispaniques
médiévales. N°34, 2011. pp. 55-70;

doi : 10.3406/cehm.2011.2253

http://www.persee.fr/doc/cehm_1779-4684_2011_num_34_1_2253

Document généré le 02/06/2016


Afonso Henriques: do valor fundacional
da desobediência

Maria do Rosário FERREIRA


Universidade de Coimbra
SMELPS – AILP (GDRE 671)

RESUMO
A mais antiga narrativa escrita em língua vernacula sobre a vida de D. Afonso
Henriques, primeiro rei de Portugal, não tem deixado, ao longo dos tem-
pos, de levantar perplexidades por apresentar um herói que está longe ser
eticamente exemplar. É nosso propósito mostrar que, à luz da tradição
narrativa medieval, o fundador de um reino pode ser uma personalidade
ambígua, cujas culpas e respectiva expiação constituem o fundamento da
sobrevivência da colectividade.

RÉSUMÉ
Le plus ancien récit en langue vernaculaire concernant le premier roi du Portugal, D. Afonso
Henriques, a soulevé, au fil des temps, bien des perplexités concernant le héros qu’il dépeint
et dont le manque d’exemplarité éthique n’est que trop évident. Il est dans notre propos de
montrer que, à la lumière de la tradition narrative médiévale, le fondateur d’un royaume
peut s’accommoder d’une personnalité ambiguë si toutefois ses fautes et sa capacité de les
expier forment le ciment de la survie de la collectivité.

Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, é, juntamente com D. Sebas-


tião, figura central na construção do imaginário nacional português. Desde
pelo menos os inícios do século XV, quando Portugal ensaiava os primeiros
passos do seu projecto de expansão territorial para além dos limites penin-
sulares, a historiografia retrata o fundador do reino e da monarquia como
um herói predestinado a tornar-se o instrumento de Deus na expansão
armada da fé cristã. Marcada pelo favor divino, a missão é anunciada
em circunstâncias milagrosas pela Virgem Maria na tenra infância do
futuro rei e confirmada por uma aparição do próprio Cristo por ocasião

CAHIERS D’ÉTUDES HISPANIQUES MÉDIÉVALES, n o 34, 2011, p. 55-70


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da desproporcionada batalha contra os mouros em que este alcançava


o título régio; além disso, rapidamente extravasa do âmbito pessoal de
Afonso Henriques, estendendo-se sincronicamente aos seus companheiros
de armas e diacronicamente aos seus descendentes e aos súbditos destes,
envolvendo assim a globalidade dos Portugueses e de Portugal nas glórias
e nos reveses de um mesmo destino1. O discurso historiográfico sobre
Afonso Henriques, preso desde então às potencialidades justificativas e
legitimadoras contidas numa formulação de origens implicitamente mes-
siânica, irá fixar desta personagem um retrato bastante homogéneo, ade-
quadamente encomiástico e reverencial, de guerreiro impoluto ao serviço
de Deus, retrato esse que irá, no essencial, ser acolhido pela memória his-
tórica oficial até à actualidade2.
Esta panegírica consonância da tradição historiográfica moderna em
torno da figura do fundador contrasta, porém, com as imagens contra-
ditórias, algumas bem pouco laudatórias, registadas nas fontes narrativas
portuguesas mais antigas que nos chegaram, datáveis dos séculos XII e XIII.
Há várias décadas já, José Mattoso3 chamou a atenção para a polifonia
das vozes que estes textos deixam ouvir, vozes cuja insanável dissonância
relacionou com os diferentes meios sócio-culturais de que seriam prove-
nientes e com os laços de poder desses meios com a então ainda recente
monarquia portuguesa. Particularmente notória, pela semelhança de
tema aliada à oposição de perspectiva, é a divergência dos retratos tra-
çados pelas duas panorâmicas gerais da vida e reinado de Afonso Hen-
riques que nos ficaram4: os chamados Anais de Afonso Henriques5, e um

1. Ver, neste sentido, o texto do reinado de Afonso Henrique na Crónica de 1419 –Adelino
de Almeida CALADO (ed.), Crónica de Portugal de 1419, Aveiro: Universidade de Aveiro, 1998,
p. 3-84– onde começa a ser moldada a doutrina providencialista em torno do primeiro rei de
Portugal (explícita sobretudo nos capítulos em torno dos episódios milagrosos de Cárquere,
cura na tenra infância do futuro rei, e de Ourique, onde a realeza lhe é outorgada em apo-
teose pelos seus vassalos, preludiando a vitória militar contra os mouros) e a Crónica de D. Afonso
Henriques de Duarte Galvão (Alois Richard NYKL [ed.], Crónica del rey D. Affomsso Hamrriquez de
Duarte Galvão, Cambridge, Mass.: University, 1942), onde a predestinação divina transcende
o carisma pessoal atribuído ao rei, implicando todo reino de Portugal numa mesma graça e
missão sagrada. Para a forma como este percurso de investimento providencialista se processa,
ver Filipe Alves MOREIRA, A Crónica de Portugal de 1419: Fontes, Estratégias e Posteridade, (disser-
tação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, polico-
piada), Porto: FLUC, 2010, p. 82-84, 114-130, 148-150, 158-159 e 303-313.
2. Ver Sérgio Campos MATOS, História, mitologia, imaginário nacional. A história no curso dos
liceus (1895-1939), Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 135-137.
3. José MATTOSO, «As três Faces de Afonso Henriques», Penélope – Fazer e Desfazer a His-
tória, 8, 1992, p. 25-42.
4. Ver ibid., p. 31-36.
5. Monica BLÖCKER-WALTER (ed.), «Annales Domni Alfonsi Regis», in: id., Alfons I von Portugal.
Studien zu Geschichte und Sage des Begrunders der Portugiesichen Unbhangigkeiten, Zürich: Fretz und Was-
muth Verlag, 1966, p. 151-161.
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outro texto, de origem enigmática6, a que costuma chamar-se «lenda» de


Afonso Henriques7.
O primeiro destes textos encontra-se integrado numa sequência analís-
tica compósita, designada Cronicon Lusitano, onde complementa os Annales
Portucalenses Veteres8, e terá sido redigido pelos últimos anos do século XII
em Santa Cruz de Coimbra9. Apresenta o primeiro rei de Portugal sob
uma luz inequivocamente favorável, gabando as suas qualidades físicas e
morais e registando em tom exaltado as suas conquistas e façanhas mili-
tares. Embora sem ser objecto de nenhuma intervenção divina directa,
Afonso Henriques é aí apresentado como uma personagem favorecida por
um Deus a quem serve devotadamente com a sua espada.
Quanto ao segundo, é um relato em língua vulgar, preservado no
manuscrito quatrocentista que contém a IV Crónica Breve de Santa Cruz de
Coimbra, sobre cuja cronologia apenas era possível afirmar ser anterior à
chamada Crónica de Vinte Reis10. Em estudo recente, contudo, e partindo
do recuo da datação da crónica castelhana referida para os anos de 1282-
128411, Filipe Alves Moreira veio mostrar, com sólida base filológica, que
não apenas o relato sobre Afonso Henriques, mas o conjunto dos reinados
até Sancho II, tal como comparecem na IV Crónica Breve de Santa Cruz, era
testemunho de uma obra historiográfica em galego-português datável, o
mais tardar, de 1282. Após ponderada reflexão sobre hipóteses de prove-
niência, considerou que esta Primeira Crónica Portuguesa, onde o relato sobre
Afonso Henriques se integra, teria muito provavelmente sido redigida em
círculos próximos da corte de Afonso III, com recurso a materiais crúzios12.

6. A hipótese de que se trate da prosificação de um texto jogralesco de carácter épico,


defendida sobretudo por António José SARAIVA –História da Cultura em Portugal, Lisboa: Jornal
do Foro, vol. I, 1950, p. 152-164; A épica medieval portuguesa, Lisboa: Instituto de Língua Por-
tuguesa (Biblioteca Breve), 1979– e que gozou do favor da crítica durante várias décadas,
parece ter-se esgotado, sendo tacitamente posta de parte, neste novo século, sem que outras
propostas permitam esclarecer cabalmente a ou as origens dos motivos narrativos e sim-
bólicos que a compõem.
7. Ver, para os mais recentes avanços sobre o estudo deste texto, Filipe Alves MOREIRA,
Afonso Henriques e a Primeira Crónica Portuguesa, Porto: Estratégias Criativas, 2008. A edição res-
pectiva ocupa aí p. 125-137. Para efeitos de citação de texto, será aqui referida como PCP.
8. Ver Pierre DAVID (ed.), Études historiques sur la Galice et le Portugal du VI e au XII e siècle, Lisboa:
Livraria Portugália Editora, 1947, p. 257-340.
9. Ibid., p. 284.
10. Ver Diego CATALÁN, De Alfonso X al Conde de Barcelos, Madrid: Gredos, 1962, p. 214-288,
capítulo onde o estabelecimento da precedência entre os dois textos historiográficos em causa
é uma das questões centrais.
11. Ver em Inés FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ, Versión Crítica de la Estoria de España. Estudio y Edición
desde Pelayo hasta Ordoño II, Madrid: Fundación Menéndez Pidal - Universidad Autónoma de
Madrid, 1993, p. 113-114, a demonstração da identidade entre a Crónica de Vinte Reis e a versão
crítica da Estoria de España, redigida nos dois anos finais do reinado de Afonso X.
12. F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…, sobretudo p. 67-97.
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Ora, a imagem de Afonso Henriques que emerge deste texto não poderia
diferir mais da veiculada pelos anais. Em traços largos, o relato, que abarca
temporalmente a vida de Afonso Henriques, constrói-se com base numa
sucessão de episódios centrados na luta do protagonista pela autoridade
soberana e absoluta no reino de Portugal, num processo que é desenca-
deado pela disputa do poder entre o futuro rei e sua mãe. As vitórias aí
celebradas resultam em conquista não de terra aos mouros mas de poder
político e privilégios aos adversários cristãos. Algumas conquistas territo-
riais são aí referidas, sim, mas em registo enumerativo, estabelecendo uma
solução de continuidade entre o clímax da narrativa e a queda do prota-
gonista. Além disso, mais do que como um guerreiro invencível, Afonso
Henriques é neste relato apresentado como um homem temível e temido,
colérico, soberbo, indiferente a restrições éticas, e que, como punição pelo
seu desregramento de juventude, termina a vida numa humilhante inva-
lidez. Citando José Mattoso, «em vez de exaltar o rei e o conquistador do
território [o relato] retrata-o como um quase matricida e como um herói
marcado pela maldição»13.
A excentricidade transgressora desta imagem de Afonso Henriques,
que chegou a suscitar dúvidas sobre origem portuguesa do relato14, tinha
tacitamente inviabilizado a sua inserção ideológica em meios clericais ou
laicos próximos da corte régia. A proposta de Filipe Moreira, ao situar o
texto sobre Afonso Henriques na alçada ideológica da corte de Afonso III,
no âmago mesmo de um projecto de produção de memória no qual a
representação favorável monarquia portuguesa era por definição essen-
cial, não pode deixar de suscitar perplexidade15. Mais ainda, baseando-se
na análise interna do relato, Filipe Moreira defende que, independente-
mente da diversidade da génese dos diversos episódios que constituem o
reinado de Afonso Henriques, a sua escolha e ordenação obedece a um
plano de redacção coerente, comandado por uma intencionalidade pró-
pria16. Com efeito, para além dos indícios de unidade em evidência na
elaboração do relato, Moreira detecta nexos narrativos e ideológicos que
se tecem entre este reinado e os restantes que formam a Primeira Crónica
Portuguesa, em particular o de Sancho II17.
Dificilmente o reinado de Afonso Henriques poderia, pois, ter sido resul-

13. Ver José MATTOSO, «A primeira Crónica Portuguesa», Medievalista, 6, Julho 2009, [em
linha], [URL: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/]. Consultado em 7 Setembro 2011.
14. Ver D. CATALÁN, De Afonso X…, p. 267-275, p. 274-275, para uma reapreciação do pro-
blema, na sequência da qual, e com base na ideologia subjacente ao relato, reconduz a «lenda»
do fundador a uma origem portuguesa.
15. Ver F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…, p. 81-92.
16. Ibid., p. 45-49, 69.
17. Ibid., p. 58-59.
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tado da recepção passiva e acrítica de uma fonte prévia por parte de um


redactor que se tivesse limitado à tarefa de cópia. O que nos coloca perante
uma outra perplexidade: porque teria o projecto de escrita da Primeira Cró-
nica Portuguesa optado por uma codificação tão anómala da figura do pri-
meiro rei de Portugal, quando havia já aquela que está patente nos anais
redigidos em Santa Cruz, aos quais a corte não podia deixar de ter acesso?
José Mattoso considera esta situação com visível incomodidade, con-
cluindo: «O protagonista dos anais é um verdadeiro fundador. Mas o da
crónica é apenas um herói»18. Porém, um aspecto importante, e mais incó-
modo ainda, fica esquecido na sua observação. É que Afonso Henriques
não é «apenas um herói». É um herói maculado –um herói transgressor.
E é na ambiguidade mesmo desta dupla formulação, na qual o protago-
nismo heróico e a transgressão convivem, que se gera a especificidade da
personagem. O que nos leva a interrogarmo-nos sobre a forma como estes
dois elementos definidores articulam: Afonso Henriques é herói apesar de
ser transgressor, ou é herói por ser transgressor?
Analisemos então o relato da Primeira Crónica Portuguesa no sentido de
averiguar como é que a natureza transgressora do protagonista nele se
increve, por um lado, e, por outro, qual é o papel que esse parâmetro –a
transgressão– desempenha na construção da personagem heróica do pri-
meiro rei de Portugal.
A secção de abertura, antes ainda de Afonso Henriques encetar o seu
percurso de apropriação do poder, na qual ficamos a conhecer a genealogia
mínima do protagonista (filho do Conde Henrique e de Teresa, filha de
Afonso VI) e as circunstâncias da morte de seu pai na cidade de Astorga,
narra um episódio muito curioso que anuncia o tipo de dinâmica interna
que irá dar forma ao relato. O conde moribundo, qual David aconselhando
Salomão19, profere um discurso em que, colocando a tónica na virtude da
Justiça, expõe ao seu jovem filho (que, no relato se deduz ser um adoles-
cente, mas historicamente deveria ter dois ou três anos20) os deveres éticos
relativamente aos fidalgos e aos concelhos (nada é dito relativamente ao
clero). Trata-se, na verdade um sintético espelho de príncipes, só adqui-
rindo pleno sentido se tivermos em conta que o Conde se dirige a um
futuro rei –e isso não o sabia ele, mas sabia-o, e muito bem, o redactor.
Curiosamente, o remanescente do relato da crónica vai estar mais

18. J. MATTOSO, «A primeira Crónica…».


19. Sobre as virtualidades significativas desta imagem, ver José Carlos MIRANDA, «Na génese
da Primeira Crónica Portuguesa», Medievalista, 6, Julho 2009, [em linha], [URL: http://www2.
fcsh.unl.pt/iem/medievalista/]. Consultado em 7 Setembro 2011.
20. Embora os registos analísticos sobre o nascimento de Afonso Henriques não sejam
concordantes, situando-o quer em 1109 quer em 1110, o ano da morte do conde D. Hen-
rique, 1112, não oferece dúvidas.
60 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA

ocupado com a construção e definição do poder régio de Afonso Hen-


riques do que com a qualidade da sua governação, de modo que não
chegamos nunca a saber se os preceitos paternais foram acatados. Não
deixamos, porém, de chamar a atenção para o facto de a palavra «Jus-
tiça», aqui repetida três vezes em outras tantas linhas, e reforçada ainda
com duas referências ao «direito», não voltar a surgir nas restantes doze
páginas da crónica dedicadas ao reinado do primeiro rei.
A herança verbal do Conde a seu filho, porém, não é feita apenas de
princípios éticos de governação, passando também por conselhos prá-
ticos sobre como manter e aumentar o território que lhe lega. D. Hen-
rique recomenda expressamente ao jovem Afonso que mande os seus
vassalos enterrá-lo a Braga mas que não os acompanhe, e que perma-
neça em Astorga para não perder a cidade. Em vez de obedecer à direc-
tiva paterna, Afonso, aconselhado pelos vassalos, decide deixar a cidade
para honrar o corpo do pai. A consequência desta desobediência é um
descalabro. Afonso perde não só Astorga como ainda toda a terra circun-
dante, e com ela o apoio político do «Imperador» (como o texto chama
ao detentor do poder central leonês-castelhano, apesar de, historicamente,
a morte do Conde se passar em tempos da rainha Urraca21). É obrigado
então a procurar refúgio em Portugal, onde se depara com a oposição
armada da mãe, entretanto casada com um poderoso senhor galego, «o
milhor homem d’Espanha que rey nom fosse»22, Fernão Peres de Trava.
Apesar de motivada por um piedoso respeito pela dignidade póstuma
do pai, a desobediência à vontade deste não deixa, pois, de ser castigada.
O que se torna interessante notar é ser precisamente esse castigo que leva
Afonso Henriques a ter de construir o seu espaço próprio não com base em
Astorga, segundo o plano do Conde, mas a partir de Portugal. Assim, esta
primeira transgressão é codificada no relato como uma culpa, sem dúvida,
mas uma culpa propiciadora, uma felix culpa, instrumental para desenca-
dear o processo de construção política de Portugal e, portanto, necessária
para que a condição de herói do protagonista se possa manifestar.
É, pois, reduzido pela culpa a um estado de total despossessão, per-
dida a terra, as lealdades e os afectos, que o Afonso Henriques da Primeira
Crónica Portuguesa se confronta com o destino que lhe cabe construir. Mais

21. O conde D. Henrique morre em 1112, e a rainha Urraca reina entre 1109 e 1126,
sucedendo-lhe nesse ano seu filho Afonso VII. Se tivermos em conta que o cronótopo do relato
sobre Afonso Henriques aproxima temporalmente muito a morte do Conde dos episódios
bélicos envolvendo o jovem e a mãe, que historicamente ocorrem em 1128, já no reinado de
Afonso VII, torna-se verosímil esta transferência para o «Imperador» da animosidade contra
o futuro rei de Portugal. Para uma perspectiva complementar, ver J. C. MIRANDA, «Na génese
da Primeira…».
22. PCP, p. 127.
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 61

um chevalier déshérité, como tantos protagonistas do romance cortês, em busca


do seu espaço e da sua identidade. Mas aqui, na crónica, essa identidade
e esse espaço estão predefinidos pela realidade extratextual e resumem-se
em três palavras: rei de Portugal. Ou seja, detentor da autoridade sobe-
rana no território identificado por esse topónimo.
Tal como o relato no-lo apresenta, o percurso do herói não aparenta
ser, num primeiro nível de análise, um percurso de construção, mas de
apropriação. Afonso Henriques não impõe o seu domínio sobre um espaço
devoluto; antes reclama em nome próprio o poder exercido já no terri-
tório por outras entidades. Num segundo nível de análise, porém, torna-se
evidente que os sucessivos confrontos de Afonso Henriques com os adver-
sários que, um a um, derrota e destitui de prerrogativas sobre Portugal,
corresponde a um processo de construção da autoridade soberana através
da apropriação cumulativa das várias faces do poder reconhecidas nas teo-
rias políticas da época23. Ora esta concentração de poderes nas mãos do
primeiro rei de Portugal, assim exposta na crónica inaugural da monar-
quia portuguesa, não pode deixar de ser entendida como a consciência
e defesa de uma determinada concepção do poder régio que convirá ter
em conta, pois não terá decerto sido alheia à ideologia prevalecente no
meio onde foi produzida.
Com efeito, o percurso heróico de Afonso Henriques atinge o zénite
quando completa a expurgação do território Português de todos os outros
poderes que não o seu: «E des ali adiante […] en todos os seus dias nem
huum nom fez al em toda sa terra senom o que elle quis»24. E esse percurso
é cumprido segundo um plano que denota uma concepção ordenada e hie-
rarquizada do poder, da realeza e da igreja. Assim, a reclamação política de
Afonso Henriques vai efectivar-se, primeiro, contra os poderes temporais
que se exerciam sobre o território portucalense, emanando um do seu inte-
rior, a própria mãe do protagonista, que se assumia como senhora da terra,
e sendo o outro um inimigo vindo de fora e mais poderoso: o seu primo
Afonso VII, no texto identificado apenas como o «Imperador», represen-
tando esta designação, uma vez mais, o centralismo leonês-castelhano. Em
seguida, Afonso Henriques irá medir-se com o poder espiritual, exercido,
segundo a mesma lógica amplificadora, primeiro pelo bispo de Coimbra
e depois pelo próprio Papa, através do cardeal seu legado.
Entre estas duas fases da reclamação de autoridade, encontra-se a curta
menção a Ourique, «E despois ouve batalha enos quampos d’Ourique e

23. Walter ULLMANN, Principios de gobierno y política en la Edad Media, Madrid: Alianza Edito-
rial, 1985, p. 33-151, apresenta uma síntese eficaz da problemática que contrapunha, nas teo-
rias políticas medievais, os fundamentos legitimadores, o alcance e os limites do poder papal
e do poder real.
24. PCP, p. 135.
62 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA

venceo-a. E des ally em diante se chamou el rey dom Affomso de Purtugal»25,


única acção bélica do protagonista contra os mouros até aqui mencio-
nada. Esta parece ser, aliás, a mais antiga menção datável da ligação entre
a realeza de Afonso Henriques e esta batalha, que as fontes coevas do pri-
meiro rei não corroboram26. A referência à entronização do protagonista
neste ponto preciso do relato destina-se, por certo, a conferir-lhe o esta-
tuto régio indispensável para discutir e disputar com os representantes da
Igreja as prerrogativas e limites do poder eclesiástico, sendo que a asso-
ciação entre a realeza e a batalha mobilizava ainda a mais-valia de cre-
dibilidade que, em matérias religiosas, a guerra vitoriosa contra o infiel,
mesmo não implicando conquista de território, acarretava.
É claro que, com ou sem mouros, este processo de reclamação e apro-
priação de autoridade não é representado como pacífico. O esforço bélico
–que, sintomaticamente, nas secções narrativas dos Anais de Afonso Henriques,
se concentra na conquista aos mouros– é evocado no contexto das disputas
de soberania entre Afonso Henriques e os seus adversários políticos cristãos
laicos, sendo concretizado em duas batalhas, travadas a primeira contra
a mãe, D. Teresa, coadjuvada pelo Conde de Trava e a segunda contra o
primo, Afonso VII, o Imperador. As querelas que se seguem com a Igreja
e seus representantes –de que resultam, para o novel rei, a prerrogativa de
nomear os bispos do seu reino, e, para o novel reino, a isenção de exco-
munhão em vida do fundador– não mobilizam exércitos, mas estão envol-
vidas num clima brutal de violência iminente, pontuado por uma profusão
de ameaças sangrentas. É à ponta da espada que Afonso Henriques se apo-
dera das prerrogativas régias, e é de espada na mão que as defende27. Con-
tudo, embora a vontade do protagonista acabe sempre por prevalecer, a sua
acção não está isenta de momentos de fraqueza, como quando, ainda muito
jovem, é «foi arrinquado […] e foi mui maltreito»28 em Guimarães, aban-
donando a batalha; nem é poupado a papéis caricatos inadequados a uma
personagem tão poderosa, como quando acorda tarde e toda a corte excepto
ele sabe já que o legado do Papa fugiu de Coimbra. O terror que infunde
–e isto é particularmente evidente nos episódios que o opõem à Igreja– não
deixa, paradoxalmente, de roçar o ridículo, com as suas sonoras e repetidas
ameaças de cortar cabeças, pés e mãos a amedrontados membros do clero29.

25. PCP, p. 130.


26. Ver J. C. MIRANDA, «Na génese da Primeira…», onde o autor considera ser a Primeira
Crónica Portuguesa o texto mais antigo onde essa ligação se torna visível.
27. Acerca da espada como símbolo de soberania na sociedade medieval Ibérica, ver Boni-
facio PALACIOS MARTÍN, «Los símbolos de la soberania en la Edad Media española. La espada»,
in: VII Contenario del Infante Don Fernando de la Cerda. Ponencias y comunicaciones, Ciudad Real: Ins-
tituto de Estudios Manchegos, 1976, p. 273-296, p. 283-288.
28. PCP, p. 128.
29. Ver os episódios do Bispo Negro e do Legado do Papa, PCP, p. 130-135.
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 63

Os quatro episódios de reclamação de poder travejam, assim, a estru-


tura da narrativa, constituindo uma sucessão de etapas programáticas
na construção da soberania de Afonso Henriques, e emprestando ao
impetuoso percurso régio uma ponderação política inesperada. Porém,
o redactor não parece interessado em dar visibilidade a esses nexos con-
ceptuais implícitos, que se reflectiriam com vantagem na imagem do pro-
tagonista. Pelo contrário, dá-se ao trabalho de fornecer uma explicação
alternativa, que, curiosamente, em nada parece beneficiar o herói, con-
tribuindo antes para marcar Afonso Henriques com o estigma da trans-
gressão e a mácula da culpa.
Vejamos então quais são os argumentos que o relato emprega para jus-
tificar a sequência de acontecimentos que conduzem o protagonista ao seu
destino heróico. Voltemos ao momento em que o jovem Afonso Henriques,
perdido o património paterno e escorraçado pela própria mãe, pega em
armas contra ela, começando a disputar-lhe o território português. Não
convergindo as duas partes em litígio na interpretação do direito sucessório
que legitimaria para cada um a posse da terra –pois D. Teresa apoia-se
numa sucessão genealógica que não excluiria as mulheres, «Minha hé a terra
e minha seera ca meu padre el rey dom Affomso ma leixou»30, enquanto
Afonso Henriques invoca uma lógica patrilinear, «pesse a Deus, porque
vós me queredes sacar da terra de meu padre»31, dando continuidade ao
direito de conquista que enforma ideologicamente o texto32–, decidem-se
pela resolução do pleito em no campo de batalha. É na sequência dessa
atribulada peleja, onde, após um revés inicial, o protagonista conquista
o domínio do território portucalense, que é cometida a suprema trans-
gressão: Afonso Henriques agrilhoa a própria mãe.
Os dados históricos factuais, documentados e incontroversos, de que
dispomos sobre o primeiro rei de Portugal são escassos, e muito daquilo
que sobre ele se deu por certo ao longo de séculos reconhece-se hoje não
passar de construções legitimatórias produzidas em épocas sucessivas33.
Na verdade, a data e local do seu nascimento são controversos, o ano
em que começou a reinar varia de fonte para fonte e os historiadores
ainda estão para chegar a acordo sobre o facto ou circunstância que terá

30. PCP, p. 127-128.


31. PCP, p. 127.
32. Convém não esquecer que, logo no início da «estorea dos reis de Purtugall», a crónica
deixa entender que as extensas possessões territoriais do Conde D. Henrique, que este declara
terem sido por ele ganhas «com gram coita» tinham origem nas suas «muitas fazendas com
mouros e com leoneses», (PCP, p. 125). Sobre o assunto, ver J. C. MIRANDA, «Na génese da Pri-
meira…». Acerca do direito de conquista, ver ainda B. PALACIOS MARTÍN, artigo citado, p. 280-283.
33. Para uma iluminante problematização e discussão das ambíguas relações entre as ver-
tentes interpretativa e factual do reinado de Afonso Henriques, ver José MATTOSO, D. Afonso
Henriques, Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 9-16.
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marcado ou propiciado o seu acesso à realeza e sobre o tipo de funda-


mentação legitimatória em que se terá apoiado, já que a ligação entre a
realeza de Afonso Henriques e a batalha de Ourique parece ser uma efa-
bulação ideológica tardia.
Como quer que seja, não existem dúvidas que Afonso Henriques se
terá oposto a sua mãe, vencendo-a militarmente e substituindo-a à frente
dos destinos de Portugal34. Todavia, nenhum registo da época refere o
facto de este a ter aprisionado. É verdade que o episódio da prisão da
rainha e/ou do conde seu amante, feitos prisioneiros pelo filho desta ou
por alguém em nome dos seus interesses, ocorre também na historiografia
em relação com a rainha Urraca e o conde Pedro de Lara. Os inúmeros
paralelismos que, desde a Historia Compostelana, foram sendo tecidos entre
as duas filhas de Afonso VI e as respectivas circunstâncias familiares e polí-
ticas35 atingem talvez o momento mais enigmático na semelhança que se
verifica entre a prisão de Teresa e do Conde de Trava, na Primeira Crónica
Portuguesa, e a versão da prisão de Urraca e do Conde de Lara que, no
século XVI, foi transcrita por Acenheiro a partir de velhas crónicas, e que
corresponderá à que estaria contida na fonte da versão crítica da Estoria de
España para esse passo36.
A derradeira obra historiográfica de Afonso X acolhe, pois, os relatos
do aprisionamento das duas rainhas e dos seus condes. Ora, as duas histo-
rietas são de tal modo idênticas que até as promessas finais de submissão
dos condes aos filhos das respectivas rainhas recuperam as mesmas fór-
mulas37, não deixando dúvidas de que nos encontramos perante uma única

34. Pelo menos duas fontes narrativas coevas, uma de meados e outra de finais dos século XII,
a Vida de D. Telo (Aires A. NASCIMENTO (ed.), Hagiografia de Santa Cruz. Vida de D. Telo, Vida de D.
Teotónio e Vida de Martinho de Soure, Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 56-137, sobretudo p. 58)
e os Anais de Afonso Henriques (ed. BLÖCKER-WALTER, p. 152) mencionam explicitamente essa
circunstância.
35. Ver, para um enquadramento da questão e selecção bibliográfica, Maria do Rosário
FERREIRA, «Urraca e Teresa: o paradigma perdido», in: Esther CORRAL DÍAZ, In Marsupiis Pere-
grinorum, Florença: Edizioni del Galluzzo, 2010, e, para, uma selecção bibliográfica sobre
p. 201-214, sobretudo p. 204, n. 5, (versão revista disponível em linha, [URL: http://semina-
riomedieval.com/guarecer/Urraca_e_Teresa_Marsupio_Guarecer%5B1%5D.pdf]. Consul-
tado 7 Setembro 2011).
36. Sobre a fonte de Acenheiro e a sua relação com a versão crítica da Estoria de España, ver
Filipe Alves MOREIRA, «Um novo fragmento da Crónica Portuguesa de Espanha e Portugal de 1341-
1342 e suas relações com a historiografia alfonsina», disponível em linha, [URL: http://semi-
nariomedieval.com/guarecer/fam2009.pdf]. Consultado 7 Setembro 2011.
37. Se abstrairmos do contexto doméstico em que se passa a prisão da Rainha Urraca,
contrastando com a batalha que na PCP antecede a cena, as semelhanças são flagrantes:
«[Afonso Henriques] prendeo seu padrasto e sua madre. E o conde cuidou aa ser morto,
e fez-lhe preito e menagem que nunca entrasse em Purtugal. E disi foi-se pera terra d’ultra
mar» (PCP, p. 128-129); «emtrou o Emperador pella casa de sa madre, e premdeo-a, e des
ahi premdeo seo padrasto, e tomou-lhe menagem de nũca mais tornar a sa madre; e foi-se o
Comde Dom Pedro de Lara comtra mar» (Cristovão Rodrigues ACENHEIRO, Chronicas, p. 128-
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 65

tradição indiferentemente aplicada às duas irmãs. Contudo, ao incor-


porá-la, a Primeira Crónica Portuguesa singulariza-a, pois coroa-a com uma
sequência narrativa que a tradição adaptada a Urraca desconhece: o efec-
tivo agrilhoamento da mãe e a maldição lançada por esta sobre o filho.
E Affomso Anrriquiz emtom meteo sa madre em ferros. Ella quando vio que
a aasi prendia a madre disse: «Afomso Anrriquiz meu filho prendestes-me e
metestes-me em ferros e deserdastes-me da terra que me leixou meu padre e
quitastes-me do marido. Rogo a Deus que presso sejades asi como eu sõo. E
porque me metestes nos meus pees ferras, quebrantadas sejam as tas pernas
com ferros. E mande Deus que se conpra esto»38.

Como este excerto mostra, a maldição materna instaura explicitamente


no texto a dinâmica de crime/castigo que, como vimos, está actuante nos
bastidores da narrativa desde a sequência inicial, em Astorga. Como se
deduz da continuação do texto, a praga rogada pela mãe em Guimarães
irá ser a causa última (ou primeira…) da derrota e humilhação final do Rei
Afonso Henriques, em Badajoz39. Mas as sequências de transgressão/punição
não ficam por aqui. O episódio final, que conta a queda do herói, vai ele
também, internamente, obedecer à mesma relação de causa e efeito. Diz
o texto que, violando os espaços de conquista atribuídos a cada reino, o rei
de Portugal tinha tomado aos mouros a cidade de Badajoz, que por direito
pertenceria a Leão («era em seu termo, porque era sua a conquista»40), cujo
rei, Fernando II, seu genro, se apressa a ir reclamar pelas armas. Afonso
Henriques prepara-se para sair do castelo ao encontro do exército do seu
adversário, mas cavalga com tal ímpeto que bate com um joelho no fer-
rolho da porta, caindo do cavalo e sendo feito prisioneiro. Uma vez mais, o
infortúnio do herói é o justo desfecho de uma acção transgressora. Porém,
em termos de estrutura geral do relato, essa punição apenas superficial-
mente se relaciona com o agravo ao rei de Leão, já que corresponde ao
cumprimento da maldição muito antes lançada pela mãe. O redactor, aliás,
não parece querer deixar que pairem dúvidas sobre a relação entre os dois
acontecimentos, pois, no início do episódio, anuncia: «Depois desto, pollo

129, apud F. A. MOREIRA, «Um novo fragmento…»); «entro el rrey don Alfonso por el palaçio
e prendio luego a su madre; e desi a su padrasto […]. E el conde don Pedro, cuydando ser
muerto, fizo le pleito e omenaje que nunca tornase en su madre e que el salerie luego de toda
la tierra suya» (Mariano DE LA CAMPA GUTIÉRREZ (ed.), La «Crónica de Veinte Reyes», p. 651, apud
F. A. MOREIRA, «Um novo fragmento…»).
38. PCP, p. 129.
39. Trata-se de uma articulação há muito apontada pela crítica. A forma concreta como
a maldição de D. Teresa conduz o fio da narrativa, estabelecendo a ligação explicita entre os
vários episódios e assegurando um primeiro nível de coesão do relato é aprofundada e siste-
matizada por F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…, p. 25-49.
40. PCP, p. 136.
66 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA

mal e pollo pecado que fez a sa madre em prende-lla, quebrou-lhe huua


perna em Badalhouce que havia filhada a mouros»41.
O crime de Afonso Henriques torna-se ainda mais notório pela cir-
cunstância de, nas suas deslocações pelo reino, ele levar «consigo sa madre
pressa»42, afirmação que o relato repete. Longe de escamotear a acção do
primeiro rei de Portugal contra a mãe, o texto da crónica parece obsessi-
vamente empenhado em chamar a atenção para essa acção e para as suas
consequências. A evocação da situação transgressora não surge apenas neste
ponto, em que a proximidade do cumprimento da maldição poderia de
alguma forma justificá-la, mas em momentos da história onde se esperaria
que a figura do herói surgisse expurgada de qualquer ambiguidade ética.
De facto, as provas heróicas do percurso de Afonso Henriques, correspon-
dendo às sucessivas etapas da sua apropriação da soberania, surgem como
decorrência da prisão de D. Teresa, sendo esse efeito conseguido por meio
de frases de ligação equivalentes à que introduz o episódio de Badajoz.
Diz pois o texto que, vendo-se presa, D. Teresa «enviou-se logo querelar
ao emperador de Castela, que era seu sobrinho, que lhe acorresse e que
a sacasse de prissom»43, propiciando assim a batalha de Valdevez, em que
Afonso Henriques obtém sobre o Imperador e as forças «d’Aragam e de
Castela e de Leom e de Galiza»44 por ele comandadas a decisiva vitória
que no texto sanciona a autonomia política do território português. De
forma semelhante, quando, já rei, Afonso Henriques se defronta com o
tentacular poder eclesiástico, é uma vez mais a questão da mãe que des-
poleta o conflito: «E o apostolico ouvio dizer como prendera sa madre, e
que a trazia consigo pressa. E mandou-lhe dizer polo bispo de Coimbra
que sacasse sa madre de prisson, e senom que o escumungaria»45. Afonso
Henriques sai do confronto vencedor, passando a investir os membros do
alto clero português segundo a sua vontade e tendo além disso a garantia
de não excomunhão, para ele e para o seu reino, enquanto vivesse.
O relato estabelece, assim, uma relação de causa e efeito entre cada
triunfo do herói e a transgressão máxima por ele cometida, não deixando
esquecer a sua condição maculada, mas mostrando que a mesma mácula
está na origem da sua heroicidade. Secundando a desobediência ao pai,
o pecado contra a mãe, que a crónica ostenta perante aqueles para quem
foi escrita como Afonso Henriques exibe perante o reino doravante seu
o troféu da mãe agrilhoada, configura-se uma vez mais como uma culpa
salvífica, sem a qual nem o rei nem o reino teriam chegado a existir.

41. PCP, p. 135-136.


42. PCP, p. 130.
43. PCP, p. 129.
44. PCP, p. 129.
45. PCP, p. 130.
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 67

Todavia o relato, tão hábil em indistinguir o pecado da salvação, não se


presta a uma leitura unívoca da punição. Porque se a maldição se cumpre
e a perna de Afonso Henriques é quebrada com ferro, conforme a mãe
agrilhoada tinha exigido invocando o testemunho e o poder de Deus, o
ferro que a quebra não é o de uma espada brandida por mão humana, mas
o de um destino inescapável mediado pelo longo braço do mesmo Deus:
«E como el rey dom Afonso foi armado […] deu das esperoras ao cavallo
[…] e acertou a perna perante o ferrolho da porta […] que lhe quebrou
a perna e foi logo cair em huum centeal»46. Ao poupar o herói à humi-
lhação de ser derrubado por um adversário, o relato insinua que a inesca-
pável maldição é de alguma forma mitigada por um julgamento superior
que, sem negar a culpa, a relativiza e atenua, permitindo uma expiação.
De facto, a história de Afonso Henriques, agora coxo e prisioneiro, não
termina aqui. A cortesia do seu captor, e o engenho do redactor, permitem-
lhe ainda uma última façanha, se bem que já não do foro guerreiro. Apie-
dando-se do velho e enfermo rei, Fernando de Leão liberta-o a troco dos
castelos galegos que ainda detinha e com a promessa de que «como caval-
gasse em cavallo fosse a el rey dom Fernando hu quer que ele fosse»47, ou
seja, de se entregar a seu genro quando recuperasse o uso das pernas. É
neste momento que, pela derradeira vez, o relato expõe a natureza trans-
gressora do seu herói, de quem conta que «E entom se tornou a Coimbra
e nunca mais quis cavalgar em todos seus dias em cavallo ataa que morreo.
E andava em huũa carreta»48. Afonso Henriques encena a sua invalidez
e permanece em Portugal. A Crónica de Castela virá a referir-se à situação
do rei de um modo mais sugestivo, dizendo que «sempre andou en andas
et en colo dos omes ata que morreu»49. O que importa nestas imagens
é a desvirilização da personagem, que sem o uso das pernas perde não
só a autonomia geral mas a capacidade guerreira. Sentado na sua car-
reta, Afonso Henriques não mais poderá aterrorizar os inimigos, ficando
confinado a uma espécie de limbo onde, sem deixar de ser rei, não pode
cumprir a função que como rei lhe caberia e que sempre tinha sido a sua:
defender o seu reino com a sua espada.
Em Badajoz, perde-se pois o remanescente da herança não portucalense
que o conde D. Henrique tinha confiado a seu filho, passando as fronteiras
cristãs do reino de Portugal a coincidir com os limites do antigo condado,
o dote de D. Teresa, a mãe, que a Primeira Crónica Portuguesa tacitamente

46. PCP, p. 136.


47. PCP, p. 136.
48. PCP, p. 136-137. Destaques meus.
49. Ramón LORENZO (ed.), La traducción gallega de la Crónica General y de la Crónica de Castilla,
Orense: Instituto de Estudios Orensanos «Padre Feijóo», 1975, cap. 473, p. 691.
68 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA

esquecera ao referir a proveniência dos territórios dominados pelo pai50.


Porém, e entrando agora no domínio do simbólico, assegura-se aí também
a salvação do reino pela astúcia do rei. Este, ao aceitar a invalidez inca-
pacitante como expiação da felix culpa, pode continuar a protegê-lo com
a sua presença tutelar, doravante investida do valor salvífico que lhe con-
fere o sacrifício auto-infligido da sua dignidade e da sua espada.
A imagem de herói que emerge da Primeira Crónica Portuguesa não é,
pois, exactamente a de um simples «caudilho irrequieto e colérico», evo-
cada por José Mattoso51, mas a de uma personagem complexa e ambígua,
cujo percurso heróico, mais do que nos feitos, assenta no valor salvífico da
transgressão e que transporta consigo uma forte carga expiatória e sacri-
ficial. Na realidade, mais do que um herói convencional, a figura que a
crónica desenha parece corresponder ao trickster, um tipo particular de
herói fundador e civilizador bem caracterizado nas mitologias amerín-
dias, polinésias e africanas, cuja acção se fundamenta na violação mágica
dos interditos com vista ao benefício da sociedade52. Os mitos do trickster
estão cheios de actos ostensivos de rebelião, de desobediência, de desafio,
de transgressão e de sacrilégio, que têm precisamente a função de expli-
citar, na linguagem simbólica do mito, a função do herói. Além da trans-
gressão, o que o caracteriza o trickster é o seu destino sacrificial e expiatório,
assumindo a culpabilidade colectiva da sociedade que o cria. A mitologia
ocidental não é fértil em tricksters, mas em compensação criou e um dos
exemplos mais acabados e mais férteis do tipo, na figura de Prometeu53.
Esta chave mítica do relato sobre Afonso Henriques que comparece na
Primeira Crónica Portuguesa talvez possa ajudar a esclarecer as perplexidades
enunciadas por José Mattoso. Em primeiro lugar, a compatibilização do
tipo de herói no qual Afonso Henriques se enquadra com a problemática
da fundação. Os estudos de história comparada das religiões corroboram a
afirmação de que um fundador não é necessariamente um instrumento da
vontade divina. É, sim, um instituidor de civilização humana, muitas vezes
entendida como desafio ou mesmo sacrilégio contra uma ordem superior

50. Sobre esse «esquecimento», ver as considerações de F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…,


p. 141-142.
51. J. MATTOSO, «A primeira Crónica…».
52. O estudo clássico sobre o trickster, numa perspectiva antropológica, do qual este tra-
balho é largamente devedor, é da autoria de Laura MAKARIUS, «Le mythe du trickster», Revue de
l’histoire des religions,175 (1), 1969, p. 17-46, e entende o trickster como a projecção, no plano do
mito, do violador ritual de interditos. São, a todos os títulos, surpreendentes e esclarecedoras
as correspondências entre o perfil e a acção típicos do trickster nos mitos em que participa, des-
critos por L. Makarius, e a personagem de Afonso Henriques na Primeira Crónica Portuguesa.
53. Ver Gedalihahu G. STROUMSA, «Myth into Metaphor: the Case of Prometheus», in:
Sh. SHAKED, D. SHULMAN e G. G. STROUMSA, Gilgul: Transformations, Revolutions and Permanence in
the History of Religions, in Honor of R. J. Z. Werblowsky, Leiden: Brill, 1987, p. 309-323.
DO VALOR FUNDACIONAL DA DESOBEDIÊNCIA 69

ou, pelo menos, anterior54. Não pretendo discutir aqui qual é a ordem que
Afonso Henriques transgride. Isso, será assunto para um outro estudo55.
Apenas quero notar que a componente exacerbadamente transgressora
desta personagem, tão ligada ao seu destino sacrificial, não deve ser enten-
dida como um óbice à sua função fundadora da coroa portuguesa. O que
resta explicar –e é essa a segunda e mais funda perplexidade– é por que
razão foi a Primeira Crónica Portuguesa escolher uma modalidade de represen-
tação tão marcada pela violação de interditos, quando tinha à sua dispo-
sição a codificação ideologicamente menos problemática dos anais crúzios.
Vejamos. Por trás da encenação imagética da mãe agrilhoada, o que
o texto mostra sem o dizer é uma usurpação de poder. Ora, se Filipe
Moreira tem razão e a Primeira Crónica Portuguesa emana de facto da corte de
Afonso III, como foi referido no início deste estudo, convirá não esquecer
quem foi esse rei, e de que forma chegou ao trono, sucedendo a seu irmão
Sancho II, deposto por bula papal em 1245, e dando origem a dois anos
de guerra civil56.
O discurso historiográfico tende a enfatizar a premência das razões do
afastamento de Sancho II, sobretudo a falta de Justiça –que a Primeira Cró-
nica Portuguesa tão enfaticamente refere no reinado deste rei, retomando
finalmente, na negativa, o tópico anunciado no discurso do pai mori-
bundo a Afonso Henriques «nom lheixes a fazer justiça»57, mas deixado
em suspenso até à crise de deposição do antecessor de Afonso III– e ainda
a negar ou a minimizar a resistência do reino ao domínio do seu indigi-
tado sucessor58. Porém, alguns curtos episódios narrativos envolvendo os

54. Bastaria lembrar, uma vez mais, Prometeu roubando aos Deuses o fogo para o trazer
aos homens, ou Rómulo –figura caracterizada de «primeiro rei» das mitologias indo-europeias–
e a lenda da Fundação de Roma, tão recheada de quebras de interditos produtivas, para per-
ceber a ambivalência essencial destes heróis. Para uma sistematização do assunto, ver Pierre
BOUDROT, «Le héros fondateur», Hypothèses, 1, 2001, p. 167-180, onde ressalta o aspecto desa-
fiador e transgressor do fundador, e ainda François DELPECH, «Rite, légende, mythe et société :
fondateurs et fondations dans la tradition folklorique de la péninsule Ibérique», Medieval Folk-
lore, 1, 1991, p. 10-56, para uma perspectiva mais centrada na Ibéria, que deixa entrever a exa-
cerbação do aspecto sacrificial ligado à fundação.
55. O facto de a transgressão magna de Afonso Henriques estar codificada no relato como
um pecado contra a mãe, e a imagem mais do que desfavorável que o texto dela constrói presta-
se a reflexão, e aponta para uma interessante sobreposição com as questões relativas ao poder
detido pelo feminino na Ibéria medieval.
56. Sobre estes dois rei e as circunstâncias dos respectivos reinados, ver Hermenegildo
FERNANDES, D. Sancho II, Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, e Leontina VENTURA, D. Afonso III,
Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
57. PCP, p. 126.
58. Ver em F. A. MOREIRA, Afonso Henriques…, p. 54-66, a análise e comentário deste rei-
nado na PCP, em particular a forma como a referência à justiça no contexto da deposição cria
nexos de coesão no relato global da crónica, tendentes a justificar a acção política que levou ao
trono Afonso III e a acentuar a recuperação simbólica, na figura deste rei, do estado de inte-
gridade primordial particular ao fundador.
70 MARIA DO ROSÁRIO FERREIRA

principais intervenientes no processo, e, dentro da poesia, manifestação


literária aristocrática por excelência, um conjunto de composições satí-
ricas, guardam sinais de que o conflito desencadeado pela destronização
de Sancho II terá mobilizado profundamente a consciência dos valores
senhoriais e causado vivo repúdio59. Sem rotularem directamente de usur-
pação o processo de sucessão de Sancho II por Afonso III, os textos não
deixam de considerar traidores e perjuros aqueles que compactuam com
os desígnios do novo governante.
A memória do teor transgressivo dos acontecimentos parece ter per-
durado, já que Afonso X –apoiante de Sancho II por razões ideológicas,
aliado de Afonso III por considerações políticas–, numa composição de
uma fase tardia do seu reinado em que se queixa hiperbolicamente da
traição da nobreza (CSM 235), estabelece uma comparação com o rei
português destronado, exclamando repetidamente no refrão: «nunca assi
foi vendudo Rey Don Sanch’en Portugal». É possível que, sob a capa da
pacificação política das tensões resultantes da deposição de D. Sancho, a
fractura ideológica tenha perdurado, com toda a carga de culpa colectiva
cujo responsável último é o rei «usurpador», Afonso III, o rei que trouxe
a justiça, mas a fez pagar com o preço da traição. É como manifestação
catártica de um clima de insanável incómodo face à legitimidade moral
de Afonso III que pode fazer sentido a representação de Afonso Henri-
ques como tricskter, funcionando como projecção mítica do violador que
transcende a lei em benefício do grupo e assume e expia a culpabilidade
de todos para que a ordem social triunfe60.
É tempo de concluir. Tal como a Primeira Crónica Portuguesa a apre-
senta, a dimensão heróica de Afonso Henriques não é, pois, histórica, mas
mítica. E, por isso mesmo, o primeiro rei não é uma figura exemplar, mas
uma figura tutelar. Um guardião velando sobre o seu reino, para sempre
suportando e expiando uma culpa –a culpa acumulada não apenas das
suas transgressões pessoais e primordiais, mas de todas as transgressões a
cometer no futuro pelos seus sucessores e pelos respectivos súbditos, neces-
sárias para que não se perca Portugal.

59. Herlânder Gonçalves DOS SANTOS, D. Sancho II: Da deposição à composição das fontes literárias
(séc. XIII e XIV), (dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, policopiada), Porto: FLUC, 2009, dedicou-se ao estudo destes textos reveladores de um
debate ético no qual os partidários do Conde de Bolonha, futuro Afonso III, são condenados
sem hesitação por uma opinião pública aristocrática que representa aqueles que entendem,
apesar da bula papal de deposição, continuar a dever fidelidade ao seu senhor jurado, Sancho II.
60. Ver L. MAKARIUS, artigo citado, p. 25-26.

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