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A literatura e a vida:

por que estudar literatura?


Vitor Cei
João Guilherme Dayrell
Michel Mingote Ferreira de Azara

Organizadores

A literatura e a vida:
por que estudar literatura?

(RCG-PRAIA)
VILA VELHA, 2015
Conselho Editorial

Gilberto Medeiros
Flávio Marcelo Pereira
Flávio Borgneth
Tarso Brennand
Vitor Cei

&RPLWr&LHQWt¿FR

Coordenador
Vitor Cei Santos
Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
Membros
Andressa Zoi Nathanailidis
Universidade Vila Velha (UVV)
André Tessaro Pelinser
Universidade de Caxias do Sul (UCS)
David G. Borges
Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Fábio Goveia
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Paulo Edgar R. Resende
Universidade Vila Velha (UVV)
Sérgio da Fonseca Amaral
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
© 2015 Os autores

É livre a utilização, duplicação, reprodução e distribuição


desta edição, no todo ou em parte, por todo aquele que
desejar, bastando citar a fonte. Comercialização proibida.

Diagramação LABED (FALE/UFMG), Vitor Cei e Giba


Capa Alemar Rena
Revisão Os autores
Edição Gilberto Medeiros

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A PESQUISA É UMA ESCRITA
AUTONOMAMENTE REAL

Raul Antelo

L’université moderne devrait


être sans condition. Par « université
moderne », entendons celle dont le
modèle européen, après une histoire
médiévale riche et complexe, est
devenu prévalent, c’est-à-dire «
classique », depuis deux siècles,
dans des États de type démocratique.
Cette université exige et devrait se
voir reconnaître en principe, outre ce
qu’on appelle la liberté académique,
une liberté inconditionnelle de
questionnement et de proposition,
voire, plus encore, le droit de dire
publiquement tout ce qu’exigent une
recherche, un savoir et une pensée
de la vérité. Si énigmatique qu’elle
demeure, la référence à la vérité,
paraît assez fondamentale pour se
trouver, avec la lumière (Lux), sur les
insignes symboliques de plus d’une
université. L’université fait profession
de la vérité.1

Ci-git Piron, qui ne fut rien,


Pas même académicien2

1 DERRIDA. L´Université sans condition, p. 11-12.


2 Epitáfio de Alexis Piron (1689-1773) citado por
MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles, p. 241.
14
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ao receber este convite para pensar a pesquisa na
pós-graduação em Letras, pensei que, antes de mais
nada, era bom sublinhar que essa atividade, mesmo
que atravessada por uma ambição de universalidade,
nunca é um pressuposto estático, e não é nem mesmo
um a priori dado, porque ela deveria ser entendida, pelo
contrário, como um processo que nos exige, basicamente,
emancipar-nos da essência, desamarrar-nos de vínculos
tradicionais, corriqueiros, testados, de tal sorte que a
OLEHUGDGH GH SHVTXLVD VH UHGH¿QH FRPR XPD OLEHUGDGH
de existência, algo sans condition, como dizia Derrida
e, nesses entido, ela aponta uma autonomia da própria
vida, algo que se confunde com o êxtase, se por êxtase
entendemos um ir para além de nós mesmos. Daí que
Jean-Luc Nancy nos diga que, no domínio da ética, a
ontologia deve se tornar uma eleuterología,3 um saber
que contém a liberdade, porém, sob leis muito precisas,
OHLVpWLFRSUiWLFDVH[WUHPDPHQWHHVSHFt¿FDV6XUJHPGDt
TXHVW}HV EHP FRQFUHWDV$TXLOR TXH HVWi SDUD VHU IHLWR
o que se pesquisa como ato de per quaere, não se situa
nunca no registro de uma poiesis, como uma obra cujo
esquema já estaria previamente traçado, mas no registro
de uma praxis, que, de relevante, só produz mesmo,
retrospectivamente, seu próprio agente.4 Não apenas
a psicanálise lacaniana, mas também a esquizoanálise
GHOHX]LDQDFRQÀXHPQHVVHSRQWR

Le desir est un exil, le desir est un

3 NANCY. L’expérience de la liberté, p. 24.


4 NANCY. L’expérience de la liberté, p. 38.
15
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
desert qui traverse le corps sans
organes, et nous fait passer d’une
de ses faces a l’autre. Jamais un exil
individuel, jamais un desert personnel.5

Deleuze & Guattari dizem, com efeito, que todo


desejo é um deserto, quer dizer, todo deserto é um vazio,
daí que o desejo seja um vazio ou, com maior precisão, ele
nasça de um vazio como desejo de um vazio. A pesquisa
não é algo isolado; é, porém, uma praxis que se insere
numa comunidade acadêmica e esta comunidade deve ser
pensada a partir da emancipação, processo que dissolve
os laços tradicionais do sistema, o que marca algo tão
problemático quanto inquietante, porque, ao liberar o
sujeito de vínculos comuns, herdados, nossa prática de
pesquisa emancipa-nos, a rigor, consequentemente,
de toda determinação e de toda noção de destinação já
dada, sem que, paralelamente, a própria emancipação
forneça a si própria um horizonte cabal de sentido, uma
vez que não há nada que, podendo ser tomado como
GHVWLQR RX FRPR ¿P GR WUDEDOKR JDUDQWLVVH GH per se,
a emancipação. Uma vez emancipado, o estudioso
universitário comporta-se como um escravo liberto para
quem, à diferença do escravo do mundo, não existe mais
HVSDoRDOJXPTXHSRVVDVHULGHQWL¿FDGRFRPRRHVSDoR
HVSHFt¿FRHSUySULRSDUDRH[HUFLFLRGHVVDVXDOLEHUGDGH
a liberdade de pesquisa e criação que ele reivindicara.6 E
isto por um motivo relativamente simples. No Ocidente, o
HVStULWRFLHQWt¿FRGHVHQYROYHXVHHPJUDQGHSDUWHJUDoDV
5 DELEUZE; GUATTARI. L’Anti-Oedipe, p. 452.
6 NANCY. La pensée dérobée, p. 128.
16
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao direito romano, que foi veículo do princípio técnico
de governabilidade, com que a verdade se separou da
falsidade.
Cabe relembrar, a esse respeito, o que o jurista
e psicanalista francês Pierre Legendre desenvolveu, em
2007, em sua palestra A cicatriz (La Balafre. À la jeunesse
désireuse… Discours à des jeunes étudiants sur la science
et l’ignorance, Paris, Mille et une nuits, 2007), idéias muito
pertinentes a esse respeito. Ele parte, por sinal, de um
fragmento literário, uma citação de Borges, no conto “A
forma da espada”, mas parte também da parábola de
Stevenson em Dr Jeckyll e Mr Hyde e passa até mesmo por
um escritor japonês, como Tanizaki, na História de Tomoda
e Matsunaga. Eis a citação: “Le cruzaba la cara uma
cicatriz rencorosa: um arco ceniciento y casi perfecto que
de un lado ajaba la sien y del otro el pómulo”.7 A narrativa
de Borges, que é uma fala mesclada, em inglês, espanhol
e português, organizada como se fosse o relato de alguém
traído, é na verdade a história de um traidor: “yo soy los
otros”. E a cicatriz é uma mera marca, uma inscrição cuja
sobrevivência “me afrenta”, tal como a comunidade, que,
segundo Nancy, é sempre affrontée. Tal o uso da metáfora
por parte de Legendre. Nosso presente, a situação cindida
da nossa comunidade, talvez se expliquem então, mais
cabalmente, se levamos em consideração, junto com ele,
que

Para el laicismo positivista occidental,


el Estado no posee ningún espíritu de

7 BORGES. La forma de la espada, p. 491.


17
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
tipo animista, como el Tótem, animal o
planta, al que se atribuye una voluntad
productora de normas. En la práctica,
el Estado se ha despegado incluso del
MXUDPHQWRGH¿GHOLGDGDXQDWUDGLFLyQ
sagrada para alcanzar ahora otro
tipo de existencia, 8 la de un objeto
institucional de serie en la nueva
Naturaleza engendrada por la tecno-
ciencia-economía: para la civilización
del Management generalizado, el
Estado habría abandonado la zona
oscura del mito (en este caso, del mito
genealógico de proveniencia cristiana)
\KDEUtDHQWUDGRGH¿QLWLYDPHQWHHQXQ
universo de transparencia que lo haría
tributario de saberes desprovistos de
religiosidad (saberes correspondientes
a la objetividad gestionaria). Para
discernir ahora el principio estatal
en cuanto indicador político-religioso
de la modernidad europea y como
instrumento institucional estratégico
del Occidente expansionista,
tendremos que volver a examinar el
concepto de Estado, no desde un
ángulo operativo necesariamente
estrecho, sino en continuidad con las
puntualizaciones que preceden, es
decir, como producto derivado de un
libreto fundacional: el judeo-romano-
cristiano.9

8 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El


tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la
ignorancia, p. 66-67.
9 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El
tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la
ignorancia, p. 66-67.
18
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Como V. devem estar lembrados, ao desenvolver
VXDVFRQVLGHUDo}HVDFHUFDGRPpWRGR*LRUJLR$JDPEHQ
associa a arqueologia de Foucault, a genealogia de
Nietzsche, a desconstrução de Derrida ou a teoria da
imagem dialética de Benjamin à lógica da signatura, ou seja,
o timbre ou sinete que sancionam o poder, esclarecendo
que a signatura teológica atua como uma sorte de
astucioso trompe l´oeil, como esse que revela Vincent
Moon ao narrar a origem de sua cicatriz. A secularização
do mundo acaba se tornando, graças a essa enganosa
inscrição, uma contrassenha de sua inclusão na oikonomia
divina. 10 Ora, isso nos leva a concluir que o horizonte da
comunidade, até mesmo o da comunidade acadêmica, foi
também gradativa e imperceptivelmente substituído pelo
management e a HI¿FLHQF\, porque “yo soy los otros”.
Senão, reparemos que o conceito de management, aquilo
que Legendre chama também de Dominium mundii, conota
antigas palavras latinas que, através do francês, chegaram
ao inglês: masnage, mesnage VLJQL¿FDQGR R TXH KRMH
diríamos maisonnée, conjunto de pessoas que vivem sob
o mesmo teto. O management, portanto, faz referência à
família, ao domus, e o management, nesse caso, seria
outro nome para a domesticação. Qual é a conclusão que
Legendre tira desse processo?

En primer lugar, para acceder a


los repliegues de la civilización
occidental es necesario estudiar la
10 Cito pela tradução ao espanhol: LEGENDRE. El
tajo. Discurso a jóvenes estudiantes sobre la ciencia y la
ignorancia, p. 66-67.
19
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
protohistoria del Estado y del derecho,
indisociable tanto de las prácticas
teocráticas ejercidas en Europa
como del pensamiento desarrollado
por los comentadores medievales,
designados con el término genérico
de “glosadores” (autores de un
equivalente cristiano del Talmud).
Después, hay que tomar nota, en la
época llamada Tiempos Modernos, del
SURFHVRGHGLYHUVL¿FDFLyQGHOFRQMXQWR
repartido ahora en subconjuntos
nacionales productores del regímenes
jurídicos más o menos compatibles
entre sí y que, aun perteneciendo a
OD PLVPD FHSD UHÀHMDQ ORV JUDQGHV
fenómenos genealógicos de Europa.
Por último, tras haber hecho su
entrada el Management, la tecno-
ciencia-economía viene a suplantar
a los ideales políticos y a imponer un
hiper-discurso globalizador, una suerte
de sintetizador normativo negador
de las divergencias culturales pero
dominado, en la vertiente jurídica,
por un economicismo anglosajón
ligado al espíritu del Common Law.
Preso en la red de una tradición que
no es la suya, pero enganchado
todavía a representaciones no
criticadas (notoriamente, el viejo
odio a la juridicidad medieval), el
sistema institucional francés intenta
PDQL¿HVWDPHQWH DOLQHDUVH DQWHV TXH
afrontar su propia historicidad.11

Afrontar, fazer face, deparar-se com algo e assumi-

11 LEGENDRE. El tajo: discurso a jóvenes estudiantes


sobre la ciencia y la ignorancia, p. 79-80.
20
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
OR FRPR SUySULR HLV R GHVD¿R GD SHVTXLVD 'LVVH Ki
pouco, que a pesquisa, o per quaere, não se presta a
nenhuma determinação externa, a nenhuma atribuição
de propriedade.12 E sabemos também, aliás, que toda
pesquisa universitária hoje em dia insere-se num universo
de management que não deixa de nos afetar e afrontar, já
que seu atual processo é idêntico ao désoeuvrement da
comunidade, uma comunidade emancipada da essência,
GR SURGXWR GR ¿P GD RULJHP GD REUD RX VHMD LQ
operante, no que isto tem de neutralidade ativa (momento
da contemplação: do cum templum, do traçado de um
corte, um talho, uma cicatriz que, embora individual, é
coletivamente carregada, mesmo porque ela faz parte da
instituição acadêmica).
Mas constata-se, ao mesmo tempo, que essa
emancipação da tradição, como vemos, não facilita,
necessariamente, as coisas porque, embora, graças
a Derrida, a Agamben ou a Jean-Luc Nancy, possamos
FRPSUHHQGHU TXH D FRPXQLGDGH ¿FRX LQRSHUDQWH HOD
continua também presente e determinante a toda hora,
em cada um de nossos atos institucionais. Ainda falamos
em literaturas nacionais, ainda pensamos em escritores
como pertencentes a um período, a uma estética
históricamente determinadados. Em La communauté
désoeuvrée, ao falar do ser-em-comum, Nancy diz que
ele é o mais difícil de profetizar, de prever, de planejar.
Nós somos pesquisadores. Compartilhamos o fato de
sermos pesquisadores. Mas o ser não é alguma coisa que

12 NANCY. La pensée dérobée, p. 129.


21
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
possuiríamos todos em comum. O sermos pesquisadores
não se diferencia da existência singular de cada um de nós.
Sermos pesquisadores não é, portanto, algo que se possui
em comum, mas algo que somos em comum, porque “o ser
é em comum”. É algo aparentemente trivial, mas, ao mesmo
tempo, é algo ignorado pela comunidade universitária.13 A
SHVTXLVD HP PXLWDV GDV QRVVDV ,QVWLWXLo}HV HP QRVVD
tradição acadêmica mesmo, é uma variável de ajuste, é o
TXH VREUD GDV DXODV GDV RULHQWDo}HV GR IXQFLRQDOLVPR
Mas, ao mesmo tempo, todos nós somos pesquisadores,
SDUDDOpPGHSURGXWLYLGDGHVRXFRPSHWrQFLDVGHGLFDo}HV
ou habilidades. O sistema tende a universalizar, e
consequentemente a homogeneizar, nunca a singularizar.
Ignora o omnes et singulatim. Faz pouco caso do um-por-
um.
Nesse sentido, diria que o diagnóstico de nossa
situação cai, sem dúvida, na esfera da “biopolítica”. Nossa
vida, enquanto forma-de-vida, fundamenta-se na zoé,
na vida mais essencial possível, mas há muito ela já se
tornou irreversivelmente techné. A política—a política
de ascensão funcional, agravada agora pela supressão
do concurso para titular; a política de bolsas; a política
FLHQWt¿FD²QDGDPDLVVmRHQWmRGRTXHDDXWRJHVWmRGD
HFRWpFQLFD 8PD IRUPD GH DXWRQRPLD TXH Mi QmR GLVS}H
das formas tradicionais da política, mas se cumpre por
“força-de-lei”. A propósito, Jacques Derrida, analisando
o conceito de “força-de-lei”, precisamente, diz que esse
conceito nos remete à letra, porque

13 NANCY. La communauté désoeuvrée, p. 201.


22
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
no hay derecho que no implique en
él mismo, a priori, en la estructura
analítica de su concepto, la posibilidad
de ser ‘enforced’, aplicado por la fuerza.
Kant lo recuerda desde la Introducción
a la doctrina del derecho (…). Hay
ciertamente leyes que no se aplican,
pero no hay ley sin aplicabilidad, y no
hay aplicabilidad, o enforceability de la
ley, sin fuerza, sea ésta directa o no,
física o simbólica, exterior o interior,
brutal o sutilmente discursiva—o
incluso hermenéutica—, coercitiva o
regulativa, etc.¿Cómo distinguir entre,
de una parte, esta fuerza de la ley,
esta ‘fuerza de ley’ como se dice tanto
en francés como en inglés, creo, y de
otra, la violencia que se juzga siempre
injusta? ¿Qué diferencia existe entre,
de una parte, la fuerza que puede
ser justa, en todo caso legítima (no
solamente el instrumento al servicio
del derecho, sino el ejercicio y el
cumplimiento mismos, la esencia del
derecho) y, de otra parte, la violencia
que se juzga siempre injusta? ¿Qué
es una fuerza justa o una fuerza no
violenta?

Derrida enfatiza assim o caráter diferencial da força.


Em muitos de seus textos, como já no pioneiro “Força e
VLJQL¿FDomR´TXHDEUHA escrita e a diferença, reitera que

se trata siempre de la fuerza diferencial,


de la diferencia como diferencia de
fuerza, de la fuerza como diferenzia
(…) o fuerza de diferenzia (la diferenzia
HV XQD IXHU]D GLIHULGDGL¿ULHQWH  VH
trata siempre de la relación entre la

23
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
fuerza y la forma, entre la fuerza y la
VLJQL¿FDFLyQVHWUDWDVLHPSUHGHIXHU]D
‘performativa’, fuerza ilocucionaria o
perlocucionaria, de fuerza persuasiva
\GHUHWyULFDGHD¿UPDFLyQGHOD¿UPD
pero también y sobre todo de todas las
situaciones paradójicas en las que la
mayor fuerza y la mayor debilidad se
intercambian extrañamente. Y esto es
toda la historia—conclui, porque—los
GLVFXUVRV VREUH OD GREOH D¿UPDFLyQ
sobre el don más allá del intercambio y
de la distribución, sobre lo indecidible,
lo inconmensurable y lo incalculable,
sobre la singularidad, la diferencia
y la heterogeneidad, son también
discursos al menos oblicuos sobre la
justicia.14

Não há, portanto, no marco da Universidade atual,


soberania auto-fundadora (não há nada para ser fundado
e talvez nem haja muito mesmo para ser tombado, com
inocente ilusão cristalizadora), não há discussão sobre a
justiça da polis acadêmica (porque já não há polis nem
mesmo politesse, só polícia e exclusivamente para os
homens-livres, em próprio benefício—não assim para
os alunos, que devem comparecer obrigatoriamente
às palestras, por exemplo, para completarem currículo,
comparecimento desnecessário para os senhores-
professores, desvinculados do debate propriamente
acadêmico). Nem vida como forma-de-vida, nem política
como forma-de-coexistência regulam já a ecotécnica do

14 DERRIDA. Fuerza de ley: el fundamento místico


de la autoridad, p. 15-20
24
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sistema.15
Atravessamos, portanto, um momento claramente
SyVIXQGDFLRQDO $V GHVFULo}HV GH QRVVR REMHWR GH
HVWXGRHGHUHÀH[mRMiQmRRFRORFDPFRPRYDORUVXSHU
estrutural, determinado pela acumulação material e o
desenvolvimento das forças produtivas. Nem mesmo a
abordagem histórica pode hoje, em sã consciência, ver
a literatura como um processo meramente racional, cujo
antagonismo teria sido, senão eliminado, certamente
adiado, diferido, até o momento mesmo de sua realização
WHOHROyJLFD¿QDO1HPDVFRQWUDGLo}HVKLVWyULFDVQHPDV
RSRVLo}HVUHDLVGmRFRQWDGDFRQWUDULHGDGHLQVXEVWLWXtYHO
que alimenta o antagonismo do presente, por uma razão
muito simples, porque o antagonismo atual não é fruto
GH UHODo}HV REMHWLYDV PDV GHFRUUH GH UHODo}HV TXH
exibem limites precisos na constituição de toda e qualquer
objetividade.
A questão da pesquisa, na Universidade, deveria
ser pensada então pela impossibilidade de construir uma
fórmula de saber que testemunhe a falta no simbólico e,
portanto, essa posição de não-saber deveria nos propor,
estratégicamente, instalar um excesso que, por sua vez,
introduza a própria falta no simbólico. Se não há fórmula de
saber, o não-saber consiste apenas numa aventura aleatória
que não se reduz à soma de dois termos complementares,
sujeito e objeto de saber, porque o suplemento nomeia, a
rigor, a impossibilidade de considerar ambas as instâncias

15 NANCY. La création du monde ou la


mondialisation, p. 137.
25
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
como unidade coesa e impede até mesmo considerarmos
nenhum dos dois como um. O não-saber é antitético aos
grupos, porque ele descansa numa interseção que é a
própia diferença que viria a ser teorizada por Derrida
ou que, como explica a crítica cultural norte-americana
-RDQ&RSMHFMiQmRGLVS}HGDIXQomRXQLYHUVDOL]DQWHGR
eu ideal, que une os membros de uma comunidade em
torno de uma relação de equivalência, muito embora ela
permaneça em muitos âmbitos. Aliás, bem recentemente,
participei de um colóquio de Literatura Brasileira na USP,
onde não deixava de chamar a minha atenção a frequência
não só dos recortes autonomistas (especialistas em um
autor, um gênero, pesquisadores de uma obra, um período
literário), mas também das categorias éticas e políticas
universais (consciência crítica, populismo), que são todas
caudatárias de marcos exclusivamente iluministas e
LQGLYLGXDLV(XHPFRPSHQVDomRSUH¿URSHQVDUTXHHP
tempos do ideal do eu, o que se universaliza é o objeto de
pesquisa como objeto amado.16 Por isso vale lembrar das
idéias de Copjec e da explicação que, a esse respeito, nos
fornece Ernesto Laclau, para quem a posição de Copjec
recusa a sublimação e, em vez de pensar uma mudança
de objeto, prefere propor uma mudança no objeto.

Si la sublimación se redujera a un
cambio de objeto, la realidad óntica de
los objetos permanecería inalterada
y en tal caso no habría suppléance,
no habría exceso: el objeto del amor

16 COPJEC. El sexo y la eutanasia de la razón:


ensayos sobre el amor y la diferencia, p. 94.
26
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
[o per quaere da pesquisa] sería
plena y directamente inscribible en
el universo simbólico. Pero lo que la
suppléance nombra no es un objeto
sino la imposibilidad, el obstáculo a su
constitución. El amor, en tal sentido,
[a pesquisa] es el nombre de un
hiato estructural en lo simbólico. Es
por eso que “il y a de l’Un”. La huella
de la imposibilidad de la relación
sexual se encuentra, por tanto en
la representación simbólica de una
ausencia qua ausencia.17

A partir dessa premissa lacaniana, Jean-Luc Nancy


também postula que, no amor ao saber, na ¿ORVRSKLD que
se traduz como não-saber, não há nenhum todo, já que o
WRGRQmRGH¿QH³XQDFDUHQFLDQLXQDDEODFLyQSXHVWRTXH
QR KXER WRGR DQWHV GH KDEHU QLQJ~QWRGR (VWR VLJQL¿FD
más bien que todo lo que hay no se totaliza, sin que por
ello deje de ser todo”.18 E isto por um motivo também muito
simples: porque há, de fato, dois modos de concebermos
totalidades. “Hay, en efecto, el todo del todo-entero (holon,
totum) y el todo de todos los enteros o de todo el mundo
(pan, omnis)”. A pesquisa como ato per quaere não passaria
então de “dos impulsos, una pareja de fuerzas cuyo juego—
la separación en el contacto—es necesario para poner en
marcha la maquinaria”.19 Quer dizer, portanto, que o amor
ao saber enquanto não-saber é uma interioridade que não

17 LACLAU. Joan Copjec y las aventuras de lo Real, p.


13.
18 NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 30.
19 NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 31.
27
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
deriva, porém, de nenhuma identidade dada, de nenhuma
relação consigo mesmo, isto é, de nenhuma relação em si:
aquilo que se (com) partilha e que se difere é precisamente
aquilo que não subsiste para si, porque não há nada que
seja o aquém da busca per quaere (nem generalidade,
nem diferença). Não há nada que seja antes ou além do
espaçamento e que constitua talvez a estrutura que Lacan
denomina o simbólico, a lei.20
Esse não-saber, claramente excessivo, já não se
efetiva através da transcendência ou da transgressão
modernistas, mas opera por meio de um esquema além
do esquema, em que se atravessam todos os valores,
daí que, enquanto no alto modernismo o sentido ainda
era um atributo em si ou, mais freqüentemente, fora de
si, na Universidade contemporânea, o sentido encontra-
VHHQWUHWDQWRQRVFRQ¿QVHQTXDQWRUHGHGHFRQ¿QV3RU
isso, Nancy considera que o não-saber coloca a questão de
uma relação ao objeto enquanto tal, pura e simplesmente.
O desejo que, enquanto per quaere, toda pesquisa
mobiliza é sempre desejo do Outro, desejo de desejar.
Reinterpretado como valor de uso do impossível, o valor
desse percurso é o de um desejo elevado ao segundo
grau. Consiste no poder de um objeto em manter ativo—
potente, ou seja, em movimento—o desejo de desejar.
Isso implica admitir que nossa lei é pós-fundacional. Mas
QmRHUDRXWUDDGH¿QLomRGHREMHWRDRREMHWRFDXVDGR
desejo, elaborada por Lacan, que é um conceito de fontes
remotamente literárias. Com efeito, Lacan toma o conceito

20 NANCY. El “hay” de la relación sexual, p. 37.


28
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
GHREMHWRDGDDQWL¿ORVR¿DGDGDLVWDGH7ULVWDQ7]DUDXPD
¿ORVR¿D GRV REMHWRV21 mas aproveita-se também dos
objetos surrealistas de Salvador Dali, eles mesmos objetos
SVLFRDWPRVIpULFRVDQDPyU¿FRVFRPRRVFKDPDRDUWLVWD
catalão. Mais perto de nós, ainda, e também na esteira
de Lacan, Gérard Wajcman, querendo isolar o objeto do
século XX, propôs, entre outros, o quadrado de Malevitch,
porque ele ilustraria exemplarmente a estratégia do
esvaziamento. Com efeito, assim como Freud, ao analisar
o Moisés, nos fala de uma estratégia da pintura, que age
per via de porre, e outra da escultura, que se ativa per via
de levare, Wajcman vê, no quadrado, um esvaziamento do
olhar. Concluímos, a partir de sua análise, que a forma é
uma simples aparência, a arte visual é cega (a literatura,
gaga), o quadrado é uma obliteração e o zero não é uma
abstenção, mas uma rasura.22 Ora, à luz deste debate,
ao que deveríamos acrescentar nomes tão decisivos
como Marcel Duchamp ou John Cage, caberia ponderar
que a literatura contemporânea também não se apreende
pela mímesis GD +LVWyULD RX SHOD GH¿QLomR GD IRUPD H
retomando o argumento de Jacques Lacan, poderíamos
até dizer que a literatura, limitada à mimese, não passa de
um trompe l’oeil, porque sempre nos apresentará a pátina
de um véu cobrindo algo situado para além do que se pode
ver.
Ler, entretanto, é sempre ler mais além, justamente
SRUTXHRJR]RQmRVHQGRDFHVVtYHOQHP¿QLWRHVHQGR
21 TZARA. Manifeste de Monsieur Aa
l’antiphilosophe, p. 22-23.
22 WAJCMAN. El objeto del siglo.
29
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
SRU GH¿QLomR LPSRVVtYHO QRV LPSHGH HVJRWDU R WRGR
do objeto. E isto faculta o afastamento, o corte, a cisão
da rede simbólica atual, enquanto instância combinada
de capitalismo disseminado e tecno-ciência difusa que,
enquanto política, decreta a inviabilidade do impossível
e, contrariamente, encontramo-nos perante a emergência
do político, que consiste no corte que, praticado na rede
fusional disseminada, permite o questionamento acerca
do lugar que o sujeito ocupa e com o qual opera no
discurso. É no discurso, portanto, cercado o tempo todo
pelo Real, que se encontra o impossível de dizer; daí que
todo ato de dizer o impossível, todo ato poético, todo ato
SROtWLFR HQ¿P VHMD EDVLFDPHQWH XP DWR FRQVFLHQWH GH
procurar uma emancipação incompleta e inacabada, por
GH¿QLomR HP EXVFD GH XPD FDXVD TXH QmR SRGH HVWDU
presente, como fundamento último da ação, e que, mesmo
DVVLP WDPEpP QmR GLVS}H GH JDUDQWLDV GH VXFHVVR HP
sua prática. É esse o objeto produzido pelo per quaere.
Estejamos então à altura de Clarice Lispector:

para escrever tenho que me colocar


no vazio. Neste vazio é que existo
intuitivamente. Mas é um vazio
terrivelmente perigoso: dele arranco
sangue. Sou um escritor que tem medo
da cilada das palavras: as palavras
que digo escondem outras — quais?
talvez as diga. Escrever é uma pedra
lançada no poço fundo. Meditação
leve e terna sobre o nada. Escrevo
quase que totalmente liberto de meu
corpo. É como se este estivesse em
levitação. Meu espírito está vazio

30
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
por causa de tanta felicidade. Estou
tendo uma liberdade íntima que só se
compara a um cavalgar sem destino
pelos campos afora. Estou livre de
destino. Será o meu destino alcançar
a liberdade? não há uma ruga no
meu espírito que se espraia em leves
espumas. Não estou mais acossado.
Isto é a graça.23

O êxtase. A pesquisa. Ângela, o alter-ego de


Clarice, sabe, entretanto, que escreve para “salvar do
vazio e oco hiato sem fundo que é o vácuo. O que escrevo
agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio
escrever, esse escrever consome o escrever. Este meu
livro da noite me nutre de melodia cantabile. O que escrevo
é autonomamente real”.24
E o Autor, que é também o narrador de Agua Viva,
FRPSUHHQGH ¿QDOPHQWH TXH ³2OKDU D FRLVD QD FRLVD
hipnotiza a pessoa que olha o ofuscante objeto olhado.
Há um encontro meu e dessa coisa vibrando no ar. Mas
o resultado desse olhar é uma sensação de oco, vazio,
LPSHQHWUiYHOHGHSOHQDLGHQWL¿FDomRP~WXD´25
7DOYH]SRVVDPRVLVRODUQHVVDGH¿QLomRGH&ODULFH
Lispector, uma ferramenta poderosa de análise do per
quare, da pesquisa, entre nós e dizer que ela cria o vazio.
Mas um vazio de tipo muito especial. “Jamais un exil
individuel, jamais un desert personnel”—dizia Deleuze.

23 LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 13-


14.
24 LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 77.
25 LISPECTOR. Um sopro de vida: pulsações, p. 124.
31
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Permitam-me ilustrar esse modo de ler com um
exemplo. Gostaria de mostrar uma estratégia que já não
depende nem de conjuntos nacionais autônomos, nem
de abordagens diacrónicas evolutivas, que são os dois
modos dominantes até 1990, aproximadamente. V. devem
relembrar, por exemplo, o argumento de Antonio Candido
TXDQWRjVUHODo}HVHQWUHOLWHUDWXUDHVXEGHVHQYROYLPHQWR
associado também, de certa forma, à noção de que as
idéias estão fora do lugar. Candido advogava por uma
superação do modelo mimético, portadora de certo
UH¿QDPHQWRWpFQLFRTXHOHYDVVHRVWUDoRVDQWHVSLWRUHVFRV
a se descarnarem e adquirirem universalidade.
Descartando o sentimentalismo e a retórica; nutrida
de elementos não-realistas, como o absurdo, a magia
GDV VLWXDo}HV RX GH WpFQLFDV DQWLQDWXUDOLVWDV FRPR R
monólogo interior, a visão simultânea, o escorço, a elipse—
ela implica não obstante em aproveitamento do que antes
era a própria substância do nativismo, do documentário
social.26
V. vêem, contudo, que não está afetada, nessa
teoria, a idéia de essência, nem a de identidade, nem
PHVPR D GH ¿QLWXGH RX ¿QDOLGDGH (P IXQomR GHVVDV
características, Candido propunha então denominar o
horizonte da literatura contemporânea de superregionalista,
vinculando-o a uma consciência dilacerada de
subdesenvolvimento, que operasse uma explosão do
naturalismo, da referencialidade, da representação. Desse

26 CANDIDO. Literatura e subdesenvolvimento, p.


140-162.
32
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
super-regionalismo seria tributária, a seu ver, a obra de
Guimarães Rosa, de algum modo, associada também à
“sobriedade fantasma” de Pedro Páramo. Permanecia
intocado, porém, o esquema sucessivo do historicismo.
,QYHUWHQGRRHVTXHPDQRHQWDQWRSUH¿UROHU*XLPDUmHV
Rosa por um desvio, ao mesmo tempo, anatópico e
anacrônico. Justamente Anachronisme é o título de um
soneto de Alphonsus de Guimarães, dedicado a Paul
Verlaine, a quem ele nunca conheceu pessoalmente, e
cujo último terceto diz:

(W SRXUWDQW VL MH VXLV WRQ ¿OV HW WRQ


élève,
En te suivant, en te baisant l’âme sans
trêve,
Je rêve, ami, que toi, tu as rêvé de
moi!27

O fantástico de biblioteca, esse novo lugar dos


fantasmas que não é mais a noite, nem o vazio incerto
aberto pelo desejo; mas, pelo contrário, a vigília e o zelo
erudito, faz com que o sentido, sempre enigmático, nasça
da superfície dos signos impressos, trêve / rêve, ou seja,
da signatura rerum, desdobrando-se na biblioteca aturdida,
através do rumor assíduo da repetição, que nos transmite,
porém, o que só ocorre uma vez, uma singularidade
irrepetível, a de Alphonsus, apaixonado por Verlaine.
Como diz Foucault, o imaginário não se constitui contra
o real para negá-lo ou compensá-lo; ele se estende entre
RV VLJQRV GH OLYUR D OLYUR QR LQWHUVWtFLR GDV UHSHWLo}HV
e dos comentários; ele nasce e se forma no entremeio
27 GUIMARAENS. Obra completa, p. 373.
33
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
dos textos, como fenômeno de biblioteca.28 Nesse ponto
vertiginoso, portanto, Alphonsus sonha que, podendo ele
sonhar com Verlaine, bem poderia Verlaine sonhar com ele,
Alphonsus, metáfora anti-hierárquica que denota a própria
dinâmica da modernização, sempre em busca daquilo que
é impossível de alcançar. Mais bem sucedido, porém, foi
outro escritor latino-americano, Lúcio V. Mansilla. Amigo
de Robert de Montesquiou, o conde Charlus de Em busca
do tempo perdido, Mansilla frequentou Moréas, Proust
e conheceu Verlaine, quem, mesmo não assinando o
prefácio solicitado por Mansilla, assim o descreveu: “Habla
muy bien el francés y es un elegante; nada falta en él:
sombrero inclinado, provocativo, guante lila, monóculo,
ERXWRQQLqUH ÀHXULH, levita larga color té con leche. Es ya
entrado en años y ¡qué joven y fuerte se lo ve!”.29
Sobrinho de Juan Manuel de Rosas, o homem-
forte do Prata, Mansilla publicou, em 1870, uma sorte de
Sertões do pampa, Una excursión a los indios ranqueles,
onde narra que, incumbido por Sarmiento de estender
a fronteira civilizatória para além das terras indígenas,
testemunha a dura negociação pela paz com os habitantes
daquele território. O livro é uma singular manifestação do
GHVD¿RGDDOWHULGDGHHPTXHRQDUUDGRUpFRQVFLHQWHGR
FDUiWHUSOXUDOGDVGHWHUPLQDo}HVGRLPDJLQiULR5HWRUQDP
como verão, a suspensão, a trêve de Alphonsus, mas com
outro efeito, que antecipa o “Diadorim é a minha neblina”
de Guimarães Rosa.
28 FOUCAULT. Posfácio a Flaubert (A Tentação de
Santo Antão), p. 79-80.
29 POPOLIZIO. Vida de Mansilla, p. 309-310.
34
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
La noche y los perros son mis dos
grandes pesadillas. Yo amo la luz y a
los hombres, aunque he hecho más
locuras por las mujeres. No puedo
decir lo que me aterra cuando estoy
solo en un cuarto obscuro, cuando
voy por la calle en tenebrosas horas,
cuando cruzo el monte umbrío; como
no puedo decir lo que sentía cuando
trepaba las laderas resbaladizas de la
gran cordillera de los Andes, sobre el
seguro lomo de cautelosa mula.
Pero siento algo pavoroso, que no
está en los sentidos, que está en la
imaginación; en esa región poética,
mística, fantástica, ardiente, fría,
límpida, nebulosa, transparente,
opaca, luminosa, sombría, risueña,
triste, que es todo y no es nada, que es
como los rayos del sol y su penumbra,
que cría y destruye, que forja sus
propias cadenas y las rompe, que se
engendra a sí misma y se devora, que
hoy entona tiernas endechas al dolor,
que mañana pulsa el plectro aurífero
y canta la alegría, que hoy ama la
libertad y mañana se inclina sumisa
ante la oprobiosa tiranía. ¡Ah!, ¡si
pudiéramos darnos cuenta de todo lo
que sentimos!30

Ora, o texto do dândi Mansilla, orientado a príncípio,


no sentido de anexionar a barbárie à civilização, constata,
QR¿QDORSDUDGR[RGH3DVFDO³(OKRPEUHQRHVXQiQJHO
QLXQDEHVWLD(VXQVHULQGH¿QLEOHKDFHHOPDOSRUSODFHU

30 MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles,


p. 368.
35
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
y goza con el bien. En medio de todo es consolador”.31
Vladimir Jankelevitch, pensador desses paradoxos
e até mesmo das leis do imprescritível, ativadas no
Holocausto, observa, porém, que

Entre la inmanencia desesperada y la


transcendencia por estaciones, entre
la sumersión total y la emergencia
sospechosa, persiste un espacio
para la relatividad de una búsqueda
LQ¿QLWD TXH PDQWLHQH GHVSLHUWD D OD
conciencia: esta conciencia no es
sobre-conciencia confusionista, ni
inconsciencia confundida o más bien
es a la vez una y otra, pues, como
hemos visto, se encuentra a la vez
dentro y fuera, ya que no sólo es
conciencia del equívoco, sino también
ella misma equívoco… La criatura
es, pues, bastante, intermediaria,
pero en un sentido activo y dinámico.
La criatura – explica Pascal – “no es
QL iQJHO QL EHVWLD«´ ¢4Xp VLJQL¿FD
esto? Quien no es ni lo uno ni lo otro
(neutrum), ¿será acaso un tercer-
ser, una criatura media instalada
en el entre-dos, domiciliada en el
entresuelo? ¡De ninguna manera! El ni
ángel-ni bestia no es un tertium quid,
un tercer orden intermedio entre la
bestia y el ángel. ¿Hace falta, pues,
pensar que es, a la vez, uno y otro
(utrumque). Este caso nos remite,
por otra parte, al precedente, pues si
la criatura es un híbrido de espíritu y
materia, por eso mismo representa un

31 MANSILLA. Una excursión a los indios ranqueles,


p. 368.
36
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
tercer género de existencia, que no es
alma sin cuerpo ni cuerpo sin alma, que
es a partes iguales mitad ángel y mitad
EHVWLD« /D ¿ORVRItD GH OD ³VLPELRVLV´
juega así con los diversos sentidos de
la preposición con, y se representa a la
pareja psicosomática con gusto como
una yunta de dos seres apareados
codo a codo bajo el mismo yugo. Al
estar ambos juntos, el ser doble, cruce
de ángel y bestia, sería algo así como
un híbrido, en el sentido de la sirena y
del centauro en los que la mujer-pez y
el hombre-caballo son híbridos: ángel
por sus alas, toro por sus pezuñas; en
GH¿QLWLYDXQDFXULRVLGDGWHUDWROyJLFD
Esta imagen del alma-cuerpo es
grotesca y absurda: quien no es un
tercero tampoco es un híbrido o una
mezcla de dos naturalezas, y, por
decirle de algún modo, lo llamamos
³DQ¿ELR´32

Mansilla compreende, a diferença de Alphonsus,


que o amado Verlaine é, no entanto, declaradamente
híbrido. Verlaine, por exemplo, escreve, no prólogo a seus
últimos poemas, Chair (1896):

L’AMOUR est infatigable!


Il est ardent comme un diable,
Comme un ange il est aimable,

L’amant est impitoyable,


Il est méchant comme un diable,
Comme un ange, redoutable.33
32 JANKÉLÉVITCH. Lo puro y lo impuro, p. 223-225.
33 VERLAINE. Oeuvres Poétiques Completes, p. 749
37
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Chegados neste ponto, não posso menos que
explicitar o que todos vocês já devem ter percebido: eis
o páramo fantasma do Rosa. Mansilla, transcrevendo a
religião ranquel, nos diz que não há para esses nativos
uma luta do bem contra o mal; há, porém, apenas o mal,
o não-saber, isto é, o gualicho, palavra tehuelche que
designa o feitiço.

A quien hay que temerle es al diablo –


Gualicho.
Este caballero, a quien nosotros
pintamos con cola y cuernos, desnudo
y echando fuego por la boca, no tiene
para ellos forma alguna. Gualicho, es
indivisible e invisible y está en todas
partes, lo mismo que Cuchauentrú.
Otro, mientras el uno no piensa en
hacerle mal a nadie, el otro anda
siempre pensando en el mal del
prójimo.
Gualicho, ocasiona los malones
desgraciados, las invasiones de
cristianos, las enfermedades y la
muerte, todas las pestes y calamidades
TXHDÀLJHQDODKXPDQLGDG
Gualicho, está en la laguna cuyas
aguas son malsanas, en la fruta y en
la yerba venenosa; en la punta de
la lanza que mata; en el cañón de la
pistola que intimida: en las tinieblas
de la noche pavorosa; en el reloj que
indica las horas, en la aguja de marear
que marca el norte; en una palabra,
en todo lo que es incomprensible y
misterioso.
Con Gualicho hay que andar bien:
Gualicho se mete en todo: en el vientre
y da dolores de barriga; en la cabeza y

38
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
la hace doler; en las piernas y produce
la parálisis; en los ojos y deja ciego; en
los oídos y deja sordo; en la lengua y
hace enmudecer.
Gualicho es en extremo ambicioso.
Conviene hacerle el gusto en todo.
(V PHQHVWHU VDFUL¿FDU GH WLHPSR
en tiempo yeguas, caballos, vacas,
cabras y ovejas; por lo menos una vez
cada año, una vez cada doce lunas,
que es como los indios computan el
tiempo.
Gualicho, es muy enemigo de las
viejas, sobre todo de las viejas feas:
se les introduce quién sabe por dónde
\HQGyQGH\ODVPDOH¿FtD
¡Ay de aquella que está engualichada!34
La matan.
Es la manera de conjurar el espíritu
maligno.
Las pobres viejas sufren
extraordinariamente por esta causa.
Cuando no están sentenciadas, andan
por sentenciarlas.
Basta que en el toldo donde vive una
suceda algo, que se enferme un indio,
o se muera un caballo; la vieja tiene la
culpa; le ha hecho daño; Gualicho no
se irá de la casa hasta que la infeliz no
muera.
(VWRV VDFUL¿FLRV QR VH KDFHQ
públicamente, ni con ceremonias. El
indio que tiene dominio sobre la vieja
la inmola a la sordina.
En cuanto a los muertos, tienen por
ellos el más profundo respeto. Una

34 Na edição Ayacucho se lê, erroneamente,


engauchada, o que mostra curioso ato falho de associar o
gauchesco com o demoníaco.
39
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
sepultura es lo más sagrado. No
hay herejía comparable al hecho de
desenterrar un cadáver.
Como los hindúes, los egipcios y los
pitagóricos, creen en la metempsicosis,
que el alma abandona la carne
después de la muerte, transmigrando
en un tiempo más o menos largo a
otros países y dándole vida a otros
cuerpos racionales o irracionales.
Los ricos resucitan generalmente al
sur del Río Negro, y de allí han de
volver, aunque no hay memoria de que
hasta ahora haya vuelto ninguno.35

Como Michelet,36 como Marechal,37 também


Mansilla aborda o Mal em ação, nas bruxas, no ultrassexo.
Autêntico espírito informe, o Mal (gualicho) é um neutro
TXHGHFRPS}HRELQDULVPRFDWyOLFRHQWUHR%HPHR0DOH
marca um novo limiar a partir do qual pensar tudo da capo.
V. percebem que estamos no mesmo ponto vertiginoso em
que Guimarães Rosa nos diz que o mal, como em Bataille,
está associado ao dispêndio.
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da

35 MANSILLA. Uma excursión a los indios ranqueles,


p. 224-225. Para o sentido de gualicho, ver FERNANDEZ
GARAY. Diccionario tehuelche-español / índice español-
tehuelche.
36 BARTHES. Michelet, 1954.
37 No livro III de Adán Buenosayres, em “una región
fronteriza donde la urbe y el desierto se juntan en un abrazo
combativo, tal dos gigantes empeñados en singular batalla”,
isto é, no bairro de Saavedra, a bruxa Tecla também distribui
filtros, feitiços e gualichos.
40
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
gente, aos pouquinhos é o razoável sofrer. E a alegria de
amor—compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras?
É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...
Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito
ERPPDULGRERP¿OKRERPSDLHpERPDPLJRGHVHXV
amigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto.
Vi muitas nuvens.38
Na pós-lógica roseana, como antes dele, em Murilo
Mendes, não se trata de ser ou não ser (mineiro, regional,
brasileiro, moderno, masculino), mas trata-se de ser e não
VHU WXGR LVVR DR PHVPR WHPSR 5RVD QmR D¿UPD R VHU
nem postula o nada abstratos. Aliás, o próprio Hegel já
reconhecia que, em particular na metafísica cristã, e graças
à recusa da proposição H[QLKLORQLKLO¿W, tinha ocorrido a
D¿UPDomRGRWUkQVLWRGRQDGDDRVHU0DVHVVDPHWDItVLFD
não era bem um sistema da identidade, já que não estava
fundada no princípio segundo o qual o ser somente é e o
nada não é. Hegel admitia, então, que a metafísica cristã
supera a suposta posição budista, que fundamentava
a realidade em um nada que é apenas nada. E admitia
também que essa posição supera até mesmo a atitude
logocêntrica e seu esforço por fundar a realidade no ser
que somente é ser. Em outras palavras, a metafísica cristã
teria superado o que a dialética quis em vão superar,
postulando que o não-ser ativo não é mero não-ser, mas
um não ser-ativo que trabalha, porém, pela aspiração
imanente ao não-ser. Por isso, pode-se dizer que, no não
ser-ativo, na in-operância, ocorrem até mesmo o bem e a

38 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 13.


41
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
beleza, mas trata-se de uma beleza de baixo materialismo
ou convulsiva, como queria Breton. E além do mais, essa
inoperância nos mostra que, mesmo no bem e na beleza,
acontece, de certa maneira, a força apofática do não-ser,
que se traduz como invocação do nada ao ser e vocação
do ser em direção ao nada39:

$KHQWmRPDVWHPR2XWUR±R¿JXUD
o morcegão, o tunes, o cramulhão,
o dêbo, o carôcho, do pé-de-pato, o
mal-encarado, aquele—o que não
existe! Que não existe, que não, que
não, é o que minha alma soletra. [...]
Mas, naquele tempo, eu não sabia.
Como é que podia saber? E foram
esses monstros, o sobredito. Ele vem
no maior e no menor, se diz o grão-
tinhoso e o cão-miúdo. Não é, mas
¿QJHGHVHU40

Parti, de início, de um texto de Antonio Candido.


Permitam-me agora tomar outro de Beatriz Sarlo. “El
saber del texto”, tal o título, insere-se numa série integrada
pelo ensaio “Literatura y política”, de dezembro de 1983
(momento da redemocratização com Raul Alfonsiín),41 e da
qual faz parte, também, uma colaboração de Sarlo para um
volume coletivo, editado por Daniel Balderston, intitulado
39 Poderíamos considerar experiências de teologia
apofática a de Malévitch ao propor o quadrado preto sobre
fundo preto; a de Duchamp, ao inscrever um urinol como
objeto estético ou a de Borges, ao marcar a passagem de
alguém a ninguém, em Outras inquisições.
40 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 285-286.
41 SARLO. “Literatura y política”; p. 8-11.
42
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ficción y política, um de cujos fragmentos se reproduz, na
sua revista Punto de vista, em abril de 1986, como fruto de
um debate no Clube Socialista. Nele, apoiada em Adorno
H0DUWLQ-D\6DUORD¿UPDTXH

Especialmente en un período donde


se había suprimido ‘la heterogeneidad
en nombre de la identidad’, la literatura
pareció en condiciones de proponer
‘una restauración de la diferencia y de
la no-identidad’. En esta colocación,
sin duda difícil y a menudo peligrosa,
la literatura puede leerse como
discurso crítico aunque adopte (o
precisamente porque adopta) la forma
GHODHOLSVLVODDOXVLyQ\OD¿JXUDFLyQ
como estrategias para el ejercicio de
una perspectiva sobre la diferencia.42

A partir desses conceitos, Sarlo analisa a literatura


GDLQFLSLHQWHUHGHPRFUDWL]DomRFRPRDTXHODV¿Fo}HVSDUD
as quais a verdade repousa tanto “en el pasado cultural
y político”; quanto na noção de que o nacional é “una
D¿UPDFLyQSUREOHPiWLFD´DVTXHSURS}HP³XQDOLWHUDWXUD
de la deriva y del viaje”; as que assumem “los itinerarios
del exilio” e as que abordam “el poder y la violencia”.43
Conhecemos esse dignóstico.44

42 SARLO. “El saber del texto”, p. 6-7.


43 SARLO. “Política, ideología y figuración literaria”
in BALDERSTON. Ficción y política: la narrativa argentina
durante el proceso militar, p. 30-59.
44 As categorias de Sarlo antecipam o diagnóstico
da inviabilidade nacional de Roberto Schwarz. O autor de
Sequências brasileiras aventa várias cenas. “Uma é de que
43
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ela (a formação), que é também um ideal, perdeu o sentido,
desqualificada pelo rumo da história. A nação não vai se
formar, as suas partes vão se desligar umas das outras,
o setor ‘avançado’ da sociedade brasileira já se integrou à
dinâmica mais moderna da ordem internacional e deixará
cair o resto. Enfim, à vista da nação que não vai se integrar,
o próprio processo formativo terá sido uma miragem que a
bem do realismo é melhor abandonar. Entre o que prometia
e o que cumpriu a distância é grande. Outra perspectiva
possível: suponhamos que a economia deixou de empurrar
em direção da integração nacional e da formação de um
todo relativamente auto-regulado e auto-suficiente (aliás,
ela está empurrando em direção oposta). Se a pressão for
esta, a única instância que continua dizendo que isso aqui
é um todo e que é preciso lhe dar um futuro é a unidade
cultural que mal ou bem se formou historicamente, e que
na literatura se completou. Nessa linha, a cultura formada,
que alcançou uma certa organicidade, funciona como
um antídoto para a tendência dissociadora da economia.
Contudo vocês não deixem de notar o idealismo dessa
posição defensiva. Toda pessoa com algum tino materialista
sabe que a economia está no comando e que o âmbito cultural
sobretudo acompanha. Entretanto, é preciso reconhecer
que nossa unidade cultural mais ou menos realizada é um
elemento de antibarbárie, na medida em que diz que aqui se
formou um todo, e que esse todo existe e faz parte interior
de todos nós que nos ocupamos do assunto, e também de
muitos outros que não se ocupam dele. Outra hipótese
ainda: despregado de um projeto econômico nacional, que
deixou de existir em sentido forte, o desejo de formação
fica esvaziado e sem dinâmica própria. Entretanto, nem
por isso ele deixa de existir, sendo um elemento que pode
ser utilizado no mercado das diferenças culturais, e até do
44
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Ora, em contraponto, caberia lembrar que, tanto
Fredric Jameson, analisando o cinema de Sokhurov,
TXDQWR6XVDQ%XFN0RUVVDRHVWXGDUDVLQVWDODo}HVGH,OLD
Kabakov, marcaram, quase paralelamente, o abandono de
uma estética materialista em benefício de formas menos
imediatas de percepção que, mesmo quando já não
busquem uma arte ideológica, pautam-se, entretanto, por
uma arte política, de fundo ainda mimético.45 Mas há um
ponto que o próprio Kabakov reivindica e que, me parece,
ilumina a questão do tertium: o conceitualismo é uma
estratégia de esvaziamento, de profanação (avacalhação)
da instituição artística, que já não admite ser pensada
com os parâmetros iluministas do passado. Não é mais
mímese, mas pantomima.46
turismo. A formação nacional pode ter deixado de ser uma
perspectiva de realização substantiva, centrada numa certa
autonomia político-econômica, mas pode não ter deixado
de existir como feição histórica e de ser talvez um trunfo
comercial em toda linha, no âmbito da comercialização
internacional da cultura. Enfim, ao desligar-se do processo
de auto-realização social e econômica do país, que incluía
tarefas de relevância máxima para a humanidade, tais como
a superação histórica das desigualdades coloniais, a for-
mação não deixa de ser mercadoria. E ela pode inclusive,
no momento presente, estar tendo um grande futuro nesse
plano” (SCHWARZ. Sequências brasileiras, p. 57-58).
45 JAMESON. History and Elegy in Sokurov, p. 1-12;
BUCK-MORSS. Dreamworld and Catastrophe: The Passing
of Mass Utopia in East and West.
46 Murilo Mendes define a ficção de Borges como
pantomima cósmica. Sobre o particular, ver LADDAGA. La
estrategia del paroxismo; FOSTER. Diseño y delito; FOSTER.
45
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
Num manifesto de 1990, contemporâneo, portanto,
DR ¿P GD 8QLmR 6RYLpWLFD .DEDNRY GH¿QH R WUDXPD GH
um modo que nos serve para repensar a tradição com
que também, na cultura latino-americana, foram pensados
o deserto e a importação cultural, de Sarmiento a las
vanguardias, para retomarmos o título de um conjunto de
ensaios de Sarlo e Altamirano.

El vacío (…) no puede ser descrito


en términos de apropiación, de
población, de empleo de trabajo o de
economía, es decir, en términos de la
conciencia racionalista europea. Este
vacío se presenta como un volumen
extraordinariamente activo, como un
depósito de vacío, como una especial
“ontocidad” [bytiistvennost’] vacía,
extraordinariamente activa, pero
contrapuesta al auténtico ser, a la
auténtica vida, y que es la antípoda
absoluta de toda existencia viva. “La
Naturaleza no soporta el vacío”. Pero
desearía agregar que, igualmente, “el
vacío no soporta la Naturaleza”. El
vacío del que hablo, no es el cero, no
es simplemente “nada”; el vacío del
que hablo no es una frontera nula,
neutralmente cargada, pasiva. En
absoluto. El “vacío” es tremendamente
activo, su actividad es igual a la del
ser positivo, ya se trate de la actividad
de la Naturaleza, de la del hombre o
de la de fuerzas superiores. Pero su
actividad presenta un signo contrario,
está dirigida en sentido opuesto, y

Dioses prostéticos; FOSTER . Dada Mime; FOSTER . Amour


Fou.
46
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
actúa con la misma energía y fuerza
que la aspiración de la existencia
viva, la aspiración de ser, devenir,
crecer, construir, existir. Con la misma
indestructible actividad, fuerza y
constancia, el vacío “vive”, convirtiendo
el ser en su contrario, destruyendo la
FRQVWUXFFLyQ PLVWL¿FDQGR OD UHDOLGDG
convirtiendo todo en polvo y oquedad.
El vacío, repito, es la conversión del
ser activo en no-ser activo y, lo más
importante y sobre lo que quisiéramos
llamar la atención en especial, ese
vacío vive, existe, no en sí mismo, sino
con la vida, con el ser, a su alrededor;
vida que él elabora, que muele, que
hace caer dentro de sí. En eso veo
una función, una propiedad especial
del vacío, fatal para la vida. Se ha
pegado, se ha unido indisolublemente
a ella y le succiona el ser; su poderosa,
pegajosa, nauseabunda antienergía la
adquiere el vacío apropiándose – como
en el vampirismo – de la energía que
le resta, le sustrae, al ser que lo rodea.
(…) El vacío es precisamente el otro
lado, lo opuesto, de toda pregunta, es
el forro, el contrario, el “no” constante
que se halla bajo todo, lo pequeño
y lo grande, lo total y lo particular, lo
racional y lo insensato, todo lo que
no podemos nombrar y lo que tiene
sentido y nombre.47

Kabakov notabiliza-se, nesses mesmos anos, por


XP FRQMXQWR GH LQVWDODo}HV RX REUDV JUi¿FDV HP TXH D
SUDoD SHUPDQHFH YD]LD ¿JXUDQGR D PXOWLGmR FRPR XP
47 KABAKOV. Sobre el vacío, p. 23-24; GROYS. El
arte conceptual del comunismo, p. 359-360.
47
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
conjunto de silhuetas vistas do alto, minúsculas, nas
bordas desse espaço vago, desse tertium que não é
passivo, mas poderosamente ativo, uma vez que ele é e
não é, como o demo sertanejo. Mas aí, se retornamos ao
texto de Sarlo, “El saber del texto”, constatamos que, como
sempre, a leitura é maior que o texto porque ele sempre
GL] PDLV GR TXH D¿UPD &RP HIHLWR R HQVDLR GH 6DUOR
foi ilustrado, invadido até, por desenhos de León Ferrari
H D GLVSRVLomR GHVVHV ERQHFRV TXDVH FRPR ¿JXULQKDV
GH3OD\PRELOYLQFXODVHDRXWURVPRGRVGH¿JXUDomRGD
SROtWLFD VHPHOKDQWHV DRV H[SORUDGRV SRU XP ¿OPH FRPR
Los rubios (2003), de Albertina Carri, com roteiro em co-
DXWRULD FRP $ODQ 3DXOV RQGH DTXHOHV TXH GHVD¿DYDP
o consenso eram vistos pelas maiorias normais como
ERQHFRV GH ¿FomR FLHQWt¿FD WmR FDQKHVWUD TXDQWR
GRPpVWLFD ULGtFXODV ¿JXUDV GH XPD SDQWRPLPD FyVPLFD
acerca da qual, aliás, o coletivo Punto de vista, segundo
Daniel Link, nada teve para dizer. Não há, a rigor, grandes
diferenças, portanto, entre a demora do Instituto de Cinema
NLUFKQHULVWD HPFRQFHGHUDR¿OPHRFDUiWHU³GHLQWHUHVVH
público” e a apatia do clube socialista (anti-kirchnerista)
em avaliar o testemunho de Carri. A diferença não é,
portanto, ideológica, mas política. A explicação deveria
ser buscada no fato de que a estratégia do esvaziamento
GR¿OPHRSHUDGHFLGLGDPHQWHQmRVyQDV¿JXUDVFRPR
UHLYLQGLFDYD6DUORPDVQD¿JXUDomRQmRVyQDVLPDJHQV
como diria Schwarz, mas na imaginação; não só no que
vemos, mas no próprio olhar. Fica claro então (e isto talvez
ilumine, por exemplo, certa reconversão políticamente

48
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
neoconservadora de Sarlo, nos anos mais recentes) que
a forma é uma simples aparência; a arte visual é cega; e
DOLWHUDWXUDGH¿QHVHFRPRXPDREOLWHUDomRHXPDUDVXUD
uma diferença que nunca se capta em simultâneo, mas
sempre em diferido, em fusão temporal. A crítica, como a
de Antonio Candido ou Beatriz Sarlo, limitada à mimese,
não passa, portanto, de um trompe l’oeil, porque, quando
muito, ela consegue descerrar o véu que cobre algo
situado para além do que se pode ver. Capta o mistério,
mas não o enigma.
Giorgio Agamben nos fornece, aliás, um último
elemento para pensarmos o ser e não-ser coexistentes à
maneira de Guimarães Rosa. Trata-se de uma fórmula que
SRGHULDVHU¿OLDGDDRVLQWDJPDregula et vita de Francisco
de Assis. Nela, conjuga-se, mas também separa-se,
uma tensão recíproca entre a regra e a vida. Em outras
palavras, não há mais espaço para a aplicação da regra
(evangelicum canon) aos poderes mundanos, entre os
quais, os da própria Igreja, assim como o cânone ocidental,
à maneira de Bloom, não dá mais conta das pesquisas
na Universidade. A fórmula franciscana regula et vita e, na
sequência, a idéia muriliana ou roseana, em uma palavra,
a imagem pós-lógica, inserida, em suma, no Real, de ser e
não-serQmRVLJQL¿FDPFRQIXVmRHQWUHRVGRLVWHUPRVPDV
neutralização e transformação de ambos como formas-
de-vida. Na emergência de uma exceção—a janela do
FDRVRLQ¿QLWRPXQGR—regra e vida se separam: o estado
normal não se apresenta mais, então, como aplicação da
regra à bios, mas como “forma-de-vida”, praticamente zoé,

49
A literatura e a vida: por que estudar literatura? - Praia Editora
ao passo em que, simultâneamente, a exceção aparece
como dispensatio regulae.48 É a chave do contemporâneo,
D FLFDWUL] GR PRGHUQR 5HÀHWLU VREUH HVVH WySLFR WDOYH]
nos ajude a melhor entender a situação de nosso trabalho
crítico no âmbito da Universidade.

Retomo aqui parcialmente as idéias desenvolvidas em “A


pesquisa como desejo de vazio”, em: SCRAMIM, Susana (Ed.).
O contemporâneo na critica literária. São Paulo: Iluminuras,
2012. p. 15-34.

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48 AGAMBEN. Altissima povertà: regole monastiche


e forma di vita, p. 126-134. A tese, que como o último
Oswald se questiona acerca do uso, oposto à propriedade,
conclui que “l´altissima povertà, col suo uso delle cose, è la
forma-di-vita che comincia quando tutte le forme di vita
dell´Occidente sono giunte alla loro consumazione storica”,
p. 171.
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