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Questão escolhida
“Et je recommence à me demander quel pouvait être cet état inconnu, qui
n’apportait aucune preuve logique mais l’évidence de sa felicité, de sa réalité
devant laquelle les autres s’évanouissaient. Je veux essayer de le faire réapparaître.
Je rétrograde par la pensée au moment où je pris la première cuillerée de thé. Je
retrouve le même état, sans une clarté nouvelle. Je demande à mon esprit un effort
de plus, de ramener encore une fois la sensation qui s’enfuit. Et, pour que rien ne
brise l’élan dont il va tâcher de la ressaisir, j’écarte tout obstacle, toute idée
étrangère, j’abitre mes oreilles et mon attention contre les bruits de la chambre
voisine. Mais sentant mon esprit qui se fatigue sans réussir, je le force au contraire
à prendre cette distraction que je lui refusais, à penser à autre chose, à se refaire
avant une tentative suprême. Puis une deuxième fois, je fais le vide devant lui, je
remets e face de lui la saveur encore récente de cette première gorgée et je sens
tressaillir en moi quelque chose qui se déplace, voudrait s’élever, quelque chose
qu’on aurait désancré, à une grande profondeur; je ne sais ce que c’est, mais cela
monte lentement; j’éprouve la résistance et j’entends la rumeur des distances
traversées.” (PROUST, 1946, p.66-67)
Contexto
lemo-lo ainda no início da obra. Situa-se a quatro parágrafos do fim da primeira das duas
partes do capítulo denominado “Combray”; e traz em si uma constante desse imenso livro
composto por digressões, idas e voltas, lembranças e esquecimentos: tanto permite retomar
temas que vinham emergindo desde o famoso “Longtemps, je me suis couché de bonne
heure”, quanto indica uma porção de outras questões a serem exaustivamente desenvolvidas
no decorrer da narrativa.
Nas seguintes formulações, observamos uma espécie de combate espiritual
envolvendo o “eu que busca” e seu esforço para apreender algo que lhe ocorrera
interiormente a partir de uma recordação: “je recommence à me demander”; “Je veux essayer
de le faire réapparaître”; “Je rétrograde par la pensée”; “Je demande a mon esprit”; “j’écarte
tout obstacle”; “je le force à prendre cette distraction”. Ora, estamos justamente no parágrafo
que sucede a experiência do chá e da madeleine oferecidos pela mãe numa tarde qualquer de
inverno, evento trivial que desencadeia um turbilhão de sensações no herói da Busca, levando-
o a repensar uma cidade que parecia esquecida, a obscura Combray de sua infância. Tanto que
essa primeira parte em que o trecho proposto se insere terminará com a seguinte afirmação:
“Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville et jardins, de ma
tasse de thé”. Inicia-se a seguir a segunda parte de “Combray”, na qual a cidade será
demoradamente descrita.
Conceitos, metáforas...
Visto o esforço para apreender algo, latente nas formulações supracitadas, seria
alemão, temos “der Begriff” (o conceito), que vem de “greifen” (pegar, apanhar, prender). Ora,
categorização, por outro lado, os eventos que levam a tal apreensão podem escapar ao
próprio conceito, o que nos interessa para ilustrar como os conceitos presentes no vaivém
constituição de um sujeito que, mesmo incerto quanto a suas lembranças e sensações, toma e
retoma a palavra para dizer suas oscilações, os vacilos de seu espírito. Essa abundância de
C’est dans et par le langage que l’homme se constitue comme sujet; parce que le
langage seul fonde en réalité, dans sa réalité qui est celle de l’être, le concept d’
“ego”. La “subjectivité” dont nous traitons ici est la capacité du locuteur à se poser
comme “sujet”. Elle se définit, non par le sentiment que chacun éprouve d’être lui-
même (ce sentiment, dans la mesure où l’on peut en faire état, n’est qu’un reflet),
mais comme l’unité psychique qui transcende la totalité des expériences vécues
qu’elle assemble, et qui assure la permanence de la conscience (...) Est “ego” qui dit
“ego”. (BENVENISTE, 1974, p.259-260)
2-) Podemos também pensar em Paul Ricoeur e suas observações a respeito do idem e
do ipse em seu texto sobre a identidade narrativa na revista Esprit (1988). Ricoeur faz uma
tanto mais: o termo mesmidade estará definido como “qualidade daquilo que é o mesmo” e
ipseidade vem como “o que faz que um ser seja ele próprio e não outro”. A nuança entre tais
definições nos dá uma pista em relação ao que é proposto por Ricoeur quando fala em
ser permanece ele próprio ainda que descontinue, ou seja, apresente-se como um eu flexível.
manutenção do si, mas sem a permanência no tempo do idem. Ora, podemos sim vislumbrar
assim como este eu debate-se em sua busca e muda de atitude em relação ao pensamento,
outras metamorfoses acontecem na Recherche: o herói, por exemplo, mostrar-se-á
desencantado tanto com Gilberte quanto com Combray – a mulher e a cidade outrora amadas.
3-) Ainda em relação ao eu, vale a pena determo-nos no fato de haver essa delegação
de tarefas a um certo “lui”, o espírito: “Je demande à mon esprit un effort de plus”, “je le force
à prendre cette distraction”. É algo sutil no trecho, mas se nos pomos a passear pela Busca,
por exemplo, pelas páginas iniciais, observamos as constantes oscilações entre primeira e
corps” [ele] cherchait à repérer la position de mes membres, ora “j’avais la pensée”, ora “ma
pensée hésitait”. Não sou eu quem procura, mas o corpo; não sou eu quem hesita, mas ele, o
p.265)1. Proust joga muito com isso ao longo da Busca, não obstante seu texto aproximar-se
ipseidade, ou seja, estando ao lado do ipse, mas mais enquanto oposição ao idem de
Rousseau, por exemplo, que nas Confissões esforça-se por reafirmar sua mesmidade, desde a
infância, quando roubava frutas, até a idade adulta em que rememora sua vida e se diz
arrependido2.
Movimento
Em Proust, uma vez comprometido (talvez até inconscientemente) com uma dialética
desconstrutiva, o “eu que busca” não é estático. Notamos isso já no início do parágrafo: “Et je
1
Conforme o seguinte trecho sobre o verbo jurer: “Or je jure est une forme de valeur singulière (...)
L’enonciation s’identifie avec l’acte même. Mais cette condition n’est pas donnée dans le sens du verbe;
c’est la ‘subjectivité’ du discours qui la rend possible. On verra la différence en remplaçant je jure par il
jure. Alors que je jure est un engajament, il jure n’est qu’une description, au même plan que il court, il
fume. On voit ici, dans des conditions propres à ces expressions, que le même verbe, suivant qu’il est
assumé par un ‘sujet’ ou qu’il est mis hors de la ‘personne’, prend une valeur différente.”
2
Isto fica dito assim em linhas gerais, mas sabemos das contradições inerentes ao texto rousseauniano.
recommence”. O ato de recomeçar enfatiza a persistência. Um estado singular de felicidade
fora experimentado e não se pode (não se quer) deixá-lo escapar. Donde os apelos ao espírito,
para que use todas as armas disponíveis. O “re” do “je recommence” ressoa pelo texto: no
première cuillerée de thé”. Logo em seguida, notamos que esse retroceder pelo pensamento é
infrutífero, uma vez que não traz nenhuma “clarté nouvelle”. Insiste-se ainda numa
concentração cartesiana: “j’écarte tout obstacle, toute idée étrangère, j’abitre mes oreilles et
mon attention contre les bruits de la chambre voisine”3. Em vão. O espírito “se fatigue sans
réussir”. Eis o que diferenciará Proust de Descartes neste momento: à fadiga do espírito
sucederá uma vírgula e algo emblemático: “je le force au contraire à prendre cette distraction
que je lui refusais, à penser à autre chose”! E somente após esse frescor da distração,
novamente diante do sabor do primeiro gole de chá com madeleine, é que será possível sentir
“tressaillir en moi quelque chose qui se déplace”, algo ancorado no mais profundo do ser, mas
prestes a irromper, embora não se saiba ainda do que se trata. Aceitar a distração foi, pois,
essencial.
madeleine oferecidos pela mãe e provados numa monótona tarde de inverno, não é um “mero
acaso” que se deve ter em mente. Com efeito, faz-se necessário acolher e frutificar o acaso. O
chá da tarde não estava previsto, mas aconteceu e obrigou a pensar. Aliás, se a sensação de
3
No Discurso do Método de Descartes lemos um filósofo que se resolve “a não mais procurar outra
ciência, além daquela que se poderia achar em mim próprio”, atitude mais frutífera, concluirá logo
adiante, “do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros” (DESCARTES, 1983, p.33)
deleite, num primeiro momento, parece vir diretamente do gosto da bebida e do bolo, logo a
seguir percebemos que não, uma vez “qu’elle le dépassait infiniment, ne devait pas être de
même nature” (PROUST, 1946, p.66). Um segundo gole só comprovará a diminuição da virtude
da bebida. Por quê? Porque “il est clair que la vérité que je cherche n’est pas en lui, mais en
moi” (idem). Ou seja, o evento trivial, casual nada seria se não tivesse encontrado um espírito
atento a refletir sobre aquilo que o acaso, sem motivo, mostrou existir em seu interior. É esse
algo, ainda desconhecido (somente a sensação que provocara é conhecida), que agora
atormenta e faz estremecer o eu em sua busca pela felicidade, pela verdade. Trata-se de uma
recordação até então soterrada, ainda velada, mas que está por vir, graças ao que
estando no escuro e movido por uma casualidade. Se quisermos, aqui uma vez mais Proust
ideias claras e distintas, o “eu que busca” proustiano, movido por um gesto involuntário4,
deixa-se atrair pela escuridão. Esse involuntário faz parte da vida do espírito. Se o pensamento
clássico, desde Platão, anseia pela luz, pelo esclarecimento, no trecho de Proust a “clarté
nouvelle” não veio; entretanto, há certo encantamento pelo obscuro, em aceitar e trabalhar o
elemento surpresa, que não fora planejado. Por isso, assumem maior importância metáforas
mais primitivas, como sabor, tato e olfato, muito mais convenientes a quem se propõe dizer
essas zonas de escuridão. Lembremos que apenas ver a madeleine nada despertara no herói. A
Por outro lado, notemos que no artigo “Entre sono e vigília: quem sou eu?”, Jeanne
Marie Gagnebin, ao comparar Proust e Descartes, alertará a que não atribuamos a Proust uma
crença supersticiosa no irracional. Trata-se tão somente de exercitar a atenção àquilo que nos
4
Vale lembrar que de início houve uma recusa ao chá: “...comme je rentrais à la maison, ma mère,
voyant que j’avais froid, me proposa de me faire prendre, contre mon habitude, en peu de thé. Je
refusai d’abord et, je ne sais pourquoi, je me ravisai.” (PROUST, 1946, p.65)
escapa e, por isso, pode nos interpelar. Gagnebin aproxima o texto proustiano de uma relação
com o kayros, o tempo oportuno e fugaz dos gregos. Ou seja, para atingir a verdade será
Mas se tal epifania secular se revela em uma sensação inusitada, não deixa de ser o
espírito – o pensamento, a escrita, a arte – que a reconhece, a interpreta, lhe dá
uma forma e um nome. É por isso que o narrador, no episódio da madeleine, tem
de afastar a xícara de chá e o bolinho, pois, embora eles pareçam ser os
depositários da sensação mágica, eles o são, justamente, por puro acaso, eles não
dizem nada sobre o chamado à felicidade e à verdade que a sensação suscitou. O
narrador declara então: “Deposito a taça [xícara] e me volto para meu espírito.
Depende dele encontrar a verdade.” (GAGNEBIN, 2006, p.556-7).
Um pouco de impressionismo
Ainda uma palavra sobre o constante retomar-se da Recherche, presente, como vimos,
no trecho sob análise neste trabalho. A emblemática movimentação desse “eu que busca” não
está somente aí, mas em todo o livro. Logo, como estamos no início da narrativa, talvez
possamos afirmar que a resolução tomada neste momento configura uma passagem essencial
para a obra, uma vez que esse espírito que vai e volta, que se debate entre a tradição e a
exploração de uma nova linguagem, um novo gênero, dará o tom de toda a sinuosa narrativa a
interessa de fato para encontrar a verdade não são os eventos, mas aquilo a que, por acaso,
conduzem), podemos associar esse eu que toma persistentemente a palavra, e diz “eu”
dezesseis vezes, à revelação final do herói da Busca quanto a sua vocação de escritor. Afinal, o
DESCARTES, René. Meditações. (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1983.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. "Entre sonho e vigília: quem sou eu?", posfácio de PROUST, Marcel.
PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. (vol. I). Paris: Gallimard, 1946.
RICOEUR, Paul. L’identité narrative. Esprit, Paris, Éditions du Seuil, vol. 7-8, p.295-304,
juillet/août 1988.