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PEREIRA
340044139
o s /g b
A C asa das M in a s
A CASA DAS MINAS
Contribuição ao Estudo das Sobrevivências
do Culto dos Voduns, do Panteão Daomeano,
no Estado do Maranhão, Brasil.
NUNES PEREIRA
das Academias de Letras
do Maranhão e Amazonas
2? edição
C -^fH
V VOZESJ
J<W P e tr ó p o lis
. 2- 1079
© 1979, Editora Vozes Ltda.
r-kien-W siB kZi. Rua Frei Luís, 100
UFSU -IF C S 25 600 Petrópolis, RJ
Brasil
Registro- J i o o / Í 6
Doação: Foto da capa:
STORESA MARIA NOCHÊ,
0 ^ 1 I o- f Uu do Culto dos “Voduns JEJE”,
em São Luís do Maranhão
Diagramação
Valdecir Mello
rí* è■Ê
uu
Ano Internacional
daCrianca1979
Aos Presidentes das Repúblicas do Senegal e da Nigéria.
Ao Senador José Samey, que como Governador do Estado do Maranhão
(Brasil) proporcionou a seu autor os meios necessários
à realização de pesquisas sobre o Culto dos Voduns,
do Panteão Daomeano, nas áreas onde vivem descendentes
de Negros escravos, procedentes do Continente Africano.
À memória de
Andresa Maria, Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto, Arthur Ramos,
Edison Carneiro, Edmundo Corrêa Lopes, Jorge Dias,
Leo Frobenius, Melville J. Herkovits, Alfred Métraux,
Roger Bastide.
Os Minas, tão bravos, que aonde não podem chegar com o braço,
chegam com o n o m e ..." (Pereira da Costa: “A idéia abolicionista
em Pernambuco”, Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano, 1891, p. 24.7).
“Le Vodou est une religion car elle possède une doctrine,
se matérialise dans les rites, offrandes et sacrifices, dans
une hiêrarchie sacerdotale et d’initiation, tous les éléments culturels
provenant des religions des différentes tribus transportées à Saint
Domingue”.
" . . . il est une certaine tendance à confondre le Vodou et la magie
noire. Tandis que dans la croyance populaire ces deux entités sont
nettement différenciées au point que le serviteur des “Loas Roses”,
divinités bienveillantes, sous peine de sanctions sévères, doit s’abstenir
de pratiques magiques. II lui est plutôt recommandé des oeuvres de
bienfaisance, connues sous la dénomination de charité, de “manger
les âmes” ou “manger le pauvre”. Le Vodou, comine toute religion
d’ailleurs, se propose des fins à caractère humanitaire”
(Dr. François Duvalier, Lorimer Denis, ethnologues, in Haiti,
Paris, Editions Delafosse).
S um ário
Introdução, 11
É um depoimento, 19
Capítulo I
A casa e a sua dona, 21
Capítulo II
0 Comé, o Pégi e os Voduns, 29
Capítulo III
O gume e as festas, 37
Capítulo IV
Quando os Voduns baixam, 43
Capítulo V
A moral do culto, 47
Capítulo VI
Aspectos complementares, 49
Notas complementares, 63
Apêndice, 201
Bibliografia, 241
Caderno iconográfico
A P rimeira P arte desta obra consta do texto da monografia
A Casa das Minas, cuja prim eira edição foi promovida
e custeada pelo Prof. Dr. A rthur Ramos. A segunda parte
consta de Notas complementares aos temas relativos ao Culto
dos Voduns mina-jejes descritos nessa monografia.
I ntrodução
ll
Assim, as entidades Loco, Elegbá ou Legba, Mawu, Khêbiosô, Anyi-ewo,
Hoho, Saponan, Wu, Dsó, Nati, Avrikiti, B á ... ainda puderam ser
registradas pelo mestre baiano. Diz Nina Rodrigues não ter encontra
do o termo Vodu (Vodun), que agora sabemos existir largamente no
Maranhão, através das pesquisas de Nunes Pereira.
E quanto ao culto de Danh-gbi, a serpente sagrada, conseguiu Nina
Rodrigues identificar seus vestígios em alguns terreiros, em que foi
mais acentuada a influência de Jejes. Num desses terreiros, o de Li-
valdina, achou «como um dos ídolos uma haste ou antes lâmina de ferro
de cerca de cinqüenta centímetros de comprimento, tendo as ondula
ções de uma cobra e terminando nas duas extremidades em cauda e
cabeça de serpente».2
Manuel Querino aludia também a alguns nomes de divindades jejes,
na Bahia, quando asseverou que estes chamavam a Olorum Niçasse:
a Oxalá, Oulissá (L isa?); a Anamburucu, Tôbôssi.3 De regra, porém,
essas entidades jejes foram absorvidas pelos equivalentes nagôs. E foi
por esse motivo que nas minhas pesquisas da Bahia, Nordeste e Rio, não
consegui registrar formas organizadas do culto dos Voduns. As enti
dades jejes haviam sido absorvidas quase que completamente. Apenas,
aqui e ali, alguns sinais evidentes da sua aparição, como se verifica
nos desenhos, quase apagados, de uma cobra e outros símbolos daomea-
nos, em alguns objetos colhidos na Bahia, em 1927.4
Um desses objetos é uma pulseira de filha-de-santo, de metal, que
tem a forma de uma cobra dobrada em círculo e mordendo a própria
cauda; outro objeto de metal é uma espada de 26 centímetros de com
primento, que termina em forma de cabeça de cobra e apresenta de
senhos de estilização tipicamente daomeana.
As pesquisas dos meus colaboradores, Edison Carneiro, no terreiro
da Goméia na B ah ia5, e Gonçalves Fernandes, no terreiro de Pai
Anselmo, em R ecife6, vêm confirmar essas sobrevivências do culto da
cobra, de origens daomeanas. Em outros terreiros baianos, o culto
acha-se adulterado nas várias formas de sincretismo com as supersti
ções da cobra e do folclore católico de São Bento e São Caetano.
É interessante observar que são os candomblés de nação kêtu que
conservam, na Bahia, algumas tradições jejes, mais facilmente identi
ficáveis. Loco (Loko), Nananborocô ou Nananburucu (Nana-Buluku),
Leba (Elegbara), Sapata (Sagbata) . . . são entidades indiscutivelmen
te de origens daomeanas, nos terreiros jeje-nagôs da Bahia e do Nor
deste. Não é sem razão que um dos candomblés da Bahia onde se podem
mais facilmente evidenciar essas intromissões jejes tenha o nome de
2. Id ., ibid., p . 345.
3. M anuel Q uerino. C ostum es A fric a n o s no B rasil. Rio 1938, p. 51.
4. A rth u r R am os. O N eg ro B rasileiro. 2* ed. São P a u lo 1940, p. 55; Id., A s C ulturas N eg ra s
mo N o vo M undo. 2» ed., 1946, p. 303; Id ., In tro d u çã o à Antro-pologia B rasileira. Vol. I, R io 1943,
p. 395.
5. E dison C arn eiro . N eg ro s B a n to s. R io 1937, p . 105.
6. G onçalves F e rn a n d e s. X a n g ó s do N o rd este. R io 1937, p . 75.
12
«candomblé da Goméia». Não será «da Goméia» uma deturpação de
Pagomé (antigo nome luso do Daomé ou Daomei) ?
O escritor português Edmundo Correia Lopes asseverou te r encon
trado, nessa ordem de idéias, evidências de divindades jejes nos terrei
ros da Bahia que freqüentou. E o próprio termo Vodu foi ouvido em
alguns cantos liturgicos.7
Comentando esse trabalho de Edmundo Correia Lopes, o ilustre es
critor baiano Aydano do Couto Ferraz vem confirmar, mais recentemen-
le, a evidência de sobrevivências daomeanas na B ahia.8 Refere-se ini
cialmente à descoberta do Prof. Donald Pierson, do culto de uma árvore
sagrada no candomblé da Goméia, onde se fazem despachos para Pas-
coalina, mulher que as lendas dizem metamorfoseada em cobra. Com
a atenção voltada para o assunto, Aydano do Couto Ferraz foi encon-
Irar, na casa do babalaô Raimundo, na Areia da Cruz do Cosme, uma
cobra dentro de um caixote de grades. Também no terreiro Tumba
Jussara, de Ciríaco, ao Beiru, uma cobra era reverenciada como uma
das divindades do culto. Ainda no Axé de Mãe Aninha, o escritor
baiano foi encontrar os anéis da falecida mãe-de-santo, «em forma de
cobra ou tendo cobras esculpidas em relevo nos seus arcos». Indagan
do da sucessora de Aninha a razão daquilo, apenas a mãe-de-santo
pôde adiantar tratar-se do culto de Idangbé (sic), a cobra sagrada,
«que era um vodunce», falando depois, «vagamente», em relações de
culto da serpente com o de Oxum-maré, o arco-íris.9
Tudo isso é muito interessante e essas pesquisas evidenciam a
existência de algumas sobrevivências de entidades e cultos de origem
daomeana, nos terreiros da Bahia. É possível que pesquisas mais de
moradas possam aumentar o número desses traços culturais. Um ponto,
porém, precisa ser destacado. É que a velha asserção de Nina Rodri
gues, de que os cultos e práticas jejes foram absorvidos pelos Nagôs,
continua de pé. As sobrevivências religiosas jejes, quando existem, não
chegam a constituir, na Bahia, no Nordeste, ou no Rio, um bloco cul
tural onde se possa nitidamente evidenciar uma franca herança dao
meana. Em outras palavras, não há, na Bahia, um culto vodun esta
belecido como tal. Os traços daomeanos, quando identificáveis, vêm
incorporados ao sincretismo jeje-nagô, como as pesquisas do nosso
grupo o têm demonstrado. Em todo caso, impõem-se pesquisas poste
riores no sentido de se evidenciarem os graus deste sincretismo ini
cial sobre o qual se enxertaram todos os outros.
Não parece ser este o caso do Maranhão, conforme o demonstram
as pesquisas de Nunes Pereira. Lá existe, de forma institucionalizada,
7. E dm undo C o rre ia Lopes. “ V estíg io s de Á frica no B ra sil” , in O M undo P ortuguês. Vol. V I,
n. 63, Lisboa 1939.
8. A ydano do Couto F e rra z . “ V estíg io s de um culto daom eano no B ra sil” , in R e v ista do A rq u iv o
M unicipal. A no V II, vol. L X X V I. São P au lo , m aio, 1941, p. 271s.
9. Id., ibid., p . 274. O u tra s id en tificaçõ es de V oduns je je s têm sido re g is tra d a s n a B ahia, como
uh de P . K ockm eyer ( “ C andom blé” , S a n to A n tô n io , 1936) re fe rid a s pelo P ro fe sso r R oger B astide
no quadro d a “ c o rresp o n d ên cia e n tre O rix á s de d iv ersas e tn ia s ” ( “ E studos A fro -B rasile iro s” , 1* série,
B oletim L IX d a F acu ld ad e de Filosofia, C iências e L e tr a s d a U n iv ersid ad e de São P aulo, 1946,
quadro I V ).
13
o culto dos Voduns, onde a filiação daomeana pode ser facilmente
identificada.
Desde muito tempo se sabia que o Maranhão fora um dos pontos
mais importantes de introdução de negros escravos. Mas as referên
cias dos nossos escritores sobre o assunto têm sido parcas ou contra
ditórias. Havia notícias dos «tambores de Minas» e o próprio Nina
Rodrigues se referira à expressão dança de tambor como sendo equiva
lente, no Maranhão, aos termos candomblés e batuques na Bahia, ma-
racatu no Nordeste, e tc .10 É ainda Nina Rodrigues quem alude a uma
visita que fez, em 1896, aos «últimos negros africanos que existiam
na capital daquele Estado e que são ali geralmente conhecidos por
Negros m inas».11 Eram duas velhas, uma «jeje» e outra «nagô de
Abeokutá», que residiam em pequenas casas nas proximidades de
São Pantaleão. Outros escritores fizeram referências aos «Negros
minas» do Maranhão, e especialmente à Casa das Minas, de Andresa
Maria. É o próprio Nunes Pereira que lembra as visitas do escritor
espanhol Álvaro de Las Casas e do pesquisador português Edmundo
Correia Lopes.
Este último visitou o terreiro de Mãe Andresa em 1937, conforme
refere nos seus comentários à Obra Nova de Língua Geral de Mina,
de Antônio da Costa Peixoto12 (ver Caderno Iconográfico n. 1 e 2).
Dá uma rápida descrição da casa do culto, alude à nochê Maria Andre
sa, «velha voduno, preta brasileira, celibatária», e acrescenta que «o
culto envolve uma mitologia numerosa». Acha que o culto dos Minas,
do Maranhão, está «incluído no sincretismo ioruba-daomé». Dá a tran s
crição musical de dois cantos de Loko, embora a significação dos textos
não lhe fosse explicada pela velha Andresa.
Permanecia assim inexplorado um rico filão de sobrevivências afri
canas no norte do Brasil, não obstante por diversas ocasiões termos
mostrado a necessidade inadiável da sua coleta e interpretação.
Era o que, no Seminário de Aculturação na Northwestern
University, em 1941, eu sugeria ao Prof. Herskovits quando tracei, a
seu pedido, em aula, um quadro dos pontos do Brasil mais interessan
tes para a pesquisa de africanismos culturais. Um plano foi concertado
para uma viagem ao Maranhão, que faríamos conjuntamente, o Prof.
Herskovits e eu, que, por motivos independentes da nossa vontade, não
foi possível concretizar.
Disso havia de se encarregar, posteriormente, um jovem estudan
te do Prof. Donald Pierson e do Prof. Herskovits, Otávio C. Eduardo,
que visitou o Maranhão, de novembro de 1943 a julho de 1944, sob
os auspícios do Program of Negro Studies do Departamento, de Antro
pologia da Northwestern University. Não conheço a natureza do ma
terial colhido, que aguarda publicação, a não ser um pequeno artigo
10. N in a R odrigues, op. c it., p. 234.
11. ld ., ibid., p. 164.
12. Ed. d a A g ên cia G eral das C olônias, L isboa 1945, p . 48s.
14
nobre os processos aculturativos em São Luís, onde se evidencia a
confluência de alguns Voduns daomeanos com Orixás nagôs, espíritos
caboclos e Santos católicos.13
As pesquisas de Nunes Pereira, datadas de 1942, são porém ante
riores, e essa prioridade ele a reivindicou perante a Sociedade Brasi
leira de Antropologia e Etnologia, no Rio de Janeiro, em sessão de
11 de agosto de 1944, quando apresentado e discutido o seu trabalho,
agora vindo à luz da publicidade. O autor cinge-se apenas aos aspectos
religiosos do grupo da «Casa das Minas», fazendo referências inci-
dentais à «Casa dos Nagôs», e a outros aspectos da cultura não-
religiosa dos Negros maranhenses. Seu trabalho precisa, pois, ser com
pletado em vários aspectos, e estou certo que as pesquisas de Otávio
Eduardo virão trazer esclarecimentos importantes.
Na monografia de Nunes Pereira, tem-se, porém, o essencial para
u reconstituição de um corpo homogêneo de práticas voduns num ponto
do norte do Brasil, de franca influência daomeana. O nome que recebeu
esse grupo foi de Negros minas ou de Minas jejes. O termo «Minas»
merece um esclarecimento, que já foi feito em outro lu g a r14, em vista
das confusões que tem originado.
Podemos dizer em síntese que há um significado restrito e outro
largo para o termo. «Minas», stricto sensu, são os Negros da Costa do
Ouro, Fanti-Ashanti, que tomaram essa denominação talvez devido ao
Corte de Elmina ou de S. Jorge da Mina, que se tornara o principal
empório de escravos sob os portugueses.
O termo, porém, passou a designar todos os Negros sudaneses
(pie foram embarcados naquele ponto para o Brasil. Assim, por exem
plo, os Nagôs, os Jejes, foram chamados, num sentido lato, de «Negros
minas», em várias partes do Brasil. É por essa razão que nos documen
tos do tráfico, nos trabalhos dos antigos escritores, havia necessidade
de uma expressão restritiva, após o termo geral «Minas», para indicar
u sua exata origem étnica. Assim vemos desfilar os Minas nagôs, os
Minas jejes, os Minas popôs, os Minas santes (Santis), os Minas fantis,
os Minas angoins, os Minas k r u s ...
Está assim explicada a expressão de «Negros minas» para o grupo
daomeano do Maranhão. Não são Negros da Costa do Ouro, porém
Negros jejes, Minas jejes como tão bem registrou Nunes Pereira. Que
o grupo estudado seja de proveniência daomeana, parece não haver
dúvida, menos pelas evidências históricas, que são quase nulas, que
pelo critério da comparação cultural. Os termos correntes na Casa das
Minas são daomeanos.
Os nomes de parentesco colhidos por Nunes Pereira revelam a
rica nomenclatura das relações de parentesco, colhidas pelos pesqui
sadores no Daomé. Tochê será o mesmo tóchi daomeano, «meu pai»;
13. O távio C. E d u ard o . “ T h ree-w ay R eligious A c cu ltu ra tio n in a N o rth B ra zilian Citar", In
A froavnerica. Vol. II, n. 3, México, ja n e iro , 1946.
14. A. Rumou. In tro d u çã o à A n tro p o lo g ia Brasileira. Vol. I, R io 1948, p . 402-405.
16
da mesma forma nochê é a nóchi, «minha mãe», e assim por diante.
Assisse, sobre o qual Nunes Pereira tem dúvidas, é o asichi, termo
com o qual no Daomé o marido se dirige à mulher. Noviche é um
termo genérico do Daomé significando não apenas «minha irmã»,
como no Maranhão, mas «irmão» (novíchi súnu) e «irmã» (novíchi
nyónu). Toda a enorme complexidade de relações de parentesco15 foi
esquecida no Maranhão, em vista naturalmente da perda da coesão
tribal, mas subsistiram os termos referidos, que bastam para atestar
suas origens daomeanas.
Os «Santos» são chamados Voduns, como no Daomé, Haiti, e
outros lugares onde há Negros de procedência daomeana. E as expres
sões «comé» e «gume» não seriam corruptelas de «gomé», «agomé»,
«dagomé», como sugerimos para o caso do terreiro da Goméia, na
Bahia? Seria um trabalho exaustivo a identificação dos Voduns da
Casa das Minas com seus correspondentes daomeanos. Algumas indi
cações bastam para provar a sua filiação, embora elas apareçam com
os seus nomes deturpados, ou de significação translata, quando não
se fundiram pelo trabalho do sincretismo a entidades de procedência
nagô ou de outras origens.
Os cotej os podem ser feitos nas listas de Voduns daomeanos re
gistrados nas obras de A. E. E llis16, A. Le H érissé1718, J. S pieth1S,
Herskovits 19 e outros africanistas que se dedicaram ao estudo da cul
tu ra daomeana. Verifica-se que já não há a correspondência de ordem
hierárquica entre os deuses do panteão daomeano e maranhense. Alguns
Voduns de prim eira categoria, na África, perdem a sua importância no
Maranhão, enquanto divindades secundárias lá ascendem aqui ao pri
meiro plano. É o caso, por exemplo, de Mawu-Lisa, quase desconhecido
no Maranhão. Há, apenas, nas pesquisas de Nunes Pereira, referências
a Liçá ou Oliçá, alistado entre os Voduns «velhos», do sexo masculino.
Dangbe e Dã escondem-se num quase inidentificável Dágêbe, «tobôssi»
ou «senhora», da noviche Zila.
Ao contrário, Zomadone, que Nunes Pereira arrola entre os p ri
meiros Voduns, sendo que a sua ja rra votiva é a maior de todas, não
é na África propriamente um Vodun. Trata-se de um culto ancestral
a um poderoso chefe lendário, Zumadunu, de seis olhos, a quem os
daomeanos respeitam, tendo-lhe erigido um templo em Abomé.20
Já o panteão celeste, dos trovões, das águas e do mar é mais
diretamente representado no Maranhão. A começar por Hevioso ou
Khevioso21, tornado Quéviôçô no Maranhão, e até dando nome a uma
15. V ide, p. ex., M. J . H ersk o v its. D ahom ey. A n A n c ie n t W e st A fr ic a n K ingdom . Vol. I, N ova
Io rq u e 1938, p. 145s.
16. A . B. Ellis. T h e E w e -sp e a k in g Peoples o f th e Sla ve C oast o f W est Á fric a . L ondres 1890.
17. A . Le H érissé. U A n c ie n R o y a u m e du D ahom ey. P a ris 1911.
18. J . S p ieth . D ie E w e -S tü m m e . B erlim 1906.
19. M. J . H ersk o v its, op. c it., vol. II, N o v a Io rq u e 1938. V ide tam bém A . R am os, op. cit., cap. X IV ,
p. 378s.
20. V ide H ersk o v its, op. cit., vol. I, p. 230s.
21. P a r a e sta e o u tra s id en tificaçõ es dos V oduns, vide H ersk o v its, op. c it., vol. II, p a rte V I,
p. 101-255.
16
«linha», a de Quéviôçôcilé. A esta linha se prendem os Voduns Badé
(na África: Gbadé, o filho mais jovem do panteão do trovão) ; Avérê-
((iiête (na África: Afrekéte, filho de Agbê e sua irmã Naéte) ; Abê
(na África: o já citado Agbê, filho de Sogbó, uma das apelações
d«' Mawu).
Sogbó, por sua vez, não tem mais no Maranhão a mesma digni
dade africana. Passa a ser Sobô ou Côbô, descrito como mãe de Badé.
Irmão deste é Loco, o conhecido Loko, a árvore sagrada de origens
daomeanas. Naéte passa a ser Naité, Vodun velho do sexo feminino.
O poderoso Sagbatá, rebento mais velho de Mawu-Lisa e corres
pondente ao Shapanan ou Shankpanna dos Ioruba, disfarça-se no Ma
ranhão num Acóçapatá, quase irreconhecível. Da mesma forma Na-
nabuluku, cuja importância é tão grande que foi retomada pelos Nagôs
como a sua Nananburucu, no Maranhão apenas é citada como Nanan-
biocô (sic) na lista dos Voduns velhos do sexo feminino.
Outras aproximações poderão ser aventadas, como a do Vodun
Alôgue, da família de Póli-Bogi, e que talvez seja o mesmo Alogbwe,
do panteão de Sagbatá. E esse misterioso Póli-Bogi ou Pódi-Bogi, a
que com tanto carinho se refere Nunes Pereira, como sendo o Vodun
de sua mãe, Felicidade Nunes Pereira, não será o mesmo Agbogbodji22
do grupo de Sagbatá?
Muitas coisas haveria ainda a comentar e a discutir nesta interes
sante monografia de Nunes Pereira. A questão do sincretismo, por
exemplo. O autor admite a forma de um sincretismo inicial, que po
demos chamar intertribal, o Jeje-nagô, devido não só à aproximação
dos grupos, historicamente, como à analogia das suas culturas. É a
c<'produção, no Maranhão, do mesmo fenômeno que o nosso grupo havia
assinalado na Bahia, desde os tempos de Nina Rodrigues.
Quanto ao sincretismo com o catolicismo, Nunes Pereira acha que
o corpo religioso e mítico da Casa das Minas se tenha mantido em
estado de relativa pureza, não assimilando os seus Voduns aos santos
de catolicismo.
Não tenho elementos para contrariar a sua asserção. Mas nas pró
prias pesquisas do autor encontramos dados que evidenciam certa
aproximação com as divindades católicas, embora de modo mais mi
tigado que entre os outros grupos negros do Brasil. Assim é, por
exemplo, que o autor se refere à «pedra de Santa Bárbara», ao santo
de grande poder, como o é S. Jerônimo. Diz Nunes Pereira que, embora
havendo aproximação de Badé com S. Jerônimo e Sobô com Santa
bárbara, não há um verdadeiro sincretismo.
O tempo irá se encarregando de apressar essa obra de encontro
cultural. Nas festas externas da Casa das Minas, os santos católicos
são objeto de um culto mais ou menos ruidoso. Embora as velhas
nochês asseverem tratar-se de simples coincidência das festas do ca-
22. Vido H ersk o v its, op. cit., vol. II, p. 140.
17
lendário cristão com as do culto mina-jeje, não poderão estas fugir à
regra geral da tendência à superposição dos «santos» e práticas do
culto. Ao sincretismo inicial jeje-nagô se sobreporão novos sincretis-
mos com o catolicismo, com o espiritismo, com as entidades amerín
dias, dentro daquele quadro geral já apresentado em nossos estudos.
Investigações posteriores virão mostrar de que modo e em que
extensão se estarão processando os sincretismos afro-católicos e outros
no Maranhão.
A importância do grupo mina-jeje, em São Luís, é tão grande
que sua influência parece ter-se estendido ao vale amazônico. É o que
deixa entrever a breve, mas interessante nota, de Geraldo Pinheiro.
É um assunto a investigar.
Este trabalho de Nunes Pereira vem preencher, como já dissemos,
um claro nos estudos do Negro no Brasil, dando-nos a prim eira con
tribuição importante sobre o assunto no extremo norte do país. É
uma pesquisa pioneira. Embora limitada a um dos aspectos das cultu
ras negras — e certamente o mais importante — ele nos abre largas
perspectivas para pesquisas e indagações futuras. Nunes Pereira vem
desta sorte se ju n tar ao grupo dos estudiosos brasileiros que, no Nor
deste, na Bahia, no Rio, em Minas, em outros pontos do país, estão
procurando reconstituir a história cultural do Negro brasileiro, dentro
da orientação metodológica que nos foi legada pela escola de Nina
Rodrigues.
Arthur Ramos
Rio, março, 1947
18
É um D epo im ento
21
Assim na Casa das Minas, como até nas tribos atuais da África,
costumes e influências exóticas não afetaram a estrutura da família
lá vivendo nem a sociedade que esta representa.
Nela, também, ainda são bem nítidas certas formas político-sociais
que deveriam caracterizar um autêntico regime matriarcal. Andresa
Maria, por exemplo, setuagenária — embora virgem por força das
exigências do culto —, é a «Mãe» dessa Casa. Pedem-lhe a bênção
os que moram nessa habitação, os que, como eu, vão lá algumas vezes,
ou os que lá aparecem pela prim eira vez.
A Casa é das Minas, sim, de uma sociedade africana transplantada
para o Brasil, mas o patrimônio que ela representa está confiado a uma
verdadeira Mãe: autoritária, quando é m ister; boníssima, sempre.
A presença da Dona dessa Casa se denuncia nos mais obscuros
fatos domésticos e nas maiores solenidades religiosas. Devem-se ao seu
gosto estético, muitas vezes, algumas «descobertas», quer na disposi
ção interna da Casa, na sua ornamentação, como no trajo e nas ati
tudes dos membros daquela família.
A disposição de alguns penteados, a que submetem as meninas e
é conservada pelos adultos, sofre a influência do gosto daquela Mãe.
E o mesmo acontece com o preparo e a ornamentação dos pratos de
quitutes típicos, pois a cozinha africana tem naquela Mãe uma orien
tadora esperta e delicada.
Os quitutes, assim, conservam, através das gerações que se suce
dem nessa Casa, o sabor que lhes senti pela prim eira vez, o sabor
que tiveram outrora e ainda o têm hoje na África longínqua. E o azeite,
que se vaza nas lâmpadas votivas, é o mesmo, e as velas que se acendem
propiciatoriamente para os Voduns têm o mesmo tamanho e a mesma
conformação.
Não há questões jurídicas entre os membros daquela família su
jeita a Mãe tão diligente, tão tradicionalista e tão austera; mas, se
houvesse, a sua figura se revestiria da imparcialidade de um juiz.
Essa Casa já é secular; no entanto, ao tempo de Nina Rodrigues,
talvez não tivesse as proporções que apresenta atualmente.
Ali, há mais de um século, alguns Negros minas se constituíram
em sociedade genuinamente africana, com as suas leis, os seus deuses,
os seus costumes e as suas tradições. Examinando-a, do lado da rua
Senador Costa Rodrigues, acreditar-se-á, à primeira vista, que ali estão
duas habitações com uma porta e três janelas, cada uma. Entrando
nela, porém, verifica-se que é uma só, sendo a prim eira porta, quase
à esquina, a que dá acesso, normalmente, ao interior, através de um
pequeno corredor. As disposições internas são as que o eroquis n9 4
apresenta (ver Caderno Iconográfico n. 4).
Como vários compartimentos em minha meninice me eram defesos,
nessa Casa só uma área me ficaria minuciosamente na lembrança: a
do terreiro, largo, com plantas ornamentais, com árvores frutíferas,
22
urim copada cajazeira e vários pés de ginja, ácidas e vermelhinhas, a
' iija sombra brincavam as crianças e se assentavam em esteiras algu
mas velhas, cachimbando, silenciosamente, horas a fio.
Quartos, alcovas, etc., são englobados, nesse croquis, com a deno
minação de salas. Um corredor só, desde a porta quase à esquina, vai
i' i á varanda onde os Voduns dançam em certas solenidades. Essa
varanda é separada do terreiro por um muro de um metro e tanto
'!'■ altura, com pilares que lhe pousam ao longo, arrimando o telhado
"■ui calhas.
Caratujando esse croquis, foi minha preocupação, simplesmente,
i|"»utar a localização do pégi ou pódône ou santuário e do terreiro ou
nume. As chamadas salas não deixam, algumas delas, entretanto, de ter
' «'i'tu importância, quer para o culto, quer para a vida doméstica.
Nesta ou naquela, ora se vestem os Voduns, ora os mesmos rece-
bem os seus filhos e as suas filhas e com eles conversam, ora con
versam entre si, em língua africana, trocando reverências e cortesias,
ininando uns, com gravidade e majestade mesmo.
Embora não faça parte do corpo, propriamente dito, da Casa
i >rande, ao lado direito do terreiro, para quem o defronta da varanda,
lia um grupo de habitações em que nunca tive oportunidade de pe-
imlrar. Também, conquanto íntimo, merecendo as distinções dispen-
wmlas a todos os filhos e filhas, já homem feito, nunca penetrei outras
tolas, nunca fui até a cozinha de onde vinha outrora, para as minhas
narinas, o aroma dos pratos típicos que aparecem por ocasião de de-
i>•iminadas festas.
A Casa Grande está relativamente conservada; há apenas uma
parede ameaçada de cair e outra já por terra, vendo-se-lhe os adobes
nos pedaços e restos de esteios e de telhas, espalhados a um ângulo
d" terreiro. Algumas salas são ladrilhadas e outras cimentadas. A va-
i.uida tem ainda o piso de barro; o «pégi», também, e o «gume».
Toda a Casa é admiravelmente arejada, muito embora se conser
ve quase sempre de janelas fechadas. A ventilação se faz, principal-
nionte, do terreiro para dentro; o vento da baía de São Marcos entra
pelas rótulas das janelas, pelas bandeiras das portas, pelos interstí-
ems das telhas pousadas em vigamentos de madeira de lei, sem que
sob elas se estendam forros concentrando calor.
O clima da Ilha de São Luís, aliás, dá às habitações desse tipo, e
até de velhos casarões e sobrados de azulejo de toda a cidade, uma
temperatura interior agradabilíssima. A iluminação, também, é farta
e suave. Toda a Casa defronta os poentes que caem sobre a baía de
São Marcos.
A quem teria pertencido essa Casa nas suas origens? Teria ela
sido adquirida, num movimento coletivo de libertos ou de «forros»?
Teria sido legada a algum deles por certo senhor ou senhora genero
síssimos? Nada„4isso me foi dado ainda apurar, mas, naturalmente,
23
alguém já o deverá ter feito ou fácil será fazê-lo recorrendo aos
Arquivos da Municipalidade ou outras fontes.
Para mim, também, o interesse maior estava em saber da funda
ção dessa Casa, isto é, do ato social, político, religioso, tradicional que
a estabeleceu lá na antiga São Pantaleão! A Tradição, falando através
da boca de Andresa Maria, diz que quem a «assentou» foi «contra
bando». A expressão «assentou», aqui, não quer dizer, de nenhum modo,
porém, construir materialmente.
Desde as suas origens a Casa Grande, às mãos dos Minas, foi
casa para reunião social, política e religiosa. Ali se «assentou», evi-
dqfitemente, a fundação espiritual e jurídica dos representantes de uma
tribo africana trazida para o Brasil aos frangalhos, como fardos de
carne que a voracidade de todas as misérias estraçalhasse e dispersasse.
O «contrabando», que «assentou» essa Casa, segundo minha Ma
drinha Almerinda, era gente vinda diretamente da África, mina-jeje.
trouxeram o «pégi» consigo. «Nós é que estamos zelando», afirma
sempre a Dona da Casa.
Talvez, também, essa alcunha dos Negros minas tenha surgido
com a repressão ao contrabando de «peças» da Costa da África, das
terras dos Bantos e dos Sudaneses, assim que a Inglaterra e Portugal
acordaram pôr fim à escravatura, embora aquela nação, consoante sua
psicologia, ainda se beneficiasse com a boa fé ou a cupidez desta última.
Desembarcados, cautelosamente, neste ou naquele ponto da costa
brasileira, os navios preados pela Inglaterra, ou trazidos, então, ante
riormente aos acordos e bilis, entre as citadas nações, todos aqueles
negros talvez não fossem considerados senão «contrabando», contraban
do de carne humana, sangrenta e miserável, lançada ao fundo dos
porões infectos, sob açoites, à mercê das tormentas e calmarias do
Atlântico.
Sabe-se, geralmente, que, entre os vários povos de raça negra,
introduzidos no Brasil — nas províncias de Minas, Bahia, Pernam
buco e Maranhão — aparecem os Minas: Minas achantis, Minas nagôs,
Minas cavalos, Minas santés, Minas mahys que Nina Rodrigues quer
que sejam os Jejes mahys. Mas com essa denominação de Mina-Jeje
(ou Ewe ou Eoué, da grafia inglesa e francesa, respectivamente) só
no Maranhão me apareceram eles.
Aquele mestre insigne ainda alcançou em São Luís alguns repre
sentantes puros de Negros minas mas em número que não seduziu
o seu gênio especulativo, pois bem insignificantes são as notícias que
deles nos deixou. Nessas notícias eles são denominados exclusivamente
Minas; Minas jejes era denominação naturalmente desconhecida para
ele, pelo menos do ponto de vista etnográfico.
Isso sempre me causou estranheza, toda vez que, revendo a his
tória da escravidão, no capítulo referente à introdução dos diferentes
povos negros nas províncias do extremo norte do País, procurei co-
24
nlierer os critérios raciais dos Minas jejes nos tipos puros que sábios
o viu,(antes provavelmente encontrariam na paisagem humana que
liulmm à vista.
I»e que cor tinham a pele? Eram de estatura média ou grande?
Que o ui formação craniana apresentavam? Tinham o cabelo carapinhen-
ln <ui ondulado? Tinham o nariz chato ou afilado? E os lábios eram
' iii lindos ou finos? E, nos seus descendentes, como se denunciavam
MMM'H caracteres? Que heranças psicológicas teriam legado aos conti-
iiiindorcs da sua religião, da sua organização social, das suas normas
cinimmicas e políticas? E o que nos restava da língua em que cele-
linivum os seus deuses e as suas tradições do culto jeje?
25
NOME VODUNS
Luísa Zomadone
Joaquina Ananin
Hosana Sépazin
Joana Doçu
Maria Benedita Badé
Maria Jesuína Toçá
Vicência Sépazin
Mãezinha Badé
Guiomar Liçá
Evarista Coicinacaba
Luísa Avérêquête
Maria Quirina Boçucó
Rosa Roêju
Bárbara Abeju
Severa Ajautó
Firmínia Loco
Edwiges Çôbô
Quintina Azacá
Vitória Agôngône
Vitória (filha da anterior) Bórôtoi
Maria Luísa Ananin
Tia Quintina Azacá
Anéris Santos, da Casa Grande, também colaborou nesta relação,
explicando-me que, morta Mãe Luísa, a direção da Casa passou para
Mãe Hosana e desta para Mãe Andresa Maria.
Exercendo o culto ao lado de Andresa Maria, auxiliando-a nas
cerimônias e nos afazeres domésticos, vivem na Casa Grande das Minas
ou a ela sempre comparecem as chamadas Noviches ou Irmãs. As
Noviches de Andresa Maria, já falecidas na sua maior parte, podem
ser relacionadas, pelos nomes próprios e pelos nomes dos seus «Pro
tetores» ou «Voduns», ou «Santos», do seguinte modo:
29
mais se salientam são as de Zomadone — a maior de todas — e a
de Badé.
Essas jarras que contêm Água — divindade natural, é certo, de
outros povos da África, mas com outra representação mítica — foram
trazidas do Continente: algumas vieram de Lagos. No bojo e nos re
bordos das mesmas, em relevo, ou cravados, há desenhos geométricos,
flores e folhas até, de árvores ou de plantas sagradas. A louça dessas
peças é vítrea, admiravelmente cozida, revelando a graça e a solidez
da cerâmica africana. A Água que elas contêm é proveniente das tor
neiras da Casa Grande.
Contou-me Andresa Maria que, antigamente, essas jarras eram
sempre cheias com a água da Fonte do Apicum, no Caminho da Boia
da, na Ilha de São Luís do Maranhão.
As Noviches ou Irmãs, as devotas e os que faziam promessas, car
regando potes e bilhas, iam buscar água a essa Fonte do Apicum, onde,
como se sabe, há poços com esse líquido absolutamente potável. Era
um ato tradicional, de um ritualismo solene e puro.
Nos sábados, de madrugada, silenciosamente, mas pondo um certo
ritmo de dança no andar, iam todas buscar a Água para as jarras.
Esse ato, segundo informações recentes de alguns viajantes, ainda é
observado no Continente Negro, entre algumas das tribos em estado
primitivo e mesmo entre aquelas que mantêm relações com brancos.
Prende-se, em sua essência, nas zonas áridas, a um culto à Chuva —
divindade natural — cuja presença era evidente nas fontes e nos lagos.
Agora, ali em São Luís, «como não se pode ir à Fonte do Apicum
sem chamar atenção e porque o povo acusaria as Noviches de feiti
ceiras», explicou Andresa Maria, «colhemos essa Água das torneiras».
A fonte modernizou-se, como se vê, mas o poder divino da Água —
qualquer que seja a sua procedência, desde que se mantenha pura —
co n tin u a... confirmando aquela «disposição mental ao totemismo», que
Nina Rodrigues defendia, um tanto excessivamente.
Como eu lhe perguntasse (a Andresa Maria) se para purificar-
nos ou limpar-nos dessa ou daquela culpa, crime ou imundície, podía
mos fazer uso da Água das jarras, respondeu-me ela:
— Todos nós podemos beber dessa Água; com ela, porém, não se
pode tomar banho. Pode-se, entretanto, deitá-la nas portas e nos cantos
da casa.
Assim, entre outras práticas, quando um Vodun baixa na Casa
Grande ou mesmo nas habitações dos seus filhos e filhas, é costume
derramar-se bocados de água pelos cantos murmurando fórmulas, como
as que acima citei, de grande caráter mágico e não menos virtude
espiritual. Quando essa Água das jarras vai ser bebida, em cuias, por
este ou aquele devoto, grande é o cuidado de quem a retira para lhes
não tocar nos rebordos. Sob o chão do Comé, nesse triângulo, que
constitui propriamente o pégi ou pódôme, foram ocultadas pelos Negros,
que «assentaram», algumas pedras, representando Voduns.
30
A que se denomina de «Santa Bárbara» é uma delas. Outros obje-
Iom do culto mina-jeje ficam, também, como essas pedras, absoluta-
numto escondidos.
Antigamente, em certas ocasiões, as «feitas», misteriosamente, iam
Imilhar uma dessas pedras, «que representa uma grande Senhora»
(AbêV Santa B árbara?), cujo nome não me revelaram, num lugar
mli ilamente desconhecido, distante e desértico. E nesse lugar, com a
i nlVrida pedra, realizavam outras cerimônias.
As demais pessoas da Casa Grande, que não tomavam parte nessa
■ii Imônia, se trancavam nos quartos e salas, não se atrevendo a falar
m ii espiar, sequer. No Comé, sobre o chão desse triângulo, que cons-
llliií o pégi, são sacrificados animais propiciatórios, nas festas da im-
i"• 1 1ancia da do Natal. Chibarros, cevados durante meses, são ofereci-
•I*iii ;i Badé, a Dadá-Hô-Uussu (pai de todos), e a Zomadone, grandes
\ imIiiiis mina-jejes.
Quando os Voduns querem, ali no pégi, podem também ser mortos
humichos (pombos), catraios (galinha-d’angola ou picota), galos, ga
linhas. A cerimônia do sacrifício desses animais é realizada pelos to-
i inlnres de tambor, músicos, filhos de Voduns.
Antes de abater-se o animal, estende-se no chão do pégi grande
>iiiiinI idade de folhas de cajazeira ou de cajá, uma Anacardiácea de
fl*UtOR acridoces, que é uma árvore sagrada para a gente da Casa
' .iii ui Io das Minas.
Km um alguidar limpo prepara-se o amassi, que é uma água
111 11 .11, onde esfregam folhas de caj á e de estoraque, denominado este
nIIImio, em língua mina, aquici-quici. As folhas de cajá se chamam
AoOncone. E este nome designa o de um Vodun, naturalmente, como
" 'Ir Irocô, nos candomblés da Bahia, designa o do Vodun Loco ou Loko.
l’or ocasião de o animal ser sacrificado já deve te r os chifres, as
(intuM ou os cascos lavados por esse amassi, se quadrúpede, e os pés
" mi bicos, se ave. O sangue é espalhado no pégi, em pequenos montes,
1111n nr ia que revelou Andresa Maria. A carne do animal sacrificado é
31
Andresa Maria e algumas Noviches assistem sempre a esses sa tlllililti do minhas insistências para bem esclarecer este assunto, teve
crifícios. E sempre aquela mesma cantiga, de vozes claras e vozes llinM fni.se que reputo preciosíssima:
graves, se eleva das gargantas dos tocadores e da de Andresa Maria, ■•Ou Santos católicos, sendo apreciados, admirados, queridos pelos
com as suas Noviches. Nesse pégi, em lugar seguro, está guardado VihIiiiim jejes, nós, os da Casa Grande, temos também de apreciá-los,
um livro que algumas «velhas» ou «mães», antigamente, sabiam ler. uiliiilni los e querê-los».
Mortas essas «velhas» a gente da Casa Grande das Minas mandava Qiimito à faculdade de identificar esses Voduns, diz Andresa Maria
buscar na Bahia um preto que sabia ler. Da sua existência tenho *Hn os Voduns sabem se eles são Voduns». Com referência a Santa
notícias que me foram dadas por uma das minhas tias. Pela descrição MAiliuru, dona dos «terreiros», em geral, Andresa Maria e pessoas da
que dele me fez, esse livro deve ser, com o seu texto muçulmi seme 1'nrm Grande não sabem explicar o poder que lhe é atribuído, asseve-
lhante a outros que Nina Rodrigues e vários pesquisadores viram na • miml<« que só os Voduns o podem fazer.
Bahia. Voduns africanos são os senhores desse pégi; as cerimônias,
as práticas, os ritos, as leituras, que ali se realizavam ontem, lhes I’nr que certas festas do culto mina-jeje coincidem com as do culto
eram dirigidas exclusivamente e não à divindade de outros cultos. E Mtólleo ou da tradição de outros povos; por que os filhos e as filhas-de-
o mesmo acontece hoje em dia. também, apreciam, admiram e querem os Santos católicos; por
(|Uli em certas danças, as Noviches, cantando em língua africana, se
Esses Voduns estão, de fato, representados nas figuras daquelas
' "fi i rm, com grandes reverências, à figura de Jesus, fácil, por certo,
jarras, na Água que elas contêm, como nas pedras e outros objetos
Muni ver-se nisso uma prova de sincretismo religioso.
ocultos no chão do pégi, dentro das linhas daquele triângulo. Graças
ao dom de ubiqüidade, que outras divindades também desfrutam, os No entanto a distinção entre os dois cultos mina-jeje e católico
Voduns mina-jejes estão ali no pégi e noutros pégis do Brasil e da •' lirru nítida. Sou dos que acreditam que, não raro, como recurso para
África onde os ocultam. luBpIstar, os oficiantes desse culto — receosos de perseguições e casti-
Sem que ficasse perfeitamente esclarecido este ponto, como muitos iim da parte dos senhores de escravos — mantinham oratórios com
outros, ouvi falar na Casa Grande em linhas de Voduns, registrando nulos católicos e a eles se dirigiam em língua africana engrolada
■ ui latim.
que à primeira linha, ou à de Davicilé, se prendem os amigos do
Santo ou Vodun de Mãe Luísa (uma das «velhas», já falecidas) que No íntimo, porém, da alma — como sob o chão do pégi os objetos
era Zomadone, dentre os quais fixei os de Coicinaçaba, Anagône, Toçá, nll escondidos — apreciavam, admiravam, queriam, verdadeira e sin-
Dadá-hu. ramente, só os Voduns da África, que os seus antepassados haviam
À segunda linha ou de Quéviôçôcilé se prendem o meu santo ou apreciado, admirado e querido.
protetor, que é Badé (Dono do Trovão), Toi Avérêquête (Dono do Quando, entretanto, essa verdade não possa ser apontada noutros
Céu) e Abê (Dona do M ar), irm ã gêmea de Badé. pontos do País, onde as culturas negras deixaram traços marcantes,
A hagiologia mina-jeje tem nos seus quadros numerosos Voduns, mi Ilha de São Luís do Maranhão tudo demonstra — não há quem
caracteristicamente africanos. Nela aparece, porém, um Vodun: Ana- "ii" o reconheça — a sua plenitude e pureza. Os Voduns mina-jejes
gôno Toçá, da hagiologia nagô. •ui" alguns do sexo feminino e outros do sexo masculino: uns são moços
Minhas investigações — facilitadas por pertencer eu àquele culto, " mitros velhos.
desde o dia que minha Mãe, como entre a gente das tribos do Con
tinente, me deu a Badé, meu Protetor e meu Santo — minhas investi Os Voduns velhos (homens) são:
gações, repito, me autorizam a afirm ar que um Santo negro mina-jeje Dadá-hô Agôngone
é, essencialmente, africano, não pertencendo nem podendo ser confun Coicinçaba Tópa
dido com os Santos da hagiologia católica. Mãe Andresa Maria me Zomadone Liçá ou Oliçá (jeje?)
levou, naturalmente, a essa convicção, mas foi assistindo às cerimônias, Bórôtoi Ajónôtoi
às festas e aos ritos realizados na Casa Grande que me capacitei dessa Azacá Ajautói
verdade. Arônôviçavá Badé
Um Vodun mina-jeje, como Badé ou como Çôbô, sua mãe, não é Acóçapatá Loco
S. Jerônimo ou Santa Bárbara, deixando, assim, de verificar-se o sin- Azilé Lépon
cretismo religioso que outros estudiosos da etnologia dos Negros apon Azonçu
tam nesta ou naquela província etnográfica do Brasil. Andresa Maria,
32 33
Os Voduns velhas (mulheres) são:
Çôbô Nananbiocô
Naiadone A fru-F ru
Naêgongon Abê
Naité
34
Mondo Badé «Dono do Trovão», a ele se dirigem os do culto de
nmilii especial. Se o saúdam (ou salvam, como diz Mãe Andresa), o
hi/rm nestes termos: Anam man í lá ú lá!
!•:, quando em perigo de vida, nesta ou naquela contingência, a ele
..... Ilrigom assim:
Da dá mi çu há jê có dá mê mê ton gi a la cá a lu bé a
dô no vi pé on la da no sá da na boi ran ri ra nin ran chi.
I1! também quando «se abre o relâmpago»: Badé a na ma aú ló
lt ló, corno quem diria: Badé: dá-me a tua mão!
A Loco, irmão de Badé, se dirigem nestes termos:
Loco atin rô di di a tin do bê da da lê ro Loco cucui
è Vodun Loco qui é qui é.
37
Bairro de São Pantaleão, descendo para a Fonte do Bispo, até a margem
do Bacanga. As chuvas passam por essa área, portanto, rapidamente,
deixando-a seca, com seixos e areia grossa à superfície.
Essa é a fisionomia exterior do Gume da Casa das Minas, aquela
que todo mundo tem logo diante de si. A outra, a espiritual, a quel
intimamente se relaciona com o culto, com a sua história, com a sua
tradição e a sua liturgia, só a Nochê e as Noviches, filhos e filhas da
Casa Grande, conhecem.
Esse Gume, como o pégi, foi «assentado» também por africanos
mina-jejes, conhecidos então pela alcunha de «contrabando». Naquele
chão foram ocultos objetos trazidos da África, semelhantes aos que se
acham no pégi, no chão do triângulo simbólico.
As festas, denominadas «maiores», que se realizam no terreiro da
Casa Grande das Minas, são as de «obrigação», de «deveres» e corres
pondem à denominada de Santa Bárbara a 4 de dezembro, à de São
Sebastião a 20 de janeiro, à de São João a 24 de junho, à dos Meninos
ou São Cosme e São Damião a 27 de setembro.
Em Dezembro, também, correspondendo às datas de 24 e de 25,
celebram-se ali festas do culto. Em São João e São Pedro soltam-se
foguetes. Festeja-se o Natal com danças e comidas sagradas tipica
mente africanas, que descreverei a seguir.
A Festa de Pagamento é de grande importância na Casa Grande:]
realiza-se um domingo, depois de 1’ do ano. Os Voduns baixam para
pagar os tocadores (de tambor, de cabaça) e a tocadeira do ferro ou
ogã. É uma festa bonita, que depende de muitos recursos. Nela o pa
gamento consiste em fazendas, bebidas, objetos de uso individual.
No Carnaval as Meninas ou Tôbôssis (Tôbôcis?) celebram uma
festa com danças, em redor de uma grande travessa de acarajé. Nessa
festa, que, também, se chama «das Meninas», além de acarajé apa
recem pipocas torradas e as Tôbôssis comem e distribuem frutas.
Só dançam um dia, uma dança, na expressão de Andresa Maria,
«moderada». E, ao dançar, vão distribuindo pipocas e frutas entre os
irmãos e irmãs, filhos e filhas dos Voduns, também disso participando
a assistência. Cantigas especiais são erguidas durante essa festa.
Festa de significação religiosa digna de registro é a realizada com
as Tôbôssis, «que são espíritos» e, baixando à terra, «vivem como as
pessoas», isto é, humanizam-se, explica Andresa Maria.
Sentadas no chão, como acima referi, brincam com bonecas e con
versam entre si numa língua especial, difícil de ser compreendida.
Andresa Maria diz que falam «bem aborrecido e atrapalhado».
Essas meninas mantêm uma alegria constante no decorrer das
danças dessa festa do Carnaval, mas sem que, mesmo humanizadas,
desçam a exageros, a excessos, ridículos e inconveniências que caracte
rizam, lá fora, o Carnaval. . . e certas macumbas do Rio de Janeiro.
O trajo litúrgico, usado nessas festas, varia de feitio e de cor. Ora este
é simples, ora aquele é suntuoso. Na festa de São João todo o trajo
38
dnw Noviches ó branco; na do Natal ó variado; no Carnaval as Tôbôssis
‘i Ikiii saias vistosas, aparecendo o pano da Costa, que envolve o colo
mi u desce até os pés calçados em sandálias finas; na de Santa Bár
bara o Irajo é encarnado.
Ilude, que é festejado no dia de São Pedro, tem predileção pelo
11 m|u íi/.iiI, mas arvora sempre uma faixa para trás. A sua festa exige
liiiiilinr. comidas e bebidas. É uma grande festa.
Am Noviches «limpas», mudando toda a roupa de uso, na ocasião,
itMlm mc trajam : um cabeção de cambraia gaze ou de cambraia apenas,
011 <le opala, ou de linho, todo bordado e com rendas de almofada;
IIIIMi mmia de ramagens ou de pano da Costa (que já é encontrado nas
IIIiin di' São Luís, mas outrora vinham por encomenda, diretamente
de Al rica).
Kmmu peça pode ser de fazenda lisa. Completam esse trajo faixas
VInIonuh encarnadas e azuis. As Noviches suspendem ao pescoço cordões
di* ouro antigo, trancelins, colares, mas os «rosários», recebidos dos
•iMirt Voduns, ou por eles apontados, são os adornos que mais prezam:
IUHM contas, vindas da Bahia e do Rio, e os búzios, também, dão a
*HiMo adorno um efeito primitivo.
I’rondem às orelhas estranhos brincos, alguns também de ouro
Mlltltfo, admiráveis e bizarros trabalhos de ourivesaria colonial. Algu
mas Irmãs suspendem um lencinho à cintura ou o põem num dos
timbrou ou o equilibram no alto da cabeça. Aparecem ventarolas e
Imi|iicm grandes, de pena, de celulóide e de papel. E bengalas — cujo
VMlor social nas tribos africanas é bem conhecido — servem para
apoio do corpo, tão suntuosamente trajado, desta ou daquela Noviche,
.... . mm walking-sticks vistas por Stanley.
HoIhus aparecem às mãos das Irmãs e nenhum outro atributo dos
\ "diiii.t. Com os lencinhos desdobrados nas danças, as Irmãs fazem
movimentos graciosos e rítmicos, ora à direita, ora à esquerda, flexio-
imndo os joelhos e derreando o corpo para trás. É uma peça comple-
montur do trajo, mas de valor simbólico especial nas danças.
As bengalas, além de apoio que prestam, têm, como os lencinhos,
o i danças, o seu valor simbólico: o de soberania, de majestade, de
punição social, de atributo divino. Há Voduns que as não deixam, m ar
eando o compasso da dança sobre o chão por onde se movem. Nas
loalas de «obrigação», de «deveres» como nas «das Meninas», as danças
mo características e os Voduns, através desses adornos e objetos, de-
.... .. mm as suas preferências, as suas simpatias.
Em todas as danças, de intenso movimento, também se revelam
■ iiim preferências e simpatias. Há Voduns que dançam, pesadamente,
do cabeça curva, sacudindo mais os braços, agitando os ombros. Há
oiilms que dançam, leves e rápidos, à cadência dos runs, dos gôs e do
ogit, quase imaterialmente. As palmas acompanham certos ritmos de
danças, mas as mãos que se batem, também, espalmadas, à extremi-
39
tjuiiiiilo morre alguém da Casa das Minas, toca-se tambor, bem
dade dos braços que se agitam, parecem acariciar o chão do Gume ou I HititM n forro e as cabaças. Não dançam em frente e em roda do
revolvê-lo. ..............mo faz a «gente de Nagô».
Há danças coletivas, cujos passos ainda denunciam a riqueza coreo- II ii Voduns que, baixando, nessas festas, se anunciam por gritos,
gráfica das bailarinas africanas. Há danças isoladas, não menos ricas MUtllIliron u cada um, mas a regra é cantarem eles os seus pontos pre-
em ritmo e em graça. As figuras ora giram sobre si mesmas, ora mliliMi Santos velhos, como Zomadone, Davice, Coicinaçaba, cantam,
descrevem meios círculos, ora se defrontam, ora se buscam e ora so •Ml "templo:
esquivam. É o domínio absoluto, é o domínio total do ritmo. À ca Cá cá gi bê, cá cá gi bê!
dência dos tambores, vibrados pela noite adentro, os vultos dos Voduns Apá hó tó ô Vodun maió donu mé.
Noviches e Tôbôssis não param, como não param as suas vozes nos Cá cá gi bê, cá cá gi bê!
cânticos sagrados.
E o grupo, de quando em quando, é acrescido de mais uma figura) Nim lestas maiores, com danças de roda, eleva-se uma cantiga —
feminina. Sente-se que aquela dança, nas suas contorsões, nos seus lambem se canta quando Póli-Boji «baixa» — cuja letra é a
lie
passos, nos seus gestos, é uma preparação para algo de sobrenatural.
Ai xô ai póng
Os torsos que se agitam, dominados por esta ou aquela cabeça di Agôngon Mina coquê
mulher, os braços que se movem, as mãos que acenam, as pernas qu Ai xô, ai póng
flexionam estão, porém, impelindo, paradoxalmente, aqueles corpos pari Agôngon cô cô rô á !
uma atitude suprema: a do transe.
A música, de ritmos sombrios e tristes, a dança, de passos ca- mm relações, cordialmente mantidas, entre a Casa das Minas e a
denciados e estranhos, daí a instantes levarão esses corpos a receber do Nagô, é de praxe uma visita, constituindo isso festa digna
os Voduns que «baixam», os Santos que se «manifestam», substituindo ore Meia. Os de Nagô, nessa visita, cantam por vezes:
a personalidade das bailarinas, para, por fim, dominarem toda a festaj
com os seus cantos e os seus movimentos. As frases dos cânticos são Ah! eu sou fina, fina
Ah! eu sou fina de ôtá! Bis
substituídas, também, ou continuam, já agora, cantadas por persona
É de tan Mina Agôngone
gens de um mundo sublunar. E Boçu croa no Mar! Bis
Os instrumentos do culto, que aparecem nessas festas, são os tam E Boçu croa em terra,
bores, denominados runs, e as cabaças, denominadas gôs, e o ferri E Boçu croa no mar, Bis
denominado ogã. Esses tambores têm nomes de Voduns, como expli É de tan Mina Agôngone
quei, páginas atrás. Antes da festa eles são limpos, postos ao sol É de Doçu pô vê çá! Bis
passando-se azeite de dendê no couro. Na Casa de Nagô, ali perto d (Ver Caderno Iconográfico n" 5)
Casa das Minas, os tambores ficam deitados sobre cavaletes.
Nesta, porém, eles ficam sempre de pé e são saudados nas danças, mais abatidos no pégi entram na alimentação dos Voduns e
pelas Noviches e pelos próprios Voduns. Eles são tocados com umas u i fiéis. A cozinha africana tem na Casa das Minas quem a
vaquetas: os aquidavi. O ogã é um instrumento de metal, semelhante nlm ein toda a sua pureza, pois ela está ligada ao culto mina-jeje.
a outros que no culto jeje-nagô se denomina agogô. Os tocadores são i verdade que há Santos ou Voduns ou Protetores que nada comem,
denominados em jeje «runtó». O ogã deve sempre ser conservado de pé, mm bebem. Póli-Boji é um desses Voduns; mas não se compreende
mesmo para ser fotografado. E é vibrado por uma mulher. As cabaças uma feslu «grande», de «obrigação», de «pagamento» sem quitutes e
ou gô são envolvidas em redes de fios de seda coloridos. 1 'mi i . postas diante dos Santos, primeiro, e, depois, distribuídas pelos
A essas festas dão realce, quase sempre, orquestras populares de 1 i . i.i
São Luís com contrabaixo, violino, cavaquinho, mas só executam mú hmso enumerar as comidas seguintes:
sicas profanas. _ . , _
Observei na Casa Grande que nem sempre os tambores são tocado» x.... . .í,!!!!,'!!*k<1 C°m eiJa0_branc°, de olho preto, com dendê.
e nem há quem os vibre por brincadeira. Também, cantigas de Vodun» nddo de alinha111 Camaroes’ soca^os com farinha feito angu, no
não podem ser cantadas a qualquer hora ou fora dessas danças litúr* . _ , c' . .
gicas e das cerimônias do culto. Há cantigas que não «devem» ser * . ' a a a f 0™ arin ,a seca> bem fina, envolvida com dendê,
cantadas nas cozinhas, em «certos, lugares. ' "V" Um pou1umho « ••
41
40
Acarajé: preparada com feijão branco, de olho preto, quebrado, do
qual se tiram a pele e o olho. Deixa-se ficar o feijão assim pre
parado para o dia seguinte, quando é ralado em pedra especial,
posto em alguidar com quiabo ralado, pimenta malagueta, pimenta-
do-reino, gengibre. Bate-se tudo, bem batido, depois tira-se com
a colher e bota-se na frigideira para fritar. É o alimento mais
difícil de preparar.
Chossun: preparada com carne de chibarro, morto naquela cerimônia
já descrita, no pégi, só podendo o animal ser visto pelo runtó e
as Noviches ou Irmãs limpas. Os pedaços de carne de chibarro,
depois de se lhes tira r a pele, são postos numa folhinha com
farinha de camarão, ajuntando-se-lhes azeite de dendê e água;
depois deixa-se tudo isso ferver bem.
Caruru: preparada para ser servida com bolo de fubá de arroz. Nele
entram quiabo, camarão, farinha.
Dovró: preparada com feijão branco que é cozido e, depois de se lhe
tira r as peles, é posto numa folhinha de guaramã. Passa-se azeite
de dendê e embrulha-se o feijão assim preparado. Colocado sobre
umas talinhas, esse embrulho de feijão é cozido no «suor da panela».
Nonufon: preparada com quiabos, que são, depois de lavados, cortados
em pedaços miúdos. Deixa-se cozinhar um pouco para que conserve
o tom verde, depois de juntar-se-lhes azeite de dendê e louro. Assim
que tudo esteja bem cozido, bota-se, às colheres, sobre o bolo de
fubá-de-arroz.
48
confundem e inquietam, pelo que deparamos de normal nas suas
manifestações.
E isso encontra confirmação na assertiva de que, nas festas de
Carnaval, as Meninas ou Tôbôssis, que baixam, se humanizam, reali
zando atos absolutamente lógicos, perfeitamente coerentes com a exis
tência quotidiana.
É exato que esses Voduns baixam sobre Irmãs ou Filhas de pre
cária constituição psíquico-biológica, algumas vezes, sobre histéricas
etc., etc.; entretanto, outras vezes o fazem sobre criaturas normais, de
hábitos até aparentemente em desacordo com o ambiente do Gume ou
com o clima de sexualidade que danças e cantos determinam, em nosso
País, quer numa sociedade negra, quer num clube de grã-finos cariocas.
Fatos que pude observar, em diversas e numerosas circunstâncias,
me levaram a aceitar sem discussão, por exemplo, uma afirm ativa de
Levy Valensi, citado pelo Prof. A rthur Ramos, em sua Introdução à
Psicologia Social:
«O médium, abstração feita no seu terreno neuropático, não é
um doente senão no momento do transe, no momento em que ele quer
se desagregar».
Pertencendo minha mãe, como inúmeras senhoras de São Luís de
todas as classes sociais, à Casa das Minas, tive o ensejo de observá-la,
muitas vezes, em estado de transe. Minha Mãe havia sido feita, segun
do expressão do culto jeje, sendo Póli-Boji o seu «Protetor», o seu
«Santo», o seu «Senhor», o seu Vodun.
Póli-Boji — amigo de Badé e de Toi Boçucô, em cuja família apa
recem Bagona, Alôgne, Abôju, Roêju — é uma divindade africana cujos
hábitos não raro se exteriorizam com as características de certas forças
naturais, como as tempestades, etc., etc. Ora, quando Póli-Boji «bai
xava» — não obstante, também, o temperamento místico de minha
mãe — poucas alterações fesionômicas, raros gestos, raras palavras
imperceptíveis ou de sentido estranho lhe denunciavam a presença na
quela criatura.
Eu sabia, entretanto, que minha mãe estava sob a ação de um
fenômeno psíquico a que a levara não sei que emoção de origem des
conhecida e inexplicável, até então, para mim. Nessas ocasiões pude
observar, igualmente, que se alargava naquela criatura a área de co
nhecimento, que a sua expressão ganhava requinte e profundeza, no
desenvolver este ou aquele tema, até de simples interesse doméstico.
Normalmente, com a sensibilidade que estou referindo, minha mãe
podia manifestar-se em assuntos de religião, de arte, mas nunca tivera
aptidões para se revelar em assuntos de política e de administração
pública.
Na «possessão» daquela divindade tais temas lhe eram absoluta
mente familiares e de fácil desenvolvimento, o que me inquietava e
deixava perplexo, pois eu bem sabia que minha mãe era incapaz de
41
mistificar ou de querer exibir conhecimentos e experiências que não
possuía.
Os Voduns baixam, por ocasião das danças ou noutra qualquer,
isoladamente ou acompanhados. Não raramente são precedidos, como
já acima referi, por um «guia», ou «toquen», ou «menino», sendo que
a sua presença, às vezes, é denunciada por um simples toque de tambor,
ou pelo início de uma frase (verso?) do «ponto» que lhe é peculiar,
o «seu ponto».
Quando os Voduns baixam, isoladamente, fora do ambiente da
Casa Grande das Minas, há práticas e cerimônias especiais para o
receber. Vestem-lhe um cabeção de renda e cambraia, saia de rama
gem, envolvendo-se-lhe o busto com uma toalha branca de linho e
rendas.
Estendem-lhe uma esteira, onde se deita de bruço, ficando mer
gulhado num profundo sono; e, assim que desperta, oferecem-lhe um
cachimbo ou presente, etc. Também queimam em redor dele, em foga-
reirinhos de barro, essências propiciatórias. As pessoas que dele se
aproximam ajoelham-se, curvam a cabeça, beijam-lhe as mãos.
O Vodun põe-lhe dois dedos (o médio e o indicador) na base do
crânio, num gesto de sujeição, e, ao erguer-se o filho ou filha, que o
cumprimenta, é por ele abraçado, primeiro apertando-o sobre o peito
direito e depois sobre o esquerdo.
Então os Voduns, que ali se avistam com os seus fiéis, confiantes
e esperançosos, com eles conversam, mas às vezes alguns são casti
gados, caracterizando-se esses castigos por simples bolos ou por quedas
violentas, batendo-se a si mesmo o culpado, que se esbofeteia e arre
messa contra as paredes, os móveis, as pessoas e o chão.
Quando os Voduns baixam reconciliam-se os desafetos e trazem-
lhes dádivas e demonstram-lhes as suas «obrigações» quantos a eles
recorreram ou deles dependem. Alguns Voduns falam claramente, para
que todos os escutem; outros só fazem mímicas; outros se expressam
através dos guias; outros recorrem à Nochê ou às Noviches, por inter
médio destas transmitindo o que desejam, respondendo aos que os
interpelam.
Quando os Voduns baixam, às vezes o fazem sobre pessoa distante
do grupo de Noviches reunidas, indo escolhê-la entre a assistência, o
que revela, para a Casa Grande mesmo, as relações dessa pessoa, a
sua posição diante deles. Nunca vi nenhum Vodun apossar-se de
homens ou de crianças, como já assisti em certas macumbas do Rio
em casa da Chica Baiana, no Encantado.
Quando os Voduns baixam, o fazem independentemente da vontade
das Noviches ou da Nochê, que nunca se prestariam a reclamar-lhes n
presença, para satisfazer a vontade ou o capricho de um ou de umn
interessada. Se os Voduns, em geral, baixam ao toque dos tambores
e de outros instrumentos sagrados, também o fazem a despeito deles
45
e mesmo de «pontos». Ao retirar-se, entretanto, já nas festas, já
noutras ocasiões, é de praxe despedirem-se cantando. Assim como há
«pontos» que denunciam a chegada dos Voduns, também há «pontos»
que lhes anunciam a retirada, o fim da «possessão», do transe, em
que tiveram sob o seu poder a sua filha.
Os Voduns masculinos, quando baixam, além de peculiar afeição
por esta ou aquela Noviche, nunca exteriorizam sentimentos que possam
ser confundidos com as manifestações passionais dos homens. E os
Voduns femininos, quando baixam, guardam nos gestos e nas expressões
a decência, a simplicidade, a delicadeza de uma verdadeira mãe ou de
uma afetuosa amiga.
Raro é o Vodun que faz gestos ou pronuncia palavras inconve
nientes. As divindades naturais da África, trazidas para o Maranhão,
não perderam, mesmo diante das misérias a que submetiam o seu povo,
as suas virtudes características: são sóbrias, polidas, convenientes. Mas,
quando castigam, lembram certas forças naturais que individualizam:
são violentas, implacáveis, tremendas.
46
C apítulo V
A MORAL DO CULTO
47
a crueldade típica dos senhores e senhoras de escravos que se cele
brizaram no Maranhão.
A maioria dos escravos que a freqüentava era composta de forros,
tendo os mesmos direitos e as mesmas obrigações diante da «Lei de
Jeje». Já na República, autoridades prepotentes pretenderam, diversas
vezes, combater as reuniões das Minas, proibir as suas festas, apurar
acusações falsas que contra ela levantavam certos inimigos. Essas auto
ridades chegaram mesmo a promover sérios conflitos, mas tiveram de
ceder em face da reação produzida não só entre o povo como entre os
que o dirigiam.
Numa das fases mais agudas da sua existência o jornal A Tarde,
de São Luís, se bateu em favor da Casa das Minas, defendendo o
direito à reunião daquela gente, de costumes tão pitorescos e senti
mentos religiosos tão puros, defendendo, enfim, um aspecto da tradição
maranhense.
48
C apítulo V I
A spectos com plem entares
A Casa Grande das Minas está localizada num bairro onde a po
pulação dominante é de operários, domésticos e pescadores, notando-se-
lhes a presença em todas as festas ali realizadas e nas ocasiões em
que sobre ela pesaram ameaças policiais. A igreja do bairro, do orago
São Pantaleão, é para as práticas do culto católico; a Casa das Minas
é para as da religião mina-jeje.
Referi-me, neste trabalho, à presença de Negros da nação mina
na Amazônia. Para as selvas e campos dessa região vieram da África,
diretamente, ou do Maranhão e de outros pontos do Brasil, Negros
de diferentes nações.
Num outro trabalho, a respeito do elemento negro na Ilha do Ma
rajó, Estado do Pará, cito as seguintes: Angola, Benguela, Mandinga,
Mina, Mahua, Caçange, Congo, Bijogó, Carabá, Lalor, Cambinda, Pa-
bana, Moçambique, Malhi ou Mahis, Guiné.
Esses Negros trabalharam ali às ordens dos mercedários e de
outras comunidades religiosas, bem assim, posteriormente, às dos «con
templados» que, na subdivisão da riqueza agropastoril da Ilha, subs
tituíram aqueles, de onde procede a pretensa aristocracia m arajoara
que o romancista Dalcídio Jurandyr retratou admiravelmente.
Negros fugidos dessa Ilha, como de outros centros de lavoura de
açúcar e de pastoreio, chegaram a formar, noutros pontos do Pará e
do Amazonas, importantes quilombos ou mocambos que, ainda no século
passado, eram apontados por viajantes como o casal Coudreau, no Trom-
betas e no Tapajós, e ainda atualmente têm descendentes no Rio Andi-
rá, senão vestígios materiais de sua passagem no alto Rio Urubu,
onde estive em outubro deste ano (1942).
Examinando as «descrições dos escravos» feitas nos inventários
existentes no Cartório de Cachoeira da Ilha de Marajó, encontrei entre
outras, na de 1854, de Vasco dos Santos Figueiredo, a seguinte: «Um
preto de nome José de Nação Mina, idade 60 anos, vendido a José
da Silva por 120$000».
Encontrei também referências a Malhis ou Mahis. Tratar-se-ia,
simplesmente, de Negros minas, de Negros mina-mahis ou mina-malhis?
Algumas «velhas» da Casa das Minas morreram em idade avan
çada. Lá moraram, também, inúmeras criaturas, mulheres principal
mente, que levaram longa existência. Eram negras puras algumas,
outras mulatas e caboclas, ali exercendo atividades domésticas.
49
A figura de negra mais interessante da Casa, depois da de Andresa
Maria, neste momento, é a Mãe Preta (ver Caderno Iconográfico n. 11) ;
já tem mais de setenta janeiros e ainda se move com certo desemba
raço, embora tenha perdido uma das vistas. Anda sempre apoiada a
uma bengala e pode ser vista à entrada principal da Casa, às pri
meiras e às últimas horas do dia, muito bem posta na sua roupa
lavada. Foi cozinheira de mão cheia, se não me engano, dos Costa
Rodrigues e de Tayer Frazão. É, porém, sadia, traindo no físico um
vigor extraordinário. A cabeça, já bastante encanecida, se lhe mostra
entre ombros fortes, ligeiramente abaulados. Moça, ela deveria ter sido
tão vigorosa como Andresa Maria. Ainda se conserva relativamente
lúcida.
A gente da Casa das Minas — cujas relações sociais e religiosas
com a da Casa de Nagô, existente no mesmo bairro de S. Pantaleão,
são cordialíssimas — não freqüenta outros terreiros de São Luís e, se
se ausenta do Maranhão, evita sempre aqueles que não se prendam
ao da Casa Grande de Mãe Andresa. Freqüenta, entretanto, sessões
espíritas.
A rivalidade entre os da Casa das Minas e as de outros terreiros
de São Luís é, entretanto, exclusivamente alimentada pelo interesse e
pela inveja das «mães» destes últimos. A gente da Casa das Minas,
pacífica e disciplinada, retraindo-se, evita, assim, choques e intrigas.
Na hagiologia mina-jeje vimos que aparecem alguns «Santos» do
culto nagô. Lôcô ou Loko, Toi Avérêquête, Nanabiocô, entre os Voduns
que baixam na Casa das Minas ou se incorporam nas suas Noviches,
também têm as mesmas relações com as forças naturais que são apon
tadas na África, por exemplo, (Frobenius), e no Brasil (Nina Ro
drigues e A rthur Ramos).
Observa-se, além do exposto — e isso é igualmente curioso —, que
Voduns como Doçu e Apégê tenham ligado ao seu nome as palavras
pé e vô, para os distinguir de outros Voduns, como entre os Guerzés
se distinguem os nomes das crianças. Tais palavras, pé e vô, são, na
turalmente, sobrenomes relacionados com a família ou com o clã a
que Doçu ou Apégê pertenciam.
Os irmãos e irmãs, filhos e filhas da Casa das Minas, saindo do
Maranhão, não abandonam as suas práticas nem se entibiam nas suas
crenças. E, freqüentemente, estão mandando contribuições, em dinheiro
ou gêneros, necessários à vitalidade do culto, à animação das festas.
As ligações desses fiéis com a Casa Grande podem estender-se
através da mais demorada ausência com a mesma intensidade. E,
quando se radicam à te rra estranha, fundam núcleos mina-jejes para
congregarem os conterrâneos e os crentes nas leis dos Voduns. Esses
núcleos, porém, aos poucos vão perdendo as características religiosas e
os aspectos sociais que são assinalados na Casa Grande.
60
Alguns desses núcleos foram fundados na Amazônia; no Pará,
principalmente. Assisti a uma festa em Casa de Mãe Lu, em Belém,
lá registrando sobrevivências importantíssimas do culto.
Chocou-me, contudo, entre «as filhas-de-santo», a presença de um
bailarino negro que as conduzia ao longo das danças e tirava «pontos»,
parecendo-me isso uma inovação ou sobrevivência de outro culto
africano.
Também no Rio de Janeiro, em casa de Chica Baiana, vi um
Nijinski negro bailando com tal expressão e tal simbolismo, que hei de,
sempre, lhe recordar a figura, principalmente porque, numa das suas
danças, com um punhado de cinza à palma das mãos, a ia soprando
às portas e às janelas, para «fechar os caminhos» contra inimigos, a
polícia, sobretudo. . .
Esse Negro de Belém era um extraordinário bailarino, chegando
a dar-me a impressão daquela «realização de uma alma na descarga
de uma faísca», tão admiravelmente fixada por Claudel. Era, igual
mente, extraordinário no tira r os «pontos» sendo um dos tipos mais
populares dos festejos sanjuaninos do «boi-bumbá». Mas a inovação
foi chocante, porque nunca vi nenhum homem dançar em Casa de
Andresa Maria.
A propósito da extensão do culto mina-jeje por vários centros do
Amazonas, tem a palavra o jovem acadêmico de direito Geraldo Pi
nheiro, de acordo com a comunicação ao fim deste trabalho, e as fo
tografias que me foram oferecidas por J. Mendes, do Maranhão como eu.
Para que se mantenha a unidade sócio-religiosa da Casa das Minas,
todos os seus filhos e filhas têm «obrigações». Contribuem indistin-
tamente de acordo com as suas posses, para a vida material e para a
vida espiritual do grupo. As festas, as solenidades, as cerimônias de
pendem de auxílios, de contribuições, de dádivas. A generosidade do
povo se incumbe do resto.
Na Casa Grande é considerável o número de peças de folclore
musical que ainda não foram recolhidas, entre nós, pelos estudiosos
da música negra. Além dos diversos toques de runs, gôs e ogã, há a
considerar-se o número, a variedade, a beleza dos pontos, que os Voduns
cantam ou os que são cantados, em coro, pela Nochê e pelas Noviches.
Um pesquisador português — de mérito indiscutível, já se vê —,
Edmundo Corrêa Lopes, indo a São Luís, depois de longa visita à
África, à Casa da Mina, a Ajudá, especialmente, freqüentou a Casa
das Minas e de lá levou para Portugal um material precioso, que,
parece, continua inédito. Andresa Maria, porém, não lhe confiou tudo
o que sabia nem o deixou entrar no pégi.
Recolhi vários trechos desses pontos, dos cantos e cantigas, mas
só num trabalho especial registrei as letras completas e as músicas,
todas de saborosa originalidade, tais as que aqui ofereço aos estudio
sos do Negro.
A Casa das Minas tem um corpo de músicos ou, melhor, de toca
dores de runs e de gôs, para as suas solenidades, ligados ao culto e
às práticas tributadas aos Voduns. Só uma figura feminina, entretanto,
aparece entre eles: a da tocadora de ogã ou ferro.
Na festa de pagamento esses tocadores de runs e de gôs e a toca
dora de ogã são muito aplaudidos e obsequiados não só pela gente da
Casa das Minas como pelos Voduns.
Outros músicos, fazendo parte dos conjuntos mais populares de
São Luís, emprestam concurso às solenidades ali realizadas, mas as
suas composições — entre as quais podem ser apontadas as valsas, os
foxes, as rumbas, os sambas — são executadas nos intervalos das
danças e dos cantos mina-jejes em que predominam as vozes dos ins
trumentos negros.
As pedras, que no pégi da Casa Grande de São Luís represen
tam divindades naturais da teogonia africana, são meteoritos colhidos
nos leitos dos rios e das fontes da terra maranhense, mas outras vieram
do Continente Negro. São absolutamente nítidas as suas relações com
divindades aquáticas e com divindades celestes, donas e donos do raio,
do trovão e dos mares.
Como são objetos que lhes pertencem (a eles Voduns) guardam
em sua estrutura a força, o poder mágico, sobrenatural das próprias
divindades. Não são, porém, adoradas como deuses ou deusas. Cerca
das de piedoso cuidado, aparecendo em cerimônias especiais, elas, con
tudo, não são fetiches centralizando a fé e o zelo de adoradores.
Encontrei entre índios do Vale Amazônico as relações de certas
divindades terrestres, aquáticas e celestes como pedras, meteoritos ou
simples seixos rolados, lajes das cachoeiras e blocos dispersos à flor
da terra, dentro da selva ou em pleno campo.
Os índios Maué do Areaú, no Rio Andirá, Amazonas, não admitem
que estranhos se aproximem das pedras ali encontradas: elas estão
ligadas à vida social e religiosa desses índios, conforme as lendas que
recolhi, mas não são adoradas nem cultuadas como divindades.
Escrevi que, após a cerimônia da imolação de um chibarro pro-
piciatório no pégi da Casa das Minas, a sua pele era dada para ser
posta na Caixa do Espírito Santo ou, simplesmente, Divino. Cabe aqui
um esclarecimento.
Em todo o País o elemento afro-brasileiro sempre esteve ligado
às irmandades católicas: de S. Benedito, de N. S. da Conceição, do
Divino Espírito Santo, de N. S. do Rosário, de S. Lázaro. Fazendo
parte dessas irmandades não fugiam nem fogem, decerto, os da Casa
de Andresa Maria, a essa tradição.
Acredito que os sentimentos religiosos dos Negros os levassem a
isso, concorrendo eles para os sucessos das suas festas e para as rea
lizações de obras de vulto — igrejas, conventos, seminários — como
aconteceu em Minas Gerais, com o concurso do gênio do Aleijadinho,
e na Bahia, Maranhão e Pará, com o de outros gênios, infelizmente
obscuros.
Por ocasião da festa católica do Divino, na Casa das Minas, tam
bém a comemoram, concorrendo os fiéis do culto mina-jeje tanto para
aquela como para esta. Não quero ver, entretanto, nessa tradição,
apenas o domínio daqueles sentimentos religiosos sobre os instintos
e concepções sociais e políticas do Negro.
A esse é que atribuo a força que os congrega em associações, em
irmandades católicas, de extraordinária influência social e política, não
raro, no meio em que vivem. Não podendo impor aos brancos os deuses
da sua mítica e criar, em roda do seu Quêrêbétan, o prestígio social
e político que deveria aqui desfrutar, como necessariamente o des
frutaria no Continente, os Negros entravam para as associações e
irmandades católicas; em pouco tempo, iam absorvendo a direção, o
mando e as vantagens que disso resultam.
Essa oferenda da pele do chibarro e outras mais estão ligadas a
uma tradição secular, menos de caráter religioso do que social e político.
Apreciando-se, em conjunto ou isoladamente, as figuras da teo-
gonia africana aqui enumeradas páginas atrás, verifica-se que os
Minas jejes do Quêrêbétan de São Luís do Maranhão não as assimi
lam aos santos do catolicismo de modo a podermos falar, rigorosa
mente, em sincretismo religioso e simbiose espiritual.
Não me parece, por isso, que o culto mina-jeje, na Ilha em apreço,
se acomode ao quadro desse fenômeno levantado, entre nós, pelo Prof.
A rthur Ramos, mas já, inegavelmente, esboçado por Nina Rodrigues.
Outro tanto já se não pode afirm ar em relação às divindades de
tribos africanas, tais a Nagô e a Tapa, pois aparecem como Voduns
entre as do culto mina-jeje. Pessoas familiarizadas com o culto jeje-
nagô logo identificarão alguns dos seus mais importantes Orixás entre
os Voduns mina-jejes da Ilha de São Luís.
Badé, por exemplo, entre as divindades maiores e menores do cultc
mina-jeje, é um desses Orixás: Badé é Xangô. Ao lado dele aparecem
Lôcô ou Loko ou Irôco e também Dadá-Hô ou Dadá-Hu ou Dadá-ruçii
ou Dadá-ussu (Pai de Todos). Nenhuma divindade cabocla se reuniu
mercê do aludido fenômeno, àquelas que achei na Casa Grande da.1'
Minas.
Quanto à influência muçulmi só a presença daquele livro no pégi
do qual me deram notícias, a denuncia, à parte a técnica para imola-
ção de animais propiciatórios.
E quanto ao espiritismo — embora não proibindo aos seus filhos
e filhas que o freqüentem — sabe-se que as suas Noviches não ncTo
ditam que os seus Voduns sejam «espíritos». Quando Andresa Marh
se refere aos «espíritos» das Tôbôssis ou Meninas é claro que não oí
considera como os discípulos de Kardec ou de Léon Denis ou d<
Morselli consideram os seus «irmãozinhos». Esses espíritos são comi
51
os da mitologia grega ou da romana, da escandinava ou da germânica,
da tupi ou da jê.
Não se pode falar, portanto, em identificações de «Santos» ou «Pro
tetores» ou «Senhoras» ou de Voduns mina-jejes com santos católicos,
com espíritos ou com «caboclos» e «bichos do fundo».
E isso é tanto de estranhar quando nos lembramos que Negros
e índios, no Maranhão, sempre se reuniram em quilombos ou em insur
reições tremendas como a de S. Tomé, em S. José do Maranhão, em
1772, interpenetrando-se, desse modo, ambas as culturas, quer do ponto
de vista material, quer do ponto de vista religioso.
Para a gente da Casa das Minas as suas divindades pertencem
exclusiva e essencialmente à teogonia africana, podendo vir da con
cepção religiosa deste ou daquele povo do Continente, mas nunca do
seio da religião católica, do mundo dos pajés amazônicos ou dos «cír
culos» e «tendas» dos médiuns espíritas.
Não sei, porém, se o Prof. A rthur Ramos não teria elementos
para encontrar, examinando as sobrevivências do culto mina-jeje em
São Luís, a fórmula mina-jeje-nagô-muçulmi que se me apresentou
ao fim das minhas investigações.
Viu-se como as Noviches e os Voduns se adornam. Trajos e enfei
tes dão às figuras que se movem nas festas da Casa Grande das
Minas um pitoresco de linhas, de cores e de movimentos caracteristi-
camente africanos. As figuras que ilustram este depoimento oferecem
apreciáveis minúcias. Chamam a atenção os colares, as voltas, os tran-
celins, os brincos, as pulseiras, os anéis, os broches.
Alguns desses adornos são criações de artistas coloniais, brasileiros
e portugueses, havendo sido confeccionados com metais da região, e
outros são provenientes até do Continente Africano, representando
documentos da capacidade artística do Negro. Na sua maioria eles se
relacionam com a importância social dos indivíduos que compõem o
grupo, mas, para a gente da Casa das Minas, os mais importantes
são os que se relacionam com a sua religião: os rosários.
Os outros adornos podem ser substituídos, trocados, dados ou ven
didos; os rosários, porém, pertencem ao indivíduo e este o venera e
ciosamente o conserva.
Esses rosários são hoje «preparados» por Andresa Maria, na Casa
Grande, não sendo artigo de comércio. São confeccionados com contas
da Bahia, do Rio e, também, do «lado de lá», chamando-se em língua
africana rongêve e envilacan, havendo umas que se denominam «Cabo
Verde». Nessas contas as cores preferidas são o encarnado, o azul, o
verde, o amarelo, o branco. Os rosários têm tantas pernas quanto for
o desejo do fiel.
E, na sua composição, entram búzios que em mina-jeje se chamam
aquê ou acoê, significando «dinheiro», e os célebres cauris, outras con
chas que ali, também, tinham o valor de moedas e ainda hoje entram
54
nos adornos, nos penteados e tangas dos homens e das mulheres
indígenas.
Tais adornos se relacionam com os Voduns deste ou daquele irmão
ou irmã, filho ou filha da Casa Grande. As cores de suas contas são
as que os Voduns preferem. Num rosário, que minha Mãe mandou
«preparar» para meu uso, predominavam as cores apreciadas por Badé
— meu «Protetor», meu «Santo» —, principalmente o azul. A esses
rosários, que na sua forma primitiva só tinham contas e búzios, juntam,
presentemente, medalhinhas de santos católicos, figas, contas de âmbar,
pedaços de coral.
Nos dias de festa esses rosários são exibidos pelas Noviches, mas,
noutros dias, as guardam no colo, ocultos à curiosidade.
«Não os usam, explicou-me Andresa Maria, porque raparigas
(prostitutas) levianas e moças vaidosas, para se dizerem da Casa das
Minas, arvoram colares, quase semelhantes, das Casas de Quarto e
Novecentos».
Esses rosários da «Casa das Minas» têm virtudes extraordinárias,
ficando o seu dono ou dona ao abrigo de malefícios e de todas as
calamidades.
Disse, ainda há pouco, que, entre os objetos utilizados como adornos
pela gente da Casa das Minas, aparece o cauri — um molusco gaste-
rópodo, da família dos Ciprinídeos, que os conquiologistas classificam
de Ciprea moneta L., apontando-lhe mais de cento e vinte espécies e
oitenta fósseis, com larga distribuição pelo Continente Africano, ocea
nos Índico e Pacífico e, principalmente, pelas Ilhas Maldivas.
Na África e na índia Oriental a concha desse molusco teve o
emprego de moeda divisionária, considerando-se como ricos, segundo
Enrique Rioja, aqueles que logravam reunir trin ta milhões de cauris.
À história do tráfico de escravos, na Costa Oriental da África, estavam,
igualmente, presos os cauris, segundo o mesmo autor. E não era menor
o valor deles como adornos de penteados, de pulseiras, de cintos e de
tangas.
Serpa Pinto viu, na sua viagem à África, ao pescoço dos Negros,
colares de conchas denominadas «viongua», e, sobre penteados capri
chosos, os célebres cauris. E os tenentes H. Capello e R. Ivens dizem
de Loanda que tinha uma ilha importante pela colheita de cauris ou
zimbo ou búzio, lá vivendo, ao tempo da grandeza do Congo, um lugar-
tenente do rei, incumbido de apanhar esses moluscos. Na Casa das
Minas vamos encontrar Noviches feitas que usam, por isso, pulseiras
de cauris, exibindo-os, os fiéis do culto, igualmente suspensos aos cé
lebres rosários.
Outra concha é conhecida pelo nome de aquê ou acoê entre a gente
da Casa de Andresa Maria, dizendo-me ela que a palavra é mina-jeje.
Lá são correntes as expressões: acoê matin = não tem dinheiro;
acoê-tin = tem dinheiro. Essa concha seria o mesmo cauri do Congo,
55
com valor de moeda divisionária, simplesmente, ou teria outro valor
qualquer, mítico ou sexual? Sexual, também? Sim, porque, a meu ver,
a importância desses cauris ou desses acoês não se circunscreve somente
à vida econômica, social e religiosa dos Negros, quer do grupo sudanês,
quer do grupo banto.
Basta pensar-se que, se é bem conhecido o seu emprego nas adivi
nhações das sibilas negras de outros povos do Continente e dos seus
descendentes, entre nós, pouco se tem considerado a sua importância
na vida sexual do Negro. Montandon, estudando as bainhas de pênis e
os cache-sexe dos povos primitivos, aponta conchas na Oceania, na
Nova Guiné e na América do Sul, mas sem lhes reconhecer nenhum
valor simbólico ou mítico dentro dos aspectos da vida sexual deste
ou daquele.
Examinando-se, entretanto, as conchas citadas, principalmente os
cauris, verificamos que eles têm a conformação ovóide, mas os bordos
da sua abertura são dentados e nodosos, lembrando a abertura de
um sexo de mulher impúbere, o que, evidentemente, a ligou, outrora,
por uma imagem clássica de poesia, ao nascimento de Vênus.
Posteriormente, eu o acredito, ainda pelas características dessas
conchas, com os bordos da abertura dentados ou nodosos, os conquio-
logistas foram levados a dar ao molusco o nome de Kypris como os
gregos conheciam, também, aquela deusa, fixando na classificação
Ciprea moneta L., dois aspectos: o econômico e o sexual.
Outra concha, utilizada pelos índios da América do Norte como
moeda — o Wampum — mereceu dos mesmos conquiologistas a de
nominação de Venus mercenário,. Entre índios da América do Sul essas
conchas servem como cache-sexe, ou adornos, ou moedas, havendo o
Padre Montoya registrado os vocábulos itã (nome genérico da concha
dos moluscos) e rambá ou arambá (nome de todo o órgão sexual da
mulher). Quod continet membrum mulieris.
Não será, pois, de estranhar que entre os Negros minas, como
entre outros povos primitivos da África e da América, estivessem os
acoês e os cauris ligados à simbologia sexual, máxime quando nos lem
bramos de certas cerimônias e práticas comuns aos cultos africanos,
nos quais a mulher, ora é violada brutalmente, ora exaltada pela sua
condição de inocência e pureza.
Tópicos deste aspecto complementar foram tomados ao Ensaio
de Sexologia Indígena, que tenho em preparo, com a evidente preocupa
ção de pôr em foco uma questão a mais entre outras que, possivel
mente, este depoimento suscitará.
Referindo-me aos «contrabandos», que «assentaram» a Casa das
Minas, relacionei-os, em parte.
E nenhuma referência externei acerca da confusão que, no campo
dos estudos afro-brasileiros, caracteriza as investigações de historia
dores e de naturalistas de roda às tribos africanas introduzidas no
õ6
Brasil e noutros países das Américas pelos seus colonizadores. É que
isso me pareceu absolutamente dispensável, porque, com indiscutível
autoridade, o Prof. A rthur Ramos já o fizera em O Negro Brasileiro.
Mas não posso fugir aqui ao comentário de um dos aspectos dessa
confusão: o que se relaciona com as línguas dessas tribos. Claro está
que reconheço não ser este o ensejo para me alargar, exaustivamente,
na apreciação desse aspecto, examinando, uma a uma, todas as tribos
relacionadas. Posso, entretanto, limitar-me aos Negros minas, tão em
evidência neste depoimento como na própria história da nossa formação.
A esses Negros minas dão certos autores, como idioma, o ioruba;
e o mesmo o fazem em relação aos Negros nagôs. Nélson de Senna,
por exemplo, fala em «outra língua africana, mais rica, mais sonora
e hierática — o ioruba, dos Negros minas e nagôs, esse «polido idioma
iorubano, espécie de latim ritual, para os oficiantes e crentes da magia
negra».
Admite-se, geralmente, que a língua brasileira deve aos Negros
minas uma contribuição admirável, mas o que ainda não se definiu —
com rigorismo científico, ou ao menos com bom senso — foi a estru
tura, a fisionomia, a ação psicológica da língua que nos deu tamanha
contribuição.
Daí o falar-se, também, no idioma pôpô, que esses Negros minas
utilizam. E no nagô e no jeje, igualmente. Mas falariam, em verdade,
o iorubano, ou o egbá ou o eubá somente? Ou cada nação mina falaria
um idioma especial, diante de estranhos, e outra entre os seus membros?
Enumeram-se os Minas, mais ou menos, assim: Minas achantis ou
Minas tshantis, Minas nagôs, Minas cavalos, Minas gás, Minas agoins,
Minas pôpôs, Minas iorubas, Minas krus. Teríamos, portanto, uma de
zena de idiomas para uma tribo — o que foge, evidentemente, às leis
conhecidas da lingüística.
Partindo-se, apenas, como se vê, do exame de um único dos aspec
tos dessa Babel Negra, fácil há de ser, por certo, apreender toda a
amplitude espetacular dessa confusão.
Na Casa das Minas, da Ilha de São Luís, fala-se numa «língua da
casa», numa «língua dos Voduns» e numa «língua das Tôbôssis». Ali,
a meu ver, não é menor a confusão dessas línguas.
Em todas as manifestações do culto mina-jeje, entre outros vege
tais aparecem a cajazeira ou cajá ou taperebá e o estoraqueiro ou
beijoeiro ou benjoeiro. A cajazeira é uma árvore frondosa, de vinte e
cinco a mais metros de altura, do gênero Spondias e da família das
Anacardiáceas, cujo habitat se estende, no Brasil, do Amazonas ao
Rio de Janeiro.
Três das suas espécies são geralmente conhecidas e apreciadas,
mas uma delas, a Spondia macrocarpa Engl., ou cajá-açu, é das mais
interessantes do ponto de vista da religião do Negro e da sua tradição.
Quando se sabe que a cajazeira é cultivada na Bahia «para som-
57
brear cacaueiros e também para quebra-vento», admira-se não haver
ela sido apontada por nenhum etnólogo no estudo da economia e da
religião africana ali, pois na África, no Congo e em Angola, onde é
conhecida pelo nome de munguengue, sua importância é extraordinária.
Pio Corrêa, em seu precioso dicionário das plantas úteis do Brasil,
referindo-se a essa espécie vegetal, escreve: «A casca dos indivíduos
adultos torna-se tão grossa que dela é possível fazer pequenos objetos,
tais como amuletos, imagens, boquilhas para cigarros; registra-se
mesmo o fato de existirem (Santo Amaro, Bahia) imagem e ornatos
de capela com este material».
E esclarece m ais: «Merecem divulgação algumas superstições:
uma delas peculiar a várias tribos aborígines, consiste em submeterem-
se os enfermos de feridas ou úlceras à ação da fumaça que se des
prende dos caroços deste fruto quando lançados sobre brasas e dos
quais suportam o mais intenso calor; outra, dos indígenas do Congo,
que acreditam poder curar os paralíticos deitando-os sobre espessa ca
mada de folhas previamente maceradas em água».
É a cajazeira uma árvore sagrada para a gente da Casa das Minas
e as suas propriedades não se limitam apenas às medicinais; a sua
casca, é fato, serve para curar certas moléstias do aparelho digestivo,
mas as folhas, afirmam, têm virtudes mágicas e purificadoras.
Por isso são essas folhas espalhadas pelo chão do pégi, na hora
do sacrifício dos animais propiciatórios, e, misturadas com as do esto-
raque ou estoraqueiro (denominação arbitrária do beijoeiro ou benjoei-
ro) e com as de outros vegetais, servem para banhos-de-sorte, etc., etc.
O valor religioso dessa árvore, como se verifica, ainda continua a ser
respeitado pelas Negras da Casa das Minas — pois a ela, decerto, não
eram indiferentes os «contrabandos» que a «assentaram».
O exemplar existente na Casa das Minas é velhíssimo, mas todos
os anos se cobre de folhas numerosas e excelentes frutos. É indiscutível,
portanto, a posição dessa árvore na fitolatria mina-jeje. Sabe-se, ge
ralmente, que os nossos aborígines a conheciam com o nome de ibame-
tara ou ybametara, «pau de fazer enfeite de beiço», adianta Pio Corrêa;
entretanto, só os Negros puros e os seus descendentes a poderiam situar
na sua vida religiosa, como vimos.
Outra árvore, de importância religiosa, que aparece ao lado da
cajazeira, é o estoraqueiro ou beijoeiro da família das Estricáceas,
conhecida pelos botânicos sob a denominação de Panphilia aurea M.
A sua distribuição é larga, em nosso País, podendo-se apontá-la no
Maranhão, Bahia e Minas,
Essa árvore produz uma resina odorífera que aparece no comércio
e se assemelha ao estoraque da Europa e da Ásia, na opinião do autor
acima citado.
Quanto ao cróton — planta decorativa que aparece no terreiro
da Casa das Minas — é ele uma Euforbiácea, sendo o seu papel orna
mental, decorativo e, também, sagrado. O Codiaeum variegatum Bhrnie
58
tem o nome universal de cróton, mas não pertence a tal gênero,
ensina-o Pio Corrêa. Na índia é planta sagrada e serve para orna
mentar monumentos e sepulcros de heróis. Em nosso País ela é fre
qüente nos cemitérios e nos jardins públicos, sendo, por isso, talvez,
, que não a apreciem muito para ornamentar habitações, não obstante
a variedade das suas formas e o colorido das suas folhas.
O fogo, a luz, conforme observei na Casa das Minas, e na casa das
minhas tias, obrigam a esconjuros, quando acontece que uma pessoa
passe com fogareiros, candeeiros, velas por detrás de outra. Voltando-se
num gesto brusco, para o lado de quem os conduz, repete-se: agô agô.
Outros dizem: agô agô meu Pai, compreendendo-se que estão pedindo
proteção ao seu Vodun.
Verifica-se na Casa das Minas que a ética não deita apenas raízes
no grupo social, mas principalmente na religião. Os Voduns condenam
o deboche, a mentira, a deslealdade.
Entre os do culto mina-jeje não há Voduns amorais, e portanto
os seus adoradores não podem ser amorais. Esse fato contraria a afir
mativa de Westermann, que se generalizou nestes termos: «Não existe
laço entre a vida ética e a religião».
Na Casa das Minas as normas a que se submetem os seus com
ponentes são as mesmas que dominam no mundo dos Voduns.
>1
59
i
>
)
C om unicação de G eraldo P inh eiro
Xapanan he he
Xapanan he oh ah!
A tiricô Badé oh!
Xapanan he oh ah!
62
N otas com plem entares
63
No entanto, como aconteeeu com outros escravos, pertencentes a
várias nações, levados à Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, naturais
daquela área geográfica, os Jejes receberam o apelido de Minas (daí
Minas jejes), enfim quer procedessem de Al Mina ou El M ina2 «que
“ A o sul, os povos d a flo re sta e rig ira m novos E sta d o s e governos, ta is como os de A sh a n ti e
D ahom é, po rém esses, m ais vezes do que m enos, estav am ligados fa ta lm e n te ao com ércio u ltr a
m a rin o de escravos, um com ércio que sem eava desordens onde se estabelecia. N a Á frica O rien tal,
e n tre ta n to , as c u ltu ra s d a Id ad e do F e rro , que h av iam produzido colônias, como a de E n g a ru k a ,
s o fre ra m d esastro sas invasões de nôm ades do N o rte . Os p o rtu g u eses haviam destru íd o o com ércio
do O ceano Índico, no qual a s cidades co steiras c o n stru íra m riquezas e felicidade. Os B oers haviam
investido do Cabo da B oa E s p e ra n ç a . E ste s h av iam iniciado um m ovim ento de o u tra s pressões,
n otavelm en te de m ig raçõ es de povos N g u n i e Zulu, que d e stru íra m a Idade de F e rro d a R odésia
e a b rira m c am in h o p a r a a co n q u ista, p o r últim o, dos europeus. M esmo n a Á fric a C en tral, onde
governo s estáveis, g e ra lm e n te, co n tin u a v am a prev alecer, o com ércio de escravos Á rabe-Sw ahili,
d a C osta E ste, h a v ia re b e n ta d o a tra d ic io n a l s e g u ra n ç a e paz. P o rém os invasores do século
X IX , como o in fo rm e m o stra , pouco ou n en h u m conhecim ento to m a ra m de tudo isso” .
N o L a n d e rlex ik o n — W eltatlas (publicado, em 1973, pelo g ru p o B erstelm ann, de B erlim , M unique
e V ie n a ) , podem se r destacados os seg u in tes elem entos in fo rm a tiv o s:
“ E sse a n tig o R eino D aomé, to rn a d o autônom o e c o n stitu íd o em R epública em 1/8/1960, te m a
s u p erfíc ie de 112.622 km 2, sendo su a c a p ita l a cidade de P o rto Novo.
S uas p rin c ip a is cidades são: C otonu, Abomé, P a ra k u e U idah.
N a c o n stitu içã o do seu povo e n tra m , em m a io r p ro p o rçã o , re p re s e n ta n te s das e tn ia s E w e e
Ioruba. N e g ro s dos g ra n d e s g ru p o s sudaneses se destacam n essa c o n stitu içã o dem ográfica.
Os p rin c ip a is p ro d u to s do seu com ércio e x p o rta d o r são : cacau, café, sem entes e óleos de
p a lm e ir a s .. . ”
D eve-se a H . B au m an n e D . W este rm a n n , e n tre ta n to , re la tiv a m e n te à s populações que acim a
são re fe rid a s — no q u e diz re sp eito à h is tó ria do D aom é e ao seu povo, à s c u ltu ra s que os
c a ra c te riz a m , em c o n fro n to com a s de o u tro s povos do C on tin en te A fric a n o — m ais esta s
info rm açõ es:
“ L a c ré a tio n du R oyaum e du D ahom ey e st celle d o n t l’on c o n n a it m ieux T histoire. A u début
du XVI® siècle, il y a v a it s u r la C ôte des Esclaves, e n tre P o rto N ovo e t P e tit Popo, les é ta ts
Savi ou W hydah (Y uida, H u éd a, Y euda F id a ) su r la Côte m êm e, e t d ’A rd a à T in té rie u r
d ’A llada, e n fin celui de P o rto Novo. E n tre 1600 e t 1625 u n e tro u p e arm é e a q u itté A llade
(A rd a ) e t s’e st avancée v e rs le N o rd ; elle a conquis la région oü se tro u v e a u jo u r’hu i Abom ey
e t qui c o n stitu e actu ellem en t le ro y au m e de D ahom ey fo n dé p a r les Fons, u n e trib u d ’Ew es.
L e p re m ie r ro i de la nouvelle d y n a stie (1825) a édifié son p a la is au-dessus du co rp s du
d e rn ie r ro i de 1’é ta t p ré c éd e n t qui v e n a it d’ê tre tu é : ce tr a i t e x p rim a it u n e c ru a u té associée
à une idée cu ltu relle e t 1’é ta t dahom éen e st re s té fidèle à ce t r a i t ju s q ’à 1’a ube de la colonisation.
Sous son g ra n d ro i A g a d ja (1708/1732) le ro y au m e a com m encé à s’éten d re, c a r A rd ra a été
conquis e t les gens de W hidah o n t é té réfo u lés ju sq u ’à la côte. P a r su ite de c ette v ic to ire su r
les é ta ts c ô tie rs qui ju sq u e-là se ré s e rv a ie n t le d ro it d ’ê tre les in te rm é d ia ire s du tr a f ic avec
les E u ro p éen s, le ro yaum e de D ahom ey se tro u v a it su r la m er, alors q u ’a u p a r a v a n t il é ta it à
1’in té rie u r, e t il a v a it accès a u x p ro d u its eu ro p éen s qui a rriv a ie n t p a r elle. Les d e rn ie rs g ra n d s
rois a v a n t la colonisation fra n ç a ise , é ta ie n t Ghezo, Glélé e t B éhanzin (ou G behanzin) —
(1818-1849); le u r ro yaum e s’é te n d a it depuis Savalou ju s q u ’à la côte e t depuis K oufo ju sq u ’à
TO uèm é à l’E s t. U n e cour b rillan te , u n e o rg a n is a tio n m ilita ire trè s sévère, des p a la is édifiès
au cours des siècles au x m u rs o rn é s de b as-reliefs de te rre ra p p e la n t les h a u ts fa its des rois,
voilà les tr a its c a ra c té ris tiq u e s de c e t a v an t-p o ste du c e n tre de c ivilisation su p é rie u re su r le
bas N ig e r d o n t nous allons p a rle r m a in te n a n t” .
É à o b ra dos au to re s acim a citad o s — in titu la d a L e s peuples e t les civilisations de V A frique
P a y o t, P a ris 1967) — que, m a is a d ia n te, re c o rre re i q u ando e n te n d e r ocu p ar-m e dos D aom eanos
e Iorubas. E stes, p ro d u to s do trá fic o de escravos, tro u x e ra m o culto dos V oduns m antido, a té
hoje, n a C asa das M in a s e n a Casa de N a g ô , situ a d as am bas em São L uís, no E stado do
M aranh ão .
E s ta é a tra d u ç ã o do te x to acim a:
“ A c ria ç ã o do R eino do D aom é é a h is tó ria que m elhor se conhece. N o início do século
X IX , h a v ia sobre a C osta dos E scravos, e n tre P o rto N ovo e o Pequeno Popo, os estados de
Savi ou W h y d ah (Y uida, H u ed a, Y ueda F id a ) sobre a C osta mesm o, e de A rd ra ao in te rio r
de A liada, e n fim o de P o rto Novo. E n tre 1600 e 1685 u m a tro p a a rm a d a deixou A liada (A rd a )
e avan ço u p a r a o n o rte, h o je Abomey, e que co n stitu i a tu a lm e n te o re in o de D aom é, fundado
pelos Fo n s, u m a trib o de Ew es. O p rim e iro re i d a no v a d in a stia (1825) edificou seu palácio
sobre o corpo do ú ltim o re i do E stad o p reced en te, re i que a c a b a ra de ser m orto; esse tra ç o
e x p rim ia u m a crueldade asso ciad a à idéia c u ltu ra l e o E stado daom eano p e rm an eceu fiel a
esse tra ç o a té à a u ro ra d a colonização. E m conseqüência dessa v itó r ia sobre os E stados
costeiros que a té e n tã o se re serv av a m o d ire ito de ser in te rm e d iá rio s do trá fic o com os europeus,
o reino de Daom é se e n co n tra v a n a costa, e n q u an to a n te s se e n c o n tra v a no in te rio r, e tin h a
acesso aos p ro d u to s eu ro p eu s que chegavam p o r v ia m a rítim a . Os últim os g ra n d e s reis, a n te s
da colonização fran c e sa , fo ra m Ghezo, Glélé e B éhanzin (ou G behanzin) 1818-1849; o reino
deles se e ste n d ia desde Savalou à costa, e desde K oufo a Ouèmé, a este. U m a corte b rilh an te ,
um a o rg a n iz a ç ã o m ilita r b a s ta n te sev era, p alácio s edificados, no d e co rre r dos séculos, com m uros
ornado s de baixos-relevos de te r r a evocando os altos feito s dos reis, eis os tra ç o s c a ra c te rístic o s
desse posto av an çad o do c e n tro de civilização su p e rio r sobre o baixo N ig e r de que falarem os
a g o ra ” .
2. N um a o b ra recen te, in titu la d a M u ita s R a ç a s, U m a S ó N ação, da a u to ria de A n tô n io A lberto
do A n d rad e, do In s titu to S u p e rio r de C iências Sociais — A g ên cia G eral do U ltra m a r, Lisboa
1968 — a resp eito de Al M ina, e n co n tre i este elucidativo tó p ico :
“ N um rochedo p ró x im o d a p ra ia se le7antou, em 20 dias, a F o rta le z a de São J o rg e d a
M ina. e cresceu u m a povoação a que D. J o ã o II, em 15 de m a rç o de 1482, “ p o r su a c a r ta
p a te n te ” concedeu “ todas las liberdades, p riv ilég io s e p re m in e n c ias de cidade” .
64
é abaixo do Rio Primeiro», segundo se lê no Apêndice n9 VI, págim
29, da obra sumamente importante e pouco conhecida, mesmo entre os
mais diligentes pesquisadores brasileiros, do escritor português Edmun
do Correia Lopes, intitulada A Escravatura (subsídio para a sua his
tória) — publicação da agência Geral das Colônias, Lisboa 1944, quei
houvessem sido estocados, posteriormente, no interior do Forte Sãc
Jorge da M in a3, e desse local mandados ao Brasil. A rthur Ramos, i
respeito dessa designação, que abrangeu os Negros sudaneses, escreve
na apresentação que dedicou a esta obra, «que há um significado res
trito e outro largo para o termo «Mina»: que o termo passou a de
signar todos os Negros sudaneses que foram embarcados naquela partt
para o Brasil».
E com um documento, constante do Apêndice II, na obra acima
citada, ainda é Edmundo Correia Lopes que me leva a considerar aqui
esta questão.4
O documento (pertencente ao corpo de Excertos constatados poi
esse autor) vem sob o títu lo : Viagens Directas da Mina Para os Riot
Abaixo Dela Onde se Resgatavam Escravos. E nele se lê:
It. se v o s p a r e c e r bem e no n oso se r v iç o q u e h o s n a v io s q u e m a n d a rd es a
m y n a co m o s e sc r a v o s p a r a m ilh o r e m a is p ro n to a v ia m e n to do tr a to devem
lo g u o da M y n a fa z e r v ia dos R e s g u a te s q u an d o o s la m a n d a r d e s com o s ditos
n a v io s e sc r iv a m e h a s m e r q u a d o r ia s p e r a iso n e c e sa r ia s e m a n d a y ao pilote
e m a r e a n te s que ho fa ç a m a s y p o r s e e sc u s a r h a d em ora q u e podem fazer
em to r n a r a I lh a e da I lh a a o s R e s g u a te s e is to tu d o le ix a m o s a v o s que
ho c o n s u lte is la f a ç a is com o v ir d e s q u e c u m p re a n o so se r v iç o e bem de
tr a to , fe ito em a lm e ir im a o s b iij d ia s de F e v e r e ir o a .ç m e x ia o fe z anno
de b.9 X IX .
6r>
p aran d o a s lin h a s a d ia n te com a s lin h a s a cim a sobre A c h a n tis , J e je s , N a g ô s
e G ebros.
N in a R o d r ig u e s d is tr ib u i o s M in a s a ju n ta n d o que, no R io de J a n e ir o , os
B a n to s a s s im d en o m in a v a m “to d o s os N e g r o s da C osta do O uro, e dos
E s c r a v o s ”. E s s a d en om in ação co rresp on d e, a liá s , à dos d ocu m en tos dos
a r q u iv o s q u e r a r a m e n te d izem : ta n to s M in a s do D aom é, ta n to s M in as de
t a l ou q u a l p a r te .
D e s ta r te , o s M in a s er a m so m e n te S u d a n e se s, m a s , n u m d os la p s o s d e N in a ,
r e fe r in d o -se a o s e sc r a v o s d a N ig r íc ia , diz q u e “o fo r te de E l-M in a fo i
em p ório de ta l o rd em ”, “no com ércio de e sc r a v o s em g r o s s o ” “que chegou
a tornar sinônimos os termos Africano e Mina”.
“A fr ic a n o ” e s tá a í em p regad o no sen tid o de N e g r o ou de e sc r a v o , m a s a tin g e
B a n to s e S u d a n e se s, o q u e a m p lia in co n sc ie n te m e n te o s se n tid o s dos term o s.
N o M aran h ão, o g r a n d e m e str e d os a fr ic a n is t a s b r a sile ir o s en co n tro u com o
sen d o M in a u m a v e lh a jeje e o u tra nagô. N a B a h ia , ach ou a tr a d iç ã o
“c o n se r v a d a ” : M in a s a c h a n tis e M in a s p op ôs. R e fe r iu -s e a D e b r e t que
m en cio n a no R io de J a n e ir o Minas nejôs, Minas mahyis e Minas cavalos
e co n sid ero u “p r o v a v e lm e n te ” Jejes mahyas o s se g u n d o s, Nagôs o s p r i
m eiro s, se m n a d a d izer sob re o s ú ltim o s.
5. A conteceu, p o r isso, q u e aquela “ lei de e x p ressão ” , re fe rid a p o r Sousa C arn eiro , levou o povo
m a ra n h e n se a d e n o m in a r C asa das M inas a d a R u a S enador C osta R odrigues n<? 857, razão
p o r que dei a e sta o b ra id ên tica d enom inação, reconhecendo, com esse gesto, a p rio rid a d e
quu Ihu cabe.
66
Mas seria, realmente, uma língua, instrumento de expressão ci
tural de um povo, originária e fundamentalmente exaltada por Perei
da Costa, ou de outro qualquer, rotulada, como os escravos e as esi
ciarias de Al Mina, com essa designação geográfica?
A. Meillet e Mareei Cohen, no segundo volume da obra Les langi
du monde (nouvelle édition, Paris 1952) dando a caracterização
chamado Grupo éburnéo-dahoméen (com 48 línguas), p. 817 e 823, en
nam que essas 48 línguas podem repartir-se em sete subgrupos,
entre eles aparece «le: mina ou gê ou gêge ou popo ou waci ou an
régions de Grand-Popo et Anecho, sur la côte (1827 et 1828 Kilham
Um exame filológico do texto de algumas centenas de cânticos i
mim gravados, entre filhas da Casa das Minas, para documentação
minhas pesquisas sobre comunidades de Negros descendentes de antij
escravos africanos, perm itirá concluir-se haver existido ou não ui
língua mina ou simplesmente a língua jeje ou gê ou gêge acima referi
Levando eu algumas fitas magnéticas, desses cânticos, à aprec
ção da Prof. Yeda Pessoa de Castro, do Centro de Estudos Af
Orientais, de Salvador (Bahia), em dezembro de 1969, pareceu-
tratar-se mais de cânticos litúrgicos em língua fon.
Tem, pois, cabimento a pergunta acima: não teria sido a línç
jeje rotulada de mina como os escravos e as especiarias que for
trazidas para o Brasil Colonial, isto é, a Minas Gerais, Bahia, P
narnbuco, Maranhão e Pará?
Na corrente de estudos afro-brasileiros, como já frisei em ou
parte, com essa denominação de Mina jeje (Ewe ou Eoué, da gra
inglesa e francesa, respectivamente) só no Maranhão me aparecer
eles.
Àquela condição de empório do tráfico negreiro é que se fica
a dever, sem dúvida, toda essa confusão, tanto mais que, como ver
in Colonialismo Português e a Conjuração Mineira, da autoria de
Pereira dos Reis, tão rigoroso no definir o mercantilismo portug
no Brasil, grande era a importância da Casa da índia (antiga «C
da índia e da Mina»), «que controlava o comércio dos produtos ai
canos e asiáticos» (o ouro da Mina e os escravos) e que «propon
nava excelentes lucros ao país».6
Para a valorização dos produtos dali saídos, natural era lhe im
uma rubrica — a de Mina — no ouro, nos panos, nas especiarias,
6. O e sc rito r m in e iro W ald em ar de A lm eida B arbosa, em su a o b ra N eg ro s e Quilom bos em A
G erais, salien to u , p rec isa m e n te , a im p o rtâ n c ia do com ércio de pro d u to s asiático s e a frlo
subordinado ao c o n tro le d a C asa da ín d ia ou d a Casa da Ín d ia e da M ina, nos p a râ g
seg u in tes:
" N a p rim e ira m etad e do século X V III, sobretudo no p rim e iro q u a rte l desse século, quand
m inas se e n co n tra v am em plen o apogeu, tivem os em M inas a im p o rta ç ã o em la rg a e
dos N egros cham ad o s M in as; é que os p a u lis ta s e os p o rtu g u e ses tin h a m a convicção de que,
o N eg ro m in a ou u m a N e g ra m in a, n ão se ach a v a ouro” .
E, cita n d o C. R. Boxer, a u to r d a o b ra A Idade do O uro n o B rasil, escreve m ais:
“ ( \ R. B oxer ex am in o u os re g istro s dos im postos p a r a escravos, re fe re n te s ao perlod<
1714 a 1740, e en co n tro u notável p re p o n d e râ n c ia de N eg ro s m in as, seguidos de p e rto
A ngolas o B enguelus” .
miserável gente dali trazida para o Brasil-Colônia, tal qual, na América
do Norte ou na Inglaterra, a rubrica Made in England ou Made in USA,
nos produtos das suas indústrias.
Recentemente, entretanto, ao parar na cidade de Salvador, em de
zembro de 1969 e janeiro de 1970, ganhei uma Nota, da autoria de
Vivaldo da Costa Lima, do Centro de Estudos Afro-Orientais, que em
bora particularizada «para Nunes Pereira» bem merece divulgar-se,
por sua acuidade e precisão.
Daí o transcrevê-la, na íntegra, nestas Notas, visto patentear-se
ali a etimologia do vocábulo jeje da nação, tribo ou povo, a que o
gênio mercantilista do colonizador (et pour cause) juntou Mina, o
sítio da procedência de escravos africanos assim denominados.
JE JE
E s t a a g r a f ia p r e fe r ív e l, r e sp e ita d a s a s in s tr u ç õ e s de A cord o O rto g rá fico ,
de 1943, p a r a a g r a f ia de p a la v r a s , de o r ig e m a fr ic a n a ou in d íg e n a , n a
lín g u a p o r tu g u e sa .
O etn ôn im o te m su g e r id o d iv e r s a s e tim o lo g ia s. P r e fe r im o s a c e ita r a que
o f a r ia o r ig in a r -s e do io ru b á â j è j i (p ro n . a d jê d ji) e q u e s ig n ific a “e str a n
g e ir o ”, “fo r a s te ir o ” (v e r R . C. A b ra h a m , Dictionary of Modem Yoruba,
U n iv e r s ity o f L on d on P r e s s , 1958, p. 3 8 : “â jè ji, stranger ( - à l é j ò ) ; id.
A Dictionary of the Yoruba Language, O x fo rd U n iv . P r e s s , L on d res, 6"
im p., 1959, “A je ji n . a s tr a n g e r , a fo r e ig n e r ” ; id. A Vocabulary of the
Yoruba Language, R ev. S a m u e l C row th er, S eeb y z, L o n d res 1852, p. 21:
“A je ji, s tr a n g e r , fo r e ig n e r ” ) .
Os h a b ita n te s io r u b a s do B a ix o D aom é, n a r e g iã o em q u e h o je s e situ a a
cid ad e de P o r to N o v o , c h a m a d a a in d a h o je p e lo s Io r u b a s ou N a g ô s de
A fo s e ( A d j a x é ) , ch a m a v a m de ajejii — ou j e j i n a fo r m a u su a lm e n te ap o-
cop ad a — a o s in v a s o r e s F o n v in d o s do le s te (v e r , e n tr e o u tro s, a h is tó r ia
da fu n d a ç ã o do R ein o de P o rto N o v o em : Akindéle & Aguessy, Contribution
à 1’étude de VAncien Royaume de Porto Novo, M ém oire I F A N , n ç 25,
D a k a r ), — com o sen tid o p róp rio do te r m o : fo r a s te ir o , e str a n g e ir o . F i
ca ra m o s F o n in s ta la d o s em P o r to N o v o com e ss e ap elid o , a p r in c íp io
r e str itiv o , e m a is ta r d e a ceito p e lo s p ró p rio s d e sc e n d e n te s dos p r im e ir o s
im ig r a n te s , q u e lh e ig n o r a m a a n tig a co n o ta çã o d er r o g a tó r ia .
A p a la v r a “J e j i ” — de “a j a j i” — , n a s s u a s v á r ia s tr a n s c r iç õ e s p e lo s d i
v e r so s a u to r e s eu ro p eu s, é co n h ecid a d esd e o s f in s do sécu lo X V I I I . Os
h a b ita n te s de P o r to N o v o sã o , e le s p ró p rio s, co n h ecid o s com o G un ou
Fuunn.
V e r a in d a so b re a p a la v r a “J e j e ” — a e tim o lo g ia p or V e r g e r , apud R ob ert
C orn evin , Histoire du Dahomey, B e r g e r , L iv r a u lt, P a r is 1962, p. 46.
O Dictionnaire Français-Yoruba, do R ev. P . B o u d in (P o r to N o v o , C en tre
C atéch étiq u e, 1 9 6 7 ), dá, ig u a lm e n te , para “e s tr a n g e ir o ” : alejo, ajeji,
aralumi.. . , p. 129.
II
68
intimidade de autores de obras já esgotadas, senão raras, que logre
adquirir ou consultar.
Além disso, em verdade, eu não sou mais que uma testemunha dc
práticas, cerimônias, ritos, bem assim de fenômenos e de fatos, do cultc
dos Voduns7, ligados àquilo que Romano Galeffi, Professor de Esté
tica, na Universidade Federal da Bahia, Cidade do Salvador, denomim
la sacralità deli’esistenza.
E essa expressão, ainda hoje, está indelével na minha memórií
como se a estivesse relendo no Prefácio que esse Professor ilustre de
dicou à obra do Dr. Alessandro Angalis Valentini, intitulada Indagint
sulla vera genesi dei fenomeni mediunici (Stabilimento Tipográfici
delia S.A. 11 Giornale d’Italia, em Roma).
Uma testemunha, repito, de demonstrações quotidianas, de fatt,
incontroversibilli, da ciência metafísica (ali apresentados, à vista ch
Mãe Andresa Maria e das suas noviches e gonjais), tal o estado dí
transe ou de possessão mística,
Uma testemunha, apenas, mas com a consciência de quem, tatean
do embora, busca a Verdade, esquivando-se, discretamente, da análisf
7. A re sp eito d a o rg a n iz a ç ã o dos V o d u n s em fam ílias, R oger B astide, n a o b ra L es Am érique,
N o ire s (L es c iv ilisatio n s a fric a in e s d a n s le N o u v eau M onde) ed ita d a p o r P a y o t (1967) ■
re e d ita d a p e la m esm a fir m a em 1973, assim se m a n ife sta :
“ L e p re m ie r t r a i t que n ous relèverons, c ’e st la division des V o d u n en fam illes, exactem en
com m e _ a u D ahom ey, avec cette d ifféren c e seu lem ent q u ’a u D ahom ey chaque fam ille a mu
c o n fré rie spéciale, ta n d is q u ’ici la m êm e c o n fré rie adore les D ivinités des diverses famille»
e t les lim ites qui s é p a re n t u n e fam ille d’u n e a u tre so n t absolum ent les m êm es qui celles qui
nous tro u v o n s chez les F o n . L a p re m iè re fam ille e s t celle de D avice ou D ahom é, qui com prem
Dadaho, sa fem m e N a ê, D osu, etc .; la deuxièm e e s t celle de D a ou D am bira, qui correspom
au P a n th é o n de S a k p a ta au D ahom ey; S a k p a ta , D an, e tc .; la tro isièm e e st celle de Kevioso
le D ieu d u to n n e rre ; elle englobe Badé, A v ê rê k ê te , Sobô, A b ê , etc. M ais a ces V odun, qu
re p ré s e n te n t les forces de la N a tu re , v ie n n e n t s’a d jo in d re — à 1’in té rie u r de la fam ille Dahonu
—• les A n c êtres du lig n ag e des R ois d’A bomey, tra n s fo rm e s en V odun, e t qui re ç o iv e n t exactem en
le m êm e cu lte q u ’eux, a in si Z om adone, A g o n g o n e , Z a ka , D osu, A g a j á .. . ce qui p e rm e t di
p e n se r que les fo n d a te u rs d a la M aison (C asa das M inas) a p p a r tie n n e n t à la fam ille roynle
N ous allons m a in te n a n t re n c o n tre r deux c a ra c té ris tiq u e s de la m ythologie F on, d o n t nom
avons to u t lieu de p e n se r qu’ils so n t des tr a its cu lturels F o n e t p e u t-ê tre m êm e a fric a in s ei
g é n é ra l; m a is que les a fric a n is te s n ’o n t p a s su encore v oire en A friq u e. Ici aussi, comrm
p o u r la n o tio n de w ere ou éré, la rech erch e a fro -a m é ric a in e ouvre des voies nouvelles à li
rech erch e a fric a in e ” .
Considerem os a in d a m ais este tó p ic o d a o b ra de R o g er B astide:
“ Le p re m ie r de ces fa its , su r lesquels n ous avons com m encé u n e e nquête a u D ahom ey s ’avèn
b ien d ’o rig in e F o n , b ie n que n ous n ’ayons p a s eu la possibilité de po u sser 1’enquête ju sq u ’i
la c o n stitu tio n du systèm e” .
N esse tre c h o d a o b ra de R oger B astid e re p o n ta a fu n d a ç ão d a C asa das M inas, de São Luíi
do M aran h ã o , p e la m ãe do R ei Guezo, p o sta em evidência p o r P ie rre V e rg e r e, depois deste
p o r J u d ith Gleazon, em su a o b ra A g o tim e — H e r L e g e n d (G rossm ann P ublisher, Novi
Io rq u e 1970).
E tam b ém re p o n ta da tra d iç ã o que M ãe A n d re sa M a ria s e ria nobre, o que p re s se n tira Rogr
B astide, q u ando a v isito u , e sem p re m e p a re ce u no c o n ta to que, desde c ria n ç a , tiv e com i
sua pessoa.
E is a tra d u ç ã o liv re do trech o acim a:
“ O p rim e iro tra ç o que n ó s le v a n tarem o s é a divisão dos V odun em fam ílias, exatam enti
como no D aom é, so m en te com e sta d ife re n ç a de que, n o D aomé, cad a fa m ília tem umi
c o n fra ria especial, e n q u an to , aq u i, a m esm a c o n fra ria a d o ra a s D ivindades das diversas fam ília»
e os lim ites que se p a ra m um fa m ília d a o u tra são ab so lu tam en te os m esm os e n co n trad o s po;
nó s e n tre os F o n . A p rim e ir a fa m ília é de D avice ou D aom é, que com preende D adaho, hui
m u lh er N a ê, D o s u ... etc., a seg u n d a é a de D á ou D am birá, que c o rresponde ao P a n te ã o «l<
S a k p a tá no D aom é: S a k p a ta , D a, e tc .; a te rc e ira é a de K evioso, o D eus do T rovão: eh
engloba Badé, A v ê rê q u ê te , Sobô, A b ê . . . etc. M as a esses V odun, que re p re s e n ta m a s forçai
da N a tu re z a , vêm se ju n ta r , no in te rio r d a fa m ília , os a n c e s tra is d a linhagem dos reis <li
Abomé, tra n s fo rm a d o s em V o d u n , e que recebem o m esm o culto dos outros, assim Zom adone
A g o n g a n e , Z a k á , D osu, A g a j á .. . o que p e rm ite p e n sa r que os fu n d ad o res d a C asa (C a sa du,
M in as) p e rte n c ia m à fa m ília re a l. V am os e n c o n tra r duas c a r a c te rís tic a s d a m itologia Fon
ocorrendo-nos p e n s a r que são tra ç o s c u ltu ra is F o n e, talvez, m esm o, a fric a n o s, em geral
po rém os a fric a n is ta s n ã o souberam v e r n a Á frica. Do mesm o modo com re la ç ão a w ere ou ére
a p esq u isa a fro -a m e ric a n a a b re p e rsp e c tiv a s novas p a r a a pesq u isa a fric a n a ” .
A tra d u ç ã o do p equeno tre c h o citado a p ó s o que a í dei é a seg u in te: “ O p rim eiro desse
fato s, sobre os q u ais com eçam os u m a pesquisa no D aomé, evidencia bem a origem Fon
co nqunnto não tivéssem os tid o possibilidndo do co n d u zir a pesquisa a té a c o n stitu içã o do siste m a ” .
6Í
espectral daqueles fatos, sem el aire pedagógico a que aludia Rubén
Dario, satirizando pseudomestres, conceituosos quanto pedantescos.8
De roda às teorias e conclusões — levantadas por outros etnólogos
e sociólogos, ao longo das tortuosas veredas da dialética, no interesse
de estudar a religião de certos povos, muitas vezes tidos como pri
mitivos — minha atitude foi sempre de respeito e tolerância, conquan
to muitas vezes não as aceitasse no seu todo, é claro, por senti-las
insustentáveis, nelas vendo a simbólica e majestosa presença de inúme
ras árvores da Selva Amazônica, a margem dos caudais que se re
fletem, num como deslumbramento, mas as desenraízam e abatem,
impiedosamente.
III
70
E o mesmo ocorre quando elas nos contam fragmentos da história
ou da mitologia trazidos daquele Continente para este lado do Atlântico
pelos escravos africanos.9
Pode-se aceitar que esses Voduns sejam comuns à gente ioruba,
nagô mina-jeje, ketu e fon.
É descabida, no entanto, a hipótese de ombrearem, no pégi ou no
comé daquela Casa, entidades de outros cultos e outras procedências.
Como se sabe, o fenômeno denominado sincretismo (admitido por
A rthur Ramos, como o foi, anteriormente, por Nina Rodrigues, já se
iniciara nas terras mesmo dos escravos exportados para as Américas)
aqui, no Brasil, se acelerou e se expandiu marcadamente.
No entanto, cabe-me frisá-lo, não me foi dado registrar, em fitas
magnéticas, nenhum nome das entidades do Fios Sanctorum católico,
das falanges umbandistas e dos cordões dos pajés indígenas.
Apenas nas ladainhas, que antecedem a várias festas da Casa das
Minas, é natural escutar-se o nome de Jesus, São Jorge, São Sebastião,
Santa Bárbara, etc., etc.
Vendo-os reunidos em famílias, tal qual uma organização social
primitiva ou civilizada, procurei m ostrar como se apresentam alguns
desses Voduns, parecendo-me de especial importância caracterizá-los de
acordo com o status que nelas ocupam.
E essa importância é facilmente reconhecível quando se percorrem
as dependências da Casa das Minas ou se lhe examina a planta baixa:
quando, enfim, se tem permissão para visitar o comé e ver as jarras
sagradas, agrupadas numa espécie de plataforma de cim ento10, em
cujo interior os Voduns estão consubstanciados na Á gua11, e todas elas
simbolizam os mais característicos elementos de uma autêntica, de uma
indissolúvel família.
Três são as famílias que ali estão agrupadas e se denominam:
Davice, Queviôço ou Hêviôço e Dambirá.
/i
Família Davice 12
V oduns T oq u en os ou T oq u en s
Acocinacaba Acôevi
Agongone Ag açu
Arrônôviçavá Apôgêvô
Bêdigá Dako o u Daco
Dacodonu Deçê
Dadahô Doçupé
Doçu Nochadicê
Naêdone o u Naê
Naêtê
Nanin
Tôpa
Zepanin ou Zepazina
Zomadone
F ilh o s de Z om adone
Toçá
Têçé
Apogê
F ilh o de A g o n g o n e
Jotim
72
du c lim a t q u i co n d itio n n e la p r é se n c e de la m ou ch e ts é -tsé . On tr o u v e r a it
d e s c h e v a u x d a n s l ’a n c ie n n e O yo q u e é t a it au n ord du p a y s yoru b a. P lu s
a u su d on p e u t d ir e q u e s e u le s le s q u e u e s en é ta ie n t c o n n u e s du f a i t
q u ’e lle s é ta ie n t tr ê s r e c h erch ées p o u r d es u s a g e s r i t u e l s .13
N o s r o is a v a ie n t d es ch e v a u x q u i v e n a ie n t du N o r d (r é g io n s de sa v a n e )
o u q u i a r r iv a ie n t d’E u r o p e p a r le s p o r ts de côte. D a n s c e s c o n d itio n s, les
c h e v a u x é ta ie n t d e s a n im a u x ch e r s, e t c e la d’a u ta n t p lu s q u ’il fa lla it les
rem p la c e r s o u v e n t ca r le s in d iv id u s é ta ie n t d écim és ra p id e m e n t p a r le
c lim a t. A u s s i, o n n e d o it p a s ê tr e éto n n é d e v o ir d es ch e v a u x s e r a r é fie r
ju s q u ’à le u r d is p a r itio n to ta le d a n s le s r é g io n s ou ils n e so n t p a s a d a p tés,
la cou rb e de d isp a r itio n n e c o in c id a n t a vec c e lle d e 1’a p p a u v r is se m e n t d es
ro is. C’e s t a in s i q u e Z om aw , le roi a c tu e l d es D a sc h a (p o p u la tio n y o ru b a
du m o y en D a h o m e y ) p o ssèd e u n c h ev a l de b o is g r a n d e u r n a tu r e q u ’il m on te
p a r fo is (le c h e v a l e s t a lo r s tr a in é p a r d es s e r v ite u r s ) , f a u t e de m on te
v i v a n t e .14
7a
Daí ter-se de admitir, também, a importância do babalaô ou da
yaô, que, nos terreiros da Bahia, são chamados «cavalo» do Orixá, pois
são montarias (sic) das entidades do culto que professam. (Montado,
na acepção de possuído ou incorporado).
A respeito da organização dos Voduns em famílias, Roger Bastide,
na obra Les Amériques Noires (Les civilisations africaines dans le
nouveau monde), editada por Payot (1967) e reeditada pela mesma
firma, em 1973, assim se manifesta:
7-1
mites que separam uma família da outra são absolutamente os mesmos
encontrados por nós entre os Fon. A primeira família é de Davice ou
Daomé, que compreende Dadaho, sua mulher Naê, Dosu etc.; a segunda
é a de Da ou Dambirá, que corresponde ao panteão de Sakpatá no
Daomé: Sakpatá, Dan etc.; a terceira é a de Kevioso, o deus do Trovão;
ela engloba Badé, Avrêquête, Sobô, Abê etc.»
A esses Voduns, que representam as forças da naturoza, vêm se
ju ntar — ao interior da família Dahomé — os ancestrais da linhagem
dos reis do Abomé, transformados em Voduns, e que recebem exata
mente o mesmo culto que os outros, assim Zomadone, Agongone, Zaká,
Dosu, A g a já ... o que permite pensar que os fundadores da Casa
(Casa das Minas) pertenciam à família real. Vamos encontrar duas
características da mitologia Fon, nos ocorrendo pensar que são traços
culturais Fon e, talvez, mesmo, africanos em geral; porém os africa
nistas não os souberam ainda ver na África. Do mesmo modo com
relação a were ou éré, a pesquisa afro-americana abre perspectivas
novas para a pesquisa africana.
O primeiro desses fatos, sobre os quais começamos uma pesquisa
no Daomé, evidencia bem a origem Fon, conquanto não tivéssemos a
possibilidade de estender a pesquisa até a constituição do sistema.
F a m ília H êv io çô ou Q uêviôçô
7f>
Darei aqui, portanto, a Mawu-Liçá ou Lissá e a Sôbô ou Sogbô
um lugar saliente, senão preferencial, nos esclarecimentos que se seguem,
já porque são divindades do Panteão do Céu e de uma hierarquia su
perior, já porque, é claro, se tra ta de assinalar-lhes, além da femini
lidade, certa ambigüidade sexual. . . Ambigüidade, é óbvio, apontada,
freqüentemente, entre pais e mães-de-santo, tanto dos terreiros do Rio
de Janeiro, Salvador, Recife, tipicamente Nagô ou Ketu, como nos de
São Luís e Belém, nestes chamados, impropriamente, jeje, tambor de
cura, tambor de mina, tambor de crioulo, tambor de sítio e centros,
ditos umbandistas.
Mawu-Liçá ou Lissá, ou Içá, pertence ao Panteão do Céu e o seu
lugar é entre os grandes deuses, segundo Herskovits; e isso fica nítido
nas linhas que lhe dedicou:
7(5
Incluí, por exemplo, em minha obra Moronguêtá — Um Decameron
Indígena, o mito da criação de dois astros — o Sol e a Lua — narrado
pelos índios Cauaiua-Pirintintin, do Rio Madeira, Estado do Amazonas,
proeza do ciclo de «experiências» do herói-de-cultura Bahira ou Baíra
ou Mbaíra.
No entanto, como se verá, nesse mito, é absolutamente nítida a ca
racterização do sexo dos dois personagens cosmogônicos.
O R IG E M DO SO L E DA LUA
77
Herskovits escreveu, precisamente:
S ogb ô th e r e fo r e th e g r e a te s t o f a li g o d s, b u t h e r son , w h o is c a lled A gb é,
e x e r c ise s d irect c o n tro l o v er w h a t o ccu rs in th e u n iv e r se . A g b é o f T h u n d er
P a n th eo n co rresp o n d s to L isa , in th e S k y g ro u p o f god s.
Adcn
Akorombê
Adjaliata
Gbewesu
Akeló
Alasá
Gbadé ou Badé
Entre esses filhos tem alta posição o Vodun Badé, e uma filha,
Avêrêquête, dos quais me ocuparei adiante. Todos tiveram grande pro
jeção na Casa das Minas.
Uma das minhas tias, Ida Alves Barradas, a tinha por senhor,
protetor, santo.
Nas indagações e pesquisas que fiz, tanto na Casa das Minas, em
São Luís do Maranhão, como no Bogum de Mãe Valentina, em Salvador,
Estado da Bahia, apenas o nome de um desses filhos de Sogbô, o de
Badé, me foi referido, sendo que Pierre Verger, em suas Notas sobre
os Orisa et Vodun, se refere a Aden, um Vodun masculino, talvez
78
porque se trate de divindades inferiores, que ali nunca fossem cultua
das, ou já esquecidas na África Negra, mesmo no Daomé.
Gbadé ou Badé, entretanto, sendo mencionado na obra de Verger,
freqüentemente, por sua masculinidade, decerto é très violent, plus
méchant que tous les autres, tue en déchiquetant tout le corps. 18
Aden, para exercer igual violência, ainda segundo Verger, antes de
fulminar alguém, il fa it noir, il y aura des éclairs, la pluie tombe un
peu et Aden tue. 19
Comparando as personalidades desses Voduns, do ponto de vista
ético, surpreendeu-me a carga de heranças que legaram a seus filhos,
com os diversos domínios, no Céu, na Terra e no Mar.
E essa particularidade não escapou a Herskovits que registra o pro
cedimento dos filhos dos grandes deuses, das divindades, que, explorados
pelos pais astute, capricious, intractable, representam o papel de obsti
nados e indisciplinados nos respectivos panteões.
Desentendem-se Sakpata e Heviosô no episódio da distribuição da
chuva, que dependia de Heviosô, mas Sogbô supervisiona o procedi
mento de todos eles, ocupados na direção dos negócios do Céu, como
Agbé e sua prole no Reino da Terra, e é ela que exige a distribuição
imediata e eqüitativa da chuva sobre a Terra.
Deixando de parte (nesta altura de tão copiosa e necessária cita
ção, como se verá adiante, de Melville Herskovits) a figura de Sogbô
ou Çôbô — para autenticar a estrutura social, hierárquica, divina dos
Voduns dos Panteões do Céu, Terra e Mar, do antigo Reino do Daomé,
na sua relação com os dos Voduns da Casa das Minas, de São Luís
do Maranhão — vou apreciar, com o auxílio do citado autor e de
outros autores, cujas obras tenho às mãos, as figuras de Afrêquête e
a de Badé, sendo a primeira filha de Agbé e Naété e o segundo filho
de Sogbô.
E ra Afrêquête (Avêrêquête, dizem em São Luís do Maranhão e
em Salvador, na Bahia), dentre os demais filhos e filhas do casal Agbé
e Naeté, a filha que, sendo ainda de tenra idade, seria a mais mimada
e sagaz da família. E não só: a mais favorecida, representando, no
grupo mitológico, o papel de trapaceira, comparável, assim (segundo
opinião de um alto sacerdote do Daomé a Herskovits), ao divino tra
paceiro Legbá, embora um outro informante asseverasse que Avêrêquête
é o dokpwegá do Panteão de Quevioçô ou Xeviosô; e um terceiro infor
mante ligasse o seu papel ao do grupo dos deuses Agbé, Mawu e Lissá.
Ela conhecia todos os segredos dos seus pais, e desde que guardava
todos os tesouros do Mar, ela era a mais rica da família.
Era, igualmente, grande indiscreta e maledicente.
Dessa maneira, quando seu pai (Agbé) se deitava com sua mãe,
ela os espiava e contava o sucedido a toda gente.
18. " . . . m u ito violento, p io r que todos os ou tro s, m a ta dilacerando todo o c orpo".
19. "E scu rece, h a v erá re lâm p ag o s, a chuva cai um pouco e A den m a ta " .
79
Sua propensão para a maledicência se refletia em sua própria dança,
pois, a fim de ilustrar seu procedimento, põe um dedo nos lábios como
se quisesse dizer: «Não conte o que eu lhe disse!»
De fato (continua o autor que venho citando) «quando circula uma
notícia e não se atinge o ponto de origem, diz-se logo que foi Avêrêquête
quem espalhou».
Pierre Verger, a respeito dessa divindade, no lugar que lhe tem o
nome, recolheu estas informações:
A v ê r ê q u ê te f a i t d es fa r c e s e t d es g r im a c e s p a rce q u e c ’e s t la p lu s je u n e
de to u s e t e lle v e u t f a ir e r ir e le s g e n s. Q u an d il y a réu n io n c’e s t e lle qui
v a in v ite r le s a u tr e s p ou r rép on d re à l ’a p p el du c h e f . 20
80
um cântico que registra a visita feita por Sôgbô à sua tão mimada e
terrível filha, um enfant gâté no Panteão dos Voduns da Família
Queviôçô.
Ei-lo, com a precisa letra da gravação que fiz para a Universidade
Federal e para a Secretaria de Educação e Cultura do Estado do
M aranhão:
{Je suis dans ton groupe, le groupe ne sera cassé. Estou no teu
grupo e o grupo não será partido).
Realmente Sôgbô é um grande Vodun, mas sua filha, de caráter
irrequieto, arguta e hábil, no fiar e desfiar situações equívocas, é
uma poderosa divindade. E assim o reconheceram os seus adeptos fiéis,
em terras do Antigo Reino do Daomé, e ainda o reconhecem os vodunce
da Casa das Minas de São Luís do Maranhão.
Ela, Avêrêquête, era a que concentrava, em sua personalidade, mais
poder sobrenatural, mais força divina, mais energia telúrica, mais vio
lência física, mais astúcia.
Na área do sincretismo Sôgbô é apresentada como Santa Bárbara.
Avêrêquête não baixa mais, como o fazia, freqüentemente, na Casa
das Minas.
Na Casa das Minas ouvi dizer que o mesmo Quêviôçô ou Iíeviôçô
é Badé; e Sô, também, é um dos seus nomes.
Ele, como disse atrás, sendo Badé, é filho de Sôgbô.
Ocupar-me-ei, portanto, a seguir, da personalidade de Badé.
No entanto, se se manifestar interesse em saber onde ele vive, logo
informarão que é na Casa de Nagô, ali perto, na vizinhança du Fonte
do B ispo...
E mais esta particularidade: vindo de lá, no decorrer desta ou dn
quela festa religiosa, para a Casa das Minas, prontumente entra em
mutismo absoluto, de modo que só se expressará, por precaução ou
imposição secreta através de sua filha ou noviche, em estado de transe,
Ht
recorrendo à mímica, o que, singularmente, lhe acresce a misteriosa
grandeza da personalidade.
Mas esse silêncio não cessa ao regressar ele à Casa de Nagô, pois é
da sua própria natureza divina ou por que só usará da palavra no
interior do pégi, daquela casa?
Explicaram-me, então, que isso acontece para que, vindo à Casa
das Minas, não revele aos fiéis de lá os «mistérios» próprios da Casa
de Nagô, por prescrição sigilosa de sua direção superior, podendo-se
concluir daí que existe uma diferença estrutural, bem marcada, entre
a gente que cultua os Voduns à maneira daomeana e à maneira ioru-
bana, como nos ritos maçônicos.
De Mãe Hosana, que o recebia, ao tempo em que eu deveria ter
apenas quatro anos de idade, guardo uma lembrança descolorida como
a de um velho retrato sob camadas de umidade e pó, mas nunca pude
esquecer as suas linhas gerais, de descendente de africanos, duma se
renidade de atitudes que só os cegos têm estampada no rosto e se
reflete nos seus gestos.
Tinha um bonito rosto de mulher, sombreado pela cabeleira alvís-
sima, dividida em bandós.
Minha mãe — quando eu ainda tinha um pouco menos daquela
idade — me deu, isto é, consagrou (dizem), primeiro, a Póli-Boji,
que era o seu Vodun.
Tratava-se, possivelmente, de uma tradição, de caráter social tanto
quanto de afetividade ou predileção, simpatia e confiança.
Nada apurei em relação a esse gesto em que se poderia ver, apres-
sadamente, um rito de passagem. E nem parece que se ligava à ne
cessidade de, através do filho, minha mãe prolongar os compromissos
de adoração desses Voduns, assumidos nas fases de sua iniciação no
culto mina-jeje.
Filomena, substituta de Leocádia, na Casa das Minas, na ala dita
«Lado de Dambirá» onde passava os dias, sempre me contava minúcias
desse episódio de minha vida, salientando que minha mãe, ao vê-la
carregando Póli-Boji, isto é, em estado de transe, me deu a ele.
Algum tempo depois minha mãe, em novo encontro com Filomena,
que carregava Póli-Boji, perguntou se ele não me podia dar a Badé.
E, concordando o Vodun (que era senhor de Filomena, também
de minha mãe e de Andresa M aria), deu-me ele a seu amigo que, no
momento, estava incorporando em Mãe Hosana.
Com essas recordações nenhuma se mistura à de outra, da minha
meninice, caracterizando a violência fulminante, a brutalidade animal,
que transfiguram os Voduns, ora referidos, não raras vezes, como
ocorria entre as divindades dos gregos ou romanos, segundo a mito
logia destes.
Porque, para Herskovits, Badé ou Gbadé, pertence ao Panteão do
Trovão, tendo livre trânsito pelo Céu e pela Terra; e é um malfeitor
(evildoer) perfeito, que nunca se corrige.
Sua mãe, Sôgbô, lhe transm itiu a cólera, exaltando-se ele facil
mente, o que o impele a aniquilar tudo o que se lhe depara.
Ele é a voz estrepitosa e aterrorizante do Trovão, é a força que
deflagra a carga irregular dos raios, ziguezagueando entre nuvens, aba
tendo florestas, encapelando as vagas nos rios, lagos e mares.
Não obstante, grande fraqueza tem Sôgbô por esse filho, repreen
dendo-o apenas, gentil e maneirosamente, ante o estrondoso ressoar do
Trovão, murmurando, súplice: «Não mates! Não mates! Acalma-te! Não
te vingues da humanidade!»
Como Queviôçô cavalga a Serpente Arco-íris, Badé cavalga os co
riscos, enquanto Dadahô cavalga um corcel árdego e indomável.
O Trovão, deflagrado por Badé ou Gbadé, causa a eclosão dos ovos
dos lagartos, dos pitões e crocodilos, facilitando a multiplicação incon-
trolável de ninhadas e ninhadas desses animais, que se alastram pelo
universo.
E, já que Badé é forte e temerário, quando mata alguém, despedaça-
lhe, furiosamente, todas as partes do corpo.
Não há obstáculo, nem altura, nem distância que não vença, pois,
segundo a tradição acima referida, Sôgbô lhe deu a Serpente Arco-íris,
para o transportar por toda parte, a fim de que ele, como executor de
malfeitos, se movimente mais freqüentemente que os seus irmãos.
Assim, quando se movem as nuvens e são vistas à distância,
ouvindo-se a voz do Trovão, a gente sabe que a chuva está caindo,
embora se ignore onde.
Diz-se, então, que Badé está visitando «outros países».
Como Badé é um favorito de sua mãe, também é um poderoso
indisciplinado, à maneira de Avêrêquête, no Panteão do Céu.
Essas duas divindades, Badé e Avêrêquête, ao contrário de Sôgbô
— que é, entre os grandes Voduns, uma construtora, que rege as
grandes chuvas e detém o poder de criar —, não fazem outra coisa
senão destruir.
Badé ou Gbadé, segundo Milo, é identificado na figura de São
Pedro, mas esse autor acha apenas provável que esteja associado aos
Ventos, à Tempestade, aos Raios.
Num cântico, recolhido em terreiro do Haiti, é salientado, com iro
nia, que Badé não é manga (mangueira), nem cabaça, nem melão.
Quando eles me sondam é a Tempestade que sondam, ê!
Quando eles me sondam é o Raio que eles sondam, ê!
N u n c a u m p r ín c ip e p od e d a r u m r e i ao m undo, p o is a m ã e de u m r e i é,
P or d e fin iç ã o , u m a v a g a b u n d a ; de m odo q u e a d escen d ên cia s e in sc r e v e
n u m a lin h a p a tr ilin e a r rea l, q u e receb e u m a co n trib u içã o c o n sta n te d e m u
lh e r e s n ã o r e a is.
Este modelo nos é apresentado nos mitos de Bénin e de Sado, insistindo,
estes últimos, particularmente, sobre esse aspecto das coisas.
Oranyan, vindo de Ifá, desposou certa mulher de uma família de Bénin
— uma estrangeira.
22. N n «uii p laq u eta, in titu la d a S ã o Jo ã o B a p tista de A ju d d (C adernos C oloniais, L isb o a s .d .),
K dm undo C o rre ia L opes desdobrou u m cap ítu lo , o n ú m ero IX , sob o títu lo “ R ei M orto, Rei
P o sto ", com u m a n o ta de p é de p á g in a , d u p la m e n te cu riosa, j á pelo v a lo r de a n ed o ta, já
pela p u rtlc u la rid a d e de m o s tra r a convicção de um dos re is sacralizados em te r r a s do D aom é:
A danrlosan,
llnsa n o ta se p re n d e ao tre c h o do re fe rid o c ap ítu lo , red ig id o n e ste s te rm o s: “ N o an o seguinte,
ou cru p rin c fp lo s de 1750, A d an d o san , que j á re in a v a um pouco m al-hum orado, p rovidencialm ente
m o rr e u ,. . "
A t vem a a n ed o ta:
" C o n tra as su a s tenções. Os re is do D aom é n ã o m o rrem .
O uern ....... p a g a rá , se vós m o rre rd e s ? P e rg u n ta v a o c ap itã o B osm an a A dandosan, em p restan d o -
Ihe oem libras.
D escanse. Ku viverei sem pre, respondeu com g ra v id a d e ".
84
E m S ad o, a m u lh er que deu n a sc im e n to a A ja h u tó n ã o era u m a p r in c e s a :
n u m p rim eiro m ito , de fu n d o d aom ean o, u m a e sp o sa do R ei de S ad o e n co n
tr o u u m d ia a p a n te r a A g a s u q u e a em p ren h ou , d aí n a scen d o A ju h u tó do
c lã da m u lh er, q u e é n o m in a lm en te in d icad o no m ito , a fim d e m a r c a r bom
su a o r ig e m n ã o real.
N u m o u tro m ito, de fo n te d ao m ea n a , n ã o o fic ia l, d e sta v e z a m ãe de
A ja h u tó e r a u m a m u lh er do povo que d esp osou um p r ín c ip e d e B é n in ;
o p r ín c ip e p o ss u ía u m a o u tr a e sp o sa , de sa n g u e r ea l, q u e, en ciu m a d a , ven d o
a o u tr a m u lh er g r á v id a , co n se g u iu q u e o m arid o a r e p u d ia s se ; e la fo i
rec o lh id a p or m u lh e r e s do r e i Sado e seu filh o n a sc e u no p a lá c io : a c r ia n ç a
fo i A ja h u tó .
86
E, então, adianta, em relação à figura de Legbá:
87
e disforme, como o de Poronominare ou daquele herói da mitologia gua
rani apontado por Curt Nimuendaju, em terras dos Apapacuva.
Foi assim que o viu Arne Falke Ronne, registrando-lhe a alcunha,
em terreiros do Haiti, de Baron Sontag (enquanto Milo Marcellin o
chama Baron Samedi) dele dizendo que é um
u n angenehm er H err; e r is t a u ch W á c h te r d er F r ie d h o fe , doch v o r
a liem is t er f ü r ju n g e M ád ch en g e fá h r lic h , d a er, g e lin g e g e s a g t, ein
u n e r s á ttlic h e r E r o tik e r is t, d er in 24 S tu n d e n m it 3.500 F r a u e n fe r t ig
w ird . (T e x to a o lad o de u m a ilu str a ç ã o , n a ob ra Zum Amazonas, e re
fe r ê n c ia à s p á g in a s 3 2-75, r e sp e c tiv a m e n te , do a u to r c i t a d o ) . 24
88
E mesmo ao nome de outros Voduns juntam esse designativo: Toi
Póli-Boji, Toi Badé.
Acossi ou Sakpatá ou Xapanan, Azile ou Ezile e Azonce estilo
à frente das Pestes, Dores e Sofrimentos (físicos e morais).
O sincretismo vê neles os santos católicos Lázaro, Roque e
Sebastião.
Acossi é o Sakpatá ou Xapanan dos Iorubanos e, em certas cir
cunstâncias, Exu.
No fundo do Gume, da Casa das Minas, está Acossi, com a sua
comida num pequeno prato de argila, suspenso de um galho de pião-
branco, sua planta sagrada, que os botânicos apontam como sendo da
família das Euforbiáceas.
Característica dessa ligação de Acossi, por exemplo, com as Pestes,
principalmente com a Lepra, é m ostrar esse Vodun as mãos em garra,
ao dançar, como as mãos de um indivíduo atacado dessa enfermidade,
sendo-lhe o andar, também, trôpego e claudicante, naquela típica
marche en faucille que os leprólogos apontam nos lázaros.
As criaturas por ele possuídas ou incorporadas, isto é, levadas ao
estado de transe, se têm traços de beleza, no rosto ou em todo o corpo,
ganham máscara horrenda, deformações de monstros, crispam-se-lhes
os dedos das mãos e dos pés, emitem gritos mais parecidos a uivos,
tais os emitidos por histéricos e toxicômanos em delírio, urinam-se e
defecam, num relaxamento incontrolável do esfincter, e mostram ape
tite por terra e palha, do próprio leito ou da esteira em que se estor-
cem. E só voltam a si depois de fricções de óleo de dendê, goles do
mesmo e esconjuros ritualísticos, em dialeto africano.
Acossi ou Sakpatá ou Xapanan tem culto especial. Suas sacerdo
tisas (esposas ou mulheres) são denominadas Sakpatasi.
Segundo Marti, havia uma incompatibilidade ou oposição tradi
cional entre o rei do Daomé e Sakpatá (ou Acossi), como se lê textual
mente: entre le roi et les cultes qui n ’appartiennent pas à son clan,
manifestando-se da maneira plus aiguê dans le cas de Sakpata
(Sakpanan des Yoruba) le roi de la variole. 2526
Por essa razão uma Salpatasi, esposa do Vodun Sakpatá, não podia
ser rainha.
E Marti, que nenhum africanista brasileiro pode desconhecer, elu
cida mais outro aspecto dessa incompatibilidade ou oposição tradicional:
II faut ajouter qu’il y a une d’incompatibilité entre Sakpata et le roi du
Dahomey qui s’exprime aussi dans le fait que les temples de ce Vodoun
se trouvent toujours à Vintérieur des agglomérations, ce qui peut bicn
signifier que deux rois ne peuvent pas régner dans le même endroit.
25. A tra d u ç ã o dos tre c h o s a cim a é:
“ e n tre o re i e os cultos que n ã o p erten cem ao seu clã, m an ifestan d o -so da iim nelrit i i i i i I m
c o n tu n d e n te no caso de SaJcpatá (Salcpanan dos Io ru b n ), rei dn V a río la ” .
26. “ É n ecessário a c re s c e n ta r que ex iste u m a eBpécie de incom patibilidade e n tre Hwkpala «' o n l
do D aom é que se e x p rim e tam b ém no fa to de os tem plos dos V oduns se n c lm in u nnu|m> no
in te rio r dais ag lom erações, o que bem pode s ig n ific a r que dois re is nlO podfl......................
mesm o local".
Sakpatá ou Acossi é, como se vê, um Vodun poderosíssimo e im
pressionantemente estranho, com uma realeza indiscutível, realeza que
não é da Terra mas do Infinito.
No quadro traçado por Marti, da situação de direito e da situação
de fato, Sakpatá e Heviôçô desfrutam uma situação de fato.
A denominação dessa família de Voduns — Dambirá — revela estar
a mesma interligada à Cobra ou Serpente Sagrada, conhecida sob o
nome de Dam Aedo.
E isto porque (como no culto dos Voduns do Panteão iorubano,
jeje, ketu e nagô, têm lugar saliente o elefante, a pantera, o camaleão,
a tartaruga, o caranguejo, a aranha, o cachorro, o jacaré — consultem-
se a história, a literatura, a mitologia dos povos aqui referidos —
entre os animais citados a Cobra ou Serpente polarizava especial res
peito, veneração, encantamento e temor.
Daí o culto ofilátrico de Dambellah-Aedo ou Aido Hwedo, que
Herskovits nos apresenta no primeiro volume de sua monumental obra
sobre o antigo Reino do Daomé, com os objetos do culto a Da ou
Dan, no alto de uma página ilustrativa inicial e representando uma
das expressões da arte, no Daomé, a chamada appliqué-cloth.
Na Introdução da presente obra, da autoria de A rthur Ramos, ele
refere a descoberta do Prof. Donald Pierson, do «culto de uma árvore
sagrada no candomblé da Goméia, onde se fazem despachos para Pas-
coalina — mulher que as lendas dizem metamorfoseada em cobra.
A toda planta sagrada, encontrada nos terreiros ou nas Casas de
Ervas (dos herbanários estudados, cientificamente, pelo inesquecível
botânico teuto-paulista Frederico Hoehne e celebradas por um poeta
genial, Dom Ramón Del Valle Inclán), estão ligados espíritos benfazejos
ou malignos, seres mitológicos do mundo sublunar ou da entranha da
terra, e, em interessante simbiose, animais da fauna rastejante e alada,
aves e répteis, quadrúpedes e seres aquáticos.
Em minha obra, intitulada Moronguêtá, Um Decameron Indígena
(recorrendo-se às páginas 68, 69 e 148 do seu glossário e conjunto de
mitos, estórias e lendas), aparecem os tajás, da família das Aráceas,
com propriedades extraordinárias, do ponto de vista farmacológico e
mítico, tóxico e mágico. Ora, de um deles se diz que canta ou pia,
porque nele vive um pássaro encantado.
Do tajá-onça dizem que é seu companheiro um pequenino mas
temeroso felino; e do tam ba-tajá, que conserva na página inferior das
suas folhas uma miniatura de sexo de mulher. ..
Entre as folhas verdes, salpicadas de branco, dizem ocultar-se uma
cobra que estrangula intrusos invadindo o local onde o plantaram.
Os gregos tinham as hamadríades.
E os nossos pajés têm toda a flora das nossas selvas e campos,
enquanto nos terreiros de Salvador e de São Luís cultuam árvores e
90
arbustos, alguns até, trazidos do Continente Africano, acompanhando
os escravos no seu martirológio.
Donald Pierson registrou um fato estreitamente ligado à dendola-
tria, esse culto das árvores, que, vindo da remota índia, através de
séculos e séculos, se estenderia ao Continente Europeu, apontando-se
ali a igdrazil, celebrada por Carlyle em sua obra sobre os heróis.
Mas, quando os europeus chegaram às Américas, já os seus habi
tantes cultuavam certas árvores e sabiam utilizar ervas mágicas ou
míticas, não se desconhecendo, porém, que aos escravos africanos de
vemos a introdução de outras plantas que fui encontrar no Bogan de
Mãe Valentina, em Salvador, no Quêrêbetan de Mãe Andresa Maria,
em São Luís, no chão dos Batuques da Jurema, em Belém, e no centro
esotérico do santo-dá-me, onde a ayuasea ou caapi é cultuada, na Vila
Ivonette (cidade do Rio Branco, Estado do Acre).
Por isso Roger Bastide escreveria: «todo santo está ligado à deter
minada cor, a certos metais, a animais, a fenômenos metereológicos
e, também, como vimos, a certas plantas. . . »
E até dejetos de animais entram na farmacopéia cabocla e afri
cana, como acrescentarei.
Daí ter Mário de Andrade escrito o seu Namoro com a Medicina,
onde a escatologia é salientada, à maneira direta, erudita e saborosa
desse escritor, cuja obra, em toda a sua dimensão arquitetônica, ainda
não encontrou, na atual geração, um crítico à altura de a louvar desas-
sombradamente ou de a criticar com absoluto rigorismo, no que res
peita à literatura e às artes plásticas.
Na mesma página, em que A rthur Ramos cita Donald Pierson,
vem mais este trecho digno de apreciação:
Com a a te n ç ã o v o lta d a p a r a o a ssu n to , A y d a n o do C outo F e r r a z fo i en con
tr a r n a C asa da babalaô R aim u n d a, n a A r e ia da C ruz do C osm e, u m a
cob ra d en tro de u m c a ix o te de g r a d e s.
. . . n o te i m u ito s d e n te s d e e le fa n te s , de s e te p é s de co m p rim en to e de
u m a a lv u r a d eslu m b ra n te. O que m e c a u s a v a v e r d a d e ir a p en a e r a v e r e ss e
lu g a r cob erto de sa n g u e h u m an o. O b serv a -se tam b ém n a lá p id e u m a lo n g a
se r p e n te de tr in ta p é s de co m p rim en to e s e is de g r o ss u r a , no m eio, fa b r i
ca d a com e ss e s d e n te s, a r tistic a m e n te e n c a ix a d o s u m no ou tro. A su a g o e la
e s ta v a a b e r ta ; u m a lâ m in a de cob re fir m a v a a su a lín g u a ; p a r e c ia v ir
do a lto e d e sliz a r ao lon g o da lá p id e p a r a se in tr o d u z ir n o tú m u lo.
A o c en tro da fa c h a d a (u m a d a s do P a lá c io de B é n in ) s e e le v a v a u m a
p ir â m id e de q u a r e n ta p és de a ltu r a , no cim o d a q u al e s ta v a su sp e n sa
u m a se r p e n te de cob re, c u ja cab eça d e sc ia a té a te r r a , e cu jo corpo era
tã o g r o sso com o o de um h o m em . . . e s ta s e r p e n te se en c o n tr a v a a li h á
m u ito s sécu lo s.
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A letra do cântico, de circunstância, apropriado, é a seguinte:
Baiquim xô eu odan
rereré un afan (b is )
rereré baiquin xô eu
ce Boçucó un afan
rereró baiquin xo eu
ce Doçu etâ un afan
rereró baiquin xô eu
ce Doçu Liçá un afan
baiquin xô eu odan
rereró afan (b is )
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E nenhuma dúvida deverá levantar-se contra a sua posição na
hierarquia dos Voduns, que, tudo o demonstra, e, lado a lado com Dam-
birá ou Dambellah, Oueddo, Dambellah Siligwé, Dambellah Kato, é
estudado minuciosamente por um Alfred Métraux e um Milo Marcellin
na paisagem geográfica, mítica e mística do Haiti.
Milo Marcellin escreveu:
29. B oris de R ach ew ilts, à p á g in a 109 d a su a o b ra B la ck E ro s, nos leva a conhecer c e rta s p rá tic a s
observadas, n a Á frica, re la tiv a m e n te à h ie ro g a m ia , isto é, ao coito de seres h u m a n o s ou de
a n im a is com deuses, n estes p erío d o s: “ I t is in th e c o n te x t o f ritu a lis tic m agic th a t w e fin d
th e o rig in a n d ju s tific a tio n o f hiero g am y , th e c o u p lin g of m a n a n d god, o r o f th e g od’s
re p re s e n ta tiv e . In th e e ig h te en th c en tu ry , L a b a t re fe rs th e m a rria g e , in kingdom o f J udah,
o f g irls c o n sa c ra te d to th e G re a t S e rp e n t. W e h av e a lread y described how th e M usarras,
th e K in g ’s d a u g h te rs o f Zim babw e, coupled w ith a sac re d s e rp e n t, th e in c a rn a tio n o f d iv in ity ;
a n d w e m e n tio n ed th e K ikuyu g irls, w ho w ere ritu a lly deflow ered by th e ir p rie s ts, a s re p re s e n ta tiv e
of th e god-p y th o n . A m o n g th e E w e, in th e W est Á fric a , n um erous v irg in s a re c o n sa c ra te d
to a d iv in e sn ak e, th e p rie s ts a g a in p e rfo rm in g th e h ierogam yc a ct. T h e rite is associated
w ith o rg ie s held w h en th e b arley b eg in s to quicken, a n d is in ten d ed to e n su re th e fe rtility
o f th e livestock a n d p le n tifu l h a rv e st. I n A fric a n symbology, th e s e rp e n t is in v a ria b ly phallic
and fe c u n d ativ e ” .
T radu zo :
“ É no co n tex to d a m á g ic a ritu a lís tic a que acham os a o rigem e ju s tific a tiv a d a h iero g am ia, a
cópula do hom em e do deus, ou do re p re s e n ta n te do deus. N o século X V III L a b a t se re fe re
ao casam en to , no re in o de J u d á , de m o ças c o n sa g ra d a s à G rande S erp en te. J á descrevem os como
e n tre os M usarras a filh a do re i de Zim babw e co p u la com a s e rp e n te sag ra d a , e n ca rn a ç ão
d a div in d ad e; e m en cio n am o s as m oças de K ikuyu, que são ritu a lm e n te d eflo rad as pelos
sacerdotes, como re p re s e n ta n te s do deu s-p itão . E n tr e os Ew e, n a Á fric a O cidental, n um erosas
v irg e n s são c o n sa g ra d a s à s e rp e n te div in a, re alizan d o o sacerdote a h ie ro g a m ia . O rito é
associado com o rg ia s q u an d o a cev ad a re p o n ta e p resu m e-se e s ta r asseg u rad o o co n ju n to da
fe rtilid ad e <• a p le n itu d e d a colheita. N a sim bologia a fric a n a a s e rp e n te é in v a ria v e lm e n te fálica
o fe c u n d an te" .
96
E noutro tópico acrescenta:
D a m b ella h p r e sid e à s fo n te s e a o s rios. D izem q u e e le tr a b a lh a o r d in a r ia
m e n te n ’á g u a e, p or v e z e s, o c h a m a m mait de l’eau (se n h o r d a á g u a ) ,
sob retu d o q u an d o e le m ora em u m a tête d’eau ( f o n t e ) , onde, não raro, se
a b r ig a u m a cobra.
N o s d ia s c o n sa g r a d o s a D a m b ella h (te r ç a e q u a r ta ) , s e u s se r v id o r e s
p r ep a ra m -lh e o le ito com le n ç ó is de lin h o b ran co, bem lim p os. P ró x im o a
seu le ito , sob re u m a p eq u en a m e sa , co b erta por u m a c o lch a b ra n ca , e le s
lh e e rg u em u m o r a tó r io : u m a p eq u en a c a ix a q u a d ra d a , em m a d eira . N o
fu n d o da c a ix a e sp e ta m a im a g e m do sa n to que o r e p r e se n ta , e, d os lad os,
o s crom os d os s a n to s c o r r e sp o n d e n te s a o s loas q u e caminham com ele.
D ia n te de su a im a g e m a cen d em u m a v e la de g o r d u r a de b a le ia — sím b olo
de su a p u reza. C olocam n a c a ix a u m a te r r in a con ten d o fa r in h a france (d e
fe r m e n to ) en cim a d a por u m ovo, u m p a co te de a ç ú c a r b ran co, u m a g a r r a fa
de c o la , u m a x íc a r a de c a fé , u m sa b ã o , u m p en te, u m a esc o v a , u m a
97
Iiouppe ( b o r la ? ), u m a c a ix a de p ó-d e-arroz e um v id ro de p e r fu m e . A g o ra ,
se a p e sso a q u e s e r v e é u m a m u lh er, o m a rid o d ela d eve a fa s ta r -s e de
seu le ito , porque, d izem , o loa é te r r iv e lm e n te ciu m en to e pode m a tá -la ;
se é hom em , s u a m u lh er n ã o pode dorm ir no m esm o ap osen to.
Papa Dambellah
Moin besoin baignin là-a
D’eau lan bassin moin
O Dambellah Oueddo
M’besoin baignin là-a
D’leau lan loa-yo. 31
31. P a p a i D am bellah
ten h o necessidade de ban h a r-m e ali
« água está n o m e u laguinho
ô D am bellah Oueddo
necessito banhar-m e ali
a água está n o lago dos loa-yo
98
Essas longas citações da obra Mythologie Vodun (Rite Rada), da
autoria de Milo Marcellin, foram feitas aqui porque, adiante, noutras
notas, terei de salientar a validade das observações do referido autor,
bem como das nossas, quer na Casa das Minas, de São Luís do Ma
ranhão, quer noutras localidades do Brasil, principalmente da Amazônia
e de parte do Nordeste.
Ofereci, no desdobrar destas Notas, com particular realce e seguro
propósito, dentro da estrutura de cada família de Voduns, uma relação
dos que, principalmente, fazem parte do autêntico Panteão mina-jeje, e
deles ofereci, também, algumas particularidades genealógicas, mitoló
gicas e éticas.
Impõe-se reafirm ar, entretanto, que tais Voduns, na atualidade,
não obstante a situação de decadência por que está passando a tradi
cional Casa das Minas, de Mãe Andresa Maria, ainda baixam nas
gonjai e vodunce, isto é, nas suas filhas, esposas, mulheres.
Mas nem sempre é possível pôr-se à flor da memória das velhas
— Sobreviventes do grupo a que pertenceram minha Mãe e minha Tia
Ida — os nomes de alguns Voduns que subiram definitivamente para
os seus misteriosos e inacessíveis domínios, no Céu ou nas profun
dezas da Terra, dos Mares, Rios e Fontes, no mundo sublunar ou na
paisagem tropical do Continente Africano, num incontrariável retorno.
Agongone, como registrei acima, não baixa mais; e Zomadone ra
ramente o faz; e, quando isso acontece, sabe-se, a sua presença se
notabiliza pela violência das manifestações que o tornam temido. Porque
esse patriarcal Vodun se caracteriza pela posse e utilização de forças
extraordinárias, próprias do nível hierárquico que ele desfruta, no
Panteão dos Grandes Deuses cultuados pela gente da Casa das Minas
e da Casa de Nagô.
Adonobrê, igualmente, não baixa mais; e os Egoun ou Eguns (espí
ritos dos mortos) que ainda baixam, por exemplo, num terreiro da
Ilha de Itaparica, na Bahia, não baixam mais na Casa das Minas,
desde muito antes da direção de Mãe Andresa Maria.
Ocorre, do mesmo modo, que algumas senhoras já baixam ra ra
mente e outras já subiram definitivamente. Essas senhoras, como se
sabe, ao baixar, se assemelham a crianças, e aos Toquenos ou Toquens,
perdendo a autoridade de que desfrutam ao lado dos seus esposos, os
Voduns.
Enumeram-se, entre elas, Sandolêbêbe, Omaquibe e Sanlêvive.
E a família de Savalu?
Pesquisando, recentemente, as origens e as ações dessa família,
não obtive uma informação satisfatória do desaparecimento de Savalu
ou Savalou ou Xavalô. E muito menos sua redução ao número de
Voduns indicados por Octávio da Costa Eduardo, na obra The Negro
in Northern Brazil, isto é, Zomadone, Agongone, Zaka e Doçu Agaja.
Não encontrei referências a Savalu, como Vodun, nas obras de Frobe-
99
nius Herskovits (Spieth, citado por este, sempre que se tra ta de etno
logia religiosa), Métraux, Bastide e Marti.
Pierre Verger, à página 553 de sua obra Notes sur le culte des
Orisa et Vodoun (Dakar Ifan, 1957), se refere a Solavou apenas, dando-o
como companheiro de caçadas de Tohosu Azaka, sem adiantar elementos
esclarecedores da estrutura divina ou mítica por ele chefiada e à qual,
sem dúvida, deve o próprio nome, aliás como aconteceu que outros
Voduns dessem às respectivas famílias aqui relacionadas.
No entanto o mesmo Pierre Verger (no estudo intitulado Le culte
des vodoun d’Abomey aurait-il été apporté à Saint Louis de Maranon
par la mère du Roi Ghezo? — inserto na Mémoire n9 27 (Dakar Ifan,
1953), repito, o mesmo Pierre Verger dá a Savalou o nome de Azaka
que desempenha papel importante ao lado dos Tohosu, ligados a Zo-
madone. E seria um enjeitado, sem dúvida, mas filho de um rei.
Face a essas deficiências, procurei ouvir pessoas da Casa das Minas
e, além dessas, outros estudiosos das religiões africanas no Maranhão.
Zuleide Figueira de Amorim — que o escutou, decerto, da boca
de Amância Evangelista Vianna — me deu esta contribuição.
S a v a lo u a p a receu , m iste r io sa m e n te , e n tr e o s T oq u en s, n a f ig u r a de um
recém -n a scid o , d en tro de u m a ca b a ça ; e n e le v ir a m lo g o u m b a sta r d o e
um en je ita d o . A fe iç o a n d o -se à q u ela c r ia n ç a , o s T oq u en s, tr a ta r a m de criá -
la e in s tr u í-la . E r a u m m en in o. O ra, a ss im q u e e s te se fe z hom em , erg u eu
a v o z n u m c â n tic o , a tr a v é s de c u ja le tr a s e o u v ia o n o m e S a v a lo u . E n tã o ,
o s T oq u en s so u b era m q u e e le er a d as te r r a s de S a v a lo u e lh e d eram por
nom e o to p ôn im o, tã o con h ecid o p e lo s g e ó g r a fo s e etn ó lo g o s, p o is e le s fa z ia m
p a r te do a n tig o R ein o do D aom é.
100
Segundo ouvimos de Zuleide Figueira de Amorim, a letra daquele
ponto deveria ser, provavelmente, a seguinte:
Agongono dexê Savalou Naê afan elô dexê
101
Míle Valentina, em Salvador (Bahia), me declarou que o seu Bogun
c.slava ligado tradicionalmente a essa localidade e ao povo que nela
vivia. 10 declarara, numa entonação de orgulho: Eu sou Mahi-jeje.
10 isso me foi patenteado através das cerimônias a que ali assisti:
sacrifícios e danças, cânticos e toques de tambores, além dos trajos
das laôs, luxuosos todos eles, em contraste com os das noviches e
gonjais, cultuadoras dos Voduns, da Casa das Minas e da Casa de
Nagô, em São Luís do Maranhão, mas com a mesma interligação so
cial, ética e religiosa dos trajos tradicionais usados na África.
provável que, continuando minhas pesquisas e estudos sobre o
Negro do Maranhão, recolha mais dados relativos à personalidade de
q uando ele deu u m b an q u ete, em com em oração de nosso M estre (o últim o su ltão de M arrocos,
A bu’I-H a san , p a r a o q u a l os c o m an d an tes, doutores, qadi e p re g a d o re s fo ram co n v id a d o s), eu
o» acom panhei.
U m a e s ta n te foi lev ad a a té lá, e o A lcorão foi lido, e eles re z a ra m pelo nosso M estre
AbuM-IInsnn, e, tam b ém , pelo M ansa Sulaym an. Q uando a c erim ô n ia term in o u , encam inhei-m e
p a ra sau d a r M ansa S u lay m an . O qadi, o p re g a d o r, e Ib n II F a q u ih , lhe p e rg u n ta ra m quem
eu e ra , e ele lhes resp o n d eu em su a lín g u a. E les m e d isseram : O su ltão diz a você: ‘Dei
g ra ç a s a D eus’, a ssim o disse, ‘Louvado s eja D eus e g ra ç a s em todas a s c irc u n stâ n c ia s ’.”
N ão m enos in te re s sa n te e ilu s tra tiv a s são as descrições, sub o rd in ad as ao te m a ‘‘P o m p a e
C irc u n stân c ia ” . “ Sob u m a so m b rin h a de seda, en cim ad a p o r um p á ssa ro de ouro, a passos
lentos e p a ra d a s freq ü e n te s, o su ltão ch eg av a ao p e m p i (p la ta fo rm a , sob u m a árv o re, de onde
o su ltã o d av a a u d iê n c ia s ).
O seu tra jo co stu m eiro e ra u m a tú n ic a de veludo verm elho, de fa b ric a ç ão européia, cham ada
m u ta n fa s ; o sultão e ra precedido p o r m úsicos que p o rta v a m gu im b ris de ouro e p ra ta , duas
g u ita rra s , e a tr á s dele iam trê s c en ten a s de escravos arm ados. C hegado ao p e m p i, o sultão
p a ra v a , o lh av a os c irc u n sta n te s em redor, su b ia e sen tav a-se à m a n e ira de um p re g a d o r subindo
no p ú lp ito de u m a m esq u ita. Ib n B a ttu ta a p re s e n ta os N eg ro s como o povo m a is subm isso e
o m ais a b je to n o seu c o m p o rta m e n to em re la ç ão ao re i, declarando-lhe o nom e M ansa
S ulaym an Ki.
No e n ta n to , re la tiv a m e n te ao te m a S eg u ra n ç a e J u stiç a , Ib n B a ttu ta s a lie n ta que e n tre as
‘adm iráveis qualid ad es desse povo’ e ra m de n o ta r-se :
1. O pequeno n ú m ero de atos de in ju s tiç a e n co n trad o s a li; porque o N egro, d e n tre todos os
povos, são aqueles que ab o m in am in ju s tiç a ; o su ltão não p e rd o a n en h u m acusado de in ju s tiç a .
2. A com p leta e g e ra l liberdade é d e sfru ta d a n a te rra .
li. O s N eg ro s n ão confiscam os bens dos hom ens b ra n c o s (que são do N o rte d a Á frica ) _que
m o rrem em seu p a ís, n em m esm o q u ando estes consistem em g ra n d e s tesouros. Eles os depositam
no p a ís, com um hom em de c o n fia n ç a, e n tre os b ran co s, a té que aquele, que te m d ire ito aos
bens, se a p re se n te e deles tom e posse.
4. E les dizem su as p reces p o n tu a lm e n te ; assid u a m e n te aten d em aos e ncontros dos fié is e castig a m
as c ria n ç a s que a eles faltam .
N a sex ta -feira , quem q u e r que chegue ta rd e à m esq u ita, e n c o n tra onde re z ar, v isto que a m assa
p o p u la r é g ra n d e . E x iste o costum e de m a n d a r u m servo à m esq u ita p a r a e ste n d e r o ta p e te
p ró p rio p a r a re z a r como d ív id a e em lu g a r p ró p rio , e ali p e rm a n e ç a a té que os seus senhores
cheguem . E sses ta p e te s são de folhagem de árv o res, sem elh an tes à p a lm e ira , m a s sem fru to s.
r>. Os N eg ro s exibem fin o s tra jo s n a s sex ta s-fe ira s. Se, p o r acaso, um hom em n ã o possui m ais
do que u m a c am isa ou u m a só tú n ic a , de q u alq u er fo rm a ele a le v a rá a n te s de i r à prece
pública.
6. Ele cu idadosam ente a p re n d e rá o A lcorão de cor. A quelas c ria n ç a s que disso se descuidarem
serão po stas n a co rre n te , a té que te n h a m m em orizado o A lcorão.
N um d ia de fe s ta eu v isite i o qadi e vi c ria n ç a s a co rre n ta d as. E p e rg u n te i: ‘N ão a s podes
d e ix a r em lib e rd a d e ? ’ E ele m e resp o n d eu : ‘Som ente q u ando souberem o A lcorão de c o r’.
N o u tro dia, ao p a ss a r p o r um jovem N eg ro , vi um la ta g ã o m uito bem tra ja d o que tin h a um a
c o rre n te nos pés. E disse ao m eu c o m p an h eiro : ‘Que aconteceu com esse ra p a z ? M atou
alguém ?’ O jovem N e g ro ouviu o que eu d isse ra e com eçou a r ir . ‘E les o a e o rrre n ta ra m , sim
plesm ente p a r a que m em orizasse o A lcorão’.
M as Ib n B a ttu ta , en u m eran d o os costum es dep lo ráv eis daquele povo, se m a n ife sto u c o n tra a
nudez d as m ulheres, esc ra v a s e, a té m esm o, d u as filh as do sultão, e isso n a vigésim a noite
do R am adã. N eg ro s cobrem a cabeça com p o e ira e cin za em s in al de boas m a n e ira s e de
respeito. E bufões ap arec e m em fr e n te ao su ltão quando os p o e ta s re c ita m seus cânticos de
louvor. E um g ra n d e n ú m ero de N eg ro s come c a rn e de cães e de ju m e n to s” .
E n ten d i, lendo a o b ra de B asil D avidson, que isso n ão b a sta v a , e não s e ria despropositado o
gesto de to r n a r conhecidos os ex certo s das o b ras d a lg u n s a u to re s d a an tig u id a d e a fric a n a , pois
au to re s como Ib n O m ari e Ib n B a ttu ta , aq u i tra n s c rito s , podem esclarecer c erto s asp ecto s das
p a isa g e n s do Im p ério de M ali, q u a n to o do R eino do D aom é, re v e la r a fisionom ia físic a e a
e s tr u tu ra m o ral do N egro, naqueles velhos cen tro s de c u ltu ra em n a d a in fe rio re s aos do O cidente.
Daí poder-se co m p reen d er e a d m ira r o orgulho dos descendentes de N egros escravos de M inas
(le ra is, B ahia, P ern am b u co , M aran h ã o e m esm o d a A m azô n ia, quando referin d o -n o s à origem
dos seus an tep assad o s p ro clam am : “ M in h a avó e ra de L agos, do D aom é” , como europeus se
dizem do Lisboa, de C ádiz ou de P a ris .
Mãe N ena, N ochê da C asa das M inas, m e d izia: “ M am ãe e r a C abinda; e M ãe V a le n tin a , do
Bogun do Salvador (B a h ia ): M eus a v ó s eram de M ali” !
102
Savalou, porque suas aventuras devem constar de entrecho das que no
tabilizaram Azaka e Zomadone.34
Jagôrôboçu, que é um Toquen, não aparece na relação de outros,
constantes das famílias Davice, Quêviôçô e Dambirá, mas ele baixa,
freqüentemente, em Enedina de Oliveira, uma informante maranhense,
das relações de Zuleide Figueira de Amorin, em cujo Quêrêbêtan, na
Estrada do Rio Grande, em Jacarepaguá (Rio de Janeiro), tive a
oportunidade de vê-lo manifestar-se.
Ele está ligado a Daco e, tanto no trajo como na maneira de
dançar e de cantar, corresponde integralmente ao que pode ser obser
vado na figura de outros Toquens e Voduns da Casa das Minas de
São Luís.
Voltando a apreciar o fenômeno de subir, de desligar-se desta ou
daquela filha, que cultua as divindades daomeanas ouiorubanas, cabe-
me informar que grande é a dedicação de todos os fiéis à religião
dos Voduns e, em particular, da que os recebia.
A falta de comparecimento às festas do calendário respeitado ali,
a esquivança ou desleixo no contribuir, com oferendas, velas, azeite,
animais propiciatórios, dinheiro; a não-participação nos trabalhos ou
nos preparativos das festas; o desrespeito às normas litúrgicas, os de
sentendimentos pessoais, podem concorrer para que um Vodun suba,
não se manifestando mais na filha que o tinha como senhor ou santo
ou pai, a quem se deve veneração e respeito.
É oportuno salientar-se aqui que os Voduns, em suas manifestações,
as mais dasvezes imprevistas, baixam até sobre a cabeça de uma
criança, cuja idade não seja inferior a quatro anos, levando-a a parti
cipar das danças, na plenitude do transe, como se vê ocorrer com
adultos.
E, desde então, todos sabem a quem aquela criança pertence, a
este ou àquele Vodun, ficando obrigada a cultuá-lo, embora nela bai
xasse, incorporasse numa idade tão tenra.
Moças e senhoras — e o mesmo ocorre, embora não freqüentemente,
com jovens e senhores — por ocasião das tradicionais festas da Casa
das Minas e da Casa de Nagô, igualmente, recebem um Vodun, inde
pendentemente da própria vontade, de preparação anterior, de sugestão
de uma gonjai ou noviche, sem conhecida ou manifesta simpatia pela
estrutura religiosa da Casa ou subordinação a uma feita.
E isso denuncia logo a necessidade de uma iniciação regular da
criatura que recebeu ali o Vodun, nela baixou ou nela, melhor diria,
se incorporou.
Mas, enquanto essa iniciação necessária não se realiza, continuará
ela a receber o Vodun que a elegeu para filha ou esposa.
34. A kabá foi o te rc e iro R ei do D aomé, segundo P ie rr e V e rg e r; e, sendo um T ahosu, teve com n
R ain h a K ouende um filho a n o rm a l: Zom adone.
U m o u tro T ahosu, n a tu ra l de S aavalou, e ra c o m p an heiro de Zom adone n a s c aç a d a s e n o u tra s
ativ id ad es e sp o rtiv a s c de subsistência.
O p rim eiro sacerdote de Zom adone foi A bada, em c u ja cabeça ele baixou, à sim ples vlbrnçAo
du um anoí/we.
103
IV
Um dos mais singulares fenômenos, dentre os observados nas alu
didas solenidades, a que comparecem os Voduns mina-jejes, é, sem
dúvida, este ou aquele baixar, na mesma ocasião, sobre a cabeça de
várias de suas filhas ou esposas, numa igual distribuição das forças
deflagradas pelo transe místico.
Essa particularidade me foi apontada com relação a Póli-Boji, que
baixava, ao mesmo tempo, sobre a cabeça de Mãe Andresa Maria, de
Felicidade Nunes Pereira e das filhas, gonjais e noviches Filomena,
Zaíra e Laura.
E, ainda hoje, o mesmo fenômeno pode repetir-se, naturalmente.
A estampa que representa uma tartaruga adulta (ver Caderno
Iconográfico n. 19), de cujas patas, dir-se-ia, partem feixes de raios
luminosos na direção de pequenas tartarugas, dispostas em semicírculo,
ilustra esse fenômeno a contento, tanto mais quando se sabe que a
tartaruga é, na mitologia e na religião da gente daomeana, possuidora
de densas forças mágicas, idênticas às atribuídas aos feiticeiros, senão
aos Voduns.
Fora da Casa das Minas recolhi a informação de que Mãe Andresa
possuía uma estampa colorida ou carta de baralho, trazida da África,
representando esse fenômeno.
Interpelando ali Amância Evangelista Vianna, a respeito dessa
estampa ou carta de baralho, revalidou ela a informação e descreveu
a figura aqui apresentada, particularizando-lhe o simbolismo.
O baralho, emprestado a um estudioso, freqüentador da Casa das
Minas, nunca foi devolvido à Mãe Andresa Maria.
V
Alguns Voduns, aqui relacionados nas suas respectivas famílias,
têm nomes correspondentes aos dos Orixás dos terreiros da Bahia,
podendo essa particularidade ser apreciada num confronto com o que
se deve a uma pesquisa de Pierre Verger, verificável in Dieux d’Afrique:
V od u n s O rix á s
Legbá 35 Eschou
Gou ou Gu Ogun
Agbé Ochoxxi
Sakpata o u Azoan Omolu
Sobo ou Badé Shangd
Aziri Oiwlwun
Olixua ou L í h h i i Oiwliala
ar». A r th ui* Rum os, no cap itu lo XTÍ, riu I n h â ;\ n fi opoloi/ia liraailcira (edição d a C asa do
Km! 1 1ri:1111«‘ rio ISnuril. Itlo «In Jn n . ín» i'' i • anei-lnçnn rio» deuses iorubanos, focaliza
Kxu (K sh u ), esorevcm loi p a la v ra i|im p a n e » d e riv a r rio *hu, escuridão0.
K, prosseguindo, a firm o quo Itíx u A um OH* A «pio, mesm o a n te s de c h eg a r ao B rasil, já
h avia híiIo assim ilado ........Ilubo pel.m •mImmImiiAi I........... .. •I!• •**». Itenlm onte, é um a poderosa entidade,
dotaria riu poderes molAfloos espoelals, euihm o •>.. N ouros a fric a n o s lhe p re s te m culto, como
aos outro s OrlxAs, i • lininurio iaiuhAio Im**•«. Kleulut, nume rio o rig em d a o m e an a (L é g b a ) .
104
E Melville Herskovits, num estudo comparativo dos deuses africa
nos e dos santos católicos, resultante das suas pesquisas no Brasil,
Cuba e Haiti, mostra que Obatalá, por exemplo, corresponde à Virgem
das Mercês, em Cuba; Orixalá (Oxalá) corresponde ao Senhor do
Bonfim, no Rio de Janeiro e na Bahia; Xangô corresponde à Santa
Bárbara, na Bahia; Legbá corresponde ora a Santo Antônio, ora a
São Pedro; Ogun corresponde a São Jorge e ao Diabo; Oyá é Tyansan,
e corresponde a Santa Bárbara. E Xangô é Agonjá (o Jovem), ou
Xangô Dadá, e corresponde ao Senhor do Bonfim. Mas mesmo corres
pondendo a Santo Antônio e a São Pedro, Legbá, ainda hoje, é con
fundido com o Diabo.
Verifica-se, na aludida relação, que as divindades africanas osten
tam diversos nomes, acontecendo o mesmo, porém, em não menor pro
porção, entre os Voduns da Casa das Minas, ou melhor, direi, no
Panteão das divindades africanas, que ali são cultuadas, tais como
Ogun Obira, Ogun Meji, Ogun Medji.
Essa diversidade e abundância de designativos, apontadas com re
lação a Voduns e Orixás, foram assinaladas por Otávio da Costa
Eduardo em sua obra The Negro in Northern Brazil.
P a r a os seus c re n te s ele n ã o é malévolo. R ep resen tam -n o , e n tre os Iorubas, p o r u m a m assa
cônica de b a rro , onde in c ru sta m conchas e fra g m e n to s de fe rro , que fazem o p a p el de olhos,
boca, etc. Seu culto é g e ra lm e n te sep arad o do dos ou tro s O rixás. S acrificam -se-lhes galos.
E llis descreveu esse O rix á como u m a divindade fá lic a a quem se fa z ia m o u tro ra sacrifícios
hu m an o s, em ocasiões especiais.
E x u é consultado tam b ém no s ato s d a v id a d iá ria , devido aos seus e x tra o rd in á rio s conhecim entos,
ou d ire ta m e n te pelos seus fiéis, ou a tra v é s dos seus sacerdotes. São usados como in stru m e n to s
de c o n su lta dezesseis conchas de cow ries. E x u e stá tam bém em conexão com Ifa , o oráculo dos
Io ru b as, que é objeto de cultos especiais, de fin s divin ató rio s.
M elville J . e F r a n c is S. H ersk o v its, n a o b ra D ahom ean N a rr a tiv e , nos a p o n ta m como p roezas
de L eg b á (E x u , ev id en tem en te) a s que su b o rd in a ra m ao títu lo : “ H ow L eg b á becam e chief of
th e gods” . “ H ow m a g ic becam e a h u m a n skill” . “ M an a g a in s t th e c re a to r” . “ H ow m agic
sp re a d ” (n*> 9, p . 139).
E ali vem a a firm a tiv a ou in fo rm a çã o de que L eg b á (E x u ) e r a um deus.
V eja-se:
“ L o n g ago, L eg b á w as th e la st o f th e gods. O ne day M aw u sa id to th e gods he w ould show
th em so m eth in g . H e w ould show th e m who be th e ir chief. M aw u th e n gave th e m a gong, a bell,
a d ru m , a flu te a n d said w hoever took ali th e in stru m e n ts, a n d played th e fo u r to g e th e r and
danced to th em w ould be th e ir chiefs.
H evioso said, ‘I am v ery s tro n g . I c an do a li’. H e trie d . B u t he failed.
M aw u called on Gu a n d A g e to try . A ge said, ‘I am a h u n te r. I have g r e a t stre n g th . I can do
e v ery th in g ’. H e trie d an d failed. G u carne. H e said h e had fire . H e m ade m a n y th in g s. Ho
w oud do it. H e trie d , a n d he, too, failed.
N ow M aw u called alí th e gods to g e th e r a n d asked L eg b á to tr y a n d did ali. H e stru c k th e
d ru m ; he p layed th e g o n g ; h e r a n g th e bell; h e blew in to th e flute, a n d ( a t sam e tim e)
m ade ali th e g e stu res o f th e dance. M aw u said to him , ‘N ow I w ill give you a w om an whoso
n am e is K o n ik o n i’. A n d M aw u said to th e o th e r gods th a t L eg b á w a s to b e th e f ir s t am ong
them .
N ow L eg b á said h e w ould sing, an d h e san g .
I f th e house is p ea cefu l
I f th e fie ld is fe rtile
1 w ill be v e r y h a p p y .
N ow L e g b á h a d know ledge, an d b e g an to m ak e m agic charm s. H e w a s th e f ir s t to m ak e them .
H e m ade a s e rp en t. T hem he p u t th e s e rp e n t dow n on th e ro a d to th e m a rk e t, a n d he
com m anded th e s e rp e n t to b ite th e sellers a n d th e buyers. O nce th e s e rp e n t b ite them . 'Givo
m e so m eth in g , an d I w ill cu re you*. I f th e y g ave h im som ething, he w e n t a w ay to buy am ua,
an d p a lm oil, a n d d rin k in g w a ter. T h e n h e a te ali a n d d ra n k ali O ne day sem eone ankod
L egbá, ‘w h a t is th a t, p o in tin g to h e s e rp en t, th a t w hich bites people’ ?
L eg b á a n sw e re d h im , ‘I t is m a g ic ’. L eg b á said to th is m an , ‘B rin g m e tw o chlckons and
eig h ty cow ries a n d som e stra w , an d w ill m a k e one fo r you’. So L eg b á began to m ake m agic
ch arm s fo r th is m an . L e g b á led th is m a n dow n th e charm s. W hen L eg b á said to th ro w bm\U
th e lia n a , th e lia n a becam e s e rp en t, a n d b e g an to b ite people. T hen, L eg b á gave him lha
m edicine to c u re th ese people. T h e m a n w as called A w é, a n d w as L eg b á w ho guvc m agic
ch arm s to Awé.
N ow , M aw y w as a n g ry . She called L eg b á a n d said to Legbá, ‘N ow o f som eono doou n o t *«•«'
you, w ill n o t do a g a in ’. N ow L eg b á is fo rev e r a vodun. A w é is a m an . So ha oontlouod to
105
Elas são comuns nas Casas daomeana e iorubana, isto é, das Minas
o de Nagô, nas conversações quotidianas, sendo ali que o autor, ora
citado, registrou que Póli-Boji recebe os nomes seguintes: «Dada-Missu-
Cone-Jeko, Damede, Metonji, Lakaba, Lube, Adonovi, Vipenhon, Sa-
dono, Abrogevi, Toi Hanni, Hae, Hansci. E Agongone é distinguido como
o de Savalou, Hoso, Lise, Ahoso, Hompeze, Tripapa, Duheme. Na Casa
Ioruba (Nagô), Xangô é conhecido pelos nomes de Keviôsô e Badé».
E Otávio da Costa Eduardo se estende aos nomes (muitos deles
honoríficos ou correspondentes à particular ação do Vodun) de Aba-
kuoso e Gunoco, de Ogun-Ogun-Ota, Ogun Ona, Ogun Moço.
Moço e Velho são designações para distinguir Voduns, tal como
entre os romanos: Plínio, o Velho e Plínio, o M oço...
nm ke charm s. A w é becam e ch ief o f m agic. W hen som eone w ished to m ak e a charrn, h e cam e
to him a n d b ro u g h t ali th a t w a s needed a n d A w é took th e p lace of L egba. So A w é w e n t
everyw here an d asked w ho w a n te d to m ak e c h a rm s? T h en h e gave him c h arm s a n d d isappeared.
H e gave th e m ag ic c h a rm s to everyone. H e also g ave c h arm s to those w ho do evil” .
M as L egb a a p arec e n u m a o u tra e s t ó r i a g ra v a d a, como a a n te rio r, pelo casal H e rsk o v its; e de
n? 10, à p á g in a 141 d a o b ra a cim a re fe rid a . É essa estó ria se in titu la : H o w Legba becam e
g u a rdian o f m e n a n d gods. W h y th e god is respected.
Ê a tra v é s dessa e s tó ria que se sabe como se c h am av am os p a is do V odun Legba.
E screve o casal de pesquisadores:
“ T h e re w ere th re e c h ild ren o f A g b an u k w e an d K poli. T h e f ir s t w a s a siste r w hose n a m e w as
Mi nona. T he second w as called A ovi, th e th ir d Legba.
T hese th re e form ed a little fu n e ra l b a n d ” .
N o desenro lar-se dessa e stó ria , e n tre o u tra s revelações, nos é dado sab er que L eg b a e r a um
g ra n d e c a n to r . . . L eg b a w a s a g re a t singer.
A tra d u ç ã o dos trech o s acim a, tom ados à o b ra do casal H erskovits, é a segu in te:
“ I lá m uito tem p o passado, L eg b á foi o ú ltim o deus. C erto dia M aw u disse aos deuses que
tin h a algo a com unicar-lhes. Q u eria m o stra r-lh es quem s e ria o chefe deles. M aw u, então, lhes
deu um gongo, u m a cam p ain h a , u m ta m b o r e u m a fla u ta , dizendo-lhes que o que tocasse esses
in stru m e n to s, os q u a tro , aos m esm o tem po, e d ançasse, s e ria o chefe. H eviosô disse: ‘E u sou
m uito fo rte. P osso fa z e r tu d o ’. E x p e rim en to u . M as fracasso u . M aw u cham ou Gu e A gê p a r a
que experim en tassem . A g ê disse: ‘Sou u m caçad o r. T enho g ra n d e fo rça . Posso fa z e r tu d o isso’.
Ele e x p erim e n to u e fracasso u . V eio Gu. D isse que p o ssu ía o fogo. F a z ia m u ita s coisas. P o d e ria
fa z e r tudo. E x p e rim en to u , e ele, tam bém , fracassou.
E n tã o M aw u re u n iu todos os deuses e disse a L eg b á que ex p erim en tasse. E le b a te u o ta m b o r,
tocou o gongo, ag ito u a c am p ain h a , so p ro u a fla u ta , e (ao m esm o tem p o ) deu todos os passos
de «lança. M aw u lhe disse: ‘A g o ra eu posso d a r a você u m a m u lh er cujo nom e é K onikoni’.
E M aw u disse aos o u tro s deuses que L eg b á e ra o p rim eiro d e n tre eles.
E n tã o Legbá disse que q u e ria c a n ta r , e can to u :
S e o lar é tranqüilo
S e o cam po é fé r til
E u posso ser feliz.
A g o ra L eg b á tin h a conhecim entos e com eçou a fa z e r feitiços. F oi o p rim eiro a fa z e r isso.
Fez urna serp en te. Pôs, então, a serp e n te n a e stra d a e ordenou-lhe que picasse todos os
com pradores e vendedores. Im e d ia ta m e n te a s e rp e n te os picou. ‘D ai-m e alg u m a coisa, e eu
poderei c u ra r-v o s’.
Se lhe dav am alg u m a coisa, ele s a ía p a r a c o m p ra r aca^sá, aze ite de p a lm e ira e á g u a potável.
E n tã o com ia e b ebia tudo.
U m d ia alguém p e rg u n to u a L eg b á: ‘Que é isso ? (a p o n ta n d o p a r a a serp e n te ) que pic a
o povo ?’
Legbá respondeu-lhe: 'tò fe itiç o ’.
E L egbá disse a esse hom em : ‘tra z e d u as g alin h as, oito cauries e alg u m a p a lh a , e eu poderei
fa z er um p a ra você’.
A ssim Legbá com eçou a fa z e r u m fe itiç o p a r a o hom em .
L egbá pôs o homem iwi e stra d a que levava ao m ercado, e contou-lhe tudo o que e m p re g a ra
p a ra fa z e r o feitiço . Q uando L eg b á disse p a r a a lia n a se tra n s fo rm a r, a lian a virou serp en te , e
com eçou a p ic a r o povo. E n tã o Legbá lhe deu o rem édio p a r a c u r a r opovo. O homem se
cham ava A w é, e foi I .egbá quem lhe deu tudo o que e ra feitiço.
E n tã o todo o feitiço mm espalhou p o r to d a p a rte . Legbá com eçou a dar-lho ou tro s feitiços, de
m a n e ira que, se alguém deles necessitava, ia à c asa de A w é e Awé cham ava Legbá á su a casa.
P re p a ra v a o fe itiç o ao lado d a c asa e o tr a n s p o rta v a p a ra o lado oposto, p a ra d a r a outros
que o p rocu rassem .
M awu, então, zangou mm C ham ou Legbá e lhe disse: 'A g o ra ninguém dava p ro c u ra r VOefl e
v o e i n a d a m ais devtná fa z er’. D esde e n tã o L eg b á passou a ser V odun.
Awé é hom em . Ele c u lln u o u , p o r isso, a fa z e r feitiço. Tornou-no o sen h o r do feitiço. Q uando
alguém n ecessita do mu feitiço, ele vai b u scar em su a casa o que for necessário, E Awé
tom ou o lu g a r do • rabrt. Desse modo A w é vai a to d a p a rto o p e rg u n ta i 'A lguém necessita
do fe itiç o ? ’ E n láo , h| s e n tre g a o feitiço o desaparece. D istrib ui o felllço por Ioda p a rle . M
tam bém d istrib u i m alefícios a quem os p ede” .
106
Alguns dos Voduns, pertencentes às famílias aqui descritas, se dis
tinguem por deformações físicas e por atributos impressionantes.30
Sakpata ou Shapanan ou Xapanan (cujo correspondente no cato
licismo é São Lázaro), como já anotamos páginas atrás, é apresentado
com as extremidades, pés e mãos, deformadas pela lepra.
Legbá, o velhaco e trampolineiro, e Gu, Deus do Ferro (ligado a
Mawu), se distinguem pela posse de pênis disforme.
E Zomadone, o mais velho dos Voduns e o mais irritável, é descrito
por Pierre Verger, nestes term os:
36. E n q u a n to m e em p en h av a em novas p esq u isas e n a am p liação das N otas, aqui inseridas, tiv e
a felicidade de e n c o n tra r, n u m a das liv ra ria s do b a irro de C opacabana, do R io de J a n e iro ,
u m a fo n te in im ag in áv el de inform ações, que é o volum e publicado p e la Société A fric a in e de
C u ltu re (P ré se n c e A f ric a in e ), R ue des Écoles, P a ris-V e , sob o títu lo L es religions africaine»
com m e source de valeurs de civilisa tio n , e re la tiv o ao Colloque de Cotonou (16-22 a o ü t 1970).
E n essa fo n te , a c o n trib u iç ã o de H o n o ra t A guessy, in titu la d a R e ligions a fric a in es com m e ef f et
e t source de la c ivilisa tio n de Vorálité (p. 25 a 49) é im p o rta n tíssim a .
A ssim , a in d a sobre Legbá, cabe aqui o que A guessy nos oferece a re sp eito desse personagem ,
que n ã o é u m V odun, m a s um irm ão m a is novo dos V oduns, u m p u in é , segundo a denom inação
fran c e sa .
“ Selon u n e le c tu re généalogique, il e st loisible de re m a rq u e r que L eg b a e st le c ad e t des dieux.
Ce s ta t u t de cad et s ’accom pagne de celui de 1’in d ividu qui n ’a rien. À ce niveau, L egba est
san s dom aine. M ais il ex iste u n a u tre m ode de le c tu re possible: le c ad re linguistique. E n
effe t, d a n s le cad re des lan g u es p a rlé e s p a r les dieux, L egba m a n ife s te ra sa su p ério rité . Dana
ce cadre, chaque dieu possède sa langue, in in tellig ib le au x a u tre s dieux, d it le m ythe. De co
fa it, au cu n e co m m u n icatio n n ’ex iste e n tre eux. Seul L egba p e u t c o m p ren d re to u te s ces langues
e t serv ir, p a r conséquent, de m odeste tra d u c te u r ou linguiste. Ce rôle de tra d u c te u r fa it de lul
1’a g e n t de co m m u n icatio n ind isp en sab le n o n seu lem ent e n tre les d iffé re n ts dieux, ou e n tre les
dieux e t M aw u (1’ê tre su p rêm e) m ais encore e n tre les hom m es e t les dieux.
Or, q u i de n ous ig n o re 1’im p o rtan c e de ce rôle e t s ta tu t d’in te rm é d ia ire ? A ussi, d ans le cas
de Legba, to u t le m onde se v oit-il obligé de p a ss e r p a r sa m é d ia tio n ! II e st p a rto u t. D ’autreH
versio n s de la cosm ogonie F o n qui fo n t v a rie r les nom s e t la place des dieux, c a n to n n e n t
to u jo u rs L eg b a d a n s le m êm e s ta tu t que celui que nous venons d ’a n aly se r s u iv a n t le p a n th é o n
do la te rre " .
E A guessy, c o n tin u an d o , p e rg u n ta : Quelles leçons en tirer?
“ L a p re m iè re re m a rq u e à fa ire e s t le p e rso n n a g e qui re p re sen te , au niv e a u des dieux, 1’imngo
que les D ahom eéns se fo n t de la con d itio n de p u in é de la fam ille, d ans la re la tio n b in a i ro
p u in é-ain é. L e p u in é n ’a p a s p a r t à 1’h é rita g e ; p a r c o n tre on le d it trè s in te llig e n t e t on u
p e u r de lui. L e p u in é e st ch arg é de tra n s m e ttre des m essages à toutes les d e stin atio n s possiblcs.
A insi, il s a it to u t; il p e u t aussi b ien to u t p a ra ly se r, ou to u t a c tiv e r ou ré a c tiv e r. Le pu in é
e st au ssi celui qui, ne p o ssé d a n t des b ien s m atériels, cherche des c o m pensations d ans la
co n n aissan ce a p p ro fo n d ie du d om aine des m a n ip u la tio n s d ’a u tru i e t des stra té g ie s habiles susceptiblaa
de lui fa ire tir e r p a r ti de to u tes les situ a tio n s. II ré su lte de to u s ces fa its que le p u in é n ’e st pau
ra d ic a lm e n t coincé e t b rim é, a u sein de la fam ille: il dispose d’u n e m a rg e considérable do
m an o eu v res que lui seul p e u t e n tre p re n d re e t ex p loiter. II en v a de m êm e p o u r Legba dana
le systèm e re lig ie u x e t la m ythologie F o n . T o u t bien pensé, L eg b a re p ré s e n te le m an q u e radical
e t 1’in s a tisfa c tio n p e rm a n e n te que 1’hom m e en éprouve. C’e st en v a in q u ’on vou d ra sa tisfa lro
ou com bler ce m an q u e avec des a cq u isitio n s c o n tin g e n tes; il se m a n ife s te ra to u jo u rs s o u h iiiio
a u tre form e. A ussi L eg b a est-il 1’in s a tis f a it p a r excellence ou p lu tô t T in sa tisfa ctio n diviniséo.
II est, p lu s c h a n g e a n t; capable de d resser les d iv in ité s les u n e s c o n tre les a u tre s, il e st aunnl
q u alifié p o u r o rg a n is e r 1’e n te n te de celles d’e n tre elles qui n e s ’e n te n d e n t pas. Q u’un tel
p erso n n ag e divin jo u e u n rôle p ré p o n d é ra n t d an s la cu ltu re de 1’o ra lité qui c o n stituo la c u ltu ra
F on n ’a rie n p o u r nous su rp re n d re . S a fo n ctio n de lin g u iste d it éloquém m ent la placo du
la n g a g e e t s u rto u t de la p aro le d an s la c iv ilisation de 1’o ra lité en général. Si Légba, e st la
dieu le plu s p o p u la ire e t le p lu s p ro ch e de 1’hom m e e t F o n e st s u rto u t lin g u iste , c 'e st quo
la p a ro le e st décisive d a n s ce cad re de cu ltu re.
E n b re f, c’est à to r t que L eg b a e st confondu avec le Diable. L egba n e p e u t ô tre diaboliqua
que d a n s la m esu re ou le m an q u e ra d ic a l e t 1’in satisfa c tio n qui en ré su lte so n t identifiabloH au
diabolique. II e st v ra i que to u t c h an g e m e n t sa n s te rm e e t issue e st g u e tté p a r lo m al, ma In il
n e s ’y ré d u it p as. À la suite de ces analyses, que d e v ie n n en t les critiquoH p o r ta t s u r Ira
c a ra c tè re s sacrificiel, im a g in a ire ou diabolique des religions a fric a in e s ? II semble q u ’cllcH Holont,
loin d ’a tte in d re ces religions, ou, du m oins, si elles les a tte ig n e n t, elles a ttc lg n e n t p a r la rnêmo
to u tes les re lig io n s".
107
tum or sob re a s n á d e g a s, um tu m o r de g r a n d e s prop orções, q u e e le a r r a s
tava ao c a m in h a r ; no d ia se g u in te e le e n tr a v a n e ss e tu m or, d e sa p a r e c ia
6 1’ola v a pelo ch ão com o u m b a lã o e d e c la r a v a q u e e r a Z om adone; no dia
■seguinte se tr a n s fo r m a v a num g r a n d e p á ss a r o q u e p e sc a v a p e ix e s à b eira
de um p â n ta n o e c a n ta v a , d izen d o -se filh o d e A k a b a ; e, lo g o a se g u ir ,
v o lta v a a se r h om em . A g e n te e s ta v a m u ito su r p r e s a a n te e s s a s m a n i
festa çõ es. D e sa p a r e c ia , e n tã o , m a s em b r e v e u m ca ça d o r o e n c o n tr a v a à
beira de u m p â n ta n o e e sta v a d izen d o-se filh o de A k ab a, ch am ad o Zo
m adone; pouco d ep o is a g e n te o o u v ia c a n ta r à m a rg em de u m a r ib eira
e o o u v ia , tam b ém , à m a r g e m de u m a fo n te . A k ab a m a n d a v a p rocu rá-lo
m as, em b ora o o u v isse m , n ão o en co n tra v a m em n en h u m lu g a r . S e ele
c a n ta v a n a r ib e ir a , o s q u e v in h a m p r o c u r a r á g u a lh e o u v ia m a s ca n çõ es,
I10 m esm o tem p o, n ’á g u a e no a r , e a g e n te n ã o sa b ia o q u e fa z e r . A k a b a ,
in u tilm en te, o p ro cu ra v a .
108
tação, Abada foi curado de seu mal com o auxílio de uma folha que
lhe deu Zomadone; recebeu um assogwé (maracá) feito de uma cabaça,
com o qual podia chamar os Tohossou e recebeu indicações para trans
m itir a Tegressou a maneira por que o culto aos Tohossou devia ser
restabelecido. O rei se apressou a fazer tudo o que lhe era pedido;
fez construir os templos e para lá foram os Tohossou levados em
jarras. Abada agitou o seu Assogwé e Zomadone se manifestou sobre
a sua cabeça; e ele se tornou o primeiro sacerdote de Zomadone.
Uma vez terminadas as cerimônias, os Tohossou voltaram para o seu
pântano. Zomadone os convidou, polidamente, a entrar primeiro, mas
os outros, não menos corteses, lhe responderam: «Não, tu és o rei;
entra primeiro»; e acrescentaram sentenciosamente: «Se a cabeça está
lá, o joelho não pode pegar o chapéu». Zomadone entrou, primeiro,
seguido de Kpelou, de Adonou e dos pigmeus». E a paz reina, nova
mente, no Daomé.
Por esse retrato e façanhas de Zomadone se conclui a importân
cia dos seus atributos, dos poderes que lhe foram outorgados, num
nível altíssimo e remotíssimo, do Panteão dos Deuses africanos.
Continuando-se a caracterizar as personalidades dos diversos Vo-
duns acima relacionados, temos Zepozina ou Zapazin, que é mãe de
Daco; esta, com Nanin, são as mais velhas da família; Dakodonu foi
o rei da Alada, conforme se lê em Marti, página 117.
109
0 nome desse Vodun seria composto de Daco e Donu, nome este
último do tintureiro morto por ele.
Na lista dos reis do Daomé, que Marti nos dá em sua obra, aqui
posta propositadamente em evidência, a partir de Dagbagri-Chenu vem
Ganhéhésu, mas, em primeiro lugar, está Dakodonu.
Dakodonu foi um rei-deus, e a tradição desse nome me foi refe
rida, pela prim eira vez, entre a gente humilde da Casa das Minas, o
que mostra, de um lado, o nome de Dakodonu ligado à dinastia dos
reis e, de outro, ao Panteão dos Voduns do antigo Reino do Daomé.
Em Sociologia, n’ 1, Boletim LIX, da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1946), o Prof. Bas-
tide publicou um estudo, dos mais completos, dada a área abrangida, e
o método de que se valeu é de incomparável interesse científico, sempre
patente em todas as demais obras que lhe devemos.38
A Macumba Paulista é uma interpretação pioneira dessa institui
ção religiosa que nos foi proporcionada por um dos mais categorizados
professores, de nacionalidade estrangeira, participando do corpo do
cente daquela instituição, formando brilhantes equipes de continuado-
res do ensino das disciplinas ali ministradas.
p re fe riu re tira r-s e p o rq u e n ã o q u e ria lu ta r c o n tra o seu irm ão. D akodonu ficou, p o rta n to ,
senh o r in d iscu tív el do pequeno dom ínio que seu p a i p r e p a r a r a no p la tô de A bom é e ele, sem
cessar, esten d ia-lh e os lim ites, a despeito dos an tig o s senhores do lu g a r. U m dos m ais lesados
e ra um chefe cham ado D an, m u ito p acífico, e n tã o ; p o r fim , já cansado das exigências de
D akodonu, ele lhe p e rg u n to u se não p re te n d ia c o n stru ir sobre o seu p ró p rio v e n tre (todo o
te rritó rio de D an tin h a sido ocupado, n ão lhe re s ta v a livre senão o seu v e n tr e ) . D akodonu
tom ou as p a la v ra s de D a n ao pé d a le tra e, quando m ais ta rd e o m atou, n a g u e rra , fez
c o n stru ir um palácio sobre o corpo e sq u a rte ja d o do infeliz re i. D aom é deveria escrever-se,
p o rta n to , “ D an hom e” , o que q u er dizer “ v e n tre de D a n ” . O nom e de D akodonu alude ao
assassín io que esse re i com eteu, q u ando a in d a e sta v a em A lada, n a pessoa do tin tu r e ir o Donu,
de origem ayzo; D akodonu é h u abe zen bligba (D akodonu m a ta o hom em , a j a r r a ro la ). Donu
e sta v a ocupado em p ô r n u m lu g a r c o n v en ien te u m a g ra n d e ja r r a que serv ia de cuba p a r a tin g ir
com a n il; D akodonu o m a to u e se d iv e rtia em fa z e r ro la r a ja r r a n a qual h a v ia colocado o
corpo de sua v ítim a ” .
38. O p ro fesso r R oger B astide, nascido em Lião, F r a n ç a , em 1898,faleceu, aos 76 anos, no d ia
10 de a b ril de 1974, em P a ris , sendo inum ado, a 17 do m esm o mês, em A nduze (G a rd ),
conform e p a rtic ip a ç ã o que m e fiz e ra m o p re sid en te e o e sc ritó rio d a V I Seção da École
P ra tiq u e des H a u te s Études, os d ire to res e colaboradores do C entre de P s y c h ia trie Sociale e o
C en tre C harles R ich et, de P a ris .
O G LO BO , do R io de J a n e iro , no tician d o o fa to , lem brou que R oger B astide foi pro fesso r
da U n iv ersid ad e de São Paulo, d a qual recebeu o títu lo de D outor H onoris Causa, e m ereceu,
pela ob jetiv id ad e e v a lo r excepcional d a su a obra, ta n to como pe la am izade que d edicara ao
B rasil, a O rdem do C ruzeiro do Sul.
E tnó lo g o , sociólogo, p s iq u ia tra , R o g er B astid e focalizou, an aliso u e definiu, com a agudeza
d a su a sensibilidade e a com plexidade de su a c u ltu ra , os m ais diversos e em polgantes problem as
d a h is tó ria , folclore, poesia e religião, p rin c ip a lm e n te n a s suas m a n ife staç õ e s afro -b ra sile iras.
E m 1973 veio ao B rasil, com a in cu m b ên cia de a tu a liz a r e a m p lia r a su a o b ra Brasil, Terra
de C on tra stes, m as, em c a rta , tam b ém m e com unicou o seu in teresse em e stu d a r aspectos
sociais e religiosos d a p a je la n ç a n a A m azônia, v ia ja n d o a té Belém, no E sta d o do P a rá .
D epois de su a v iagem ao n o rte do B rasil — R ecife e S alvador — dem orou alg u n s dias no Rio
de J a n e iro e em São Paulo.
A su a bag ag em c ie n tífic a e lite rá ria é de excepcional e in contestável valor, cabendo-lhe, p o r
isso, m erecid am en te — no to c a n te à sociologia — , o renom e de um dos m aio res sociólogos do
século atu al.
S ua h o n estid ad e c ie n tífic a , salien ta d a p o r todos os seus colegas, discípulos e adm iradores, o
levou a re a liz ar, em nosso p a ís, in ú m e ra s v ia g e n s (a fim de fu n d a m e n ta r as suas pesquisas
e conclusões), estendendo-as, p o r exem plo, ao C o n tin e n te A frica n o e à A m é ric a C entral, com
o especial p ro p ó sito de e stu d a r ali os aspectos m a is im p o rta n te s dos cultos que escravos,
atra v e ssan d o o A tlân tico , tro u x e ra m p a r a a s A m éricas. O resultado das suas pesquisas foi
divulgado n a o b ra L e s A m é riq u es N o ire s (L es c iv ilisatio n s a fric a in e s d a n s le nouveau m o n d e ).
Como o u tro c ie n tista fran c ê s, A lfred M étrau x , R o g er B astide se in teresso u pelo culto dos
V oduns, no_ H a iti, e dos O rix ás, n a B ahia, ten d o v ia ja d o a té São L u ís do M aran h ão , p a ra
conhecer M ãe A n d re sa M aria, no Q uêrêbetan d a R u a São P a n ta le ão .
D e n tre os discípulos, colaboradores e am igos que, no B rasil, se lig a ra m a R oger B astide, cabe
sa lie n ta r o p ro f. F lo re s ta n F e rn a n d e s, que com ele escreveu N eg ro s e B rancos em São Paulo
(C o m p an h ia E d ito ra N a c io n a l). N a B ib lio g ra fia que organizei p a ra e sta o b ra foi relacionado
q u a n to R o g er B astid e legou aos estudiosos dos p ro b lem as do N egro do B rasil.
No referido estudo, além de concepções e conclusões não menos
precisas, vem um quadro (o n9 1), mostrando a correspondência entre
deuses africanos e os santos católicos no Brasil, Cuba e Haiti.
As fontes que permitiram a Roger Bastide organizar o referido
quadro são as seguintes: M. J. Herskovits, «African Gods and Catholic
Saints», in Amer. Anthrop. 29-4-1957, p. 641-2; A rthur Ramos, Acul
turação Negra no Brasil, p. 242-245.
A este autor, como a E. Ignace e Niria Rodrigues, recorreu ele,
no que se refere ao Brasil; a Fernando Ortiz, autor de Los negros
brujos; Huracán; La africanía de la música folklórica de Cuba; Los
instrumentos de la música afrocubana; Teatro de los negros en el
folklore de Cuba, no referente a seu país; W. B. Seabrook, autor de
La isla mágica y hechicería, bem como às obras de F. Wirkus e T.
Tancy, E. C. Pearson (as que ainda não conheço) para o Haiti.
Examinando o quadro em apreço, os estudiosos de africanologia
ensinam que: Oxalá tem como correspondente, na hagiologia católica,
o Senhor do Bonfim, na Bahia, Santana e Senhor do Bonfim, no Rio
de Janeiro; Batalá tem como correspondente Santa Bárbara, na Bahia;
Xangô é tido como S. Miguel Arcanjo, no Rio, e São Jerônimo, na
B ahia; Exu é o Diabo, no B rasil; Ogum é, ao mesmo tempo, São
Jerônimo e Santo Antônio, na Bahia, e São Jorge, no Rio; Oxum é,
ao mesmo tempo, igualmente, no Brasil (?) a Virgem Maria e N. S.
da Conceição, no Rio; Saponan é o Santo Sacramento, no Rio; Oxóssi
é São Jorge, na Bahia, e São Sebastião, no Rio; Omulu é São Bento;
Ibeji é representado, no Brasil por São Cosme e São Damião; Loco
é São Francisco, no Brasil, Ifá é o Santíssimo Sacramento, no Brasil
(? ); e Iansan é Santa Bárbara, no Brasil (?).
Além desse quadro, ao estudar os problemas do sincretismo reli
gioso, Roger Bastide organizou um outro para a sua obra Les réligions
africaines au Brésil (Presses Universitaires de France, P aris), apre
sentando, em notas, às páginas 370-371, os nomes dos autores a que
recorreu.
Os deuses africanos ali relacionados, que baixam na gente filiada
aos terreiros de Salvador, Recife, Maceió, São Luís, Manaus, Rio de
Janeiro, Porto Alegre, Cuba, Haiti, são os seguintes:
Oschalá
Eschou-Legbá
Schangô
Ogoun
Ochossi-Odo
Omalou-Obalouiayé
Ita-Oroumila
Ochoumarê
Iroco-Loco
Kalende
Nanabouroucou
Iansan-Ola
Mas porque, também, é intensíssima e incontrolável a vida erótica
dos ancestrais, deuses, reis e heróis, deste ou daquele povo, as mais
impressionantes dessas aberrações são o incesto e a bestialidade, isto
é, relações sexuais entre mãe e filho, pai e filha, irmão e irmã, o
acasalamento entre uma divindade e um ser humano (hierogam ia),
entre uma divindade e um animal m ítico.40
Numa extensa descrição da família de Quêviôçô (ou Hêviôçô como
Herskovits grafava) vimos Mawu e Lissá ligados incestuosamente no
Panteão do Céu, apresentando-se, a princípio como uma figura de andró
gino e, logo depois, fundindo-se num casal de esposos divinos, com
filhos e filhas, divindades menores, decerto, daquele Panteão, resultan
tes de uma união amoral (?).
Agbé e Naété, filhos de Sôbô (naturalmente de uma união inces
tuosa), constituem um casal de esposos, pertencentes ao Panteão do Céu,
dali descendo, se apoderam do Mar e da Terra, passando a habitá-los.
Levados aos limites do Continente africano, como era necessário
ali, de reinos e impérios e, conseqüentemente, de dinastias, vamos ver
um deus-rei do Daomé ligado a um caso de bestialidade.
E é Montserrat Palau Marti quem o conta assim:
L ’h is to ir e m y th iq u e du D a h o m ey n o u s a p p ren d q u e le lo in ta in a n c ê tr e d es
r o is f u t u n e p a n th è r e -A g a s u ; il e s t v r a i q u e 1’a p p a r itio n cTAgasu se situ e
d a n s la r é g io n d e Sad o q u i n o u s e s t d éjà fa m iliè r e . V o ic i ce q u e d it la
tr a d itio n d a h o m éen n e: u n e f ilie du ro i de Sado é ta it m a r ié e d a n s le clan
d es A lig h o n o n v i W a sa n u , d on t le s d e sc e n d a n ts h a b ite n t en co re le v illa g e
de W a sa , p r è s d ’A b o m ey ; un jo u r q u ’e lle s e tr o u v a it en b ro u sse, u n e
p a n th è r e m â le n om m ée A g a su s u r v in t e t s ’u n it in tim e m e n t à la f ilie du
roi. N e u f m o is a p r è s, la je u n e fe m m e m it au m on d e u n e n fa n t m â le d on t
e lle n ’a v o u a p a s 1’o r ig in e . Q u elq u es a n n é e s p lu s ta r d , le f i l s de la p a n th è r e
a s p ir a a u tr ô n e d e S ad o, m a is sa p r é te n tio n f u t co n sid e r é e in a d m issib le
c a r il fo n d a it s e s d r o its en lig n e m a te m e lle , c o n tr a ir e m e n t à c e qui é ta it
la cou tu m e. P lu s ta r d , le s p e tits f i ls d’A g a s u r e p r ir e n t la lu tte , il s ’e n su iv it
d es b a ta ille s r a n g é e s; e t fin a le m e n t le ro i S ad o f u t tu é ; en con séq u en ce,
le s A g a s u v i, “le s e n fa n ts d’A g a s u ”, d u r e n t s ’e x ile r . P a r tis v e r s l ’e st, le s
A g a s u v i a r r iv è r e n t à A y zo n u to m é, “le p a y s d es A y z o ”, d on t A y d a é ta it la
p r in c ip a le d iv in ité . C’e s t a in s i que p a r la s u ite le c h e f de c e tte m ig r a tio n
r e ç u t le n om d’A ja h u tó , c o n tr a c tio n de la p h r a se A jo to e t h u , c e qui
s ig n ifie “le p ère d’A ja e s t p lu s g r a n d q u e A y d a ”. II e x is te d’a u tr e s v e r sio n s
du m y th e de la re n c o n tr e de la f ilie du ro i de Sado a vec la p a n th è r e ;
to u te s co in c id e n t d a n s 1’e s s e n tie l: l ’a n c ê tr e d e A g a s u v i e s t u n e p a n th ère
v e n u e on n e s a it d ’oü, m a is d isp a r u de la m êm e fa ç o n . 41
40. P a r a u m a busca ilu s tra tiv a dessas ab erraçõ es, recom endo a o b ra (preciosidade b ib lio g ráfica ) de
R. P . S in is tr a r i d ’A m eno, De eodom ia tra cta tu s, B ibliothèque des C urieux, 1833, 1879,
41. T rad u zo o tre c h o acim a:
“ A h is tó ria m ític a do D aom é nos e n sin a q u e o rem oto a n c e s tra l dos re is foi um a p a n te ra ,
A g asu : é verd ad e que a a p a riç ã o de A g asu se s itu a n a re g iã o de Sado que já nos é fa m ilia r.
E is o que diz a tra d iç ã o d ao m ean a: u m a filh a do rei de Sado e ra casa d a no clã dos A lighonouvi
W asan u , cujos descendentes h a b ita m a in d a a aldeia de W asa, p e rto de A bom é: um d ia que ela
se ach av a no m ato , a p a n te r a m acho, c h am ad a A g asu, su rg iu e se u n iu in tim a m e n te à filh a
do rei. N ove m eses depois, a jovem deu à luz um m enino c u ja origem ela não explicou.
A lg u n s anos m a is ta rd e , o filho da p a n te ra a sp iro u ao tro n o de Sado, m as su a p re te n sã o foi
co n sid erad a inadm issível p o rq u e ele fu n d a ra os seus direitos n a lin h a m a te rn a , c o n tra ria m e n te
ao que e ra de costum e. M ais ta rd e os filhinhos de A g asu re to m a ra m a lu ta , b a ta lh a s se
sucederam e, fin alm en te, o rei de Sado foi m orto. E m conseqüência os A gasuvi, "os filhos de
114
Segundo Marti, nos mitos recolhidos junto aos inimigos da família
real de Abomey, «a pantera não aparece mais e não resta senão o
tema constituído por uma criança que se considerará rei malgrado sua
origem desconhecida e estranha».
Mas adiantou o autor citado: « . . . ao contato da cultura ocidental,
o mito de Agasu se moralizou e cristianizou: Agasu não é senão o
filho espiritual da pantera, a esposa do rei de Sado o descobre como
um pequeno Jesus num berço e o adota».
Tais aberrações aparecem, por exemplo, coincidentemente, na mi
tologia e na história dos povos do império incaico, tanto entre as di
vindades menores do Panteão do Deus Sol como entre os fiéis que os
cultuavam, visto que ali não eram menos intensas que as das divinda
des da África as manifestações, desordenadas e requintadíssimas, do
erotismo.
Harold Osborn — em sua obra intitulada Indians of the Andes
(Aymaras and Quechuas), Harvard University Press Cambridge,
Massachusetts, 1932, baseado nos comentários de Garcilaso, apresenta
duas versões, recolhidas por este, da lenda dos filhos do Deus Sol,
chamados Manco Capac e Coya Mama Ocllo Huaco.
Irmãos, esses personagens míticos, descendo das alturas, tiveram
a incumbência de fundar Cuzco e fazer seus habitantes felizes,
ensinando-lhes tudo quanto para isso fosse necessário.
Transcrevo o texto que Harold Osborn dedicou a essas versões:
T o g e th e r th e y fo u n d ed th e c ity . O ur In c a ta u g h t th e m a le In d ia n s th e
o ff ic e p e r ta in in g to th e m a le, a s to b reak an d c u ltiv e th e so il, to d isse m in a te
th e crop s, se e d s, an d v e g e ta b le s, w h ich h e sh ow ed th em good to e a t, fo r w h ic h
he ta u g h t th e m to m ak e p lo u g h s and o th e r n e c e ss a r y to o ls and in str u c te d
th em th e m a n n e r o f m a k in g ir r ig a tio n c a n a is fro m th e s tr e a m s w h ic h flo w
th r o u g h th is v a lle y o f C uzco, even sh o w in g th em h o w th e fo o tw e a r w e u se.
F o r h er p a r t th e Q ueen s e t th e w om en to w o rk on fe m in in e ta s k s, sp in n in g
and w e a v in g co tto n a n d w ool, m a k in g g a r m e n ts fo r th e m se lv e s , th e ir h u sb an d
and ch ild r e n ; an d sh e ta u g h t th em h ow to m a n a g e th e o th e r d om estic
d u ties. In sh o r t, n o th in g w h ic h b elo n g s to th e lif e o f m en did ou r c h ie fs
fa il to te a c h th e ir f i r s t su b je c ts, th e In ca K in g in s tr u c tin g th e m en and
the C oya Q ueen in s tr u c tin g th e w o m e n . . . 42
116
Mas, além dessas atividades dos Filhos do Sol, da dinastia dos
Incas, que construíram um império rico e famoso, não foi menor o seu
concurso para o povoamento dos seus domínios, devendo-se a Garcilaso,
em relação ao Deus Sol e sua descendência, este esclarecimento:
H o w m a n y y e a r s a g o th e S u n O ur F a th e r s e n t fo r th h is f i r s t c h ild ren
I cou ld n o t te ll y o u e x a c tly , fo r th e y a r e so m a n y th a t m em ory h a s been
u n a b le to keep th e cou n t. W e b e lie v e th a t it w a s m ore th a n fo u r h u n d red . 43
11G
Frobenius. Verlegt bei Eugen Diederich, Jena 1924) e Boris de
Rachewiltz, com o texto e as ilustrações do Black Eros — The Sexual
Customs of África from Prehistoric Time to the Present Day (George
Allen & Unvvin Ltd., Londres 1964).
VII
Pesquisando esses temas e procurando interpretar a opulência de
símbolos, que resultam da mitologia, história, religião e folclore dos
povos incaicos e africanos, logo me veio à memória que (entre os
gregos e os romanos) os deuses, reis e heróis de cultura também ti
veram origem hierogâmica, hermafrodítica e bestial, deliciando-se com
aberrações, tais como Mawu e Lissá, Manco Cepac e Mama Coya,
Agasu e a filha do Rei de Sado.
Como não vir à memória, por exemplo, a união incestuosa de
fidipo e Jocasta, ambos, como o próprio Laio, eleitos pelo Destino trá
gico que a Esfinge anunciara e Sófocles imortalizaria no teatro grego?
De outro lado, como não lembrar que Júpiter, para possuir Io,
ludibriando Jano, metamorfosearia em novilha a mulher requestada? 44
Irresistivelmente, como pesquisador, também fui levado a indagar
se acaso os povos primitivos, na Grécia ou no Daomé, não encontra
riam nas uniões incestuosas dos deuses, dos ancestrais e dos heróis de
cultura, fundadores de impérios e de reinos, de religiões e de artes,
uma justificativa para os imitar, desrespeitando o chamado tabu do
incesto, tão diversamente conceituado pelos antropólogos e teólogos,
antigos e modernos.
Mas, mesmo assim, um exame do comportamento ético dos deuses
e reis-deuses, Voduns e Orixás, dos povos africanos, tanto quanto o
comportamento das divindades gregas e romanas, leva o pesquisador
n pasmar, senão maravilhar-se, ante a estrutura, a finalidade, a be
leza das religiões e das práticas mágicas, a riqueza da simbologia, a
variedade e fascinação da liturgia, a policromia dos trajes e omatos,
a harmonia dos cânticos, a forma e a variedade dos instrumentos sa
grados, a originalidade da coreografia, de tudo quanto foi inspirado
pelo mito, e pela fé, enfim.
E quem não será levado, assim, a admitir a necessidade de um
estudo mais amplo, mais sistemático, das sobrevivências míticas e his
tóricas dos povos africanos que, trazidos a certas áreas do nosso país
- - como Minas, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará —, concorreram
pura a nossa formação cultural?
Back to the Greeks!
li. J e a n P ie rre Y e rn a n t, co n sid eran d o o m ito e o p en sam en to dos gregos, n u m a s érie de estudos
do psicologia h is tó ric a , lem b ra u m a ex p ressão im p e ra tiv a de Z. B arb u (a u to r d a o b ra Problema
of U iatorical Paychology, L o n d res 1060).
117 /
Idêntico apelo — voltemo-nos para os gregos — entendo que de
vemos formular, para melhor compreensão da mitologia, da história,
social e política, da história religiosa, da história da arte e do pensa
mento, que os filhos da África Eterna nos trouxeram:
Voltemo-nos para a África!
Acaso teria perdido toda a sua substância de entusiasmo e de cré
dito aquele aforismo de Plínio, o Velho:
E x África aliquid novi?
VIII
Além dessas uniões incestuosas, dessas práticas de bestialidade,
registradas na mitologia e na história dos deuses, reis e heróis afri
canos (como idênticos personagens humanos ou divinos, tais os cul
tuados pelos gregos e os romanos) também eram freqüentes as incom-
preensões, os desentendimentos, as competições pela posse de situações
e atributos, de mando e domínio social e político.
E isso, na Casa das Minas, ganhou a designação de mistério, não
podendo ser referido nem descrito a íntimos e muito menos a estra
nhos, como existem outros mistérios e dogmas na religião católica.
E, além do conhecimento de inquietantes mistérios e de leis aterro-
rizantes, que, se nem todos os fiéis ao culto conhecem e temem, muito
raro é o número dos que não têm notícias das terríveis conseqüências
resultantes do seu desrespeito e violação.
Tais conseqüências podem abater-se sobre grupos (uma família ou
um casal) ou simplesmente sobre um indivíduo; e elas se revestem, já
de surpreendente dramaticidade, já de hilariante grotesco, ganhando
extensão incomensurável, ora sob a forma de um brutal acidente, com
deformação física, ora pela aplicação de uma série de bolos, à palma
tória, de que se incumbe o próprio Vodun do sacrílego violador.
E não é incomum que, muitas vezes, o violador se atire ao chão,
batendo a cabeça contra ele ou esmurrando-o violentamente, até que lhe
sangrem as mãos.
Desse modo, mais que a Tradição, conseqüentemente, são esses mis
térios e essas leis que fundamentam e dão resistência ao culto dos
Voduns das Casas das Minas e de Nagô.
Fazendo parte de uma cidade, tal a de São Luís, onde a maledi
cência é — como numa Florença renascentista — amplamente culti
vada, alguns indivíduos, assistindo aos atos litúrgicos realizados nas
referidas Casas, talvez por incapacidade de interpretação ou indissi-
mulável espírito de rivalidade, lhes atribuíam práticas idênticas às que
são comumente observadas noutros centros de religiosidade.
Mas o fato é que, na principal daquelas casas, a sua direção pri
mava (e isso se registrou até a morte de Andresa Maria) pela obser
vação rigorosa daquelas leis, pois quem a exercia era uma feita, isto é,
1 1K
uma iniciada, numa camarinha (e em lugares solitários) apropriada
e por outras feitas, com absoluto conhecimento daqueles mistérios, leis
e ritual, leis, principalmente — sempre lhes ouvi afirm ar —, de um
código não escrito, mas conservadas na memória e no mais íntimo do
coração.
A figura de alta elevação moral, de impressionante vigor e inco-
mum expressividade, de Mãe Andresa Maria, correspondia ao modelo
da Mulher africana, ainda hoje encontrado na África Negra, em terra
do Senegal, Nigéria, Gana, Gongo, Guiné, Angola e Moçambique.
IX
Nos primeiros dias de vida desses centros tradicionais da religião
dos Voduns, contaram-me, homens viam baixar-lhes sobre a cabeça aque
le a quem haviam sido dados ou por eles escolhidos: e, então, parti
cipavam das danças e dos cânticos, possuídos e arrebatados pelas forças,
ainda não de todo definidas, da possessão mística ou do chamado transe
místico.
Na atualidade, segundo Pierre Verger o documentou em duas das
.suas obras, aqui citadas, os bailarinos de Quêviôçô ou Hêviôçô brandem
no ar de Abomey, sob o céu africano, o machado simbólico, e vibram
campainhas, atributos desse Vodun, na alucinante movimentação da co
reografia ritualística com que o festejam e o reverenciam.
É admissível, portanto, que, na Casa das Minas, um bailarino incor
porado também lançasse às alturas, com entonação viril, os cânticos
votivos e propiciatórios que, em nossos dias, somente os gonjai, novi-
<lios e vodunce conhecem e elevam, primeiro num solo e, depois, num
coro uníssono, aos imperativos apelos dos instrumentos sagrados: os
Imnbores, ogãs e gôs.
Pode-se admitir, igualmente, que, como mestre de cerimônia, filho
ilii casa, ou melhor, filho de Vodun, aparecesse à frente de especial
solenidade, no abate de aves e caprinos, no interior do pégi, mas
nunca nos lugares de reclusão das mulheres que deveriam ou estavam
;Hndo feitas, isto é, sendo iniciadas plenamente nos mistérios e leis,
;iprendendo cânticos, práticas do preparo de comidas e etiquetas tra
dicionais no acolher íntimos e estranhos, que compareciam às festas
umulinente ali celebradas.
Por ocasião da matança de animais propiciatórios, quer fosse ela
realizada fora ou quer no pégi, o sacrificador seria, obrigatoriamente,
um iniciado, um runtó ou tocador de tambor, instrumento que, como
veremos mais adiante, não só é dedicado a um Vodun mas possui indi
vidualidade sagrada.
Mm Salvador, no Bogum de Mãe Valentina, por ocasião da saída
d ia iaôs e outras figuras — saída que se realizava, festivamente, nos
últimos dias de dezembro de 1969 — vi surgir entre as iaôs, já em
119
/
estado de transe, um rapaz de cor preta, que dançou e cantou, mas
não foi levado ao pégi como são levadas todas as mulheres naquele
estado.
Passaram-lhe uma toalha em redor da cintura, como o fazem com
todas as mulheres em transe. Retiraram-no dali. E foi tudo.
No Bogum de Mãe Valentina que é, segundo me afirmou, mina-
jeje-mali (de Mali, desmembrado do território do Daomé), verifiquei
que existem grandes diferenças entre a sua estrutura e a do Quêrêbetan
da Casa das Minas, de Mãe Andresa Maria.
X
Estendi, páginas atrás, comentários às divindades Voduns, prin
cipalmente no campo da mitologia e da história, sendo natural que,
ora aqui, ora ali, me referisse ao fenômeno denominado transe ou
possessão.
Há muito, entretanto, tenho evitado definir esse estado, essa disso
ciação da consciência, na expressão do inolvidável amigo prof. Dr. Bela
Szekeli, ou essa criação da alma coletiva, no conceito de Durkheim, refu
tado pelo prof. Roger Bastide.
E, já agora, quando sou interpelado, a propósito, por algum inte
ressado no assunto, de certo nível intelectual, logo lhe indico a obra do
prof. Roger Bastide, intitulada Le rêve, la transe et la folie (Nouvelle
Bibliothèque Scientifique dirigée par Fernand Braudel), Flammarion,
Paris 1972.
Porque, desde o seu primeiro livro, Les problèmes de la vie
mystique, em 1931, esse professor ilustre já se preocupava com o re
ferido assunto, e, no momento — conhecedor dos aspectos sociais e
religiosos da nossa cultura —, ninguém lhe opôs definições e análises
mais dignas de aceitação ou de recusa.
Na segunda parte de Le rêve etc. (p. 56), volta-se para os estudos
realizados sobre as «crises» por médicos e psiquiatras, que os integra
ram em seus sistemas conceituais, numa nosologia emprestada à Euro
pa e que não se aperfeiçoaram senão através de descobertas feitas
sempre no domínio das moléstias mentais e, na Europa, por exemplo,
com o surgimento da psicanálise.
E Roger Bastide assim se manifesta:
120
tecid o in c o e r e n te d e c r e n ç a s e d e r ito s, u m a v e r d a d e ir a te o lo g ia , sem d ú
v id a , d ife r e n te da n o ssa , m a s tam b ém v á lid a in te le c tu a lm e n te . 0 te r r e ir o
a te s ta v a a ss im e s ta so c io lo g ia do tr a n s e , q u e eu e n tr e v ir a p o ss ív e l, de
in íc io , a tr a v é s de sim p le s le itu r a s d e a n tro p ó lo g o s.
XI
Sem uma formação científica de molde a contrapor minha crítica
u certas afirmativas — com a estrutura mesmo, de verdadeiras teorias,
do prof. Roger Bastide — entendi, modestamente, que me cabia incluir
nestas notas, apenas, algumas observações por mim memorizadas, depois
de assistir a desdobramentos desse fenômeno, tanto na Casa das Minas
como noutros centros de religiosidade afro-brasileira, no Rio de Janeiro,
Bahia, Alagoas, Pernambuco, Maranhão, Pará, Amazonas, Rondônia
e Acre.
121
E, cabe-me confessar, francamente, assim procedi em casa de minha
tia Ida e em minha própria casa, desde os meus primeiros anos de
idade, ali e aqui, posteriormente, já na adolescência, já na oitava dé
cada de minha existência.
Acompanhando o início, evolução e término do fenômeno, ora posto
em pauta nesta nota, deflagrado numa ou mais criaturas, delas jamais
consegui que me descrevessem tudo quanto haviam experimentado, ao
modificar-se-lh.es a personalidade sob a envolvente força da possessão,
do transe místico, da incorporação.
Numa das páginas da 1* edição desta obra A Casa das Minas, des
crevi a figura de minha Mãe Felicidade Nunes Pereira, que, entrada
em transe, ganhava uma particular fisionomia e se apresentava como
a do próprio Póli-Boji, o Vodun que ela carregava nela baixava e se
incorporava; e tinha um comportamento — gestos, palavras, idéias —
inteiramente diversos de tudo aquilo que nela era de regular estabi
lidade, de inconfundível personalismo.
E, nestas Notas, já me referi à minha tia Ida, cuja personalidade,
em estado de transe, correspondia, impressionadoramente, à fisionomia
e ao comportamento atribuídos a seu Vodun — Toi Avêrêquête, na sua
existência mítica ou real no Panteão a que pertence.
Mas observações posteriores desse estado noutras pessoas, como
vereis, não são menos dignas de apresentação aqui e de possível análise
por parte de outros pesquisadores desse fenômeno, quotidianamente re
gistrados em terreiros, tendas e centros dos diversos cultos em ativi
dade em nosso país.
Que se atente, pois, ao que vou referir aqui:
Uma feita, que fora submetida a certa intervenção cirúrgica, com
parou o fenômeno aos primeiros efeitos da anestesia geral que lhe
tomara suavemente todo o corpo; e uma outra o comparou à violência
de um torvelinho que, numa beira de praia, a envolvera, quase a jo
gando ao chão.
Há seis anos passados, encontrando-me em Porto Velho, Terrotório
Federal de Rondônia, certa noite fui visitar um terreiro, de origem
mina-jeje, para ali registrar (por intermédio de um músico profissio
nal, colaboração de mãe-de-santo e de algumas filhas de Voduns) toques
de tambores, letras e melodias de cânticos litúrgicos, passos de danças
etc., etc.
Não era dia de festividade do calendário mina-jeje, mas pude levar
àquele «terreiro de Chica-Macaxeira», uma companheira de viagem,
interessada mais nos problemas sociais do que nos religiosos da área.
Sentei-me num banco corrido, do amplo barracão destinado às
danças, entre o músico e a mãe-de-santo, tendo a viajante ao lado desta.
Duas a três filhas de Voduns (ainda não em estado de transe, o
que, não obstante se tra ta r de uma simples reunião, poderia ocorrer)
puseram-se a cantar e a dançar, aos apelos dos tambores e dos gôs.
De quando em quando, os tocadores dos instrumentos sagrados e
as bailantes (como ali são chamadas, vulgarmente, as mulheres que
tomam parte nas danças e outras funções dos dias festivos) paravam
para que eu registrasse o texto dos cânticos ou doutrinas, ditas da
ayuasca — um alucinógeno, sobre cujas propriedades, mais adiante,
darei algumas informações sucintas — e o músico anotasse as melodias
e toque e a mãe-de-santo prestasse certos esclarecimentos que eram
de meu interesse.
Pouco a pouco os tocadores dos instrumentos sagrados foram to
mados de viva excitação, vibrando-os com mais ardor; e as filhas-de-
santo, as bailantes, passaram a dançar com a mesma excitação e a
mesma compenetração.
Nenhuma daquelas bailantes, entretanto, havia atingido o estado
de transe. Mas, depois de uma pausa, quando os tambores voltaram
a ressoar e as mulheres a cantar e a dançar, surpreendentemente,
erguendo-se do meu lado, a viajante soltou em meio das filhas-de-santo,
e, desatando os longos cabelos, tendo os olhos semicerrados e os lábios
crispados, entrou a voltear vertiginosamente sobre o chão batido do
terreiro.
Não estava ali mais a cética viajante, porém uma criatura em
estado de transe, fenômeno patente na máscara, severa, quase espec
tral, e nos movimentos iguais aos de qualquer noviche ou gonjai da
Casa das Minas ou da Casa de Nagô.
Ora, aquela criatura, de apreciável formação intelectual, ufanando-
se, momentos antes, de absoluta incredulidade, baseada numa filo
sofia materialista, negara-se a aceitar a validade desses fenômenos
metapsíquicos.45
tr». N a d a h á a e s tr a n h a r a n te o c o m p o rta m e n to de c e rta s pessoas, m esm o de elevada intelectualidade,
com re la ç ão a fenôm enos m e tap síq u ico s que se e x te rio riz a m nos te rre iro s onde são cultuados
V oduns e O rix á s dos p a n te õ es afric a n o s.
E isso p o rq u e a té mesm o os c ie n tista s, em nosso p a ís como os de o u tra s á re a s g e ográficas, não
lhes a trib u e m v alo r algum , n egando validade ao p ro b lem a do tra n s e e d a realidade dos poderes
m ágicos.
D aí os conceitos que E rn e s to de M arino, em L e m onde m agique, p o r exem plo, foi b u sca r à
ob ra T h e P sy ch o m e n ta l C om plex o f th e T a n g u s, L o ndres, 1935 — que m e p a re ce u oportu n o
tra n s c re v e r aq u i — da a u to ria de S. M. Schirokogoroff, re la tiv a m e n te ao poder de tra n sm issã o
du p en sam en to :
"II y a lieu d’a b o rd e r le problèm e d a n s u n dessein p o s itif de recherche, ce qui n ’é ta it encore
possible il y a quelques années. Qu’il nous so it p e rm is de re m a rq u e r que le scepticism e dÜ á
1’ig n o ran ce e t a u p ré ju g é a em pêché la récolte e t la p u b lication des fa its . E n ré a lité , ju s q u ’à
ces d e rn iè re s années, quiconque a u r a it osé d iscu ter de ces questions ou pu b lier les fa its a u r a it
en couru la c ritiq u e des “ hom m es de Science” p o u r qui to u t cela r e n tr e d ans la " s u p e rs titio n ” ,
d an s le “ folklore” , dans le " d é fa u t de c ritiq u e ” e t choses semblables, c ep e n d a n t q u ’eux-m êm cs
Hont p ris o n n ie rs des th éo ries e x ista n te s e t des hypothèses acceptées com m e " v é rité s ” . E n effet,
un tel co m p o rtem en t de la p a r t des hom m es de Science e st to u t aussi eth n o c en triq u e que celui
des Toungouses, e t c o n tie n t a u ta n t de folklore que ce que les hom m es de Science d é signent
de ce nom ” .
Eis a tra d u ç ã o liv re do te x to acim a:
"Pode-se a b o rd a r o p ro b lem a d en tro de um p lan o positivo de pesquisa, o que n ã o e ra a in d a
possível h á a lg u n s a n o s passados. Que nos p e rm ita m a ss in a la r aqui que o ceticism o devido íi
ig n o râ n c ia e ao p reco n ceito im p e d ira m a coleta e a publicação dos fato s. N a realidade, a té
nos últim o s anos, quem q u e r que ousasse d isc u tir essas questões ou p u b lic a r os fa to s in c o rre ria
mi c rític a dos "h om en s de ciên cia” , p a r a os q u a is tudo isso se inclui n a “ su p e rstiç ã o ” , no
"folclore” , n a " f a lta de c rític a ” e coisas sem elhantes, n ã o o b stan te sejam eles m esm os prisio n eiro s
d a s te o ria s e x isten te s e d as h ip ó teses a ce ita s como "v erd ad es” . De fa to , ta l com portam ento,
du p a rte dos hom ens de ciência, é tão e tn o c ên trico como o dos T unguneses, e contém ta n to
folclore como o que os hom ens de ciên cia desig n am com esse nom e” .
123
/
No dia seguinte, ao interpelá-la, pedindo-lhe que me descrevesse
o que sentira naquele estado, respondeu-me que não poderia fazê-lo,
porque não tinha palavras apropriadas à legítima expressão desta ou
daquela emoção; ela fora totalmente dominada pelo transe místico.
Essa incapacidade para descrever o impacto do transe é verificada
tanto entre criaturas possuídas a prim eira vez, iniciadas ou não no
culto dos Voduns, como ao longo de toda a sua participação nas ati
vidades religiosas e, mesmo à parte, em sítios e horas inconcebíveis.
E quase todas se apresentaram com o cabelo em desalinho, de
olhos desorbitados ou vesgos, de lábios retorcidos grotescamente, de pés
e mãos crispados à feição de garras, de membros abalados por suces
sivos, brandos ou violentos espasmos, gritando ou assobiando, como um
animal enfurecido, ou como alguém chamando, à distância, pelo
companheiro.
Repetindo o que acima adiantei, confesso-me desautorizado a emi
tir conclusões à base dos fatos acima descritos, mesmo não ignorando
a fragilidade de outras que foram divulgadas, dentro e fora do Brasil,
por viajantes e cientistas, médicos, psicólogos e psiquiatras, inclinando-
me, entretanto, para as que Roger Bastide opôs, por exemplo, a
Durkheim.
Na intimidade de descendentes de escravos, procedentes do Con
tinente Africano, filiados à Casa das Minas e à de Nagô, sempre neles
verifiquei natural capacidade de elevar-se, além do animismo e do po-
liteísmo, à concepção de um Deus único.
Já se verificou, por exemplo, tanto através dos lances poéticos da
mitologia do Negro como da sua religião que, além das divindades
enumeradas em seus respectivos panteões, eles, há muito, teriam intuí
do a existência de um Ser único que os teria criado e ao qual estariam
sujeitos.
E isso, embora Nina Rodrigues (estudando o animismo fetichista
dos Negros baianos) tenha visto na população por eles constituída, em
maioria, pelo monoteísmo cristão, e se referisse à «incapacidade psí
quica das raças inferiores para as elevadas concepções do monoteísmo».
No entanto, senhor de «ânimo estritamente científico», precursor,
já no seu tempo, de várias teorias e técnicas, imprescindíveis à análise
psicológica, Nina Rodrigues foi encontrar, na Baixa do Sapateiro, em
Salvador, um açougue onde se lia esta inscrição: Ko si oba Kan afi
Olorum, cuja tradução é: Não há um rei como Deus.
Mais adiante, porém, referindo-se a Bowen, o cientista maranhen
se faria realce à observação do missionário batista, relativamente à
doutrina idólatra de Ioruba da forma e dos costumes do governo civil,
contida, consoante sua tradução, neste tópico: «Antes, como só há um
rei na nação, só há um Deus no universo, Olorum ou Alrung; e assim
como para se aproximar do rei é indispensável a intervenção dos cor
tesões, assim também o homem, para chegar a Deus, deve recorrer
à intervenção dos Orixás ou das divindades inferiores».
124
Mas o missionário J. T. Bowen, num tópico citado por Pierre
Verger, in Notes sur le culte des Orisa et Vodun se manifesta deste
modo:
T o u t le p eu p le (Y o r u b a ) c r o it en u n D ie u u n iv e r s e l, le c r é a te u r e t g a rd ien
de to u te ch ose, q u ’ils a p p e lle n t en g é n é r a l Olorun (O li orun) le p r o p r ié ta ir e
e t m a ítr e du cie i, e t q u elq u er fo is d’a u tr e s n o m s Olodumare, c e lu i q u e e s t
to u jo u r s d roit, Oga-Ogo, le g lo r ie u x qui e s t élévê, Olwa, se ig n e u r , etc. Ils
o n t la d o ctrin e d e 1’im m o r ta lité e t de reco m p en se e t p u n itio n s fu tu r e s,
m a is su r c e s p o in ts le u r s n o tio n s s o n t o b scu res. T o u s le s m o r ts so n t au
Orun Hadès, Oké-orum, le Hadès su p é r ie u r e s t la résid e n c e du ju s te e t le
Orun-akpadi, le Hadès c r e u se t, e s t le lie u d e p u n it io n .. . L a d octrin e
id o lâ tr e (e s te é, p r e c isa m e n te , o tr e c h o d e a u to r ia de B ow en , cita d o por
N in a R o d r ig u e s) q u i p r é v a u t d a n s le Y o ru b a , sem b le d ériv er , p a r a n a lo g ie ,
de la fo r m e e t d es co u tu m es du g o v e m e m e n t cité . II n ’y a q u ’u n roi
d a n s la n a tio n , il n ’y a q u ’u n D ie u d a n s 1’u n iv e r s. L e s so llic ite u r s n e
p e u v e n t ap ro ch er du roi q u e p a r l ’e n tr e m ise d e s e s se r v ite u r s, de se s
c o u r tisa n s e t de s e s n o b les; en co n séq u en ce, le so llic ite u r c h erch era de
s e c o n c ilie r p a r d e s p a r o le s a im a b le s e t p a r d es p r é s e n ts le co u r tisa n
d on t il ch erch e la p ro tectio n . D e m êm e a u c u n hom m e n e p e u t s ’a p p roch er
de D ie u , m a is to u t le p u is sa n t, d is e n t-ils, a in s titu é lu i-m ê m e d iv e r se s
s o r te s d 'Orisa, q u i s e r v e n t d e m é d ia te u r e t d ’in te r c e sse u r s e n tr e lu i e t
le s h om m es. O n n ’o ff r e a u c u n s a c r ific e à D ieu p a rce q u ’il n a p a s b esoin
de r ie n ; m a is le s O risa q u i r e ss e m b le n t b eau cou p a u x h om m es so n t
h e u r e u x de r e c e v o ir d es o ffr a n d e s de m ou ton , d es p ig e o n s e t d’a u tr e s
ch o ses. O n c h erch e donc à s e c o n c ilie r l ’O r isa a u m é d ia te u r , p ou r q u ’il p u is se
le s ren d re h e u r e u x , n on e n so n p r o p r e p ou voir, m a is p o u r le p ou voir
da D ie u . 46
125
/
no Brnsil Colonial, com as suas atividades agrícolas e pastoris e, para
lelamente, com o extrativismo dos pescados, dos minérios, drogas e
plantas típicas dos trópicos.
Na obra do Padre Plácido Tempels, La philosophie bantoue, tra
duzida do neerlandês por A. Rubens, exaltada por Aloune Diope e
editada por Lovaina para a Coleção Présence africaine, entre outras
conceituações atribuídas aos Bantos, se salienta a de que Deus é um
doador da Vida. A Vida é um dom gratuito. O doador não pode ter
obrigação com o donatário.
Tão importante é a obra do Padre Tempels, no esclarecer à men
talidade européia a concepção que o Negro banto tem um Deus único
e a solidez dos fundamentos por ele utilizados para a defender, que,
recentemente, nela se basearia um outro sacerdote católico, Laénnec
Hurbon, de nacionalidade haitiana, para nos mostrar Deus no Vodun
haitiano (Dieu dans le vaudou haitien, Payot, Paris 1972).
A mim sempre parecera que, no meio de tantos Voduns da Casa
das Minas, numa exclamação, numa reverência, num gesto apenas, ali
estava a presença de um Deus único: D EU S!
Deus cristão ou Deus específico? Pergunta Laénnec Hurbon.
Daí a sua palavra a respeito:
126
Refletindo sobre essa passagem, fui levado (estudioso que também
lenho sido da etnografia e da etnologia dos índios da Amazônia Bra
sileira) a considerar que, missionando em terras de nosso país, os sa
cerdotes católicos registraram que os seus catecúmenos lhes falavam
em Tupã (um Deus único), mas falavam em divindades menores, que
lhes estariam em redor, em Jurupari, que seria — nada mais, nada
menos — Satã, algo como o demônio, embora, na verdade, essa figura
da mitologia ameríndia não fosse mais que um herói de cultura, ou,
propriamente, um legislador!47
Fraternizados num martirológio comum, caracterizado pela sua
exploração física e sua conceituação de liberdade, tal qual se está
repetindo na sociedade moderna — como teriam os índios e os Negros
chegado a essa concepção de um Deus único?
Numa evolução natural do seu espírito, sem dúvida.
Platão, nas suas indagações filosóficas, divinizando, por exemplo,
u Memória, não chegou até Deus de outra maneira que o Negro, no
sou animismo e no seu politeísmo, sacralizando os astros, as árvores,
os animais, as montanhas, as fontes etc.?
Se Chronos (o Tempo) e Mnemosune (a Memória) foram sacra-
li/.ados pelos gregos, por que os Iorubas e os Daomeanos (Fon, Jeje,
Ketu), sofrendo a influência de povos de alta cultura, e eles, também,
tendo a capacidade de criar divindades, não reconheceram a presença
de um Deus único em meio de tantos Orixás e Voduns, de interme
diários, cortesões e escravos de um panteão ou de uma corte celestial?
Ora, para que os filhos e filhas desses Orixás e Voduns obtenham
sua interferência junto ao Deus Supremo, forçoso é que entrem em
estado de transe, que se deixem incorporar ou possuir por eles,
iniciando-se no culto que, para isso, foi estabelecido, e quando tam
bém espontaneamente elegidos.
17. i:: n a o b ra a leggenda dei J u ru p a r y , de E rm a n n o S tradelli, publicação do In s titu to C ultural
fl.alo-B rasileiro, cad ern o no 4, São P a u lo 1964, que essa fig u ra d a m itologia dos índios do
V ale do R io N eg ro , p rin c ip a lm e n te , se a g ig a n ta , im p ressio n an te m e n te , ta l qual a fig u r a h is tó ric a
do A ju ric a b a , am bos h eró is de cultura.
E assim o c o n sid e ra ria o bispo A n tô n io de M acedo Costa.
J u ru p a ri, c o n tra p o n d o à in s titu iç ã o sócio -p o lítica do m a tria rc a d o , a c u ja fr e n te e sta v a su a m ãe,
a in stitu iç ã o do p a tria rc a d o , p a r a a d efender, fu n d o u u m a sociedade secreta.
E m seu V ocabulário P o rtu g u ê s-N h e ê n g a tu — N h eên g a tu -P o rtu g u ês (p á g in a s 497-498) S tradelli
noa e n sin a :
"Q u a n to à o rig em do nom e aceito, a ex p licação que dela m e foi d ada p o r um velho ta p u io a
quem o b je ta v a m e h a v er sido a firm ad o que o nom e “ Iu r u p a r i” q u e ria dizer “ o gerado da
fr u ta ” ouvi o seg u in te: In tim ã a , Iu ru p a ri cêra onheên p u ta re o m u n h a ia n é iu r ú p a ri uá
( “ n ad a disso, o nom e de Iu r u p a r i q u e r dizer que fez o fecho de nossa boca” ) vindo, p o rta n to ,
<lu iu ru : boca, e p a r i: aquela g ra d e de te la s com que se fecham os ig a ra p é s e bocas de lagos
p a r a im p e d ir que o p eixe s aia ou e n tre . E x p lica ç ão que m e satisfa z , porque, de um lado,
c a ra c te riz a a p a rte m ais salien te do e n sin a m e n to de Iu r u p a r i, a in s titu iç ã o do segredo, e,
do o u tro lado, seu esforço se p re s ta à m esm a ex p licação nos v ários dialetos tu p i-g u a ra n is , como
hc pode v e r em M o n to ia as p a la v ra s y u ru e p a ri e das m esm as p a la v ra s em B a p tis ta C aetano” .
E essa fig u r a te ria de fa s c in a r o gênio de V illa Lobos, a quem devemos u m a d as suas m aiores
criações, e a S érgio L ifa r u m a inesquecível, d eslu m b radora in te rp re ta ç ã o co reo g ráfica.
Itclativ am en te à g r a fia do nom e desse h e ró i in d íg e n a se opôs D om ingos M agarinos, no seu
pitoresco A m e riq u a (O ficin a s A lba G ráfica, R io de J a n e iro 1939) n estes term o s:
" J u r u p a r i ou Iu r u p a r i, como é co rreto , p o rq u e n o n h e en -g a tu não existe a le tra i, n u n c a
s ig n ific a D iabo. Y u ru p a ri, n a teo g o n ia a m e ríg e n a, é o filho d a v irg em C hiucy, a M ãe do
P r a n to ..
A n tô n io B ra n d ão de A m orim , e n tre ta n to , q u ando em su a L en d a s em N h ee n -g a tu e em P ortuguês,
no s co n ta os episódios d a G uerra de B u ep é, escreve sem p re Iu r u p a ri, como se vê:
N h a a p y tu n a a p ig a u a etd Y u y tir a k e ty opuse a ra m a Iu ru p a ri.
N essa n o ite os hom ens fo ram p a ra a S e rra do Iu ru p a ri d a n ç a r o Iu ru p ri.
127
/
Esse estado de transe será, talvez, um estado de graça, vinculando
o homem a essas divindades, imprescindível ao contato com o Deus
Supremo, o Deus único.
Não o sentiu, desse modo, um Alfred Métraux, por exemplo, quando
viu na possessão mística, dada a sua fase inicial, «sintomas de um
caráter nitidamente psicopatológico ? Ela representa, nos seus grandes
traços, o quadro clínico do ataque histérico».
E igual atitude teve Durkheim, vendo numa manifestação coletiva
das filhas-de-santo (noviches, vodunces, iaôs) um fenômeno de multidão,
contra a opinião de Roger Bastide que, nesse fenômeno, vê
. . . u m c o n ju n to d ir ig id o d e tr a n s e s in d iv id u a is, ten d o ca d a u m d e le s ca
r á te r b em p a r tic u la r , e to d o s s e in se r e m n u m a tr a m a f e it a de rela ç õ e s
in te r p e sso a is. N ã o é o a ju n ta m e n to , o en tu sia sm o , a c o n cen tra çã o de in d i
v íd u o s n u m p eq ueno e sp a ço sa g r a d o q u e c r ia a o r g ia d io n isía c a . A d escid a
d a s d iv in d a d e s n ã o se f a z ao a c a so , e la se g u e u m a ord em f ix a , q u e é a
o r ig e m d os “L e itm o tiv s ” m u sic a is, e, re sp e ita n d o tod a u m a s é r ie de lim ite s :
a m u lh er g r á v id a em g e r a l, a m u lh e r m e n str u a d a sem p re e a s p e ss o a s de
lu to n ã o podem receb er o s s e u s r e sp e c tiv o s O rix á s. S e o tr a n s e f o s s e o
e fe ito da cr ia ç ã o de u m a a lm a c o le tiv a , o p rod u to da p r e ssã o de in d i
v íd u o s reu n in d o en tã o o s m em b ros d os o u tro s can d om b lés, v in d o s com o v i
z in h o s e a m ig o s se r ia m e le s tam b ém en v o lto s n a lo u c u r a g e r a l e ab an
d on ariam a m u ltid ã o , o s esp e c ta d o r e s, p a r a ir d an çar, e s tá tic o s , c o n v u lso s,
n a rod a c e n tr a l; ora, n ã o é de b om -tom , p a r a a s e ita , q u e e str a n h o s s e
d eix em p o ssu ir , n e s s e d ia , p e lo s d eu ses, e is to q u er d iz e r q u e o tr a n s e
fic a sem p re con tro la d o p elo g ru p o . M as o im p o r ta n te p a r a n ó s é q u e cad a
tr a n s e é d ife r e n te , sen d o de d e u se s d ife r e n te s. O ê x ta s e n u m filh o de
X a n g ô n ã o pod e id e n tific a r -s e com o d e u m a c r ia n ç a de O m olu, n em de
I a n s ã com a de Ie m a n já . A lém d isso , e s s a s d iv e r sa s d iv in d a d e s c o n stitu e m
fa m ília s , tê m u m a rela ç ã o a o u tr a s lig a ç õ e s d e p a r e n te sc o ou de a lia n ç a
m a tr im o n ia l, r iv a lid a d e s ou a m iza d es. V is to q u e o b a lé n ã o é sen ã o a re
p etiçã o dos fa t o s a n c e str a is, é p reciso , en tão, q u e ca d a u m d e sse s ê x ta s e s
p a r tic u la r e s se lig u e m a o s o u tr o s se g u in d o o s m od elos fo r n e c id o s p elo p a n
te ã o , io ru b a ou d aom ean o, b a n to o u caboclo.
N a rod a m ís tic a q u e v o lte ia n o cen tro da sa la , a s filh a s , em esta d o de
p o sse ssã o , n ã o podem s itu a r -s e a q u i e a li; ca d a u m a te m o s e u lu g a r
reserv a d o , q u e d ep en d e da situ a ç ã o de su a d iv in d a d e n o p a n teã o , dos la ç o s
d e h ie r a r q u ia ou d e m a trim ô n io ; O xum n ão p od e c o lo c a r -se d ia n te de Ia n sã ,
q u e é m u lh er p r im a c ia l de X a n g ô e, s e O ba d esce, e le b r ig a r á com O xum ,
porq u e e la s são d u a s r iv a is q u e s e d e te sta m p or c a u sa de u m a v e lh a
h is tó r ia de m a g ia am orosa. A q u e le q u e fr e q ü e n ta s e s sõ e s, com o h áb ito,
n ão c o n fu n d ir á o s ê x ta s e s a d o le sc e n te s d os d e u se s jo v e n s (m esm o q u e se ja m
v e lh o s q u e r e p resen tem e ss e s d e u se s) com o s ê x ta s e s c la u d ic a n te s dos d eu ses
m a is v e lh o s ; o s ê x ta s e s fe m in in o s e o s ê x ta s e s m a s c u lin o s ; o tr a n s e de
O r ix á s g u e r r e ir o s e o tr a n s e d e O r ix á s d a v o lú p ia . M as e s s e s tr a n s e s não
são ju s ta p o s to s , e le s s e in te r lig a m , são c o m p le m e n ta r e s; o s h o m en s d e fo r a
podem b em te r a im p r e ssã o de u m a lo u cu ra c o le tiv a p e la r e u n iã o 3 e p e sso a s
com u n gan d o a m esm a fé , a m esm a e x a lta ç ã o a f e t iv a ; n ó s n o s en c o n tr a
m os, de fa to , d ia n te de u m b a lé e x tá tic o , se m d ú vid a, m a s u m b a lé cu ja
tr a d iç ã o m ís tic a se r ia de en saio.
128
compreensível, seja do grupo-negro-africano, seja mesmo em língua
poil uguesa.
Falam uma língua atrapalhada» (reconhecia Mãe Andresa) e o
reconhecem todos, em determinadas ocasiões, porém algumas velhas
podem esclarecer: «Está falando jeje, está falando nagô».
Fragmentos de frases, repontando aqui e ali, talvez pudessem ser
Identificados por um especialista em paleolingüística, um discípulo de
O Asserelle ou de L. Homburger, e seclareceria: «Não é jeje nem nagô:
á fon...»
A origem dessas frases, de natureza arcaica ou esotérica ou fóssil,
poderá ser reconhecida como da chamada África poliglota, assim cogno-
mimula pelo primeiro desses autores, mas um sacerdote daomeano ou
Ini ubano apontaria, simplesmente, uma linguagem litúrgica ou secreta,
utilizada nos cânticos, nos exorcismos, nas preces, nos esconjuros.
No entanto, do mesmo modo por que, em certas danças, sob o do
mínio dos Voduns, pela boca das suas filhas, eles dizem pilhérias, so-
prum apelidos, não será de adm irar que, propositadamente, empreguem
ntu a língua, ou um dialeto de sintaxe absurda, e as frases se detur
pem cm desorientadoras sínquises.
Fxaminando-se, através da estrutura dos cânticos sagrados, as re-
pd ienes de frases, de palavras e, frequentemente, a mutilação das
mesmas, fui informado de que isso acontece, por determinação con
vencional, de fundo secreto, para evitar que o cântico seja facilmente
aprendido por pessoa estranha ao culto dos Voduns, sobretudo quando
no pode ser elevado em circunstâncias especiais, no pégi ou fora dele,
em sítio de acesso permitido apenas a iniciados e a iniciadas, onde con-
OlIlAbulos e despachos são realizados.
Um estudo da morfologia desses cânticos secretos, possivelmente,
denunciará, em grande parte, uma origem islâmica ou remotíssima
associação com outros povos do Continente Africano ou até mesmo
ilu Ásia.
Não tendo um conhecimento profundo da estrutura das línguas e
<1inícios que os escravos africanos falavam, quando trazidos para o
nirnso País (e ainda hoje podem ser reconhecidos através do folclore
lendas, contos, provérbios, adivinhas — e no que se relaciona com
n religião — cânticos, rezas, invocações, esconjuros), entendi submeter
n apreciação e conseqüente identificação de um especialista parte do
mui criai representado por uma dezena de cânticos litúrgicos, fixados
cm fita magnética, ao longo de minhas pesquisas.48
4M A priglnn 38, d a 1» edição d esta ob ra, como à p á g in a 60, focalizei asp ecto s lingüísticos, que
oarn elerizam povos a fric a n o s, d e n tro de u m a v e rd a d e ira B abel N e g ra . E escrevi: “ Sou dos que
M in.líinm que, n ão ra ro , como re c u rso p a r a d e sp ista r, os o fic ia n te s desse culto — receosos
dn perseguições e c astig o s d a p a r te dos sen h o res de escravos — m a n tin h a m o ra tó rio s com
•mulos católicos e a eles se d irig iam em lín g u a a fric a n a en g ro la d a com la tim ” .
Tnmlióm a c o n v ersa dos V oduns e n tre si n ã o d a v a p a r a que se entendesse, pois, como notou
llonom l; A guessy, n a m o ld u ra das lín g u a s fa la d a s, c ad a deus p o ssu ía su a lín g u a , in in teligível
p a ru os o u tro s deuses. D aí a im possibilidade de en ten d er-se-lhes a conversa. M as M ãe A ndresa,
■ffgundo presen ciei, q u an d o em tra n s e , bem os com preendia.
129
Esse material foi recolhido na Casa das Minas, de São Luís do
Maranhão, e no Quêrêbetan de Zuleide Figueira do Amorim (Jacare-
paguá, Estado do Rio de Janeiro), nisso colaborando Enedina de Oli
veira, maranhense, filha daquela Casa, cujo Vodun é Jagurubuçô.
Dirigi-me, então, ao prof. Pierre Alexandre, do Institut National
des Langues et Civilisations Orientales, em Paris (2, Rue de Lille, 7e),
dele recebendo carta que se encontra em apêndice nesta obra.
XII
Tratando dos Voduns, que deflagam o estado de transe ou posses
são, eu me referi a um alucinógeno indígena, da Amazônia Brasileira
e dos países vizinhos, incluído, geograficamente, sob essa denominação:
ayuasca ou ayahuasca. Erradamente chamada yagé, é, também, conhe
cida (no Rio Negro, Estado do Amazonas) pelo nome de caapi, sendo
esta última denominação tupi, e a prim eira e segunda, possivelmente,
quéchua ou aimara.
Leonard Clark, porém, num pequeno Vocabulário ou Apêndice à
sua obra The Rivers Ran East, diz que é um nome dado pelos Jivaro;
os Chamba, entretanto, que são do Equador, como os Jivaro — redu-
tores de cabeças (tsantsa) — chamam oni a beberagem, feita com pe
daços da casca do cipó ayuasca. Caapi, em tupi, é um vocábulo com
posto de dois elementos: caá (planta, mato) e pi (vermelho), de pinima.
O dinâmico professor e folclorista brasileiro, radicado nos Estados
Unidos (Universidade da Califórnia, os Angeles), Paulo de Carvalho
Neto, em seu Diccionario dei folclore ecuatoriano (Editorial Casa de
la Cultura Ecuatoriana, Quito 1964), a respeito desse vegetal, escreve:
Ahá huasca, aya huasca. L ia n a de la s s e lv a s a m a zô n ica s, u tiliz a d a com o
beb id a a lu c in ó g e n a p or lo s b r u jo s de la s tr ib o s a c u ltu r a d a s dei O rien te
e cu a to ria n o .
130
Brasileira, de nome Irineu; e um dos continuadores das suas ativida
des religiosas, posso informar também, é o rio-grandense-do-norte Da
niel de Matos.
Paulo de Carvalho Neto colheu essas informações, na sua infa
tigável e brilhante atividade de pesquisador, com o poeta cearense Josc
Eduardo, então comerciário na capital acreana.
Minhas observações a respeito desse alucinógeno foram iniciadas
no Vale do Rio Negro, no Estado do Amazonas, entre indígenas dc
diferentes tribos, que o usam desde tempos imemoriais. E visavam nãc
só a uma experimentação direta, individual, da ação dos alcalóides
que viajantes e cientistas (médicos e químicos) lhe apontam, mas a s u e
utilização nos terreiros do culto mina-jeje, na capital do Território
Federal de Rondônia, que é Porto Velho.
Tanto os pajés das tribos indígenas do Vale do Rio Negro, como
igualmente, os do Vale do Rio Purus, usam ayuasca (em forma d(
bebida, não fermentada, mas sim cozida) nas suas práticas mágicas
de encantamento e cura, de exorcismo e excitante genésico, não aban
donando, entretanto, outro alucinógeno — o ipadu ou patu, bem assiir
o fum i. . .
Tendo em elaboração um ensaio a respeito desse psicodélico ou alu
cinógeno, como bem entendam classificá-lo, a ele já fiz largas referên
cias em duas obras de minha autoria: Moronguetá, Um Decameror
Indígena (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967) e Panorama
da Alimentação Indígena (Comidas & Bebidas e Tóxicos, na Amazônia
Brasileira, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1974).
Nesta Nota, porém, posso adiantar observações ou experiências
pessoais e de outros pesquisadores, que se lhe relacionem.
O ensaio em preparo abrange, ademais, áreas ali referidas; é evi
dente, porém, que essas observações se interligam ao assunto desdo
brado na nota anterior e referente ao estado de transe, pois, para esse
fim, estão utilizando a ayahuasca nos terreiros mina-jejes dos limites
da Amazônia com os países hispano-americanos que com ela se limitam
Desde as mudanças do botânico Richard Spruce, pelo Vale do Ric
Negro, o mundo científico conhece a planta que proporciona as sensa
ções desse alucinógeno, planta pertencente à família Malpighiácea, ors
tendo o nome de banistéria caapi spruce, em homenagem, é claro, ac
seu descobridor, ora o nome de banisteriopsis caapi.
No México, Panamá, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Chile
Bolívia e Argentina — e em nosso país, sobretudo no Vale do Ric
Negro e no Vale do Rio Branco — algumas das 85 espécies, segunde
líecord & Hess, podem ser encontradas em áreas não citadas aqui c
já o foram no planalto goiano, notadamente em Brasília, por elementos
de uma equipe orientada por Graziela Barroso, chefe da Seção de Bio
logia Vegetal do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Em todos os países, acima referidos, essa planta tem as mais
estranhas denominações; o uso, porém, como estupefaciente, é mais
181
generalizado no Equador, Colômbia, Peru e Bolívia, quer entre os fei
ticeiros ou pajés, quer entre pessoas de todas as classes sociais.
Meu contato com a literatura, que já lhe foi dedicada, se iniciou
há mais de três décadas com a leitura do n9 100, da Revista da Flora
Medicinal, do Rio de Janeiro, ano II, julho de 1936.49
Ali os professores Luís Faria e Oswaldo de Almeida Costa publica
ram um trabalho intitulado A Planta que Faz Sonhar: o Yagé, com a
diagnose da autoria de A. Gresebach, uma descrição da morfologia de
seu caule e da estrutura microscópica deste, e um estudo histoquímico
que nela mostra a presença de yageína ou telepatina.
Os dois autores ficaram, assim, credenciados cientificamente para
afirm ar que «os principais alcalóides se acham localizados nas células
das raízes medulares da região cortical».
Estudos dos caracteres morfológicos e histológicos dessa planta
foram realizados e, também, os da folha.
Mas, já naquela época dos seus estudos, os dois autores escreviam:
E Einstein parece que abriu o seu coração para que o vissem san
grando, nos termos que seguem:
49. E m 1976 foi p u b licad a a o b ra H allucinogens a n d S h a m a n ism , p o r M ichael J . H a rn e r, u m a espécie
de a n to lo g ia in te re ssa n tíssim a , n a qual se destacam te m a s sobre a ay ah u asca, yagé e m escalina,
com trê s tra b a lh o s do p ró p rio e d ito r M ichael J . H a rn e r (O x fo rd U n iv e rsity , N ova Iorque 1976).
132
E le p o ssu i a co n sc iê n c ia d e q u e a a p lica çã o d a s su a s in v e s tig a ç õ e s se co n
cen tro u n a s m ã o s de u m a p eq u en a m in o r ia , em p rim eiro lu g a r , um poder
econ ôm ico e, em se g u id a , u m p od er p o lític o , de q u e d ep en d e, e str e ita m e n te ,
a so r te da m a io r ia , ca d a v ez m a is a m o r fa , dos se r e s h u m an os. V em os,
a ssim , h o je, d e lin e a r -se p a r a o hom em d e c iê n c ia u m d estin o v e r d a d e ir a
m e n te tr á g ic o . Im p elid o p e la s s u a s a sp ir a ç õ e s p a r a a c la r e z a e in d ep en
d ên cia , e le fo r jo u , por s u a s m ã o s, com u m a fo r ç a q u a se sob re-h u m an a,
a s a r m a s de s u a su je iç ã o e a n iq u ila m e n to de su a p erso n a lid a d e. E le se
v ê , a ssim , com o se fo s s e u m sold ad o, a su b m e te r -se ao silên cio im p osto
p e lo s d e te n to r e s do p od er p o lític o , a s a c r ific a r a su a p r ó p r ia v id a , e, por
v e z e s, o que é p ior, a d e str u ir a d os o u tr o s, a in d a q u e e s te ja con ven cid o
do ab su rd o de ta l sa c r ifíc io .
134
Banisteria de Lewin (1928). Encontrou-se no caapi um outro alcalóide,
o harmine, indicado contra a paralisia agitante (parksoniana).
Como o Dr. Theodor Koch Grünberg — com uma experiência
pessoal não tanto movimentada e discutível — o Dr. P. Reinburg, em
estudo comparativo, tóxico-fisiológico, descreveu suas sensações pessoais,
sob os efeitos dos alcalóides da ayahuasca ou caapi.
E o fez num estudo, publicado no Journal de la Société des
Américanistes, de Paris, intitulado: «Contribution à la l’étude des
boissons toxiques de indiens du Nord-ouest de 1’Amazonie — le
ayahuasca, le yagé, le huanto».
Posso dar aqui um resumo da experiência do Dr. P. Reinburg
nestes tópicos:
Um índio záparo, do Equador, recusou-se a procurar para o cien
tista o material necessário ao preparo da beberagem alucinógena, mas
um jovem peruano (de Iquitos, República do Peru, intelectualizado,
salienta ele) o conseguiu.
N u m a m a r m ita de b a rro — a ss im e sc r e v e u o D r. P . R ein b u r g — o p eru an o
p ôs um litr o d ’á g u a e q u a tro p ed aços, de tr in ta c e n tím e tr o s, d e a y a h u a sc a ,
p ila d o s e m a ch u cad os, e cin co fo lh a s de y a g é .
E m fo g o le n to , e n tr e dez e d ezoito h o r a s, s e p ro cesso u o co zim en to da
b eb eragem , p o sta d ep o is n u m a ca b a ça , de cor p a rd a , p ouco a g r a d á v e l à
v is ta . A p a g a d a a lu z o D r. R e in b u r g tom ou um p ou co do líq u id o, de sab or
acre, a m a r g o , n a u sea b u n d o , d eix a n d o n a b oca u m a n te g o s to v erd a d eira m en -
to d esa g r a d á v e l.
136
Foi Manuel Hipólito de Araújo (laboratorista da Secretaria de
Saúde do Estado do Acre) quem me levou até a Vila Ivonete, cujo
ambiente era festivo, visto a data ser consagrada à Assunção de
Nossa Senhora.
Ostentando uma farda branca, bem como um capacete da mesma
cor, mas de ornatos em nastro vermelho, ali estavam crianças, homens
e mulheres, estas se distinguindo pelo uso de bombachas sob larga
saia, sendo todo o trajo de fazenda branca.
Predominavam nos desenhos dos ornatos os corações de Jesus e
de Maria, e signos de Salomão.
Tendo por comandante e presidente Antônio Geraldo da Silva,
todos os filiados àquele culto se consideram oficiais e soldados de uma
verdadeira milícia, porém milícia de paz.
Eu os fotografei e filmei, mercê daquele ambiente tranqüilo, sain
do da casa do presidente — casa cujo interior foi todo decorado com
desenhos idênticos aos da cerca e das paredes externas.
Organizou-se um desfile processional: à frente a esposa do pre
sidente, levando um recipiente de vidro fosco, à maneira de um hos-
tiário, coberto por um guardanapo rendado, cujo conteúdo era a be-
beragem (chamada ayhuasca ou huasca, simplesmente), mas, para os
l iéis, chamada «santo-dá-me».
Cantava-se um hino apropriado à solenidade comemorativa da
Assunção de Nossa Senhora.
E os fiéis se foram postando, ordenadamente, de roda ao cruzeiro
erguido frente à capela, cruzeiro cercado por colunatas; e todos mur
muravam uma oração ininteligível.
E erguendo as mãos, ritmicamente, saudavam «santo-dá-me».
A seguir, encaminhando-se na direção da capela, ali se foram dis
tribuindo por bancos e cadeiras, impelidos, evidentemente, por inaba
lável fé, mas outros fiéis, naturalmente os mais graduados, se senta
ram à direita e à esquerda de larga mesa dominando a maior parte
da área central do ambiente.
A cabeceira foi ocupada pelo comandante (sic) daquela milícia
de crentes, ficando-lhe à esquerda uma das suas filhas e à direita
urn dos seus filhos.
O altar, ao fundo, estava iluminado a velas de cera e ornado com
flores silvestres, postando-se-lhe dois fiéis, de um e outro lado.
Ocupei uma cadeira, logo à entrada da capela, do lado direito da
porta principal, de modo a abranger todo o corpo do cenário.
Sobre a mesa, coberta de finíssima toalha, tendo a forma de uma
cruz, foi colocada aquela espécie de hostiário que a esposa do pre-
hídente conduziria à frente da procissão.
Então (depois de uma nova oração coletiva e em alta voz) a espo
sa do presidente do centro, com a compenetração de uma sacerdo
tisa, passou a distribuir, primeiramente àqueles que estavam em redor
137
/
da mesa, e, logo, às demais pessoas ali reunidas, pequenas porções da
beberagem feita com a ayahuasca, em cálices de tamanho regular,
cabendo-me um deles com a quantidade que ingeri, sem temor e re
pugnância, pois já a conhecia, como acima referi, desde minhas via
gens e pesquisas pelo Vale do Rio Negro, principalmente.
O líquido era menos espesso (e menos castanha a sua cor) que
o bebido entre os índios do Rio Uaupés, por exemplo, sendo o
sabor amargo, com certo travo, tal o do caju e de outras frutas sil
vestres da Amazônia.
Às crianças foi dada menos da metade da porção que recebi, porção
medindo cerca de 20 gramas ou um pouco mais.
À cabeceira da mesa o presidente começou a entoar um cântico
de abertura de sessão (sessão segundo o expressar dos kardecistas) ;
depois dele um dos seus filhos, o que se lhe sentara à direita, fez um
solo, em tom esgoelado e fanhoso, cuja letra era quase imperceptível,
embora o tema fosse em linguagem corrente.
Decorridos alguns minutos, a filha do presidente, que lhe estava
à esquerda, saiu da capela para voltar imediatamente, sobraçando um
violão que entregou ao pai.
Este, então, com a segurança de um exímio executante, dedilhando
as cordas do instrumento (a meu ver que não estava em desacordo
com o ambiente e embora os boêmios tenham por ele justificada pre
dileção), passou a fazer a cortina musical do cântico inicial e de todos
os demais, entoados por um coro de vozes que iam do baixo profundo
ao contralto, não sem certa desafinação.
A essa altura comecei a sentir-me inquieto, levantando-me e
sentando-me logo a seguir, desordenadamente, ajeitando as máquinas
de filmar e de fotografar, indo até à porta da capela, voltando a
sentar-me não no primeiro lugar que escolhera, mas noutro vizinho
de uma janela, mirando a fisionomia dos circunstantes, com descon
fiança e, por fim, certo de que eles, de olhos desorbitados ou langues,
nas pálpebras semicerradas, estavam a espreitar-me inquisidoramente.
Meus movimentos eram acompanhados de um tremor de calafrio e
meu cérebro principiou a ser invadido por uma sombra, entrecortada
de clarões, fugazes como relâmpagos refletidos na água de um poço
estagnado.
Minhas mãos, tomadas de agitação carfológica, mal sustentavam
já as máquinas e eu tinha a sensação de que os meus olhos se de-
sorbitavam como os das crianças principalmente, defronte a mim,
irrequietas também, nos bancos, ao longo das paredes.
Vendo uma senhora que, debruçando-se a uma janela, se pusera
a vomitar, senti ímpetos de o fazer, mas contive-me.
Assim, levantei-me, fui até à porta central da capela, descendo
os degraus da escada de acesso.
138
E pus-me a relancear a paisagem em frente, o açude da Fazenda
do Antão, do outro lado, as árvores floridas do caminho que dali le
vava à rodoviária municipal, e voltei a sentar-me diante das crianças,
a atar e a desatar as correias das máquinas.
A música arrancada do bojo do violão e os cânticos elevados pelos
circunstantes continuavam, estridentes e fanhosos.
Alguns homens e mulheres, a essa altura (como os dois tipos de
acólitos, postados de um e outro lado do altar), já mostravam estar
sob os efeitos dos alcalóides da ayahuasca.
Tinham os olhos semicerrados, os lábios crispados, a cabeça voltada
para trás, apoiada no espaldar das cadeiras ou a testa apoiada na
mesa sagrada; e outros fiéis, sentados nos bancos, mostravam o tronco
ereto, conquanto as máscaras se lhes assemelhassem às dos dois acólitos.
Um daqueles acólitos (soube depois que era de nacionalidade perua
na) me pareceu te r afivelado ao rosto a máscara de um pastor aimara,
no altiplano-andino, de um tuxuaua tariano, de um feiticeiro mongol;
e essa máscara se desdobrava noutras várias, à minha vista, espectral-
mente, em expressões e coloridos os mais estranhos e diversos.
Receoso, então, de que o efeito da droga me levasse a imprevistos
desagradáveis, deixei o lugar onde me sentara e dirigi-me para a porta
central da capela, cuidando de safar-me dali.
Na ocasião ia entrando uma das fiéis que perguntou se eu me
sentia bem; pareceu-me que ela, igualmente, já estava sob a ação do
estupefaciente; lembro-me, entretanto, que evitei mirá-la nos olhos.
E lembro-me que (pretextando te r de voltar à cidade, no carro à
ininha espera, no início do caminho), quase correndo, abandonei aquele
ambiente, sem despedir-me dela e sem pensar em fazê-lo, procurando
o laboratorista que até ali me levara.
O pequeno caminho, da capela ao carro, era acidentado, com la
deiras e duas pontes rústicas, em mau estado; à minha direita se esten
dia um cercado, campo de pequena lavoura ou de incipiente pastoreio,
com altas árvores, de copas em floração, multicoloridas e trescalantes.
De súbito, parando à pequena distância da cerca, me pareceu que,
de um pedaço do aramado, pendia um corimbo, cujas flores eram duma
estranha coloração verde, todas elas pintalgadas de branco.
Instintivamente, horrorizado, recuei, fitando-as; e vi, sim, eu vi
naquele corimbo, em vez de flores, três cobras enroscadas, imóveis, de
olhos fixos em minha pessoa, como prontas a assaltar-me.
Pareceu-me que aquelas cobras tinham a mesma forma e a mesma
cor da chamada cobra-papagaio, rigorosamente semelhantes a algumas
que eu já encontrara nas minhas viagens através das matas amazônicas,
ali chamadas surucucu-patioba (ver Rodolfo von Ihering, em seu Di
cionário dos Animais do Brasil) e paranan-bóia (ver Alfredo da Mata,
em seu Vocabulário Amazonense) e mais comumente chamada, pela
139
gente do interior dos Estados da Amazônia e Territórios, cobra-
papagaio.61
Naquele instante, vendo metamorfosear-se em cobras todo o corim-
bo de flores amazônicas, eu já estava francamente sob a ação dos
alcalóides da ayahuasca, tendo a visão desviada da realidade ou, talvez
— mercê de um dos seus mais curiosos alcalóides —, a telepatina,
vendo, precisamente, três cobras onde apenas a minha visão normal
identificaria somente flores. . .
Chegando ao Hotel Chuí caí em sonolência inquieta e, depois, em
sono profundo, com sonhos incoerentes, com figuras de formas incon
cebíveis, humanas e animais, coloridas e grotescas como os das telas
de Hieronymus Boschou ou de Chirico.
As cobras reapareciam, dentre figuras antropomorfas, plantas e
flores tropicais, corais e anêmonas, de recifes submersos.
Ora, uma constante desses sonhos ou mirações (mirações, como são
chamadas entre os adoradores do santo-dá-me) é uma cobra; e isso
tanto para os indígenas dos Vales do Rio Negro e do Purus, como
para os demais moradores, semicivilizados ou inteiramente analfabetos.
Alucinações tidas por pessoas que — já pela prim eira vez ou já
viciadas — recorrem a essa droga, nos depoimentos que me fizeram,
sempre salientaram a presença de uma cobra só ou de inúmeras, ema
ranhadas como cordoalhas, coloridas, luminosas ou negras, serenas ou
agressivas.
A música, segundo afirmação de alguns amigos, contribui para que
esses sonhos ou mirações sejam mais belos, irreais, difusos ou de uma
nitidez indescritível.
Confissões intimistas, com mulheres e homens, na área onde está
localizado esse centro salientaram que a droga estimula as forças mais
incontrariáveis do erotismo.
Certas definições do culto dessa planta sacralizada, a ayahuasca
ou caapi, não bastam a uma identificação positiva do culto, em que
se misturam a fitolatria, o espiritismo e o esoterismo, com lábaros nas
demonstrações externas, nas quais aparecem corações estilizados e de
impressionante colorido, com inscrições à entrada principal e da cerca
enquadrando a capela e a casa do presidente, tais como FONTE DE
LUZ, AMOR, PAZ, UNIÃO, e até mesmo nos braços de uma Cruz, à
direita do portão principal.51*
51. C ontam -se v á ria s lendas e acidentes sobre essa c o b ra-p ap ag aio , atribuindo-se-lhe u m veneno sem
igual, segundo uns, e to ta lm e n te inócuo, segundo outros.
Com o nom e c ie n tífic o de B o th ro p s bilin ea tu s, o zoólogo Rodolfo von Ih e rin g e o m édico
A lfredo d a M a ta e x te rn a ra m opiniões d isco rd an tes q u a n to à sua periculosidade, esereyendo o
p rim e iro deles: “ V ive n a s m a ta s do E s p írito S a n to à A m azônia, de p re fe rê n c ia p e rto das ág u as.
T re p a em árv o re s e com o seu colorido se co nfunde com o v erde d a vegetação, é perigosíssim o
e n co n trá -la assim , à a ltu ra d a cab eça; felizm en te é r a r a ” . A lfredo d a M a ta escreve: “ P a ranan-boia:
cob ra verde. V id a a rb ó re a B o th ro p s in lin e a tu s, p e cu liar em m a ta s inun d áv eis do B rasil. C obra-
p a p ag a io . N ão é p eço n h en ta, a p e s a r d a c re n ç a g e ra l em c o n trá rio ” . V on Ih e rin g , descrevendo-a
(v e r o v erbete ja r a r a c a v e rd e ), assev era que, segundo A frâ n io A m aral, ela s e ria a A m a r i m boia,
isto é. Bos ca nina. A m bos os c ie n tista s, porém , são u n â n im e s n a su a id e n tific a ç ão taxonôm ica.
N o que con cern e à su a periculosidade, e n tre ta n to , b a sta considerarm os que ela p e rte n c e à
fa m ília Crotalidae e ao g ênero B o th ro p s que, com o L achesis, nos a p re se n ta m algum as dezenas
de re p re se n ta n te s, reco n h ecid am en te m o rtífe ra s.
140
Num poste colorido, encimado por uma cruz, intriga a figura de
pequeno barco, igualmente colorido, com uma bandeirinha à proa, cujo
campo é dominado por uma estrela.
Utilizando esse barco, os fiéis podem viajar até os invisíveis e
entender-se com eles, ou, do mesmo modo, com os Encantados. . .
Tudo o que se deseja, contudo, sempre há de obter-se através de
santo-dá-me, isto é, da ayahuasca.
Para conseguir pedaços do cipó, os fiéis, disso incumbidos, estão
obrigados a tomar banhos propiciatórios, banhos de descarga, odoríferos
ou mesmo fétidos, defumando-se a si próprio e defumando o terçado
com que se cortarão os necessários ao preparo da beberagem.
No preparo do sagrado estupefaciente empregam vasilhas apro
priadas (de alumínio, estanho ou barro) e, machucando-se os pedaços
de cipó, de duas a três polegadas, nelas são os mesmos levados a
cozinhar, até que a água em que foram postos ganhe a densidade de
um xarope e uma coloração castanho-clara mais do que escura.
Essa beberagem, ritualisticamente absorvida, segundo me assegu
rou o laboratorista aqui referido, leva os fiéis do santo-dá-me a concei
tuar, filosoficamente: «que a carne não vale nada», «que os planos de
todo o Universo são conhecidos» e «que tudo quanto se vê é realidade».
O nome de ayahuasca, ou caapi, soga-da-morte ou liana-da-morte,
está ligado ao de jagubé, arbusto que se associa à decocção de que
resulta a beberagem mística.
Descoberta por Richard Spruce em sua viagem ao Vale do Rio
Negro, em 1853, no sítio Urubuquara (e não Urucu-cora como o Dr.
Ramón Pardal escreve), próximo à cachoeira de Ipanuré (e não Pa-
nuri), essa planta — e agora a beberagem ou bebida que com ela se
prepara e é consumida nas cidades e vilas do interior, bem como nas
capitais do Estado do Amazonas, na do Estado do Acre e na do Terri
tório Federal de Rondônia —, essa planta polarizou o interesse não só
dos botânicos mas também dos etnólogos, sociólogos, psicólogos, psi
quiatras, neuropatologistas e toxicólogos.
Um antropólogo, da estatura do Dr. Theodor Koch Grünberg, expe
rimentou os efeitos da droga, como Spruce o fizera, tendo o seu acom
panhante, apropriadamente, referido pelo Dr. Ramón Pardal, experi
mentado «a visão de infinitas luminosidades, de vivas cores, acompa
nhadas de flores vermelhas, dispostas em imagens geométricas. Seu
companheiro teve sonhos álacres com a aparição de pessoas do sexo
feminino».
Na evocação dos contatos, historicamente consignados, outras per
sonalidades científicas aparecem (Bonpland, Martius, Weiss, Paul
Itivet), registrando as características morfológicas, a ação inebriante
dos seus alcalóides.
Caucheiros, seringueiros, madeireiros, garimpeiros e outros explo
radores das riquezas naturais da Amazônia Brasileira (e, igualmente,
da peruana, boliviana, colombiana, equatoriana, venezuelana) conhecem
141
a prodigiosa propriedade de, com o auxílio mágico da telepatina conti
da nesse vegetal, redescobrir os caminhos e rum ar seguramente para os
lugarejos donde se haviam lançado à Selva Selvagem.
Daí — por força dessa propriedade, principalmente — ser a
ayahuasca chamada, também, Yerba dei Cauchero.
O aproveitamento desse vegetal nos centros de religiosidade da
Amazônia, talvez por se conhecer que os pajés, ou medicine men, dela
se valem no exercício da sua medicina primitiva, não têm apenas na
Vila Ivonette (Cidade do Rio Branco, Estado do Acre) um dos seus
mais importantes e originais pontos de referência, mas foi na cidade
de Porto Velho, capital do Território Federal de Rondônia, que encon
trei, como inovação no ritual mina-jeje, oriundo da Casa das Minas, o
uso da ayahuasca. E isso, sem dúvida, para estimular, paralelamente,
com os cânticos rituais e com a voz sagrada dos tambores, ogãs e gôs,
o estado de transe, a possessão que ligam os Voduns do panteão dao-
meano ou do ioruba às gonjais e noviches que os cultuam.
Páginas atrás, discorri acerca do chamado estado de transe —
estado tão complexo quanto mal ou incompletamente definido.
O terreiro era da mãe-de-santo, conhecida pela alcunha de Chica
Macaxeira.
Mostraram-me ali pedaços da ayahuasca, conhecida, também, po
pularmente, como nos Vales dos rios Negro e Purus, pelo vocábulo
tupi cipó.
É claro que não pude identificar aqueles pedaços como de uma
Malpighiácea (à falta de folhas, frutos, raízes ou de outros elementos
indispensáveis a uma classificação científica) ou como fragmentos da
casca do tronco ou haste de acordo com as regras da moderna taxo-
nomia, sugeridas pelo botânico Corner, do Museu de Singapura.
Por essa razão não deixei de manifestar minha desconfiança de
que aqueles pedaços de cipó fossem da legítima ayahuasca.
No entanto — como me foi dado observar, naqueles vales, entre
índios e semicivilizados — logo duas ou três pessoas presentes secun
daram a palavra da mãe-de-terreiro, afirmando: «É a ayahuasca. É.
E da verdadeira».
Aquele vegetal (ali também considerado sagrado, com extraordi
nário poder de condutor ou deflagrador do estado de transe, da posses
são mística) é utilizado no preparo de uma bebida, com as mesmas
características da que ingeri na capela da Vila Ivonette, episódio ci
tado páginas atrás.
A descrição que me fizeram, naquele terreiro, do preparo dessa
bebida, corresponde, mais ou menos, à do centro de santo-dá-me, mas
fizeram mistério de outros ingredientes, vegetais ou mágicos, que, ne
cessariamente, lhe associam.
No terreiro de Chica Macaxeira, em Porto Velho, é dado a essa
mistura o nome geral de doutrina da ayahuasca, cada cântico contendo
142
uma doutrina. 0 texto de muitos dos cânticos por mim recolhidos tem
origem no folclore profano e no religioso católico; também são repeti
dos, porém estropiados, textos de cânticos em língua africana.
Nomes de santos católicos, nalguns desses cânticos, se misturam
com os dos Voduns mina-jejes, tais como Xangô, Badé, Avêrêquête, e
os ditos Barão de Goré, Sultão das Matas, Marangalá, Jatêpequare,
Tindarêrê etc.
XIII
Meditando sobre a utilização dessa droga no terreiro de Chica
Macaxeira, instalado para o culto dos Voduns do Panteão daomeano,
com evidente e constrangedora preocupação, fui levado a lembrar-me
de que, de acordo com as leis e a tradição do culto, na Casa das Minas,
não se encontraram ali notícias da utilização de estupefacientes trazidos
do Continente Africano ou de uso entre os indígenas do Brasil.
Sob o domínio dos Voduns, as noviches e gonjais, freqüentadoras
da Casa, nada bebem antes de entrar em transe; mas, depois das festas
profanas e até mesmo das religiosas, consomem bebidas tais como vinho
tinto, vinho do Porto, vinho Moscatel, conhaque e até cachaça.
Dois tipos de aluá, descritos no texto desta obra, continuam a
ser distribuídos generosamente, mas as bebidas com teor alcoólico o são
discretamente, não só à assistência, mas às gonjais e noviches.
Os tocadores dos huns, gôs e ogã, entretanto, não deixam de, por
vício ou estímulo, «bicorar uma cachacinha», «beber um trago dela»,
«tomar uma lam bada.. fazendo-o, entretanto, furtivamente.
Intriga-me que os escravos, trazidos para o Maranhão, não carre
gassem consigo a técnica adotada, nos seus lugares de origem, para o
preparo de vinhos de palmeiras e de cervejas, à base de milho, arroz
sorgo, vinhos e cervejas de larga distribuição e mais largo consumo
no Continente Africano.
Os estudos sobre o alcoolismo, nos diferentes territórios da África
Oriental Francesa, realizados por E. Bismuth e C. Ménage, publicados
no Bulletin de 1’Institut Français d’Afrique Noire (vol. XXIII, nn. 1-2,
janeiro-abril de 1961), proporcionam à consideração valiosas informa
ções a respeito das bebidas alcoólicas autóctones, cujo número contrasta
com a riqueza da alimentação africana.
Duas apenas — os vinhos de palmeiras e as cervejas de cereais
— foram apontadas numa carta ilustrativa, levantada para registrar a
predominância e a importância do consumo.
Os vinhos das palmeiras, no sul do Daomé, por exemplo, eram
extraídos abundantemente e quase consumidos, inteiramente, sob a for
ma de álcool de palme; as espécies de palmeiras eram a Elaeis grinensis
•lacq., a Raphia P. Beauy e o Ronier Porassus flabellifer Linn., var.
Acthiopicum Warb.
143
/
0 chamado vinho de palmeira a óleo era a bebida por excelência
consumida desde o Golfo de Guiné, do Daomé à Costa do Marfim,
sendo a árvore abatida. Uma palmeira do Daomé fornece cerca de 60
litros e, na Costa do Marfim, 100 litros.
O vinho da pequena palmeira rafia é usado em quantidade menor
do que a produzida pela palmeira a óleo; o seu consumo abrange o
norte da Costa do Marfim e o norte do Daomé; o seu rendimento
é de 1 a 2 litros por dia, durante quinze dias, morrendo a árvore depois.
O vinho de ronier (os autores citados esclarecem) é o menos apre
ciado dos vinhos de palmeiras.
O método de extração desses vinhos não mata a árvore.
Quanto às cervejas de cereais, feitas de milho miúdo «correspon
dendo ao termo vernacular de dolo, em bambara, constituem a bebida
principal — e de longe — da savana animista».
As cervejas de cereais são feitas, além da que utiliza o milho pe
queno, com sorgo; por essa razão, os autores do estudo a que me
estou referindo, em nota de pé de página, esclarecem: «Por comodi
dade diremos sempre mil (milho pequeno), mas pode também tratar-se
de sorgo ou milho».
Vinhos de frutas (como as que os indígenas da Amazônia e, igual
mente, os civilizados dessa região, costumam utilizar para o preparo
de algumas bebidas que, pela fermentação demorada, atingem elevado
teor alcoólico) são indicados pelos autores H. Bismuth e C. Ménage.
Não esqueceram eles o hidromel, assim se pronunciando:
144
gistram que os Zulus utilizam a Sphendamnocarpus pruriens Planch.,
Malpighian hair, chamada pupuma pelos Chopis; e esse mesmo povo
«usa a planta juntamente com a Securidaca longipedunculata Fresn
como um medicamento para a gente possuída por espíritos diabólicos».
Estudando os Macondes, de Moçambique, Jorge Dias e Margot Dias,
numa obra publicada pelo Centro de Estudos de Antropologia Cultural,
da Junta de Investigações do Ultramar (Lisboa 1964), dedicaram um
capítulo às bebidas fermentadas, dizendo que, «em geral, estas bebidas
são preparadas para determinadas festas rituais», mas no III volume,
onde a religião dos Macondes é estudada particularmente, não verifi
quei se, com os escravos vindos para o Brasil da terra de Moçambique,
foram introduzidas plantas com as propriedades inebriantes e com o
poder de, como a ayahuasca, servir de condutor e deflagrador do estado
de transe ou de possessão. 52
No capítulo II, do II volume da referida obra, dedicada à alimen
tação, ao tratar-se ali (p. 48) de estimulantes e narcóticos, os cien
tistas portugueses escrevem:
XIV
Com relação ao tabaco (fumo), há uma observação a registrar-se,
porque, com uma etiqueta especial, para os acender e para os usar, os
Voduns, na sua maioria, empunham um cachimbo, de cabeça de barro
TrÔH V oduns, que b aix am ou se m a n ife stam (como dizem os e sp írita s, e sp e c ia lm en te), n ã o fum am :
Ihtdá, e, do m esm o modo, a g e n te de Sobô e L oco; m as A vêrêq u ête, A b ê , A ja h u tó , fu m am ;
PôU -Boji, S en h o r de m in h a m ãe, f u m a v a .. .
O fum o, como Be vê, n ão d ev erá ser de uso im p e ra tiv o p a r a que eles baixem ou Be m anifestem .
145
/
cozido e longos taquaris, isto é, tubos de uma Euforbiácea — a Mabea
taquery Aubl., segundo Paul Le Cointe, que adianta mais: «os renovos
são ocos e têm nós muito espaçados; são utilizados para fabricar ca
nudos de cachimbos».
Esses cachimbos não são individuais, quer dizer, não pertencem
particularmente a determinado Vodun, mas há os que preferem os de
tubo mais longo, cuja cabeça possa ser apoiada no chão.
De roda, sentados na sala de espera, da Casa Grande das Minas,
eles, entre uma e outra baforada de fumo, conversam em tom baixo,
discreto, quase ciciado.
Na África longínqua os seus ancestrais e, ainda hoje, os seus irmãos
fumavam assim, no interior ou à porta das suas barracas.
Tanto pelo valor do testemunho como pela abundância de porme
nores ilustrativos, visando o assunto e a afirmativa acima, vou recorrer
às palavras dos antropólogos Jorge Dias e Margot Dias, quando, no seu
estudo sobre os Macondes de Moçambique, assim se manifestam:
O ta b a co é c u ltiv a d o p or a lg u n s , n a s b a ix a s , e d ep o is v en d id o, em fo lh a s
o u en ro la d o , à q u ele q u e o n ã o tem . F u m a -s e com o c ig a r r o em b ru lh ad o em
c e r ta s fo lh a s c o m b u stív e is, o u em cach im b o.
O cach im b o m a con d e é do tip o n a r g u ilé e c h a m a -se inyungwa. É com p osto
p or u m fo r n ilh o d e p a u -p r e to ou à s v e z e s d e p ed ra ( chiyeu ) , a d a p ta d o à
e x tr e m id a d e de u m bam b u . A o u tr a ex tr e m id a d e e s tá m e tid a n a p a r te
su p e r io r de um coco, on d e p e n e tr a v á r io s c e n tím e tr o s, de m a n e ir a a m er
g u lh a r n a á g u a . D o o u tro lad o do coco, s a i o u tr o bam b u , p or on d e s e fu m a .
Os d o is b am b u s e stã o lig a d o s e n tr e s i p o r d u a s r ip a s do m esm o m a te r ia l,
q u e se r v e m p a r a d a r so lid ez ao co n ju n to e p a r a p e r m itir q u e o cach im b o
p o ss a m a n te r -se d e p é, ap oiad o no p ro lo n g a m en to d e ss a s d u a s r ip a s. D e n tr o
do coco e s tá a á g u à , e, com o o r e c ip ie n te é fe c h a d o , o fu m o a tr a v e s sa
sem p re a á g u a a n te s de s e r a sp ira d o p elo fu m a d o r. E s t e cach im b o é co
le tiv o . C ostu m a e s ta r sem p re n a chitala, à d isp o siçã o de q u em q u ise r fu m a r .
Q uando a lg u é m o en ch e e fu m a , tir a u m a ou d u a s fu m a ç a s e p a s s a logo
ao v iz in h o . Só, à s v e z e s, c e r to s v e lh o s se dem oram m a is tem p o a fu m a r ,
q u an d o, d ep o is de o cach im b o te r dado a v o lta u m a ou d u a s v e z e s, n in g u é m
m a is o q u er. C om o c ig a r r o su ced e o m esm o. D e sd e q u e h a ja g e n te , o
q u e a cen d e o c ig a r r o p a ssa -o lo g o ao v iz in h o . Isto e v ita q u e a s p e sso a s
so fr a m a s c o n seq ü ên cia s n e fa s ta s do u so ex a g e r a d o do ta b a co . M u ita s v e z e s
o s M acon d es, q u an d o tê m u m c ig a r r o e e stã o só s, fu m a m u m pouco e
d ep ois e n te r r a m a p o n ta do c ig a r r o n a a r e ia , p a r a q u e se a p a g u e , e v o lta m
a fu m á -lo m a is ta rd e. S ão p o u c a s a s m u lh e r e s q u e fu m a m . S ó a q u e la s que
v iv e m m a is em c o n ta to com a g e n te do lito r a l ou da s e n z a la ; m a s a m a io r
p a r te d os r a p a z ito s j á fu m a , em b ora m u ito pouco, p orq u e a econ om ia r íg id a
d o M aconde n ão c h e g a m u ito p a r a v íc io s. M as n ão e x is te m p ro p ria m en te
r e g r a s m o r a is c o n tr a o u so do tab aco.
146
Tratando de suas propriedades medicinais, escreve:
A s su m id a d es flo r id a s em p r e g a m -se p a r a d iv e r s a s p r e p a r a ç õ e s q u e p ro
d u zem e fe ito n a rcó tico e p rovocam u m a c e r ta e m b ria g u ez v o lu p tu o sa , s e
g u id a , à s v e z e s, de v io le n ta e x c ita ç ã o e m esm o lo u cu ra fu r io sa . O ex tr a to
é con h ecid o p elo nom e de h a sch ich . N a A m a z ô n ia n ão é raro o u so d e sta
p la n ta m istu r a d a com o fu m o . C u ltu r a e com ércio sã o p r im itiv o s, m a s
fa z e m -se c la n d e stin a m e n te sem n e n h u m a r e p ressã o .
147
0 Dr. Alfredo Brandão, no seu livro Viçosa de Alagoas descreve
assim o cachimbo: «o cachimbo é de argila com cabaça cheia de água
onde o jato do fumo se resfria, antes de penetrar na boca do fumante».
O Estado do Pará recebeu Negros escravos através do Maranhão
e também diretamente.
A diamba, que lá tem sinônimos pitorescos, entre os quais o de
rêve d’or — um produto da perfum aria francesa, denunciando suas
relações com Caiena (Guiana Francesa) —, é usada pelos pescadores
de guri juba que, em suas típicas vigilengas, se aventuram em águas
da chamada Costa Negra do Amapá, domínio de ciclones e pororocas.
E esses mesmos sinônimos são comuns ao linguajar dos viradores-
de-terras, personagens de uma tragédia social, que se desenrola entre
homens simples e abúlicos, empregados na lavoura do tabaco e no
pastoreio, sobre a ribalta verde dos campos de Bragança, limítrofes com
terras do Maranhão.
Daí poder-se afirm ar que a origem das plantas da diamba, naqueles
Estados e naquele Território, está historicamente ligada à introdução
de Negros escravos que os seus colonizadores empregaram na lavoura,
no pastoreio e na pesca, em pleno regime colonial.
No entanto — voltando-me, após tão ampla digressão, ao tema do
emprego de um estupefaciente no ritual do culto mina-jeje dos Voduns
— posso afirm ar que, na Casa das Minas, de São Luís do Maranhão,
que freqüento desde os primeiros dias de minha infância, nunca me
constou sequer fossem as suas noviches levadas ao estado de transe
sob a ação excitante e alucinante, da diamba.
Minha mãe e minha tia Ida, pondo-me ao correr de fatos e prá
ticas, relacionados com a tradição da Casa de Mãe Andresa Maria
e com as normas de proceder de suas filhas e filhos, não me ocultariam,
evidentemente, essa utilização e suas conseqüências, com vistas a atin
girem o estado de transe, que a diamba poderia deflagrar.
Essa prática era corrente entre certos povos da África N eg ra.63
Acontece, porém, que noutros terreiros onde os Voduns mina-jejes
são cultuados já essa droga é utilizada com inocultável propósito de
atingir-se o estado de transe místico.53
148
XV
149 /
formas de reação, político-econômica, mais positivas do que entre nós,
para conservação dos elementos típicos do contexto cultural, trazidos
consigo no porão ou no tombadilho dos tumbeiros.
O fato é que, festejando o Vodun Azacá, que é para os haitianos
uma divindade das montanhas e dos campos — segundo o culto Radá-
Daomé — há oportunidade para se ver «os devotos possuídos por ele»,
enquanto dançam, curvam-se fazendo menção de plantar e mondar e
algumas vezes beijar o chão, em movimentos desengonçados e rudes
para melhor simbolizar a gente da montanha trabalhando nos campos.
E, na plenitude de sua vida livre, já hoje, nenhuma festa profana
haverá mais propícia à explosão da sua sensualidade que o Carnaval,
na qual, também, encontram oportunidade para homenagear os seus
Voduns ou Loas.
Quando as mulheres da Casa das Minas, antigamente, com jarras
e potes à cabeça ou aos ombros, iam apanhar água na Fonte do Apicum,
eram obrigatórios os passos de dança e os cânticos de texto africano,
alegres e comunicativos.54
O progresso urbanístico de São Luís transformou aquele local num
bairro residencial e instalou canos do Serviço d’Água no Bairro de São
Pantaleão, o que anulou a tradição a que obedeciam as mulheres na
apanha de água — esse elemento natural, de grande importância no
Culto dos Voduns mina-jejes.
Uma festa, com o mesmo simbolismo da que Negras baianas rea
lizam na lavagem dos degraus e pavimento da Igreja do Bonfim, deve
ria ser realizada quando as da Casa das Minas lavavam as jarras que,
no pégi, conservam a água e estão agrupadas ali segundo as famílias
dos Voduns.
Dela não ficou, entretanto, nem a tradição.
E lá mesmo muitas das festas, por exemplo, ao findar a iniciação
das filhas dos Voduns, pouco a pouco foram perdendo o esplendor e
simbolismo, sumarizando-se o período da reclusão das iniciadas para
a aprendizagem das leis e as normas requeridas na organização das
solenidades que, obrigatoriamente, se lhes seguia.
A chamada Festa de Pagamento, de incontestável originalidade e
munificência — quando os Voduns baixam, com o expresso fim de
recompensar os runtó, os tocadores de agogô e da gã — também teria
de sofrer limitações impostas pelas condições financeiras da Casa
Grande, mas, igualmente, dada a pressão das autoridades policiais,
pois em São Luís, como em Salvador, Recife e Belém, não deixaram
54. N a o b ra de A lfred M é tra u x L e H a iti, la terre, les h om m es e t les d ie u x , à p á g in a 70, eis a
que nos diz ele a re s p e ito d a d a n ça :
“ L a dan se e st in tim e m e n t associée au cu lte e t y occupe u n e place si essentielle q u ’on p o ü rr a it
p re sq u e d é fin ir le voudou com m e u n e “ relig io n d an sée” . Le ta m b o u r s u r lequel on b a t le ry th m e
des denses e st devenu e n quelque so rte le symbole m êm e du voudou, si b ie n que “ b a ttr e ta m b o u r’*
a p ris , d a n s le la n g a g e c o u ra n t, le sens de ‘céléb rer le culte des Zoa’” .
A tra d u ç ã o do te x to a c im a é a seg u in te:
“ A d a n ç a e stá in tim a m e n te associada ao culto e nele o cupa um lu g a r tã o essencial que se
p o d e ria quase d e fin ir o V odum como u m a “ relig ião d a n ç a d a ” . O ta m b o r, sobre o qual é
b a tid o o ritm o das d a n ç a s , se to rn o u , de q u alq u er modo, o sím bolo m esm o do V odum , de ta l
m a n e ira que “ b a te r ta m b o r” , n a lin g u ag em c o rre n te , s ig n ific a v a “ c eleb rar o culto dos Zoa” .
150
elas de exorbitar, truculenta e nefastamente, obedecendo estas a uma
técnica demagógica e, ao mesmo tempo, tirânica: não dando ao povo
pão e circo, mas deles o privando, ostensivamente, no que se ligava
ao culto dos Voduns.
Tema interessante para ser estudado comparativamente é o do
Negro e seus descendentes, no Brasil e nos Estados Unidos da Amé
rica do Norte, recorrerem à Igreja Católica com finalidades tão di
versas: os Negros escravos, em nosso País, fundando-lhe à sombra
as suas irmandades, hábil e astuta maneira de realizar o culto dos
Voduns e Orixás como se fizessem para os Santos da hagiologia ca
tólica; e os Negros escravos do United e os seus descendentes, desde
que dominaram a estranha língua que lhes foi imposta, encontrarem
na Bíblia da Christianity inspiração para os textos dos seus cânticos,
dos seus spirituals e bines, mas com música, ritmo e melodia trans
portados da África Eterna, herança dos antepassados e de sua
religiosidade.
James Weldon Johnson, em The History of the Spirituals, escreveu:
151
Aproveitaram, então, as exteriorizações da religião católica para
sobreviver com o próprio culto: o culto dos Voduns.67
Daí as suas Confrarias de São Benedito e N. Senhora do Rosário
dos Pretos, por exemplo, e os nomes desses santos escolhidos para os
filhos na pia batismal, de preferência aos que os seus antepassados
usavam.
Eis um tema que hei de reexaminar e analisar col tempo. . .
XVI
152
Não creio que essa substituição prevalecesse no culto que a gente
do Daomé votava aos seus Voduns.
E isto porque sacrifícios humanos — que por ocasião da morte de
um rei, quer por outra circunstância qualquer — ainda foram presen
ciadas por inúmeros viajantes, missionários e aventureiros que circu
lavam pelo Continente Africano ao tempo do comércio de escravos
para a Europa e para as Américas.
Quanto a proibições de consumo de animais e de vegetais, pode-se
referir o seguinte:
O carneiro não pode ser comido pelos que são fiéis ao culto dos
Voduns; a tartaruga também não pode ser consumida e o caranguejo,
igualmente; mas o camarão, que é proibido aos iogues, é consumido
em fritadas, arroz-de-cuxá, carurus, vatapás etc., etc.
A vinagreira, conhecida noutras áreas pela denominação popular
de azedinha, é bastante apreciada e consumida, quer — após cozimen
to — misturada ao arroz, quer isoladamente; sua determinação cien
tífica é Hibiscus sardarifera L., pertencendo à família das Malváceas.
Paul Le Cointe aponta essa planta com o nome também de azeda-
da-guiné.
No entanto, tão apreciada como é, não pode ser consumida em certa
fase do ano. E, anote-se, ela entra no preparo do famoso prato cha
mado ARROZ-DE-CUXÁ, orgulho da culinária maranhense.
O gergelim ou zerzelim é uma planta da família das Pedaliáceas,
cientiíicamente chamada Sésamo indicum L., segundo os botânicos.
Das suas sementes, torradas e piladas, de sabor apreciadíssimo, é
que o referido prato maranhense ganha justo renome, proveniente do
seu já salientado sabor e inesquecível aroma.
Porções de sementes dessa planta, isoladamente ou associadas a
camarões secos e farinha, dita sum i, são levados a cozinhar, com boa
Itorção de folhas de vinagreira, cozidas à parte, antecipadamente.
Também é justo reconhecer-se que, dessa combinação requintadís-
sima, resultou o mérito de aludido prato regional, sempre acrescido se
0 consomem com a carne do peixe-pedra, peixe da família Hemulidae,
estudada pelo ictiólogo brasileiro Alípio de Miranda Ribeiro.
A carne do peixe-pedra é delicada e saborosa como a da
pescadinha.
O preto «que acontece», conforme expressão do acadêmico Odylo
Costa Filho, não pode ser comido, entretanto, pela gente da Casa das
Minas, durante o mês de maio, por motivos seguramente ligados ao
culto dos Voduns mina-jejes.
O óleo que se extrai das sementes da planta gergelim dá ao peixe
1rito um sabor que não se pode obter mesmo com os melhores azeites
do Portugal e Espanha.
Produto da indústria doméstica da gente maranhense, já não é,
porém, encontrado facilmente nos mercados de São Luís.
158
A João Cariolla Tierno devo a revelação de que, além de quatro
ou cinco nomes mais que lhe dão, o gergelim tem o de «alegria» e o
de «sésamo».
Eu disse que o caranguejo é um indesejável, por ser considerado
um tabu pela gente que cultua os Voduns, na Casa das Minas, o que
me foi confirmado, de maneira inesquecível.
A velha Philomena (Mãe Nena), Negra de origem cabinda —
quando, certa vez, eu lhe falei em comer esse crustáceo —, me reco
mendou, num movimento impressionante, de verdadeiro terro r pânico:
«Não come, meu filho! Não come!»
Seu rosto ganhou uma expressão, tanto de terro r como de nojo,
que jamais esquecerei.
Cabritos eram sacrificados, antigamente, em número que atendesse
às homenagens aos Voduns e, igualmente, ao consumo dos filhos e das
filhas reunidos na Casa Grande.
O sangue desses caprinos regava o chão do pégi, numa especial
oferenda aos Voduns; estes, como os seus cultuadores, tinham prefe
rência por determinados pedaços (morceaux du ro i).
As aves eram sacrificadas no pégi, torcendo-se-lhes o pescoço len
tamente, de maneira a separar a cabeça e desarticular-se-lhes as pernas,
sendo os gestos acompanhados de um cântico de circunstância, profun
damente triste em língua africana, e seguidos de passos de dança,
ficando o ambiente enevoado pela fumaça de defumadores.
Não vi na Casa das Minas, que, antes de ser abatido, o cabrito
fosse passeado pela sala contígua ao pégi, sendo do ritual que as
pessoas presentes lhe beijassem o lombo, como é de praxe no Bogã
de Mãe Valentina, na cidade de Salvador (Bahia).
Os runtós (tocadores de tambor, principalmente), banhados e de
fumados, que não teriam tido contato sexual com mulher, conhecedores
de expressões propiciatórias e mágicas, em língua africana, eram incum
bidos de sacrificar os quadrúpedes num ângulo do pégi, do terreiro, ou
gume.
XVII
154
As jarras (agôgé) só eram cheias de água, decorridos alguns dias.
A nadopê, festa que ocorre depois da joio, pode ser considerada
uma festa de encerramento; consiste nestas práticas:
I — Banho das jarras (agôgé) : na composição desse banho se
empregam folhas de pataqüera, da família das Escrofulariáceas, cien-
tificamente denominada Cenobea acoparioides Benth; manjerona, da
família das Labiadas, denominada Origanum majerona L.; catinga-de-
mulata, da família das Compostas, denominadas (pois são duas espé
cies), respectivamente, Tanacetum vulgaris L. e Tanacetum balsamita L.
A prim eira dessas plantas, segundo Paul Le Cointe, é «emenagoga,
antelmíntica, abortiva, de uso perigoso».
A essas plantas associam-se sete folhas. Note-se a importância
(dentro do que já escrevi, páginas atrás) da numerologia no culto
dos Voduns.
II — Durante o preparo desse amassi algumas voduncis — de 2 a
6 — se conservam deitadas em esteiras; e as que, no interior do pégi,
foram encarregadas de banhar as jarras com esse amassi, se desin-
cumbem de tal tarefa elevando cânticos em língua africana (?), pe
dindo desculpas aos Voduns por haver terminado a festa.
III — Surge, então, uma vodunci com uma garrafa de cachaça e
uma canequinha de barro, dando a cada uma das suas companheiras
um pouco dessa bebida, que é absorvida aos goles, pedindo-se, antes,
licença aos Voduns para o fazer. A distribuição da cachaça se faz
da direita para a esquerda, estando as voduncis ajoelhadas.
As canequinhas e a garrafa, depois, são postas diante dos Voduns
presentes.
IV — A seguir, vem uma feita que, munida de uma palmatória,
aplica leves bolos em cada uma das companheiras.
V — Deixando as esteiras — na sala-de-estar dos Voduns — saem
as voduncis, de colo nu, envoltas nas toalhas sagradas, e rumam para
o gume. Uma delas leva o alguidar com o amassi.
Já no gume, em frente à cajazeira sagrada, por tempo de idade,
isto é, contando o tempo desde que foram feitas, põem um pouco do
banho na cabeça, braços e seios.
VI — Nenhuma vodunci menstruada pode participar dessa
cerimônia.
Compreende-se que o nadojê como o joio são elementos prepa
ratórios ou de festas maiores, festas de grande projeção litúrgica.
Uma descrição, mais rica de elementos, vai ser escrita para o
capítulo sobre religião, caso volte a concluir as pesquisas que iniciei
com vistas a um estudo do Negro maranhense.
Uma das voduncis da Casa das Minas me informou que, outrora,
nossas cerimônias, as voduncis, com o colo à mostra, tomando os seios
nas mãos em concha, faziam o gesto de os oferecer aos Voduns.
155
Particularidades de expressões, gestos, posições das feitas (vodun-
ci, tobôssi, gonjai) e mesmo das não-iniciadas, obedecem a um ritual
de origem secular, senão milenária.
Eis uma dessas particularidades:
Quando os Voduns nelas estavam incorporados, as vodunci se dei
tavam nas esteiras, forradas, antigamente, com panos da Costa (d’Áfri
ca) ; e o faziam ora sobre o flanco direito, ora sobre o flanco esquer
do, conservando-se, nessa movimentação, rigorosamente 15 minutos,
sem pronunciar uma palavra.
Decorrido o tempo do ritual, uma das feitas se dirigia a cada
uma das mulheres, ali estendidas nas esteiras, cobertas da cabeça aos
pés, sem que nenhuma parte do corpo aparecesse, com esta imperativa
expressão: Cider! E isso até a arrancar do estado de transe. Em
seguida todas elas podiam levantar-se.
Durante essa fase do ritual mantinham ao pescoço os seus ro
sários e guias. Então, uma outra feita aparecia com uma cuité (pe
quena cuia) e uma outra maior, contendo água das jarras (agôgé),
dando um gole a cada uma.
Por ocasião da matança de cabritos e de outros animais, que,
depois de condimentados, deveriam ser oferecidos aos Voduns e às
pessoas presentes, na sala em que os mesmos se reuniam, ficavam
eles sentados, de maneira imponente ou à vontade, em cadeiras sagradas.
E, de vez em quando, entoavam cânticos, através de cujo texto,
patente, estariam solicitando autorização para que as feitas e os runtós
realizassem o abate dos animais propiciatórios.
Essas feitas, saindo, do pégi, com os cadáveres dos animais sa
crificados, nas mãos sangrentas, os agitavam na direção dos Voduns
que, sacudindo a cabeça, demonstravam estar de acordo com o que
se realizara dentro das exigências das tradicionais leis do culto mina-
jeje.
Logo a seguir toda a carne dos animais sacrificados era levada
à cozinha, sendo condimentada e cozida em panelas de barro.
XVIII
Na tese de minha autoria, apresentada ao X Congresso de Geo
grafia e História, sob o título Negros Escravos na Ilha de Marajó,
há uma referência a sacrifícios humanos que uma descendente de afri
canos me fez.
Lê-se naquele trabalho:
P ro cu ra n d o con h ecer o q u e fic a r a d a s c r e n ç a s e p r á tic a s r e lig io s a s dos
N e g r o s e sc r a v o s só en c o n tr e i r a r a s, v a g a s e d e fo r m a d a s lem b ra n ça s. C erta
n o ite u m a d escen d en te de N e g r o s d e A n g o la m e con tou q u e, sen d o m oça,
su a a v ó , a fr ic a n a p u ra , lh e d escrev eu s a c r ifíc io s h u m a n o s r e a liza d o s n a
te r r a lo n g í n q u a ... S u sp en d ia m a v ítim a p e lo s p és e a sa n g r a v a m , pondo-
156
lh e sob a ca b eça u m a v a s ilh a . A a s s is tê n c ia d a n ç a v a -lh e em red or e ia
bebendo do sa n g u e q u e jo r r a v a . O s ta m b o res b a tia m so tu r n a m e n te pela
n o ite ad en tro.
Ajautoi Agongone
Ajautoi ê siriã
Um lenço um lenço
para Gazé
Ajautoi ê siriã
Um lenço um lenço
para Gazé
Ajautoi ê siriã
157
As aves devem ser de sexo oposto, por exemplo, um galo e uma
galinha.
Morta a ave, tiram-lhe as penas, cuidadosamente, e a levam para
a cozinha, onde a partem em duas bandas e em cruz; e cada banda
em quatro pedaços, daí resultando oito pedaços de cada banda.
À ave não se lhe retiram as unhas, cabeça e pele.
Em panela de barro, com bastante água, sem sal, mas, também,
com bastante pimenta-do-reino e alho, cozinha-se uma p arte; noutra
vasilha, depois de lavar-se uma vez apenas, juntam-se a essa segunda
parte pimenta-do-reino, em grãos inteiros, e uns pedaços do coração
do galo e da galinha, tendo-se feito o mesmo, anteriormente, com as
partes das aves postas na primeira vasilha.
Sente-se que, nessa técnica, de uma estranha culinária, há um
rito de purificação e outro de magia, atendendo-se às recomendações
impostas pelos Voduns.
Na distribuição desses pedaços do coração e do fígado, é de rigor
observar-se que só podem cair no prato das feitas e nunca no de uma
voduceri.
Note-se que os números 2, 4 e 8 aparecem na técnica de partir-se
o galo e a galinha.
XIX
Leio em Montserrat Palau Marti, a quem já citei, anteriormente,
com relação à importância da numerologia no culto dos Voduns, sobre
o número quatro, o seguinte:
II n e s ’a g it p a s ic i d ’u n n om b re p r o p r e m e n t sy m b o liq u e en c e se n s q u ’il
sem b le c o rresp o n d re o u f a ir e a llu sio n à d es m od es d’o r g a n is a tio n s te r r ito -
r ia le ou a d m in istr a tiv e . A u D a h o m ey , n o u s a v o n s c o n sta te u n e o r g a n is a tio n
q u a tr e p a r tite de l ’a r m é e ; i l en e s t d e m êm e a u B é n in o ü c e m ode
d ’o r g a n is a tio n e s t e x p lic ite d a n s la r e p r é se n ta tio n d e s “q u a tr e p ilie r s de
B é n in ” (q u i f ig u r e n t q u a tr e g r a n d s c h e f s ) . L e n om b re q u a tr e e s t a u s s i
en r a p p o r t a v ec 1’o r ie n ta tio n d a n s 1’e sp a c e e t le s p o in ts c a r d in a u x . S o u s
c e t a s p e c t n o u s le tr o u v o n s a ss o c ié a u R oi d e K e tu q u i f a i t d e s s ta tio n s
a u x q u a tr e p o in ts c a r d in a u x a u c o u r s de so n in itia tio n (s é jo u r d a n s le s
m a iso n s s p é c ia le s a u n ord , à l ’o u e st, à l ’e s t e t a u su d d e la v il le ) . L ors
de so n in tr o n isa tio n , le R oi d e D a h o m ey e s t c o if f é d’u n c h a p ea u à q u a tr e
p o in te s ( l e s c h a p e a u x m in is tr e s o n t tr o is p o in te s s e u le m e n t). 59
158
Quanto ao número oito, Palau Marti não o inclui na sua inter
pretação da numerologia social ou religiosa da gente africana; não
6, certamente, um número válido como o seu múltiplo — dezesseis —
pelo menos no que respeita à organização militar na corte de Oyo
e ao sistema de Ifá, não tendo nenhuma relação com o rei.
O oito também não é um número válido como símbolo de caráter
religioso, mas é absolutamente impossível que, na técnica de espostejar
aves e quadrúpedes, esses números não tenham valimento, tal é o rigor
das leis, a profundeza dos mistérios que assim o determinam.
No entanto, a respeito do conteúdo esotérico ou mágico desses
números, nada, absolutamente nada, as filhas e filhos da Casa das
Minas me puderam esclarecer.
Ao conjunto de comidas e, igualmente, a uma festa do culto dos
Voduns, naquela Casa, é dado o nome de arruwmã, nome de origem
africana, informaram-me; porém ao meu ouvido pareceu de origem
árabe, pela sonoridade da sua estrutura lexicológica.
Entre os pratos típicos desse conjunto, em que são utilizados os
cereais, sobressaem os preparados com o milho e o feijão.
Com o milho branco fazem quilos e quilos de pipoca, segundo a
técnica seguinte: põe-se num caldeirão boa porção de areia do mar,
l»em lavada, alvinha e, nessa areia, são misturados grãos de milho.
Sob a ação do fogo, a areia é aquecida de tal maneira que, ao seu
intenso calor, possa to rrar os grãos de milho e transformá-los em
pipoca.
Uma colher de pau é usada para mexer e remexer a areia e os
grãos de milho.
Obtidas as pipocas, o conteúdo do caldeirão é derramado numa
peneira para as libertar da areia. As pipocas grandes são postas numa
lata e os grãos de milho, que não ficaram bem torrados, são levados
para um pilão e socados até que fiquem transformados em farinha,
que é passada num crivo. Põe-se, então, açúcar e mistura-se tudo
cuidadosamente.
Amância Evangelista Vianna, da Casa Grande das Minas — que
me deu essa descrição —, afirmou sentenciosamente: «É a melhor
comida que temos».
Com o feijão branco, de olho preto, é preparada outra comida.
Depois de ferventado e tendo-se posto sal, toda a quantidade de feijão,
destinada a essa comida, é darram ada num caldeirão para torrar, até
ficar tudo bem amarelinho, sinal de que está pronto para comer.
Com o chamado coco-da-praia ou como-manso, é preparada uma
outra comida, da seguinte maneira:
Quebra-se o coco em pedaços de uma polegada, ficando a carne
grudada à pele castanho-escura que reveste toda a carnadura (polpa)
do fruto. Os pedaços devem ser cortados, «bem fininho». Lava-se tudo,
cuidadosamente, e, a seguir, são os pedaços postos em água a que se
159
juntou um pouco de sal. Esses pedaços de coco, decorridos poucos
minutos, devem ser postos a escorrer uma hora, sendo derramados num
alguidar.
À proporção que — levado o alguidar ao fogo — os pedaços de
coco vão cozinhando, ganham uma cor preta e vão ficando torrados,
reduzido o volume de água, concorrendo para isso o óleo que é exudado
dos pedaços de coco.
Com as sementes do coco babaçu (Attalea speciosa, Orbignia
m artiniana), e classificação que vi pela prim eira vez no possivel
mente esquecido Lebensbilder aus der Flora Brasiliens, do velho
Siegfried Decker, de São Leopoldo (Rio Grande do Sul), com as se
mentes do coco babaçu, repito, também preparam um outro prato,
preferindo-se os filhos bem grandinhos (minuciou a minha informante).
Bem lavados, são eles postos na água, com pitadas de sal, ali fican
do por algum tempo.
Em regular porção, os filhos das amêndoas do babaçu são, depois,
postos no fogo, em vasilha de barro, até que, torrados, fiquem bem
amarelinhos. Essas amêndoas de coco-babaçu, mais ricas de óleo do
que o chamado coco-da-praia ou coco-manso, assim torradas, ganham
um sabor e cheiro bastante agradáveis.
Nesse conjunto de pratos, à base de frutos, não entra carne de
animais, e tem o mesmo nome da festa arruãbã, para a qual eles
são preparados.
Também com o nome de azóori, na Casa das Minas, fazem um
outro prato, utilizando grão de milho, «companheiro» (numa expressão
da informante) das pipocas.
Todas essas comidas são depositadas no pégi, em mesa grande,
com as frutas seguintes: Bacuri, Platonia insignis M art.; Pitomna,
Talisia esculenta Rad.; e outras frutas duras, particularizou a
informante.
Ao conjunto aqui descrito também dão o nome de carga.
XX
160
Lidando com índios e Negros (que Lévi-Bruhl logo incluiria ontn
tipos humanos de mentalidade primitiva e Claude Lévi-Strauss, em lan
dos caracteres excepcionais do seu pensamento selvagem, também log<
neles apoiaria a sua teoria estruturalista) sempre procurei surpreende
u capacidade que lhes pode ser atribuida de utilizar, como bem o enten
dam, as chamadas leis de similaridade e de contágio: Law of similariti
Law of Contact or Contagiou.
Mas, lendo Bronislaw Malinowski, que interligou a magia, a ciênci;
o n religião num mesmo campo — a antropologia —, compreendi que
como ele — daí a grandeza da sua obra —, eu teria de entrar en
contato mais afetivo, e, portanto, mais íntimo, com o ser humano, pas
M.indo deste para o livro e, em seguida, volvendo a ele, na mesm;
atitude de análise e de admiração.
Já por intermédio de minha mãe, já por intermédio de minha ti;
Ida, já por intermédio de filiadas à Casa das Minas, apurei que al
não se exercia a magia, identificada, vulgarmente, por magia branci
c magia negra, ou, simplesmente e arbitrariamente, pela denominaçã<
do feitiçaria.
N arrativas de episódios ali sucedidos, nos primeiros dias de exis
lòucia daquela Casa, me levaram a concluir que certas curas e favo
res cabiam mais aos próprios Voduns do que às faculdades excepcio
nais das velhas mães ou nochês, herdadas ou adquiridas dos inicia
dores do culto mina-jeje.
Eles, só eles tinham poderes sobrenaturais, forças criptopsíquicas
duma excepcional dinâmica, capazes de objetivar benefícios suplica
dos e anular malefícios tidos como incontroláveis ou deflagrá-lo:
fulminantemente.
Processos mágicos, de encantamento ou de transmissão de dote:
rxlcaordinários de fascinação sexual; uso de amuletos (gris-gris), ora
ções e esconjuros não me parece que fossem ignorados das mães-de
mm to da Casa das Minas.
E seriam oriundos, a meu ver, mais da Península Ibérica, de Por
tugal e de Espanha, e não apenas do Continente Africano, do sei
litoral e da sua hinterlândia.
Viajando pela Bolívia e pelo Peru, observei idêntico fenômem
cultural, transmissão de práticas de magia (de uso de amuletos i
orações, naqueles países), mas, naturalmente, já associados às que eran
do domínio da indiada do altiplano andino.
Em São Luís, é claro, bem menores são os aspectos do comércii
c do uso de plantas mágicas e outros produtos naturais que vi flores
rendo nas feiras de La Paz e de Huancayo, onde era inigualável i
«I têm in tro d u zid o o diabo, que só eles descobrem ou ro e, pe la m esm a cau sa, não h á m inelr
*|u«f possa v iv e r sem u m a N e g ra m in a, dizendo que só com elas têm fo r tu n a ” .
irtlOt a essa tra d iç ã o , possivelm ente, tam bém em São L uís se a trib u ir ia às m in e ira s d a C hh
d« M ãe A n d re sa M aria, e a ela m esm a, o em prego de p rá tic a s m ágicas, benévolas e malóvolai
tra d iç ã o quo a té hoje ali p e rd u ra ” .16
16
/
ostentação de cascas, frutos, sementes, raízes, folhas secas ao sol ou
de infusão no álcool. Ali apareciam excrementos, dentes, chifres, peles,
vértebras de aves, de quadrúpedes e répteis. E fetos, secos ao calor
de braseiros, tinham elementos mágicos na sua contextura, tal a da
lhama, que «deve ser enterrada nos fundamentos de uma barraca ou
casa em construção, para que ali se viva feliz».
Ligados, naturalmente, ao culto dos Voduns, na Casa das Minas,
de São Luís, se faziam despachos, antes para benefícios dos seus filhos
e filhas, para afastar influências nefastas ou enfermidades em pers
pectiva, do que para causar mal a este ou àquele indivíduo.
O uso de rosário, ou de guia, — o primeiro nada se parecendo
com o rosário de uso entre os fiéis católicos e o segundo mais se
parecendo com um gris-gris, tipicamente africano —, mantido inalte-
ravelmente, tem contas de cor ou de cores, alternadas, da predileção
dos Voduns, ou contem substâncias de extraordinária irradiação mágica.
E: só por si bastam para defender quem o usa, visto haver sido
banhado (o rosário) num amassi, defumado (o segundo) ao calor e
perfume de certas resinas e fragmentos de cascas de árvores, odorí-
feras e inebriantes, delas ganhando as propriedades, os valores má
gicos ou sagrados.
Perseguições policiais e imputações infundadas, partindo de gente
ingorante e estranha à finalidade do culto dos Voduns, deveriam dar
origem à desconfiança e delações mesmo contra as Negras minas da
Casa de Mãe Andresa Maria, imputando-se-lhes a prática de feitiçaria.
Foi, possivelmente, por lhe haver chegado aos ouvidos notícias da
queles atos das autoridades locais e da maledicência tradicional dos mo
radores de São Luís, que o escritor espanhol Álvaro de Las Casas
sofreu ali uma confrangedora decepção.
Em sua obra Na Labareda dos Trópicos (Editora A Noite S/A,
Rio de Janeiro) se encontra a página seguinte (65-66) :
162
Bodúm é o d eu s, e Eban c h a m a -se o g u ia q u e in ic ia o s n e ó fito s. À aom hra
de um cróton , d ocem en te v erm elh o e tr is te , p a le str a m o s a m ig a v e lm e n te r
sa b o rea m o s u n s d elicio so s sa p o tis, tã o g o sto so s com o n u n c a com i ou tros.
— A sen h o ra a d iv in h a o fu tu r o ? , p e r g u n te i-lh e com a lg o de im p ertin ên cia .
— E s ta n ão é c a s a d e fe itiç a r ia , resp on d eu -m e a v e lh a com d ign id ad e.
V iv e m o s de acordo com o s n o sso s h á b ito s e c o n tin u a m o s o c u lto dos n o sso s
a n te p a s sa d o s. N ã o fa z e m o s m a l a n in g u é m , n em to m a m o s c o n ta d a s v id a s
a lh e ia s.
F iq u e i en v erg o n h a d o . A liç ã o p r o v a v a , d em a sia d a m e n te , ta n to a su a g e n
tile z a com o a m in h a irr e v e r ê n c ia .
XXI
Mãe Andresa Maria, numa das conversações que com ele mantive,
nos seus últimos dias de vida, se referia a um jogo, com sementes de
dendezeiro, que Legbá ensinara a um feiticeiro (Fa) 61, limitando-se a
dizer que a história. .. era muito longa.
Em 1943, nas colunas da revista O Mundo Português (m 99,
março de 1942, vol. IX, p. 139-144), li um trabalho, de Edmundo Corrêa
Lopes, intitulado «O Kpóli de Mãe Andresa». Só, então, pude com
preender por que Póli-Boji aparecia nessa história.
Transcrevo quanto me foi dado aprender através do que escreveu
aquele amigo:
1611
e e s t á tu d o ex p lic a d o , ex c e to a id en tid a d e do nom e q u e eu n ão co n sig o
s a b e r s e e stá estro p ia d o ou n ão. T am b ém Kpóli sã o filh o s “do m esm o
p a i e d a m e sm a m ã e ” (J a c q u e s B e r th o ) inferiores ao Deus Criador. M aw u
O lis s a , o S e n h o r do B o n fim , n a B a h ia , d u vid oso no M a ra n h ã o , n ã o será
u m a sim p le s c o rru p çã o de “O r ix á ”, ta n to m a is q u e o d ia le to je je su b s titu i
o l p elo r?
164
le g b á é “fé tic h e ” (B a r th o ) dum K p óli, m on tad o — com o dizem niiqii<'li<
a ss e n to on d e receb e o s a c r i f í c i o . . . Q uando u m hom em m an d a e r ig ir o
le g b á do seu K p óli, q u a se sem p re m an d a e r ig ir tam b ém , p a r a ca d a unia
d a s s u a s m u lh e r e s e filh o s , u m le g b á fe m in in o , o m esm o K p óli. Só a fo rm a
da e s tá tu a é q u e v a r ia (B a r th o ) . T o d a s e s ta s in fo r m a ç õ e s d arão m u ito
q u e p e n sa r a o s in v e s tig a d o r e s b r a sile ir o s e fa r -lh e s-ã o tir a r cu r io sa s con
seq ü ên cia s. Q u eria fa z e r -lh e s u m a a p r e se n ta ç ã o m a is co m p leta do K póli da
S ra . A n d r e sa , se c o n se g u isse v islu m b r a r -lh e o n om e. Q u an to à S ra . A n d rcsa
M a ria , lá tiv e a h on ra d e a a p r e se n ta r n a Revista do Brasil e aqui em
O Mundo Português a p ro p ó sito da fito la t r ia q u e ta m b ém no seu te r r e ir o
da R u a S ão P a n ta le ã o com o v iz in h o te r r e ir o de N a g ô (R u a dos N a g ô s )
e o s te r r e ir o s da B a h ia , de v á r ia s s e ita s . A p eq u en a c iê n c ia do I fá tem
rela ç ã o com com u n s c u lto s fito lá tr ic o s . N in a R o d r ig u e s diz a té q u e lhe
p a r e c e “p r io r ita r ia m e n te não te r sid o I f á m a is q u e o fe tic h e (p a sso o
te r m o ) do d en d ezeiro ” (op. cit., p. 3 3 7 ). M ãe A n d r e sa M aria, a p r e se n te i-a
no a r tig o de P o r t u g a l. . .
F a le i, sim , de E u g ê n ia A n a S a n to s, flo r da c iv iliz a ç ã o b a ia n a que, por
u m a c a r ta , acabo d e sa b er q u e e s ta v a n a ylu ylu (te r r a da v id a ) — Á fr ic a
— , n e ss a Á fr ic a unde nefas redire quemquam, a p obre A n in h a . S ob re a
M u sa da F a c u ld a d e de M ed icin a da B a h ia — n ã o in s p ir a d o r a d a c iên cia
m éd ica , m a s de a çõ es c a r ita tiv a s — recom endo ao le ito r a s p á g in a s em o
tiv a s do rom an ce de J o r g e A m ad o Capitães de Areia. N ã o m en o s q u e a
A n in h a d e S ã o G onçalo, com o p r e stíg io dos s e u s d o tes de coração e, o
q u e m a is p o sso c e r tific a r , são d ig n a s de h o m en a g em e tn o g r á fic a o s ca
b elo s b ra n co s de M ãe A n d r e sa n a c h e fia do te r r e ir o se c u la r do M aran h ão.
T am b ém p e sso a lm e n te lh e sou d eved or de a fe iç ã o e r e sp e ito , m a s o que
a v u lta é o seu p a p el j á sim b ólico de d e p o sitá r ia do leg a d o m a is com
p r e e n siv o , a in d a q u e ta lv e z m a is d esm a n tela d o , da c u ltu r a a fr ic a n a no
B r a sil. P e la riq u eza e p u reza d a s tr a d iç õ e s r e lig io s a s, p e la e le v a ç ã o in com
p a r á v e l d a s m elo d ia s e e x u b e r â n c ia r ítm ic a , e a té p e la p esso a da v e lh a , o
m a is com p osto e d ign o elem en to m in a , o te r r e ir o da R u a S ã o P a n ta le ã o
é um te r r e ir o bem d istin to . M as n ã o s e ju lg u e q u e isto é fa la r .
16Õ
Escrevendo a respeito da prim eira edição da presente obra, na
revista luso-brasileira Atlântico, Edmundo Correia Lopes ainda focali
zou o problema mítico-religioso dos Kpóli, nestes parágrafos:
XXII
Confirmando a relação fitolátrica entre a Casa das Minas e a Casa
de Nagô, referida por Edmundo Corrêa Lopes, páginas atrás, basta
analisar-se a composição de um banho-de-natal, tão recomendado quanto
apreciado pelos fiéis ao culto dos Voduns:
166
As propriedades desse banho podem beneficiar a quem, com um
pouco dele, apenas, lave a cabeça, as têmporas e a nuca, pois é um estra
nho complexo de plantas aromáticas e mágicas, em sua maior parte da
região, cujas definições taxonômicas não são fáceis de encontrar nas
páginas de obras dedicadas à nossa flora; as que, porém, são aqui cita
das, interessarão, certamente, aos leitores.
Há um banho, também de grande eficiência, chamado banho da
rasa ou Jipió, indicado para pessoas que se encontram em dificuldades
de vida.
Na composição dele entra a casca de certa madeira que associam
a cascas de mandioca, bem lavadas, para as libertar da terra. A ma
deira tem o nome de jipió, mas não me foi possível identificá-la taxo-
uomicamente.
Algumas dessas plantas são comuns ao Continente Africano e à
América Tropical, segundo o afirmam botânicos como Record & Hess,
llichards, Le Cointe e A. de J. Sampaio.
Em São Luís, não é impressionante (como em Belém e Manaus,
Amazonas) o comércio dessas plantas; e o uso das mesmas macera-
das, na água ou postas de infusão em álcool ou cachaça, não atinge todas
as camadas sociais.
Quem desce, entretanto, a Rua Magalhães de Almeida, rumo ao
Mercado Público, a partir da Rua de Sant’Ana, de um lado e de outro,
ao longo das calçadas, depara com tabuleiros e armações precárias,
de fácil remoção, não de autênticos herbanários, tais os do Rio de
Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco, mas simples vendedores de
sementes, espinhos, drupas, amêndoas, cascas, raízes secas, dentro de
tudo isso sobressaindo o afamado afrodisíaco moleque-seco, proveniente
de Caxias; peles de répteis, dentes de felinos, penas de aves, excremen
tos daqueles e destas, enfim, ali podem ser encontrados.
Ali, também, encontrei óleos aromáticos, defumadores, uns locais
e outros importados do Rio de Janeiro, Belém e Salvador.
Ninhos de aves — gaviões, beija-flores, uirapurus — vergas de
peixe-boi, unhas de tamanduá e de onças, etc., etc., fazem parte dessas
especialidades mágicas.
A esses produtos, ligados à fitolatria e à zoolatria, recorrem indi
vidualmente — mas não por imposição do culto dos Voduns — tanto a
gente da Casa das Minas e da Casa de Nagô como os senhores e senho
ras do melhor status da população de São Luís e de outras cidades do
interior do Estado do Maranhão.
XXIII
Entre as sobrevivências do culto daomeano dos Voduns mina-jejes,
na Casa das Minas, de São Luís do Maranhão, merece especial regis
tro a que está ligada aos mortos, embora ali já se não fale mais nos
Eguns, como reunidos numa confraria, à semelhança de Cuba.
Roger Bastide, como Pierre V erger62 e Otávio da Costa Eduardo
dispensaram ao tema da morte apreciações que salientam a importância
das cerimônias fúnebres realizadas nos terreiros da Bahia e do Mara
nhão, respectivamente.
O axêxê, para Roger Bastide, designa em geral le candomblé funé-
raire, mas para Otávio da Costa Eduardo shun e zeli designam dois
tempos, por assim dizer, de uma cerimônia imposta pela morte de uma
vodunci ou de uma simples filha ou filho e demais pessoas pertencen
tes à Casa Grande das Minas. Uma parte da referida cerimônia é rea
lizada logo depois que o óbito ocorra, como na religião católica, uma
simples ou pomposa missa, dita de «corpo presente».
Tendo assistido, em 1970, na Casa das Minas, à segunda parte
dessa cerimônia, em homenagem a quatro pessoas mortas, a elas liga
das através de uma iniciação ou espiritualmente apenas, vou tentar des
crevê-la, pois, realmente, é uma sobrevivência das mais importantes
já ali registradas por mim, dentro do plano de pesquisa que entendi
efetuar como complemento às divulgadas na primeira edição desta obra.
Mais conhecida, popularmente, pela denominação de tambor-de-
choro, a cerimônia do zeli ou zelim (estas duas palavras são pronun
ciadas diferentemente por pessoas da Casa das Minas) ocorreu com
certo atraso, visto que a morte arrebatara, em datas diferentes, no
princípio do ano, as pessoas seguintes: Mãe Leocádia dos Santos, subs
tituta de Mãe Andresa Maria, Manuel Nascimento (runtó), Mundica e
Bilu Maria de Lourdes da Silva.
Realizou-se numa parte da varanda, à esquerda de quem nela entra,
vindo da rua, a mesma varanda onde os Voduns dançam, nas festas do
culto (ver Caderno Iconográfico, n. 25-28).
A um canto (direito) dessa varanda se conservam comumente os
tambores ou atabaques, cobertos por um largo pedaço de chitão e do
minados por aquele que pertence a Zomadone.
A única janela que nessa varanda se abre sobre o chamado Beco
das Crioulas ou das Minas permite que a luz diretamente inunde toda
a cena, mas no gume penetra também a luz, mediando entre a manhã
e a tarde. Do lado esquerdo, num banco corrido, já com três tambores
em posição, estavam postados os tocadores, em traje comum; ao lado
direito, da mesma janela, também num banco corrido, sentaram-se três
tocadoras de cabaças (gôs) e de ferrinhos (ogãs) ; sendo uma delas
filha do runtó Manuel Nascimento — um dos mortos, com direito
àquele zelim.
Na vizinhança das tocadoras, do lado esquerdo destas, numa mesa
ampla, se viam garrafas de vinho e de cachaça, um monte de-varinhas
de goiabeira, de cinco a sete palmos de comprimento. Entre as tocado
ras e a mesa, arrumados sobre esta, estavam seis potes de barro, novos,
mais quatro metades de cabaças, novas também, de palmo e meio de
62. V er P ie rre V e rg e r, N o te s su r le culte des O risas e t V oduns à B ahia de Tous les S a in ts, au
B résil, e t à Vancienne C ôte des E sclaves, en A friq u e . D a k ar, IF A N , 1957 (p. 154 a 158).
168
circunferência, sem pintura ou gravação. Frente aos tocadores dc runs
e as tocadoras de cabaças, (gôs) e ferrinhos (ogãs), ajeitada sobre um
cofo, se destacava uma bacia, de cinco a seis palmos de circunferência;
punhados de fina e alva areia, aqui e ali, tinham sido postos em roda
da bacia, sobre o chão da varanda.
Circundando aquela bacia, foram dispostos, eqüidistantes, dezesseis
banquinhos, uns rústicos e outros trabalhados por hábil e talentoso
entalhador.
Todas de branco, empunhando as delgadas varinhas de goiabeira,
dezesseis filhas-de-santo (gonjais, voduncis) ocuparam os banquinhos.
Atrás desse grupo de mulheres, isto é, das que defrontavam a jane
la ou lhe ficavam de costas, puseram uma pequena mesa, encimada por
um castiçal, que logo foi aceso; e, vizinho a este, foi posto um prato,
à falta de bandeja, que deveria receber espórtulas, preferentemente
moedas de níquel.
Ora uma senhora, ora uma mocinha ocupavam uma cadeira para
receber as espórtulas, trocar cédulas e facilitar o troco. Entre as
tôbôssis, Cecília Vilela Moura e Philomena Maria de Jesus, foram
ajeitados dois potes sobre um pequeno cofo fechado.
O pote, de pequeno porte, era, como os outros, inteiramente novo.
Assim que a cerimônia foi iniciada — em homenagem a Mãe Leo-
cádia — logo uma das tocadoras de ogã e uma outra de gô trouxeram
para a tôbôssi Cecília uma garrafa de vinho tinto e outra de cachaça,
cujo conteúdo foi derramado na bacia, que continha amassi, no centro
da qual puseram a metade de uma cabaça, de borco.
Num gesto ritualístico, Cecília deitou um pouco de vinho no ogã
que uma tocadora lhe apresentou, como quem estende uma taça, vol
tando esta imediatamente a ocupar o seu lugar ao lado das outras
tocadoras de cabaças.
Uma voz, então, se elevou num solo que teve logo o acompanha
mento de dois tambores'menores, mas que acabou dominado pelas vozes
das demais mulheres participantes dessa cerimônia.
Philomena — que, por morte de Mãe Leocádia, era a dirigente
da Casa das Minas —, entre Cecília e Amância Evangelista, vibrava
um chinelo, sobre a boca do pote, rítmica e vigorosamente, com evi
dente esforço de o quebrar.
Bocados de vinho e de cachaça haviam sido derramados naquele
pote.
E as dezesseis mulheres, também, rítmica e vigorosamente, batiam
com as varinhas de goiabeira, ora nos rebordos da bacia, ora sobre a
metade da cabaça, que Cecília procurava manter de bordo à superfí
cie do amassi, de modo a que oferecesse um alvo imóvel para ser que
brado sob as pancadas que acompanhavam os toques dos tam bores.63
63. V ia ja n te s e m issio n ário s, etnólogos e e tn ó g ra fo s, e n tra n d o em co n ta to com trib o s p rim itiv a s,
nas A m éricas ou no C o n tin en te A frica n o , p o r exem plo, delas nos a p o n ta ra m ou descreveram
os m ais e stran h o s usos e costum es, no que diz re sp eito à c a ç a de crân io s dos seus inim igos,
como tro fé u s do g u e rra ou como lem b ran ça de p a re n te s e am igos.
169
■
Nessa cerimônia, com decidido empenho, visavam libertar a cabeça
do morto (simbolizada naquela meia cabaça) da influência dominadora
do Vodum que sobre ela costumava baixar, incorporando-se-lhe, por
fim, através do estado de transe ou de possessão mística.
Mas essa libertação só seria conseguida quando se quebrasse total
mente o pequeno pote e a metade da cabaça, que ali estavam sendo
golpeados, ao ritmo dos tambores sagrados e da melodia dos cânticos
que se elevavam.
Consoante o ritual mina-jeje, conservado na Casa das Minas, ao
iniciar-se a cerimônia, o primeiro cântico é elevado ao morto e os de
mais ao Vodum dele.
Alguns desses cânticos foram gravados por mim, anteriormente,
graças à informante Enedina Oliveira, em casa de Zuleide Figueira de
Amorim, no subúrbio de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, Estado do Rio
de Janeiro, e a esta última.
Ali, entretanto, eles não poderiam ser gravados, «porque a lei proí
b e...» e eu me resignei a ouvi-los e a comparar, mentalmente, as vozes
das cantoras presentes na ocasião com as da informante Enedina
Oliveira.
Anotei que nem todos os cânticos são lúgubres, densos de tris
teza e de desespero, mesmo numa cerimônia daquela natureza e com
aquela finalidade.
Talvez o empenho, posto nesse movimento, para libertar o morto
do domínio do seu Vodum, exija mais toques e cânticos alegres, toques
de tambores, de ogãs e gôs, um coro harmonioso daquelas dezesseis mu
lheres, do que outros que traduzissem sentimentos e atitudes de incon
formidade, de revolta e desilusão.
Entre um cântico e outro, as dezesseis mulheres e as pessoas que
assistiam ao desdobramento daquela cerimônia depositavam moedas na
bacia ou cédulas no prato para isso destinado: punhados de areia tam
bém eram lançados na bacia.
No decorrer dessa cerimônia fúnebre as máscaras das dezesseis
mulheres não lembravam as de carpideiras das aldeias peninsulares
N a o b ra de F ra z e r, T h e Golden B ough, e n a s c o n tribuições dos c ie n tista s e pesquisadores, que
o S m ith so n ian In s titu tio n , p elas p á g in a s do H andbook o f E thn o lo g y, g e nerosam ente divulgou,
fo ra m conhecidos in co n táv eis, p ito resco s ou m acab ro s aspectos desses costum es e usos.
E o mesm o aco n teceria, n a A m azô n ia B ra sileira, e n tre os indivíduos d a s trib o s dos M undurucu,
P a r in tin tin o M aué.
A queles, localizados no V ale do T a p a jó s, m u m ificav am o c râ n io dos inim igos, como pode ser
visto no M useu N a cio n al do Rio de J a n e iro , g a n h an d o a denom inação de p ariuá-a e a de
p a riu á -ren a p e a la n ç a n a p o n ta d a q u al o ex p u n h am , em fr e n te de suas m alocas. E o mesmo
fa z ia m com o crâ n io dos seus p a re n te s e am igos queridos.
Os P a rin tin tin , do V ale do M adeira, m u m ificav am o c râ n io do inim igo, e, n u m a solenidade
especial, realizav am a D a n ç a d a V itó ria , d u ra n te v á rio s dias de libações de vinhos ferm entados,
de com edorias e d e sreg ram e n to s sexuais.
Os M aué, m ais p a cífic o s do que g u e rre iro s, tra n s fo rm a v a m os crâ n io s dos iniihigos e dos
am igos em ta ç a s , en treg an d o -se, ig u alm en te, aos m esm os desregram entos.
N o C o n tin en te A frica n o , povos p rim itiv o s, como os da A m azônia, tam b ém tin h a m os mesm os
usos e costum es.
N o e n ta n to fo i dali que os N eg ro s escravos, d as n ações m in a -je je e io ru b a — d e n tro das suas
concepções m ític a s e p ro fa n a s , ou, p re fe re n te m e n te, religiosas — , foi dali que tro u x e ra m a soleni
dade fu n e rá ria do zelim , com u m a fin a lid a d e su p e rio r e in q u ie ta n te : lib e rta r o crâ n io do m orto,
am ig o ou p a re n te , fiel a u m culto m ilen ário , d a in flu ên c ia do seu V odum e do resp eito aos
E g u n s.
E esse é um asp ecto c u ltu ra l que m erece a p reciação , senão resp eito especialíssim o.
170
nem das malocas indígenas: só os familiares dos mortos mostravam,
discretamente, a dor que a irreparável perda lhes causava.
No entanto uma participante, gonjai ou noviche, deu mostras de
entrar em transe, mas foi retirada de redor da bacia, voltando, pou
cos minutos depois, a ocupar o banquinho onde estava sentada.
Obedecendo à tradição, nessa cerimônia, forçoso é considerar-se a
posição do morto dentro da estrutura sócio-religiosa da Casa Grande
das Minas.
Veja-se, por exemplo:
Dois são os tambores que soam nesse empenho de libertar-se o
morto do domínio de seu Vodum, quando se tra ta de um filho ou de
uma filha da Casa; um pote apenas deverá ser quebrado, a golpes,
ritmados e enérgicos, de chinelo.
No caso, entretanto, de um runtó, como Manuel Nascimento (Ma-
neco), e de uma mãe-de-santo ou mãe-de-terreiro, como Leocádia San
tos, um tambor só — o de maior porte, o de Zomadone — é vibrado;
e dois potes são quebrados.
Na cerimônia do zelim, a que assisti, duas filhas falecidas, Dilu
(Maria de Lourdes Silva) e Mundica foram distinguidas do primeiro
modo; Leocádia e Maneco do segundo modo.
A cerimônia decorreu em dois tempos: num primeiro, os mortos
homenageados foram Mundica e Maneco; no segundo tempo, Dilu e
Leocádia.
Entre os dois tempos houve um pequeno almoço, à base de carne
bovina e de peixe-pedra, café. . .
Os tocadores de atabaque, as tocadoras de cabaças e ferrinhos e
boa parte das pessoas que ali foram assistir à cerimônia participaram
desse almoço sóbrio, sem bebidas típicas de outras cerimônias e sole-
nidades profanas ou religiosas.
Após uma sucessão de cânticos, toque de tambores, vibrações de
ogãs e gôs, bem como de pancadas nos rebordos da bacia, quatro mu
lheres saem carregando esta, e, acomodados num pequeno cofo, os peda
ços do pote e da metade da cabaça, rumo aos fundos do gume, disso
se encarregando, também, a velha Nena (Philomena, que, então, como
já foi referido, era a Mãe da Casa Grande das Minas).
Trata-se, evidentemente, de um despacho.
Já chegadas sob a copa das árvores e arbustos, num ângulo (o
direito) da cerca que enquadra o gume e próximo ao pé-de-pião-roxo
— que abriga o local destinado a Acossi, onde lhe mantém a comida
ritual — as moedas são retiradas do fundo da bacia; e os pedaços de
pote e os da metade da cabaça, com água de amassi, levemente arro-
xeada e rescendendo a vinho e a cachaça, são lançados numa depressão
do terreno.
Palavras convencionais, fragmentos de orações, em língua africana,
são engroladas pelas mulheres incumbidas desse despacho.
171
De volta à varanda, nova quantidade de amassi foi posta na ba^
cia e trataram de libertar outro morto (isto é, a sua cabeça) do poder
impositivo do seu Vodun.
Novo solo elevou o cântico inicial, de saudação ao morto, e de
homenagem ao seu Vodum, sendo seguido dos toques dos tambores e
das vibrações dos ogãs e gôs.
As dezesseis mulheres, novamente, de roda à bacia, vibraram as
varinhas de goiabeira no rebordo da bacia e na metade da cabaça, en
quanto a mãe-do-terreiro vibrou chineladas, rítmicas e enérgicas, no
pote que lhe foi posto ao lado.
Todos os movimentos, acima descritos, são repetidos, de acordo
com o número de mortos que é necessário libertar do Vodum.
Com relação à particularidade do cântico predileto do Vodum, des
te ou daquele morto, ser elevado nessa cerimônia, é preciso esclarecer-
se a sua obrigatoriedade:
A p artir do momento em que um indivíduo recebe em sua cabeça
um Vodum ou — com maior fundamento — passou a ser por ele incor
porado, no estado de transe, nunca mais se libertará daquela divindade.
Toda a sua vida material e espiritual a ela estará imutavelmente
acorrentada.
Daí a necessidade da cerimônia libertadora do zelim.
Os nomes dos mortos e dos Voduns, a eles ligados, que, porém, ali
foram libertos do seu domínio, conforme a cerimônia acima descrita,
são os seguintes:
Mortos Vodun
D ilu (M a r ia de L ou rd es S ilv a ) Toçá
M u n d ica (R a im u n d a ? ) Ajahutoi
M aneco (M a n u e l N a sc im e n to ) Póli-Boji
L eocád ia d os S a n to s Toçá
172
M u lh e r e s V oduns
Philomena Póli-Boji
Cecília Doçu
Amância Doçu
Bá Daco
Amélia Doçu
Deni Lepon
Edwiges Bôrôtoi
Maria Alôgue
Rita Dedegá
Maria Roxinha Jotirn
Celeste Avêrêquête
Joana Badé
Justina Abê
Beatriz Ajautó
Rosa Ajautó
Elza Boçucó
Estavam ali reunidas as filhas (voduncis e tôbôssis) que carregam
Voduns, sendo nelas representados os que fazem parte das famílias
de Davice, Queviôçô e Dambirá, isto é, todas as divindades do panteão
mina-jeje.
A tôbôssi Philomena (mais conhecida no Bairro de São Pantaleão
e noutros de São Luís do Maranhão por Nena) com a morte de
Leocádia, segundo as leis do culto, passou a substituí-la, sendo a nôchê,
que, como tal, podia estar à frente do zelim.
De pequena estatura e dizendo-se de origem cabinda, Philomena
deveria ter mais de um século de idade; e, embora derreada sobre o
flanco direito, ainda se mostrava lúcida, enxergando bem e ouvindo
sem esforço.
Ela era, indiscutivelmente, no momento, a depositária do legado
mina-jeje que lhe deixou Mãe Andresa Maria.
Tendo assistido à iniciação no culto, tanto de minha mãe Felici
dade Nunes Pereira como de minha tia Ida Alves Barradas, a ela devo
certos esclarecimentos a respeito não só da história, da tradição da
Casa das Minas, como de determinadas cerimônias do culto dos Voduns.
Nessa cerimônia do tambor-de-choro, a sua presença era indispen
sável, dada a autoridade que ganhou ao ser feita, isto é, iniciada nas
leis impostas pela organização, nitidamente daomeana, como se verifica
do culto dos Voduns.
Na cerimônia aqui descrita, de maneira quase esquemática, os tam
bores soaram mais fortemente e mais numerosos cânticos foram ele
vados, já por se tra ta r de Mãe Leocádia, uma nôchê morta, quando
ainda estava à frente da Casa Grande, já porque o seu senhor, o seu
santo, é um dos maiores do panteão das divindades do culto daomeano
dos Voduns.
173
A personalidade mítica e mística de Póli-Boji levou o Prof. Dr.
A rthur Ramos a indagar, através deste período: «outras aproximações
poderão ser aventuradas, como a do Vodun Alogue, da família do Póli-
Boji, e que talvez seja o mesmo Alogbwe, do panteão de Sagbatá. E
esse misterioso Póli-Boji ou Pódi-Boji, a que com tanto carinho se
refere Nunes Pereira, como sendo o Vodun de sua mãe, Felicidade
Nunes Pereira, não era o mesmo Agbogbodji do grupo de Sagbatá?»
(ver Introdução, nesta obra, da autoria do Prof. Dr. A rthur Ramos).
Sabe-se, através da lenda de Fá a quem os Kpóli ensinaram as
artes mágicas, valendo-se de um jogo com sementes de dendezeiros,
que Póli-Boji está ligado a Legbá — o grande trapaceiro, o intro-
dutor diplomático, o public relation, conhecedor de todas as línguas
que os Voduns falam entre si e por meio das suas filhas e filhos.
Resposta à indagação do espírito científico de A rthur Ramos quem
a dá, a meu ver, precisamente, é Edmundo Correia Lopes, na longa
citação que fiz da sua crítica, absolutamente lúcida e inabalavelmente
fundamentada, a esta obra que agora se reedita.
Como estátua ou imagem, desenho ou amuleto, nunca vi na Casa
das Minas uma representação de Legbá, com aqueles aspectos múl
tiplos e contraditórios, referidos por Pierre Verger, falando-se ali mais
em Exu, sem especificar tratar-se de Legbá.
Eu estava em São Luís, em 1969, quando esse personagem, segun
do me foi narrado, baixou na Casa das Minas, ao fim de uma das
suas festas, achando-se reunidas, na sala-de-estar dos Voduns, várias
das suas filhas ou esposas. Incorporando-se na velha Nena (Philomena,
cujo Vodun é Póli-Boji), esta quase morreu, deformada a máscara,
retorcidos os braços e as pernas. As mulheres presentes na ocasião,
procurando ampará-la, por pouco não ficaram no mesmo estado, e, até
no dia seguinte, todas se sentiam sob a pressão maléfica desse
personagem.
Essa presença de Exu-Legbá na Casa das Minas, seguramente,
deveria manter-se em segredo, para que fatos, como o que estou refe
rindo agora, não tivessem divulgação além do ambiente onde ele bai
xava de maneira tão insólita.
Nenhuma estatueta de terracota pode ser vista no pégi da Casa
Grande, representando Exu-Legbá, mas acredito que, enterrada sob o
chão dessa importante dependência da mesma, ali se encontra, em
forma de fetiche, um pequeno vaso de barro, como outros que repre
sentam as afirmações indispensáveis num terreiro onde os Voduns dan
çarão ou se reunirão apenas.
O tradicional costume de abater-se no pégi, aves ou outros ani
mais embebendo-se-lhe o chão com o mesmo, deve estar relacionado
com a presença desse fetiche representando Exu-Legbá, cuja predile
ção, neste ou naqueles sacrifícios, que lhe sejam dedicados, se par-
ticulariza pelo sangue das vítimas, de m istura com óleo de dendê.
174
A coincidência de ele se m anifestar a Nena, cujo Vodun é Póli
Boji, durante aquela ocorrência, evidencia a ligação dela com oshc
Vodun ou Kpóli de Mãe Andresa Maria, que a ele estaria ligada, por
força do seu encargo de nôchê, quando na direção da Casa Grande.
Uma das minhas informantes — que o ouvira de algumas feitas
ou o imaginara simplesmente — contou que outrora, em solenidades
realizadas no pégi, aparecia um negro, bem apessoado e robusto, senhor
«Io disforme pênis.
E esse é um dos atributos (sic) de tão estranho personagem.
Sua predileção, dizem, seria pelas iniciantes no culto mina-jeje dos
Voduns.
A técnica de sacrificar uma ave, desarticulando-lhe a cabeça, num
ritmo de dança e elevando um cântico especial, de oferenda, mostra
que só Exu a emprega na sua função de estabelecer ligação entre o
<>Cortante e os Voduns.
Como Exu, Zomadone é um grande sacrificador.
Mãe Andresa Maria, naturalmente, respeitava e homenageava Exu-
I iegbá porque nele via singular importância nas suas relações com
1’óli-Boji e outros Voduns nas suas atividades diplomáticas.
Assim, na cerimônia do Zelim ou Zeli, à velha Nena (Philomena
Maria de Jesus), cujo Vodun era Póli-Boji e em quem, do mesmo
modo, Exu se manifestava, caberia dirigir a cerimônia de libertação
dos mortos do poder dos seus respectivos Voduns.
Do mesmo modo, sim, porque nenhuma outra cerimônia do culto
pode prescindir da presença de Exu — lembrem-se! — Guardião dos
Cemitérios, bem assim mediador nas relações públicas com as divin
dades do panteão daom eano...
Ele é o insubstituível Vigia dos Mortos.
0 desconhecimento desse papel, o descuido em homenageá-lo antes
de qualquer cerimônia, podem determinar graves ocorrências, por exem
plo, no ato de libertar-se os mortos do poder dos Voduns.
XXIV
175
/
Havendo residido muitos anos no Rio de Janeiro, sem, entretanto,
deixar de vir, freqüentemente, a São Luís, cumprir suas obrigações,
relativas ao culto, muito inteligente e objetiva, se assenhoreou total
mente da direção da Casa, modificando-lhe o estilo de vida, como mo
dificaria a feição dos aposentos para seu cômodo pessoal e modificaria
uma particularidade do pégi, a que se refere a figura 4 do Caderno
Iconográfico aqui incluído.
Anéris Santos viria a morrer pouco depois e, então, a substituta
legal (que deveria ser) de Mãe Andresa Maria, chamada Leocádia
Santos, casada, morando em casa própria, no Bairro Madre Deus, con
fiou a Romana as funções que lhe cabiam.
O conhecimento do que poderia chamar vida particular daquela
casa e das personagens divinas do panteão mina-jeje e dos seus cultua-
dores me permitiu notar logo que Romana estava usurpando os direitos
e deveres que cabiam a Leocádia Santos, por morte de Mãe Andresa
Maria e de Anéris Santos, mutatis mutandis (é impressionante!), como
os deuses-reis do Daomé fizeram entre si.
Os costumes tradicionais da Casa, baseados em leis, cujas raízes
mergulhavam profundamente na moral do culto dos Voduns mina-jejes,
foram adulterados, deturpados, substituídos por outros, de importação
de um centro de incontáveis terreiros de macumba, de tendas espíritas,
de giras umbandistas. . .
Sob a direção de Mãe Andresa Maria a vida econômico-financeira
da Casa Grande não dependia de extorsões, de vendas de amuletos, de
banhos propiciatórios, de benzições e garrafadas de mezinhas etc.
Em centros como o Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belém,
Manaus, essas extorsões, facilitadas pela credulidade do povo, e pressão
de condições econômico-sociais, conflitos íntimos na estrutura doméstica,
criam a necessidade (sic) de recorrer-se ao sobrenatural para a solução
dos mais complexos e absurdos problemas de caráter individual.
Então neles aparecem os charlatães e os mistificadores, e, já agora,
com a expansão do turismo, os deturpadores das mais puras, das mais
legítimas manifestações dos cultos africanos, trazidos pelos escravos,
naturais das conhecidas áreas que a história e a tradição registram.
E todos esses indivíduos desdobram solertemente os mais audacio
sos argumentos para justificar suas atividades.
Um deles assim me pronunciou:
176
Bem diversos desses usos e abusos se distinguiu a vida da Casa das
Minas sob a direção de Mãe Andresa Maria.
Ainda alcancei, quando era menino, a chegada à Casa das Minas,
de lavradores, vaqueiros, pescadores e artesãos, carregando gêneros
para o consumo dos seus moradores.
E eram cofos e cofos de arroz, feijão, milho, farinha, frutos diver
sos; e capoeiras de aves; amarrados de peixe seco e cofos de camarões;
cabritos e porcos.
E tudo aquilo era distribuído por Mãe Andresa Maria e depen
dentes, filhos e filhas da Casa, ali morando ou passando tempo, vindos
muitos deles para participar ou para assistir às festas do culto.
Havia uma dependência da Casa destinada ao armazenamento de
certos gêneros — dispensa do tipo de uma verdadeira Casa Grande —
que deles regurgitavam, garantindo-se, dessa maneira, a vida material
da gente ali morando.
E velas, óleos propiciatórios, óleos comestíveis, de dendê e de ger
gelim, nunca ali faltavam para iluminação do pégi e do aparatoso san
tuário existente, é claro, na sala que lhe estava contígua.
Ora, modificadas as condições econômicas e sociais daqueles con-
Iribuintes, generosos e espontâneos, desaparecida a figura digna e inte
ligente de Mãe Andresa Maria, cujas virtudes se impunham para além
do seu ambiente tradicional, que era aquela Casa, a manutenção da
mesma se tornou difícil, mas não me consta que fosse obrigada, senão
depois que Romana lhe ficou à frente, a recorrer a certos processos
<iin desacordo com a sua finalidade, com a sua vinculação ao culto que
os Negros escravos haviam ali fundado.
Forçoso foi alugar-se a um relojoeiro um aposento e instalar em
dois outros uma tipografia, propriedade de uma amiga de Romana, de
nome Maria de Lourdes Pinheiro.
Na ala esquerda da Casa se instalaram, logo depois da morte de
Mãe Andresa, algumas filhas de Voduns, Negras velhas, cuja vida se
arrastava inexpressivamente da porta da rua para a cozinha, sem ne
nhuma participação nas festas e práticas do culto.
Maria de Lourdes Pinheiro passou a ocupar três aposentos, en
quanto funcionava a sua tipografia.
E, morta a sua amiga Romana Santos, dizendo-se vodunci sem
toalha, isto é, não tendo sido iniciada, assumiu a direção da Casa.
A presença de Maria de Lourdes pode-se considerar benéfica,
nesse período em que a nôchê Leocádia Santos, morando, como já
referi, em sua casa na Madre Deus, raras vezes aparecia na Casa
Grande e pouca atuação tinha na vida da mesma.
Maria de Lourdes Pinheiro se incumbiu de angariar recursos para
o pagamento de impostos, acrescidos pela administração municipal, e
despesas com a carneira em que Mãe Andresa Maria está sepultada,
cujo número é 365 e fica localizada na quadra ou sexta seção do
Cemitério do bairro de São Pantaleão.
177
Em janeiro de 1970, regressando a São Luís, em visita à Casa das
Minas, já não ali estava Maria de Lourdes Pinheiro.
E em maio, do mesmo ano, Amância Evangelista Vianna, contem
porânea de Mãe Andresa Maria e de minha mãe, se mudou da casa, que
possui no bairro do João Paulo, para um quarto, na ala direita da Casa
Grande, domínio sagrado da Família Dambirá, com uma única mora
dora: Philomena Maria de Jesus Ferreira (Mãe Nena), substituta de
Mãe Leocádia Santos, que, substituta de Mãe Andresa, como já regis
trei, confiara a Romana a direção da Casa Grande.
Orçando a sua idade em perto de um século, não podendo, com
os seus achaques, dirigir a Casa, o jeito foi — embora a contragosto,
por se não entender muito bem com Amância Evangelista Vianna — a
velha Nena repetir, não em tudo (e é justo que o saliente), o procedimen
to de Leocádia Santos. Mesmo nas condições físicas ora referidas, ela
tomava parte ativa no ritual das danças e não se descuidava dos seus
deveres com o seu senhor, Póli-Boji, e os demais Voduns da Família
Dambirá a que pertencia como nôchê.
E cantava e dançava, derreada sobre o flanco esquerdo, com uma
vitalidade verdadeiramente invulgar, no seu tipo franzino, com o seu
passado de lutas domésticas, de grandes vicissitudes.
A Amância Evangelista Vianna, de fato, moveram as condições de
Mãe Nena e, por outro lado, a necessidade de opor-se a pretensões
de estranhos e mesmo filiados à Casa, que intentavam assenhorear-se
do seu patrimônio material e espiritual.
E esse perigo ganhou tais proporções que forçoso foi recorrer-se
aos préstimos do Desembargador Benedito Salazar, amigo de Mãe
Andresa Maria, que, com uma interferência, de eficiente base jurídica,
pôs termos a manobras de pretendentes cúpidos e inescrupulosos.
No momento, com a presença de Amância Evangelista Vianna,
embora a nôchê da Casa Grande das Minas, fosse Philomena Maria
de Jesus Ferreira, posso afirm ar que ela está na realidade zelando
por aquele imóvel e o defendendo das manobras de pessoas estranhas
ao culto dos Voduns ou a ele filiadas, visando assenhorear-se do amplo
terreno, onde foi assentada.
Porque, fundada — vale a pena reafirm ar — por Negros africa
nos, apelidados contrabandos, e transm itida de nôchê a nôchê, oralmen
te, ali se encontra um documento de caráter jurídico indiscutível e
sua validade assegurada pela tradição.
Um exame dessa situação do imóvel preciosíssimo, que é a Casa
das Minas, pela Diretoria do Patrimônio Histórico, possivelmente de
term inará o seu tombamento, evitando-se desse modo que o arrebatem
das mãos dos herdeiros espirituais dos contrabandos e das nôchês a quem
foi confiada.
178
XXV
XXVI
Vale a pena conhecer-se o quadro das Tôbôssi e Voduns (filhas
ou esposas) das divindades que ainda baixam na Casa das Minas, de
São Luís do Maranhão.
179
/
Voduns T ôbôs si
OBSERVAÇÕES:
180
XXVII
Face às pesquisas por mim realizadas na Casa das Minas, de
*'iio Luís do Maranhão e, para além do seu ambiente social e religioso,
luto é, nos terreiros fundados por muitos dos seus filhos e filhas,
noutras áreas urbanas como Belém, Manaus, Porto Velho e Rio Branco
( Kstado do Acre), como já referi, páginas atrás, não me senti autori
zado a definir o fenômeno, de efeito individual ou coletivo, dito estado
(Io transe ou possessão.
E tampouco ousei imputar um poder condutor e deflagrador desse
fenômeno ao uso de drogas psicodélicas, inebriantes e alucinantes, ao
consumo de bebidas alcoólicas e mágicas, à aspiração do rapé.
Ora, em relação ao cântico, irmão gêmeo da música, tal como a poesia
<» é, outra não será minha atitude de pesquisador, em relação à dança,
l.imbém.
A essas três artes, desde a sua mais remota primitividade, sempre
coube e caberá a faculdade de integrar a alma ou o coração (como o
intendiam os gregos, por exemplo) de todos os homens e de todas as
mulheres com a Divindade, quer como o Deus dos cristãos, quer como
ou Voduns e Orixás dos Negros daomeanos e iorubanos.
Na Casa das Minas, ou na Casa de Nagô, bem como num sim
ples terreiro delas oriundo, é que pude verificar a força transcendental
<1essas três artes a serviço da religião, por exemplo, ou da magia.
Com relação à música, ali, naquela Casa — temos de considerar
- ela começa por ser produzida através de instrumentos sacralizados,
quatro a cinco tambores, os huns, três cabaças, os gôs, e um ferro ou
(>í)d, este de metal, de forma semelhante a uma campânula, sendo os
gôs agitados ritmicamente, e aqueles vibrados por intermédio de uma
vareta.
Os tocadores dos principais instrumentos de percussão — os tam
bores — são chamados runtó; os tocadores de cabaças ou gôs são cha
mados gatos.
Nenhum instrumento de sopro ou de corda aparece nesse con
junto de músicos.
Mas os toques de tambores, ora discretos, ora violentos, segundo é
necessário aos apelos dos fiéis para que, no pégi ou no gume, os Voduns
baixem ou se incorporem em suas filhas, àquele toque é que pudemos
atribuir a força condutora e deflagradora, em sua maioria, do estado
do transe ou de possessão.
Porque os tambores têm personalidade divina, como os Voduns, e
uh suas vozes expressam uma linguagem de verdadeiros deuses, irmãos,
nem dúvida, não só das árvores sagradas, de cujo cerne foram feitos,
mas dos próprios Voduns.
Que eu não exagero, assim me manifestando a respeito desses ins-
Irumentos, aí estão os conceitos desse incomparável ensaísta que é
Francisco Elias de Tejada, pois atribui ao Negro su musiccdidad
innatamente intuitiva e mais:
181
L o s n e g r o s h a n d ivin izad o a lo s ta m b o res p orque, en su a fá n d e d a r tr a sla d o
m a te r ia l y p a lp a b le a la s id e a s a b str a c ta s, é se era e l ú n ico p roced im ien to
p a r a d iv in iz a r la m ú sica . M ejo r d ich o: su m ú sic a , la a rm o n ía to ta l que le s
em b a rg a a l co n ju ro d e la s n o ta s de la e sc a la . N a d a su p o n e ta n to p a r a la
in te le c c ió n ca b a l dei a lm a n e g r a com o e sta su p la sm a c ió n en p ie i reseca ,
q u e su e n a a l se r g o lp ea d a , de su e n te r a con cep ción dei ord en u n iv erso .
L a r e lig ió n dei d io s-ta m b o r e s la v e r sió n ló g ic a d e la p ercep ció n dei m undo
com o a r m o n ía in tu id a , no p en sa d a . P o r lo s o jo s e n tr a la c a d e n a de la s
c o m p a r a c io n e s ló g ic a s; p or e l oído, la su g e s tió n v o lc á n ic a dei sen tim ien to .
M ie n tr a s lo s b la n co s com p ren d en el m u n d o, lo s n e g r o s se lim ita n a se n tir lo .
Y la m ú sic a dei tam b or d iv in iza d o e s el lib ro m á g ico d onde se in scrib e
in tu itiv a m e n te tod a la co m p lica d a tr a m a de la e sp ecu la ció n q u e, a n o so tro s,
n o s em b a rg a . P o r eso, ta m b ién , p o rq u e el ta m b o r e s la to ta lid a d arm ón ica
d ei m u n d o . . . e l se n ã la , a l p a r dei ritm o de lo s se r e s, su tr a n sm u ta c ió n
en lo s m u e r to s ven era d o s.
182
Do ponto de vista místico e mítico, essa fé resulta, no Negro, mh
Mtiu concepção de que o material, utilizado no preparo de um tambor
procedente de uma árvore sacralizada, já trouxe consigo as suas ca
racterísticas sagradas, e, desse modo, cabe a ele transm itir, através da
magia das suas vibrações, os apelos necessários para que os Voduns ou
Onxás baixem sobre a cabeça das noviches e gonjais, e, depois, nestas
ao incorporem, predominantemente.
Com referência à construção dos tambores, para fins litúrgicos, de
lato, predominam exigências que Boris de Rachewiltz pormenoriza, de
modo bastante curioso:
183
Y a d esd e s u s f a s e s em b r io n á r ia s la m ú sic a su e le e s ta r in te g r a d a p or el
ritm o y la m elod ia, en fo r m a s m á s o m en os r e le v a n te s. E n su s m a n ife sta -
c io n e s m á s s e n c illa s, la e x p r e sió n m u sic a l no e s m á s que u n acen to p róxim o
a la p a la b r a ( e l ad-cantus, com o si d ijé r a m o s el ton o p róxim o a l to n illo
de la p r o s o d ia ) : e l “g ir o m elód ico”. O b ien e s la e sta tiz a c ió n de un
m o v im ien to de “g ir o r ítm ic o ”. Y por a m b a s v ia s s e h a ido d esarrollan d o
ta m b ié n la m ú s ic a de lo s p u eb los de Á fr ic a .
. . . no h a y d u d a de q u e la m ú sic a a fr o c u b a n a h a recib id o la m a y o r p a r te
de su r iq u eza m eló d ica de la m ú sic a b la n c a ; p ero n a d ie p u ed e d em o stra r
q u e lo s n e g r o s ab an d o n a ro n en C uba su s m e lo d ia s a n c e str a le s, p u es é s ta s
a ú n r e su e n a n c a d a d ia e n e s te p a ís p a r a fe r v o r iz a r lo s d ev o to s de lo s
d io s e s a fr ic a n o s y m u c h a s de s u s c a d ê n c ia s in te g r a n h o y la m ú sic a b a ila b le
p op u lar.
S e e n c u e n tr a n la s m e lo d ia s n e g r a s y m u la ta s en e l ca n to , donde la m ú sic a
se h a m a rid a d o con la p o e sia , y a s í m ism o lo s in s tr u m e n to s m u sic a le s.
N o sólo p o see e l n e g r o la ritmopea en la s tr e s m a n e r a s g r ie g a s (esicástica
o ca lm a , s istáltica o s u a v e y distáltica o e x c it a n t e ) , sin o ta m b ién la
metopea.
In d u d a b lem en te, e l elem en to p red o m in a n te en la m ú s ic a a fr ic a n a e s el
r ítm ic o . T o d a s la s e x p r e sio n e s d e lo s n e g r o s a fr ic a n o s, la p a la b r a , el
r ecita d o , e l v e r so , e l ca n to , el coro, el in str u m e n to , la o r q u e str a y la
d an za, e sta n u n id a s p o r u n fo r tísim o e in e sc a p a b le e n c a d en a m ien to de ritm os.
N o p or “r a z a ” sin o p or c u ltu r a , p u es, el ritm ism o e s c a r a c te r ístic o d e los
p u eb los ile tr a d o s.
E l ritm o e s e l e stím u lo de lo p r im itiv o , en v e z de r a cio c ín io . S u s em ocion es
resp o n d en m á s a la s c a d ê n c ia s q u e a lo s ju ic io s.
184
El n e g r o p u ed e d ecir, como el a n d a lu z, q u e “no c a n ta porque lo oHoiiehrii",
en la fr a s e d e R o d ríg u ez M a rín , y “n i b a ila porq u e lo v e a n , ni ta íio porque
lo p a g u e n ; sin o porq u e to d a su v ita lid a d tie n d e a p la sm a r se en ritm e".
El n e g r o s e a d orn a con ritm o s m á s q u e con c o lla r e s, p ie le s y plum a*. No
es p o r sim p le p la c e r q u e c a n ta , sin o p or e l p od eroso e fe c to e x c ita n te que
el ritm o p rod u ce e n s u s e n e r g ia s m e n ta le s y m u sc u la r e s.
185
presente a sua fig u ra : as oferendas rituais, as propiciatórias e as
de pagamento.
Talvez ligada a esse culto das divindades vegetais ou das plantas
sagradas, uma conarácea da Amazônia (Sul) e de Goiás, também co
nhecidas pelo nome de árvore-dos-feiticeiros, é a Connarus Patrisü
Planch.
É, para Paul Le Cointe, planta inofensiva, do domínio das su
perstições, sendo as suas sementes «úteis contra a fraqueza geral, o
abatimento».
Na Casa das Minas, de São Luís, no gumé, isto é, no amplo terreiro
aberto frente à varanda, onde se realizam as danças, e, no Natal, se
arm a um presépio, existe uma cajazeira, de grande porte e idade cal
culada em cerca de um século, que é venerada como uma divindade, a
ela estando ligados alguns fatos ilustrativos da predileção que lhe a tri
buem os Voduns mina-jejes e das forças mágicas presentes no seu
tronco e na sua ramaria. À base deste foram espalhadas algumas
pedras-de-raio e búzios marinhos, mas no chão em que mergulham
as suas raízes foram enterrados elementos indispensáveis à firmação
das suas forças cósmicas e mágicas.
Essa árvore não representa, propriamente, um santuário de Vodun
mas, entre a sua ramaria, já foram visto toquens e a ela se dirigem
especiais vibrações dos toques musicais dos tambores.
Em volta do seu tronco, nos dias festivos, passam uma toalha de
fino tecido, com bordos simbólicos e rendas delicadas, como se faz
nas danças litúrgicas, envolvendo o tronco das noviches e gonjais, que
dançam em estado de transe.
Mas tristes recordações estão ligadas à vida dessa árvore, pois
lhe atribuem a morte fulminante de um indivíduo, a quem Maria Ro
mana, substituta de Mãe Andresa, incumbira de aparar uns galhos, e
a conseqüente morte desta e de sua filha, residente no Rio de Janeiro.
Como a árvore sagrada acvatha dos indianos, a figueira, aquela
cajazeira da Casa das Minas não podia ser mutilada, sem que isso
importasse numa desgraça.
Quando a sua galharia se cobre de frutos acidulados só os pássa
ros os comem impunemente; as crianças não lhe jogam pedras nem
sobem nela, limitando-se a apanhar aqueles frutos que caem ao chão,
naturalmente, da vetusta galharia.
Pode-se imaginar daí que respeito merecem as árvores de cujos
troncos são feitos os tambores.
Ouvindo o toque desses tambores, vibrados nos dias de festa e,
igualmente, nos dias de luto (pois estes não se denominam tambor es-
de-choro?) pode-se, ao fim de continuada atenção, saber a que Vodun
se dirigem as suas vozes, já pela regularidad de la repetición, que
é o ritmo, na definição de Adolfo Salazar, já pelas primeiras frases
de um cântico, elevado, primeiro, por um solista, já pelo desenvolvi-
186
mento que se lhe segue, a cargo de um coro de gonjais e noviches, a
que se associam os tocadores desse instrumento, principalmente.
Referindo-me aqui a essas particularidades de função religiosa dos
lambores da Casa das Minas, impossível foi esquecer o que, a respeito
dos instrumentos de percussão, de origem francamente negro-africana,
escreveu o incomparável Mário de Andrade em sua Pequena História
(Ia Música (em nada inferior à do eminente musicólogo Adolfo Salazar,
La música), na precisão deste tópico:
L es a p p a r e n c e s se n s ib le s s e p r é se n te n t so u s d es fo r m e s d iv e r g e n te s d an s
le s r è g n e s v é g é ta l, a n im a l e t m in éra l. M a is ce n e so n t là q u e le s m a n ife s ta -
tio n s d ’u n e se u le réalité fondamentale : 1’u n iv e r s, r é se a u d e fo r c e s d iffé r e n tc s ,
m a is c o m p lém en ta ires, q u i so n t com m e n o u s l ’a v o n s v u , 1’e x p r e ssio n d es
v ir tu a lité s r e n fe r m é e s en D ie u , se u l ê tr e v r a i. C ar Dieu est, en core uno
fo is , la Force des Forces. D ’oü le m o n ism e de 1’o n to lo g ie n é g r o -a fr ic a in e .
L ’u n ité de 1’U n iv c r s se r é a lise en Dieu p a r la co n v e r g e n c e d es fo r c e s
c o r r e sp o n d a n te s e t co m p lá m en ta ires, is s u e s d e D ie u e t ord o n n ées v e r s D ieu .
187
Comme on le c o n sta te , l ’o n to lo g ie n é g r o -a fr ic a in e p roced e p a r dialectique
polymorphe, p a r indu ction , p a r in v o lu tio n e t e x te n sio n . P a r intégration au
sens étymologique du mot. 65
XXVIII
O comportamento, por assim dizer, jogralesco, de Legbá, mas, so
bretudo, sua capacidade de parlamentar, de desempenhar embaixadas,
de resolver os casos mais delicados e complexos das atividades dos
Voduns e das preces e súplicas dos fiéis que o buscam, em pleno
desespero ou em plena euforia, lhe perm itiria utilizar a dança como
uma das soluções mais objetivas impostas pelas circunstâncias.
Nas áreas das pesquisas por mim desenvolvidas, entre os Minas
jejes e os Nagôs, de São Luís do Maranhão, não encontrei nenhum
elemento para informar se Legbá ali executa dança especial de sua
predileção, com cânticos para a excitar.
Fernando Ortiz, entretanto, em sua obra, Los bailes y el teatro
de los negros en el folklore de Cuba (ver Caderno Iconográfico, n.
20 e 21) (Ediciones Cardenas y Cia., Havana 1961) — às páginas
202-209 — descreve os bailes de Eléggua.
Ofereço aos leitores desta obra, na frescura e precisão do seu
texto, quanto Fernando Ortiz, o inolvidável Mestre, amigo de A rthur
Ramos, nos legou, ao longo dos parágrafos que seguem:
188
r e s tr ic tiv a s . E n Cuba hubo q u e p r e sc in d ir d e la p a n to m in a co p u la r , como
de lo s r ito s ju d ic iá r io s, la c ir c u n c isió n , el sa c r ifíc io h u m an o y otron
e le m e n to s de la r itu a lid a d r e lig io s a y so c ia l q u e no s e p od ia am algum iu-
con e l siste m a de la socied ad cu b a n a . P ro ceso n e c e sa r io y sim u ltâ n e o de
desculturación, o aban d on o de c ie r to s e lem en to s de la s c u ltu r a s a fr o c c id e n -
ta le s y n e g r a s, y d e acidturación o acom od am ien to a c ie r ta s e x ig ê n c ia s do
la s c u ltu r a s e u r o c c id e n ta le s y b la n c a s, p a r a lo g r a r s ín c r e s is d e transcultura-
ción, o p roceso de tr a n s ic ió n , la re a d a p ta c ió n y r e a ju s te en o tr a c u ltu r a ,
la cu b a n a y m u la ta , que e s u n a n u e v a creación .
C uando e se o r ic h a “s e su b e ”, o se a cu an d o uno d e su s c r e y e n te s se sie n te
p oseíd o p or él, v a en se g u id a o c u lta r se tr á s de la p u e r ta q u e e s su lu g a r
de r itu a l. N o c e sa de sa lta r s e y m o v erse se g ú n su ca p rich o y de h acer
g e s to s in s ó lito s com o un m u ch ach o in q u ieto y rev o lto so . Eléggua m u eq u ea
de m a n e r a risib le , ju e g a e l trom p eo y a la s b o la s, em p in a el p a p a lo te,
g o lp e a a lo s c ir c u n s ta n te s , h a ce e l trom p eo q u e s e v a y r e to m a b ru sca -
m en te, se a p od era d ei som b rero de u n esp ecta d o r y s e cu b re con él, o
de u n ta b a co y lo fu m a , etc. C on la m an o d erech a a b ie r ta y su p u lg a r
en la p u n ta de la n a r iz , m u ev e lo s o tr o s d ed os en serial d e b u r la , como
en e l fo lk lo r e de c ie r to s p u eb los d e E u r o p a ; o b ién , cru za n d o lo s dos
b ra zo s p or la s m u n e c a s y con la s m a n o s c e r r a d a s en p uno, m u e v e e sta s
ra p id a m e n te , a rrib a y a b a jo , con a d em á n q u e en e l fo lk lo r e de C uba, lo
sa b em o s se r p o r in flu jo a fr ic a n o , e s u n a a le g o r ia p ic a r e s c a d ei a c to s e x u a l;
y ta m b ié n , con u n a m an o en e l b a jo v ie n tr e y o tr a en la n a lg a se con ton ea
con a ir e de la s c ív ia . E s to s a d em a n es d eb en de s e r r e m a n e n te s de m im ica
e r ó tic a en Á fr ic a . T am b ién p a r e c e q u e h a de serio e l u so d e un p aio
com o de m ed io m etro , te r m in a d o en fo r m a de g a n ch o , q u e s e d ice
“g a r a b a to ”. E s e “g a r a b a to ” e s m ovid o de u n lad o a otro com o si con él
fu s e a p a r ta d o la m a le z a o s e a b r ie r a sen d a en la se lv a , p or lo q u e se
ve, sim b o liza su fu n c c ió n de “a b r ir ca m in o ”. P ero o tr o s d icen q u e e s p a r a
“a tr a e r ” com o h a c e n el hom b re y la m u je r cu an d o “tie n e n g a n ch o o
g a r a b a to ”. A ca so e s te p a io se a su p e r v iv e n c ia em b lem á tica dei fa lo q u e
en G u in ea c a r a c te r iz a a e se d io s “m a ch o ” y g u errero . Eléggua v is te u n a
ja q u e tilla , u n p a n ta ló n cefiido en la s r o d illa s y u n g r a n g o r r o com o el
típ ic o de lo s co cin er o s, tod o ello d e dos co lo re s: n e g r o y rojo. A veces
ca d a p ie m a dei p a n ta ló n e s de color d istin to o de am b os en li s t a s a lte r n a d a s.
A s í la c h a q u e ta com o e l p a n ta ló n , y so b re todo el g o rro , su elen e s ta r
a d orn ad os con cauris, c u e n ta s y c a sc a b e le s. L a f ig u r a r ecu erd a la d e c ie r to s
a n tig u o s b u fo n e s y la de a q u ello s b a ila d o r e s de la d an za Morisca o Morria
dance de lo s sig lo s X V y X V I. Eléggua b a ila con fr e c u e n c ia en u n solo
p ie, a la c o r c o jita , y dando v u e lta s , por lo q u e p a rece se r a le g o r ia dei
rem olin o de v ie n to . S u s m o v im ie n to s im p r e v isto s y c a p rich o so s d eja n un
g r a n cam po a la im p r o v isa c ió n q u e el b a ila d o r e n tu s ia s ta , a u n q u e “su b id o ”,
a p ro v ech a p a r a lu c ir su v ir tu a lism o y so rp ren d er y d e le ita r a lo s e sp e c ta d o
r e s; com o si é sto s v ie r a n en ello el co n ten to dei d ios que de ta l m a n era
lo s com p lace. L os b a ila d o res, uno tr á s otro, su e lto s y en ru ed a sin ie str o -
v e r sa , lo im ita n en su s p a so s y m o v im ien to s m á s co r r ie n te s. A Eléggua
se d ed ica n tr e s toq u es.
XXIX
Quando os Voduns baixam, por ocasião das tradicionais festas,
realizadas na Casa das Minas, segundo os termos de particular ca
lendário, é que se tem oportunidade de ouvir as expressões mais nume
rosas, variadas e belas do cântico que a voz do Negro africano trouxe
para a terra maranhense.
Esse cântico é denominado ponto, doutrina, porém, aqui, sempre
me referirei a cânticos, mais apropriado este vocábulo à riqueza de
melodias que ele encerra.
Há, também, além daquelas designações, a de cantiga, que não me
parece corresponder integralmente aos matizes da voz humana elevando-
se, com finalidade litúrgica, num templo ou mesmo ao ar livre.
O cântico, sem dúvida, contém em sua estrutura uma força de
comunicabilidade apropriada ao contato com a divindade.
Quem admitiria chamar-se cantiga a uma peça gregoriana, mesmo,
como diria Mário de Andrade, «prodigiosamente deformada»?
Cântico é tudo aquilo, pois, que ouvimos da boca das gonjais e
noviches, paralelamente, à voz dos atabaques ou tambores.
O início dessas festas é feito pela voz de uma das filhas ou
mulheres dos Voduns, num solo e anunciando, da sala onde estão reu-
190
ilidas, que os seus senhores, os seus santos, os seus Voduns, já se llies
incorporam e vão passar para a sala destinada às danças rituais.
Três tambores são vibrados, num toque característico, chamando
ns Voduns ou, então, as gonjais e noviches, e estas ainda em trajo
caseiro, com as toalhas de espera sob o braço, deixam a sala em que
hc encontravam e seguem para a sala das danças.
O cântico é entoado em homenagem aos Voduns.
Sentadas em bancos corridos, as gonjais e noviches esperam que
os Voduns nelas se incorporem, e, logo que isso ocorre, saem para
vestir os trajos apropriados a cada Vodun, entreajudando-se numa de
pendência da Casa destinada a esse fim.
No pégi já foram iluminadas as lâmpadas elétricas e acesas as
velas, frente às ja rra s sagradas, que representam, como já foi dito,
as entidades correspondentes às três famílias sagradas: Quêviôçô,
Davice e Dambirá.
Voltando à sala de reuniões dos Voduns (Randechê) ali se cum
primentam, conversam, fumam cachimbo, com grande dignidade senão
majestade. A assistência, na varanda ou sala das danças, que é a
mesma onde estão os tambores ou atabaques, em bancos corridos e
cadeiras, se compõe de filiados e de simpatizantes do culto, e, já agora,
de alguns turistas para lá encaminhados pelo órgão competente, ou
at raídos pelos toques dos instrumentos, toques ouvidos a grande
distância.
Ao iniciar-se a entrada (em duas alas, na sala das danças) dos
Voduns, ouve-se este cântico, que também soa ao fim da festa, no
remate dos tambores:
É para Vodun ê Dô
acundêrê viô Dá
É para é para
Vodun Dô
Dadá missó.
191
É içá êê içá
a g ô m a ie n o venê iç á (b is).
192
o cu p a rem o s; o q u e n o s im p o r ta rá é sa b er o que e s s e s n ú m eros r ep re se n ta m
no dom ínio da n o ssa p esq u isa . É in c r ív e l que c e r to s v a lo r e s n u m éricos
fo r a m ob jeto de u m a se leç ã o so b re a q u al o acordo é g e r a l; p o d e-se d izer
que h á n ú m er o s m á g ic o s; é o sen tid o qu e s e dá a e sse s n ú m ero s; se a
esc o lh a dos s in a is concord a, o s ig n ific a d o pode d ife r ir . B u sq u em os, p or
ta n to , o sig n ific a d o dos n o sso s “n ú m ero s m á g ic o s”.
O n ú m ero t r ê s (se g u n d o o a u to r c ita d o ) em K etu e s tá lig a d o à lin h a
r e a l o r ig in a l e d iv id e -se em d u a s s u c e ss iv a s r e p e tiç õ e s: a p r im eira d iv isã o
se p rod u z ao tem p o de S h e I p a s h a n , c u ja d e scen d ên cia s e se p a r a em tr ê s
g r u p o s. A n a lisa n d o -s e os d ois a c o n te cim en to s, a p a recem como u m a r e p e ti
ção u m a da o u tr a e resp on d en d o ao m esm o m odelo m ític o . D o pon to de
v is t a d os n ú m ero s, p o d e-se r e te r q u e o s a n c e s tr a is fu n d a d o re s e stã o aqui
a sso cia d o s ao n ú m ero tr ê s. A a sso c ia ç ã o tr ê s + a n c e str a l s e e n c o n tr a con
fir m a d a em O yo on d e o A la d in (r e i) te m p r e cisa m e n te tr ê s “p a is ”. Q uero
f a la r dos B a b a O ba, o s tr ê s p e r so n a g e n s que v im o s u san d o o s t ítu lo s de
O n a-Ish ok u n , O n a -A k a e O no-O na.
193
/
cristãos e mouros), participando dos festejos populares e das cerimô
nias litúrgicas que eram obrigatórias, então.
Por toda a Amazônia colonial se alastrou a Folia do Divino (ver
Caderno Iconográfico n. 22-24) e o mesmo se verificaria no Mara
nhão, ligado administrativamente ao Pará, sofrendo-lhe as influências
sociais e políticas ou recebendo-as, como Alcântara, diretamente da
metrópole lusitana.
Em minha obra o Sairé e o Marabaixo, com diversas conclusões
referendadas pelo historiador luso Jaime Cortesão, assinalei o fato de,
na dança rotulada pela designação africana, acontecer que bailantes
(homens, mulheres e crianças) se revelassem em estado de transe,
para isso influindo não as vibrações dos tambores mas das caixas e,
um pouco embora, às libações da bebida pitorescamente apelidada
mucura.
Sem nenhuma vinculação com o culto dos Voduns, a festa do Di
vino, realizada, até bem pouco tempo, com certa pompa, na área urbana
de São Pantaleão, dentro da capital maranhense, emprestava particular
movimento à gente da Casa das Minas, a cuja frente ora uma, ora
outra das suas filhas tinha papel saliente de organizadora, de cole
tora de espórtulas, distribuidora de atividades, visando à confecção de
doces, comidas e bebidas, além de contratadora de músicos e de tirado-
ras de ladainha. Depois da procissão era indispensável a ladainha,
diante de um altar erguido na sala onde os Voduns faziam as suas
reuniões.
Waldemiro Emiliano dos Reis, presidente do Centro Espírita S.
José do Ribamar, dando notícias das festas profanas e mesmo reli
giosas, tal a do Espírito Santo, numa informação escrita, registrou
que «nas festas ali realizadas (na Casa das Minas) até champanha
em taças de cristal era oferecida aos visitantes».
Hoje em dia já não se registram particularidades relativas à Festa
do Divino Espírito Santo, cujas caixas, bandeiras, etc., desapareceram
da vista de quem, como eu, ainda as fotografou há menos de duas
décadas passadas.
Não obstante o esforço em reconstituir essa tradição católica, num
centro dedicado ao culto dos Voduns daomeanos, continuo a afirmar,
não se processou ainda ali, na Casa das Minas, um autêntico sincre-
tismo: Santo Negro é Santo Negro, afirmava Mãe Andresa Maria.
E o mesmo, agora, eu a posso secundar em idêntica afirmação.
XXX
Na folia do Divino havia danças sociais mas não se comparavam,
de nenhum modo, com as religiosas da Casa Grande das Minas, por
que a esta inspirava a fé que Negros escravos haviam transmitido aos
seus descendentes, revigorada aqui nos eitos, nos engenhos e currais,
194
senão nas mansões de senhores impiedosos e desumanos, em sua
generalidade.
Porque — já o salientei noutra obra, O Sairé e o Mardbaixo —
valendo-se do depoimento de um viajante estrangeiro, in Africans
Dance:
T h e y d an ce fo r jo y , an d th e y d an ce fo r g r i e f ; th e y d an ce fo r lo v e a n d th e y
d an ce fo r h a te ; th e y d an ce fo r b r in g p r o sp e r ity a n d th e y d an ce fo r a d v e r t
c a la m ity ; th e y d an ce fo r r e lig io n . 66
F o lia do D iv in o e r a a p r o c issã o o u o s b a n d o s p r e c a tó r io s, c a n ta n d o , to
can d o in str u m e n to s, p ed in d o e recolh en d o o s a u x ílio s , de to d o s o s g ê n e r o s
e v a lo r e s , p a r a a fe s tiv id a d e . F o lia é v elh o sin ô n im o d e b a ile e d ança.
195
Quando Badé chega, o cântico, que se eleva, começa por estes
versos: A comê vin e penha êcain janá na dubê Badê vodunce; mas não
é ele quem canta e sim os outros Voduns, pois ele não fala. E, quando
os Voduns estão passando o dia, isto é, estão reunidos em mútua
distração, cantam: Arraruma irré bô ôbôbôlômé do tó, repetindo-lhe
a letra três vezes. E três vezes é entoado o cântico que relata quando
Agongone foi encontrado numa cabaça. Ao ir amanhecendo, os Voduns
cantam Acomá nicé gongô lê viô obô jatuá acoma nicé Daco Daco
donun lêá. Um cântico de Póli-Boji, que era o Vodun de Andresa
Maria, de minha mãe e de Zuleide Figueira de Amorim, de quem o
recolhi num gravador, começa assim : Idô guache mandô rin fon ê coma
ná Vodunce l ô. . .
Esses cânticos representam um material de extraordinária beleza
litúrgica, manifesta, quer pela voz apenas de uma solista, mesmo sem
acompanhamento de instrumentos como o tambor, quer por um coro
dirigido apenas, também, pela força dos sentimentos religiosos, pró
prios da alma dos descendentes de escravos negro-africanos, que vivem
na terra maranhense.
Além desses tipos de cânticos, em cujos textos se verifica, ora a
intenção de dar mais vigor a este ou àquele vocábulo, para secundar
a ação dos toques dos tambores e demais instrumentos, ora com vistas
à deflagração de estado de transe ou possessão, e ora para desorientar
quem quer que queira aprendê-los sem nenhuma fé nas divindades a
quem são dirigidos.
Vale a pena conhecer-se o seguinte: existem outros cânticos, de
um tipo que contrasta com os citados, embora de maneira incompleta,
quando os Voduns viram para a mata.
A estrutura desses cânticos revela palavras e expressões em língua
portuguesa e num dialeto positivamente africano, de pueril alacridade,
duma frescura de ambiente florestal, com fontes e pássaros cantando.
Os movimentos e passos da dança, a que estão ligados esses cân
ticos, se assemelham mais aos da festa da «sinhazinhas» (expressão
afetuosa, para designar as Tôbôssis, por ocasião do Carnaval).
Se se apresentam em duas filas, obedientes à hierarquia de cada
família, a fim de saudar a personalidade divina dos tambores, os Voduns
— portando as bengalas ao ombro direito, à feição de espadas —
têm a fisionomia e a gesticulação de militares, como num desfile de
parada.
Mas aquelas mulheres, possuídas por eles, não perdem a graça e
a sedução de sua feminilidade, no requebro do corpo, do busto aos
quadris, no agitar as mãos com lenços multicores, de um lado e de
outro, na firmeza dos passos sobre o piso irregular da varanda.
Na roda em que se movem, quer lenta, quer agitadamente, os ca
beções de finas rendas e alvíssimo tecido, envoltas nas toalhas sagra
das, também de finas rendas e finíssimo tecido, as saias amplas, de
196
cores vistosas ou simples, ganham um conjunto de formas e matizes
que deliciam a vista como um meio disco de arco-íris.
Ora uma, ora outra gonjai, noviche, toquen e tôbôssi se projeta
dessa roda, dançando e cantando, para saltitar e piruetar, como os
pássaros, num desafio de luta ou numa provocação nupcial. . .
Não raro, entretanto, há uma solista que emite um daqueles cân
ticos, alguns tão densos de contagiante alegria como outros de não
menos acabrunhadora tristeza, lembrando os que os escravos erguiam
do fundo dos tumbeiros, recordando paisagens e episódios quotidianos
do trabalho livre na terra distante, para lá do litoral atlântico. E essa
voz, dir-se-ia, imprimia aos passos de dança um ritmo de abandono
e de desespero.
O Dr. Ecroide Claxton, citado por Daniel P. Mannix, em The
Black Cargoes, numa impressão de viagem a bordo do «Young Hero»,
salienta:
197/
de leiras, neles plantar punhados de sementes; mas esses gestos tam
bém lembravam afagos e carícias, de uma função afogada dans celle
de la catharsis sexuelle.
Voduns bailam como velhos que necessitassem apoiar-se em suas
bengalas e sentindo o passo inseguro; outros, porém, explodem em
gestos e vozes de um vigor envolvente e irresistível, de indissimulável
sensualidade.
Como em África, ali na Casa das Minas, quando, outrora — se
gundo informações que não me pareceram bem memorizadas —, homens
eram admitidos nessas danças, tal catarse sexual poderia ser registrada.
Nos dias de hoje, entretanto, nada pude observar, em nenhum
homem com relação à forma sexual dessas danças, segundo expressão
da bailarina e coreógrafa Katherine Duncan.
Relendo agora Les danses d’Haiti (Vaudou) de Katherine Duncan,
encontro, na análise das diferentes danças do culto Rada Daomé (p.
120), a descrição da principal dança dos cultos ditos Rada-Daomé:
Yanvalou.
Yanvalou é provavelmente uma deturpação gráfica de Savanlou,
o Vodun companheiro de Zomadone, cuja família mítica e histórica
ainda não pude recompor em minhas pesquisas da Casa das Minas.
Katherine Duncan assim descreve essa dança:
68. T rad u zo :
“ U m dos m eus am igos h a itia n o s ch am av a com ace rto o yanvalou a prece do V odum . A execução
dessa d a n ç a p ro d u z u m estad o de êx tase n o tav elm en te p ró x im o , ta n to quanjio se sabe, daquele
que a tin g ia m os sa n to s c ristã o s d a Id ad e M édia p a r a a p rece e a m editação. P a re c e ria que o
fim fu n d a m e n ta l d a p re c e s e ja a e x p an sã o de um co nflito em ocional pelo estabelecim ento de
um c o n ta to com alg u m s e r su p erio r, ou u m a e x te rio riz a çã o com pleta e a p e rd a d a individualidade
n a que é a essência do ser com quem se d eseja a com unhão. O m ovim ento do yanvalou é
fluido, envolve a e sp in h a dorsal, a base d a cabeça, o peito, o plexus sacro e a c in tu ra p e lviana,
ten d o como efe ito u m a re la x a çã o com pleta. N ão h á n e n h u m a ten são , n e n h u m a rigidez dos
m úsculos, m as um flu x o c irc u la r co n sta n te , como um n a rc ó tic o m e n ta l e u m a c a ta rse nervosa.
A d a n ç a é d eb ilitan te, m a is que ex citan te , e d eix a o d a n ç a rin o num estado p e rfe ito de re c ep ti
vidade e, m ais das vezes, p ro p íc io ao c o n ta to com o loa” .
198
XXXI
ll
í
A pêndice
O FORTE PORTUGUÊS
201
us h o stilid a d e s e n tr e a m a rin h a p o r tu g u e s a d a m etróp ole e a da C om p an h ia d as
Ín d ia s. E m ja n e ir o d e 1724 v iu A ju d á e n tr a r , sain d o a 21 p a ra a B a h ia , a
n au de g u e r r a N o s s a S en h o ra da A ta la ia do ca p itã o J o sé de Sem edo M a ia , v e n
ced ora d um a f r a g a t a h o la n d e sa p erto do C astelo de S. J o r g e da M in a, in íc io da
e x ecu çã o dum p la n o de r e p r e sá lia s san cion ad o em P o r tu g a l, ta lv e z no m esm o d ia
do com b ate, p e la O rdem de 12 de ja n e ir o . O fo r te de h o je já não é o m e s m o 2,
por m u ita s v ic is s itu d e s p a s s o u .3
O v ia ja n te que p a ss a p or G regu é a p r o x im a -se do fo r te p a r a v e r com certo
e sp a n to irôn ico iç a r -se a li a b a n d e ir a p o r tu g u e sa , o seu esp a n to cr e sc e quando
sab e que a E u r o p a n o s d a v a g e n tilm e n te u m a in d en ização p or la r g a r m o s aq u ilo.
R i-se. N a v e r d a d e , som os se n tim e n ta is.
D e p e n d e n te o u tr o r a do go v ern o da B a h ia e in tim a m e n te lig a d o a o s in te r e s s e s
c o m ercia is d e ssa p r a ç a , h á m a is d e cem a n o s, d esd e a se p a r a ç ã o do B r a s il, que
fo r ta le z a , c a p e la , a lf a ia s — sob a g u a r d a dum a lm o x a r ife ou dum g o v ern a d o r,
com c a p e lã o 4 o u símile — tu d o, pelo aban d on o do tr á fic o , caíd o em in a lte r á v e l
q u ietu d e, dá a im p r e ssã o de p e n ite n c ia r -se a li. Q uando d a a ção fr a n c e s a co n tra
o d ésp o ta do A b om é, a in d a o cerco d a s tr o p a s do g e n e r a l D od d s esp a lh o u a lg u m a
a n im a çã o em to m o d a q u eles b a lu a r te s. A o la r g o , a c a n h o n e ir a Mindelo, com o
p a v ilh ã o p o r tu g u ê s, e sp e r a v a dançando a d an ça d a s c a le m a s, a té que b reve
a trech o a tir a n ia do N e g r o d a v a a a lm a à h is tó r ia e lá se ia o Mindelo, d eixan d o
a fo r ta le z a e n tr a r n a h is tó r ia “com o a u m a iso la d a ilh a b a tid a p e la v e n ta n ia
te m p e stu o sa q u e so p r a v a do lad o d a s c h a n c e la r ia s, a d isc u tir e m a p o sse e fe tiv a
de P o r tu g a l” — diz u m g u a r d a -m a r in h a .5
H a b ita d a p o r um r e sid e n te p o r tu g u ês, c a p itã o , ú n ico pad rão a r e v iv e r a
n o ssa a tiv id a d e iso la d a em ta n to s p o n to s da c o sta a fr ic a n a — e de o u tr a s c o sta s,
de o u tr o s m a r e s — a fo r ta le z a de A ju d á é h o je a p e n a s um livro.
V ►
II
Outro trecho do trabalho de Edmundo Correia Lopes, digno de ser
conhecido, é o seguinte, intitulando-se
O R E IN O DA SERPENTE
2. A pro v isão do Conselho U ltra m a rin o de 14 de m aio de 1723, que c o n fe ria ao vice-rei do B rasil
a nom eação de d ire to r de oficiais d a fo rta le z a de A ju d á , d e te rm in a v a que essa fosse c o n stru íd a
ò ú ltim a perfeiçã o .
3. A té 1803, no d ia 31 de m arço , lhe pôs fogo um ra io ta n g id o p o r o b ra de fe itiç a ria do su p erio r
d a m issão fra n c e sa , P e. F ran c isco B erghero, d iziam os N egros, que p o r isso o p re n d e ra m e
m a ltra ta ra m , o brigando-o a d a r de re sg a te 110 pesos de búzios (1.540f000 rs.)» 24 p e ça s de fazen d a
e 13 g a rra fa s de a g u a rd e n te (C o rreia d a Silva, op. c it.t p . 8 6 ).
4. C apelão, n ão o tev e o fo rte desde 1788 a té 1844, d a ta em que Jo sé M a ria M arques, G overnador
d as Ilh a s de S. Tom é e P rín c ip e , p a r a ali m an d o u u m p a d re e o te n e n te de in f a n ta r ia L íbano,
su b stitu íd o ao fim de 5 anos.
5. E m ílio de S a n B runo, A V elh a M agra da Ilh a de Luanda.
6. N ão p a re ce que fosse o re in o todo conquistado. V am os v e r que no fim do século X V III ain d a
h a v ia um re i de A rd a.
202
A c a p ita l de A ju d á ren d eu -se. Os s e u s h a b ita n te s, d ep ois de g a s ta s a s rm<n
n u m a p r im e ir a so r tid a fe liz , en com en d aram -se à p roteção de D a n g b i, a scip i
s a g r a d a , com o m eio m a is côm odo e ta lv e z m a is e fic a z de s e sa lv a r e m . Ma
p ob re d iv in d a d e n a d a p od ia co n tra a fo r ç a in c o n tr a stá v e l da v itó r ia m
a d iv in h á -la e se g u i-la .
Q uando, nu m recon tro d a s a r d r e n se s, a tím id a D a n g b i d esertou d a s i
file ir a s , p a r a s e v ir a co lh er e n tr e o s sold ad os de A ju d á , q u e a receberam
jú b ilo e v en era çã o , d ir -se -ia p red izer a r u ín a d a n ação que a ssim in g ra ta m
ab a n d o n a v a . O m ísero rein o de A la d á fo i d en tro d e pouco u m a v ítim a
g r e n ta em p od er daom é. D e s ta v e z a s p r ó p r ia s se r p e n te s fo r a m su rp reen d i
E n v o lv id a s p e lo s fe itiç o s d e S a v ê, n ão s e p u d eram p a ss a r a tem p o p a ra o ca
in im ig o . O s in v a s o r e s de A ju d á , quando ch egou a h o ra de sa c ia r o ódio
a p e tite , v e n d o -a s e n tr e o s c o n tr á r io s — e ta lv e z n u n ca a s tiv e s s e v isto
co m era m -n a s. P a r a tr iu n fo d um a r e lig iã o é p reciso q u e a lg u n s c r e n te s se
reçam ao m a r tír io ; p a ra o tr iu n fo dum a r e lig iã o fo i p reciso tam b ém o si
f íc io de u m a d ivin d ad e. A s tím id a s D a n g b is fo r a m im o la d a s à g ló r ia fu
du m cu lto q u e, a tr a v e ssa n d o o s m a r e s com a s le v a s de e sc r a v o s v en d id os
tir a n o daom é, se e x p a n d iu no H a iti, n o s m isté r io s VoduSj, sob a p u p ila n egi
p r o fu n d a d a s n o ite s do M ara n h ã o , ab rin d o a s m ís tic a s so le n id a d e s, en trava,
som do g ã e dos ta m b o res, o o fe r e c im e n to da fe s ta .
Danjibê ê ma vi ohunwedo. ..
III
Rio de Janeiro, 27/3/1
D a k a r , le 6 ja n v ie r 1977
C her M on sieu r,
M on sieu r N u n e s P e r e ir a
A lm ir a n te A le x a n d r in o , 2015 - ap to. 101
S a n ta T e r e sa
R io de J a n e ir o - R J
B r a sil
205
P a r is , le 2 2 octo b re 1973
P r o fe s s e u r N u n e s P e r e ir a
R u a A lm ir a n te A le x a n d r in o , 2015 - a p to . 101
B a ir r o de S a n ta T e r e sa
R io de J a n e ir o
G B - B r é s il
M on c h er c o llè g u e ,
J ’a i é tu d ié le s t e x t e s v o d ü q u e v o u s m ’a v e z e n v o y é s a v e c m o n a m i G ilb ert
R o u g e t, le m u sic o lo g u e du M u sée d e 1’H om m e, q u i e s t le g r á n d s p é c ia lis te d e la
q u estio n .
II e s t a b so lu m e n t c e r ta in q u e la d o m in a n te d es e m p r u n ts e s t f ã , e n s u ite g s
(m in a ) e t g ü . II y a a u s s i d es é lé m e n ts p lu tô t y o r u b a . (e .g . X X X I X ) , m a is i l
r e s te d if f ic ile de f a i r e d es a ttr ib u tio n s p r é c is e s, e íi -raisop .d es d é fo r m a tio n s e t
d es c o n v e r g e n c e s e n tr e d es la n g u e s a p p a r e n te e s .d e p r è s.
C e r ta in s ite m s so n t p a r fa ite m e n t r e c o n n a is s a b le s :
Z om adone = Z om adonu, u n to x o s u ( “r o i d ’e a u ”) d’A b o m ey ;
D a co D o n u n = D a k ó D o n u , u n a n c ie n r o i d ’A la d a ;
N a n a ■= te r m e d e r e sp e c t p o u r la r e in e ;
D a d a = term e d e r e sp e c t p o u r le r o i;
D a m b a ra coêdô = D ã b a la H w ed o , l ’a r c -e n -c ie l;
X X . m in a god o to m õ nõ je “c e lu i q u i e s t p r è s d ’A lm in a a r m e ’';
X X I I . iá le v á = iy e lee w a “le s m è r e s v ie n n e n t” ;
D a d a h o = d ad a ho “v ie u x r o i” (t e im e d e r e s p e c t ) ;
D em = d ã, le se r p e n t sa c r é ;
L X II. A ja c to i =s ajahutoD “le tu e u r d ’A j a ”, u n r o i d ’A la d a ;
vod u n ce = v o d ü c e “m on v o d o u n ”.
L e te r m e “m in a ” • d e sig n e a u jo u r d ’h u i le s h a b ita n ts de la C ôte, du G h an a
à la fr o n tiè r e du N ig é r ia , et, a u p o in t de v u e lin g u is tiq u e , la la n g u e v é h ic iila ir e
d es m a rch és, à b a se e ss e n tie lle m e n t g ê. L e s m o ts id e n tifié s c i- d e s s u s ' s o n t p lu tô t
fõ o u gü .
À p r e m iè r e v u e , je n e r e le v e a u c ü n te r m e h a u s a on b a n tu (k ik o n g o ou
k im b u n d u ).
J ’a i e n v o y é le s t e x t e s a u D r. N s u g a n Á g b le m a g n o n (C e n tr e d ’E tu d e s
S o cio lo g iq u es, 8 2 r u e C a rd in et, 7 5017 P a r i s ) , , q u i c o n n a ít b ie n l a q u e stio n , m a is
j e n ’a i p a s en co re eu s a rép o n se.
J e v o u s p r ie d e cro ir e, m on c h er c o llè g u e , a u x a ss u r a n c e s d e m a co n sid é r a tio n
d istin g u é e .
P ie r r e A le x a n d r e
206
Paris, le 1" juin 1973
M on sieu r N u n e s P e r e ir a
R u a A lm ir a n te A le x a n d r in o , 2500 - ap to. 101
B a ir r o de S a n ta T e r e sa
R io de J a n e ir o - GB
B r a s il
C her M on sieu r,
O ui, v o tr e a m i B r a g a a e s s a y é de m e jo in d re. M a is la v ie à P a r is e s t te lle
q u e n o u s n ’a v o n s pu tr o u v e r u n m om en t p ou r n o u s ren c o n tr e r . J e lu i a i d it p ar
télé p h o n e — 1’ ) q u e je n ’a v a is p a s c e v ie il a r tic le — 2?) e t q u ’o n m e T envoie
p ou r q u e j e p u is se le r e lir e e t é v e n tu e lle m e n t le co rrig er.
N o n , v o tr e f ilie n ’a c e r ta in e m e n t p a s com m is d’e r r e u r s en tr a n s c r iv a n t m on
a r tic le ; m a is j ’é c r iv a is m e s a r tic le s en fr a n ç a is , on le s tr a d u is a is en p o r tu g a is
e t ces tr a d u c tio n s é ta ie n t le p lu s so u v e n t tr è s m a u v a ise s. J e v o u s en v o ie q u elq u es
co rrectio n s p o ssib le s:
p. 1 — lig n e s 13 -14: a g io g o ? ? M e ttr e A fr ic a n is ta
p. 2 — lig n e 5 : a p r è s Patrimônio a jo u te r Historico
lig n e 9 : pageismo: E c r ir e : pagelança
lig n e s 1 3 -1 4 : id em : pagelança
lig n e 1 7 : é a in flu ê n c ia n a g ô m esm o n a c a s a g ê g e de Amazônia que
domina, e n q u a n to . . .
lig n e 26: a p ro fu n d eza da influência da r e lig iã o
p. 3 — lig n e 1 0 : R em p la cer A o s p a r Apos
lig n e 1 2 : m istic ism o p r im itiv o J . É porq u e c r e i o . . .
lig n e 15: r em p la cer Praça p o r lugar e t e n le v e r la v ir g u le a p r è s (m in h a s
o b serv a çõ es no lu g a r dos X a n g ó s no C a rn a v a l do R e c ife ) .
J ’a i lu a v ec b eau cou p d’in té r ê t v o tr e le ttr e . II e s t é v id e n t q u e possuir n ’e s t
p a s copular. M a is à B a h ia , Exú n e p o ssèd e p a s de f i li e s n on p lu s, E x ü n e s ’in ca rn e
ja m a is, ca r il n ’e s t p a s u n O rish a m a is u n q u a si-d ie u , u n In te r m é d ia ir e . II ne
p eu t p o sséd er u n e f ilie q u ’en e n v o y a n t Ogun à sa p lace.
N o n , j e n ’a i p a s lu le liv r e de J u d ith G leazon. M a is p e u t-ê tr e au ron s-n ou s
la p o ssib ilité d e n o u s ren c o n tr e r e t d e d is c u te r p lu s lo n g u e m e n t d e to u t cela , ca r
j e com p te ê tr e à R io du 8 a u 14 ju ille t p ro c h a in p ou r le C on grès d e 1’A sso c ia ç ã o
B r a s ile ir a p a r a o P r o g r e sso d a C iên cia. J e tâ c h e r a i d e v o u s v o ir à ce m om en t-là
pour v o u s p a r le r d e m on p r o je t de rec h e r c h e s à M an aos su r la p a g e la n c e a fr ic a in e
d ’o r ig in e M a ra n h en se. A b ie n tô t donc s a n s doute.
E n a tte n d a n t, c ro y ez à m e s m e ille u r s so u v en irs.
R. Bastido
207
IV
208
(A propósito ver: «Uma religião tropical», Raimundo Lopes, no lio-
letim do Ministério do Trabalho, III, 30, p. 305, nota 5.)
Luís Saia recolheu, igualmente, em todo o Nordeste e Norte do
Brasil, rica documentação: tudo o que sabia de Tambor de Minas eu
o conhecia por meio de conversação com o amável diretor do Patrimô
nio em São Paulo. Parte dessas informações, ainda não publicadas, foi
divulgada em dois artigos de Mário de Andrade («Geografia religiosa
do Brasil» e «Música e feitiçaria no Brasil», Publicações Médicas,
1941). Os artigos assinalam a semelhança entre estas seitas de «pa-
jeísmo» do P ará e do Tambor de Minas em São Luís, e caráter «dao-
meano» de um e de outras. O cântico de Iemanjá, citado por Mário
de Andrade e recolhido em Belém por Gastão Vieira, é significativo
a esse respeito, Dêrecê Vodun, Dêrecê Amanjá, Mário de Andrade pen
sava, porém, que se devia procurar a origem do «pajeísmo» na vinda
dos pretos das Antilhas. Graças ao trabalho de Nunes Pereira e ao
Apêndice (Comunicação de Geraldo Pinheiro), vemos que as seitas do
Pará foram fundadas por Negros das Casas religiosas de São Luís.
Em todo caso, como no resto do Brasil, é a influência «nagô», mesmo
na Casa jeje, enquanto a influência daomeana é predominante e quase
pura no Maranhão. Isso não quer dizer que o culto «jeje» não apre
sente, na Bahia e alhures, diferenças no modo de tocar o tambor, nos
cânticos, na importância dada às pedras (pois, pessoalmente, penso que
o culto da cobra não é um sinal muito importante; mais importante, em
minha opinião, é a cobra marinha Oxumaré), mas a mitologia daomea
na apagou-se diante dos Orixás dos Ioruba. Herskovits, no entanto,
encontrou Aido Hwedo em Porto Alegre. Pela primeira vez Nunes Pe
reira, ao dar-nos a lista dos deuses da Casa das Minas e ao classificá-
los em famílias, nos revela a profundeza da religião dos daomeanos em
terras do Brasil.
Esperemos agora a coleção de cânticos religiosos que este autor pro
meteu. Gostaríamos também que nos revelasse, alguns dos mitos dos
Negros de São Luís, a fim de podermos fazer uma comparação, mais
fundamentada, com o que sabemos da religião do Daomé. Sinto-me
particularmente feliz por ter encontrado nesta publicação a afirmação
de que os deuses negros não se confundem com os seus correspondentes
católicos.
Tentei ainda, recentemente, propor uma explicação do sincretismo
católico-fetichista a qual tende a ligá-la à mentalidade classificadora
dos Negros e não a um processo de identificação. As justas observa
ções de Nunes Pereira parecem confirmar a minha hipótese.
Nunes Pereira apresenta, também, sobre o transe místico das filhas-
de-santo, observações muito judiciosas, que têm o sentido das observa
ções de Herskovits na Bahia, sendo o caráter desse transe mais socio
lógico que patológico.
209
Após uma estada na Bahia cheguei às mesmas conclusões que
Ilerskovits (e isto antes de lê-lo), tendo proposto, aí por 1930, em um
artigo contra Durkheim, uma teoria sociológica do misticismo prim i
tivo, porque creio que Nunes Pereira tem absoluta razão. Poder-se-ia
comparar o que ele diz do transe dos Tôbôssis, durante o Carnaval, como
minhas observações na praça dos Xangós, no Carnaval do Recife, e o
papel do controle social sobre as danças sagradas nesta época do ano
(cf. Imagem do Nordeste Místico).
Estou também inteiramente de acordo com o autor acerca do ca
ráter moral dessas religiões africanas: imoralidade não se introduz
senão com os brancos, e isto no momento em que eles as desagregaram.
É-me impossível insistir em tudo o que tem de interessante no p ri
meiro trabalho publicado pela Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnologia, e A rthur Ramos tem muito cuidado em anotar e explicar esses
elementos novos.
210
A n tig a m e n te en co n trá v a m o s ju n to à su a p o rta em leq u e, do lado do Sim
P a n ta le ã o , u m a p r e ta de ca b eça b ra n ca , com u m sortid o ta b u le ir o do fruliiH
m a r a n h e n se s: b a cu ris, g u a b ir a v a s , m u r ic i, c a ja z in h a s, in g á s , m a n gas-d e-ch oiro,
p ito m b a s, sa p o tis, g r a v io la s e m esm o m a r ia -p r e tin h a e cam ap u , q u e o s m en in os
de h o je n ão c h e g a r a m a con h ecer. P e la m a n h ã , n os d ia s com u n s, e à n oite, nos
d ia s de f e s ta , h a v ia ao lado do ta b u le ir o u m a p a n e la de b arro com a ju ç a r a
fr e s c a ou o m in g a u de m ilh o, q u e o p róp rio v e n to da ru a a n u n c ia v a e o ferecia .
N o rod ar do tem p o, a c a sa não m udou. O que era on tem , no tem p o do
c a tiv e ir o , c o n tin u a a se r h oje, n a ép oca d a lib erd ad e — com o m esm o corred or
com p rid o, a s m e sm a s sa la s e q u a rto s, o m esm o sa n tu á r io , o m esm o te r r e ir o de
ch ão b atid o, q u e s e p o n tilh a de v e la s v o tiv a s d u r a n te a n o ite , e a que dão
som b ra, d u r a n te o d ia, o s ra m o s to r c id o s de u m a c a ja z e ir a sa g r a d a . E n tr a -s e
a li p e la p o r ta da R u a de São P a n ta le ã o . E o q u e logo s e v ê ao c h e g a r à v a ra n d a ,
d ep ois d e a tr a v e s s a r o corred or a tijo la d o , sã o o s ta m b o r e s r itu a is , de pé, em
n ú m ero d e tr ê s , com pondo o fu n d o , à esq u erd a , e com pondo a b a se de um tr iâ n
g u lo cu jo v é r tic e é o en con tro d a s p a r e d e s. U m lon g o b an co de m a d eira sem
reco sto a co m p a n h a a p a red e q u e o lh a o q u in ta l. E n tr e ta n to , ao s e n ta r a li, o
q u e o v is ita n t e d e sc o r tin a são o s ra m o s da c a ja z e ir a , p orq u e u m m u ro s e a lte ia ,
de pouco m a is de m etro e m eio, n a d iv isó r ia da v a r a n d a . M a s e s s e m esm o m uro
s e ab re, m a is a d ia n te , p a r a d ar p a ss a g e m ao te r r e ir o , p erm itin d o o lh a r d e p erto
a v e lh a árv o re, to d a v e s tid a d e fo lh a s m iú d a s, d e u m v e r d e q u eim ad o, m u ito
escu ro , e que a lu z do so l tr o p ic a l c u sta am a d u recer. P o r tr á s do b anco, e stá
a sa la fe c h a d a on d e s e escon d e o sa n tu á r io , e a que o s N e g r o s só p en etra m em
esta d o d e p u reza , n a c o m p a n h ia d a n och ê ou don a da c a sa , e d a s n o v ich es, ou
ir m ã s, e s ta s ú ltim a s tra zen d o n o s b ra ço s a s p u ls e ir a s de b ú zio s, e no pescoço
o s c o la r e s co lo rid o s que a n och ê lh e s p rep a ro u . D e n o ite, q uando b a ix a m os
V od u n s, e stro n d a m o s ta m b o res, to ca d o s r itu a lm e n te p e lo s r u n tó s, en q u an to sa -
co leja m a s c a b a ç a s e r e tin e m o s o g ã s, e s te s ú ltim o s v ib ra d o s p o r m ã o s d e m u lh er.
A o r ig e m da C a sa d a s M in a s h á d e se r sem p re um m isté r io .
VI
212
e x p o sto s a m il p e r ig o s. A lg u n s são m ord id os de cob ras e s e lh e s se g u e q u ase
sem p re a m orte. O u tros são r a sg a d o s com fre q ü ê n c ia por in fin id a d e de e sp in h o s
e am iu d a d a m en te c o b erto s e fe r id o s p or u m a m u ltid ã o de d iv e r so s v erm ícu lo s
p eço n h en to s, q u e in u n d am a s c o n fu s a s r a m a s d a s á r v o r e s; e m a l lh e s tocam no
corpo le v a n ta m -s e -lh e s p o stem a s, p r in c ip a lm e n te u m ab o m in á v el fo r m ig u e ir o que
ch am am poró, sendo im p roviso o seu e fe ito le tífe r o . N ã o m en os cr e sc e o te r r o r
q u ando, d ep ois, com eçam a d erru b a r d e m ach ad o os m o n stru o so s e e lev a d o s tron cos
q u e, m u ita s v e z e s, ao c a ir , r e v e r te m com o v en to e esm a g a m a lg u n s d esses
d e sg r a ç a d o s len h a d o res.
213
tamente à
e n tr e g u e s m a is b r u ta l r e la x a ç ã o , se m e x c e tu a r o s m esm os sa cerd o tes,
o fe r e c ia m o m a is r e p u g n a n te exem p lo de q u an to pode a lu x ú r ia em te r r a s tr o
p ica is. O P a d r e N ó b r e g a , m a l en cetou su a m issã o , tr a to u logo de e x tir p a r da
fr a c a colôn ia p o r tu g u e s a e s s e pecad o n e fa n d o e h orroroso. (R e fe r e -s e à p e d e r a stia .)
S erv o de D eu s, q u e p o d eria e le a le g a r sen ão q u e p or a li a n d a v a m a r tim a n h a s
do diabo? Ig n o ra n d o , com c e r te z a , a in flu ê n c ia d as le is m e so ló g ic a s e o u tr a s in te r
fe r ê n c ia s, de c u ja d esco b erta se o r g u lh a a c iê n c ia m od ern a, o h eróico j e s u íta a ta
c a v a o fa to com o e s te s e lh e m o str a v a , e, d e cru z a lç a d a , ia p reg a n d o co n tra
o s v íc io s p eca m in o so s, ao m esm o tem po e sc r e v ia p a r a P o r tu g a l, so lic ita n d o in s ta n
te m e n te a r e m e ssa de m u lh e r e s b r a n c a s, a in d a m esm o a s p r o stitu ta s, que se con
v e r te r ia m ca sa n d o -se com os d egred ad os. T u d o isto , p orém , tin h a seu d estin o .
E r a in d isp e n sá v e l p a r a a c o n stitu iç ã o do tip o b a ia n o , que s e fiz e s s e u m a c a l-
d eação de r a ç a s, de se n tim e n to s e de in s tin to s, que a B a h ia c o n q u ista sse a su a
a u ton om ia. F o r a m o s T u p in a m b á s o s p rim eiro s a d a r seu c o n tin g e n te . O que
era m e ste s in d íg e n a s, em m a té r ia de a m o res e a r te s c o r r e la tiv a s , r e fe r e -o , com
tin ta s de r e a lism o a d m ir á v e l, G ab riel S o a r e s, no seu Tratado Descritivo, de m odo
a n ão se p ôr à p a r te q u e tiv e r a m no en sin a m en to d e ssa s a r te s ao colono b oçal,
d esp ed id o da m etró p o le e ávid o de se n sa ç õ e s. O c a p ítu lo C L V I d aq u ela in e s tim á v e l
ob ra in d ica a s lo u c u r a s d e que se r ia m c a p a z e s e s s e s pob res colon os d ia n te d as
T u p in a m b á s, v e r g a s ta d o s p e la solid ão, p elo clim a , p or um a lim en to a cre e p e la s
su g e s tõ e s de u m a v e g e ta ç ã o sem p re v e r d e e en o rm em en te c a r r e g a d a d e r e s in a s
a fr o d isía c a s . N ã o ta r d a r á a u n ir -se a e s s e elem en to eró tico o fo r te se n su a lism o
d os a fr ic a n o s. E s te im p o r ta n tíssim o elem en to da n o ss a co lon ização im p regn ou a
B a h ia , m a is do q u e a q u a lq u er o u tr a r e g iã o do B r a s il, de u m a s ton alid ad esi
o r ig in a is de m e stiç a g e m , d ig n a s de se r e m a n a lisa d a s ao cla r ã o da c r ític a de u m
T a in e ou de u m H a n n eq u in . A N e g r a mina,, c a r in h o sa , in te lig e n te e b ela , sed u
zin d o com a fo r m o sa c a r n a d u r a e p elo lu s tr o so e e sc u ltu r a l da V ê n u s a fr ic a n a
o p o r tu g u ê s lib id in o so , n ã o cu sto u a v e n c e r a in d íg e n a n e ss e con cu rso d e p ro-
c ria ç ã o . É v erd a d e q u e a m u lh er tu p in a m b á tin h a a in d o lê n c ia d as o r ie n ta is, o
abandono d a s n a tu r e z a s m órb id as, a m oleza, a in d ecisã o , o a m b alar etern o da
r ed e e o gozo v a g o , in te r m ite n te , q u a se in d e fin ív e l d os b a trá q u io s. E n e r v a n te s,
dep ravad oras, é b em certo que, s e n ã o co n c o r r e sse a o u tr a m e stiç a g e m , o colono
p o r tu g u ê s n u n ca m a is s a ir ia do te ju p a r , n em a b a n d o n a ria a red e p a r a b r a n d ir a
en x a d a ou o m ach ad o e d e sb r a v a r a flo r e s ta . M as e ss a en erv a çã o n ão p od ia d e ix a r
de c a u sa r -lh e m edo. O s in s tin to s sab em b u sc a r o s se u s ca m in h os. A c r e sc e que
a Ín d ia d e sc o n fia d a n ã o era ca p a z de c o n stitu ir foyer. A o co n tr á r io de tu d o
is to a N e g r a m in a a p r e se n ta v a -se com to d a s a s q u a lid a d es p a r a se r u m a e x ce
le n te c o m p a n h eira e u m a cr ia d a ú til e fie l. E sc r a v a , r e s is te n te a to d o s os tr a
b alh os, sa d ia , e n g e n h o sa , fin a , s a g a z , c a u te lo sa , ao m esm o tem p o que n u tr ia um
fo g o in e x tin g u ív e l, e la sa b ia d ir ig i-lo e a p r o v e itá -lo em b e n e fíc io da p ró p ria
p role. Com se m e lh a n te s p red ica d o s e n a s con d ições p r e c á r ia s em q u e no p rim eiro
e seg u n d o sé c u lo s se a c h a v a o B r a s il em m a té r ia de belo sex o , e r a im p o ssív e l
q u e a M in a n ã o d o m in a sse a situ a ç ã o . E , de fe ito , em tod a p a r te do p a ís on d e
h ou ve e sc r a v a tu r a e la in flu iu p o d ero sa m en te e n tr e o g a le g o e vacinou a fa m ília
b r a sile ir a . P o d ia , p o rta n to , o P a d r e N ó b r e g a b ra d a r q u an to q u is e sse co n tra o
q u e r e p u ta v a “g r a n d e m a l”, escrev en d o ao P a d r e M estre S im ã o R o d r ig u e s que
“a g e n te da te r r a v iv ia em pecad o m o rta l e n en h u m h a v ia q u e d e ix a s se de te r
m u ita s N e g r a s d a s q u a is s e en ch iam de filh o s ” ; a p r e ta m in a n ão r e c u a r ia , e,
v ito r io sa , d a ria to m a e s s a m esm a lib e r tin a g e m , a e ss a d e se n fr e a d a p o lig a m ia
de q u e tã o incom odado s e m o str a v a o m issio n á r io je s u íta . C ada v e z m a is e n tr a -
n h a d a no seio da fa m ília c o lo n ia l, a a fr ic a n a , q uando não se n h o r a do la r , era
a m ed ia n e ir a da co zin h a e a p r o v id ên cia d os q u a r to s b a ix o s. N ã o p o ssu in d o fo r ç a
in te le c tiv a p a r a e le v a r -se sobre a fa ta lid a d e da su a r a ç a , e la e m p r e g a v a to d a a
su a sa g a c id a d e a fe t iv a em p ren d er o bran co e a su a g e n te n a tep id ez do colo
m acio. F o i n e ss e colo q u e a B a h ia m ed rou e s e d esen v o lv eu . A í fo r m o u -se a
ia ia zin h a e, em b alad a n a co x a a v elu d a d a , ap ren d eu a se r d e n g o sa e a nada
214
fa z e r . N e s s e colo m acio lh e e n sin a r a m a se r su p e r s tic io sa , ao som de can tigim
a fr ic a n a s e r e m in isc ê n c ia s fe t ic h is ta s . F o i n e ss a e sc o la tam b ém q u e a m en in a
b r a sile ir a ap ren d eu a se r d issim u la d a e a e n fe itiç a r os o u tr o s com a su a in d o
lê n c ia tro p ic a l. À N e g r a a fr ic a n a ig u a lm e n te d ev e-se a cria ç ã o do p e tu la n te e
v a le n te ioiô. Com e la e n sa io u -se o a d o le sc e n te n a s su a s p r im e ir a s b a ta lh a s do
am or. A té o p róp rio sinhô velho d eix o u -se sed u zir p e la s s u a s c a u te lo sa s e d iscre-
tís s im a s c a r íc ia s q u e a sin h á da s a la d e ix a v a d e e n x e r g a r , ta lv e z p reocu p ad a com
o s m ú ltip lo s se r v iç o s q u e a p r e ta lh e p r e sta v a , con d im en ta n d o o s a c e p ip e s e
in str u in d o -a com a riq u eza da c u lin á r ia da c o n tr a c o sta . N e s s e acon ch ego lúbrico,
a p im en ta d o p e lo s v a ta p á s , p elo d endê, fo r ta le c id o , in te n sific a d o p elo coco e p ela s
d e líc ia s da m oq u eca; e n la n g u e sc id o p e la s c a n tig a s e lu n d u s e p or m il o u tr a s co isa s
m iú d a s que a im a g in a ç ã o da a fr ic a n a le v a n ta v a a fim de to r n a r a v id a tão
a cre com o e la a s e n tia n o s a d u sto s d e se r to s do C o n tin en te N e g r o ; n e ss e ninho
de v o lú p ia g e r o u -s e u m a ra ça de m e stiç o s, elo q ü en te, r e sso n a n te , a p a ix o n a d a e
u m ta n to ch e ia de p a ra d o x o s n o s co stu m es, a q u a l, m e s tiç a no sa n g u e , p or su a
v e z , e n c a r r e g o u -se de m e s tiç a r a s id é ia s, o s se n tim e n to s e a té a p o lític a dos
b ra n co s d o m in ad ores da te r r a .
VII
Atos de crueldade, atribuídos a senhores de escravos, feitores e
capitães-do-mato, a serviço deles, ou, ao longo da travessia, nos tum-
beiros da Costa da África, para as Américas, principalmente para o
Brasil, se foram apontados no Maranhão, também o foram, no sul do
nosso País, em Minas Gerais.
No seu magnífico Fabulário Infantil (Imprensa Publicações, Belo
Horizonte), Euryalo Canabrava, escritor e filósofo, nos apresenta um
quadro dos mais estranhos e originais, que a sua memória fixou em
terras de Minas Gerais. Tratava-se de um método pedagógico dos
mestres de então. Ei-lo:
N a esco la p r im á r ia , o p r o fe s so r su b m e tia o s a lu n o s in e r m e s a to r tu r a n te s
q u e stõ e s sob re ta b u ad a. A a v e r sã o de E lp íd io (q u e v ir ia a s e r p a i de E u r y a lo )
p e la m a te m á tic a le v a v a -o a co m eter fr e q ü e n te s erro s n a s r e sp o sta s. E m ta l c ir
c u n stâ n c ia , o m e s tr e reco r r ia à p a lm a tó r ia p a r a c o r r ig ir a n e g lig ê n c ia dos m e
n in o s a p a v o ra d o s. P o is bem , m eu a v ô T eotôn io, la tin is ta con su m ad o, e sp ír ito sa g a z
e g e n e r o so , n ã o h e sito u em reco m en d a r ao p r o fe s so r que, caso m eu p a i se e n g a
n a ss e n a ta b u a d a , o s c a s tig o s , com a p a lm a tó r ia , d ev e r ia m s e r a p lica d o s no
p retin h o B en ed ito .
E r a d e v e r , e n tã o , o m oleque, a tr á s d e m eu p a i, o lh o s la c r im e ja n te s, gem en d o
com v o z m on ocórd ia: “E stu d a , seu E lp íd io , e stu d a , seu E lp íd io !” (p . 111 e 1 1 2 ).
VIII
A PROPÓSITO DE «A CASA DAS MINAS»
Edmundo Correia Lopes
A Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia iniciou as suas
publicações com a comunicação de Nunes Pereira A Casa das Minas,
215
sobre um terreiro de tradição voda de S. Luís do Maranhão. Apesar
dessa valiosa comunicação, do que tenho escrito sobre o mesmo tema
e do muito que colhi naquela casa e, ouso até dizê-lo, da promessa
de novos estudos prometidos pelo etnógrafo maranhense que oxalá se
realizem brevemente, alinho estas considerações no receio de que o
Quêrêgbetã de Mãe Andresa Maria nunca venha a ter o estudo que
merece. É certo que uma douta instituição dos E.U.A. tomou sob os
seus auspícios investigações sobre o Negro maranhense, envolvendo,
como não podia deixar de ser, o mais puro dos seus terreiros, mas para
o Brasil é um imperativo nacional a recolha do vasto patrimônio mu
sical, coreográfico e multiplicemente folclórico, psicológico e histórico
do grande terreiro jeje. Ainda hoje me parecem pouco o meu caloroso
entusiasmo e êxito inesperado das minhas tentativas — coroadas pelo
encontro nos arquivos portugueses das obras de língua mina de Costa
Peixoto — para avaliar com certeza a importância do tesouro guar
dado pelos «Minas» maranhenses e pelas noviches do Begum da Cidade
do Salvador. A guerra e as minhas atribulações na pátria impediram-
me de fazer como devia e tencionava a propaganda em torno desse
manancial de riqueza estética e psíquica da nação brasileira.
Empenho fácil e já conseguido é o de classificar o Quêrêgbetã na
ordem religiosa. Em introdução ao trabalho de Nunes Pereira, A rthur
Ramos apresenta a minha conclusão, publicada em trabalho posterior
do etnógrafo maranhense, de que o culto guno de S. Luís se inclui
no «sincretismo ioruba-daomeano». Isso seria apenas a confirmação
de um lugar-comum desde Nina Rodrigues. Outra afirmação do mestre
baiano (aliás maranhense) mais precisava ser confirmada: a de que
o tal sincretismo vinha determinado da África. Do fato encontrei eu
confirmação plena, quando identifiquei, provavelmente bem, o senhor
Póli-Boji com o «Kpoli» de Mãe Andresa. Se não está bem patente
no comentário da Obra de Língua Mina, de Peixoto, volto a escla
recer que me refiro a um sincretismo jeje-nagô produzido em África.
Sincretismo religioso com demonstração lingüística.9 Nos estudos afro-
brasileiros tanto da religião como da língua tem dominado uma con
fusão geográfica, pelo motivo de haver várias tribos nagôs no território
do Daomé. A essa confusão se refere já A rthur Ramos. Por causa dela
publiquei um artigo na Revista do Brasil, intitulado «O pessoal jeje»,
contendo acusações ao fundador dos estudos afro-brasileiros, de que
mais reíletidamente o ilibei em artigo publicado na mesma revista
com o título de «Justiça a Nina Rodrigues». Com esta explanação
ficam reparadas as faltas em que o trabalho de Nunes Pereira não
podia deixar de te r incorrido, principalmente ao versar a questão da
língua.
9. São exem plos de lin g u ag em relig io sa contendo dois dialetos do E v e em d ife re n te s proporções
com um pouco de Soruba, os p rovérbios dos K polis, que podem v er-se no a rtig o de J ac q u e s B ertho,
"L u Science du d estin au D ahom ey” , in A jr ic a (L o n d res 1936), e m ais e x au stiv a m e n te em J .
H pleth, Die Itclig io n der E w e r in Süd -T o g o , L eip zig 1911, p. 189-223.
216
Pensar que o sincretismo ioruba-daomé do terreiro de Andremi
é de origem afra tem muita importância quando se lê um livro que,
como A Casa das Minas, tanto insiste sobre a pureza da crença dos
fiéis do Quêrêgbetã. Este é o fundo da questão, embora não falto
depois onde procurar, quer em pontos de crença, quer nas múltiplas
manifestações de cultura, evidências de poliédrica aculturação.
O depoimento de Nunes Pereira convida-me a dar o meu pequeno
depoimento, porque tudo me parece pouco para decidir os músicos bra
sileiros a recolher e venerar os «pontos», de que tenho publicado umas
duas dezenas, quando possuo mais de um cento, os coreógrafos a fixar
as danças, os psicólogos a esgotar a psicologia e outros estudiosos a
estudar o resto — e isto enquanto é tempo, porque já Andresa Maria
se me queixava, e na Bahia a Emiliana, da dificuldade que vai haven
do em conservar o velho patrimônio em gente moça. E a minha dúvida
é que, perdido ele, perdidos não fiquem valores que nem em África
seja tempo de recuperar.
O autor de A Casa das Minas alude à minha freqüência ao te r
reiro em 1937. Não importa retificar o que diz a meu respeito. É
pena que não seja verdade. Basta agradecer-lhe com a simpatia que a
recordação do seu nome me desperta, ligada, não me recordo bem se
a algum encontro pela Amazônia se a boas referências que lhe ouvi
fazer, a maneira amável por que reproduziu a lenda que a meu res
peito se formou entre a gente da seita no Maranhão sem que, como
poderia vir a suspeitar algum crítico, eu a tivesse originado mentindo
para mais facilmente ganhar confiança. De qualquer maneira, não con
segui por completo realizar o meu intento. Andresa declarou não me
ter confiado tudo o que sabia e os pesquisadores devem reparar bem
no caso que exponho para governo deles. Em primeiro lugar, a con
fiança não dependia exclusivamente da vontade da voduno, porque esta
entregou a decisão aos Voduns, segundo os trâm ites que as coisas
seguiram. Pelo que tocava à boa vontade da dona do Quêrêgbetã, devo
dizer que fui recebido com a maior franqueza desde que ali entrei.
Contando apenas com 20 dias de trabalho naquela casa e em S. Luís,
trabalhando desde o jantar (às 18 horas) até depois da meia-noite,
tempo insuficiente para coligir todos os textos musicais, exclusivamente
cantados por Andresa — as noviches não o podiam fazer e passavam
o tempo comigo em conversa fiada nos impedimentos e descansos da
voduno — com essa limitação me conformei desde o princípio. Evitei
assim qualquer motivo de reserva que comprometesse o nosso mútuo
e tão necessário à-vontade, até final, só então pedindo para ser admi
tido no pégi, menos pelo desejo de lá entrar que para saber se me
era permitido. Mas importa mais pormenorizado o meu depoimento.
No primeiro dia, pelas 18 horas, bati à porta da casa da rua de S.
Pantaleão, 857, perguntando por Mãe Andresa. O nome fora-me indi
cado em Belém pela Luzia da «Floresta de Santa Joana d’Arc», à
cremação, mulata maranhense. A casa reconhecera-a na véspera em
217
um;i ronda pelos terreiros na companhia do amabilíssimo delegado de
polícia. Só o chofer me pôde dar a indicação daquela porta misteriosa,
fechada quando depois da meia-noite passamos pela rua. Mãe Andresa
não estava no momento em que a procurei, mas, voltando uma hora
depois, fui introduzido na varanda para dizer à voduno: «Sei cantigas
jejes da Bahia. (Sabia pouco, ainda não estava reconstituído, ao tempo,
o Bogum do Engenho Velho.) Quero aprender cantigas jejes do seu
terreiro». Receou que se tratasse de uma vontade incerta, de uma
curiosidade vã, mas foi am ável: «Oh! a nossa língua é muito difícil. . . »
— e começou a cantar, em nagô, um «ponto» bonito que diligente-
mente transcrevi e reproduzi logo. Vendo que o amigo não era muito
estúpido, Andresa começou logo a cantar jeje, mas não o fez ao acaso
o primeiro cântico que escrevi, Ê m asêtô10, é um exconjuro. Ignoro
se alguma ordem conservaram daí por diante os textos que foram
aparecendo, embora me falasse do nome, sexo e idade doVodun a
que pertenciam. O essencial é que em muito raras ocasiões, por can
saço, indisposição ou afazeres, a mestra se escusava de cumprir a
pesada tarefa que aceitara, correspondendo à minha avidez de me-
lômano, cansando-se, repousando apenas a intervalos para conversar
sobre as explicações que a propósito dos textos lhe pedira. Por vezes
eu instava, sem força — que me parecia necessário empregá-la —
para que me revelasse tudo o que me pudesse revelar sem prejuízo
do mistério que lhe convinha preservar na casa. Nessa reserva, seria
eu o primeiro a ampará-la, usando da plenitude do meu espírito crí
tico a ponto de a fazer recear ser indiscreta. Por excessode escrú
pulo? Não. Por um sentimento de solidariedade a que senão pode
esquivar quem convive naquele terreiro, eu não perdi de vista que o
momento em que todos os mistérios do Quêrêgbetã fossem devassados,
seria o início da desagregação; e é necessário que quem tomar essa
responsabilidade, tome também a de recolher integralmente para a ciên
cia e para a arte o legado das Negras minas. Eu não podia tomar
nem uma nem outra. Nunes Pereira, no presente estudo, obedece ao
mesmo instinto. Declara com certa humildade que nunca entrou nas
casas da direita do terreiro (são habitações particulares) ou na co
zinha, e das outras divisões dispensa-se de alardear em quais entrou
ou não entrou. Lisura com lisura correspondia, a minha, penso eu.
A anciã viu-se algumas vezes apertada a ponto de confessar que a
significação dos textos não a tinham deixado os antigos. A Anéris
repetia-me as palavras misteriosas gritando-mas ao ouvido, para que
eu as traduzisse, isto é: as apreendesse na sua integridade sonora.
(Nunca me gritou assim o seu nome, razão por que até agora sempre
lhe chamei Amélia). Nada mais me podiam fazer.
10. A z è tó : o que possui um mocho — feiticeiro . V a ria n te s d e sta to a d a são, como o seu uso (n a s
com petições de te rre iro s, e tc .), m u ito d ifu n d id as. A té o O x u m aré d a M a ta E s c u ra (C idade do
S alvador) tem a sua. N o despacho d a alm a de u m a m ãe-d e-san to je je , invoca-se o m ocho: “ A ze, a z e !”
A E m ilia n a do B ogum do E n g e n h o de D en tro (S alv ad o r) tin h a m u ito re sp eito p e la to a d a do mocho.
Se lhes p a r e c e .. .
(N .B .: O s acen to s n ã o indicam os to n s d a lín g u a ewe, m a s o tim b re d as vogais segundo o p o rtu g u ê s ).
218
Em breve me demonstraram afeição a nochê e as noviches assíduas.
Estas, com a mãe-pequena (Anéris) à frente, lembraram-me a reall
zação de um tambor-mina, visto a minha permanência em S. Luís
não coincidir com nenhuma das festas da casa. E ra uma oferta de
sinteressada. Bastava-me pagar o jan tar para as pessoas convidadas.
Se eu pudesse dispor de vinte mil ré is. . . Aceitei entusiasmado,
propondo-me até dar trinta mil réis para que a comida fosse melhor
e mais abundante. No dia aprazado, avisaram-me para comparecer
às 15 horas. Tinha o direito de ver tudo. O tempo passou-se à espera
até o jantar, que partilhei só com o runtó em uma das salas da ala
esquerda. Em seguida, o runtó, oficial de diligências que já me havia
sido apresentado e que eu procurava, às vezes, no tribunal, convidou-
me para sua casa, uma das tais do lado direito. Saindo, ao fim de
algum tempo para o terreiro, a gozar a amenidade da tarde, ali estive
com as meninas, Bosu, Desê etc., a exercitar-me, sem resultado, na
arte de tocar gô (cabaça). Aproximava-se a hora, com o crepúsculo.
Anéris veio buscar-me e conduziu-me à sala da frente, entre o corre
dor e a antecâmara do pégi, onde me penetraram de cânticos — Dada-
Ho, o Vodun mais velho, e outros preferidos da casa. Quando o gã
começou a acertar o ritmo, mandaram-me assistir ao começo do tambor
na varanda, onde não tardavam a dar entrada vestidas as noviches, e
Anéris me fez sentar em um estrado para presidir à dança. O tambor-
mina é uma cerimônia dividida, como o candomblé nagô, em duas
partes. Supõe-se que também na prim eira se chamam os Voduns e
na segunda eles se dignam visitar o terreiro. O intervalo é aprovei
tado para a caracterização das figuras que têm, assim, de representar
dois papéis, aparentemente distintos. A caracterização das noviches é
mais sumária que a das yawôs. A simbologia quase se reduz às cores
e os Voduns usam bengalas. Pouca liberdade tive para observar o
movimento no intervalo, as entradas aos quartos e ao pégi, porque
fui instado a conservar-me no lugar de presidência, carregando a ben
gala de Anéris, que não cessava de me prodigalizar agrados e honras,
atrevendo-me apenas a permanecer algum tempo de pé, ao lado do
estrado, para desentorpecer as pernas. Demais, o que eu pudesse des
cobrir não era oculto ao público que assistia à festa. No meu des
lumbramento, provocado pelo vigor e a variedade da percussão, a pu
reza das melodias, a sobriedade hierática das danças, reparei nos cân
ticos que nunca ouvira — a despedida de Keibiosô (Ma para vodun
i dô) e outros que depois transcrevi — Anéris fez-me sinal para me
levantar, quando cantavam Ja sin je dô, que também transcrevi e
procurei avidamente fixar os ritmos dos tambores, absolutamente ori
ginais. Pelas 23 horas, a festa acabou, despediram-me e só notei, da
rua, que procuraram ficar sós para cantar outro cântico. N otara tam
bém que o tambor não começara pelo Dangibé yen ma yi oxeunwhé dô.
Pedi explicação ao outro dia e deram-ma. A festa era distinta das de
219
<>l>rinação. Naquelas a invocação primeira é sempre a Dangibé que
Andresa, no entanto, não identifica com a cobra de Ajudá.
Tinha conseguido o máximo a que em tão pouco tempo me era
dado aspirar. Não era um grau de iniciação. Pelo que o trabalho de
Nunes Pereira me confirma, ali só havia uma posição que me con
viesse: a de runtó e, se eu vivesse longo tempo em S. Luís, decerto
me sujeitaria à longa aprendizagem dos toques de tambor, como na
Exposição do Mundo Português. Mesmo sabendo que me não chegaria
o tempo para nada, quis aprender os toques dos Mandigas. Tanto,
porém, não é necessário. Assistindo a todas as festas, mantendo com
o Quêrêgbetã contacto diário durante vários anos, é possível aprender
todas as atitudes e surpreender todos os atos do único modo plena
mente satisfatório. Receio bastante que Andresa Maria se decida a
divulgar tudo o que sabe. Enganar-se-ia lamentavelmente. Nunca o
poderá conseguir. A maior parte das coisas que faz estão em um
plano da consciência inacessível à sua análise intencionada. Conheço
muitas mães-de-santo brasileiras. Sei o muito que algumas valem e o
pouco que conseguiram dizer. Faço justiça à inteligência e à pureza
de intenções de Andresa Maria, mas não é ela, certamente, que poderá
dar a última palavra sobre a origem misteriosa e o misterioso destino
do culto vodun em terras do Maranhão. Requer-se um inventário de
tudo e de tudo uma interpretação objetiva, tanto mais que isso é fácil |
a um estudioso residente na pouco agitada cidade de S. Luís. Não
se encontrará? Pensem os maranhenses no assunto. Não será, em todo
o caso, perdido o valioso depoimento de Nunes Pereira e os mais que
venham de tão competente pesquisador, infelizmente afastado, ao que
parece, da terra natal.
Uma observação para terminar. A ligação da mitologia do Quê
rêgbetã com os Kpolis nunca será impertinente. Que Andresa Maria
tenha em Póli-Boji um nome individual (ou de terreiro) correspondente
ao conceito de «Kpoli», que a religião do Quêrêgbetã pertença à mesma
zona de sincretismo ewe-iorubano são afirmativas inatacáveis, per
feitas. Mas é de notar: l ç) que, como Andresa me afirmou e Nunes
Pereira confirma («nenhuma imagem ali nos lembra esta ou aquela
divindade», p. 29) — a voduno só pretendeu enganar-me dizendo
que no pégi não havia «nada» — faltam os costumes legbas (está
tuas) ; 29) que, para que Póli-Boji fosse o «Kpoli» do terreiro, se
esperava que fosse também conhecido como «Vodun» das nochês ante
riores, o que se não verifica (v. a lista dos Voduns delas, na p. 26) ;
3’) que Póli, embora parecendo sempre dever ler-se Kpoli, só aparece
no nome deste Vodun — e por que razão me havia de dar a mim e
depois a Nunes Pereira para decompor o nome? por que não
Kpoliboji?; 4?) que, apesar de tudo, não me atrevi a identificar
Kopoliboji com nenhum dos «Kpolis» de Ifá, como nas palavras do
seu cântico Se lè gba jòbó — de que me ocupei em O Mundo Por
tuguês (IX, 142-3), onde reproduzi a melodia, que é de incomparável
220
beleza — me atrevi a dar como certa a palavra legbá. Embora rei
nhecendo que as jarras do pégi podem substituir o legbá, dispcns;
na forma habitual para não a tra ir sobre a casa a grave acusação
idolatria, verifica-se que o tal «Kpoli» não pode ser mais que U!
reminiscência singular, talvez pretensiosa reminiscência. Não é propr
mente o fio da meada do Quêrêgbetã, mas uma ressonância do cu
dos babalaôs dentro de um culto especial de sacerdotisas voduns i
peditado àquele.
Lisboa, julho de lí
IX
(E x c e r to de Três Séculos de Modas, de J o ã o A fo n so do
N a sc im e n to , B elém , p. 1 2 4 -1 2 8 : A p ro p ó sito do tr ic e n te
n á r io da fu n d a ç ã o d a cid a d e de S a n ta M a r ia cfe B elém ,
c a p ita l do E sta d o do G r ã o -P a r á ).
X
CÂNTICOS LITÚRGICOS OU «DOUTRINA DA AYAHUASCA»
224
As anotações musicais foram feitas pelo compositor paraense
Joaquim Wolfango Teixeira, como se vê a seguir.
XI
X II
225
Jacarepaguá, Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro), e à voz, ora
de Enedina Oliveira, ora de sua irmã, de nome Basica, tanto aquela
como esta, filiadas à Casa das Minas de São Luís do Maranhão.
Para identificação do texto desses cânticos, em língua ou dialeto
africano, recorri ao Prof. Pierre Alexandre, com Laboratório de Lin
güística, do Institut National des Langues et Civilisations Orientales,
de Paris, conforme carta anexa, à página 206 desta obra.
Após essa providência, mandei ao Prof. Pierre Alexandre um tape
com gravação de trechos dalguns daqueles cânticos, para que os sub
metesse à apreciação — numa análise que me pareceu de complementar
importância — do Prof. Gilbert Bouget, musicólogo do Musée de
1’Homme, e ao Dr. Naugan Agblemagnon, do Centre d’Études Socio-
logiques, 82, Rue Cardinet 75017, em Paris.
Até a presente data essa análise, entretanto, não me chegou às
mãos.
1. Para Vodun
gongôlê vôbô
na geoá
eiá Zomadone dêvó
Vodun nun naboá.
Nota: Este cântico é entoado quando os Voduns saem da sala de estar
para a varanda, onde se realizam, comumente, as danças e outros
atos litúrgicos. Entoa-se 3 vezes.
I*
2. Ê mixoá
Jabajara
tojona boá
Vodun loqué vió
auê mixoá boá.
Nota: Este cântico é para a mesma circunstância. Entoa-se 3 vezes.
3. Tacuê iló
tacuê bonjai
gongolê viôbô
tacuê ilô
tacuê bonjai
Da co Daco Donun
tacuê bonjai
Tocêe Toça
tacuê bonjai
tacuê iló
Jagorôbuçu
tacuê bonjai
tacuê iló
226
■
tacuê bonjai
Ageoti e Doçu
tacuê bonjai
tacuê iló
bomiçê bomiçê
tacuê bonjai.
Nota: Este cântico é para a mesma circunstância. Entoa-se 3 vezes.
Há uma particularidade a considerar-se, relativamente aos cân
ticos acima, que é a seguinte: o primeiro cântico é em home
nagem ao «Dono da Casa», isto é, Zomadone; o segundo é para
os demais Voduns; o terceiro é para os Toquens.
4. A comê vin
ê penha ê camin
janá ná dubê
Badé vodunce
boiê Naiá na Euá
na na dubê
a comê vin
ê penhá ô camin
jana na dubê
ozoveluvê ô ê Naná
na eá
na dubê.
Nota: Este cântico é entoado quando Badé chega, não por ele, que
não fala, mas por outros Voduns. A p artir deste sinal, o texto
é repetido.
5. Dá gô guê chê
dô cuê chi
da gô guê chê
da guê chi
da gô guê chê
da papai Naê
da go guê
da gô guê chê
da guê chi
itrutru
i compará
na truchera
do papai nauê.
Nota: Este cântico é de Naê. Entoa-se 3 vezes.
6. Dadá é pau
é da candeia
227
bagolodôle lovi
Vodun é pau
é da candeia
bagôlodôlo lovi.
Nota: Este cântico é de Dádá. Entoasse 3 vezes.
7. Naquino gôdê
papai dalô
papai melô
êligôdei
êligôdei
naquino gôdei
êligôdei.
Nota: Este cântico é de Jôgôrôbuçu. Entoa-se 3 vezes.
8. Bôçô Jôgôrô
Bôço gigana naná
iêi
Bôço dê nundê oragi
naná iêi.
Nota: Este cântico é de Jôgôrôbuçu. Entoa-se 3 vezes.
9. ô di chelomin
•a •
iêi
êduá dôné
di chelomin
nun quê çó
ê di chelomin
lêl.
Nota: Este cântico é dos Voduns.
11. ô Mina vá
ê Boçu-Hô
ê Boçu-Ha
êduá
ô Mina vá
cara cara caiá
228
Boçu-Ha
êduá.
N o t a : E ste cântico é de Boçu. E n toa-se 3 vezes.
229
Dádá mén raén iêzô Euá
erazô noquê singelo
mén mén iêzô
i Euá erazô
mén mén ién
mén mén Ienzô I Euá
noquê singelo.
Nota: Este cântico é de Dádá. Entoa-se 3 vezes.
230
Vodun nun
papai gibera.
N o t a : E ste cântico é de D adá-H ô. E n toa-se 3 vezes.
231
ô ruá aja rã ê
ô Mina gôdó tó monojê.
N o t a : E ste cântico é de Boço. E n toa-se 3 vezes.
232
vundunci nunci
da sési
ô chavá Naê.
N o t a : E ste cântico é entoado 3 vezes na chegada de N aê.
30. Zuê bê
Dadá itoló dié
Doco maná ibreno
233
avaca maná
da cá Boconuná.
N o t a : É cântico dos Voduns. E n toa-se 3 vezes.
32. ô cá cá dé
mana dá
Dadahô
cá cá dé
mana rô ri
cá cá rô
caracó
Bejigá
mana di cá baê
ô cá cá dé
mana hô
cá cá hô i.
caracó
Bejiga
mana dicá baê
ojorê ô m anjá ô
cajá ô cajá
poveçá
boê jôgô
mana di cá baê.
Nota: Este cântico é dos Voduns. Entoa-se 3 vezes.
234
34. ôdan ôdan bêrê
Vodun é manobê taiano
ôdan bêrê ô tan bêrê
ô ôdan
ô ôdan bêrê ô tin bêrê
ô ôdan
ô ôdan bêrê ô tin bêrê
ô dan.
Nota: É cântico da chegada de Póli-Boji. Entoa-se 3 vezes.
37. Já ci jêdô
Vodunci té
dá lémé
ô já jêdô
já ci jêdô
Vodunci té
delamé
ô já jêdô.
Nota: Este cântico esclarece que, quando os Voduns, de pé, cruzam os
dedos das mãos sobre a cabeça, não estão inteiramente incor
porados nas suas filhas ou esposas (voduncis, gonjais).
235
conjêló coimã
ê coimã
conjêlê coimã
ê coimã.
Nota: Este cântico descreve a luta entre Badé e Sôbô, empunhando
espadas. Os dois saltando e os outros Voduns, em redor, dançando.
236
43. Badé sorogama
gama ô
Badé sorogama
gama ô.
Nota: Este cântico é de Badé. Entoa-se 3 vezes na Casa de Nagô.
44. Badé gerôgunço
mandô umbô
alé será gerôgunço
mandô umbô
alé azê
Sôbô gerôgunço
mandô umbô
alé será
gerôgunço
mandô umbô
alé azê
Abê gerôgunço
Nicô micô
gerôgunço gerôtei
alé azê.
Nota: Este cântico é de Badé. Entoa-se 3 vezes.
45. Baiquin chê ê
Odan
rê êrô um afã
jôrô baiquin
chô ê
Sôbô çu có
um afã
jôrô baiquin
baiquin chê ê
Chô ê
Sôbô otá
jôrô baiquin
baiquin chô ê
Sôbô Liçá
um afã
baiquin chô ê
odan.
46. Chavé no mé maiô berô
chavé no toló diné
no chavé no chavé noé
chaloré diné.
N o t a : E ste cântico é dos Voduns. E n toa-se 3 vezes.
237
47. Êi tombeno aguadolé jôndeló
êi tombono aguadilé jondelô
maquino no ma idô
aguadolô jôndolô.
Nota: Este cântico é dos Toquenos. Entoa-se 3 vezes.
238
51. Dadá machiô Euá agrimaé
Dadá machiô Euá agrimaé
Dadá machiô Euá agrimaé.
Nota: Este cântico é dos Toquenos. Entoa-se 3 vezes.
52. Inadô
gongolê vi obô
nomaiá
Vodun Naná
icabazê
nadó dó meá
renadô renadô
renadô numeá
Vodun Naná i
icabazê
nadô mariá
i nadô
gongolê vi ôbô
nomeá
Vodun Naná
icabazê
dadô numeá
renadô renadô.
Nota: Este cântico é dos Voduns. Entoa-se 3 vezes.
53. Acaibê
maiá candelô
gongô leviobô
maná condê
boné larrô
miçurrô
arrajá roê
boné leá
rô
arroê cinjá
bené
aigoê Naiá
conguêlô
gongô leviobô
omaná condê
boné larrô
miçurrô
arrajá roê.
54. Boça run rê
erá zundarô
Ajâotoi e Alabana
mintetere mirinó
rui têtêre
rui têtêre
mintetêre mirinó
mintetêre mirinó
Boça rui rê
zundarô.
Nota: Este cântico é de Ajaotoi. Entoa-se 3 vezes.
242
lahn, Janheinz. Muntu, las culturas neoafricanas. México-Buenos Ai) '
1963.
■lohnson, James Weldon. The Story of Spirituals. Anthology of American
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^ TEMAS LUSÍADAS
OBRA NOVA
DE
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LUÍS SILVEIRA
A G Ê N C IA GERAL D A S C O L Ô N IA S
MCMXLV
OBro. nova de Lingoa, g.al de mina,
traduzida, ao nosso Igdioma por
Antonio da Costa Peixoto Na- ,
ciognal do fín.° de Portu
gal, da Província de E n
tre Douro e Minho,
do comcelho de
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Fig. 6. A Casa das Minas. Aspecto Fig. 7. Andresa Maria de Souza. Uma
do lado da rua Senador Cos atitude da NOCHÊ entre tam
ta Rodrigues (antiga rua São bores, no segundo plano.
Pantaleão), em São Luís.
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Fig. 33. Grupo de noviches, contemporâneas de Mãe Andresa Maria, que ain
da hoje mantém a tradição religiosa e profana da Casa das Minas.
Fig. 34. Casa de Nagô. Dia de lanã. Trajes característicos.
Fig. 37. Escrava no suplício.
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