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NUNES

PEREIRA

CULTO DOS VODUNS JEJE


NO MARANHÃO
NUNES
PEREIRA

CULTO DOS VODUNS JEJE


NO MARANHÃO

ATENDEMOS PELO REEMBOLSO POSTAL

340044139
o s /g b

A C asa das M in a s
A CASA DAS MINAS
Contribuição ao Estudo das Sobrevivências
do Culto dos Voduns, do Panteão Daomeano,
no Estado do Maranhão, Brasil.

NUNES PEREIRA
das Academias de Letras
do Maranhão e Amazonas

2? edição

C -^fH

V VOZESJ

J<W P e tr ó p o lis
. 2- 1079
© 1979, Editora Vozes Ltda.
r-kien-W siB kZi. Rua Frei Luís, 100
UFSU -IF C S 25 600 Petrópolis, RJ
Brasil
Registro- J i o o / Í 6
Doação: Foto da capa:
STORESA MARIA NOCHÊ,
0 ^ 1 I o- f Uu do Culto dos “Voduns JEJE”,
em São Luís do Maranhão

Diagramação
Valdecir Mello

rí* è■Ê
uu
Ano Internacional
daCrianca1979
Aos Presidentes das Repúblicas do Senegal e da Nigéria.
Ao Senador José Samey, que como Governador do Estado do Maranhão
(Brasil) proporcionou a seu autor os meios necessários
à realização de pesquisas sobre o Culto dos Voduns,
do Panteão Daomeano, nas áreas onde vivem descendentes
de Negros escravos, procedentes do Continente Africano.
À memória de
Andresa Maria, Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto, Arthur Ramos,
Edison Carneiro, Edmundo Corrêa Lopes, Jorge Dias,
Leo Frobenius, Melville J. Herkovits, Alfred Métraux,
Roger Bastide.
Os Minas, tão bravos, que aonde não podem chegar com o braço,
chegam com o n o m e ..." (Pereira da Costa: “A idéia abolicionista
em Pernambuco”, Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano, 1891, p. 24.7).

“Certains mots exotiques sont chargês d’une grande puissance


évocatrice. “Vaudou” est Vun d’eux. II suggère habituellement des
visions de morts mystérieuses, des rites secrets ou des satumales
célébrées par des nègres 'ivres de sang, de stupre et de Dieu’”.
(Alfred Métraux, in Le vaudou hai’tien, Paris, Gallimard, 1938).

“Le Vodou est une religion car elle possède une doctrine,
se matérialise dans les rites, offrandes et sacrifices, dans
une hiêrarchie sacerdotale et d’initiation, tous les éléments culturels
provenant des religions des différentes tribus transportées à Saint
Domingue”.
" . . . il est une certaine tendance à confondre le Vodou et la magie
noire. Tandis que dans la croyance populaire ces deux entités sont
nettement différenciées au point que le serviteur des “Loas Roses”,
divinités bienveillantes, sous peine de sanctions sévères, doit s’abstenir
de pratiques magiques. II lui est plutôt recommandé des oeuvres de
bienfaisance, connues sous la dénomination de charité, de “manger
les âmes” ou “manger le pauvre”. Le Vodou, comine toute religion
d’ailleurs, se propose des fins à caractère humanitaire”
(Dr. François Duvalier, Lorimer Denis, ethnologues, in Haiti,
Paris, Editions Delafosse).
S um ário

Introdução, 11

É um depoimento, 19

Capítulo I
A casa e a sua dona, 21

Capítulo II
0 Comé, o Pégi e os Voduns, 29

Capítulo III
O gume e as festas, 37

Capítulo IV
Quando os Voduns baixam, 43

Capítulo V
A moral do culto, 47

Capítulo VI
Aspectos complementares, 49

Comunicação de Geraldo Pinheiro, 61

Notas complementares, 63

Apêndice, 201

Bibliografia, 241

Caderno iconográfico
A P rimeira P arte desta obra consta do texto da monografia
A Casa das Minas, cuja prim eira edição foi promovida
e custeada pelo Prof. Dr. A rthur Ramos. A segunda parte
consta de Notas complementares aos temas relativos ao Culto
dos Voduns mina-jejes descritos nessa monografia.
I ntrodução

Com esta monografia de Nunes Pereira, A Sociedade Brasileira de


Antropologia e Etnologia inicia as publicações, que incluem os traba­
lhos de pesquisas, apresentados nas suas reuniões.
Lida em sessão de 11 de agosto de 1944, logo se verificou tratar-se
<le uma pesquisa pioneira, levada a efeito no norte do país, e vindo
preencher um claro na série dos estudos brasileiros sobre o problema
do Negro. Esta razão justificaria, por si só, a preferência para inau­
gurarmos as publicações da nossa sociedade com o trabalho do ilustre
elnógrafo maranhense.
Presidente do Instituto de Etnologia e Sociologia do Amazonas,
«ócio correspondente da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etno­
logia, Nunes Pereira já é bem conhecido pelas suas publicações ante­
riores, onde se incluem suas pesquisas diretas sobre os indígenas do
valo amazônico. Os seus Ensaios de Etnologia Amazônica (1940 e 1942)
0 llahira e Suas Experiências (1940 e 1944) destacam-se entre outros
1rabalhos de igual valia.
Agora suas vistas começam a se voltar para o elemento negro. A
Casa das Minas é o primeiro, já se achando anunciado Negros Escravos
na Amazônia, onde certamente o autor procurará reconstruir a impor­
tância do Negro no grande vale, já entrevista nos «aspectos comple-
mentares» deste livro, e na «comunicação», em apêndice, de Geraldo
Pinheiro, sobre os terreiros de sobrevivência africana em Manaus.
Nunes Pereira reconstitui, nesta monografia, a que dá modesta­
mente o qualificativo de «depoimento», um conjunto de práticas reli­
giosas e mágicas de um grupo de Negros de São Luís do Maranhão,
onde o estudioso identifica de logo a sobrevivência daomeana.
Não é a primeira vez que os pesquisadores brasileiros aludem a
[tobrevivências jeje-daomeanas no Brasil. Desde os tempos de Nina Ro­
drigues, se registraram fragmentos mítico-religiosos aqui deixados pelos
•lojos ou Ewes. Mas tão íntima foi a sua fusão com os Nagôs, predo­
minantes em número, que a mítica jeje foi quase totalmente assimilada
n mítica ioruba correspondente, a ponto de se falar, desde os tempos
das primeiras pesquisas, numa religião ou mitologia «jeje-nagô», com
referência ao conjunto dos traços religiosos estudados.
É verdade que o próprio Nina Rodrigues pôde, em alguns casos,
identificar certas divindades jejes, nas práticas do culto afro-baiano.1
I. NI nu Rodrljrues. Os A fric a n o s n o Brasil. São P a u lo 1932, p. 343s.

ll
Assim, as entidades Loco, Elegbá ou Legba, Mawu, Khêbiosô, Anyi-ewo,
Hoho, Saponan, Wu, Dsó, Nati, Avrikiti, B á ... ainda puderam ser
registradas pelo mestre baiano. Diz Nina Rodrigues não ter encontra­
do o termo Vodu (Vodun), que agora sabemos existir largamente no
Maranhão, através das pesquisas de Nunes Pereira.
E quanto ao culto de Danh-gbi, a serpente sagrada, conseguiu Nina
Rodrigues identificar seus vestígios em alguns terreiros, em que foi
mais acentuada a influência de Jejes. Num desses terreiros, o de Li-
valdina, achou «como um dos ídolos uma haste ou antes lâmina de ferro
de cerca de cinqüenta centímetros de comprimento, tendo as ondula­
ções de uma cobra e terminando nas duas extremidades em cauda e
cabeça de serpente».2
Manuel Querino aludia também a alguns nomes de divindades jejes,
na Bahia, quando asseverou que estes chamavam a Olorum Niçasse:
a Oxalá, Oulissá (L isa?); a Anamburucu, Tôbôssi.3 De regra, porém,
essas entidades jejes foram absorvidas pelos equivalentes nagôs. E foi
por esse motivo que nas minhas pesquisas da Bahia, Nordeste e Rio, não
consegui registrar formas organizadas do culto dos Voduns. As enti­
dades jejes haviam sido absorvidas quase que completamente. Apenas,
aqui e ali, alguns sinais evidentes da sua aparição, como se verifica
nos desenhos, quase apagados, de uma cobra e outros símbolos daomea-
nos, em alguns objetos colhidos na Bahia, em 1927.4
Um desses objetos é uma pulseira de filha-de-santo, de metal, que
tem a forma de uma cobra dobrada em círculo e mordendo a própria
cauda; outro objeto de metal é uma espada de 26 centímetros de com­
primento, que termina em forma de cabeça de cobra e apresenta de­
senhos de estilização tipicamente daomeana.
As pesquisas dos meus colaboradores, Edison Carneiro, no terreiro
da Goméia na B ah ia5, e Gonçalves Fernandes, no terreiro de Pai
Anselmo, em R ecife6, vêm confirmar essas sobrevivências do culto da
cobra, de origens daomeanas. Em outros terreiros baianos, o culto
acha-se adulterado nas várias formas de sincretismo com as supersti­
ções da cobra e do folclore católico de São Bento e São Caetano.
É interessante observar que são os candomblés de nação kêtu que
conservam, na Bahia, algumas tradições jejes, mais facilmente identi­
ficáveis. Loco (Loko), Nananborocô ou Nananburucu (Nana-Buluku),
Leba (Elegbara), Sapata (Sagbata) . . . são entidades indiscutivelmen­
te de origens daomeanas, nos terreiros jeje-nagôs da Bahia e do Nor­
deste. Não é sem razão que um dos candomblés da Bahia onde se podem
mais facilmente evidenciar essas intromissões jejes tenha o nome de
2. Id ., ibid., p . 345.
3. M anuel Q uerino. C ostum es A fric a n o s no B rasil. Rio 1938, p. 51.
4. A rth u r R am os. O N eg ro B rasileiro. 2* ed. São P a u lo 1940, p. 55; Id., A s C ulturas N eg ra s
mo N o vo M undo. 2» ed., 1946, p. 303; Id ., In tro d u çã o à Antro-pologia B rasileira. Vol. I, R io 1943,
p. 395.
5. E dison C arn eiro . N eg ro s B a n to s. R io 1937, p . 105.
6. G onçalves F e rn a n d e s. X a n g ó s do N o rd este. R io 1937, p . 75.

12
«candomblé da Goméia». Não será «da Goméia» uma deturpação de
Pagomé (antigo nome luso do Daomé ou Daomei) ?
O escritor português Edmundo Correia Lopes asseverou te r encon­
trado, nessa ordem de idéias, evidências de divindades jejes nos terrei­
ros da Bahia que freqüentou. E o próprio termo Vodu foi ouvido em
alguns cantos liturgicos.7
Comentando esse trabalho de Edmundo Correia Lopes, o ilustre es­
critor baiano Aydano do Couto Ferraz vem confirmar, mais recentemen-
le, a evidência de sobrevivências daomeanas na B ahia.8 Refere-se ini­
cialmente à descoberta do Prof. Donald Pierson, do culto de uma árvore
sagrada no candomblé da Goméia, onde se fazem despachos para Pas-
coalina, mulher que as lendas dizem metamorfoseada em cobra. Com
a atenção voltada para o assunto, Aydano do Couto Ferraz foi encon-
Irar, na casa do babalaô Raimundo, na Areia da Cruz do Cosme, uma
cobra dentro de um caixote de grades. Também no terreiro Tumba
Jussara, de Ciríaco, ao Beiru, uma cobra era reverenciada como uma
das divindades do culto. Ainda no Axé de Mãe Aninha, o escritor
baiano foi encontrar os anéis da falecida mãe-de-santo, «em forma de
cobra ou tendo cobras esculpidas em relevo nos seus arcos». Indagan­
do da sucessora de Aninha a razão daquilo, apenas a mãe-de-santo
pôde adiantar tratar-se do culto de Idangbé (sic), a cobra sagrada,
«que era um vodunce», falando depois, «vagamente», em relações de
culto da serpente com o de Oxum-maré, o arco-íris.9
Tudo isso é muito interessante e essas pesquisas evidenciam a
existência de algumas sobrevivências de entidades e cultos de origem
daomeana, nos terreiros da Bahia. É possível que pesquisas mais de­
moradas possam aumentar o número desses traços culturais. Um ponto,
porém, precisa ser destacado. É que a velha asserção de Nina Rodri­
gues, de que os cultos e práticas jejes foram absorvidos pelos Nagôs,
continua de pé. As sobrevivências religiosas jejes, quando existem, não
chegam a constituir, na Bahia, no Nordeste, ou no Rio, um bloco cul­
tural onde se possa nitidamente evidenciar uma franca herança dao­
meana. Em outras palavras, não há, na Bahia, um culto vodun esta­
belecido como tal. Os traços daomeanos, quando identificáveis, vêm
incorporados ao sincretismo jeje-nagô, como as pesquisas do nosso
grupo o têm demonstrado. Em todo caso, impõem-se pesquisas poste­
riores no sentido de se evidenciarem os graus deste sincretismo ini­
cial sobre o qual se enxertaram todos os outros.
Não parece ser este o caso do Maranhão, conforme o demonstram
as pesquisas de Nunes Pereira. Lá existe, de forma institucionalizada,
7. E dm undo C o rre ia Lopes. “ V estíg io s de Á frica no B ra sil” , in O M undo P ortuguês. Vol. V I,
n. 63, Lisboa 1939.
8. A ydano do Couto F e rra z . “ V estíg io s de um culto daom eano no B ra sil” , in R e v ista do A rq u iv o
M unicipal. A no V II, vol. L X X V I. São P au lo , m aio, 1941, p. 271s.
9. Id., ibid., p . 274. O u tra s id en tificaçõ es de V oduns je je s têm sido re g is tra d a s n a B ahia, como
uh de P . K ockm eyer ( “ C andom blé” , S a n to A n tô n io , 1936) re fe rid a s pelo P ro fe sso r R oger B astide
no quadro d a “ c o rresp o n d ên cia e n tre O rix á s de d iv ersas e tn ia s ” ( “ E studos A fro -B rasile iro s” , 1* série,
B oletim L IX d a F acu ld ad e de Filosofia, C iências e L e tr a s d a U n iv ersid ad e de São P aulo, 1946,
quadro I V ).

13
o culto dos Voduns, onde a filiação daomeana pode ser facilmente
identificada.
Desde muito tempo se sabia que o Maranhão fora um dos pontos
mais importantes de introdução de negros escravos. Mas as referên­
cias dos nossos escritores sobre o assunto têm sido parcas ou contra­
ditórias. Havia notícias dos «tambores de Minas» e o próprio Nina
Rodrigues se referira à expressão dança de tambor como sendo equiva­
lente, no Maranhão, aos termos candomblés e batuques na Bahia, ma-
racatu no Nordeste, e tc .10 É ainda Nina Rodrigues quem alude a uma
visita que fez, em 1896, aos «últimos negros africanos que existiam
na capital daquele Estado e que são ali geralmente conhecidos por
Negros m inas».11 Eram duas velhas, uma «jeje» e outra «nagô de
Abeokutá», que residiam em pequenas casas nas proximidades de
São Pantaleão. Outros escritores fizeram referências aos «Negros
minas» do Maranhão, e especialmente à Casa das Minas, de Andresa
Maria. É o próprio Nunes Pereira que lembra as visitas do escritor
espanhol Álvaro de Las Casas e do pesquisador português Edmundo
Correia Lopes.
Este último visitou o terreiro de Mãe Andresa em 1937, conforme
refere nos seus comentários à Obra Nova de Língua Geral de Mina,
de Antônio da Costa Peixoto12 (ver Caderno Iconográfico n. 1 e 2).
Dá uma rápida descrição da casa do culto, alude à nochê Maria Andre­
sa, «velha voduno, preta brasileira, celibatária», e acrescenta que «o
culto envolve uma mitologia numerosa». Acha que o culto dos Minas,
do Maranhão, está «incluído no sincretismo ioruba-daomé». Dá a tran s­
crição musical de dois cantos de Loko, embora a significação dos textos
não lhe fosse explicada pela velha Andresa.
Permanecia assim inexplorado um rico filão de sobrevivências afri­
canas no norte do Brasil, não obstante por diversas ocasiões termos
mostrado a necessidade inadiável da sua coleta e interpretação.
Era o que, no Seminário de Aculturação na Northwestern
University, em 1941, eu sugeria ao Prof. Herskovits quando tracei, a
seu pedido, em aula, um quadro dos pontos do Brasil mais interessan­
tes para a pesquisa de africanismos culturais. Um plano foi concertado
para uma viagem ao Maranhão, que faríamos conjuntamente, o Prof.
Herskovits e eu, que, por motivos independentes da nossa vontade, não
foi possível concretizar.
Disso havia de se encarregar, posteriormente, um jovem estudan­
te do Prof. Donald Pierson e do Prof. Herskovits, Otávio C. Eduardo,
que visitou o Maranhão, de novembro de 1943 a julho de 1944, sob
os auspícios do Program of Negro Studies do Departamento, de Antro­
pologia da Northwestern University. Não conheço a natureza do ma­
terial colhido, que aguarda publicação, a não ser um pequeno artigo
10. N in a R odrigues, op. c it., p. 234.
11. ld ., ibid., p. 164.
12. Ed. d a A g ên cia G eral das C olônias, L isboa 1945, p . 48s.

14
nobre os processos aculturativos em São Luís, onde se evidencia a
confluência de alguns Voduns daomeanos com Orixás nagôs, espíritos
caboclos e Santos católicos.13
As pesquisas de Nunes Pereira, datadas de 1942, são porém ante­
riores, e essa prioridade ele a reivindicou perante a Sociedade Brasi­
leira de Antropologia e Etnologia, no Rio de Janeiro, em sessão de
11 de agosto de 1944, quando apresentado e discutido o seu trabalho,
agora vindo à luz da publicidade. O autor cinge-se apenas aos aspectos
religiosos do grupo da «Casa das Minas», fazendo referências inci-
dentais à «Casa dos Nagôs», e a outros aspectos da cultura não-
religiosa dos Negros maranhenses. Seu trabalho precisa, pois, ser com­
pletado em vários aspectos, e estou certo que as pesquisas de Otávio
Eduardo virão trazer esclarecimentos importantes.
Na monografia de Nunes Pereira, tem-se, porém, o essencial para
u reconstituição de um corpo homogêneo de práticas voduns num ponto
do norte do Brasil, de franca influência daomeana. O nome que recebeu
esse grupo foi de Negros minas ou de Minas jejes. O termo «Minas»
merece um esclarecimento, que já foi feito em outro lu g a r14, em vista
das confusões que tem originado.
Podemos dizer em síntese que há um significado restrito e outro
largo para o termo. «Minas», stricto sensu, são os Negros da Costa do
Ouro, Fanti-Ashanti, que tomaram essa denominação talvez devido ao
Corte de Elmina ou de S. Jorge da Mina, que se tornara o principal
empório de escravos sob os portugueses.
O termo, porém, passou a designar todos os Negros sudaneses
(pie foram embarcados naquele ponto para o Brasil. Assim, por exem­
plo, os Nagôs, os Jejes, foram chamados, num sentido lato, de «Negros
minas», em várias partes do Brasil. É por essa razão que nos documen­
tos do tráfico, nos trabalhos dos antigos escritores, havia necessidade
de uma expressão restritiva, após o termo geral «Minas», para indicar
u sua exata origem étnica. Assim vemos desfilar os Minas nagôs, os
Minas jejes, os Minas popôs, os Minas santes (Santis), os Minas fantis,
os Minas angoins, os Minas k r u s ...
Está assim explicada a expressão de «Negros minas» para o grupo
daomeano do Maranhão. Não são Negros da Costa do Ouro, porém
Negros jejes, Minas jejes como tão bem registrou Nunes Pereira. Que
o grupo estudado seja de proveniência daomeana, parece não haver
dúvida, menos pelas evidências históricas, que são quase nulas, que
pelo critério da comparação cultural. Os termos correntes na Casa das
Minas são daomeanos.
Os nomes de parentesco colhidos por Nunes Pereira revelam a
rica nomenclatura das relações de parentesco, colhidas pelos pesqui­
sadores no Daomé. Tochê será o mesmo tóchi daomeano, «meu pai»;
13. O távio C. E d u ard o . “ T h ree-w ay R eligious A c cu ltu ra tio n in a N o rth B ra zilian Citar", In
A froavnerica. Vol. II, n. 3, México, ja n e iro , 1946.
14. A. Rumou. In tro d u çã o à A n tro p o lo g ia Brasileira. Vol. I, R io 1948, p . 402-405.

16
da mesma forma nochê é a nóchi, «minha mãe», e assim por diante.
Assisse, sobre o qual Nunes Pereira tem dúvidas, é o asichi, termo
com o qual no Daomé o marido se dirige à mulher. Noviche é um
termo genérico do Daomé significando não apenas «minha irmã»,
como no Maranhão, mas «irmão» (novíchi súnu) e «irmã» (novíchi
nyónu). Toda a enorme complexidade de relações de parentesco15 foi
esquecida no Maranhão, em vista naturalmente da perda da coesão
tribal, mas subsistiram os termos referidos, que bastam para atestar
suas origens daomeanas.
Os «Santos» são chamados Voduns, como no Daomé, Haiti, e
outros lugares onde há Negros de procedência daomeana. E as expres­
sões «comé» e «gume» não seriam corruptelas de «gomé», «agomé»,
«dagomé», como sugerimos para o caso do terreiro da Goméia, na
Bahia? Seria um trabalho exaustivo a identificação dos Voduns da
Casa das Minas com seus correspondentes daomeanos. Algumas indi­
cações bastam para provar a sua filiação, embora elas apareçam com
os seus nomes deturpados, ou de significação translata, quando não
se fundiram pelo trabalho do sincretismo a entidades de procedência
nagô ou de outras origens.
Os cotej os podem ser feitos nas listas de Voduns daomeanos re­
gistrados nas obras de A. E. E llis16, A. Le H érissé1718, J. S pieth1S,
Herskovits 19 e outros africanistas que se dedicaram ao estudo da cul­
tu ra daomeana. Verifica-se que já não há a correspondência de ordem
hierárquica entre os deuses do panteão daomeano e maranhense. Alguns
Voduns de prim eira categoria, na África, perdem a sua importância no
Maranhão, enquanto divindades secundárias lá ascendem aqui ao pri­
meiro plano. É o caso, por exemplo, de Mawu-Lisa, quase desconhecido
no Maranhão. Há, apenas, nas pesquisas de Nunes Pereira, referências
a Liçá ou Oliçá, alistado entre os Voduns «velhos», do sexo masculino.
Dangbe e Dã escondem-se num quase inidentificável Dágêbe, «tobôssi»
ou «senhora», da noviche Zila.
Ao contrário, Zomadone, que Nunes Pereira arrola entre os p ri­
meiros Voduns, sendo que a sua ja rra votiva é a maior de todas, não
é na África propriamente um Vodun. Trata-se de um culto ancestral
a um poderoso chefe lendário, Zumadunu, de seis olhos, a quem os
daomeanos respeitam, tendo-lhe erigido um templo em Abomé.20
Já o panteão celeste, dos trovões, das águas e do mar é mais
diretamente representado no Maranhão. A começar por Hevioso ou
Khevioso21, tornado Quéviôçô no Maranhão, e até dando nome a uma
15. V ide, p. ex., M. J . H ersk o v its. D ahom ey. A n A n c ie n t W e st A fr ic a n K ingdom . Vol. I, N ova
Io rq u e 1938, p. 145s.
16. A . B. Ellis. T h e E w e -sp e a k in g Peoples o f th e Sla ve C oast o f W est Á fric a . L ondres 1890.
17. A . Le H érissé. U A n c ie n R o y a u m e du D ahom ey. P a ris 1911.
18. J . S p ieth . D ie E w e -S tü m m e . B erlim 1906.
19. M. J . H ersk o v its, op. c it., vol. II, N o v a Io rq u e 1938. V ide tam bém A . R am os, op. cit., cap. X IV ,
p. 378s.
20. V ide H ersk o v its, op. cit., vol. I, p. 230s.
21. P a r a e sta e o u tra s id en tificaçõ es dos V oduns, vide H ersk o v its, op. c it., vol. II, p a rte V I,
p. 101-255.

16
«linha», a de Quéviôçôcilé. A esta linha se prendem os Voduns Badé
(na África: Gbadé, o filho mais jovem do panteão do trovão) ; Avérê-
((iiête (na África: Afrekéte, filho de Agbê e sua irmã Naéte) ; Abê
(na África: o já citado Agbê, filho de Sogbó, uma das apelações
d«' Mawu).
Sogbó, por sua vez, não tem mais no Maranhão a mesma digni­
dade africana. Passa a ser Sobô ou Côbô, descrito como mãe de Badé.
Irmão deste é Loco, o conhecido Loko, a árvore sagrada de origens
daomeanas. Naéte passa a ser Naité, Vodun velho do sexo feminino.
O poderoso Sagbatá, rebento mais velho de Mawu-Lisa e corres­
pondente ao Shapanan ou Shankpanna dos Ioruba, disfarça-se no Ma­
ranhão num Acóçapatá, quase irreconhecível. Da mesma forma Na-
nabuluku, cuja importância é tão grande que foi retomada pelos Nagôs
como a sua Nananburucu, no Maranhão apenas é citada como Nanan-
biocô (sic) na lista dos Voduns velhos do sexo feminino.
Outras aproximações poderão ser aventadas, como a do Vodun
Alôgue, da família de Póli-Bogi, e que talvez seja o mesmo Alogbwe,
do panteão de Sagbatá. E esse misterioso Póli-Bogi ou Pódi-Bogi, a
que com tanto carinho se refere Nunes Pereira, como sendo o Vodun
de sua mãe, Felicidade Nunes Pereira, não será o mesmo Agbogbodji22
do grupo de Sagbatá?
Muitas coisas haveria ainda a comentar e a discutir nesta interes­
sante monografia de Nunes Pereira. A questão do sincretismo, por
exemplo. O autor admite a forma de um sincretismo inicial, que po­
demos chamar intertribal, o Jeje-nagô, devido não só à aproximação
dos grupos, historicamente, como à analogia das suas culturas. É a
c<'produção, no Maranhão, do mesmo fenômeno que o nosso grupo havia
assinalado na Bahia, desde os tempos de Nina Rodrigues.
Quanto ao sincretismo com o catolicismo, Nunes Pereira acha que
o corpo religioso e mítico da Casa das Minas se tenha mantido em
estado de relativa pureza, não assimilando os seus Voduns aos santos
de catolicismo.
Não tenho elementos para contrariar a sua asserção. Mas nas pró­
prias pesquisas do autor encontramos dados que evidenciam certa
aproximação com as divindades católicas, embora de modo mais mi­
tigado que entre os outros grupos negros do Brasil. Assim é, por
exemplo, que o autor se refere à «pedra de Santa Bárbara», ao santo
de grande poder, como o é S. Jerônimo. Diz Nunes Pereira que, embora
havendo aproximação de Badé com S. Jerônimo e Sobô com Santa
bárbara, não há um verdadeiro sincretismo.
O tempo irá se encarregando de apressar essa obra de encontro
cultural. Nas festas externas da Casa das Minas, os santos católicos
são objeto de um culto mais ou menos ruidoso. Embora as velhas
nochês asseverem tratar-se de simples coincidência das festas do ca-
22. Vido H ersk o v its, op. cit., vol. II, p. 140.

17
lendário cristão com as do culto mina-jeje, não poderão estas fugir à
regra geral da tendência à superposição dos «santos» e práticas do
culto. Ao sincretismo inicial jeje-nagô se sobreporão novos sincretis-
mos com o catolicismo, com o espiritismo, com as entidades amerín­
dias, dentro daquele quadro geral já apresentado em nossos estudos.
Investigações posteriores virão mostrar de que modo e em que
extensão se estarão processando os sincretismos afro-católicos e outros
no Maranhão.
A importância do grupo mina-jeje, em São Luís, é tão grande
que sua influência parece ter-se estendido ao vale amazônico. É o que
deixa entrever a breve, mas interessante nota, de Geraldo Pinheiro.
É um assunto a investigar.
Este trabalho de Nunes Pereira vem preencher, como já dissemos,
um claro nos estudos do Negro no Brasil, dando-nos a prim eira con­
tribuição importante sobre o assunto no extremo norte do país. É
uma pesquisa pioneira. Embora limitada a um dos aspectos das cultu­
ras negras — e certamente o mais importante — ele nos abre largas
perspectivas para pesquisas e indagações futuras. Nunes Pereira vem
desta sorte se ju n tar ao grupo dos estudiosos brasileiros que, no Nor­
deste, na Bahia, no Rio, em Minas, em outros pontos do país, estão
procurando reconstituir a história cultural do Negro brasileiro, dentro
da orientação metodológica que nos foi legada pela escola de Nina
Rodrigues.
Arthur Ramos
Rio, março, 1947

18
É um D epo im ento

í; a Nina Rodrigues, indiscutivelmente, que devemos, no Brasil,


0 início do ciclo de estudos étnicos, sociais, religiosos, artísticos, psi­
cológicos e lingüísticos do Negro, sendo que devemos a Afrânio Peixoto
n u Arthur Ramos, indiscutivelmente, também, o exemplo e o zelo
que lhe salvaram e difundiram a obra insigne.
I lá muito, portanto, existe entre nós uma geração de pesquisado­
res, brilhantemente ligada àquele ciclo, e uma outra que dela diverge,
com mais ou menos hostilidade.
Nos domínios da neurologia e da psiquiatria, como nos da antro-
pnlogia, estudando o Negro há nomes que se salientam no plano em
qtio o de Gilberto Freyre aparece. E na Poesia como no Romance há
autores que, elegendo o Negro, obtiveram sucesso igual ao logrado pela
figura genial de Jorge Amado.
l’or isso, bem o sentimos, os estudos a que me estou referindo
evidenciam um autêntico Movimento, de orientação segura e pujante,
que em vão reclamo para os estudos indígenas, com os propósitos de
um Roberto Levillier, na Argentina, de um Antonio Garcia, no
Equador, e os de um Curt Nimuendaju, no Brasil.
Estudando, entretanto, o índio, de preferência ao Negro ou ao
Itranco, de nenhum modo estou alheio, e é de notar-se, às figuras desses
pciwiiagens contracenando na história da nossa formação político-
eeonôrnica e da nossa complexa psicologia, por que verifico o que neles
há de fascinador e inquietante. É que, como Westermann, penso não
iier possível compreenderem-se as reações que a convivência ou o sim­
ples contato desses personagens deveriam ter induzido, ontem, e ainda
então induzindo hoje, sob os imperativos do meio, sem os considerar­
mos em conjunto e não apenas unilateralmente.
Não necessito demonstrar, como se vê, que me são íntimas as teo-
rlns e os métodos de investigação da alma do Negro, como me são
lídimas as que o Ocidente e até a América do Norte entreteceram de
volta à alma do Branco, tão orgulhoso das suas origens.
De posse do material que hoje revelo aos estudiosos do Negro
Idasileiro, outro qualquer ficaria tentado a rodeá-lo de comentários,
translúcidos e exuberantes, de maneira a deslumbrar mais do que
informar o público interessado no estudo do Negro mina, no Brasil,
fundador, também ele, da Casa que, hoje, lhe perpetua a fé eo culto
aos remotos deuses da África. Mas isso, necessariamente,exigiria a
envergadura gigantesca de um Frobenius ou de um Boas ou de um
1ierskovits.
19
Não, senhores, o presente trabalho é um simples depoimento acerca
do Quêrêbetan existente ali num recanto da terra maranhense. Na
minha meninice abri olhos inquietos e maravilhados para as danças
e cerimônias religiosas desenrolando-se no tradicional terreiro da Casa
Grande das Minas, e meus ouvidos, rudes e frágeis — como conchas
bivalves à margem do Oceano —, ressoaram com as vozes dos tam­
bores e das gargantas enchendo as noites de melodias e frases que
nenhuma boca humana pôde conspurcar.
E na minha adolescência comecei a discutir ali, comigo mesmo,
igualmente, ou, no lar obscuro, com a Imagem Materna, as cerimô­
nias e as festas assistidas depois, quando nem todas as explicações
respondem às dúvidas do coração e às do espírito.
Aqui, porém, não venho evocar todas as emoções de minha me­
ninice nem todas as dúvidas de minha mocidade que, graças a Deus,
já foram dissipadas ou permanecem sem resp o stas...
O que ora ponho sob olhos, indiferentes ou amigos, é, apenas, re­
pito, um simples depoimento, depoimento de quem pretende envelhecer
à maneira de certos caminhantes infatigáveis que amaram, ao mesmo
tempo, a luz e a treva, sem nunca lhes discutir, porém, as origens e
os efeitos.
Nunes Pereira
Manaus, 10-10-1942
C apítulo I
A CASA E A SUA DONA

Há séculos a Casa Grande das Minas já se erguia nesse trecho da


rua São Pantaleão, fixando-lhe a minha memória, desde 1900, esses
mesmos aspectos coloniais: baixa, com várias janelas de rótulas sobre
uiliicla rua, hoje denominada Senador Costa Rodrigues.
A numeração anterior do prédio, quando a rua ainda tinha o nome
do Santo, era 199; atualmente a Municipalidade de São Luís lhe deu,
pura uniformidade cadastral, talvez, o número 857.
•('asa das Minas, na Senador Costa Rodrigues 857», é o que sem­
p r e digo ao chofer que para lá me leva descendo e galgando ladeiras,
a le passarmos pela igreja de São Pantaleão, irmã gêmea de outras
Igrejas e de certos prédios de azulejo do bairro comercial da Ilha de
HA» Luís.
Entre quatro e seis anos, na minha meninice, passei vários meses
nessa Casa. Hoje em dia passo lá apenas algumas horas, toda vez
que vou a São Luís, rodeado de velhinhas ou diante de Mãe Andresa
Maria, que não é uma africana pura, mas como descendente de Negros
puros ainda conserva nas suas linhas físicas o vigor e a graça das
mulheres do Continente Negro e a envolvente doçura dos velhos que
nunca foram maus.
A Casa tem uma alma, naturalmente; nem todos a vêem, decerto,
mas todos a pressentem. Essa alma deve ser semelhante à de Andresa
Maria, porque toda casa se assemelha, em geral, aos seus donos. De
uns reflete a harmonia, a serenidade, o asseio, a paz interior; de
outros a desordem, a agitação, o desleixo, a luta. A Casa das Minas,
ii Casa de Andresa Maria ou a Casa de Mãe Andresa reflete a alma
nlricana que a alma daquela velhinha, posta diante dos meus olhos,
herdou e conservou, sem deformações, até a geração que aí está.
Além disso, é observando-se essa Casa negra que podemos com­
preender o papel da mulher na família e os aspectos das sociedades
ainda hoje constituídas em várias províncias do Continente Africano.
Tal qual o sentiria, mais tarde, em plena África, a Irm ã Branca Marie-
André du Sacré Coeur sempre senti nessa Casa, como na gens romana
nu na família germânica primitiva, «a mesma coesão familiar, a
mesma indivisão do patrimônio, a mesma autoridade absoluta do
elicfe de família, o mesmo culto dos ancestrais», não obstante as suas
Inúmeras dessemelhanças entre a gens romana e a família germânica
primitiva.

21
Assim na Casa das Minas, como até nas tribos atuais da África,
costumes e influências exóticas não afetaram a estrutura da família
lá vivendo nem a sociedade que esta representa.
Nela, também, ainda são bem nítidas certas formas político-sociais
que deveriam caracterizar um autêntico regime matriarcal. Andresa
Maria, por exemplo, setuagenária — embora virgem por força das
exigências do culto —, é a «Mãe» dessa Casa. Pedem-lhe a bênção
os que moram nessa habitação, os que, como eu, vão lá algumas vezes,
ou os que lá aparecem pela prim eira vez.
A Casa é das Minas, sim, de uma sociedade africana transplantada
para o Brasil, mas o patrimônio que ela representa está confiado a uma
verdadeira Mãe: autoritária, quando é m ister; boníssima, sempre.
A presença da Dona dessa Casa se denuncia nos mais obscuros
fatos domésticos e nas maiores solenidades religiosas. Devem-se ao seu
gosto estético, muitas vezes, algumas «descobertas», quer na disposi­
ção interna da Casa, na sua ornamentação, como no trajo e nas ati­
tudes dos membros daquela família.
A disposição de alguns penteados, a que submetem as meninas e
é conservada pelos adultos, sofre a influência do gosto daquela Mãe.
E o mesmo acontece com o preparo e a ornamentação dos pratos de
quitutes típicos, pois a cozinha africana tem naquela Mãe uma orien­
tadora esperta e delicada.
Os quitutes, assim, conservam, através das gerações que se suce­
dem nessa Casa, o sabor que lhes senti pela prim eira vez, o sabor
que tiveram outrora e ainda o têm hoje na África longínqua. E o azeite,
que se vaza nas lâmpadas votivas, é o mesmo, e as velas que se acendem
propiciatoriamente para os Voduns têm o mesmo tamanho e a mesma
conformação.
Não há questões jurídicas entre os membros daquela família su­
jeita a Mãe tão diligente, tão tradicionalista e tão austera; mas, se
houvesse, a sua figura se revestiria da imparcialidade de um juiz.
Essa Casa já é secular; no entanto, ao tempo de Nina Rodrigues,
talvez não tivesse as proporções que apresenta atualmente.
Ali, há mais de um século, alguns Negros minas se constituíram
em sociedade genuinamente africana, com as suas leis, os seus deuses,
os seus costumes e as suas tradições. Examinando-a, do lado da rua
Senador Costa Rodrigues, acreditar-se-á, à primeira vista, que ali estão
duas habitações com uma porta e três janelas, cada uma. Entrando
nela, porém, verifica-se que é uma só, sendo a prim eira porta, quase
à esquina, a que dá acesso, normalmente, ao interior, através de um
pequeno corredor. As disposições internas são as que o eroquis n9 4
apresenta (ver Caderno Iconográfico n. 4).
Como vários compartimentos em minha meninice me eram defesos,
nessa Casa só uma área me ficaria minuciosamente na lembrança: a
do terreiro, largo, com plantas ornamentais, com árvores frutíferas,

22
urim copada cajazeira e vários pés de ginja, ácidas e vermelhinhas, a
' iija sombra brincavam as crianças e se assentavam em esteiras algu­
mas velhas, cachimbando, silenciosamente, horas a fio.
Quartos, alcovas, etc., são englobados, nesse croquis, com a deno­
minação de salas. Um corredor só, desde a porta quase à esquina, vai
i' i á varanda onde os Voduns dançam em certas solenidades. Essa
varanda é separada do terreiro por um muro de um metro e tanto
'!'■ altura, com pilares que lhe pousam ao longo, arrimando o telhado
"■ui calhas.
Caratujando esse croquis, foi minha preocupação, simplesmente,
i|"»utar a localização do pégi ou pódône ou santuário e do terreiro ou
nume. As chamadas salas não deixam, algumas delas, entretanto, de ter
' «'i'tu importância, quer para o culto, quer para a vida doméstica.
Nesta ou naquela, ora se vestem os Voduns, ora os mesmos rece-
bem os seus filhos e as suas filhas e com eles conversam, ora con­
versam entre si, em língua africana, trocando reverências e cortesias,
ininando uns, com gravidade e majestade mesmo.
Embora não faça parte do corpo, propriamente dito, da Casa
i >rande, ao lado direito do terreiro, para quem o defronta da varanda,
lia um grupo de habitações em que nunca tive oportunidade de pe-
imlrar. Também, conquanto íntimo, merecendo as distinções dispen-
wmlas a todos os filhos e filhas, já homem feito, nunca penetrei outras
tolas, nunca fui até a cozinha de onde vinha outrora, para as minhas
narinas, o aroma dos pratos típicos que aparecem por ocasião de de-
i>•iminadas festas.
A Casa Grande está relativamente conservada; há apenas uma
parede ameaçada de cair e outra já por terra, vendo-se-lhe os adobes
nos pedaços e restos de esteios e de telhas, espalhados a um ângulo
d" terreiro. Algumas salas são ladrilhadas e outras cimentadas. A va-
i.uida tem ainda o piso de barro; o «pégi», também, e o «gume».
Toda a Casa é admiravelmente arejada, muito embora se conser­
ve quase sempre de janelas fechadas. A ventilação se faz, principal-
nionte, do terreiro para dentro; o vento da baía de São Marcos entra
pelas rótulas das janelas, pelas bandeiras das portas, pelos interstí-
ems das telhas pousadas em vigamentos de madeira de lei, sem que
sob elas se estendam forros concentrando calor.
O clima da Ilha de São Luís, aliás, dá às habitações desse tipo, e
até de velhos casarões e sobrados de azulejo de toda a cidade, uma
temperatura interior agradabilíssima. A iluminação, também, é farta
e suave. Toda a Casa defronta os poentes que caem sobre a baía de
São Marcos.
A quem teria pertencido essa Casa nas suas origens? Teria ela
sido adquirida, num movimento coletivo de libertos ou de «forros»?
Teria sido legada a algum deles por certo senhor ou senhora genero­
síssimos? Nada„4isso me foi dado ainda apurar, mas, naturalmente,

23
alguém já o deverá ter feito ou fácil será fazê-lo recorrendo aos
Arquivos da Municipalidade ou outras fontes.
Para mim, também, o interesse maior estava em saber da funda­
ção dessa Casa, isto é, do ato social, político, religioso, tradicional que
a estabeleceu lá na antiga São Pantaleão! A Tradição, falando através
da boca de Andresa Maria, diz que quem a «assentou» foi «contra­
bando». A expressão «assentou», aqui, não quer dizer, de nenhum modo,
porém, construir materialmente.
Desde as suas origens a Casa Grande, às mãos dos Minas, foi
casa para reunião social, política e religiosa. Ali se «assentou», evi-
dqfitemente, a fundação espiritual e jurídica dos representantes de uma
tribo africana trazida para o Brasil aos frangalhos, como fardos de
carne que a voracidade de todas as misérias estraçalhasse e dispersasse.
O «contrabando», que «assentou» essa Casa, segundo minha Ma­
drinha Almerinda, era gente vinda diretamente da África, mina-jeje.
trouxeram o «pégi» consigo. «Nós é que estamos zelando», afirma
sempre a Dona da Casa.
Talvez, também, essa alcunha dos Negros minas tenha surgido
com a repressão ao contrabando de «peças» da Costa da África, das
terras dos Bantos e dos Sudaneses, assim que a Inglaterra e Portugal
acordaram pôr fim à escravatura, embora aquela nação, consoante sua
psicologia, ainda se beneficiasse com a boa fé ou a cupidez desta última.
Desembarcados, cautelosamente, neste ou naquele ponto da costa
brasileira, os navios preados pela Inglaterra, ou trazidos, então, ante­
riormente aos acordos e bilis, entre as citadas nações, todos aqueles
negros talvez não fossem considerados senão «contrabando», contraban­
do de carne humana, sangrenta e miserável, lançada ao fundo dos
porões infectos, sob açoites, à mercê das tormentas e calmarias do
Atlântico.
Sabe-se, geralmente, que, entre os vários povos de raça negra,
introduzidos no Brasil — nas províncias de Minas, Bahia, Pernam­
buco e Maranhão — aparecem os Minas: Minas achantis, Minas nagôs,
Minas cavalos, Minas santés, Minas mahys que Nina Rodrigues quer
que sejam os Jejes mahys. Mas com essa denominação de Mina-Jeje
(ou Ewe ou Eoué, da grafia inglesa e francesa, respectivamente) só
no Maranhão me apareceram eles.
Aquele mestre insigne ainda alcançou em São Luís alguns repre­
sentantes puros de Negros minas mas em número que não seduziu
o seu gênio especulativo, pois bem insignificantes são as notícias que
deles nos deixou. Nessas notícias eles são denominados exclusivamente
Minas; Minas jejes era denominação naturalmente desconhecida para
ele, pelo menos do ponto de vista etnográfico.
Isso sempre me causou estranheza, toda vez que, revendo a his­
tória da escravidão, no capítulo referente à introdução dos diferentes
povos negros nas províncias do extremo norte do País, procurei co-

24
nlierer os critérios raciais dos Minas jejes nos tipos puros que sábios
o viu,(antes provavelmente encontrariam na paisagem humana que
liulmm à vista.
I»e que cor tinham a pele? Eram de estatura média ou grande?
Que o ui formação craniana apresentavam? Tinham o cabelo carapinhen-
ln <ui ondulado? Tinham o nariz chato ou afilado? E os lábios eram
' iii lindos ou finos? E, nos seus descendentes, como se denunciavam
MMM'H caracteres? Que heranças psicológicas teriam legado aos conti-
iiiindorcs da sua religião, da sua organização social, das suas normas
cinimmicas e políticas? E o que nos restava da língua em que cele-
linivum os seus deuses e as suas tradições do culto jeje?

Os “Minas” tão bravos, que aonde não podem chegar


com os braços chegam com o nome!

Ao Maranhão chegaram os seus braços para o trabalho da terra


n pura as ocupações domésticas; e o nome deles se lhe prendeu à
li In! o iia e à tradição, mas apenas como o de Minas; Minas jejes fora,
provavelmente, mais acertado pelo predomínio desta família (a Ewe,
ou Eoné ou Jeje), ainda em terras da África, sobre os Minas.
Negros minas, procedentes diretamente dos portos do Continente
Africano ou levados de São Luís para o Pará, se insinuaram pela
Amazônia adentro. Tenho comigo documentos antigos que isso con­
firma m, uns recolhidos no Arquivo da Biblioteca Pública do Pará,
OUtros no cartório de Cachoeira, na Ilha de Marajó. Negros minas,
mm campos marajoaras, como nos campos do Pindaré, trabalharam
nadaria chucra. Mas, à parte São Luís, em nenhum outro ponto do
•Xlremo norte a sua fé deixou sinais mais resistentes.
Controvérsias poderão ser levantadas ante esta afirmativa, mas
Utn lato, entretanto, é indiscutível: se o tipo da Casa, na sua arquite-
tUvn, ó colonial portuguesa, a sua alma é africana, lidimamente afri-
caiia, como a de Mãe Andresa Maria.
Aqui, certamente, não me cabe estender indagações de roda a este
e un to ; não há negar-se, porém, que ele é fascinante.
A toda essa Casa se dá o nome, em língua jeje, de Quêrêbetan,
nmo sendo ela apenas Mina, mas Jeje, igualmente. Como as primeiras
velhas» eram de nação mina esse Quêrêbetan passou a ser conhecido
pelo nome de Casa das Minas.
A Dona da Casa também tem dois nomes africanos: o de Roto-
pumeraçuléme, nome que lhe coube depois de ser feita, e o de Roionça-
ina, que os Voduns lhe davam anteriormente a essa iniciação.
Antes de Andresa Maria teve essa Casa outras Mães, então co­
nhecidas pela alcunha de «Velhas». A memória de Andresa Maria
guardou,/rigorosamente, as que aqui vão relacionadas, com os seus res­
pectivos protetores:

25
NOME VODUNS
Luísa Zomadone
Joaquina Ananin
Hosana Sépazin
Joana Doçu
Maria Benedita Badé
Maria Jesuína Toçá
Vicência Sépazin
Mãezinha Badé
Guiomar Liçá
Evarista Coicinacaba
Luísa Avérêquête
Maria Quirina Boçucó
Rosa Roêju
Bárbara Abeju
Severa Ajautó
Firmínia Loco
Edwiges Çôbô
Quintina Azacá
Vitória Agôngône
Vitória (filha da anterior) Bórôtoi
Maria Luísa Ananin
Tia Quintina Azacá
Anéris Santos, da Casa Grande, também colaborou nesta relação,
explicando-me que, morta Mãe Luísa, a direção da Casa passou para
Mãe Hosana e desta para Mãe Andresa Maria.
Exercendo o culto ao lado de Andresa Maria, auxiliando-a nas
cerimônias e nos afazeres domésticos, vivem na Casa Grande das Minas
ou a ela sempre comparecem as chamadas Noviches ou Irmãs. As
Noviches de Andresa Maria, já falecidas na sua maior parte, podem
ser relacionadas, pelos nomes próprios e pelos nomes dos seus «Pro­
tetores» ou «Voduns», ou «Santos», do seguinte modo:

NOME VODUNS MORTA VIVA


Norberta Bêdigá *
Virgilina Boçúcó *
Antonina Azacá *
Teresa Daco *
Benedita Lépon *
Leocádia Anagôno Toçá *
Arcângela Apógêvó *
Maria Quirina Doçu *
Francisca Adriano Doçu *
Maria do Carmo Ajautó *
Dadá Bórôtoi ♦
26
Anóris Santos — cujo Vodun é Agôngône e, na Casa das Minas,
do Andresa Maria, é quem está mais identificada com o culto,
"Ui mias práticas, ritos e cerimônias religiosas — está ligada, também,
ii um grupo de Noviches ou Irmãs que posso relacionar juntamente
hiiii oh seus «Santos», «Protetores» ou «Voduns».

NOVICHES VODUNS MORTA VIVA


Zulima Daco *
<Vcília Doçu Pé *
Zila Apojévó *
Teresa Boçúcó *
Medúsia Tocé *
Adalgisa Agôngône *
l|'clicidade (Nunes Pereira) Póli-Boji *
Almerinda Liçá *
Glória Bêdigá *
Caetana Toçá *
Emília Agacá *
Antônia Décé *
líaimunda Sépazin *

Dentre as chamadas Noviches ou Irmãs é escolhida, tradicional-


mente, pelos Voduns, a Nochê, ou Mãe da Casa Grande. Baixam todos
oh Voduns, isto é, incorporam-se às suas filhas e, reunidos em con­
cilio, escolhem e indicam a nova Mãe substituta, quer na vida material,
>iu<t na espiritual, da que morreu.
A denominação de Nochê é oriunda da língua jeje, havendo Nina
Rodrigues grafado, porém, Nocê. A gente da Casa das Minas, entre-
limto, pronuncia esse vocábulo como se tivesse um h, soando todo ele,
pois, como Noxê. No, na referida língua, quer dizer «Mãe»; chê ou cê
ipier dizer «minha». «Não obstante, na língua das pessoas da Casa
Grande, explicou Andresa Maria, Minha Mãe se diz Méoncia».
Algumas dessas Noviches ou Irmãs são feitas, compreendendo-se
ipie se submetem a provas de iniciação, necessárias à vida espiritual
o mesmo à vida material. Andresa Maria foi feita e minha mãe, Fe­
licidade Nunes Pereira, já falecida, que era Noviche de Anéris Santos,
lambém foi feita, submetendo-se a essas provas «em lugar de solidão»,
segundo informou Andresa Maria. As Noviches, quando feitas, se dis-
linguem das demais pelo uso de uma pulseira de búzios (cauris).
Viu-se acima que Andresa^ Maria tinha, antes de ser feita (como
um isibongo ou nom d’éloge, ou nom ancestral para as tribos do Este
da África, segundo Seligman), o nome de Roionçama. Assim a cha­
mavam os Voduns. O nome de Rotópameráçulême lhe foi dado pelos
Voduns, depois de feita, quer dizer, depois da iniciação.
O primeiro nome talvez se relacionasse com o clã a que pertenciam
os «contrabandos», que «assentaram» a Casa Grande. O segundo nome
27
provavelmente se relacionaria com as funções do culto, no pégi, e a
direção da Casa, na vida quotidiana, e a organização das danças, no
Gume.
Ambos os nomes poder-se-ão ligar também a uma sociedade secre­
ta, de estrutura matrilinear, como ainda hoje são encontradas entre as
tribos do Continente Negro. Andresa Maria, entretanto, e outras pes­
soas da Casa Grande, nada me puderam esclarecer a respeito.
Essas Noviches ou Irmãs, bem como os filhos e filhas dos Voduns,
podem residir na Casa Grande. As condições de vida são comuns;
entreajudam-se todos, dedicando-se, em sua maior parte, a trabalhos
domésticos, na própria Casa Grande ou fora, sendo que há quem tra ­
balhe em fábricas de fiação ou em ateliers de modistas.
Na Casa Grande o número de homens, que ali residem, é de 2
indivíduos: um casado, outro solteiro. São filhos da Casa e, por força
do culto, zeladores dos instrumentos citados. Minha mãe criou um deles
— o casado, de nome Maneco, que é operário, de procedimento irre­
preensível, sem neuroses nem vícios.
Os demais homens, que ali aparecem, só o fazem por ocasião de
casos de doença ou de festas íntimas, de solenidades tradicionais, de
cerimônias religiosas: são, geralmente, os tocadores de tambor, os mú­
sicos, os auxiliares da Nochê na matança dos animais propiciatórios.
Não moram, porém, na Casa Grande, senão os que acima referi.
Relacionadas, evidentemente, com o culto, são estas as denomina­
ções dos elementos que compõem uma família:
Tochê: meu pai
Nochê: minha mãe
Vichê: meu filho, filha
Assisse (ou açiçe?) : irmão (língua jeje? mina?)
Noviche: minha irmã.
Ao nome dos Voduns é de uso unir-se, contudo, o vocábulo Toi,
que quer dizer Pai. Ouvi sempre dizer-se na Casa G rande: Toi
Avérêquête e Toi Badé. Além da denominação jeje Nochê ou Noçé
(minha Mãe), há mais a de Izadioncoé ou Zadoncoé, que significa
segunda Mãe.
Nalgumas sociedades negras, por vezes, junto à figura do chefe
ou monarca, aparece uma personagem — a mãe — que a ele não está
ligada senão politicamente.
Não me explicaram, porém, a razão do emprego e da significação
espiritual ou social desse vocábulo que, como o de Toi, não sei a que
língua da África pertence. Toda a Casa Grande, em língua jeje, como
já vimos, se denomina Quérêbetan. São suas principais dependências:
a) o Comé, onde está assentado o pégi ou pódôme ou santuário
dos Voduns;
b) o Gume ou terreiro, com plantas ornamentais e árvores fru ­
tíferas, uma delas sagrada.
28
C apítulo II
O COME, O PÉGI E OS VODUNS

No corpo do edifício, conhecido pelas denominações de «Casa


ilnmde das Minas», «Casa das Minas», «Casa de Mãe Andresa Maria»,
lia uma sala que se denomina «Comé». Não tem decoração especial
a i paredes nem sua arquitetura difere das demais salas do edifício.
I ‘t u 11 <i da sua simplicidade, no entanto, Negros minas «assentaram»,
ItA «óculos, o seu santuário ou pódôme ou pégi.
Esse compartimento fica à direita de quem entra pela prim eira
pmla <|iio, abrindo-se sobre a rua Senador Costa Rodrigues, dá acesso
ii Ciihii Grande tendo-se de transpor antes uma outra porta que lhe é
i mil ítfUU.
A porta do Comé está sempre fechada: a chave só é utilizada por
AndrOMU Maria ou por uma Noviche, como Anéris Santos. P ara se
...... por essa porta, há exigências a respeitar-se. Nenhum filho ou
nilm do Voduns a transpõe sem estar limpo, isto é, livre de impurezas
i ininiii o morais.
Homens e mulheres com moléstias venéreas, ou que, recentemente,
liotiveHHom tido relações sexuais ou que se achem com regras ali não
p"drm entrar: são considerados impuros, sujos. Também quem quer
qiio cometeu crime ou ação imoral ali não poderá entrar, nem mesmo
o|oc||i;ir-se à porta.
Só em casos especiais — para pedir um favor ou para pagar
ilirm promessa — é permitida a entrada, sendo a pessoa sempre acom-
p inli.ida por Andresa Maria que, ao transpor a porta, lhe vai dizendo,
i o Mulmente:
Entra, como entrei, bebe, como bebi, sai, como saí».
As «velhas» ou Mães, de antigamente, lembrou-me Andresa Maria,
dl/,mm estas palavras:
10u quero beber água; minha garganta está em tuas mãos».
10 com estas palavras queriam significar, os que ali entravam, as
niian intenções pacíficas, a sua fé, a sua confiança.
Num dos cantos do Comé foi «assentado» o pégi ou pódôme ou
mutuário mina-jeje. A figura geométrica desse pégi é a de um triân-
i*ti Io isósceles, nitidamente traçado no chão do Comé.
Nenhuma imagem (repugha-me, como a Seligman, falar em feti-
■lic:i) ali nos lembra esta ou aquela divindade africana, natural ou
"Inenatural. Algumas jarras, porém, com o fundo um pouco enterrado
...... . do pégi, dentro desse triângulo, se agrupam em disposição
■niivencional, avultando algumas pelas suas formas e tamanho. As que

29
mais se salientam são as de Zomadone — a maior de todas — e a
de Badé.
Essas jarras que contêm Água — divindade natural, é certo, de
outros povos da África, mas com outra representação mítica — foram
trazidas do Continente: algumas vieram de Lagos. No bojo e nos re­
bordos das mesmas, em relevo, ou cravados, há desenhos geométricos,
flores e folhas até, de árvores ou de plantas sagradas. A louça dessas
peças é vítrea, admiravelmente cozida, revelando a graça e a solidez
da cerâmica africana. A Água que elas contêm é proveniente das tor­
neiras da Casa Grande.
Contou-me Andresa Maria que, antigamente, essas jarras eram
sempre cheias com a água da Fonte do Apicum, no Caminho da Boia­
da, na Ilha de São Luís do Maranhão.
As Noviches ou Irmãs, as devotas e os que faziam promessas, car­
regando potes e bilhas, iam buscar água a essa Fonte do Apicum, onde,
como se sabe, há poços com esse líquido absolutamente potável. Era
um ato tradicional, de um ritualismo solene e puro.
Nos sábados, de madrugada, silenciosamente, mas pondo um certo
ritmo de dança no andar, iam todas buscar a Água para as jarras.
Esse ato, segundo informações recentes de alguns viajantes, ainda é
observado no Continente Negro, entre algumas das tribos em estado
primitivo e mesmo entre aquelas que mantêm relações com brancos.
Prende-se, em sua essência, nas zonas áridas, a um culto à Chuva —
divindade natural — cuja presença era evidente nas fontes e nos lagos.
Agora, ali em São Luís, «como não se pode ir à Fonte do Apicum
sem chamar atenção e porque o povo acusaria as Noviches de feiti­
ceiras», explicou Andresa Maria, «colhemos essa Água das torneiras».
A fonte modernizou-se, como se vê, mas o poder divino da Água —
qualquer que seja a sua procedência, desde que se mantenha pura —
co n tin u a... confirmando aquela «disposição mental ao totemismo», que
Nina Rodrigues defendia, um tanto excessivamente.
Como eu lhe perguntasse (a Andresa Maria) se para purificar-
nos ou limpar-nos dessa ou daquela culpa, crime ou imundície, podía­
mos fazer uso da Água das jarras, respondeu-me ela:
— Todos nós podemos beber dessa Água; com ela, porém, não se
pode tomar banho. Pode-se, entretanto, deitá-la nas portas e nos cantos
da casa.
Assim, entre outras práticas, quando um Vodun baixa na Casa
Grande ou mesmo nas habitações dos seus filhos e filhas, é costume
derramar-se bocados de água pelos cantos murmurando fórmulas, como
as que acima citei, de grande caráter mágico e não menos virtude
espiritual. Quando essa Água das jarras vai ser bebida, em cuias, por
este ou aquele devoto, grande é o cuidado de quem a retira para lhes
não tocar nos rebordos. Sob o chão do Comé, nesse triângulo, que
constitui propriamente o pégi ou pódôme, foram ocultadas pelos Negros,
que «assentaram», algumas pedras, representando Voduns.
30
A que se denomina de «Santa Bárbara» é uma delas. Outros obje-
Iom do culto mina-jeje ficam, também, como essas pedras, absoluta-
numto escondidos.
Antigamente, em certas ocasiões, as «feitas», misteriosamente, iam
Imilhar uma dessas pedras, «que representa uma grande Senhora»
(AbêV Santa B árbara?), cujo nome não me revelaram, num lugar
mli ilamente desconhecido, distante e desértico. E nesse lugar, com a
i nlVrida pedra, realizavam outras cerimônias.
As demais pessoas da Casa Grande, que não tomavam parte nessa
■ii Imônia, se trancavam nos quartos e salas, não se atrevendo a falar
m ii espiar, sequer. No Comé, sobre o chão desse triângulo, que cons-
llliií o pégi, são sacrificados animais propiciatórios, nas festas da im-
i"• 1 1ancia da do Natal. Chibarros, cevados durante meses, são ofereci-
•I*iii ;i Badé, a Dadá-Hô-Uussu (pai de todos), e a Zomadone, grandes
\ imIiiiis mina-jejes.
Quando os Voduns querem, ali no pégi, podem também ser mortos
humichos (pombos), catraios (galinha-d’angola ou picota), galos, ga­
linhas. A cerimônia do sacrifício desses animais é realizada pelos to-
i inlnres de tambor, músicos, filhos de Voduns.
Antes de abater-se o animal, estende-se no chão do pégi grande
>iiiiinI idade de folhas de cajazeira ou de cajá, uma Anacardiácea de
fl*UtOR acridoces, que é uma árvore sagrada para a gente da Casa
' .iii ui Io das Minas.
Km um alguidar limpo prepara-se o amassi, que é uma água
111 11 .11, onde esfregam folhas de caj á e de estoraque, denominado este
nIIImio, em língua mina, aquici-quici. As folhas de cajá se chamam
AoOncone. E este nome designa o de um Vodun, naturalmente, como
" 'Ir Irocô, nos candomblés da Bahia, designa o do Vodun Loco ou Loko.
l’or ocasião de o animal ser sacrificado já deve te r os chifres, as
(intuM ou os cascos lavados por esse amassi, se quadrúpede, e os pés
" mi bicos, se ave. O sangue é espalhado no pégi, em pequenos montes,
1111n nr ia que revelou Andresa Maria. A carne do animal sacrificado é

■1111 >vritada. O couro ou pele é dado para ser posto na Caixa do


l iiirito Santo.
Todo sacrifício é realizado com gravidade, dominando-lhe a litur-
i i i uma cantiga apropriada que um coro, de vozes claras e graves,
'l"ii locadores e da Nochê e suas Noviches, ergue no recesso do Comé.
\ um sacrifício — que se realiza quando sobrevêm uma epidemia ou
i" •i- motivos especialíssimos, de interesse do culto — os da Casa Grande
■luiniam de «savou» ou «çavô». O animal propiciatório é um chibarro.
Kkmu savou ou çavô, ou «coisa\ que se vai fazer», é um «despacho»,
' - iilrntemente.
Knchem o chibarro de comidas, dinheiro, muitos tostões e outras
....«'das dadas pelos filhos ou filhas aos Voduns, e vai-se «botar fora»,
■iií .ircce Andresa Maria, em lugar desértico.

31
Andresa Maria e algumas Noviches assistem sempre a esses sa­ tlllililti do minhas insistências para bem esclarecer este assunto, teve
crifícios. E sempre aquela mesma cantiga, de vozes claras e vozes llinM fni.se que reputo preciosíssima:
graves, se eleva das gargantas dos tocadores e da de Andresa Maria, ■•Ou Santos católicos, sendo apreciados, admirados, queridos pelos
com as suas Noviches. Nesse pégi, em lugar seguro, está guardado VihIiiiim jejes, nós, os da Casa Grande, temos também de apreciá-los,
um livro que algumas «velhas» ou «mães», antigamente, sabiam ler. uiliiilni los e querê-los».
Mortas essas «velhas» a gente da Casa Grande das Minas mandava Qiimito à faculdade de identificar esses Voduns, diz Andresa Maria
buscar na Bahia um preto que sabia ler. Da sua existência tenho *Hn os Voduns sabem se eles são Voduns». Com referência a Santa
notícias que me foram dadas por uma das minhas tias. Pela descrição MAiliuru, dona dos «terreiros», em geral, Andresa Maria e pessoas da
que dele me fez, esse livro deve ser, com o seu texto muçulmi seme­ 1'nrm Grande não sabem explicar o poder que lhe é atribuído, asseve-
lhante a outros que Nina Rodrigues e vários pesquisadores viram na • miml<« que só os Voduns o podem fazer.
Bahia. Voduns africanos são os senhores desse pégi; as cerimônias,
as práticas, os ritos, as leituras, que ali se realizavam ontem, lhes I’nr que certas festas do culto mina-jeje coincidem com as do culto
eram dirigidas exclusivamente e não à divindade de outros cultos. E Mtólleo ou da tradição de outros povos; por que os filhos e as filhas-de-
o mesmo acontece hoje em dia. também, apreciam, admiram e querem os Santos católicos; por
(|Uli em certas danças, as Noviches, cantando em língua africana, se
Esses Voduns estão, de fato, representados nas figuras daquelas
' "fi i rm, com grandes reverências, à figura de Jesus, fácil, por certo,
jarras, na Água que elas contêm, como nas pedras e outros objetos
Muni ver-se nisso uma prova de sincretismo religioso.
ocultos no chão do pégi, dentro das linhas daquele triângulo. Graças
ao dom de ubiqüidade, que outras divindades também desfrutam, os No entanto a distinção entre os dois cultos mina-jeje e católico
Voduns mina-jejes estão ali no pégi e noutros pégis do Brasil e da •' lirru nítida. Sou dos que acreditam que, não raro, como recurso para
África onde os ocultam. luBpIstar, os oficiantes desse culto — receosos de perseguições e casti-
Sem que ficasse perfeitamente esclarecido este ponto, como muitos iim da parte dos senhores de escravos — mantinham oratórios com
outros, ouvi falar na Casa Grande em linhas de Voduns, registrando nulos católicos e a eles se dirigiam em língua africana engrolada
■ ui latim.
que à primeira linha, ou à de Davicilé, se prendem os amigos do
Santo ou Vodun de Mãe Luísa (uma das «velhas», já falecidas) que No íntimo, porém, da alma — como sob o chão do pégi os objetos
era Zomadone, dentre os quais fixei os de Coicinaçaba, Anagône, Toçá, nll escondidos — apreciavam, admiravam, queriam, verdadeira e sin-
Dadá-hu. ramente, só os Voduns da África, que os seus antepassados haviam
À segunda linha ou de Quéviôçôcilé se prendem o meu santo ou apreciado, admirado e querido.
protetor, que é Badé (Dono do Trovão), Toi Avérêquête (Dono do Quando, entretanto, essa verdade não possa ser apontada noutros
Céu) e Abê (Dona do M ar), irm ã gêmea de Badé. pontos do País, onde as culturas negras deixaram traços marcantes,
A hagiologia mina-jeje tem nos seus quadros numerosos Voduns, mi Ilha de São Luís do Maranhão tudo demonstra — não há quem
caracteristicamente africanos. Nela aparece, porém, um Vodun: Ana- "ii" o reconheça — a sua plenitude e pureza. Os Voduns mina-jejes
gôno Toçá, da hagiologia nagô. •ui" alguns do sexo feminino e outros do sexo masculino: uns são moços
Minhas investigações — facilitadas por pertencer eu àquele culto, " mitros velhos.
desde o dia que minha Mãe, como entre a gente das tribos do Con­
tinente, me deu a Badé, meu Protetor e meu Santo — minhas investi­ Os Voduns velhos (homens) são:
gações, repito, me autorizam a afirm ar que um Santo negro mina-jeje Dadá-hô Agôngone
é, essencialmente, africano, não pertencendo nem podendo ser confun­ Coicinçaba Tópa
dido com os Santos da hagiologia católica. Mãe Andresa Maria me Zomadone Liçá ou Oliçá (jeje?)
levou, naturalmente, a essa convicção, mas foi assistindo às cerimônias, Bórôtoi Ajónôtoi
às festas e aos ritos realizados na Casa Grande que me capacitei dessa Azacá Ajautói
verdade. Arônôviçavá Badé
Um Vodun mina-jeje, como Badé ou como Çôbô, sua mãe, não é Acóçapatá Loco
S. Jerônimo ou Santa Bárbara, deixando, assim, de verificar-se o sin- Azilé Lépon
cretismo religioso que outros estudiosos da etnologia dos Negros apon­ Azonçu
tam nesta ou naquela província etnográfica do Brasil. Andresa Maria,

32 33
Os Voduns velhas (mulheres) são:
Çôbô Nananbiocô
Naiadone A fru-F ru
Naêgongon Abê
Naité

Os Voduns (moços) são :


Doçu Doçu-Pé
Apógêvó Avérêquête
Daco Apogi
Boçu Póli-Boji ou Pódi-Boji
Tocé Roeju
Tocá

Os Voduns (moças) são:


Ananin Sépazin
Acoévi ou Assonlévi? Boçá
Déçé

Além desses Voduns, ligados à hagiologia mina-jeje, temos a con­


siderar os chamados Toquens ou guias, ou meninos que antecedem os
Voduns nas visitas que estas fazem a seus fiéis.
Muitas vezes um Vodun como Avérêquête — o mais velho de todos
os Voduns — faz o papel de Toquen ou guia ou menino, como, também,
é designado esse personagem do mundo espiritual dos Minas jejes,
Examinando essa hagiologia vamos encontrar Voduns que pertencem
a esta ou àquela família. Há uma hierarquia religiosa entre eles, mas
há, do mesmo modo, um parentesco quase humano. E amizades,
igualmente.
Badé, por exemplo, o protetor a quem minha mãe me confiou, tem
como mãe Çôbô; o nome do Pai de Badé não pode ser dito; Abê
(Dona do Mar, Senhora do Mar) é a irmã dele, irm ã gêmea, acres­
centam. Loco é irmão de Badé. Grande amigo de Badé é Póli-Bogi.
Badé, em língua nagô, é chamado Xangô; em língua mina é
Queviôçô; em tapa é Vonuncon, em Agrôno é Abaçucó. Os da Casa
Grande não lhe apontam, na hagiologia católica, nenhum santo que
o represente, ou melhor, que lhe seja correspondente. Acóçapatá é co­
nhecido nas macumbas do Rio de Janeiro como Oxun. Hierarquica­
mente Toi Avérêquête é quem se encontra no primeiro plano. E isso
é confirmado pelo título que ele dá a si mesmo: Toi Avérêquête vonucon
gaú poçué do nu qui já.
À família de Póli-Boji se prendem Bogone, Alôgue, Abóju e Roêju.
Póli-Boji não come nem bebe.

34
Mondo Badé «Dono do Trovão», a ele se dirigem os do culto de
nmilii especial. Se o saúdam (ou salvam, como diz Mãe Andresa), o
hi/rm nestes termos: Anam man í lá ú lá!
!•:, quando em perigo de vida, nesta ou naquela contingência, a ele
..... Ilrigom assim:
Da dá mi çu há jê có dá mê mê ton gi a la cá a lu bé a
dô no vi pé on la da no sá da na boi ran ri ra nin ran chi.
I1! também quando «se abre o relâmpago»: Badé a na ma aú ló
lt ló, corno quem diria: Badé: dá-me a tua mão!
A Loco, irmão de Badé, se dirigem nestes termos:
Loco atin rô di di a tin do bê da da lê ro Loco cucui
è Vodun Loco qui é qui é.

\ Mãe de Badé, Çôbô, se dirigem desta m aneira: Çôbô, Vodun


InI ba dl a qui a dô! A um Vodun, Ajautô, que nunca se curva, pois
-im mn velho ainda se julga poderoso e indomável», dirigem os da
1'iimií <! rande esta saudação: Ajautô já la da na!
Oh Voduns, na sua vida, também se irritam com os filhos e filhas
i|iin mo lhes queixam exageradamente, tendo exclamações como esta:
N mau jô rô á, que quer dizer: não quero saber disso, ou melhor,
llhportu-me lá!
A objetos do culto se aplicam os nomes dos Voduns. Os tambores,
|mm cvrmplo, têm o nome de alguns deles: Zomadon, Doçu, Dáda-hô, Naê.
Nesses instrumentos, aparecem as iniciais dos nomes dos Voduns
mu outras letras que os recordam. Temos assim: Z.B.D. (ou Zomadon) ;
H Z , | ) . (ou Doçu); G.P. (ou Dádá-Hu) ; N.M.N. (ou Naê).
( >:t Voduns também têm costumes e hábitos estranhos. Badé, por
oHcinplo, nunca fala; anuncia-se batendo palmas. Em trajo de festa
no elo usa uma faixa azul para trás. Ele não fuma, e, do mesmo
.....Io, a «gente» de Çôbô e Loco. Os Voduns Avérêquête, Abê, Ajautô
rumam. E só estes falam, também.
Desse modo, quando se reúnem os Voduns, há os que servem de
•ui. i protes como há os que servem de guia ou Toquen.
Oh Voduns não se servem de bebidas alcoólicas. E têm as suas
iiimulus prediletas. Também não baixam ao capricho deste ou daquele
1111in ou filha. Têm horas certas para b a ix a r... As cores dos trajos,
mi adornos diferem entre eles e pode ser observada a preferência de
mu ou de outro através do trajo e dos adornos das Noviches ou da
Nochê.
Têm, também, as suas cantigas prediletas e as suas danças, as suas
etiquetas e as suas expressões para cumprimentar. Quando Toi Badé
• muprimenta Toi Avérêcjuête observam ambos esta formalidade: batem
imineiro, unindo-as, as palmas das mãos; volta-se cada qual do lado
npoHto ao tomado pelo amigo; unem os cotovelos e os punhos e, por
rim, abraçam-se.
35
Alguns Voduns curvam-se, em reverências cheias de dignidade;
outros nunca se curvam. Ajautó, como acima disse, é um desses.
Há formalidades a respeitar-se em relação aos Voduns. Nunca se
fala nos nomes deles junto ao fogo ou ao apanhar o lixo. Nunca se
chama por eles em dia de sexta-feira. Quando os Voduns cantam, em
dias de festas, na «língua de jeje», uma espécie de ladainha, se ocorre
o nome de Jesus, todos eles esfregam as palmas das mãos, à altura
da cabeça, curvando-se e recuando, ao mesmo tempo, graciosa e
respeitosamente.
Os Voduns, muitas vezes, quando conversam, o fazem numa língua
da África, atrapalhada, que só eles entendem ou bem raras Noviches.
Nunca se irritam ou dão mostras de aborrecimento entre si. Humanizam-
se, rindo e gracejando consigo mesmos ou com os filhos e filhas.
Além dos Voduns e dos Toquens, aparecem ao lado desses perso­
nagens as Tôbôssis ou Tôbôcis ou Meninas.
Elas se denominam:
Açoabêbe Trôtrôbe
Dágêbe Açonlêvive
Omacuibe Révivive
Sandolêbê Nanonbêbe
Ulôlôbê Sanlêvive
Agôn Agamavi
Essas Tôbôssis ou Tôbôcis são agradáveis, alegres, cumulam as pes­
soas de presentes, dançam, brincam com bonecas, comem frutas sen­
tadas no chão principalmente nas chamadas festas de pagamento e no
Carnaval. A língua, porém, em que se exprimem é difícil de ser
entendida.
As Tôbôssis, espiritualmente, também são consideradas «senhoras».
Andresa Maria me disse que a sua «Senhora» era Açôabêbe, a de Zila
Dábêbe. E a meu pedido, me deu a relação abaixo das pessoas cujas
«Senhoras» têm os nomes das Tôbôssis (Tôbôcis?).
Andresa Maria Açoabêbe
Zila Dágêbe (Dangbi?)
Anésia Omacuibe
Filomena Sandolêbê
Teresa Ulôlôbê
Manoca Agôn
Leocádia Trôtrôbe
Adalgisa Açonlêvive
Cecília Révivive
Firmina Nanonbêbe
Chiquinha Sanlêvive
Almerinda Agamavi
36
C apítulo III
O GUME E AS FESTAS

Acontece não raro que, na Casa Grande, se realizem festas e


.... ........ lanças litúrgicas dos seus compartimentos, como as salas, e na
In......Ia varanda, a um canto da qual se agrupam os tambores, de pé,
HUciimInilns à parede. Assisti a algumas dessas festas e danças litúrgi-
i mm, realizadas na varanda (ver Caderno Iconográfico n. 4).
Nchhii varanda há um altar, do tipo dos que se erguem para
UlIWaa campais, de evidente provisoriedade, mas nele não permanecem
llMMtfcna nem estampas de santos católicos, ali postos somente por
"tocilan das solenidades anuais que a cristandade realiza, lá fora, e
i"M coincidirem com as do culto mina-jeje.
Mas, nas paredes dessa varanda, à esquerda de quem entra, estão
ItlIpotiKUH algumas estampas, dentre as quais identifiquei as seguintes:

Representação da Crucificação de Jesus


Santa Filomena
Santa Helena
Santo Antônio
Santa Catarina
São Lucas Evangelista
São Francisco das Chagas
A Sagrada Família
Nossa Senhora do Bom Pastor
Nossa Senhora da Conceição
São José e o Menino Jesus
Fé, Esperança e Caridade.

O Ingar apropriado, entretanto, a danças e outras solenidades é


<i (lume, ou terreiro, já referido às primeiras páginas deste depoimento.
'I ' que «assentaram» a Casa das Minas destinaram-lhe uma grande
mi mi, onde a árvore sagrada, de maior importância nas sobrevivências
•I" culto mina-jeje de São Luís, é a cajazeira ou cajá — uma Anacar-
'IImcch muito conhecida noutros Estados do País.
Pós de certa Mirtácea — a pitangueira —, bem como de uma Sola-
..... i — a ginjeira —, touças de Aroídeas e de crótons ornamentais
......Imninam entre outrasx espécies vegetais desse Gume.
A porção da área destinada, propriamente, às danças é livre, porém,
Im plantas, gramas ou ervas. O chão é limpo, rascado, um tanto irre-
ciilm e em declive sob a influência da topografia desse trecho do

37
Bairro de São Pantaleão, descendo para a Fonte do Bispo, até a margem
do Bacanga. As chuvas passam por essa área, portanto, rapidamente,
deixando-a seca, com seixos e areia grossa à superfície.
Essa é a fisionomia exterior do Gume da Casa das Minas, aquela
que todo mundo tem logo diante de si. A outra, a espiritual, a quel
intimamente se relaciona com o culto, com a sua história, com a sua
tradição e a sua liturgia, só a Nochê e as Noviches, filhos e filhas da
Casa Grande, conhecem.
Esse Gume, como o pégi, foi «assentado» também por africanos
mina-jejes, conhecidos então pela alcunha de «contrabando». Naquele
chão foram ocultos objetos trazidos da África, semelhantes aos que se
acham no pégi, no chão do triângulo simbólico.
As festas, denominadas «maiores», que se realizam no terreiro da
Casa Grande das Minas, são as de «obrigação», de «deveres» e corres­
pondem à denominada de Santa Bárbara a 4 de dezembro, à de São
Sebastião a 20 de janeiro, à de São João a 24 de junho, à dos Meninos
ou São Cosme e São Damião a 27 de setembro.
Em Dezembro, também, correspondendo às datas de 24 e de 25,
celebram-se ali festas do culto. Em São João e São Pedro soltam-se
foguetes. Festeja-se o Natal com danças e comidas sagradas tipica­
mente africanas, que descreverei a seguir.
A Festa de Pagamento é de grande importância na Casa Grande:]
realiza-se um domingo, depois de 1’ do ano. Os Voduns baixam para
pagar os tocadores (de tambor, de cabaça) e a tocadeira do ferro ou
ogã. É uma festa bonita, que depende de muitos recursos. Nela o pa­
gamento consiste em fazendas, bebidas, objetos de uso individual.
No Carnaval as Meninas ou Tôbôssis (Tôbôcis?) celebram uma
festa com danças, em redor de uma grande travessa de acarajé. Nessa
festa, que, também, se chama «das Meninas», além de acarajé apa­
recem pipocas torradas e as Tôbôssis comem e distribuem frutas.
Só dançam um dia, uma dança, na expressão de Andresa Maria,
«moderada». E, ao dançar, vão distribuindo pipocas e frutas entre os
irmãos e irmãs, filhos e filhas dos Voduns, também disso participando
a assistência. Cantigas especiais são erguidas durante essa festa.
Festa de significação religiosa digna de registro é a realizada com
as Tôbôssis, «que são espíritos» e, baixando à terra, «vivem como as
pessoas», isto é, humanizam-se, explica Andresa Maria.
Sentadas no chão, como acima referi, brincam com bonecas e con­
versam entre si numa língua especial, difícil de ser compreendida.
Andresa Maria diz que falam «bem aborrecido e atrapalhado».
Essas meninas mantêm uma alegria constante no decorrer das
danças dessa festa do Carnaval, mas sem que, mesmo humanizadas,
desçam a exageros, a excessos, ridículos e inconveniências que caracte­
rizam, lá fora, o Carnaval. . . e certas macumbas do Rio de Janeiro.
O trajo litúrgico, usado nessas festas, varia de feitio e de cor. Ora este
é simples, ora aquele é suntuoso. Na festa de São João todo o trajo
38
dnw Noviches ó branco; na do Natal ó variado; no Carnaval as Tôbôssis
‘i Ikiii saias vistosas, aparecendo o pano da Costa, que envolve o colo
mi u desce até os pés calçados em sandálias finas; na de Santa Bár­
bara o Irajo é encarnado.
Ilude, que é festejado no dia de São Pedro, tem predileção pelo
11 m|u íi/.iiI, mas arvora sempre uma faixa para trás. A sua festa exige
liiiiilinr. comidas e bebidas. É uma grande festa.
Am Noviches «limpas», mudando toda a roupa de uso, na ocasião,
itMlm mc trajam : um cabeção de cambraia gaze ou de cambraia apenas,
011 <le opala, ou de linho, todo bordado e com rendas de almofada;
IIIIMi mmia de ramagens ou de pano da Costa (que já é encontrado nas
IIIiin di' São Luís, mas outrora vinham por encomenda, diretamente
de Al rica).
Kmmu peça pode ser de fazenda lisa. Completam esse trajo faixas
VInIonuh encarnadas e azuis. As Noviches suspendem ao pescoço cordões
di* ouro antigo, trancelins, colares, mas os «rosários», recebidos dos
•iMirt Voduns, ou por eles apontados, são os adornos que mais prezam:
IUHM contas, vindas da Bahia e do Rio, e os búzios, também, dão a
*HiMo adorno um efeito primitivo.
I’rondem às orelhas estranhos brincos, alguns também de ouro
Mlltltfo, admiráveis e bizarros trabalhos de ourivesaria colonial. Algu­
mas Irmãs suspendem um lencinho à cintura ou o põem num dos
timbrou ou o equilibram no alto da cabeça. Aparecem ventarolas e
Imi|iicm grandes, de pena, de celulóide e de papel. E bengalas — cujo
VMlor social nas tribos africanas é bem conhecido — servem para
apoio do corpo, tão suntuosamente trajado, desta ou daquela Noviche,
.... . mm walking-sticks vistas por Stanley.
HoIhus aparecem às mãos das Irmãs e nenhum outro atributo dos
\ "diiii.t. Com os lencinhos desdobrados nas danças, as Irmãs fazem
movimentos graciosos e rítmicos, ora à direita, ora à esquerda, flexio-
imndo os joelhos e derreando o corpo para trás. É uma peça comple-
montur do trajo, mas de valor simbólico especial nas danças.
As bengalas, além de apoio que prestam, têm, como os lencinhos,
o i danças, o seu valor simbólico: o de soberania, de majestade, de
punição social, de atributo divino. Há Voduns que as não deixam, m ar­
eando o compasso da dança sobre o chão por onde se movem. Nas
loalas de «obrigação», de «deveres» como nas «das Meninas», as danças
mo características e os Voduns, através desses adornos e objetos, de-
.... .. mm as suas preferências, as suas simpatias.
Em todas as danças, de intenso movimento, também se revelam
■ iiim preferências e simpatias. Há Voduns que dançam, pesadamente,
do cabeça curva, sacudindo mais os braços, agitando os ombros. Há
oiilms que dançam, leves e rápidos, à cadência dos runs, dos gôs e do
ogit, quase imaterialmente. As palmas acompanham certos ritmos de
danças, mas as mãos que se batem, também, espalmadas, à extremi-

39
tjuiiiiilo morre alguém da Casa das Minas, toca-se tambor, bem
dade dos braços que se agitam, parecem acariciar o chão do Gume ou I HititM n forro e as cabaças. Não dançam em frente e em roda do
revolvê-lo. ..............mo faz a «gente de Nagô».
Há danças coletivas, cujos passos ainda denunciam a riqueza coreo- II ii Voduns que, baixando, nessas festas, se anunciam por gritos,
gráfica das bailarinas africanas. Há danças isoladas, não menos ricas MUtllIliron u cada um, mas a regra é cantarem eles os seus pontos pre-
em ritmo e em graça. As figuras ora giram sobre si mesmas, ora mliliMi Santos velhos, como Zomadone, Davice, Coicinaçaba, cantam,
descrevem meios círculos, ora se defrontam, ora se buscam e ora so •Ml "templo:
esquivam. É o domínio absoluto, é o domínio total do ritmo. À ca­ Cá cá gi bê, cá cá gi bê!
dência dos tambores, vibrados pela noite adentro, os vultos dos Voduns Apá hó tó ô Vodun maió donu mé.
Noviches e Tôbôssis não param, como não param as suas vozes nos Cá cá gi bê, cá cá gi bê!
cânticos sagrados.
E o grupo, de quando em quando, é acrescido de mais uma figura) Nim lestas maiores, com danças de roda, eleva-se uma cantiga —
feminina. Sente-se que aquela dança, nas suas contorsões, nos seus lambem se canta quando Póli-Boji «baixa» — cuja letra é a
lie
passos, nos seus gestos, é uma preparação para algo de sobrenatural.
Ai xô ai póng
Os torsos que se agitam, dominados por esta ou aquela cabeça di Agôngon Mina coquê
mulher, os braços que se movem, as mãos que acenam, as pernas qu Ai xô, ai póng
flexionam estão, porém, impelindo, paradoxalmente, aqueles corpos pari Agôngon cô cô rô á !
uma atitude suprema: a do transe.
A música, de ritmos sombrios e tristes, a dança, de passos ca- mm relações, cordialmente mantidas, entre a Casa das Minas e a
denciados e estranhos, daí a instantes levarão esses corpos a receber do Nagô, é de praxe uma visita, constituindo isso festa digna
os Voduns que «baixam», os Santos que se «manifestam», substituindo ore Meia. Os de Nagô, nessa visita, cantam por vezes:
a personalidade das bailarinas, para, por fim, dominarem toda a festaj
com os seus cantos e os seus movimentos. As frases dos cânticos são Ah! eu sou fina, fina
Ah! eu sou fina de ôtá! Bis
substituídas, também, ou continuam, já agora, cantadas por persona­
É de tan Mina Agôngone
gens de um mundo sublunar. E Boçu croa no Mar! Bis
Os instrumentos do culto, que aparecem nessas festas, são os tam E Boçu croa em terra,
bores, denominados runs, e as cabaças, denominadas gôs, e o ferri E Boçu croa no mar, Bis
denominado ogã. Esses tambores têm nomes de Voduns, como expli É de tan Mina Agôngone
quei, páginas atrás. Antes da festa eles são limpos, postos ao sol É de Doçu pô vê çá! Bis
passando-se azeite de dendê no couro. Na Casa de Nagô, ali perto d (Ver Caderno Iconográfico n" 5)
Casa das Minas, os tambores ficam deitados sobre cavaletes.
Nesta, porém, eles ficam sempre de pé e são saudados nas danças, mais abatidos no pégi entram na alimentação dos Voduns e
pelas Noviches e pelos próprios Voduns. Eles são tocados com umas u i fiéis. A cozinha africana tem na Casa das Minas quem a
vaquetas: os aquidavi. O ogã é um instrumento de metal, semelhante nlm ein toda a sua pureza, pois ela está ligada ao culto mina-jeje.
a outros que no culto jeje-nagô se denomina agogô. Os tocadores são i verdade que há Santos ou Voduns ou Protetores que nada comem,
denominados em jeje «runtó». O ogã deve sempre ser conservado de pé, mm bebem. Póli-Boji é um desses Voduns; mas não se compreende
mesmo para ser fotografado. E é vibrado por uma mulher. As cabaças uma feslu «grande», de «obrigação», de «pagamento» sem quitutes e
ou gô são envolvidas em redes de fios de seda coloridos. 1 'mi i . postas diante dos Santos, primeiro, e, depois, distribuídas pelos
A essas festas dão realce, quase sempre, orquestras populares de 1 i . i.i

São Luís com contrabaixo, violino, cavaquinho, mas só executam mú hmso enumerar as comidas seguintes:
sicas profanas. _ . , _
Observei na Casa Grande que nem sempre os tambores são tocado» x.... . .í,!!!!,'!!*k<1 C°m eiJa0_branc°, de olho preto, com dendê.
e nem há quem os vibre por brincadeira. Também, cantigas de Vodun» nddo de alinha111 Camaroes’ soca^os com farinha feito angu, no
não podem ser cantadas a qualquer hora ou fora dessas danças litúr* . _ , c' . .
gicas e das cerimônias do culto. Há cantigas que não «devem» ser * . ' a a a f 0™ arin ,a seca> bem fina, envolvida com dendê,
cantadas nas cozinhas, em «certos, lugares. ' "V" Um pou1umho « ••
41
40
Acarajé: preparada com feijão branco, de olho preto, quebrado, do
qual se tiram a pele e o olho. Deixa-se ficar o feijão assim pre­
parado para o dia seguinte, quando é ralado em pedra especial,
posto em alguidar com quiabo ralado, pimenta malagueta, pimenta-
do-reino, gengibre. Bate-se tudo, bem batido, depois tira-se com
a colher e bota-se na frigideira para fritar. É o alimento mais
difícil de preparar.
Chossun: preparada com carne de chibarro, morto naquela cerimônia
já descrita, no pégi, só podendo o animal ser visto pelo runtó e
as Noviches ou Irmãs limpas. Os pedaços de carne de chibarro,
depois de se lhes tira r a pele, são postos numa folhinha com
farinha de camarão, ajuntando-se-lhes azeite de dendê e água;
depois deixa-se tudo isso ferver bem.
Caruru: preparada para ser servida com bolo de fubá de arroz. Nele
entram quiabo, camarão, farinha.
Dovró: preparada com feijão branco que é cozido e, depois de se lhe
tira r as peles, é posto numa folhinha de guaramã. Passa-se azeite
de dendê e embrulha-se o feijão assim preparado. Colocado sobre
umas talinhas, esse embrulho de feijão é cozido no «suor da panela».
Nonufon: preparada com quiabos, que são, depois de lavados, cortados
em pedaços miúdos. Deixa-se cozinhar um pouco para que conserve
o tom verde, depois de juntar-se-lhes azeite de dendê e louro. Assim
que tudo esteja bem cozido, bota-se, às colheres, sobre o bolo de
fubá-de-arroz.

A esses alimentos sagrados podem ser associados pedaços de ga­


linha, sendo mesmo de praxe essa associação, mas a ave tem de ser
morta «com cerimônia» no pégi.
Algumas espécies de peixe, como cangatá Auris luniscutis Thurton,
jurupiranga Tachysurus rugispinnis Cuv & Vai entram no preparo dos
pratos sagrados. São geralmente moqueados. Seus pedaços são postos
entre farinha com dendê. Mas —■ porque representam tabus alimenta-
res — é proibido comer-se cação, raia, caranguejo, carneiro. As frutas,
entre as oferendas de bebidas e comidas postas no pégi, só aparecem
nas «Festas das Meninas», durante o Carnaval. As verduras podem
ser comidas indistintamente, se aparecem nessas festas. Não há nenhu­
ma que seja tabu.
No pégi, com os pratos e travessas transbordantes desses quitutes
— tão gostosos como o celebrado «arroz de cuchá» da cozinha m ara­
nhense — costumam pôr garrafas de bebidas: cervejas, vinho, cachaça
e licores, alguns de fabricação doméstica. Os Voduns, porém, não se
servem dessas bebidas. As Noviches ou Irmãs, depois, bebem um pouco,
sem embriagarem-se, contudo. Preparam, para essas festas, duas espé­
cies de aluá: uma de milho amarelo, torrado, socado, posto de infusão
num pote com gengibre e açúcar branco; outra de vinagre, com açúcar
e água.
42
C apítulo IV
Q u ando os V o d u n s baixam

Os Voduns podem baixar a qualquer hora, mas preferem, geral­


mente, às duas horas da tarde e ao amanhecer. Às vezes baixam à
meia-noite.
«Duas horas, hora certa de Vodun!», exclamou Andresa Maria,
quando a interpelei a respeito.
Acompanhando-se, porém, em todas as suas minúcias, as festas
de «obrigação», de «deveres», a das Meninas ou Tôbôssis, a de «pa­
gamento», a de Natal, a de São João e São Pedro, a de São Cosme
e São Damião, a de Santa Bárbara, acreditar-se-á que somente sob
a influência dos tambores e de outros instrumentos sagrados baixam
os Voduns.
No ambiente do Gume, à cadência das danças litúrgicas, às vezes
em coro das Noviches, após a agitação e os movimentos da Nochê e
das Noviches, parece que só neste ambiente deveriam eles baixar.
Não é assim, entretanto. Os Voduns baixam ali, é fato, mas baixam,
também, em qualquer outra ocasião, seja o ambiente de festa ou de
tristeza, seja no Gume ou em plena rua, onde quer que surpreendam
as suas filhas, não se podendo limitar às emoções das danças e dos
cânticos litúrgicos aqueles que contribuem para a «possessão» ou para
o «estado de transe», em que se nos mostram.
A maneira, também, por que se manifestam, por que baixam, por
que tomam posse do corpo e do espírito dessas Filhas, ou dessas Irmãs,
vai desde a atordoadora e imprevista violência até a serenidade.
Alguns Voduns «baixam» como certas forças cósmicas de destrui­
ção e de terro r; outros «baixam» como a sombra, o silêncio, a paz que
as sucedem. Fácil é verificar-se no Gume ou outro lugar que aquela
Noviche está em transe, que o seu «senhor» ou a sua «senhora» baixam
das regiões onde vivem, incorporando-se nela.
Noutras circunstâncias, no entanto, somente uma intimidade com
esses fatos psíquicos — o êxtase, a possessão, o transe — nos levam a
reconhecer tais criaturas sob o domínio daquelas divindades primitivas.
As linhas da máscara, estranhamente deformada ao calor, à ani­
mação das danças, às emoções da música negra, na sua ardência tro­
pical, às palavras sonoras dos «pontos», cantados pela Nochê ou por
todas as Irmãs presentes; os movimentos alucinados ou rítmicos; as
vozes confusamente emitidas, de uma linguagem monossilábica; o olhar
parado nas pálpebras semicerradas podem revelar esses fenômenos de
psiquismo. Mas há atitudes, há máscaras, há vozes que intrigam,

48
confundem e inquietam, pelo que deparamos de normal nas suas
manifestações.
E isso encontra confirmação na assertiva de que, nas festas de
Carnaval, as Meninas ou Tôbôssis, que baixam, se humanizam, reali­
zando atos absolutamente lógicos, perfeitamente coerentes com a exis­
tência quotidiana.
É exato que esses Voduns baixam sobre Irmãs ou Filhas de pre­
cária constituição psíquico-biológica, algumas vezes, sobre histéricas
etc., etc.; entretanto, outras vezes o fazem sobre criaturas normais, de
hábitos até aparentemente em desacordo com o ambiente do Gume ou
com o clima de sexualidade que danças e cantos determinam, em nosso
País, quer numa sociedade negra, quer num clube de grã-finos cariocas.
Fatos que pude observar, em diversas e numerosas circunstâncias,
me levaram a aceitar sem discussão, por exemplo, uma afirm ativa de
Levy Valensi, citado pelo Prof. A rthur Ramos, em sua Introdução à
Psicologia Social:
«O médium, abstração feita no seu terreno neuropático, não é
um doente senão no momento do transe, no momento em que ele quer
se desagregar».
Pertencendo minha mãe, como inúmeras senhoras de São Luís de
todas as classes sociais, à Casa das Minas, tive o ensejo de observá-la,
muitas vezes, em estado de transe. Minha Mãe havia sido feita, segun­
do expressão do culto jeje, sendo Póli-Boji o seu «Protetor», o seu
«Santo», o seu «Senhor», o seu Vodun.
Póli-Boji — amigo de Badé e de Toi Boçucô, em cuja família apa­
recem Bagona, Alôgne, Abôju, Roêju — é uma divindade africana cujos
hábitos não raro se exteriorizam com as características de certas forças
naturais, como as tempestades, etc., etc. Ora, quando Póli-Boji «bai­
xava» — não obstante, também, o temperamento místico de minha
mãe — poucas alterações fesionômicas, raros gestos, raras palavras
imperceptíveis ou de sentido estranho lhe denunciavam a presença na­
quela criatura.
Eu sabia, entretanto, que minha mãe estava sob a ação de um
fenômeno psíquico a que a levara não sei que emoção de origem des­
conhecida e inexplicável, até então, para mim. Nessas ocasiões pude
observar, igualmente, que se alargava naquela criatura a área de co­
nhecimento, que a sua expressão ganhava requinte e profundeza, no
desenvolver este ou aquele tema, até de simples interesse doméstico.
Normalmente, com a sensibilidade que estou referindo, minha mãe
podia manifestar-se em assuntos de religião, de arte, mas nunca tivera
aptidões para se revelar em assuntos de política e de administração
pública.
Na «possessão» daquela divindade tais temas lhe eram absoluta­
mente familiares e de fácil desenvolvimento, o que me inquietava e
deixava perplexo, pois eu bem sabia que minha mãe era incapaz de

41
mistificar ou de querer exibir conhecimentos e experiências que não
possuía.
Os Voduns baixam, por ocasião das danças ou noutra qualquer,
isoladamente ou acompanhados. Não raramente são precedidos, como
já acima referi, por um «guia», ou «toquen», ou «menino», sendo que
a sua presença, às vezes, é denunciada por um simples toque de tambor,
ou pelo início de uma frase (verso?) do «ponto» que lhe é peculiar,
o «seu ponto».
Quando os Voduns baixam, isoladamente, fora do ambiente da
Casa Grande das Minas, há práticas e cerimônias especiais para o
receber. Vestem-lhe um cabeção de renda e cambraia, saia de rama­
gem, envolvendo-se-lhe o busto com uma toalha branca de linho e
rendas.
Estendem-lhe uma esteira, onde se deita de bruço, ficando mer­
gulhado num profundo sono; e, assim que desperta, oferecem-lhe um
cachimbo ou presente, etc. Também queimam em redor dele, em foga-
reirinhos de barro, essências propiciatórias. As pessoas que dele se
aproximam ajoelham-se, curvam a cabeça, beijam-lhe as mãos.
O Vodun põe-lhe dois dedos (o médio e o indicador) na base do
crânio, num gesto de sujeição, e, ao erguer-se o filho ou filha, que o
cumprimenta, é por ele abraçado, primeiro apertando-o sobre o peito
direito e depois sobre o esquerdo.
Então os Voduns, que ali se avistam com os seus fiéis, confiantes
e esperançosos, com eles conversam, mas às vezes alguns são casti­
gados, caracterizando-se esses castigos por simples bolos ou por quedas
violentas, batendo-se a si mesmo o culpado, que se esbofeteia e arre­
messa contra as paredes, os móveis, as pessoas e o chão.
Quando os Voduns baixam reconciliam-se os desafetos e trazem-
lhes dádivas e demonstram-lhes as suas «obrigações» quantos a eles
recorreram ou deles dependem. Alguns Voduns falam claramente, para
que todos os escutem; outros só fazem mímicas; outros se expressam
através dos guias; outros recorrem à Nochê ou às Noviches, por inter­
médio destas transmitindo o que desejam, respondendo aos que os
interpelam.
Quando os Voduns baixam, às vezes o fazem sobre pessoa distante
do grupo de Noviches reunidas, indo escolhê-la entre a assistência, o
que revela, para a Casa Grande mesmo, as relações dessa pessoa, a
sua posição diante deles. Nunca vi nenhum Vodun apossar-se de
homens ou de crianças, como já assisti em certas macumbas do Rio
em casa da Chica Baiana, no Encantado.
Quando os Voduns baixam, o fazem independentemente da vontade
das Noviches ou da Nochê, que nunca se prestariam a reclamar-lhes n
presença, para satisfazer a vontade ou o capricho de um ou de umn
interessada. Se os Voduns, em geral, baixam ao toque dos tambores
e de outros instrumentos sagrados, também o fazem a despeito deles

45
e mesmo de «pontos». Ao retirar-se, entretanto, já nas festas, já
noutras ocasiões, é de praxe despedirem-se cantando. Assim como há
«pontos» que denunciam a chegada dos Voduns, também há «pontos»
que lhes anunciam a retirada, o fim da «possessão», do transe, em
que tiveram sob o seu poder a sua filha.
Os Voduns masculinos, quando baixam, além de peculiar afeição
por esta ou aquela Noviche, nunca exteriorizam sentimentos que possam
ser confundidos com as manifestações passionais dos homens. E os
Voduns femininos, quando baixam, guardam nos gestos e nas expressões
a decência, a simplicidade, a delicadeza de uma verdadeira mãe ou de
uma afetuosa amiga.
Raro é o Vodun que faz gestos ou pronuncia palavras inconve­
nientes. As divindades naturais da África, trazidas para o Maranhão,
não perderam, mesmo diante das misérias a que submetiam o seu povo,
as suas virtudes características: são sóbrias, polidas, convenientes. Mas,
quando castigam, lembram certas forças naturais que individualizam:
são violentas, implacáveis, tremendas.

46
C apítulo V
A MORAL DO CULTO

Na descrição do meio, que é a Casa Grande das Minas, salientei


os elementos que a trouxeram até nós, constituída num como resumo
de sociedade africana. E tracei, rapidamente embora, um retrato da
sua Dona ou da Nochê que a dirige.
Não creio, entretanto, que os melhores elementos tenham sido os
sociais e os econômicos. Toda a sua resistência ao tempo, às influên­
cias externas, à dissolução, proveio dos elementos morais das leis e
do culto mina-jeje.
Perguntando a Andresa Maria qual seria a lei mais severa para
a Casa dos Voduns de São Luís, respondeu-me:
—• Toda ela.
E, relativamente às obrigações, disse-me:
— Todas as Irmãs devem saber como tra ta r e respeitar os Voduns
e aprender todas as práticas da nossa crença. As Minas devem saber
todas as cerimônias necessárias à ordem e pompa das festas.
Nenhuma Irmã pode ignorar que os Voduns não admitem o de­
boche, a mentira, a traição, a falta de palavra. Os Voduns não gostam
de gente viciada. Os vícios, como o da diamba e o do álcool, são
condenados por eles. E1 quando querem castigar um filho ou filha
deixam que os mesmos sejam dominados por esses vícios para ficarem
desprezíveis e sofrerem as conseqüências que acarretam.
Na Casa das Minas não se cuida de feitiçaria, isto é, da prática
de malefícios ou do preparo de filtros, amuletos, etc.
Plantas — como bordão-de-velho, estoraque, cana-da-índia, folha
de arraia, folhas de cajazeiro — são aconselhadas para banhos, em
infusão na cachaça ou no álcool, mas somente a prática dos seus
deveres, das suas obrigações pode to m ar um fiel digno da proteção
dos Voduns e dos benefícios materiais e espirituais que distribuem.
O escritor espanhol Álvaro de Las Casas, em Labareda dos Trópi­
cos, um livro de viagem, conta o episódio do seu encontro com Andresa
Maria, quando esteve na Casa das Minas, acompanhado por Tarquínio
Filho. A resposta que Andresa Maria lhe deu fixa bem o clima moral
do meio que descreve!
Suas solenidades são francas e a elas assistem o povo e as pessoas
de maior representação na sociedade de São Luís. Deve-se a esse clima,
naturalmente, o conceito que desfruta a Casa e a sua Dona. Ao tempo
da escravidão a Casa das Minas não era perseguida, nada obstante

47
a crueldade típica dos senhores e senhoras de escravos que se cele­
brizaram no Maranhão.
A maioria dos escravos que a freqüentava era composta de forros,
tendo os mesmos direitos e as mesmas obrigações diante da «Lei de
Jeje». Já na República, autoridades prepotentes pretenderam, diversas
vezes, combater as reuniões das Minas, proibir as suas festas, apurar
acusações falsas que contra ela levantavam certos inimigos. Essas auto­
ridades chegaram mesmo a promover sérios conflitos, mas tiveram de
ceder em face da reação produzida não só entre o povo como entre os
que o dirigiam.
Numa das fases mais agudas da sua existência o jornal A Tarde,
de São Luís, se bateu em favor da Casa das Minas, defendendo o
direito à reunião daquela gente, de costumes tão pitorescos e senti­
mentos religiosos tão puros, defendendo, enfim, um aspecto da tradição
maranhense.

48
C apítulo V I
A spectos com plem entares

A Casa Grande das Minas está localizada num bairro onde a po­
pulação dominante é de operários, domésticos e pescadores, notando-se-
lhes a presença em todas as festas ali realizadas e nas ocasiões em
que sobre ela pesaram ameaças policiais. A igreja do bairro, do orago
São Pantaleão, é para as práticas do culto católico; a Casa das Minas
é para as da religião mina-jeje.
Referi-me, neste trabalho, à presença de Negros da nação mina
na Amazônia. Para as selvas e campos dessa região vieram da África,
diretamente, ou do Maranhão e de outros pontos do Brasil, Negros
de diferentes nações.
Num outro trabalho, a respeito do elemento negro na Ilha do Ma­
rajó, Estado do Pará, cito as seguintes: Angola, Benguela, Mandinga,
Mina, Mahua, Caçange, Congo, Bijogó, Carabá, Lalor, Cambinda, Pa-
bana, Moçambique, Malhi ou Mahis, Guiné.
Esses Negros trabalharam ali às ordens dos mercedários e de
outras comunidades religiosas, bem assim, posteriormente, às dos «con­
templados» que, na subdivisão da riqueza agropastoril da Ilha, subs­
tituíram aqueles, de onde procede a pretensa aristocracia m arajoara
que o romancista Dalcídio Jurandyr retratou admiravelmente.
Negros fugidos dessa Ilha, como de outros centros de lavoura de
açúcar e de pastoreio, chegaram a formar, noutros pontos do Pará e
do Amazonas, importantes quilombos ou mocambos que, ainda no século
passado, eram apontados por viajantes como o casal Coudreau, no Trom-
betas e no Tapajós, e ainda atualmente têm descendentes no Rio Andi-
rá, senão vestígios materiais de sua passagem no alto Rio Urubu,
onde estive em outubro deste ano (1942).
Examinando as «descrições dos escravos» feitas nos inventários
existentes no Cartório de Cachoeira da Ilha de Marajó, encontrei entre
outras, na de 1854, de Vasco dos Santos Figueiredo, a seguinte: «Um
preto de nome José de Nação Mina, idade 60 anos, vendido a José
da Silva por 120$000».
Encontrei também referências a Malhis ou Mahis. Tratar-se-ia,
simplesmente, de Negros minas, de Negros mina-mahis ou mina-malhis?
Algumas «velhas» da Casa das Minas morreram em idade avan­
çada. Lá moraram, também, inúmeras criaturas, mulheres principal­
mente, que levaram longa existência. Eram negras puras algumas,
outras mulatas e caboclas, ali exercendo atividades domésticas.

49
A figura de negra mais interessante da Casa, depois da de Andresa
Maria, neste momento, é a Mãe Preta (ver Caderno Iconográfico n. 11) ;
já tem mais de setenta janeiros e ainda se move com certo desemba­
raço, embora tenha perdido uma das vistas. Anda sempre apoiada a
uma bengala e pode ser vista à entrada principal da Casa, às pri­
meiras e às últimas horas do dia, muito bem posta na sua roupa
lavada. Foi cozinheira de mão cheia, se não me engano, dos Costa
Rodrigues e de Tayer Frazão. É, porém, sadia, traindo no físico um
vigor extraordinário. A cabeça, já bastante encanecida, se lhe mostra
entre ombros fortes, ligeiramente abaulados. Moça, ela deveria ter sido
tão vigorosa como Andresa Maria. Ainda se conserva relativamente
lúcida.
A gente da Casa das Minas — cujas relações sociais e religiosas
com a da Casa de Nagô, existente no mesmo bairro de S. Pantaleão,
são cordialíssimas — não freqüenta outros terreiros de São Luís e, se
se ausenta do Maranhão, evita sempre aqueles que não se prendam
ao da Casa Grande de Mãe Andresa. Freqüenta, entretanto, sessões
espíritas.
A rivalidade entre os da Casa das Minas e as de outros terreiros
de São Luís é, entretanto, exclusivamente alimentada pelo interesse e
pela inveja das «mães» destes últimos. A gente da Casa das Minas,
pacífica e disciplinada, retraindo-se, evita, assim, choques e intrigas.
Na hagiologia mina-jeje vimos que aparecem alguns «Santos» do
culto nagô. Lôcô ou Loko, Toi Avérêquête, Nanabiocô, entre os Voduns
que baixam na Casa das Minas ou se incorporam nas suas Noviches,
também têm as mesmas relações com as forças naturais que são apon­
tadas na África, por exemplo, (Frobenius), e no Brasil (Nina Ro­
drigues e A rthur Ramos).
Observa-se, além do exposto — e isso é igualmente curioso —, que
Voduns como Doçu e Apégê tenham ligado ao seu nome as palavras
pé e vô, para os distinguir de outros Voduns, como entre os Guerzés
se distinguem os nomes das crianças. Tais palavras, pé e vô, são, na­
turalmente, sobrenomes relacionados com a família ou com o clã a
que Doçu ou Apégê pertenciam.
Os irmãos e irmãs, filhos e filhas da Casa das Minas, saindo do
Maranhão, não abandonam as suas práticas nem se entibiam nas suas
crenças. E, freqüentemente, estão mandando contribuições, em dinheiro
ou gêneros, necessários à vitalidade do culto, à animação das festas.
As ligações desses fiéis com a Casa Grande podem estender-se
através da mais demorada ausência com a mesma intensidade. E,
quando se radicam à te rra estranha, fundam núcleos mina-jejes para
congregarem os conterrâneos e os crentes nas leis dos Voduns. Esses
núcleos, porém, aos poucos vão perdendo as características religiosas e
os aspectos sociais que são assinalados na Casa Grande.

60
Alguns desses núcleos foram fundados na Amazônia; no Pará,
principalmente. Assisti a uma festa em Casa de Mãe Lu, em Belém,
lá registrando sobrevivências importantíssimas do culto.
Chocou-me, contudo, entre «as filhas-de-santo», a presença de um
bailarino negro que as conduzia ao longo das danças e tirava «pontos»,
parecendo-me isso uma inovação ou sobrevivência de outro culto
africano.
Também no Rio de Janeiro, em casa de Chica Baiana, vi um
Nijinski negro bailando com tal expressão e tal simbolismo, que hei de,
sempre, lhe recordar a figura, principalmente porque, numa das suas
danças, com um punhado de cinza à palma das mãos, a ia soprando
às portas e às janelas, para «fechar os caminhos» contra inimigos, a
polícia, sobretudo. . .
Esse Negro de Belém era um extraordinário bailarino, chegando
a dar-me a impressão daquela «realização de uma alma na descarga
de uma faísca», tão admiravelmente fixada por Claudel. Era, igual­
mente, extraordinário no tira r os «pontos» sendo um dos tipos mais
populares dos festejos sanjuaninos do «boi-bumbá». Mas a inovação
foi chocante, porque nunca vi nenhum homem dançar em Casa de
Andresa Maria.
A propósito da extensão do culto mina-jeje por vários centros do
Amazonas, tem a palavra o jovem acadêmico de direito Geraldo Pi­
nheiro, de acordo com a comunicação ao fim deste trabalho, e as fo­
tografias que me foram oferecidas por J. Mendes, do Maranhão como eu.
Para que se mantenha a unidade sócio-religiosa da Casa das Minas,
todos os seus filhos e filhas têm «obrigações». Contribuem indistin-
tamente de acordo com as suas posses, para a vida material e para a
vida espiritual do grupo. As festas, as solenidades, as cerimônias de­
pendem de auxílios, de contribuições, de dádivas. A generosidade do
povo se incumbe do resto.
Na Casa Grande é considerável o número de peças de folclore
musical que ainda não foram recolhidas, entre nós, pelos estudiosos
da música negra. Além dos diversos toques de runs, gôs e ogã, há a
considerar-se o número, a variedade, a beleza dos pontos, que os Voduns
cantam ou os que são cantados, em coro, pela Nochê e pelas Noviches.
Um pesquisador português — de mérito indiscutível, já se vê —,
Edmundo Corrêa Lopes, indo a São Luís, depois de longa visita à
África, à Casa da Mina, a Ajudá, especialmente, freqüentou a Casa
das Minas e de lá levou para Portugal um material precioso, que,
parece, continua inédito. Andresa Maria, porém, não lhe confiou tudo
o que sabia nem o deixou entrar no pégi.
Recolhi vários trechos desses pontos, dos cantos e cantigas, mas
só num trabalho especial registrei as letras completas e as músicas,
todas de saborosa originalidade, tais as que aqui ofereço aos estudio­
sos do Negro.
A Casa das Minas tem um corpo de músicos ou, melhor, de toca­
dores de runs e de gôs, para as suas solenidades, ligados ao culto e
às práticas tributadas aos Voduns. Só uma figura feminina, entretanto,
aparece entre eles: a da tocadora de ogã ou ferro.
Na festa de pagamento esses tocadores de runs e de gôs e a toca­
dora de ogã são muito aplaudidos e obsequiados não só pela gente da
Casa das Minas como pelos Voduns.
Outros músicos, fazendo parte dos conjuntos mais populares de
São Luís, emprestam concurso às solenidades ali realizadas, mas as
suas composições — entre as quais podem ser apontadas as valsas, os
foxes, as rumbas, os sambas — são executadas nos intervalos das
danças e dos cantos mina-jejes em que predominam as vozes dos ins­
trumentos negros.
As pedras, que no pégi da Casa Grande de São Luís represen­
tam divindades naturais da teogonia africana, são meteoritos colhidos
nos leitos dos rios e das fontes da terra maranhense, mas outras vieram
do Continente Negro. São absolutamente nítidas as suas relações com
divindades aquáticas e com divindades celestes, donas e donos do raio,
do trovão e dos mares.
Como são objetos que lhes pertencem (a eles Voduns) guardam
em sua estrutura a força, o poder mágico, sobrenatural das próprias
divindades. Não são, porém, adoradas como deuses ou deusas. Cerca­
das de piedoso cuidado, aparecendo em cerimônias especiais, elas, con­
tudo, não são fetiches centralizando a fé e o zelo de adoradores.
Encontrei entre índios do Vale Amazônico as relações de certas
divindades terrestres, aquáticas e celestes como pedras, meteoritos ou
simples seixos rolados, lajes das cachoeiras e blocos dispersos à flor
da terra, dentro da selva ou em pleno campo.
Os índios Maué do Areaú, no Rio Andirá, Amazonas, não admitem
que estranhos se aproximem das pedras ali encontradas: elas estão
ligadas à vida social e religiosa desses índios, conforme as lendas que
recolhi, mas não são adoradas nem cultuadas como divindades.
Escrevi que, após a cerimônia da imolação de um chibarro pro-
piciatório no pégi da Casa das Minas, a sua pele era dada para ser
posta na Caixa do Espírito Santo ou, simplesmente, Divino. Cabe aqui
um esclarecimento.
Em todo o País o elemento afro-brasileiro sempre esteve ligado
às irmandades católicas: de S. Benedito, de N. S. da Conceição, do
Divino Espírito Santo, de N. S. do Rosário, de S. Lázaro. Fazendo
parte dessas irmandades não fugiam nem fogem, decerto, os da Casa
de Andresa Maria, a essa tradição.
Acredito que os sentimentos religiosos dos Negros os levassem a
isso, concorrendo eles para os sucessos das suas festas e para as rea­
lizações de obras de vulto — igrejas, conventos, seminários — como
aconteceu em Minas Gerais, com o concurso do gênio do Aleijadinho,
e na Bahia, Maranhão e Pará, com o de outros gênios, infelizmente
obscuros.
Por ocasião da festa católica do Divino, na Casa das Minas, tam ­
bém a comemoram, concorrendo os fiéis do culto mina-jeje tanto para
aquela como para esta. Não quero ver, entretanto, nessa tradição,
apenas o domínio daqueles sentimentos religiosos sobre os instintos
e concepções sociais e políticas do Negro.
A esse é que atribuo a força que os congrega em associações, em
irmandades católicas, de extraordinária influência social e política, não
raro, no meio em que vivem. Não podendo impor aos brancos os deuses
da sua mítica e criar, em roda do seu Quêrêbétan, o prestígio social
e político que deveria aqui desfrutar, como necessariamente o des­
frutaria no Continente, os Negros entravam para as associações e
irmandades católicas; em pouco tempo, iam absorvendo a direção, o
mando e as vantagens que disso resultam.
Essa oferenda da pele do chibarro e outras mais estão ligadas a
uma tradição secular, menos de caráter religioso do que social e político.
Apreciando-se, em conjunto ou isoladamente, as figuras da teo-
gonia africana aqui enumeradas páginas atrás, verifica-se que os
Minas jejes do Quêrêbétan de São Luís do Maranhão não as assimi­
lam aos santos do catolicismo de modo a podermos falar, rigorosa­
mente, em sincretismo religioso e simbiose espiritual.
Não me parece, por isso, que o culto mina-jeje, na Ilha em apreço,
se acomode ao quadro desse fenômeno levantado, entre nós, pelo Prof.
A rthur Ramos, mas já, inegavelmente, esboçado por Nina Rodrigues.
Outro tanto já se não pode afirm ar em relação às divindades de
tribos africanas, tais a Nagô e a Tapa, pois aparecem como Voduns
entre as do culto mina-jeje. Pessoas familiarizadas com o culto jeje-
nagô logo identificarão alguns dos seus mais importantes Orixás entre
os Voduns mina-jejes da Ilha de São Luís.
Badé, por exemplo, entre as divindades maiores e menores do cultc
mina-jeje, é um desses Orixás: Badé é Xangô. Ao lado dele aparecem
Lôcô ou Loko ou Irôco e também Dadá-Hô ou Dadá-Hu ou Dadá-ruçii
ou Dadá-ussu (Pai de Todos). Nenhuma divindade cabocla se reuniu
mercê do aludido fenômeno, àquelas que achei na Casa Grande da.1'
Minas.
Quanto à influência muçulmi só a presença daquele livro no pégi
do qual me deram notícias, a denuncia, à parte a técnica para imola-
ção de animais propiciatórios.
E quanto ao espiritismo — embora não proibindo aos seus filhos
e filhas que o freqüentem — sabe-se que as suas Noviches não ncTo
ditam que os seus Voduns sejam «espíritos». Quando Andresa Marh
se refere aos «espíritos» das Tôbôssis ou Meninas é claro que não oí
considera como os discípulos de Kardec ou de Léon Denis ou d<
Morselli consideram os seus «irmãozinhos». Esses espíritos são comi

51
os da mitologia grega ou da romana, da escandinava ou da germânica,
da tupi ou da jê.
Não se pode falar, portanto, em identificações de «Santos» ou «Pro­
tetores» ou «Senhoras» ou de Voduns mina-jejes com santos católicos,
com espíritos ou com «caboclos» e «bichos do fundo».
E isso é tanto de estranhar quando nos lembramos que Negros
e índios, no Maranhão, sempre se reuniram em quilombos ou em insur­
reições tremendas como a de S. Tomé, em S. José do Maranhão, em
1772, interpenetrando-se, desse modo, ambas as culturas, quer do ponto
de vista material, quer do ponto de vista religioso.
Para a gente da Casa das Minas as suas divindades pertencem
exclusiva e essencialmente à teogonia africana, podendo vir da con­
cepção religiosa deste ou daquele povo do Continente, mas nunca do
seio da religião católica, do mundo dos pajés amazônicos ou dos «cír­
culos» e «tendas» dos médiuns espíritas.
Não sei, porém, se o Prof. A rthur Ramos não teria elementos
para encontrar, examinando as sobrevivências do culto mina-jeje em
São Luís, a fórmula mina-jeje-nagô-muçulmi que se me apresentou
ao fim das minhas investigações.
Viu-se como as Noviches e os Voduns se adornam. Trajos e enfei­
tes dão às figuras que se movem nas festas da Casa Grande das
Minas um pitoresco de linhas, de cores e de movimentos caracteristi-
camente africanos. As figuras que ilustram este depoimento oferecem
apreciáveis minúcias. Chamam a atenção os colares, as voltas, os tran-
celins, os brincos, as pulseiras, os anéis, os broches.
Alguns desses adornos são criações de artistas coloniais, brasileiros
e portugueses, havendo sido confeccionados com metais da região, e
outros são provenientes até do Continente Africano, representando
documentos da capacidade artística do Negro. Na sua maioria eles se
relacionam com a importância social dos indivíduos que compõem o
grupo, mas, para a gente da Casa das Minas, os mais importantes
são os que se relacionam com a sua religião: os rosários.
Os outros adornos podem ser substituídos, trocados, dados ou ven­
didos; os rosários, porém, pertencem ao indivíduo e este o venera e
ciosamente o conserva.
Esses rosários são hoje «preparados» por Andresa Maria, na Casa
Grande, não sendo artigo de comércio. São confeccionados com contas
da Bahia, do Rio e, também, do «lado de lá», chamando-se em língua
africana rongêve e envilacan, havendo umas que se denominam «Cabo
Verde». Nessas contas as cores preferidas são o encarnado, o azul, o
verde, o amarelo, o branco. Os rosários têm tantas pernas quanto for
o desejo do fiel.
E, na sua composição, entram búzios que em mina-jeje se chamam
aquê ou acoê, significando «dinheiro», e os célebres cauris, outras con­
chas que ali, também, tinham o valor de moedas e ainda hoje entram

54
nos adornos, nos penteados e tangas dos homens e das mulheres
indígenas.
Tais adornos se relacionam com os Voduns deste ou daquele irmão
ou irmã, filho ou filha da Casa Grande. As cores de suas contas são
as que os Voduns preferem. Num rosário, que minha Mãe mandou
«preparar» para meu uso, predominavam as cores apreciadas por Badé
— meu «Protetor», meu «Santo» —, principalmente o azul. A esses
rosários, que na sua forma primitiva só tinham contas e búzios, juntam,
presentemente, medalhinhas de santos católicos, figas, contas de âmbar,
pedaços de coral.
Nos dias de festa esses rosários são exibidos pelas Noviches, mas,
noutros dias, as guardam no colo, ocultos à curiosidade.
«Não os usam, explicou-me Andresa Maria, porque raparigas
(prostitutas) levianas e moças vaidosas, para se dizerem da Casa das
Minas, arvoram colares, quase semelhantes, das Casas de Quarto e
Novecentos».
Esses rosários da «Casa das Minas» têm virtudes extraordinárias,
ficando o seu dono ou dona ao abrigo de malefícios e de todas as
calamidades.
Disse, ainda há pouco, que, entre os objetos utilizados como adornos
pela gente da Casa das Minas, aparece o cauri — um molusco gaste-
rópodo, da família dos Ciprinídeos, que os conquiologistas classificam
de Ciprea moneta L., apontando-lhe mais de cento e vinte espécies e
oitenta fósseis, com larga distribuição pelo Continente Africano, ocea­
nos Índico e Pacífico e, principalmente, pelas Ilhas Maldivas.
Na África e na índia Oriental a concha desse molusco teve o
emprego de moeda divisionária, considerando-se como ricos, segundo
Enrique Rioja, aqueles que logravam reunir trin ta milhões de cauris.
À história do tráfico de escravos, na Costa Oriental da África, estavam,
igualmente, presos os cauris, segundo o mesmo autor. E não era menor
o valor deles como adornos de penteados, de pulseiras, de cintos e de
tangas.
Serpa Pinto viu, na sua viagem à África, ao pescoço dos Negros,
colares de conchas denominadas «viongua», e, sobre penteados capri­
chosos, os célebres cauris. E os tenentes H. Capello e R. Ivens dizem
de Loanda que tinha uma ilha importante pela colheita de cauris ou
zimbo ou búzio, lá vivendo, ao tempo da grandeza do Congo, um lugar-
tenente do rei, incumbido de apanhar esses moluscos. Na Casa das
Minas vamos encontrar Noviches feitas que usam, por isso, pulseiras
de cauris, exibindo-os, os fiéis do culto, igualmente suspensos aos cé­
lebres rosários.
Outra concha é conhecida pelo nome de aquê ou acoê entre a gente
da Casa de Andresa Maria, dizendo-me ela que a palavra é mina-jeje.
Lá são correntes as expressões: acoê matin = não tem dinheiro;
acoê-tin = tem dinheiro. Essa concha seria o mesmo cauri do Congo,

55
com valor de moeda divisionária, simplesmente, ou teria outro valor
qualquer, mítico ou sexual? Sexual, também? Sim, porque, a meu ver,
a importância desses cauris ou desses acoês não se circunscreve somente
à vida econômica, social e religiosa dos Negros, quer do grupo sudanês,
quer do grupo banto.
Basta pensar-se que, se é bem conhecido o seu emprego nas adivi­
nhações das sibilas negras de outros povos do Continente e dos seus
descendentes, entre nós, pouco se tem considerado a sua importância
na vida sexual do Negro. Montandon, estudando as bainhas de pênis e
os cache-sexe dos povos primitivos, aponta conchas na Oceania, na
Nova Guiné e na América do Sul, mas sem lhes reconhecer nenhum
valor simbólico ou mítico dentro dos aspectos da vida sexual deste
ou daquele.
Examinando-se, entretanto, as conchas citadas, principalmente os
cauris, verificamos que eles têm a conformação ovóide, mas os bordos
da sua abertura são dentados e nodosos, lembrando a abertura de
um sexo de mulher impúbere, o que, evidentemente, a ligou, outrora,
por uma imagem clássica de poesia, ao nascimento de Vênus.
Posteriormente, eu o acredito, ainda pelas características dessas
conchas, com os bordos da abertura dentados ou nodosos, os conquio-
logistas foram levados a dar ao molusco o nome de Kypris como os
gregos conheciam, também, aquela deusa, fixando na classificação
Ciprea moneta L., dois aspectos: o econômico e o sexual.
Outra concha, utilizada pelos índios da América do Norte como
moeda — o Wampum — mereceu dos mesmos conquiologistas a de­
nominação de Venus mercenário,. Entre índios da América do Sul essas
conchas servem como cache-sexe, ou adornos, ou moedas, havendo o
Padre Montoya registrado os vocábulos itã (nome genérico da concha
dos moluscos) e rambá ou arambá (nome de todo o órgão sexual da
mulher). Quod continet membrum mulieris.
Não será, pois, de estranhar que entre os Negros minas, como
entre outros povos primitivos da África e da América, estivessem os
acoês e os cauris ligados à simbologia sexual, máxime quando nos lem­
bramos de certas cerimônias e práticas comuns aos cultos africanos,
nos quais a mulher, ora é violada brutalmente, ora exaltada pela sua
condição de inocência e pureza.
Tópicos deste aspecto complementar foram tomados ao Ensaio
de Sexologia Indígena, que tenho em preparo, com a evidente preocupa­
ção de pôr em foco uma questão a mais entre outras que, possivel­
mente, este depoimento suscitará.
Referindo-me aos «contrabandos», que «assentaram» a Casa das
Minas, relacionei-os, em parte.
E nenhuma referência externei acerca da confusão que, no campo
dos estudos afro-brasileiros, caracteriza as investigações de historia­
dores e de naturalistas de roda às tribos africanas introduzidas no
õ6
Brasil e noutros países das Américas pelos seus colonizadores. É que
isso me pareceu absolutamente dispensável, porque, com indiscutível
autoridade, o Prof. A rthur Ramos já o fizera em O Negro Brasileiro.
Mas não posso fugir aqui ao comentário de um dos aspectos dessa
confusão: o que se relaciona com as línguas dessas tribos. Claro está
que reconheço não ser este o ensejo para me alargar, exaustivamente,
na apreciação desse aspecto, examinando, uma a uma, todas as tribos
relacionadas. Posso, entretanto, limitar-me aos Negros minas, tão em
evidência neste depoimento como na própria história da nossa formação.
A esses Negros minas dão certos autores, como idioma, o ioruba;
e o mesmo o fazem em relação aos Negros nagôs. Nélson de Senna,
por exemplo, fala em «outra língua africana, mais rica, mais sonora
e hierática — o ioruba, dos Negros minas e nagôs, esse «polido idioma
iorubano, espécie de latim ritual, para os oficiantes e crentes da magia
negra».
Admite-se, geralmente, que a língua brasileira deve aos Negros
minas uma contribuição admirável, mas o que ainda não se definiu —
com rigorismo científico, ou ao menos com bom senso — foi a estru­
tura, a fisionomia, a ação psicológica da língua que nos deu tamanha
contribuição.
Daí o falar-se, também, no idioma pôpô, que esses Negros minas
utilizam. E no nagô e no jeje, igualmente. Mas falariam, em verdade,
o iorubano, ou o egbá ou o eubá somente? Ou cada nação mina falaria
um idioma especial, diante de estranhos, e outra entre os seus membros?
Enumeram-se os Minas, mais ou menos, assim: Minas achantis ou
Minas tshantis, Minas nagôs, Minas cavalos, Minas gás, Minas agoins,
Minas pôpôs, Minas iorubas, Minas krus. Teríamos, portanto, uma de­
zena de idiomas para uma tribo — o que foge, evidentemente, às leis
conhecidas da lingüística.
Partindo-se, apenas, como se vê, do exame de um único dos aspec­
tos dessa Babel Negra, fácil há de ser, por certo, apreender toda a
amplitude espetacular dessa confusão.
Na Casa das Minas, da Ilha de São Luís, fala-se numa «língua da
casa», numa «língua dos Voduns» e numa «língua das Tôbôssis». Ali,
a meu ver, não é menor a confusão dessas línguas.
Em todas as manifestações do culto mina-jeje, entre outros vege­
tais aparecem a cajazeira ou cajá ou taperebá e o estoraqueiro ou
beijoeiro ou benjoeiro. A cajazeira é uma árvore frondosa, de vinte e
cinco a mais metros de altura, do gênero Spondias e da família das
Anacardiáceas, cujo habitat se estende, no Brasil, do Amazonas ao
Rio de Janeiro.
Três das suas espécies são geralmente conhecidas e apreciadas,
mas uma delas, a Spondia macrocarpa Engl., ou cajá-açu, é das mais
interessantes do ponto de vista da religião do Negro e da sua tradição.
Quando se sabe que a cajazeira é cultivada na Bahia «para som-

57
brear cacaueiros e também para quebra-vento», admira-se não haver
ela sido apontada por nenhum etnólogo no estudo da economia e da
religião africana ali, pois na África, no Congo e em Angola, onde é
conhecida pelo nome de munguengue, sua importância é extraordinária.
Pio Corrêa, em seu precioso dicionário das plantas úteis do Brasil,
referindo-se a essa espécie vegetal, escreve: «A casca dos indivíduos
adultos torna-se tão grossa que dela é possível fazer pequenos objetos,
tais como amuletos, imagens, boquilhas para cigarros; registra-se
mesmo o fato de existirem (Santo Amaro, Bahia) imagem e ornatos
de capela com este material».
E esclarece m ais: «Merecem divulgação algumas superstições:
uma delas peculiar a várias tribos aborígines, consiste em submeterem-
se os enfermos de feridas ou úlceras à ação da fumaça que se des­
prende dos caroços deste fruto quando lançados sobre brasas e dos
quais suportam o mais intenso calor; outra, dos indígenas do Congo,
que acreditam poder curar os paralíticos deitando-os sobre espessa ca­
mada de folhas previamente maceradas em água».
É a cajazeira uma árvore sagrada para a gente da Casa das Minas
e as suas propriedades não se limitam apenas às medicinais; a sua
casca, é fato, serve para curar certas moléstias do aparelho digestivo,
mas as folhas, afirmam, têm virtudes mágicas e purificadoras.
Por isso são essas folhas espalhadas pelo chão do pégi, na hora
do sacrifício dos animais propiciatórios, e, misturadas com as do esto-
raque ou estoraqueiro (denominação arbitrária do beijoeiro ou benjoei-
ro) e com as de outros vegetais, servem para banhos-de-sorte, etc., etc.
O valor religioso dessa árvore, como se verifica, ainda continua a ser
respeitado pelas Negras da Casa das Minas — pois a ela, decerto, não
eram indiferentes os «contrabandos» que a «assentaram».
O exemplar existente na Casa das Minas é velhíssimo, mas todos
os anos se cobre de folhas numerosas e excelentes frutos. É indiscutível,
portanto, a posição dessa árvore na fitolatria mina-jeje. Sabe-se, ge­
ralmente, que os nossos aborígines a conheciam com o nome de ibame-
tara ou ybametara, «pau de fazer enfeite de beiço», adianta Pio Corrêa;
entretanto, só os Negros puros e os seus descendentes a poderiam situar
na sua vida religiosa, como vimos.
Outra árvore, de importância religiosa, que aparece ao lado da
cajazeira, é o estoraqueiro ou beijoeiro da família das Estricáceas,
conhecida pelos botânicos sob a denominação de Panphilia aurea M.
A sua distribuição é larga, em nosso País, podendo-se apontá-la no
Maranhão, Bahia e Minas,
Essa árvore produz uma resina odorífera que aparece no comércio
e se assemelha ao estoraque da Europa e da Ásia, na opinião do autor
acima citado.
Quanto ao cróton — planta decorativa que aparece no terreiro
da Casa das Minas — é ele uma Euforbiácea, sendo o seu papel orna­
mental, decorativo e, também, sagrado. O Codiaeum variegatum Bhrnie
58
tem o nome universal de cróton, mas não pertence a tal gênero,
ensina-o Pio Corrêa. Na índia é planta sagrada e serve para orna­
mentar monumentos e sepulcros de heróis. Em nosso País ela é fre­
qüente nos cemitérios e nos jardins públicos, sendo, por isso, talvez,
, que não a apreciem muito para ornamentar habitações, não obstante
a variedade das suas formas e o colorido das suas folhas.
O fogo, a luz, conforme observei na Casa das Minas, e na casa das
minhas tias, obrigam a esconjuros, quando acontece que uma pessoa
passe com fogareiros, candeeiros, velas por detrás de outra. Voltando-se
num gesto brusco, para o lado de quem os conduz, repete-se: agô agô.
Outros dizem: agô agô meu Pai, compreendendo-se que estão pedindo
proteção ao seu Vodun.
Verifica-se na Casa das Minas que a ética não deita apenas raízes
no grupo social, mas principalmente na religião. Os Voduns condenam
o deboche, a mentira, a deslealdade.
Entre os do culto mina-jeje não há Voduns amorais, e portanto
os seus adoradores não podem ser amorais. Esse fato contraria a afir­
mativa de Westermann, que se generalizou nestes termos: «Não existe
laço entre a vida ética e a religião».
Na Casa das Minas as normas a que se submetem os seus com­
ponentes são as mesmas que dominam no mundo dos Voduns.
>1

59
i

>

)
C om unicação de G eraldo P inh eiro

Estou procedendo a pesquisas nos terreiros de sobrevivências afri­


canas em Manaus. À primeira vista isto parecerá estranho, tendo-se
em consideração a relativa pequenez do coeficiente negro na população
amazônica. No Estado do Amazonas, ao tempo da escravatura, a sua
penetração foi muito reduzida; salientou-se, porém, com o surto mi­
gratório da borracha. Dessa época, relativamente recente, data, indis­
cutivelmente, um maior ajuntamento em Manaus e a irradiação pelas
bacias do Madeira, Purus, Juruá, seringais do Solimões e Acre.
Aqui em nossos subúrbios — situações características das popula­
ções pobres — os Negros organizaram os seus terreiros a fim de
cumprirem suas obrigações. Tais centros são comumente nomeados pela
designação de batuque e de tambor. Como era de esperar-se, o elemen­
to maranhense sobressaiu-se, permitindo-nos verificar agora, nos quatro
terreiros em Manaus, sem contar os que já se extinguiram, dois que
são dirigidos por Donas nascidas e feitas no Maranhão. Os dois outros,
de realçada dissolução e arremedo, não oferecem tão grande interesse.
Nos meus primeiros contatos com esses terreiros, de tradição ma­
ranhense, verifiquei logo uma grande lacuna na bibliografia de assun­
tos afro-brasileiros pelo muito pouco ou quase nada que possuímos
relativo à mítica e sobrevivências africanas no Maranhão. E não acha­
va explicação para este quase desprezo no considerar tão rico material
que foge, de muito, a certas concepções etno-religiosas do Negro baiano
e do nordeste. Conjeturava isto, quando em frente dos elementos de
difícil identificação, mas que excluíam, todavia, qualquer hipótese de
pertencerem ao mundo mítico amazônico, de base indígena. A Casa
das Minas e, principalmente, a de Nagô, da rua das Crioulas, entre
outras, eram o centro de dispersão destes.
Mãe Quintina, feita em Casa de Nagô, substituiu ultimamente Mão
Joana, maranhense também, de um terreiro de Cabinda, portadora de
um nome tradicional em Manaus, conceituada por muitos que lhe co­
nheciam, de perto, as excelências de uma alma boa e abnegada, mas
que enchia de terror, por sua vez, a nós outros, quando crianças, ao
ouvir, nas noites fechadas, o som longínquo e soturno dos tambores.
Pelo que tenho apreciado e recolhido dessa gente, oriunda dos
centros maranhenses, quer da Casa das Minas, evocada com um certo
respeito, quer da Casa de Nagô como na do Caminho Grande, onde se
fez Maria Rita, outra dona de terreiro em Manaus, depreendi que o
sincretismo mina-jeje iorubano os dominava. E não era sem razão
alguma que ouvia Margarida cantar:
01
Terra de Mina-nagô
Terra de Mina-nagô
Narueira é de Mina-nagô.

Assim as pretas e as donas de terreiro, que usufruem de especial


autoridade nos nossos núcleos suburbanos, impuseram certas normas
e certos ritos, de fundo africano, enquanto, por força da aculturação,
eram obrigadas, mesmo a contragosto, a aceitar, do elemento nativo,
crendices oriundas de uma outra mítica.
Pretas velhas se insurgem sempre contra tal estado, deixando per­
ceber, no esforço, a nota verdadeira de suas liturgias, cantando, ao
toque dos tambores, certas evocações em língua:

Xapanan he he
Xapanan he oh ah!
A tiricô Badé oh!
Xapanan he oh ah!

Diga-se, a bem da verdade, que o desaparecimento desses batu­


ques ou, pelo menos, a sua transformação já se anuncia para um
futuro muito próximo. O elemento nativo haverá de vencer. Já pre­
senciei mesmo no terreiro de Ifigênia o Negro Marcos, curador, agi­
tando convulso o seu maracá, em uma sessão de cura, tal qual o
utilizavam certos pajés tupis, excetuando apenas, na lenga-lenga, algu­
mas palavras com referência aos Orixás.
Mas não só nos batuques se verifica a influência negra em Manaus.
Apesar de já considerado coeficiente reduzido, o Negro influiu também
no folclore da vida citadina e não só essas influências como notícias
históricas elucidativas da penetração e da atuação de Negros e mestiços
ilustres na vida moral e intelectual da cidade estão sendo consideradas
por mim com certo carinho, a fim de abranger num estudo possivel­
mente completo — notas históricas e etnológicas — a influência negra
no Amazonas, tema que a muitos, como afirmei no princípio desta
comunicação, parecerá estranho.
Geraldo Pinheiro
Manaus, 21 de dezembro de 1942

62
N otas com plem entares

Merece consideração o motivo por que dei o título de A Casa dai


Minas ao conjunto de observações apresentadas nesta obra, cujo lança­
mento devo ao Prof. Dr. A rthur Ramos, discípulo de Nina Rodrigues
como o foram Afrânio Peixoto e Ulisses Pernambuco, mais tantos outros
a quem muito devem os estudiosos atuais dos problemas afro-brasileiros
principalmente de etnologia religiosa.
Seu aparecimento iniciou as publicações da Sociedade Brasileira
de Antropologia e de Etnologia, ligada à Faculdade Nacional de Fi­
losofia, com sede no Rio de Janeiro.
E esse fato data de março de 1947.
Aquela casa, baixa mas ampla, de estilo colonial, à Rua Senador
Costa Rodrigues n9 857, em São Luís, Estado do Maranhão — desde
o seu assentamento, não de todo histórica e satisfatoriamente precisado
—, ganhou a denominação de Casa das Minas, pois ali se reuniam, em
festas profanas e em religiosas, dentro das linhas de um calendário
religioso, negras escravas, legitimamente africanas, e seus descendentes,
já forras umas antes e, depois, livres outras, mercê da Abolição.
E um bom número de escravos, casando-se ou amasiando-se, consi­
derados filhos e filhas dessa Casa, passaram a habitá-la, porém sem
que ali se pudesse apontar, sociologicamente falando, uma típica, em­
bora não densa, comunidade negra.
Que os escravos, legitimamente africanos (insisto), haviam sido
desmembrados de verdadeiras nações, nos limites geográficos e cul­
turais do Continente Africano, não há por que duvidar-se.
E a pátria deles — os Minas jejes — era o chamado Reino do
Daomé.1
1. Segundo se lê, n a a n to lo g ia in titu la d a T h e A fr ic a n P a st, p. 19, da a u to ria de B asil Davidaon,
o a n tig o R eino do D aom é — tra n sfo rm a d o , p o sterio rm en te, n u m a possessão d a F r a n ç a e. jã
n a a tu a lid ad e , co n stitu íd o n u m a das m ais im p o rta n te s R epúblicas do C o n tin e n te A frica n o
teve a origem seg u in te: “ To th e so u th w ard th e peoples of th e fo rest had b u ilt new States and
g ov ern m en ts, such as those of A sh a n ti a n d D ahom ey, b u t these, m ore o fte n th a n not, w ero
/inked fa ta lly to th e oversea tra d e in slaves, a com m erce w hich sowed disorder w herever it
touched. In E a s t Á frica , m eanw hile, those Iro n A g e cu ltu re s w hich h a d produced settlem ent»
such a s E n g a ru k a had su ffe re d d isastro u s in v asio n s by nom ads from th e n o rth . T h e P o rtu g u esa
had w recked th e In d ia n O cean tra d e on w hich th e Coastal c ities had b u ilt th e ir w ealth and
w elfare. T he B oers w ere p u sh in g u p fro m th e Cape o f Good H ope. T hese set in m otion o lhar
pressu res, notab ly th e n o rth w a rd s-m o v in g m ig ra tio n s o f th e N g u n i and Zulu peoples who rulned
the Iro n A ge s ta te s o f R hodesia an d opened th e w ay fo r la te r E u ro p ea n conqueBt. Even in the
C en tra l Á frica , w here stable g o v ern m en t g en erally co n tinued to p revail, th e A rab-Sw nhili «lave
tra d e fro m th e E a s t C oast had gone f a r to d is ru p t tra d itio n a l secu rity a n d peace. B ut the
in v a d e rs o f th e n in e te en th c en tu ry , as th e records show, understood little o r n o th in g of nll th ls " .
A tra d u ç ã o do trech o acim a é a seg u in te:

63
No entanto, como aconteeeu com outros escravos, pertencentes a
várias nações, levados à Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, naturais
daquela área geográfica, os Jejes receberam o apelido de Minas (daí
Minas jejes), enfim quer procedessem de Al Mina ou El M ina2 «que
“ A o sul, os povos d a flo re sta e rig ira m novos E sta d o s e governos, ta is como os de A sh a n ti e
D ahom é, po rém esses, m ais vezes do que m enos, estav am ligados fa ta lm e n te ao com ércio u ltr a ­
m a rin o de escravos, um com ércio que sem eava desordens onde se estabelecia. N a Á frica O rien tal,
e n tre ta n to , as c u ltu ra s d a Id ad e do F e rro , que h av iam produzido colônias, como a de E n g a ru k a ,
s o fre ra m d esastro sas invasões de nôm ades do N o rte . Os p o rtu g u eses haviam destru íd o o com ércio
do O ceano Índico, no qual a s cidades co steiras c o n stru íra m riquezas e felicidade. Os B oers haviam
investido do Cabo da B oa E s p e ra n ç a . E ste s h av iam iniciado um m ovim ento de o u tra s pressões,
n otavelm en te de m ig raçõ es de povos N g u n i e Zulu, que d e stru íra m a Idade de F e rro d a R odésia
e a b rira m c am in h o p a r a a co n q u ista, p o r últim o, dos europeus. M esmo n a Á fric a C en tral, onde
governo s estáveis, g e ra lm e n te, co n tin u a v am a prev alecer, o com ércio de escravos Á rabe-Sw ahili,
d a C osta E ste, h a v ia re b e n ta d o a tra d ic io n a l s e g u ra n ç a e paz. P o rém os invasores do século
X IX , como o in fo rm e m o stra , pouco ou n en h u m conhecim ento to m a ra m de tudo isso” .
N o L a n d e rlex ik o n — W eltatlas (publicado, em 1973, pelo g ru p o B erstelm ann, de B erlim , M unique
e V ie n a ) , podem se r destacados os seg u in tes elem entos in fo rm a tiv o s:
“ E sse a n tig o R eino D aomé, to rn a d o autônom o e c o n stitu íd o em R epública em 1/8/1960, te m a
s u p erfíc ie de 112.622 km 2, sendo su a c a p ita l a cidade de P o rto Novo.
S uas p rin c ip a is cidades são: C otonu, Abomé, P a ra k u e U idah.
N a c o n stitu içã o do seu povo e n tra m , em m a io r p ro p o rçã o , re p re s e n ta n te s das e tn ia s E w e e
Ioruba. N e g ro s dos g ra n d e s g ru p o s sudaneses se destacam n essa c o n stitu içã o dem ográfica.
Os p rin c ip a is p ro d u to s do seu com ércio e x p o rta d o r são : cacau, café, sem entes e óleos de
p a lm e ir a s .. . ”
D eve-se a H . B au m an n e D . W este rm a n n , e n tre ta n to , re la tiv a m e n te à s populações que acim a
são re fe rid a s — no q u e diz re sp eito à h is tó ria do D aom é e ao seu povo, à s c u ltu ra s que os
c a ra c te riz a m , em c o n fro n to com a s de o u tro s povos do C on tin en te A fric a n o — m ais esta s
info rm açõ es:
“ L a c ré a tio n du R oyaum e du D ahom ey e st celle d o n t l’on c o n n a it m ieux T histoire. A u début
du XVI® siècle, il y a v a it s u r la C ôte des Esclaves, e n tre P o rto N ovo e t P e tit Popo, les é ta ts
Savi ou W hydah (Y uida, H u éd a, Y euda F id a ) su r la Côte m êm e, e t d ’A rd a à T in té rie u r
d ’A llada, e n fin celui de P o rto Novo. E n tre 1600 e t 1625 u n e tro u p e arm é e a q u itté A llade
(A rd a ) e t s’e st avancée v e rs le N o rd ; elle a conquis la région oü se tro u v e a u jo u r’hu i Abom ey
e t qui c o n stitu e actu ellem en t le ro y au m e de D ahom ey fo n dé p a r les Fons, u n e trib u d ’Ew es.
L e p re m ie r ro i de la nouvelle d y n a stie (1825) a édifié son p a la is au-dessus du co rp s du
d e rn ie r ro i de 1’é ta t p ré c éd e n t qui v e n a it d’ê tre tu é : ce tr a i t e x p rim a it u n e c ru a u té associée
à une idée cu ltu relle e t 1’é ta t dahom éen e st re s té fidèle à ce t r a i t ju s q ’à 1’a ube de la colonisation.
Sous son g ra n d ro i A g a d ja (1708/1732) le ro y au m e a com m encé à s’éten d re, c a r A rd ra a été
conquis e t les gens de W hidah o n t é té réfo u lés ju sq u ’à la côte. P a r su ite de c ette v ic to ire su r
les é ta ts c ô tie rs qui ju sq u e-là se ré s e rv a ie n t le d ro it d ’ê tre les in te rm é d ia ire s du tr a f ic avec
les E u ro p éen s, le ro yaum e de D ahom ey se tro u v a it su r la m er, alors q u ’a u p a r a v a n t il é ta it à
1’in té rie u r, e t il a v a it accès a u x p ro d u its eu ro p éen s qui a rriv a ie n t p a r elle. Les d e rn ie rs g ra n d s
rois a v a n t la colonisation fra n ç a ise , é ta ie n t Ghezo, Glélé e t B éhanzin (ou G behanzin) —
(1818-1849); le u r ro yaum e s’é te n d a it depuis Savalou ju s q u ’à la côte e t depuis K oufo ju sq u ’à
TO uèm é à l’E s t. U n e cour b rillan te , u n e o rg a n is a tio n m ilita ire trè s sévère, des p a la is édifiès
au cours des siècles au x m u rs o rn é s de b as-reliefs de te rre ra p p e la n t les h a u ts fa its des rois,
voilà les tr a its c a ra c té ris tiq u e s de c e t a v an t-p o ste du c e n tre de c ivilisation su p é rie u re su r le
bas N ig e r d o n t nous allons p a rle r m a in te n a n t” .
É à o b ra dos au to re s acim a citad o s — in titu la d a L e s peuples e t les civilisations de V A frique
P a y o t, P a ris 1967) — que, m a is a d ia n te, re c o rre re i q u ando e n te n d e r ocu p ar-m e dos D aom eanos
e Iorubas. E stes, p ro d u to s do trá fic o de escravos, tro u x e ra m o culto dos V oduns m antido, a té
hoje, n a C asa das M in a s e n a Casa de N a g ô , situ a d as am bas em São L uís, no E stado do
M aranh ão .
E s ta é a tra d u ç ã o do te x to acim a:
“ A c ria ç ã o do R eino do D aom é é a h is tó ria que m elhor se conhece. N o início do século
X IX , h a v ia sobre a C osta dos E scravos, e n tre P o rto N ovo e o Pequeno Popo, os estados de
Savi ou W h y d ah (Y uida, H u ed a, Y ueda F id a ) sobre a C osta mesm o, e de A rd ra ao in te rio r
de A liada, e n fim o de P o rto Novo. E n tre 1600 e 1685 u m a tro p a a rm a d a deixou A liada (A rd a )
e avan ço u p a r a o n o rte, h o je Abomey, e que co n stitu i a tu a lm e n te o re in o de D aom é, fundado
pelos Fo n s, u m a trib o de Ew es. O p rim e iro re i d a no v a d in a stia (1825) edificou seu palácio
sobre o corpo do ú ltim o re i do E stad o p reced en te, re i que a c a b a ra de ser m orto; esse tra ç o
e x p rim ia u m a crueldade asso ciad a à idéia c u ltu ra l e o E stado daom eano p e rm an eceu fiel a
esse tra ç o a té à a u ro ra d a colonização. E m conseqüência dessa v itó r ia sobre os E stados
costeiros que a té e n tã o se re serv av a m o d ire ito de ser in te rm e d iá rio s do trá fic o com os europeus,
o reino de Daom é se e n co n tra v a n a costa, e n q u an to a n te s se e n c o n tra v a no in te rio r, e tin h a
acesso aos p ro d u to s eu ro p eu s que chegavam p o r v ia m a rítim a . Os últim os g ra n d e s reis, a n te s
da colonização fran c e sa , fo ra m Ghezo, Glélé e B éhanzin (ou G behanzin) 1818-1849; o reino
deles se e ste n d ia desde Savalou à costa, e desde K oufo a Ouèmé, a este. U m a corte b rilh an te ,
um a o rg a n iz a ç ã o m ilita r b a s ta n te sev era, p alácio s edificados, no d e co rre r dos séculos, com m uros
ornado s de baixos-relevos de te r r a evocando os altos feito s dos reis, eis os tra ç o s c a ra c te rístic o s
desse posto av an çad o do c e n tro de civilização su p e rio r sobre o baixo N ig e r de que falarem os
a g o ra ” .
2. N um a o b ra recen te, in titu la d a M u ita s R a ç a s, U m a S ó N ação, da a u to ria de A n tô n io A lberto
do A n d rad e, do In s titu to S u p e rio r de C iências Sociais — A g ên cia G eral do U ltra m a r, Lisboa
1968 — a resp eito de Al M ina, e n co n tre i este elucidativo tó p ico :
“ N um rochedo p ró x im o d a p ra ia se le7antou, em 20 dias, a F o rta le z a de São J o rg e d a
M ina. e cresceu u m a povoação a que D. J o ã o II, em 15 de m a rç o de 1482, “ p o r su a c a r ta
p a te n te ” concedeu “ todas las liberdades, p riv ilég io s e p re m in e n c ias de cidade” .

64
é abaixo do Rio Primeiro», segundo se lê no Apêndice n9 VI, págim
29, da obra sumamente importante e pouco conhecida, mesmo entre os
mais diligentes pesquisadores brasileiros, do escritor português Edmun­
do Correia Lopes, intitulada A Escravatura (subsídio para a sua his­
tória) — publicação da agência Geral das Colônias, Lisboa 1944, quei
houvessem sido estocados, posteriormente, no interior do Forte Sãc
Jorge da M in a3, e desse local mandados ao Brasil. A rthur Ramos, i
respeito dessa designação, que abrangeu os Negros sudaneses, escreve
na apresentação que dedicou a esta obra, «que há um significado res­
trito e outro largo para o termo «Mina»: que o termo passou a de­
signar todos os Negros sudaneses que foram embarcados naquela partt
para o Brasil».
E com um documento, constante do Apêndice II, na obra acima
citada, ainda é Edmundo Correia Lopes que me leva a considerar aqui
esta questão.4
O documento (pertencente ao corpo de Excertos constatados poi
esse autor) vem sob o títu lo : Viagens Directas da Mina Para os Riot
Abaixo Dela Onde se Resgatavam Escravos. E nele se lê:
It. se v o s p a r e c e r bem e no n oso se r v iç o q u e h o s n a v io s q u e m a n d a rd es a
m y n a co m o s e sc r a v o s p a r a m ilh o r e m a is p ro n to a v ia m e n to do tr a to devem
lo g u o da M y n a fa z e r v ia dos R e s g u a te s q u an d o o s la m a n d a r d e s com o s ditos
n a v io s e sc r iv a m e h a s m e r q u a d o r ia s p e r a iso n e c e sa r ia s e m a n d a y ao pilote
e m a r e a n te s que ho fa ç a m a s y p o r s e e sc u s a r h a d em ora q u e podem fazer
em to r n a r a I lh a e da I lh a a o s R e s g u a te s e is to tu d o le ix a m o s a v o s que
ho c o n s u lte is la f a ç a is com o v ir d e s q u e c u m p re a n o so se r v iç o e bem de
tr a to , fe ito em a lm e ir im a o s b iij d ia s de F e v e r e ir o a .ç m e x ia o fe z anno
de b.9 X IX .

Tanto a A rthur Ramos como a discípulos deste, o Mestre Sousa


Carneiro, pai de Edison Carneiro, formulando hipóteses e defendendo
conclusões, já ensinara o seguinte:
N ã o h á Negros minas n em sob o p on to de v is t a e tn o g r á fic o , n em , par-
tic u la r iz a n d o , sob o p on to de v is ta lin g ü ís tic o , m a s sim p le sm e n te em Mina
h á u m a r e fe r ê n c ia a E l M in a o u M in a q u e s e to m o u u m g r a n d e em pório
de e sc r a v o s.
T am b ém n ã o h á m o tiv o p a r a se o s a p r e se n ta r com o N e g r o s d a s lín g u a s
T sh ie e G a, da C osta do O uro, o q u e v a i se r f á c il ao le ito r v e r if ic a r com -
O c ro n is ta p o rtu g u ê s K uy de P in a (C onsulte-se a Coleção de L iv r o s In é d ito s da H istó ria
P o rtu g u esa , 1792) c o n firm a ria essa d en o m in ação do F o rte nos te rm o s seg u in tes: “ E n tã o o
F o rte foi desig n ad o pelo nom e de O C astelo de S ã o J o rg e , como u m a p ro v a de re sp eito
àquele que é o p a tro n o e p ro te to r de P o rtu g a l” .
3. E n tre os c o m en tário s que Jo sé M aria R o d rig u es fez aos cânticos de Os L u sía d a s, de L u ís
de C am ões (E d iç ão N acio n al, Im p re n s a N acio n al, L isboa 1937), en co n tra -se (p. XCV, est. 1,
v. 3-4) o seg u in te: “ O ú ltim o tra b a lh o de H ércu les foi p ô r em com unicação o A tlâ n tic o e
o M ed iterrân eo . Do c o rte d a s e r ra que os_ s e p a ra v a re s u lta ra m as d uas colunas de H ércules,
o C alpe (G ib ra lta r) e o A bila ( p a r a Cam ões, o F acho de E lm in a, p e n ín su la de C euta; p u ra
os a n tig o s, o A tla s de H om ero, isto é, a S e rra de S. G ens dos portu g u eses, a X im cn a do»
e sp a n h ó is ).
E à est. 6, o m esm o a u to r fez o seg u in te c o m e n tário : “ A s p ra ia s n o ta s são a s d a M ina,
tão a fa m a d a s pelo o uro q u e d ali v in h a ” .
4. É desse m esm o a u to r u m a das m a is p recio sas co ntribuições, h is tó ric a e econôm ica, a re sp eito
do F o rte São J o rg e d a M ina, bem como das p ro ezas de um dos m eus p ro v áv eis antepassado»,
excelente m ilita r e n ão m enos excelente a v en tu re iro .
C ham ava-se F ran c isco N u n e s P e re ira e a su a f ig u r a ta n to se m oveu ali como n a B ahia, deixando
fa m a discutível, ad m irav elm en te flx n d a p o r E dm undo C o rreia L opes no C aderno Coloninl nv 38,
in titu lad o São Jo ã o de A ju d d e que m e foi dado p o r M ãe A n d re sa M nria a quem o autor
oferecera.

6r>
p aran d o a s lin h a s a d ia n te com a s lin h a s a cim a sobre A c h a n tis , J e je s , N a g ô s
e G ebros.
N in a R o d r ig u e s d is tr ib u i o s M in a s a ju n ta n d o que, no R io de J a n e ir o , os
B a n to s a s s im d en o m in a v a m “to d o s os N e g r o s da C osta do O uro, e dos
E s c r a v o s ”. E s s a d en om in ação co rresp on d e, a liá s , à dos d ocu m en tos dos
a r q u iv o s q u e r a r a m e n te d izem : ta n to s M in a s do D aom é, ta n to s M in as de
t a l ou q u a l p a r te .
D e s ta r te , o s M in a s er a m so m e n te S u d a n e se s, m a s , n u m d os la p s o s d e N in a ,
r e fe r in d o -se a o s e sc r a v o s d a N ig r íc ia , diz q u e “o fo r te de E l-M in a fo i
em p ório de ta l o rd em ”, “no com ércio de e sc r a v o s em g r o s s o ” “que chegou
a tornar sinônimos os termos Africano e Mina”.
“A fr ic a n o ” e s tá a í em p regad o no sen tid o de N e g r o ou de e sc r a v o , m a s a tin g e
B a n to s e S u d a n e se s, o q u e a m p lia in co n sc ie n te m e n te o s se n tid o s dos term o s.
N o M aran h ão, o g r a n d e m e str e d os a fr ic a n is t a s b r a sile ir o s en co n tro u com o
sen d o M in a u m a v e lh a jeje e o u tra nagô. N a B a h ia , ach ou a tr a d iç ã o
“c o n se r v a d a ” : M in a s a c h a n tis e M in a s p op ôs. R e fe r iu -s e a D e b r e t que
m en cio n a no R io de J a n e ir o Minas nejôs, Minas mahyis e Minas cavalos
e co n sid ero u “p r o v a v e lm e n te ” Jejes mahyas o s se g u n d o s, Nagôs o s p r i­
m eiro s, se m n a d a d izer sob re o s ú ltim o s.

E o autor de Mitos Africanos no Brasil (série 5“ da Brasiliana,


vol. 103) assim prossegue:
A “le i d e e x p r e s s ã o ” n ã o d e ix a d ú v id a s: Minas a n te c e d e o n om e da n ação
ou da trib o.
Minas achantis ou Minas santés: N e g r o s do rein o dos A c h a n tis ou S a n té s.
Minas popôs: N e g r o s da n a çã o n a g ô , n e jô ou n a jô , n o m es q u e os b ra ­
sile ir o s to m a r a m a o s fr a n c e s e s.
Minas mahis: N e g r o s d a s tr ib o s d os M a h is da n a çã o je je .
Minas cavalos: N e g r o s da n a çã o g reb o , o riu n d o s da m a r g e m do rio C avala.

O Dr. Souza Carneiro, findando esta relação, adianta: «Minas e


Negros minas, não sendo raça, nem povo, nem nação, nem tribo, nem
língua, nem dialeto, não merecem particularização por parte dos
africanistas».
Mas veja-se:
Na Biblioteca do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro,
existem, entretanto, sob a indicação 78.197, Misc. 347-412, dois exem­
plares de edições diferentes, ambas, Obra Nova de Língua Geral Mina,
da autoria do Padre Antônio da Costa Peixoto, como os clichês aqui
insertos reproduzem (ver Caderno Iconográfico n. 1 e 2).
Edmundo Correia Lopes lhe juntou um comentário filológico e eu
copiei toda essa obra a respeito da qual Luís Silveira escreve:
D e sd e a lg u n s a n o s fa z ia eu ten çã o de d ar à e sta m p a o m a n u sc r ito (r e fe r e -
s e ao d e C osta P e ix o to , p osto a q u i em p a u ta ) porq u e m e p a receu que ele
m e r e c ia se r d iv u lg a d o p e la s in fo r m a ç õ e s q u e fo r n e c ia p a r a a ap recia çã o
de fa c e t a s v á r ia s da v id a co lo n ia l p o r tu g u e sa d os m ea d o s do sécu lo X V I I I ,
e p elo in te r e s s e que te r ia p a r a o s e s p e c ia lis ta s a rev ela çã o dum v o cab u ­
lá r io da “L ín g u a de M in a ”, fe ito h á d u zen to s a n o s no B r a s i l . 5

5. A conteceu, p o r isso, q u e aquela “ lei de e x p ressão ” , re fe rid a p o r Sousa C arn eiro , levou o povo
m a ra n h e n se a d e n o m in a r C asa das M inas a d a R u a S enador C osta R odrigues n<? 857, razão
p o r que dei a e sta o b ra id ên tica d enom inação, reconhecendo, com esse gesto, a p rio rid a d e
quu Ihu cabe.

66
Mas seria, realmente, uma língua, instrumento de expressão ci
tural de um povo, originária e fundamentalmente exaltada por Perei
da Costa, ou de outro qualquer, rotulada, como os escravos e as esi
ciarias de Al Mina, com essa designação geográfica?
A. Meillet e Mareei Cohen, no segundo volume da obra Les langi
du monde (nouvelle édition, Paris 1952) dando a caracterização
chamado Grupo éburnéo-dahoméen (com 48 línguas), p. 817 e 823, en
nam que essas 48 línguas podem repartir-se em sete subgrupos,
entre eles aparece «le: mina ou gê ou gêge ou popo ou waci ou an
régions de Grand-Popo et Anecho, sur la côte (1827 et 1828 Kilham
Um exame filológico do texto de algumas centenas de cânticos i
mim gravados, entre filhas da Casa das Minas, para documentação
minhas pesquisas sobre comunidades de Negros descendentes de antij
escravos africanos, perm itirá concluir-se haver existido ou não ui
língua mina ou simplesmente a língua jeje ou gê ou gêge acima referi
Levando eu algumas fitas magnéticas, desses cânticos, à aprec
ção da Prof. Yeda Pessoa de Castro, do Centro de Estudos Af
Orientais, de Salvador (Bahia), em dezembro de 1969, pareceu-
tratar-se mais de cânticos litúrgicos em língua fon.
Tem, pois, cabimento a pergunta acima: não teria sido a línç
jeje rotulada de mina como os escravos e as especiarias que for
trazidas para o Brasil Colonial, isto é, a Minas Gerais, Bahia, P
narnbuco, Maranhão e Pará?
Na corrente de estudos afro-brasileiros, como já frisei em ou
parte, com essa denominação de Mina jeje (Ewe ou Eoué, da gra
inglesa e francesa, respectivamente) só no Maranhão me aparecer
eles.
Àquela condição de empório do tráfico negreiro é que se fica
a dever, sem dúvida, toda essa confusão, tanto mais que, como ver
in Colonialismo Português e a Conjuração Mineira, da autoria de
Pereira dos Reis, tão rigoroso no definir o mercantilismo portug
no Brasil, grande era a importância da Casa da índia (antiga «C
da índia e da Mina»), «que controlava o comércio dos produtos ai
canos e asiáticos» (o ouro da Mina e os escravos) e que «propon
nava excelentes lucros ao país».6
Para a valorização dos produtos dali saídos, natural era lhe im
uma rubrica — a de Mina — no ouro, nos panos, nas especiarias,
6. O e sc rito r m in e iro W ald em ar de A lm eida B arbosa, em su a o b ra N eg ro s e Quilom bos em A
G erais, salien to u , p rec isa m e n te , a im p o rtâ n c ia do com ércio de pro d u to s asiático s e a frlo
subordinado ao c o n tro le d a C asa da ín d ia ou d a Casa da Ín d ia e da M ina, nos p a râ g
seg u in tes:
" N a p rim e ira m etad e do século X V III, sobretudo no p rim e iro q u a rte l desse século, quand
m inas se e n co n tra v am em plen o apogeu, tivem os em M inas a im p o rta ç ã o em la rg a e
dos N egros cham ad o s M in as; é que os p a u lis ta s e os p o rtu g u e ses tin h a m a convicção de que,
o N eg ro m in a ou u m a N e g ra m in a, n ão se ach a v a ouro” .
E, cita n d o C. R. Boxer, a u to r d a o b ra A Idade do O uro n o B rasil, escreve m ais:
“ ( \ R. B oxer ex am in o u os re g istro s dos im postos p a r a escravos, re fe re n te s ao perlod<
1714 a 1740, e en co n tro u notável p re p o n d e râ n c ia de N eg ro s m in as, seguidos de p e rto
A ngolas o B enguelus” .
miserável gente dali trazida para o Brasil-Colônia, tal qual, na América
do Norte ou na Inglaterra, a rubrica Made in England ou Made in USA,
nos produtos das suas indústrias.
Recentemente, entretanto, ao parar na cidade de Salvador, em de­
zembro de 1969 e janeiro de 1970, ganhei uma Nota, da autoria de
Vivaldo da Costa Lima, do Centro de Estudos Afro-Orientais, que em­
bora particularizada «para Nunes Pereira» bem merece divulgar-se,
por sua acuidade e precisão.
Daí o transcrevê-la, na íntegra, nestas Notas, visto patentear-se
ali a etimologia do vocábulo jeje da nação, tribo ou povo, a que o
gênio mercantilista do colonizador (et pour cause) juntou Mina, o
sítio da procedência de escravos africanos assim denominados.

JE JE
E s t a a g r a f ia p r e fe r ív e l, r e sp e ita d a s a s in s tr u ç õ e s de A cord o O rto g rá fico ,
de 1943, p a r a a g r a f ia de p a la v r a s , de o r ig e m a fr ic a n a ou in d íg e n a , n a
lín g u a p o r tu g u e sa .
O etn ôn im o te m su g e r id o d iv e r s a s e tim o lo g ia s. P r e fe r im o s a c e ita r a que
o f a r ia o r ig in a r -s e do io ru b á â j è j i (p ro n . a d jê d ji) e q u e s ig n ific a “e str a n ­
g e ir o ”, “fo r a s te ir o ” (v e r R . C. A b ra h a m , Dictionary of Modem Yoruba,
U n iv e r s ity o f L on d on P r e s s , 1958, p. 3 8 : “â jè ji, stranger ( - à l é j ò ) ; id.
A Dictionary of the Yoruba Language, O x fo rd U n iv . P r e s s , L on d res, 6"
im p., 1959, “A je ji n . a s tr a n g e r , a fo r e ig n e r ” ; id. A Vocabulary of the
Yoruba Language, R ev. S a m u e l C row th er, S eeb y z, L o n d res 1852, p. 21:
“A je ji, s tr a n g e r , fo r e ig n e r ” ) .
Os h a b ita n te s io r u b a s do B a ix o D aom é, n a r e g iã o em q u e h o je s e situ a a
cid ad e de P o r to N o v o , c h a m a d a a in d a h o je p e lo s Io r u b a s ou N a g ô s de
A fo s e ( A d j a x é ) , ch a m a v a m de ajejii — ou j e j i n a fo r m a u su a lm e n te ap o-
cop ad a — a o s in v a s o r e s F o n v in d o s do le s te (v e r , e n tr e o u tro s, a h is tó r ia
da fu n d a ç ã o do R ein o de P o rto N o v o em : Akindéle & Aguessy, Contribution
à 1’étude de VAncien Royaume de Porto Novo, M ém oire I F A N , n ç 25,
D a k a r ), — com o sen tid o p róp rio do te r m o : fo r a s te ir o , e str a n g e ir o . F i­
ca ra m o s F o n in s ta la d o s em P o r to N o v o com e ss e ap elid o , a p r in c íp io
r e str itiv o , e m a is ta r d e a ceito p e lo s p ró p rio s d e sc e n d e n te s dos p r im e ir o s
im ig r a n te s , q u e lh e ig n o r a m a a n tig a co n o ta çã o d er r o g a tó r ia .
A p a la v r a “J e j i ” — de “a j a j i” — , n a s s u a s v á r ia s tr a n s c r iç õ e s p e lo s d i­
v e r so s a u to r e s eu ro p eu s, é co n h ecid a d esd e o s f in s do sécu lo X V I I I . Os
h a b ita n te s de P o r to N o v o sã o , e le s p ró p rio s, co n h ecid o s com o G un ou
Fuunn.
V e r a in d a so b re a p a la v r a “J e j e ” — a e tim o lo g ia p or V e r g e r , apud R ob ert
C orn evin , Histoire du Dahomey, B e r g e r , L iv r a u lt, P a r is 1962, p. 46.
O Dictionnaire Français-Yoruba, do R ev. P . B o u d in (P o r to N o v o , C en tre
C atéch étiq u e, 1 9 6 7 ), dá, ig u a lm e n te , para “e s tr a n g e ir o ” : alejo, ajeji,
aralumi.. . , p. 129.

II

Mantenho na reedição desta obra, A Casa das Minas, a classificação


de Depoimento, pois está de acordo com o meu estilo, humanizado no
convívio do povo, nas suas expressões espirituais e materiais e na

68
intimidade de autores de obras já esgotadas, senão raras, que logre
adquirir ou consultar.
Além disso, em verdade, eu não sou mais que uma testemunha dc
práticas, cerimônias, ritos, bem assim de fenômenos e de fatos, do cultc
dos Voduns7, ligados àquilo que Romano Galeffi, Professor de Esté­
tica, na Universidade Federal da Bahia, Cidade do Salvador, denomim
la sacralità deli’esistenza.
E essa expressão, ainda hoje, está indelével na minha memórií
como se a estivesse relendo no Prefácio que esse Professor ilustre de­
dicou à obra do Dr. Alessandro Angalis Valentini, intitulada Indagint
sulla vera genesi dei fenomeni mediunici (Stabilimento Tipográfici
delia S.A. 11 Giornale d’Italia, em Roma).
Uma testemunha, repito, de demonstrações quotidianas, de fatt,
incontroversibilli, da ciência metafísica (ali apresentados, à vista ch
Mãe Andresa Maria e das suas noviches e gonjais), tal o estado dí
transe ou de possessão mística,
Uma testemunha, apenas, mas com a consciência de quem, tatean­
do embora, busca a Verdade, esquivando-se, discretamente, da análisf
7. A re sp eito d a o rg a n iz a ç ã o dos V o d u n s em fam ílias, R oger B astide, n a o b ra L es Am érique,
N o ire s (L es c iv ilisatio n s a fric a in e s d a n s le N o u v eau M onde) ed ita d a p o r P a y o t (1967) ■
re e d ita d a p e la m esm a fir m a em 1973, assim se m a n ife sta :
“ L e p re m ie r t r a i t que n ous relèverons, c ’e st la division des V o d u n en fam illes, exactem en
com m e _ a u D ahom ey, avec cette d ifféren c e seu lem ent q u ’a u D ahom ey chaque fam ille a mu
c o n fré rie spéciale, ta n d is q u ’ici la m êm e c o n fré rie adore les D ivinités des diverses famille»
e t les lim ites qui s é p a re n t u n e fam ille d’u n e a u tre so n t absolum ent les m êm es qui celles qui
nous tro u v o n s chez les F o n . L a p re m iè re fam ille e s t celle de D avice ou D ahom é, qui com prem
Dadaho, sa fem m e N a ê, D osu, etc .; la deuxièm e e s t celle de D a ou D am bira, qui correspom
au P a n th é o n de S a k p a ta au D ahom ey; S a k p a ta , D an, e tc .; la tro isièm e e st celle de Kevioso
le D ieu d u to n n e rre ; elle englobe Badé, A v ê rê k ê te , Sobô, A b ê , etc. M ais a ces V odun, qu
re p ré s e n te n t les forces de la N a tu re , v ie n n e n t s’a d jo in d re — à 1’in té rie u r de la fam ille Dahonu
—• les A n c êtres du lig n ag e des R ois d’A bomey, tra n s fo rm e s en V odun, e t qui re ç o iv e n t exactem en
le m êm e cu lte q u ’eux, a in si Z om adone, A g o n g o n e , Z a ka , D osu, A g a j á .. . ce qui p e rm e t di
p e n se r que les fo n d a te u rs d a la M aison (C asa das M inas) a p p a r tie n n e n t à la fam ille roynle
N ous allons m a in te n a n t re n c o n tre r deux c a ra c té ris tiq u e s de la m ythologie F on, d o n t nom
avons to u t lieu de p e n se r qu’ils so n t des tr a its cu lturels F o n e t p e u t-ê tre m êm e a fric a in s ei
g é n é ra l; m a is que les a fric a n is te s n ’o n t p a s su encore v oire en A friq u e. Ici aussi, comrm
p o u r la n o tio n de w ere ou éré, la rech erch e a fro -a m é ric a in e ouvre des voies nouvelles à li
rech erch e a fric a in e ” .
Considerem os a in d a m ais este tó p ic o d a o b ra de R o g er B astide:
“ Le p re m ie r de ces fa its , su r lesquels n ous avons com m encé u n e e nquête a u D ahom ey s ’avèn
b ien d ’o rig in e F o n , b ie n que n ous n ’ayons p a s eu la possibilité de po u sser 1’enquête ju sq u ’i
la c o n stitu tio n du systèm e” .
N esse tre c h o d a o b ra de R oger B astid e re p o n ta a fu n d a ç ão d a C asa das M inas, de São Luíi
do M aran h ã o , p e la m ãe do R ei Guezo, p o sta em evidência p o r P ie rre V e rg e r e, depois deste
p o r J u d ith Gleazon, em su a o b ra A g o tim e — H e r L e g e n d (G rossm ann P ublisher, Novi
Io rq u e 1970).
E tam b ém re p o n ta da tra d iç ã o que M ãe A n d re sa M a ria s e ria nobre, o que p re s se n tira Rogr
B astide, q u ando a v isito u , e sem p re m e p a re ce u no c o n ta to que, desde c ria n ç a , tiv e com i
sua pessoa.
E is a tra d u ç ã o liv re do trech o acim a:
“ O p rim e iro tra ç o que n ó s le v a n tarem o s é a divisão dos V odun em fam ílias, exatam enti
como no D aom é, so m en te com e sta d ife re n ç a de que, n o D aomé, cad a fa m ília tem umi
c o n fra ria especial, e n q u an to , aq u i, a m esm a c o n fra ria a d o ra a s D ivindades das diversas fam ília»
e os lim ites que se p a ra m um fa m ília d a o u tra são ab so lu tam en te os m esm os e n co n trad o s po;
nó s e n tre os F o n . A p rim e ir a fa m ília é de D avice ou D aom é, que com preende D adaho, hui
m u lh er N a ê, D o s u ... etc., a seg u n d a é a de D á ou D am birá, que c o rresponde ao P a n te ã o «l<
S a k p a tá no D aom é: S a k p a ta , D a, e tc .; a te rc e ira é a de K evioso, o D eus do T rovão: eh
engloba Badé, A v ê rê q u ê te , Sobô, A b ê . . . etc. M as a esses V odun, que re p re s e n ta m a s forçai
da N a tu re z a , vêm se ju n ta r , no in te rio r d a fa m ília , os a n c e s tra is d a linhagem dos reis <li
Abomé, tra n s fo rm a d o s em V o d u n , e que recebem o m esm o culto dos outros, assim Zom adone
A g o n g a n e , Z a k á , D osu, A g a j á .. . o que p e rm ite p e n sa r que os fu n d ad o res d a C asa (C a sa du,
M in as) p e rte n c ia m à fa m ília re a l. V am os e n c o n tra r duas c a r a c te rís tic a s d a m itologia Fon
ocorrendo-nos p e n s a r que são tra ç o s c u ltu ra is F o n e, talvez, m esm o, a fric a n o s, em geral
po rém os a fric a n is ta s n ã o souberam v e r n a Á frica. Do mesm o modo com re la ç ão a w ere ou ére
a p esq u isa a fro -a m e ric a n a a b re p e rsp e c tiv a s novas p a r a a pesq u isa a fric a n a ” .
A tra d u ç ã o do p equeno tre c h o citado a p ó s o que a í dei é a seg u in te: “ O p rim eiro desse
fato s, sobre os q u ais com eçam os u m a pesquisa no D aomé, evidencia bem a origem Fon
co nqunnto não tivéssem os tid o possibilidndo do co n d u zir a pesquisa a té a c o n stitu içã o do siste m a ” .


espectral daqueles fatos, sem el aire pedagógico a que aludia Rubén
Dario, satirizando pseudomestres, conceituosos quanto pedantescos.8
De roda às teorias e conclusões — levantadas por outros etnólogos
e sociólogos, ao longo das tortuosas veredas da dialética, no interesse
de estudar a religião de certos povos, muitas vezes tidos como pri­
mitivos — minha atitude foi sempre de respeito e tolerância, conquan­
to muitas vezes não as aceitasse no seu todo, é claro, por senti-las
insustentáveis, nelas vendo a simbólica e majestosa presença de inúme­
ras árvores da Selva Amazônica, a margem dos caudais que se re­
fletem, num como deslumbramento, mas as desenraízam e abatem,
impiedosamente.

III

Os Voduns que baixam ou se incorporam nas nochês, tobossis, gon-


jais e noviches da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão (e foram
introduzidos, através do culto que lhes votam, nos terreiros de Belém,
Manaus e Porto Velho, e, já hoje, no Rio de Janeiro, pessoas a ela
filiadas) são os mesmos do panteão místico do Daomé.
Ali, também, ainda se fazem referências a Voduns que não baixam
mais, subiram ou regressaram à atmosfera mágica do Continente
Africano, por haverem cumprido sua missão na terra ou envelhecido
dem ais...
Acontece, entretanto, que os nomes deles, nitidamente pronuncia­
dos, podem ser ouvidos, neste ou naquele terreiro, quando ali se elevam
cânticos litúrgicos, em língua africana, durante certas festas do culto,
realizadas pelas filhas e filhos da Casa.
R. V itto rio L a n te rn a ri, a u to r d a o b ra M o v im e n ti religiosi di liberta e di salvezza dei popoli oppressi
(G iangiacom o F e ltrin elli, M ilão 1960, tra d u z id a p e la equipe d a E d ito ra P e rs p e c tiv a sob o
titu lo A s "Religiões dos O p rim id o s), escreveu o seg u in te:
“ A e sta a ltu ra , parece-n o s necessário a firm a r que n ão h á sentido em falar^ de etnologia religiosa
o h is tó ria relig io sa (ou etn o lo g ia e h is tó ria em g e ra l) como se fossem ciências sub sta n c ia lm en te
sep a ra d a s, hetero g ên eas e pelo m enos a n tité tic a s . N a realidade, são dois “ m om entos” p a rtic u la re s
do pesquisa h istó ric a , que é u m a: o m om ento etnológico ace n tu a n d o o estudo dos povos
a tra sa d o s e o prim idos e o m om ento “ h is tó ric o ” , o d as c u ltu ra s desenvolvidas e autônom as.
H oje, neste século em que os cham ados povos “ in cu lto s” ou “ selvagens” surgem no c en á rio d a
h is tó ria , ó p a ra nó s ex p o en te de u m a ch am ad a civilização “ e le ita ” u m a ob rig a ç ã o c ultural,
senão m o ra l e p o lítica, reco n h ecer a m en sag em de liberdade e salvação que re ssu m a d a boca
du mil p ro fetas, d as flo resta s do Congo, das ilhotas p e rd id a s d a M elanésia, nos re c ife s d a
PollnéBia, às trib o s esquecidas d a Á sia co n tin e n tal, à s “ re serv as” dos E stad o s U nidos. E s ta
m ensagem , solene e poderosa, p e la dig n id ad e c u ltu ra l que exprim e, exige u m a re sp o sta do
m undo ocid en tal: u m a re sp o sta p o lítica, c u ltu ra l e religiosa. Aos ou tro s — governos, ad m in is­
tra ç õ e s, Ig reja s m issio n árias — cabe am oldar-se à s ex ig ên cias im a n e n tes im p o sta s p o r aquela
m ensagem .
A nós basta, n e sta a ltu ra , su b lin h a r, n a voz g e n u ín a e u n â n im e dos povos oprim idos, o
valor du c ritic a e d en ú n cia c o n tra a c u ltu ra o cidental. E s ta voz ó como que um espelho em
quu o homem c o n tem p o rân eo d istin g u e os lim ites precisos d e n tro dos q uais e stá e s tr u tu ra d a a
no mu civilização. O g rito de liberdade e salvação dos povos coloniais e em g eral dos povos e
grupou o prim idos p o r condições calam itosas, q u a isq u e r quo sejam elas — e stá cheio de
significado c u ltu ra l p reciso p a r a nó s: d e n u n cia a s Insuficiência* o co n trad içõ es p ró p r ia s da
in im i c u ltu ra , à luz dos m undos c u ltu ra is, povos quu to m aram consciência de si p ró p rio s.
Mslf»» m undos c u ltu ra is, d ife re n te s do nosso, e n tra ra m em crise, m as o im pacto com eles
produziu tam bém em nossa c u ltu ra u m a crise g rav e, a lu in d o um a e ra de tra b a lh o que será
fi com ia e p re c u rso ra de valores p a ra todos, já que nos en cam in h a p a ra um hurnnninm o m ais
am olo, no qual o cupam o lu g a r que lhes p e rte n c e o In dígena r u i u , o n a tiv o m nori e o
fndlo a m erican o ” .

70
E o mesmo ocorre quando elas nos contam fragmentos da história
ou da mitologia trazidos daquele Continente para este lado do Atlântico
pelos escravos africanos.9
Pode-se aceitar que esses Voduns sejam comuns à gente ioruba,
nagô mina-jeje, ketu e fon.
É descabida, no entanto, a hipótese de ombrearem, no pégi ou no
comé daquela Casa, entidades de outros cultos e outras procedências.
Como se sabe, o fenômeno denominado sincretismo (admitido por
A rthur Ramos, como o foi, anteriormente, por Nina Rodrigues, já se
iniciara nas terras mesmo dos escravos exportados para as Américas)
aqui, no Brasil, se acelerou e se expandiu marcadamente.
No entanto, cabe-me frisá-lo, não me foi dado registrar, em fitas
magnéticas, nenhum nome das entidades do Fios Sanctorum católico,
das falanges umbandistas e dos cordões dos pajés indígenas.
Apenas nas ladainhas, que antecedem a várias festas da Casa das
Minas, é natural escutar-se o nome de Jesus, São Jorge, São Sebastião,
Santa Bárbara, etc., etc.
Vendo-os reunidos em famílias, tal qual uma organização social
primitiva ou civilizada, procurei m ostrar como se apresentam alguns
desses Voduns, parecendo-me de especial importância caracterizá-los de
acordo com o status que nelas ocupam.
E essa importância é facilmente reconhecível quando se percorrem
as dependências da Casa das Minas ou se lhe examina a planta baixa:
quando, enfim, se tem permissão para visitar o comé e ver as jarras
sagradas, agrupadas numa espécie de plataforma de cim ento10, em
cujo interior os Voduns estão consubstanciados na Á gua11, e todas elas
simbolizam os mais característicos elementos de uma autêntica, de uma
indissolúvel família.
Três são as famílias que ali estão agrupadas e se denominam:
Davice, Queviôço ou Hêviôço e Dambirá.

9. E s tá fa lta n d o e n tre n ó s um lev an tam en to das p erso n ag e n s m ític a s e m ístic a s — V oduns e


O rix ás daom eanos e io ru b as — dos resp ectiv o s p an teões, com rig o ro sa id e n tific a ç ão das suas
in dividualidades, n a s á re a s a que fo ra m levadas, a tra v é s do culto a elas votado pe la e sc ra v a ria ,
tra z id a à s A m éricas, de d ife re n te s á re a s do C o n tin e n te A frica n o . Com o au x ílio das o bras dos
a frican ó lo g o s, n acio n ais e e stran g e iro s, que se e n c o n tra m em bibliotecas p a rtic u la re s e em
bibliotecas p ú b licas, esse le v a n tam e n to s e ria d a m a io r im p o rtâ n c ia p a r a com plem entarm os o
estudo d a ex ten são das d iv e rsas c u ltu ra s n e g ra s em nosso P a ís e a n álise c o m p a ra tiv a das
m esm as.
N a a p re ciaç ã o das trê s fa m ília s, a d ia n te c ita d as, é p a te n te que focalizei, de p re fe rê n c ia, ns
m ais im p o rta n te s p erso n alid ad es que a s com põem .
A o longo das p esquisas, que a in d a ten h o em m ir a re a liz a r, a necessidade desse le v antam ento
n ão será esquecida p o r m im e p a ra ele ch am arei a a te n çã o dos africanólogos, p rin o lp a lm rn t«
do B rasil.
10. In trig a -m e aqui, ao re fe rir a ex istên c ia dessas ja r r a s sag rad a s, n a C asa das M íiwim, que jít
T ales de M ileto a firm a sse aos g regos que “ n ã o é o H om em , m as a Á gua, a realidade dan
coisas” , e p a r a os cu ltu ad o res dos V oduns n ela se consubstanciassem as im agens dou seiia «h um u.
11. A fig u ra d a Zom adone, “ Dono d a C asa das M in as” , n a o p inião d a g e n te que ali c u ltu a ou
V oduns daom eanos, é focalizada, de modo m ais am plo, às p á g in a s 107s d estas N ota*.
Segundo J u d ith Gleazon, o culto desse V odun foi fundado em C achoeira (E sta d o da Itahla)
p ela R ain h a A gotim e, M ãe do R ei Guezo, do a n tig o R eino do Duornó.

/i
Família Davice 12
V oduns T oq u en os ou T oq u en s
Acocinacaba Acôevi
Agongone Ag açu
Arrônôviçavá Apôgêvô
Bêdigá Dako o u Daco
Dacodonu Deçê
Dadahô Doçupé
Doçu Nochadicê
Naêdone o u Naê
Naêtê
Nanin
Tôpa
Zepanin ou Zepazina
Zomadone
F ilh o s de Z om adone
Toçá
Têçé
Apogê
F ilh o de A g o n g o n e
Jotim

Davice é o nome de tribo e de família real; Dadahô é marido de


Naiadone; Acocinacaba é pai de Zomadone; Agongone é um Vodun que,
há muito, não baixa mais; Tôpa é camarada de Agongone; Arrôviçavá
é irmão de Dadahô; Bedigá é irmão de Doçu; Zapazina ou Zapazin
é mãe de Dako que é toqueno; Nanin é mãe adotiva de Doçu; Doçé é
filha de Doçu; Acôevi é filha de Doçu; Apôgêvô é toquena; Toçá e
Tôçe são filhos de Zomadone, tendo a mesma posição sagrada dos
gêmeos Cosme e Damião, da hagiologia; Apôgê é, também, filho de
Zomadone; Jotim é filho de Agongone; Doçu tem, como seu animal de
sela (tal qual a montaria de São Jorge), um cavalo.
A importância dessa particularidade — a posse de um cavalo —
vai aqui salientada por M ontserrat Palau Marti, em sua obra Le
roi-dieu au Bénin, página 175:
C o n tra irem en t à 1’é lé p h a n t e t à la p a n th è r e , qui o n t é té a b o n d a n ts d a n s
le s r é g io n s q u i n o u s in té r e sse n t, le c h e v a l a é té r a r e . C et a n im a l n e p eu t
p a s v iv r e a u -d e sso u s d ’u n e c e r ta in e la titu d e , c e la en r a p p o r t a vec l ’h u m id ité 12

12. D oçu — dito A g ajá-p o v o cê — fo i criad o p o r N a n in . E r a poeta, c a n to r e cavaleiro. E , com


esses dotes, a n d a v a pelo m undo, deixando assim que seu irm ão fosse re i. D oçu, quando se
z an g a , in s u lta to d a g e n te , co m p o rta m e n to que se re p e te n u m a d a s su as filh a s em estado de
tra n s e .
D oçu ou Doçou ou Dosou, no léxico c o n sta n te d a o b ra de R o g er B astid e L e s religions a fric a in es
au Iirésil (P re sses U n iv e rs ita ire s de F ra n c e , P a r is 19G0), “ s e ria o R ei Dossou de A g a d ja ” .
N a e tê ou N a ê ou N aedona, p a r a o m esm o a u to r “ p ro v av elm en te N aetê, deusa D aom eana fo n ” ,
é a p o n ta d a n a o b ra de P ie rre Y e rg e r, N o te s su r le culte des O risa e t V odun, como u m V odun
líu la , do sexo fe m in in o e vivendo no m a r. E N a ed o n a s e ria su a irm ã.
P a ra Zuleide A m orim , M ãe de Q u êrêbetan, em J a c a re p a g u á (R io de J a n e iro , E sta d o do R io de
J a n e ir o ) , N aê é u m a deusa d a te rra , irm ã de N aêdone, que é, tam bém , u m a deusa d a te rra .
P a ra P ie rre V e rg e r N a e tê fo i a seg u n d a m u lh e r de A h u a n g a n (que é u m V odum H u la ) e
s eria a Chuva.
H o m esm o a u to r a d ia u ta : “ Q uando d u as m u lh eres b rig a m , p o r ciúm e, N a e tê de rra m a ^ á g u a
en I re elas, p a ra as s e p a ra r, e, então, c h o v e ...” N a ê ou N aêdone e ra irm ã de A vêrêquête.
E , segundo H ersk o v its, N a etê e ra gêm ea de A gbê. N a ê e N a e tê h a b ita v a m o m a r, tendo
recebido a in cu m b ên cia de c o m a n d ar as ág u as. I,

72
du c lim a t q u i co n d itio n n e la p r é se n c e de la m ou ch e ts é -tsé . On tr o u v e r a it
d e s c h e v a u x d a n s l ’a n c ie n n e O yo q u e é t a it au n ord du p a y s yoru b a. P lu s
a u su d on p e u t d ir e q u e s e u le s le s q u e u e s en é ta ie n t c o n n u e s du f a i t
q u ’e lle s é ta ie n t tr ê s r e c h erch ées p o u r d es u s a g e s r i t u e l s .13

E esses animais (elefante e pantera) inspiraram artistas de Ioruba


e de Edo (informa ainda Marti) que legaram à sua gente figuras
eqüestres em madeira, marfim e bronze. Os cavalos escasseavam nas
regiões citadas, mas, a despeito disso:

N o s r o is a v a ie n t d es ch e v a u x q u i v e n a ie n t du N o r d (r é g io n s de sa v a n e )
o u q u i a r r iv a ie n t d’E u r o p e p a r le s p o r ts de côte. D a n s c e s c o n d itio n s, les
c h e v a u x é ta ie n t d e s a n im a u x ch e r s, e t c e la d’a u ta n t p lu s q u ’il fa lla it les
rem p la c e r s o u v e n t ca r le s in d iv id u s é ta ie n t d écim és ra p id e m e n t p a r le
c lim a t. A u s s i, o n n e d o it p a s ê tr e éto n n é d e v o ir d es ch e v a u x s e r a r é fie r
ju s q u ’à le u r d is p a r itio n to ta le d a n s le s r é g io n s ou ils n e so n t p a s a d a p tés,
la cou rb e de d isp a r itio n n e c o in c id a n t a vec c e lle d e 1’a p p a u v r is se m e n t d es
ro is. C’e s t a in s i q u e Z om aw , le roi a c tu e l d es D a sc h a (p o p u la tio n y o ru b a
du m o y en D a h o m e y ) p o ssèd e u n c h ev a l de b o is g r a n d e u r n a tu r e q u ’il m on te
p a r fo is (le c h e v a l e s t a lo r s tr a in é p a r d es s e r v ite u r s ) , f a u t e de m on te
v i v a n t e .14

Esse cavalo de pau, esclarece Marti, numa nota de pé de página,


foi oferecido ao rei, que ficou muito satisfeito, por uma companhia
alemã de Togo, há vários anos passados.
Mas continuemos a apreciar essa descrição de M arti:

L e c h e v a l e s t tr ê s é v id em m en t u n sy m b o le de L ’A la fin d’Oyo. L e roi a v a it


u n c h e v a l e t s e d é p la ç a it p a r fo is à c h e v a l, m a is p e r so n n e n e p o u v a it le
v o ir lo r sq ’il m o n ta it: à ce m o m en t le s e u n u q u es f a is a ie n t ce r c le a u to u r
e t m e tta ie n t c h a c u n m a in s s u r le s é p a u le s d es v o is in s a fin q u e le u r s
v ê te m e n ts s e to u c h e n t d is sim u la n t e n tiè r e m e n t la s c è n e à 1’in té r ie u r du
c e r c l e .15

Além de um interdito, que determinava essa precaução, Marti escla­


rece que, morto o alafin (alafin quer dizer rei), o cavalo que lhe per­
tencia era sacrificado, e, igualmente, o personagem da corte denominado
por Burton master of the horse (senhor do cavalo).
Compreende-se, pelo exposto, a importância da posse de animal tão
precioso, do qual desfruta o Vodun Doçu, da família Davice.
13. “ C o n tra ria m e n te ao e le fa n te e à p a n te ra , o u tro ra a b u n d a n te s n a s regiões que nos in teressam ,
o cavalo foi sem p re ra ro . E ste a n im a l n ão pode v iv e r a baixo de u m a c e r ta latitu d e, e isso
em re la ç ão com a u m idade do clim a que co n d icio n a a p re s e n ç a d a m osca tsé-tsé. E n co n trav am -se
cavalos n a a n tig a Oyo, q u e fic a v a ao n o rte do p a ís ioruba. M ais ao sul, pode dizer-se que suas
cau d as e ra m conhecidas, v isto elas serem m u ito p ro c u ra d a s p a r a usos r itu a is ’'.
14. “ N ossos re is tin h a m cavalos que v in h a m do n o rte (regiões de sa v a n a ) ou que chegavam da
E u ro p a pelos p o rto s d a costa. N e ssas condições, os cavalos e ra m a n im a is ra ro s , e ta n to m ais
que e ra n ecessário su b stitu í-lo s m u ita s vezes, p o rq u e os indivíduos e ram dizim ados pelo clima.
T am bém , n ão nos devem os a d m ira r vendo os cavalos ra re a n d o , a té o d e sa p a re cim en to total,
n a s regiões onde n ã o são ad ap tad o s, in cidindo a c u rv a de d e sa p a re cim en to com a do em po­
b recim en to dos re is. É assim que Z am aw , re i a tu a l dos D a sh a (p o p u lação io ru b a do médio
D a o m é), possui u m cavalo de p a u , de ta m a n h o n a tu ra l, que ele m o n ta p o r vezes (o cavalo
á e n tã o a rra s ta d o p o r servos) à f a lta de m o n ta ria v iv a ” .
15. “ Cavalo é, ev id en tem en te, um sím bolo do A la fin de Oyo. O re i p o ssu ía um cavalo <• nele
se locom ovia p o r vezes, m a s n in g u ém p o d ia vê-lo m o n ta r: nesBe m om ento os eunucoN faziam
u m a ro d a em to rn o , e cad a um p u n h a as m ãos nos om bros do vizin h o a fim de que seus
tra p o s se tocassem e dissim ulassem , in te ira m e n te , a c en a no in te rio r d a ro d a ” .

7a
Daí ter-se de admitir, também, a importância do babalaô ou da
yaô, que, nos terreiros da Bahia, são chamados «cavalo» do Orixá, pois
são montarias (sic) das entidades do culto que professam. (Montado,
na acepção de possuído ou incorporado).
A respeito da organização dos Voduns em famílias, Roger Bastide,
na obra Les Amériques Noires (Les civilisations africaines dans le
nouveau monde), editada por Payot (1967) e reeditada pela mesma
firma, em 1973, assim se manifesta:

Le p rem ier tr a it q u e n ou s re lè v e r o n s, c ’e s t la d iv isio n d es V od u n s en


fa m ille s, e x a c te m e n t, com m e au D a h o m ey , a v ec c e tte d iffé r e n c e , seu lem en t
q u ’au D a h om ey ch aq u e fa m ille a u n e c o n fr è r ie sp é c ia le , ta n d is q u ’ici la
m êm e c o n fr è r ie ad ore le s d iv in ité s d es d iv e r sa s fa m ille s ; e t le s lim ite s qui
sé p a r e n t u n e fa m ille d ’u n e a u tr e so n t ab so lu m en t le s m êm es que c e lle s que
nou s tro u v o n s ch ez le s F on .
L a p rem ière fa m ille e s t c e lle de Davice ou Dahomé, qui co m p -en d Dadaho,
sa fem m e Nae, Dosu, e tc .; la d eu x ièm e e st c elle d e Da ou Dambira, qui
carresp on d a u P a n th é o n de Sakpata au Dahomey: Sapata, Dan, e tc .; la
tr o isiè m e e s t c e lle de Kevioso, le d ieu du to n n e r r e ; e lle en g lo b e Badé,
Avrêkête, Sobô, Abê, etc.
M ais à c e s Vodoun, q u i r e p r é se n te n t le s fo r c e s de la n a tu r e , v ie n n e n t
s ’a d jo in d re — à 1’in té r ie u r de la fa m ille Dahomé — le s a n c ê tr e s du lig n a g e
d es r o is d ’A b om ey, ti-a n sfo r m é s en Vodoun, e t qui reç o iv e n t e x a c te m e n t le
m êm e cu lte q u ’eu x , a in s i Zomadone, Agongone, Zaka, Dosu, Agaja. . . ce
qui p erm et d e p e n se r que le s fo n d a te u r s de la M aison (A C asa d as
M in a s) a p p a r tie n n e n t à la fa m ille ro y a le. N o u s a llo n s m a in te n a n t r en co n trer
d eu x ea r p x té r istiq u e s de la m y th o lo g ie F o n , don t n ou s a v o n s to u t lie u de
p e n se r q u ’ils so n t d es tr a its c u ltu r e ls F on e t p e u t-ê tr e m êm e a fr ic a in s en
g é n é r a l; m a is q u e le s a fr ic a n is te s n ’o n t p a s su en core v o ir e en A fr iq u e .
Ici a u ss i com m e pour la n otion de were ou éré, la rech erch e a fr o -a m é r ic a in e
o u v re d es v o ie s n o u v e lle s à la rech erch e a fr ic a in e .

Não é menos interessante esta informação de Bastide:

Le p rem ier de c e s f a it s , su r lesq u e ls n o u s a von s com m en cé u n e en q u ête


au D ah om ey, s ’a v ère b ien d ’o r ig in e F o n , b ien que n ou s n ’a y o n s p a s eu la
p o ssib ilité de p o u sse r 1’en q u ête ju s q u ’à la c o n stitu tio n du sy stè m e .

Nesse trecho da obra de Roger Bastide reponta a questão da fun­


dação da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão, pela Mãe do Rei
Guezo, posta em evidência por Pierre Verger e, depois deste, por Judith
Gleazon, em sua obra Agotime, Her Legend (Grossman Publishers,
Nova Iorque 1970).
E também reponta a tradição de que Mãe Andresa Maria era de
origem nobre, o que pressentira Roger Bastide, quando a visitou, e
sempre me pareceu no contato que desde criança tive com a sua pessoa.
Eis a tradução livre do «trecho» acim a:
O primeiro traço que ressaltaremos é a divisão dos Voduns em
famílias, exatamente como no Daomé, somente com esta diferença: no
Daomé, cada família tem uma confraria especial, enquanto, aqui, a
mesma confraria adora as divindades das diversas famílias; e os li-

7-1
mites que separam uma família da outra são absolutamente os mesmos
encontrados por nós entre os Fon. A primeira família é de Davice ou
Daomé, que compreende Dadaho, sua mulher Naê, Dosu etc.; a segunda
é a de Da ou Dambirá, que corresponde ao panteão de Sakpatá no
Daomé: Sakpatá, Dan etc.; a terceira é a de Kevioso, o deus do Trovão;
ela engloba Badé, Avrêquête, Sobô, Abê etc.»
A esses Voduns, que representam as forças da naturoza, vêm se
ju ntar — ao interior da família Dahomé — os ancestrais da linhagem
dos reis do Abomé, transformados em Voduns, e que recebem exata­
mente o mesmo culto que os outros, assim Zomadone, Agongone, Zaká,
Dosu, A g a já ... o que permite pensar que os fundadores da Casa
(Casa das Minas) pertenciam à família real. Vamos encontrar duas
características da mitologia Fon, nos ocorrendo pensar que são traços
culturais Fon e, talvez, mesmo, africanos em geral; porém os africa­
nistas não os souberam ainda ver na África. Do mesmo modo com
relação a were ou éré, a pesquisa afro-americana abre perspectivas
novas para a pesquisa africana.
O primeiro desses fatos, sobre os quais começamos uma pesquisa
no Daomé, evidencia bem a origem Fon, conquanto não tivéssemos a
possibilidade de estender a pesquisa até a constituição do sistema.

F a m ília H êv io çô ou Q uêviôçô

Mawu-Liçá ou Lissá ou Içá


Sôbô ou Sôgbô
Abê ou Agbê
Avêrêquête
Badé ou Gbadé
Loco ou Loko
Adjahutó
Alôque
Sapanan ou Xapanan ou Sakpatá?

Mawu-Liçá, Mawu-Lissá ou Içá, dos yoruba, é uma grande entidade.


Melville J. Herskovits, no capítulo XXVI de sua monumental obra
Dahomey A n Ancient West African Kingdom, diz que a personalidade
una de Mawu-Lissá (dois nomes próprios, míticos, ligados apenas por
um hífen) é diversamente designada como macho e como fê m e a...
andrógina, enfim . . . 16
16. M arie D elcourt, d ad a a estudos de h is tó ria das religiões (H e rm a p h ro d ite — rnythes et ritn \
de la bissexualité dans V a n tiq u ité cla ssiq u e), concordando, evidentem ente, com a conceituaçiío
de au to res, p resu m id a m en te m ais auto rizad o s, que se conhece, n o C apítulo I I dessa o b ra escreve:
“ On a lo n g tem p s adm is que les d iv in ités bissexuées n e so n t p a s u n e c ré atio n du gén ie hellónlquc.
E t l'o n a voulu re c o n n a itre u n e influence o rie n ta le d ans les croyances qui, plus ou m olns
sp o rad iq u em en t, p rê te n t les deux p o uvoirs à c e rta in es fig u re s du p a n th é o n classique. cellcH que
nous allons étu d ie r à p ré s e n t. E t cep en d an t, les p lu s anciennes théogonies, les p lu s authentlqueineul;
grecques, c o n n aissen t des ê tre s fé m in in s qui e n g e n d re n t sans époux. D ans ce cas, ran d ro g y n o
re ste p u re m e n te im p lic ite ; rie n n ’in d iq u e m êm e que les im a g in a tio n s a ie n t ja m a is songó ü la
p ré c ise r” .
E essa a u to ra re c o rre a H esíodo e a P la tã o , folheando a Teogonia daquele e o Banquete doalo,
como o fa ria , e n tre nós. B enedito N u n es, in O Dorso do T igre, estudando, n a o b ra de (hilmarftcN
Rosa, a p re s e n ç a do p erso n ag em D iad o rim : “ ser a n d ró g in o , que é, ao mesm o tem po, divino o
diabólico” . E de B enedito N u n es é este esclarecim ento: “ N ele o d ivino o o diabólico sflo

7f>
Darei aqui, portanto, a Mawu-Liçá ou Lissá e a Sôbô ou Sogbô
um lugar saliente, senão preferencial, nos esclarecimentos que se seguem,
já porque são divindades do Panteão do Céu e de uma hierarquia su­
perior, já porque, é claro, se tra ta de assinalar-lhes, além da femini­
lidade, certa ambigüidade sexual. . . Ambigüidade, é óbvio, apontada,
freqüentemente, entre pais e mães-de-santo, tanto dos terreiros do Rio
de Janeiro, Salvador, Recife, tipicamente Nagô ou Ketu, como nos de
São Luís e Belém, nestes chamados, impropriamente, jeje, tambor de
cura, tambor de mina, tambor de crioulo, tambor de sítio e centros,
ditos umbandistas.
Mawu-Liçá ou Lissá, ou Içá, pertence ao Panteão do Céu e o seu
lugar é entre os grandes deuses, segundo Herskovits; e isso fica nítido
nas linhas que lhe dedicou:

T h e w o r ld w a s c r e a te d b y o n e god , w h o is a t th e sa m e tim e both m a le


an d fe m a le . T h e c r e a to r is n e ith e r M aw u n o r L isa , b u t is n am ed Naná-
Buluku.
In tim e Naná-Buluku g a v e b ir th tw in s , w h o w e r e n a m ed M aw u an d L isa ,
an d to w h om e v e n tu a lly d om in ion o v e r th e r e a lm th u s c r e a te d w a s ceded.
To M aw u , th e w o m a n , w a s g iv e n com m an d o f th e n ig h t; to L isa , th e m an ,
com m an d o f th e d ay. M aw u , th e r e fo r e is th e m oon an d in h a b its th e w e st,
w h ile L isa , w h o is th e su n , in h a b its th e e a st. A t th e tim e th e ir r e sp e c tiv e
d o m a in s w e r e a s s ig n e d to th em , no ch ild r e n h a d a s y e t b een b orn to th is
p a ir , th o u g h a t th e n ig h th th e m an w a s in th e h a b it o f g iv in g “r e n d e z -v o u s”
to th e w o m a n , a n d e v e n tu a lly sh e bore h im o ff s p r in g . T h is is w h y , w h en
th e r e is a n e c lip se o f th e m oon it is sa id th e c e le s tia l co u p le a r e e n g a g e d
in lo v e -m a k in g in te r c o u r se w ith L i s a . . . T h e n a m e o f th e M a w u -L isa g rou p
o f g o d s is a lw a y s cou p led o f th e p a r e n ta l d e ity . N o r th w e s t o f A b om ey
lie s th e v illa g e o f D u é, w h e r e th e o n ly sh r in e to N a n á -B u lu k u in a li
D ah o m é is lo c a t e d .17

Episódios idênticos, da origem desses deuses, do ponto de vista da


bissexualidade, sobejam na antiguidade clássica; do ponto de vista da
cosmogonia, o mesmo ocorre, se estudarmos a impressionante orali-
dade dos chamados povos primitivos das Américas.
p erm u táv eis e sim bolizam dois m om entos d a a v e n tu ra que se rea liz a no hom em — o m om ento
a n ce stra l, do velho se r h u m an o dividido, que p e rm a n e ce p re s a das fo rç a s elem entares, m a te ria is
e sensíveis, e o m om ento p o r v ir, que le n ta m en te se p re p a ra , d a tra n s fo rm a ç ã o do h um ano
em divino, e em re la ç ão ao q u al a v id a c o n stitu i u m a in ic ia çã o e u m a a p re n d iz ag e m ".
T rad u z o o trech o acim a da a u to ria de M arie D elcourt:
“ A dm itiu-se, h á m u ito tem po, que as divindades b issex u ad as não são u m a c ria ç ã o do gênio
helênico. E q u iseram reco n h ecer u m a in flu ên c ia o rie n ta l n a s c re n ç a s que vam os e stu d a r no
m om ento. E, contudo, as m ais a n tig a s teo g o n ias, as m a is a u te n tic a m e n te g reg as, conhecem seres
fe m in in o s que e n g en d ra m sem esposo. N e ste caso a a n d ro g in la fica p u ra m e n te im p líc ita ; n a d a
indica que as im ag in açõ es ja m a is sonhassem em p re c isá -la".
17. T rad u zo o trech o a cim a p a r a le v a r o le ito r n ão fa m ilia riza d o com a lín g u a inglesa a te r um a
com preensão e x a ta do q u e é o culto dos V o duns, mesm o q u ando eles não são revelados a tra v é s
da m itologia, d a poesia e da lite ra tu ra o ral d a g e n te d a Á fric a N e g ra :
“ O m undo foi criad o p o r um deus que é, ao mesm o tem po, m acho e fêm ea. Seu c ria d o r não
é nem Lissá, m as se c h am a N a n á -B u lu ku . Em tem p o s idos N a n á-B u lu k u deu á luz dois gêmeos,
que se ch am aram M aw u e L issá, a quem coube o dom ínio «obre o reino do inundo criado.
Mawu, que e ra m ulher, recebeu o governo da n o ite ; Lissá, que o ra hom em , o do dia. M aw u
ó p o rta n to a lua e m o ra a ocidente, ao passo que L issá 6 o sol e h a b ita a o rie n te . E n q u a n to
lhes foi reconhecido o resp ectiv o dom ínio, esse casal não tevo filhos, em bora o hom em costum asse
p ro c u ra r u m ulher d u ra n te a noite. E s ta , porém , acabou lhe dando um filho. D aí p o r que
quando há eclipse d a lu a se diz que o p a r celestial OMtá ten do relação*. .. O nom e do g rupo
de deuHes M aw u -íd ssá co n stitu i sem p re um p a r de divindades p aren tal* . A n ordeste de Abomé
«Itua-so a vila do Dué, onde se e n c o n tra o ú n ico s a n tu á rio om todo Daom é dedicado a
Naná-Buluku".

7(5
Incluí, por exemplo, em minha obra Moronguêtá — Um Decameron
Indígena, o mito da criação de dois astros — o Sol e a Lua — narrado
pelos índios Cauaiua-Pirintintin, do Rio Madeira, Estado do Amazonas,
proeza do ciclo de «experiências» do herói-de-cultura Bahira ou Baíra
ou Mbaíra.
No entanto, como se verá, nesse mito, é absolutamente nítida a ca­
racterização do sexo dos dois personagens cosmogônicos.

O R IG E M DO SO L E DA LUA

Bahira foi quem criou o Sol e a Lua.


O Sol é homem. A Lua é mulher.
Bahira fez o membro do Sol da raiz de paxiúba.
E fez uma veia da raiz do apuizeiro, que pôs no sexo da Lua.
Dessa veia saía sangue.
E levou os dois para o Céu.
O Sol, porque é homem, sai de dia.
A Lua, porque é mulher, sai de noite.
Os homens na terra são como o Sol.
A s mulheres são como a Lua.

Mawu, como toda mulher, tem o espírito utilitário.


Num dos contos recolhidos por Susan Feldmann, na África, ela tem
um papel assinalável na origem do mundo e, conseqüentemente, no culto
dos Voduns mina-jejes.
Atribui-se-lhe, também ali, haver trazido do céu para a terra a
e s te ira ... (esse objeto de uso doméstico entre os povos africanos, e,
no Brasil, entre os do Nordeste e da Amazônia) que é imprescindível
em várias cerimônias do culto das entidades míticas e religiosas da
Casa das Minas, em São Luís do Maranhão.
A importância da esteira, face à sua origem celeste, fica patenteada,
de modo ilustrativo e documental, quando os Voduns têm de ir embo­
ra, virar, subir, desincorporando-se; pois cada uma das suas mulheres
ou filhas se arrasta, com a que ocupa, pelo chão, pronunciando, repe­
tidas vezes, esta expressão ritualística: Nai tarandê, nai tarandê. . .
No capítulo XXVIII sobre o antigo Reino do Daomé, Melville J.
Herskovits focaliza as personalidades dos grandes deuses do Panteão
do Trovão.
Ora, ali está às nossas vistas nada mais e nada menos do que
Mawu, com o nome de Sogbô, como é chamada pelos sequazes de Hevioso
(assim escreve ele) ou Quêviôçô como grafei na relação acima dos
Voduns da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão.
No ambiente daquela Casa é chamada Nôchê Sôbô e Mãe Sôbô, como
também grafei na citada relação.
Havendo criado o universo, segundo Melville J., Francis S.
Herskovits esclarece: «ela é a maior de todas as divindades, entre todos
os deuses, sendo que Agbê, seu filho (igualmente do Panteão do Trovão),
corresponde a Lissá no grupo da gente boa do Céu».

77
Herskovits escreveu, precisamente:
S ogb ô th e r e fo r e th e g r e a te s t o f a li g o d s, b u t h e r son , w h o is c a lled A gb é,
e x e r c ise s d irect c o n tro l o v er w h a t o ccu rs in th e u n iv e r se . A g b é o f T h u n d er
P a n th eo n co rresp o n d s to L isa , in th e S k y g ro u p o f god s.

Acompanhando a narrativa de Herskovits, vim a saber que, quando


Agbé se estabeleceu ele próprio no Mar, continuou a comunicar-se com
seus pais, «no ponto em que o Mar e o Céu se encontram, isto é, no
horizonte». E que, então, se disse que Agbé e seus filhos estão no Céu
e no Mar, porque a sua casa está situada onde os dois se encontram,
«isto ocorrendo porque, se morre alguém, esse alguém precisa dar contas
de sua vida ao governante a quem cabe cuidar da terra a que está
ligado».
E m ais: «Os olhos de Agbé, desse modo, à luz do Sol, se erguem
para o Mar, e, à tarde, voltam outra vez para casa».
A razão está no fato seguinte: «O Céu (de acordo com a palavra
de um alto sacerdote de Xeviosô transm itida a Herskovits) é mil vezes
maior do que a Terra».
Essas expressões, de estranho sentido esotérico ou mágico, ainda
hoje têm ressonância nas alusões feitas pela gente da Casa das Minas
aos mistérios que se ligam às suas leis.
Decifrados os textos de centenas de cânticos, em língua ainda não
identificada e, utilizada esta (como o latim o foi na missa, entre nós),
na liturgia dos Voduns, ali, seguramente, se acharão as chaves dessas
expressões.
Depois de Agbé, sua mãe Sogbô teve outros filhos que permane­
ceram no Céu, chamando-se:

Adcn
Akorombê
Adjaliata
Gbewesu
Akeló
Alasá
Gbadé ou Badé

Entre esses filhos tem alta posição o Vodun Badé, e uma filha,
Avêrêquête, dos quais me ocuparei adiante. Todos tiveram grande pro­
jeção na Casa das Minas.
Uma das minhas tias, Ida Alves Barradas, a tinha por senhor,
protetor, santo.
Nas indagações e pesquisas que fiz, tanto na Casa das Minas, em
São Luís do Maranhão, como no Bogum de Mãe Valentina, em Salvador,
Estado da Bahia, apenas o nome de um desses filhos de Sogbô, o de
Badé, me foi referido, sendo que Pierre Verger, em suas Notas sobre
os Orisa et Vodun, se refere a Aden, um Vodun masculino, talvez

78
porque se trate de divindades inferiores, que ali nunca fossem cultua­
das, ou já esquecidas na África Negra, mesmo no Daomé.
Gbadé ou Badé, entretanto, sendo mencionado na obra de Verger,
freqüentemente, por sua masculinidade, decerto é très violent, plus
méchant que tous les autres, tue en déchiquetant tout le corps. 18
Aden, para exercer igual violência, ainda segundo Verger, antes de
fulminar alguém, il fa it noir, il y aura des éclairs, la pluie tombe un
peu et Aden tue. 19
Comparando as personalidades desses Voduns, do ponto de vista
ético, surpreendeu-me a carga de heranças que legaram a seus filhos,
com os diversos domínios, no Céu, na Terra e no Mar.
E essa particularidade não escapou a Herskovits que registra o pro­
cedimento dos filhos dos grandes deuses, das divindades, que, explorados
pelos pais astute, capricious, intractable, representam o papel de obsti­
nados e indisciplinados nos respectivos panteões.
Desentendem-se Sakpata e Heviosô no episódio da distribuição da
chuva, que dependia de Heviosô, mas Sogbô supervisiona o procedi­
mento de todos eles, ocupados na direção dos negócios do Céu, como
Agbé e sua prole no Reino da Terra, e é ela que exige a distribuição
imediata e eqüitativa da chuva sobre a Terra.
Deixando de parte (nesta altura de tão copiosa e necessária cita­
ção, como se verá adiante, de Melville Herskovits) a figura de Sogbô
ou Çôbô — para autenticar a estrutura social, hierárquica, divina dos
Voduns dos Panteões do Céu, Terra e Mar, do antigo Reino do Daomé,
na sua relação com os dos Voduns da Casa das Minas, de São Luís
do Maranhão — vou apreciar, com o auxílio do citado autor e de
outros autores, cujas obras tenho às mãos, as figuras de Afrêquête e
a de Badé, sendo a primeira filha de Agbé e Naété e o segundo filho
de Sogbô.
E ra Afrêquête (Avêrêquête, dizem em São Luís do Maranhão e
em Salvador, na Bahia), dentre os demais filhos e filhas do casal Agbé
e Naeté, a filha que, sendo ainda de tenra idade, seria a mais mimada
e sagaz da família. E não só: a mais favorecida, representando, no
grupo mitológico, o papel de trapaceira, comparável, assim (segundo
opinião de um alto sacerdote do Daomé a Herskovits), ao divino tra ­
paceiro Legbá, embora um outro informante asseverasse que Avêrêquête
é o dokpwegá do Panteão de Quevioçô ou Xeviosô; e um terceiro infor­
mante ligasse o seu papel ao do grupo dos deuses Agbé, Mawu e Lissá.
Ela conhecia todos os segredos dos seus pais, e desde que guardava
todos os tesouros do Mar, ela era a mais rica da família.
Era, igualmente, grande indiscreta e maledicente.
Dessa maneira, quando seu pai (Agbé) se deitava com sua mãe,
ela os espiava e contava o sucedido a toda gente.
18. " . . . m u ito violento, p io r que todos os ou tro s, m a ta dilacerando todo o c orpo".
19. "E scu rece, h a v erá re lâm p ag o s, a chuva cai um pouco e A den m a ta " .

79
Sua propensão para a maledicência se refletia em sua própria dança,
pois, a fim de ilustrar seu procedimento, põe um dedo nos lábios como
se quisesse dizer: «Não conte o que eu lhe disse!»
De fato (continua o autor que venho citando) «quando circula uma
notícia e não se atinge o ponto de origem, diz-se logo que foi Avêrêquête
quem espalhou».
Pierre Verger, a respeito dessa divindade, no lugar que lhe tem o
nome, recolheu estas informações:

A v ê r ê q u ê te f a i t d es fa r c e s e t d es g r im a c e s p a rce q u e c ’e s t la p lu s je u n e
de to u s e t e lle v e u t f a ir e r ir e le s g e n s. Q u an d il y a réu n io n c’e s t e lle qui
v a in v ite r le s a u tr e s p ou r rép on d re à l ’a p p el du c h e f . 20

E tal é a importância desse Vodun que:


À K eto n u , le s H u a la d ise n t ê tr e v e n u s du p a y s H u a la D je k e n e t d on n en t
u n e lis t e de r o is q u i d éb u te p a r le m êm e n om que c e lu i de A v ê r ê q u ê te .21

Páginas atrás adiantei que uma das minhas tias (pertencendo ao


grupo de gontaís, da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão) tinha
como protetor ou santo o senhor ou Vodun Avêrêquête.
Das incorporações, possessões, estados de transe em que, inúmeras
vezes, vi minha tia Ida, guardo lembranças de violência, quedas, pranto,
imprecações, lado a lado de expressões aleivosas, insultos, indiscrições
que, livre do domínio do seu Vodun, ela sempre era incapaz de emitir.
E, certa feita, acompanhando-a em Belém, à casa de um Negro
feiticeiro de grande fama (Libório ou Libânio?), pude verificar que
ela, à simples pronúncia do nome de Avêrêquête, rasgou a manga da
bata, aderida ao braço direito, e mergulhou este numa enorme panela
de alumínio, contendo caruru, em grande ebulição, desafiando o feiti­
ceiro a imitá-la — não a atendendo ele.
Mas, na vida quotidiana, minha tia Ida era tímida, de viva inte­
ligência, afável, acessível, profundamente humana, como esposa, mãe
e amiga.
Dançando, em Casa das Minas, em São Luís (aonde, vez por outra,
ia cumprir suas obrigações, levava-me em sua companhia) ou na pró­
pria residência, numa ilustrativa demonstração da beleza da coreogra­
fia litúrgica dos Voduns, a sua figura era imponente, dominadora, nada
tendo da do trapaceiro Legbá.
Amada pelos daomeanos, no conceito de Herskovits, Avêrêquête o
era, igualmento, de modo excessivo, por Sôgbô, sua mãe.
Recolhi, com duas informantes, filiadas à Casa das Minas, a mara­
nhense Enediiui Oliveira e a paraense Zuleide Figueira de Amorim,
20. "A vêrêquflto fim fa rs a s o c a re ta s p o rq u e A a m ais jovem de todos e q u e r que to d a g e n te ria .
Q uando h á um » MuinMo, (\ ela que vnl co n v id ar os dem ais p a r a a te n d e r 110 cham ado do chefe” .
21. "K m K etonou nu II unia dizem te r vindo do p a is cham ado H uala D jeken o dito um a lis ta de
ruis. quo ó inlolada pelo nom e diuio a A vrequeto” .

80
um cântico que registra a visita feita por Sôgbô à sua tão mimada e
terrível filha, um enfant gâté no Panteão dos Voduns da Família
Queviôçô.
Ei-lo, com a precisa letra da gravação que fiz para a Universidade
Federal e para a Secretaria de Educação e Cultura do Estado do
M aranhão:

Panha ce panha vêzun


nô cabê do manuê
panha ce panha vêzun
nô cabê do manuê
atira Nocê Sobô
nô cabê do manuê
panha ce panha vêzun
nô cabê do manuê.

Mas, com relação a Avêrêquête, propriamente, Pierre Verger reco­


lheu e divulgou, em Notes sur le culte des Orisa et Vodoun, apenas o
fragmento de um cântico, que aqui transcrevo:

Avrekete do edahwame penaio


Avrekete

{Je suis dans ton groupe, le groupe ne sera cassé. Estou no teu
grupo e o grupo não será partido).
Realmente Sôgbô é um grande Vodun, mas sua filha, de caráter
irrequieto, arguta e hábil, no fiar e desfiar situações equívocas, é
uma poderosa divindade. E assim o reconheceram os seus adeptos fiéis,
em terras do Antigo Reino do Daomé, e ainda o reconhecem os vodunce
da Casa das Minas de São Luís do Maranhão.
Ela, Avêrêquête, era a que concentrava, em sua personalidade, mais
poder sobrenatural, mais força divina, mais energia telúrica, mais vio­
lência física, mais astúcia.
Na área do sincretismo Sôgbô é apresentada como Santa Bárbara.
Avêrêquête não baixa mais, como o fazia, freqüentemente, na Casa
das Minas.
Na Casa das Minas ouvi dizer que o mesmo Quêviôçô ou Iíeviôçô
é Badé; e Sô, também, é um dos seus nomes.
Ele, como disse atrás, sendo Badé, é filho de Sôgbô.
Ocupar-me-ei, portanto, a seguir, da personalidade de Badé.
No entanto, se se manifestar interesse em saber onde ele vive, logo
informarão que é na Casa de Nagô, ali perto, na vizinhança du Fonte
do B ispo...
E mais esta particularidade: vindo de lá, no decorrer desta ou dn
quela festa religiosa, para a Casa das Minas, prontumente entra em
mutismo absoluto, de modo que só se expressará, por precaução ou
imposição secreta através de sua filha ou noviche, em estado de transe,

Ht
recorrendo à mímica, o que, singularmente, lhe acresce a misteriosa
grandeza da personalidade.
Mas esse silêncio não cessa ao regressar ele à Casa de Nagô, pois é
da sua própria natureza divina ou por que só usará da palavra no
interior do pégi, daquela casa?
Explicaram-me, então, que isso acontece para que, vindo à Casa
das Minas, não revele aos fiéis de lá os «mistérios» próprios da Casa
de Nagô, por prescrição sigilosa de sua direção superior, podendo-se
concluir daí que existe uma diferença estrutural, bem marcada, entre
a gente que cultua os Voduns à maneira daomeana e à maneira ioru-
bana, como nos ritos maçônicos.
De Mãe Hosana, que o recebia, ao tempo em que eu deveria ter
apenas quatro anos de idade, guardo uma lembrança descolorida como
a de um velho retrato sob camadas de umidade e pó, mas nunca pude
esquecer as suas linhas gerais, de descendente de africanos, duma se­
renidade de atitudes que só os cegos têm estampada no rosto e se
reflete nos seus gestos.
Tinha um bonito rosto de mulher, sombreado pela cabeleira alvís-
sima, dividida em bandós.
Minha mãe — quando eu ainda tinha um pouco menos daquela
idade — me deu, isto é, consagrou (dizem), primeiro, a Póli-Boji,
que era o seu Vodun.
Tratava-se, possivelmente, de uma tradição, de caráter social tanto
quanto de afetividade ou predileção, simpatia e confiança.
Nada apurei em relação a esse gesto em que se poderia ver, apres-
sadamente, um rito de passagem. E nem parece que se ligava à ne­
cessidade de, através do filho, minha mãe prolongar os compromissos
de adoração desses Voduns, assumidos nas fases de sua iniciação no
culto mina-jeje.
Filomena, substituta de Leocádia, na Casa das Minas, na ala dita
«Lado de Dambirá» onde passava os dias, sempre me contava minúcias
desse episódio de minha vida, salientando que minha mãe, ao vê-la
carregando Póli-Boji, isto é, em estado de transe, me deu a ele.
Algum tempo depois minha mãe, em novo encontro com Filomena,
que carregava Póli-Boji, perguntou se ele não me podia dar a Badé.
E, concordando o Vodun (que era senhor de Filomena, também
de minha mãe e de Andresa M aria), deu-me ele a seu amigo que, no
momento, estava incorporando em Mãe Hosana.
Com essas recordações nenhuma se mistura à de outra, da minha
meninice, caracterizando a violência fulminante, a brutalidade animal,
que transfiguram os Voduns, ora referidos, não raras vezes, como
ocorria entre as divindades dos gregos ou romanos, segundo a mito­
logia destes.
Porque, para Herskovits, Badé ou Gbadé, pertence ao Panteão do
Trovão, tendo livre trânsito pelo Céu e pela Terra; e é um malfeitor
(evildoer) perfeito, que nunca se corrige.
Sua mãe, Sôgbô, lhe transm itiu a cólera, exaltando-se ele facil­
mente, o que o impele a aniquilar tudo o que se lhe depara.
Ele é a voz estrepitosa e aterrorizante do Trovão, é a força que
deflagra a carga irregular dos raios, ziguezagueando entre nuvens, aba­
tendo florestas, encapelando as vagas nos rios, lagos e mares.
Não obstante, grande fraqueza tem Sôgbô por esse filho, repreen­
dendo-o apenas, gentil e maneirosamente, ante o estrondoso ressoar do
Trovão, murmurando, súplice: «Não mates! Não mates! Acalma-te! Não
te vingues da humanidade!»
Como Queviôçô cavalga a Serpente Arco-íris, Badé cavalga os co­
riscos, enquanto Dadahô cavalga um corcel árdego e indomável.
O Trovão, deflagrado por Badé ou Gbadé, causa a eclosão dos ovos
dos lagartos, dos pitões e crocodilos, facilitando a multiplicação incon-
trolável de ninhadas e ninhadas desses animais, que se alastram pelo
universo.
E, já que Badé é forte e temerário, quando mata alguém, despedaça-
lhe, furiosamente, todas as partes do corpo.
Não há obstáculo, nem altura, nem distância que não vença, pois,
segundo a tradição acima referida, Sôgbô lhe deu a Serpente Arco-íris,
para o transportar por toda parte, a fim de que ele, como executor de
malfeitos, se movimente mais freqüentemente que os seus irmãos.
Assim, quando se movem as nuvens e são vistas à distância,
ouvindo-se a voz do Trovão, a gente sabe que a chuva está caindo,
embora se ignore onde.
Diz-se, então, que Badé está visitando «outros países».
Como Badé é um favorito de sua mãe, também é um poderoso
indisciplinado, à maneira de Avêrêquête, no Panteão do Céu.
Essas duas divindades, Badé e Avêrêquête, ao contrário de Sôgbô
— que é, entre os grandes Voduns, uma construtora, que rege as
grandes chuvas e detém o poder de criar —, não fazem outra coisa
senão destruir.
Badé ou Gbadé, segundo Milo, é identificado na figura de São
Pedro, mas esse autor acha apenas provável que esteja associado aos
Ventos, à Tempestade, aos Raios.
Num cântico, recolhido em terreiro do Haiti, é salientado, com iro­
nia, que Badé não é manga (mangueira), nem cabaça, nem melão.
Quando eles me sondam é a Tempestade que sondam, ê!
Quando eles me sondam é o Raio que eles sondam, ê!

Ainda, segundo o mesmo autor, Badé foi um grande general, mas


hoje os seus ossos mesmo não valem nada. . .
Na Casa das Minas, entretanto, a sua figura se projeta numa dança
algo marcial, brandindo, à guisa de espada, a bengala que empunha.
Ele é um bravo, um herói que, num desenho de Hector Hyppolito,
dentre tantos outros, da obra de Milo, se apresenta, pitorescamente, de
chapéu bicorne, túnica de gala, distribuindo raios fulminantes.
Seu grande amigo é Póli-Boji.
Mas esse general — no conceito do povo — como seu irmão Sôpô-
Kesseu, é um corpo (cocu), um ludibriado pela esposa.
E tamanha desgraça é confirmada e divulgada neste cântico:

A mulher de Badé passou a noite na orgia, ê!


A mulher de Badé passou a noite na orgia, ê!
A mulher de Badé passou a noite na orgia, ê!
Oh, na Guiné, nós nos vingaremos!

Eoco ou Loko, que é o Vodun dos panteístas, tanto no Brasil como


no Haiti, está ligado à dendolatria, isto é, ao culto dos vegetais, sendo
identificado como São José; e é, como Badé, um m ilitar de alta pa­
tente, simpático, armado de um rijo bastão e portando um cachimbo
de barro, pendente de um canto da boca.
Seus diferentes atributos e símbolos — segundo Milo — são a
bananeira, o camaleão, o anolis (?) verde, a borboleta amarela.
No santuário dos Voduns é representado por um pedra e dispõe
de um nicho — árvore que lhe serve de residência —, um médicinier
bento ou uma verbena, sendo esta cientificamente chamada Stachyta-
pheta jamaicensis (L) V ahl.; o seu dia é a segunda-feira e a cor
amarela é a de sua predileção.
Tem o nome ligado à independência da República do Haiti, pro­
clamada a l 9 de janeiro de 1804, na praça das armas de Genaives, pelo
General-chefe do Exército Nacional Jacques Dessalines.
Ajahutó ou Adjahutó é um Vodun ligado não somente à hierarquia
celestial mas, também, à dinastia dos Reis de Sado e A lada.22
Foi rei, sob o nome de Kpon Kpon ou Konkpon, tendo-se curvado
à ação mágica de um príncipe iorubano, de Ijiba Ado, chamado Adibola.
Definindo as características étnicas e éticas da família de um rei,
M ontserrat Palau Marti o faz neste texto:

N u n c a u m p r ín c ip e p od e d a r u m r e i ao m undo, p o is a m ã e de u m r e i é,
P or d e fin iç ã o , u m a v a g a b u n d a ; de m odo q u e a d escen d ên cia s e in sc r e v e
n u m a lin h a p a tr ilin e a r rea l, q u e receb e u m a co n trib u içã o c o n sta n te d e m u ­
lh e r e s n ã o r e a is.
Este modelo nos é apresentado nos mitos de Bénin e de Sado, insistindo,
estes últimos, particularmente, sobre esse aspecto das coisas.
Oranyan, vindo de Ifá, desposou certa mulher de uma família de Bénin
— uma estrangeira.

22. N n «uii p laq u eta, in titu la d a S ã o Jo ã o B a p tista de A ju d d (C adernos C oloniais, L isb o a s .d .),
K dm undo C o rre ia L opes desdobrou u m cap ítu lo , o n ú m ero IX , sob o títu lo “ R ei M orto, Rei
P o sto ", com u m a n o ta de p é de p á g in a , d u p la m e n te cu riosa, j á pelo v a lo r de a n ed o ta, já
pela p u rtlc u la rid a d e de m o s tra r a convicção de um dos re is sacralizados em te r r a s do D aom é:
A danrlosan,
llnsa n o ta se p re n d e ao tre c h o do re fe rid o c ap ítu lo , red ig id o n e ste s te rm o s: “ N o an o seguinte,
ou cru p rin c fp lo s de 1750, A d an d o san , que j á re in a v a um pouco m al-hum orado, p rovidencialm ente
m o rr e u ,. . "
A t vem a a n ed o ta:
" C o n tra as su a s tenções. Os re is do D aom é n ã o m o rrem .
O uern ....... p a g a rá , se vós m o rre rd e s ? P e rg u n ta v a o c ap itã o B osm an a A dandosan, em p restan d o -
Ihe oem libras.
D escanse. Ku viverei sem pre, respondeu com g ra v id a d e ".

84
E m S ad o, a m u lh er que deu n a sc im e n to a A ja h u tó n ã o era u m a p r in c e s a :
n u m p rim eiro m ito , de fu n d o d aom ean o, u m a e sp o sa do R ei de S ad o e n co n ­
tr o u u m d ia a p a n te r a A g a s u q u e a em p ren h ou , d aí n a scen d o A ju h u tó do
c lã da m u lh er, q u e é n o m in a lm en te in d icad o no m ito , a fim d e m a r c a r bom
su a o r ig e m n ã o real.
N u m o u tro m ito, de fo n te d ao m ea n a , n ã o o fic ia l, d e sta v e z a m ãe de
A ja h u tó e r a u m a m u lh er do povo que d esp osou um p r ín c ip e d e B é n in ;
o p r ín c ip e p o ss u ía u m a o u tr a e sp o sa , de sa n g u e r ea l, q u e, en ciu m a d a , ven d o
a o u tr a m u lh er g r á v id a , co n se g u iu q u e o m arid o a r e p u d ia s se ; e la fo i
rec o lh id a p or m u lh e r e s do r e i Sado e seu filh o n a sc e u no p a lá c io : a c r ia n ç a
fo i A ja h u tó .

A citação seguinte mostra como era estranha a linha de sucessão


dos reis nas terras dos Minas jejes, Nagôs e Iorubanos, mas, através
da mesma, já será antecipada a descrição de uma parte importantíssi­
ma da cerimônia mortuária a que assisti, em abril de 1970, na Casa
das Minas, de São Luís do Maranhão.

Q uando o c a d á v e r f ic a r d ecom p osto e n ão so b ra r sen ã o o esq u eleto , ab re-se


a se p u ltu r a (d o r e i ) , d e n ovo, p a r a s e p roced er ao q u e se ch am a, p or
m o tiv o d e com od id ad e, fu n e r a is d e fin itiv o s . S ão o s “g r a n d e s c o stu m e s” do
D aom é. N o lo c a l do tú m u lo e r ig e -s e u m a c a s a q u e s e r á p a r a o rei su a
h a b ita ç ã o e s e u tem p lo p a r a o s o u tr o s : a li se d ep orá o c r â n io do rei.
E r a , p elo m en o s, u m co stu m e em P o r to N o v o , q u e se d e v e r ia p r a tic a r ta m ­
bém em S ado.
K o n k p o n -A ja h u tó su b s titu iu su a ca b eça r itu a l (ajaka) p elo c râ n io do rei
q u e e le m a ta r a . E , bebendo n o c r â n io , o su c e sso r a b so r v e a v id a do rei,
e s s e p r ín c ip e que, p a ssa n d o a tr a v é s de d iv e r so s r e is, r e p r e se n ta a con ­
tin u id a d e do r e i p ro p ria m en te d ito. A m a n ip u la ç ã o d a s ca b eça s r e a is era
ig u a lm e n te p r a tic a d a e n tr e o s Ioru b an os.

Sapanan ou Xapanan é o mesmo Sakpatá e Acossi, também cha­


mado «O Velho».
Ele não é, propriamente, a Varíola, mas o Vodun que o domina e
utiliza como bem entender, o mesmo acontecendo com outras moléstias
epidêmicas.
Prosseguindo na linha de esclarecimentos que entendi reunir nestas
notas, cabe aqui informar que Heviôçô ou Quêviôçô, não apenas dá nome
à sua família, mas, nela, figura com a majestade de um rei, que ele o
foi, aparecendo na teogonia Fon (como esclarece M arti) ao lado de seu
irmão Sakpatá, que é Sapanan ou Xapanan dos Iorubanos, e, na Casa
das Minas, é o próprio Acossi!
E Sakpatá, também, era rei, querendo ambos subir ao mesmo trono.
Cabia o direito a Hêviôçô (lê-se no capítulo intitulado por Marti «Ia;
roi mystique»), pois era o irmão segundo. Sakpatá conseguiu, entre­
tanto, arrebatar-lhe o trono; e Hêviôçô, não podendo recuperá-lo, znn
gado, voltou para o Céu.
Marti salienta um fato, de grande sentido social e político, na
vida mítica desses reis-deuses.
S i o n c la s s e d a n s u n ta b le a u to u s le s m y th e s d’o r ig in e d e la r o y a u té que
n o u s v e n o n s d ’e x a m in e r , il a p p a r a it u n e so r te d ’éq u ilib re in s ta b le e n tr e
s itu a tio n s de d r o it e t s itu a tio n s de f a i t : c e u x q u i o n t le d ro it p ou r eu x
s e tr o u v e n t d ép o sséd és e t le roi r è g n e en f a i t e t à l ’e n c o n tr e du d ro it.
S e u l O ra n iy a n e s t u n roi q u ’on p o u r r a it a p p e le r le g a l. On p eu t en core
rcm a rq u er que lo rsq u e le ro i d ép ossed é se tr o u v e ê tr e le fr è r e c a d e t, il
f a i t d es te n t a tiv e s p o u r r écu p érer le tr ô n e ; m a is lorsq u e le d ép osséd é e st
l ’a ín é , il cèd e s a n s lu tte . 23

É interessante registrar-se, de passagem, que Marti, estudando (no


capítulo XII de sua obra Le roi dieu au Bénin) a organização da
família do rei, no Daomé, situa Quêviôçô ou Hêviôçô no segundo siste­
ma dos diferentes modos de sucessão que lhe foi possível analisar e
no tipo A, nos quais inclui (como já encontrara nos mitos de Oraniyan
e seus irmãos — Oyo) d’Odudwa e Orisha (Ifá ou Fá) Sakpatá e
Quêviôçô e os dois filhos gêmeos de Avajo.
Quêviôçô (como Mawu-Lissá pertence ao Panteão do Céu) pertence
ao Panteão do Trovão, esclarece Herskovits, distinguindo-se o ritmo
dos toques de tambores, em sua honra, dos de Legbá e Mawu-Lissá,
nas cerimônias realizadas em homenagem a esses Voduns ou nas inicia­
ções de novos elementos femininos do culto.
Relendo agora as páginas que Herskovits dedica às cerimônias do
culto aos Voduns, no Daomé, logo me ocorreu à lembrança que, se nela,
Legbá, armado de enorme falo, investe contra as noviças e mulheres
agrupadas, em esteiras, sob uma árvore, também entre os índios Tucuna
(descidos do Peru para o Solimões, nos limites do Município de São
Paulo de Olivença, Estado de Amazonas) por ocasião da Festa da
Moça Nova, por eles denominada Voreket, aparece um bailarino, com
máscara de Macaco e de Demônio, este denominado Toé, ameaçando
violá-la e às demais mulheres ali presentes.
Esse Legbá, que aparece ao fim da longa citação acima, merece
uma apresentação, ainda que ligeira, porque é, como se verá, íntimo de
Mawu-Lissá. E não só: tem personalidade polimorfa, colorida e di­
nâmica. E dessa personalidade tra ta Honorat Aguessy, num excelente
estudo publicado na Revista do Centro de Estudos Afro-Orientais, n.
10-11 (1970), de São Salvador, Bahia.
O título desse estudo é : Legbá e a Dinâmica do Panteão dos Voduns
do Daomé.
Logo após referir-se à divindade superior Mawu, como um ante­
passado fundador de cada linhagem (ako), Aguessy põe em foco a
figura, real ou mítica, de Fa, que «constitui a divindade da ordem», e,
segundo lhe parece, no entanto, «não é a forma de expressão decisiva
do Panteão Vodun».28
28. A tra d u ç ã o do trech o a cim a é a seg u in te:
"S e se classificam n u m q u ad ro todos os m ito s d a origem d a realeza, que acabam os de e x a m in a r,
a p a re c e u m a espécie de eq u ilíb rio in stá v el e n tre a s situações de d ire ito e a s situações de fa to :
oh que têm o d ireito a seu fa v o r se en co n tra m logrados: o re i g o v ern a de fa to c o n tra o
direito. Só O ra n u ya n é um re i que se p o d e ria c h am ar legal. Pode-se re g is tra r a in d a que,
quando o rei desapossado é o irm ão m ais novo, faz te n ta tiv a s p a r a re c u p e ra r o tro n o ; m a s
q uando o desapossado é o m ais velho, ele cede sem lu ta ” .

86
E, então, adianta, em relação à figura de Legbá:

N a q u a lid a d e de p o rta -v o z do cr ia d o r , tem e le ( F a ) su a a n títe s e — L egb á,


d iv in d a d e do im p r e v isív e l e do in a tr ib u ív e l. D e sse m odo, L eg b á re p r e se n ta
o tr á g ic o q u o tid ia n o , o a lé m do b em e do m a l, concebido p e la socied ad e.
N e le o bem e o m a l se e n tr e la ç a m . E is a a n títe s e p od erosa q u e fecu n d a
o P a n te ã o V od u n , no q u a l a a çã o do “lu g a r m a rca d o ” d u p lic a -se com a
do d eslo ca m en to con tín u o.

Legbá é o intérprete categorizado das línguas faladas pelos Voduns


entre si e, através das suas filhas em transe, com os filhos e filhas
da Casa das Minas ou da Casa de Nagô, este ou aquele simples con-
sulente, esperançoso ou aflito, da mais alta ou da mais modesta camada
social de São Luís, que os procuram.
Ele é o transmissor de pensamento, recomendações, receitas, avi­
sos, conselhos, aos seus sacerdotes, sacerdotisas e fiéis, adoradores e
reverenciadores.
A sua presença domina barreiras, caminhos e encruzilhadas,
abrindo-os, iluminando-os ou entulhando-os e fechando-os, por delibe­
ração própria ou ordem dos Voduns.
Os cemitérios têm nele o seu guardião alerta e temível.
As forças que lhe foram atribuídas são divinas e humanas, mágicas
e naturais, idênticas às de um Proteu, na Grécia antiga, Siva e Krishna,
na índia multimilenária, de Jeová e de Moisés, na Judéia.
Por isso, conforme a circunstância e, quando o entende, é, também,
um trapaceiro, um mistificador, um mentiroso, um velhaco.
No contato com os Voduns, como com os mortais, ele suplanta, nos
seus golpes de astúcia e de humorismo, em pincéis cômicos ou trágicos,
o Eulenspiegel da Alemanha e de Flandres, o Peer Gynt da Suécia-
Noruega, o Gargantua da França, o Malazarte do Sertão Nordestino,
Jurupari, Bahira, Macunaíma e Poronominare das selvas e campos da
Amazônia brasileira, o Fripon Divin dos índios da América do N o rte ...
Seu nome varia com as regiões em que o apontam os africanólogos
e os folcloristas, no antigo Reino do Daomé ou de Ketu, no Haiti e Cuba,
no Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Sal­
vador, Recife, Natal, São Luís, Belém, Manaus, Porto Velho e Rio
Branco (Estado do Acre).
Ele é, enfim, Exu-Legbá, graças à força de ligação cosmogônica
(cujo símbolo é um hífen apenas), força que liga, como aquele outro
hífen, Mawu-Lissá.
Os demais Exu (Exu-Tiriri, Exu-Miri etc.) são projeções menores
de sua gigantesca, dinâmica e desorientadora personalidade, tão divina
quanto diabólica.
E porque as forças atribuídas à Natureza têm sua expressão, quer
entre os deuses, quer entre os homens, na virilidade, Legbá é um
pan-sexual, de uma truculenta agressividade, tal a atribuída a alguns
dos seus semelhantes, acima citados, sendo senhor de um pênis longo

87
e disforme, como o de Poronominare ou daquele herói da mitologia gua­
rani apontado por Curt Nimuendaju, em terras dos Apapacuva.
Foi assim que o viu Arne Falke Ronne, registrando-lhe a alcunha,
em terreiros do Haiti, de Baron Sontag (enquanto Milo Marcellin o
chama Baron Samedi) dele dizendo que é um
u n angenehm er H err; e r is t a u ch W á c h te r d er F r ie d h o fe , doch v o r
a liem is t er f ü r ju n g e M ád ch en g e fá h r lic h , d a er, g e lin g e g e s a g t, ein
u n e r s á ttlic h e r E r o tik e r is t, d er in 24 S tu n d e n m it 3.500 F r a u e n fe r t ig
w ird . (T e x to a o lad o de u m a ilu str a ç ã o , n a ob ra Zum Amazonas, e re­
fe r ê n c ia à s p á g in a s 3 2-75, r e sp e c tiv a m e n te , do a u to r c i t a d o ) . 24

Vou estender-me agora sobre a Família Dambirá, cuja estrutura


social e mítica não é menos interessante que a de Quêviôçô, como
so verá:
F a m ília D a m b irá
Aboju
Acossi ou Sakpanan ou Xapanan
Alôgue Irm ã o s
Arrôeêju Doçalabê
Azile ou Ezile Euá
Azone
Bagolo
Boçucó
Bôrôtoi
Lepon
Póli-Boji

Os Voduns, que constituem a Família Dambirá, chamados Acossi


ou Sakpatá, Azili ou Exili, bem como Azonce, são velhos, por isso
sempre são referidos, respeitosamente, pelo designativo de Toi.
Toi significa «Pai».
Dizem na Casa das M inas: Toi Acossi, Toi Azili, Toi Azonce.
24. A tra d u ç ã o liv re do tre c h o a cim a é a seg u in te:
é um sen h o r d esag rad áv el; tam b ém é o g u a rd iã o dos cem itérios; n a o p in iã o g e ra l é
perigoso p a r a as jo v en s donzelas, sendo um eró tic o insaciável, que em 24 h o ra s consegue te r
relações com 3.500 m u lh eres” .
R oger B astide, a quem escrevi a re sp eito de Legbá, cita n d o esse tre c h o da o b ra de F a lk e R onne,
respondendo-m e, a 1? de ju n h o de 1973, escreveu: “ J ’a i lu avec beaucoup d ’in te rê t v o tre lettre.
II e st év id e n t que p o ssu ir n ’e st p a s copular. M ais à B ah ia, E x u n e possède p a s de filies
n on plus. E x u n e s’in c a rn e ja m a is, c a r il n ’e s t p a s u n O risha m a is u n quasi-dieu, u n
In te rm é d ia ire . II n e p e u t p a s posséder u n e filie q u ’en e n v o y an t O gun à s a place” (cf.
p. 207).
E is a tra d u ç ã o do tre c h o acim a:
“ L i com b a s ta n te in te re sse a su a c a r ta . É evidente que p o ssu ir n ã o é copular. M as n a
B ah ia E x u n ã o possui donzelas, de je ito n en h u m , E x u n u n c a se e n c a rn a , po rq u e ele não
ó um O rixá m as um quase-deus, u m In te rm ed iá rio . N ã o pode p o ssu ir u m a donzela senão
m andando , em seu lu g a r, “ O g u n ” .
A tra v é s de u m a das n a rra tiv a s , devidas a H ersk o v its, in T h e D ahom ean N a rr a tiv e , in titu la d a
“ W hy L eg b a ta k e s ali w o m en ?” (II, p . 148) é que se sabe c h am ar-se N u n d e a m u lh e r de
L egbá, que F a deflorou, n a a u sê n c ia deste.
Zuíeide F ig u e ira de A m o rim , in te rp e la d a p o r m im a re sp eito dos V oduns que constituem a
F a m ília D am b irá, cito u dois deles que seriam irm ão s: Boçalabê e E uá.
C onsultando, e n tre o u tro s a u to re s que m e são acessíveis, como F robenius, H ersk o v its, Roger
B astide e P ie rr e V e rg e r, à p á g in a 54 d a o b ra N o te s su r le cultes des O risa e t V o d u n s, só
enco n trei o seg u in te: “ N o rb e rt N o rris é c riv it en 1775 les M ém oires du règ n e du B ossa-A hadée
roi du D ahom é”.
B oça-A hadée, como se vê, foi u m p erso n ag em h istó ric o , divinizado, depois de m orto, como
o u tro s aqui referidos.
K E u á ? N a d a e n co n tre i a re sp eito n a s o b ras dos re fe rid o s a u to re s. E os A k o v ilé ? Seriam ,
segundo a m esm a in fo rm a n te, “ os V oduns que c h eg a ra m p o sterio rm e n te p a r a in te g r a r a s fa m ília s ”
que estou focalizando.

88
E mesmo ao nome de outros Voduns juntam esse designativo: Toi
Póli-Boji, Toi Badé.
Acossi ou Sakpatá ou Xapanan, Azile ou Ezile e Azonce estilo
à frente das Pestes, Dores e Sofrimentos (físicos e morais).
O sincretismo vê neles os santos católicos Lázaro, Roque e
Sebastião.
Acossi é o Sakpatá ou Xapanan dos Iorubanos e, em certas cir­
cunstâncias, Exu.
No fundo do Gume, da Casa das Minas, está Acossi, com a sua
comida num pequeno prato de argila, suspenso de um galho de pião-
branco, sua planta sagrada, que os botânicos apontam como sendo da
família das Euforbiáceas.
Característica dessa ligação de Acossi, por exemplo, com as Pestes,
principalmente com a Lepra, é m ostrar esse Vodun as mãos em garra,
ao dançar, como as mãos de um indivíduo atacado dessa enfermidade,
sendo-lhe o andar, também, trôpego e claudicante, naquela típica
marche en faucille que os leprólogos apontam nos lázaros.
As criaturas por ele possuídas ou incorporadas, isto é, levadas ao
estado de transe, se têm traços de beleza, no rosto ou em todo o corpo,
ganham máscara horrenda, deformações de monstros, crispam-se-lhes
os dedos das mãos e dos pés, emitem gritos mais parecidos a uivos,
tais os emitidos por histéricos e toxicômanos em delírio, urinam-se e
defecam, num relaxamento incontrolável do esfincter, e mostram ape­
tite por terra e palha, do próprio leito ou da esteira em que se estor-
cem. E só voltam a si depois de fricções de óleo de dendê, goles do
mesmo e esconjuros ritualísticos, em dialeto africano.
Acossi ou Sakpatá ou Xapanan tem culto especial. Suas sacerdo­
tisas (esposas ou mulheres) são denominadas Sakpatasi.
Segundo Marti, havia uma incompatibilidade ou oposição tradi­
cional entre o rei do Daomé e Sakpatá (ou Acossi), como se lê textual­
mente: entre le roi et les cultes qui n ’appartiennent pas à son clan,
manifestando-se da maneira plus aiguê dans le cas de Sakpata
(Sakpanan des Yoruba) le roi de la variole. 2526
Por essa razão uma Salpatasi, esposa do Vodun Sakpatá, não podia
ser rainha.
E Marti, que nenhum africanista brasileiro pode desconhecer, elu­
cida mais outro aspecto dessa incompatibilidade ou oposição tradicional:
II faut ajouter qu’il y a une d’incompatibilité entre Sakpata et le roi du
Dahomey qui s’exprime aussi dans le fait que les temples de ce Vodoun
se trouvent toujours à Vintérieur des agglomérations, ce qui peut bicn
signifier que deux rois ne peuvent pas régner dans le même endroit.
25. A tra d u ç ã o dos tre c h o s a cim a é:
“ e n tre o re i e os cultos que n ã o p erten cem ao seu clã, m an ifestan d o -so da iim nelrit i i i i i I m
c o n tu n d e n te no caso de SaJcpatá (Salcpanan dos Io ru b n ), rei dn V a río la ” .
26. “ É n ecessário a c re s c e n ta r que ex iste u m a eBpécie de incom patibilidade e n tre Hwkpala «' o n l
do D aom é que se e x p rim e tam b ém no fa to de os tem plos dos V oduns se n c lm in u nnu|m> no
in te rio r dais ag lom erações, o que bem pode s ig n ific a r que dois re is nlO podfl......................
mesm o local".
Sakpatá ou Acossi é, como se vê, um Vodun poderosíssimo e im­
pressionantemente estranho, com uma realeza indiscutível, realeza que
não é da Terra mas do Infinito.
No quadro traçado por Marti, da situação de direito e da situação
de fato, Sakpatá e Heviôçô desfrutam uma situação de fato.
A denominação dessa família de Voduns — Dambirá — revela estar
a mesma interligada à Cobra ou Serpente Sagrada, conhecida sob o
nome de Dam Aedo.
E isto porque (como no culto dos Voduns do Panteão iorubano,
jeje, ketu e nagô, têm lugar saliente o elefante, a pantera, o camaleão,
a tartaruga, o caranguejo, a aranha, o cachorro, o jacaré — consultem-
se a história, a literatura, a mitologia dos povos aqui referidos —
entre os animais citados a Cobra ou Serpente polarizava especial res­
peito, veneração, encantamento e temor.
Daí o culto ofilátrico de Dambellah-Aedo ou Aido Hwedo, que
Herskovits nos apresenta no primeiro volume de sua monumental obra
sobre o antigo Reino do Daomé, com os objetos do culto a Da ou
Dan, no alto de uma página ilustrativa inicial e representando uma
das expressões da arte, no Daomé, a chamada appliqué-cloth.
Na Introdução da presente obra, da autoria de A rthur Ramos, ele
refere a descoberta do Prof. Donald Pierson, do «culto de uma árvore
sagrada no candomblé da Goméia, onde se fazem despachos para Pas-
coalina — mulher que as lendas dizem metamorfoseada em cobra.
A toda planta sagrada, encontrada nos terreiros ou nas Casas de
Ervas (dos herbanários estudados, cientificamente, pelo inesquecível
botânico teuto-paulista Frederico Hoehne e celebradas por um poeta
genial, Dom Ramón Del Valle Inclán), estão ligados espíritos benfazejos
ou malignos, seres mitológicos do mundo sublunar ou da entranha da
terra, e, em interessante simbiose, animais da fauna rastejante e alada,
aves e répteis, quadrúpedes e seres aquáticos.
Em minha obra, intitulada Moronguêtá, Um Decameron Indígena
(recorrendo-se às páginas 68, 69 e 148 do seu glossário e conjunto de
mitos, estórias e lendas), aparecem os tajás, da família das Aráceas,
com propriedades extraordinárias, do ponto de vista farmacológico e
mítico, tóxico e mágico. Ora, de um deles se diz que canta ou pia,
porque nele vive um pássaro encantado.
Do tajá-onça dizem que é seu companheiro um pequenino mas
temeroso felino; e do tam ba-tajá, que conserva na página inferior das
suas folhas uma miniatura de sexo de mulher. ..
Entre as folhas verdes, salpicadas de branco, dizem ocultar-se uma
cobra que estrangula intrusos invadindo o local onde o plantaram.
Os gregos tinham as hamadríades.
E os nossos pajés têm toda a flora das nossas selvas e campos,
enquanto nos terreiros de Salvador e de São Luís cultuam árvores e
90
arbustos, alguns até, trazidos do Continente Africano, acompanhando
os escravos no seu martirológio.
Donald Pierson registrou um fato estreitamente ligado à dendola-
tria, esse culto das árvores, que, vindo da remota índia, através de
séculos e séculos, se estenderia ao Continente Europeu, apontando-se
ali a igdrazil, celebrada por Carlyle em sua obra sobre os heróis.
Mas, quando os europeus chegaram às Américas, já os seus habi­
tantes cultuavam certas árvores e sabiam utilizar ervas mágicas ou
míticas, não se desconhecendo, porém, que aos escravos africanos de­
vemos a introdução de outras plantas que fui encontrar no Bogan de
Mãe Valentina, em Salvador, no Quêrêbetan de Mãe Andresa Maria,
em São Luís, no chão dos Batuques da Jurema, em Belém, e no centro
esotérico do santo-dá-me, onde a ayuasea ou caapi é cultuada, na Vila
Ivonette (cidade do Rio Branco, Estado do Acre).
Por isso Roger Bastide escreveria: «todo santo está ligado à deter­
minada cor, a certos metais, a animais, a fenômenos metereológicos
e, também, como vimos, a certas plantas. . . »
E até dejetos de animais entram na farmacopéia cabocla e afri­
cana, como acrescentarei.
Daí ter Mário de Andrade escrito o seu Namoro com a Medicina,
onde a escatologia é salientada, à maneira direta, erudita e saborosa
desse escritor, cuja obra, em toda a sua dimensão arquitetônica, ainda
não encontrou, na atual geração, um crítico à altura de a louvar desas-
sombradamente ou de a criticar com absoluto rigorismo, no que res­
peita à literatura e às artes plásticas.
Na mesma página, em que A rthur Ramos cita Donald Pierson,
vem mais este trecho digno de apreciação:
Com a a te n ç ã o v o lta d a p a r a o a ssu n to , A y d a n o do C outo F e r r a z fo i en con ­
tr a r n a C asa da babalaô R aim u n d a, n a A r e ia da C ruz do C osm e, u m a
cob ra d en tro de u m c a ix o te de g r a d e s.

A presença de uma cobra — a jibóia — cientificamente chamada


Constrictor constrictor, da família Bóidas, em residências particulares,
lojas e armazéns, quer em Belém, quer em Manaus e em outras cidades
da Amazônia e mesmo no Nordeste, não se prende apenas ao interesse
de combater ratos e certos animais daninhos.
É que ali se arraigou a crença de que esse réptil fixa (como os
abscessos que Veterinários provocam em pequenos e grandes animais,
dando-lhes o nome de abscessos de fixação) todas as enfermidades,
todas as desgraças e todos os malefícios que se abaterem no ambiente
do seu possuidor.
Desse modo, quando julgam a cobra (jibóia) suficientemente carre­
gada, logo o seu possuidor se apressa a despachá-la para um sítio que
é, preferentemente, um rio, da largura dos da Amazônia, ou uma baía
da extensão da de Marajó, no Estado do Pará, ou de Boiuçu, no
Estado do Amazonas.
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Eu mesmo, certa vez, assisti ao lançamento de um desses ofídios,
numa viagem de barcaça, no trajeto de Belém a Soure, na Ilha de
Marajó.
E a finalidade era despachar-se o animal, com toda a sua carga
indesejável, mas aliviadora, para um sítio de onde não lhe fosse possí­
vel voltar à casa, armazém, loja ou mercearia em cujo ambiente, du­
rante anos, acumulara malefícios e desgraças, de um lado, e, do outro,
concorreria para ali se manter a paz e felicidade, na continuidade de
lucros, na harmonia da família.
Esse respeito supersticioso, veneração ou temor a um ofídio —
tenha ele o nome celestial de Dambellah Aedo ou Aido Hwedo, para
a gente africana, ou de jibóia ou sururi, para a gente indígena (da
Amazônia) e os caboclos que dela descendem — mostram quanto é
real a sua ligação e presença, mítica e mística, sobretudo no culto
dos Voduns mina-jejes.
O uso atual de anéis, com a figura de cobra, principalmente, em
ouro, platina, prata e, também, de outros adornos femininos (já agora
entre hippies) não será, certamente, uma influência da moda, apenas,
que transform a objetos peculiares ao culto dos Voduns, oriundos do
Continente Africano; nesses adornos, deve-se ver a exteriorização das
suas sobrevivências (survivals) de tão espantosa resistência, através
do tempo e do espaço.
E não só na arte delicada dos ourives (em anéis, pulseiras, broches,
colares, brincos mas, igualmente, na dos escultores) encontramos essas
sobrevivências, ocorrendo elas na medicina popular, tal a infusão da pele
da cascavel em cachaça, para combate à sífilis e ao reumatismo, e tal
a confecção de carteiras e cintos, com peles de cobras e sáurios, para
homens e mulheres, dentro dos ditames da moda e da irresistível força
da superstição.
Vem ainda naquela Introdução, a que me estou referindo, mais
os tópicos que seguem, devidos a A rthur Ramos:

T am b ém no te r r e ir o Tumba Jussara, de C iríaco, em B e ir u , u m a cob ra era


r e v e r e n c ia d a com o u m a d a s d iv in d a d e s do cu lto . A in d a no A x è da M ãe
A n in h a , o e sc r ito r b a ia n o A y d a n o do C outo F e r r a z fo i e n c o n tr a r o s
a n é is da fa le c id a mãe-de-santo, em fo r m a d e cob ra ou ten d o esc u lp id a s
em rele v o n o s s e u s a rco s. In d a g a n d o da su c e s so r a d e A n in h a a ra zão
d aq u ilo a p e n a s a mãe-de-santo pôde a d ia n ta r tr a ta r -s e do c u lto de In d a n g b é
( s i c ) , a cob ra sa g r a d a , q u e era u m a vodunce, fa la n d o d ep ois, vagamente,
cm rela ç õ e s do c u lto d a se r p e n te com o de O xu m -M arê — o A r c o -Ír is.
(O s g r if o s a c im a são m e u s e fo r a m fe ito s p a r a s a lie n ta r a im p o r tâ n c ia
d e seu a p a r e c im e n to no te x to q u e d evem os a A r th u r R a m o s.)

A reverência à Cobra, tanto no Daomé, como noutras áreas geo­


gráficas do Continente Africano, não era prestada somente pela fé do
povo rnas pela dos reis, estimulados todos pelo culto aos ancestrais.
Só os reis podiam usar certas contas azuis (pierre d’aigris), con­
sideradas como excrementos do Vodun Dan Aydo Wédo (o A rco-íris),
escreve M ontserrat Palau Marti.
Sobre o túmulo de um rei, segundo as Memórias de Jean François
Landolphe, citado por Marti, depois de examiná-lo, afirm a:

. . . n o te i m u ito s d e n te s d e e le fa n te s , de s e te p é s de co m p rim en to e de
u m a a lv u r a d eslu m b ra n te. O que m e c a u s a v a v e r d a d e ir a p en a e r a v e r e ss e
lu g a r cob erto de sa n g u e h u m an o. O b serv a -se tam b ém n a lá p id e u m a lo n g a
se r p e n te de tr in ta p é s de co m p rim en to e s e is de g r o ss u r a , no m eio, fa b r i­
ca d a com e ss e s d e n te s, a r tistic a m e n te e n c a ix a d o s u m no ou tro. A su a g o e la
e s ta v a a b e r ta ; u m a lâ m in a de cob re fir m a v a a su a lín g u a ; p a r e c ia v ir
do a lto e d e sliz a r ao lon g o da lá p id e p a r a se in tr o d u z ir n o tú m u lo.

Guilhaume Bosman, também citado por Marti, descreve duas pirâ­


mides que existiam no interior da residência real; no alto de cada
uma delas havia «uma serpente de prata, suspensa de cabeça para
baixo».
Dois séculos mais tarde, continua Marti, não devia ficar senão
uma única dessas serpentes, segundo a descrição do Tenente John King:

A o c en tro da fa c h a d a (u m a d a s do P a lá c io de B é n in ) s e e le v a v a u m a
p ir â m id e de q u a r e n ta p és de a ltu r a , no cim o d a q u al e s ta v a su sp e n sa
u m a se r p e n te de cob re, c u ja cab eça d e sc ia a té a te r r a , e cu jo corpo era
tã o g r o sso com o o de um h o m em . . . e s ta s e r p e n te se en c o n tr a v a a li h á
m u ito s sécu lo s.

Lê-se ainda em M arti:

E s s a m esm a s e r p e n te so b rev iv eu à d e str u iç ã o do p a lá cio em 1897, com o


o te s te m u n h a o D r. F . N . R o th : p r e c isa m e n te em fa c e , h á u m a en orm e
se r p e n te de cob re q u e p a r e c e d escer sin u o sa m e n te , com a g r o s s a cab eça
v in d o to c a r o bordo do telh a d o .

Vale a pena conhecer-se o depoimento de Marti contido no que


segue:

N ã o p o ssu ím o s n e n h u m a in fo r m a ç ã o sob re o sim b olism o d e ss a s fa m o sa s s e r ­


p e n te s ; e n tr e ta n to , a su a p r e se n ç a no in te r io r do p a lá c io f a r ia su p o r que
e la s d esem p en h a v a m um p a p e l no c u lto : o m étodo c o m p a r a tiv o s u g e r ir ia
u m a rela ç ã o d ir e ta com Oba que e le s fig u r a r ia m sob a fo r m a d e um an im al
q u e o r e i to m a (o u o a n c e s t r a l), em n u m ero so s m ito s, p a r a d e ix a r o m undo,
a in d a v iv o . Com e fe ito , a c h a -se o te m a da se r p e n te -a n c e str a l e n tr e o s
D a sh a , p op u la çã o io ru b a do m édio D a o m é; a ch am -n o a sso c ia d o a um co n ­
ju n to m ític o q u e p a r e c e s e a p r o x im a r de c e r to s a sp e c to s d os m ito s dogon ;
en tr e os R a m ilék é d os C am arões, o r e i s e m e ta m o r fo se ia tam b ém em ser
p en te. N o q u e con cern e u n ic a m e n te ao B é n in , e n co n tra m o s v á r ia s reprc
se n ta ç õ e s de se r p e n te s n a A r te ; p or ex em p lo , o T e n e n te K in g v iu o tron o de
Oba m orto e d isse que “e le e s ta v a su sp e n so p or se r p e n te s de cobre c u ja s cabe
ç a s to c a v a m a te r r a e fo r m a v a m o s p é s ”. D e m a n e ir a em b ora involuntária, o
cu p itã o L a n d o lp h e to r n a q u a se e v id e n te o m odo de rela ç ã o q u e pode oxlnl Ir
e n tr e o O ba e a se r p e n te . E s s e a u to r d e sc r e v e o s tú m u lo s d os r e is de B én in .
A c im a de tu d o , h a v ia u m a en orm e se r p e n te fe it a de d e fe s a s de e le fa n te
e n c a ix a d a s.

Para se atender à curiosidade ou ao interesse religioso, etnográ­


fico ou folclórico, que lateja no íntimo dos leitores destes tópicos, aqui
citados, aí estão a obra de Alfred Métraux, por exemplo, nos capítulos
que tratam do culto à serpente nos santuários do Haiti, e a obra de
J. Herskovits, dentro dos templos Voduns do Daomé.
Dambirá, ou Dambellah Oueddo, pertence ao Panteão das divindades
do Céu, como Mawu-Lissá, Sôgbô e outras mais.
Nos meus dias de criança — acompanhando minha Mãe à Casa
das Minas, ou minha tia Ida, que ia até São Luís cumprir suas obri­
gações de filha de Avêrêquête — nunca ouvi falar num Vodun cuja
figura animal fosse a de uma cobra. E isso, possivelmente, porque
os mistérios, as leis do culto secular (ali mantidos por gente humilde,
de origem africana, na maioria descendente de escravos, e também
por grupos heterogêneos das mais diversas etnias e classes sociais)
exigiam imperativos silêncios ou secretas reservas. E porque, do mesmo
modo, na estrutura religiosa e social daquela Casa, tudo refletia as
linhas, os contornos, os fundamentos de uma indiscutível sociedade se­
creta, com raízes que se estenderam, através do Atlântico, até à terra
maranhense (como se estenderam à te rra baiana) e delas à Amazônia
Brasileira.
Recolhi na Casa das Minas um episódio da vida mítica de dois
Voduns, demonstrativo da sobrevivência do culto a Dambellah, Dambirá
ou Cobra Sagrada, que merece apreciação especial. E i-lo:
Boçá, certa feita, dando por falta do irmão, Boçucó, sai a procurá-
lo por toda parte, principalmente pelas casas dos amigos deste, can­
tando e dançando, isolados ou juntos, todos, por fim, em roda por ela
movimentada.
A dança (quando ilustra esse episódio) é mimada, com movimentos
coleantes, de corpos curvos para a terra, as mãos agitando, ritmicamen­
te, lenços coloridos, num insistente apelo.27
27. A lfred M étrau x , em su a o b ra H a iti, la terre, les h o m m es e t les dieux (É dition de la B aconnière,
1957, N euchâtel, S u íç a ), re fe rin d o -se à s m odificações de a titu d e s dos d an ça rin o s, em estado
de tra n se , escreve, à p á g in a 86: “ Si le dieu qui e st descendu se tro u v e p a r exem ple ê tre
D am bellah, le d ieu -serp en t, le possédé d ard e la langue, se tr a ín e s u r le sol en ond u lan t, g rim p e
nux p o u tre s du s a n c tu a ire e t s’accroche au x tir a n ts de la to itu re, la tê te en bas. Ceux qui
so n t possédés p a r le dieu m a rin A goué é m e tte n t des sons g u ttu r a u x qui im ite n t le b r u it des
vagues, ou assis su r u n e ch aise fo n t sem b lan t de ra m e r. L es ‘chevaux’ d 'O gou, dieu de la
g u e rrc , se c o iffe n t d ’u n k ép i a la fra n ç a is e e t re v ê te n t u n dolm an rouge” .
E is a tra d u ç ã o :
“ Se o deus que b aixou é, p o r exem plo, D am bellah, o deu s-serpente, o possuído (em tr a n s e ) ,
d u rd e ja a lín g u a , a rra s ta -se , ondulando, pelo chão, sobre às tra v e s do sa n tu á rio ou se a g a r r a
As rip a s do telhado, de cabeça p a r a baixo. Os que são possuídos pelo deus m a rin h o A goué
em item sons g u tu ra is que im ita m o b aru lh o d a s v a g as ou, sentados n u m a cad eira, fazem
m enção de re m a r. Os ‘cavalos’ de Ogou, deus da g u e rra , a rv o ra m um képi, à m a n e ira
fmneonn, e e n v erg am um dólm ã verm elho” .
No T im o r (possessão p o rtu g u e sa ) re a liz am os n a tiv o s a “ d a n ç a da c o b ra” do Suai — sobre-
vivOncia do culto o filá tric o — que se c a ra c te riz a p o r idênticos m ovim entos e n tre as m ulheres
•pie nela a p arecem g a rrid a m e n te tr a ja d a s e a v ib ra r tam b o rin s. Cf. T im o r, P equena M onografia
da A g ê n c ia G eral U ltra m a rin a , de P o rtu g a l (L isb o a 1970).

94
A letra do cântico, de circunstância, apropriado, é a seguinte:
Baiquim xô eu odan
rereré un afan (b is )
rereré baiquin xô eu
ce Boçucó un afan
rereró baiquin xo eu
ce Doçu etâ un afan
rereró baiquin xô eu
ce Doçu Liçá un afan
baiquin xô eu odan
rereró afan (b is )

Em roda, assim dançando e cantando, os Voduns param, afinal,


numa área da varanda ou salão de danças, próximo aos tambores
vibrados, compassadamente e, depois, atordoadamente, pelo runtó.
Acontece, então, que — por força da mímica coreográfica de todos
os Voduns, empenhados em tal busca, das expressões súplices dos cân­
ticos, dos toques excitantes dos tambores — Boçucó seja descoberto ( sic )
sob uma pedra na forma estranha de uma cobra.
E, ao levantar-se dali, ainda sonolenta, aquela cobra vai ganhando
corpo de ser humano, de um deus zoomorfo, cujas linhas se tornam va­
ronis, na figura da noviche ou gonjai que o recebeu no momento.
Assisti, em dezembro de 1969, no Bogan jeje-mahli de Mãe Va-
lentina em Salvador (Bahia), a uma dança semelhante à da busca da
Boçucó, com as figuras de duas iaôs, saídas da camarinha onde haviam
estado reclusas, para a iniciação no culto dos Orixás.
Delas, como das dançarinas da Casa das Minas, de São Luís do
Maranhão, eram idênticos os movimentos, movimentos de uma cobra,
que tivesse parte do corpo enrolado em anéis presos ao chão, e outra
parte, a superior, dominada pela cabeça, voltando-se ora para a direita,
ora para a esquerda, ora para a frente, ora para trás.
Lembravam-me, naquele conjunto coreográfico, verdadeiras cobras,
cobras bailando, como as que são vistas nas praças e ruas das cidades
da índia, excitadas pela magia musical da flauta de um velho e risonho
faquir ou de um mendigo bronzeado e barbudo, a cabeça enrolada num
turbante colorido, toda a imagem de um verdadeiro encantador de
serpentes!
Esse Boçucó seria, segundo o lendário africano, um poeta e músico
boêmio, dado a aventuras amorosas, a entreveros e rusgas com rivais.
Talvez, na realidade, viesse a ser divinizado, pelo tempo afora,
como os reis do antigo Reino do Daomé, por te r sido o ancestral dos
arekin (rapsodos) e dos isugbin (músicos da corte), que Marti retra­
ta, e, no mesmo empenho, Leo Frobenius aponta, in Der Schwarze
Decameron, com o nome de diali, da epopéia Pui dos antepassados de
Sahel. . . 28
28. J e a n Ziegler, in O P oder A fric a n o (D ifusão E u ro p é ia do L iv ro , São P a u lo 1972), escreveu:
“ A G récia in c ip ie n te e a Á frica dos lngos c o m partilhnm pelo m enos de u m a ex p eriên cia
com um : em seu solo b ro to u u m a das fo rm as de sociabilidade m a is e stra n h a s , m a is rica» e
tam b ém m a is fa s c in a n te s j á p ro d u zid as pelo hom em : a re aleza de c a r á te r sagrado'*.

95
E nenhuma dúvida deverá levantar-se contra a sua posição na
hierarquia dos Voduns, que, tudo o demonstra, e, lado a lado com Dam-
birá ou Dambellah, Oueddo, Dambellah Siligwé, Dambellah Kato, é
estudado minuciosamente por um Alfred Métraux e um Milo Marcellin
na paisagem geográfica, mítica e mística do Haiti.
Milo Marcellin escreveu:

Dambellah Oueddo, Papá. Tu és uma cobra ô! Cobra, cobra! ô Dambellah


Oueddo! Tu és uma cobra ô! Eu chamo a cobra ô! A cobra não pode falar.
— Dambellah, Papá, tu és uma cobra ô!

E, no texto a seguir, o mesmo autor a junta esta informação geo­


gráfica, ecológica e social:

E m O u id ah (c id a d e do D aom é, p r ó x im a à co sta do A tlâ n t ic o ) , on d e e la


e r a h o n ra d a , a cob ra, d izem , e r a o lh a d a com o d eu s da g u e r r a , do com ércio,
da a g r ic u ltu r a e da fecu n d id a d e. E r a e n cerra d a e a lim e n ta d a n u m tem p lo
co n str u íd o em rod a de en orm e a lg o d o a l. D o n z e la s, m u ito c a s ta s , lh e era m
sa c r ific a d a s .

Sem ser necessário recorrer-se à história do império teocrático dos


incas, em cujas cerimônias litúrgicas ou profanas eram sacrificadas
algumas virgens a deuses terríveis como Dambellah, conhece-se, na
Amazônia, a tradição indígena de ser uma cobra (a constrictor cons-
trictor) incumbida de verificar a autenticidade daquela virgindade, de
que o animal se desincumbia introduzindo a extremidade da cauda no
sexo da duvidosa donzela.29
D a m b ella h — e sc r e v e a in d a M ilo — era r e p r e se n ta d o no hountô-r (tem p lo
v o d u n ) p or u m a p eq u en a boa ( a uromacer catesby) q u e se p a rece, d izem ,
com a e sp é c ie sa g r a d a do D aom é — en c e r r a d a em camari ( j a r r a ) , donde
n ão a fa z ia m s a ir sen ã o n o s d ia s de c erim ô n ia s.

29. B oris de R ach ew ilts, à p á g in a 109 d a su a o b ra B la ck E ro s, nos leva a conhecer c e rta s p rá tic a s
observadas, n a Á frica, re la tiv a m e n te à h ie ro g a m ia , isto é, ao coito de seres h u m a n o s ou de
a n im a is com deuses, n estes p erío d o s: “ I t is in th e c o n te x t o f ritu a lis tic m agic th a t w e fin d
th e o rig in a n d ju s tific a tio n o f hiero g am y , th e c o u p lin g of m a n a n d god, o r o f th e g od’s
re p re s e n ta tiv e . In th e e ig h te en th c en tu ry , L a b a t re fe rs th e m a rria g e , in kingdom o f J udah,
o f g irls c o n sa c ra te d to th e G re a t S e rp e n t. W e h av e a lread y described how th e M usarras,
th e K in g ’s d a u g h te rs o f Zim babw e, coupled w ith a sac re d s e rp e n t, th e in c a rn a tio n o f d iv in ity ;
a n d w e m e n tio n ed th e K ikuyu g irls, w ho w ere ritu a lly deflow ered by th e ir p rie s ts, a s re p re s e n ta tiv e
of th e god-p y th o n . A m o n g th e E w e, in th e W est Á fric a , n um erous v irg in s a re c o n sa c ra te d
to a d iv in e sn ak e, th e p rie s ts a g a in p e rfo rm in g th e h ierogam yc a ct. T h e rite is associated
w ith o rg ie s held w h en th e b arley b eg in s to quicken, a n d is in ten d ed to e n su re th e fe rtility
o f th e livestock a n d p le n tifu l h a rv e st. I n A fric a n symbology, th e s e rp e n t is in v a ria b ly phallic
and fe c u n d ativ e ” .
T radu zo :
“ É no co n tex to d a m á g ic a ritu a lís tic a que acham os a o rigem e ju s tific a tiv a d a h iero g am ia, a
cópula do hom em e do deus, ou do re p re s e n ta n te do deus. N o século X V III L a b a t se re fe re
ao casam en to , no re in o de J u d á , de m o ças c o n sa g ra d a s à G rande S erp en te. J á descrevem os como
e n tre os M usarras a filh a do re i de Zim babw e co p u la com a s e rp e n te sag ra d a , e n ca rn a ç ão
d a div in d ad e; e m en cio n am o s as m oças de K ikuyu, que são ritu a lm e n te d eflo rad as pelos
sacerdotes, como re p re s e n ta n te s do deu s-p itão . E n tr e os Ew e, n a Á fric a O cidental, n um erosas
v irg e n s são c o n sa g ra d a s à s e rp e n te div in a, re alizan d o o sacerdote a h ie ro g a m ia . O rito é
associado com o rg ia s q u an d o a cev ad a re p o n ta e p resu m e-se e s ta r asseg u rad o o co n ju n to da
fe rtilid ad e <• a p le n itu d e d a colheita. N a sim bologia a fric a n a a s e rp e n te é in v a ria v e lm e n te fálica
o fe c u n d an te" .

96
E noutro tópico acrescenta:
D a m b ella h p r e sid e à s fo n te s e a o s rios. D izem q u e e le tr a b a lh a o r d in a r ia ­
m e n te n ’á g u a e, p or v e z e s, o c h a m a m mait de l’eau (se n h o r d a á g u a ) ,
sob retu d o q u an d o e le m ora em u m a tête d’eau ( f o n t e ) , onde, não raro, se
a b r ig a u m a cobra.

Dambellah Oueddo ce coulève d’eau


Chéchê Dambellah, qui bô a oua oué-il?
Papa Dambellah, cê coulève d’eau,
II plongé en bas d’eau!

Segundo Milo, no Haiti, as fontes são consagradas a Dambellah e,


«por vezes» nos dias de cerimônia, sua comida lhe é servida no local.
Dedicam-lhe este cântico, quando ele preside a uma fonte:
A la loa maché nan d’leau,
Cê Dambellah-ê!
A la loa maché nan d’leau,
Cê Dambellah-ô!
Papa Dambellah cê tête d’leau!
Papa Dambellah cê tête d’leau! Abebe! 30

Recorrendo-se ainda a Milo fica-se sabendo que Dambellah Oueddo


é «figurado, também, sob os traços de um homem branco, dono de longa
barba branca. Muitos fiéis o identificam com São Patrício, represen­
tado nos cromos católicos com duas serpentes sob seus pés e duas
outras dos lados. Para outros ele não é São Patrício e sim seu filho,
Odan Dambellah Oueddo. Eles o identificam, também, a (São) Moisés,
salvo das águas, porque dizem balbuciar como ele. Um hougan (padre
dos Voduns), consultado a esse respeito, me afirmou que Dambellah
Oueddo, Loa Rada, é São Moisés, e Dambellah-o-Fache, também cha­
mado Santo Branco, Loa São Patrício.
Não é menos interessante o tópico seguinte:

N o s d ia s c o n sa g r a d o s a D a m b ella h (te r ç a e q u a r ta ) , s e u s se r v id o r e s
p r ep a ra m -lh e o le ito com le n ç ó is de lin h o b ran co, bem lim p os. P ró x im o a
seu le ito , sob re u m a p eq u en a m e sa , co b erta por u m a c o lch a b ra n ca , e le s
lh e e rg u em u m o r a tó r io : u m a p eq u en a c a ix a q u a d ra d a , em m a d eira . N o
fu n d o da c a ix a e sp e ta m a im a g e m do sa n to que o r e p r e se n ta , e, d os lad os,
o s crom os d os s a n to s c o r r e sp o n d e n te s a o s loas q u e caminham com ele.
D ia n te de su a im a g e m a cen d em u m a v e la de g o r d u r a de b a le ia — sím b olo
de su a p u reza. C olocam n a c a ix a u m a te r r in a con ten d o fa r in h a france (d e
fe r m e n to ) en cim a d a por u m ovo, u m p a co te de a ç ú c a r b ran co, u m a g a r r a fa
de c o la , u m a x íc a r a de c a fé , u m sa b ã o , u m p en te, u m a esc o v a , u m a

80. D am bellah O ueddo é u m a cobra d’á g u a !


P rocurai D am bellah, onde a vereis?
P a p a i D am bellah é u m a cobra d’á g u a !
Ela m e rg u lh a n ’á g u a !
— A h ! Eia u m a L o a que cam inha b em n ’água
fi D ambellah-ô
A h ! E eia u m a loa que ca m in h a bem n ’dgua
fi D am bellah-ô
P a p a i D am bellah ó cabeça d'dgua
P a p a i D am bellah é cabeça d*água. A bobo!

97
Iiouppe ( b o r la ? ), u m a c a ix a de p ó-d e-arroz e um v id ro de p e r fu m e . A g o ra ,
se a p e sso a q u e s e r v e é u m a m u lh er, o m a rid o d ela d eve a fa s ta r -s e de
seu le ito , porque, d izem , o loa é te r r iv e lm e n te ciu m en to e pode m a tá -la ;
se é hom em , s u a m u lh er n ã o pode dorm ir no m esm o ap osen to.

Mas uma divindade de tamanha expressão é cultuada num templo


suntuoso? Não. E Milo atende à curiosidade de quem o consulta, assim:
O tem p lo de D a m b ella h Oueddo é u m a b a rra q u in h a o r d in á r ia . S ob re o pé
(p é g i, da C a sa d a s M in a s? ) — p la ta fo r m a de a r g a m a s sa q u e serv e, g e ­
r a lm en te, de a lta r a o s loas Rada -—- são e n file ir a d o s: u m c r u c ifix o (in d i­
cando q u e o a lta r é co n sa g r a d o a u m a d iv in d a d e b e n é v o la ), u m a cobra em
fe r r o fo r ja d o (s e u e m b le m a ), u m a ca m p a in h a , u m asson (u m b rin q u ed o)
do r itu a l, com p osto d e u m a cab aça r e co b erta de v id r a r ia s ou de v é r te b r a s
de cob ra, de q u e s e se r v e o o fic ia n te p a ra ch a m a r a s loas e d ir ig ir a d an ça,
o pote habitat da d iv in d a d e, o pote azul d a S en h o ra T r a v a u x , o govi
(g a m e la de te r r a c o ta , serv in d o p a r a in v o c a r a s loas), o p o te r e fr e s c a n te ,
o p ote a r c o -ír is (a s s im ch am ad o p o r c a u sa de s u a s d iv e r s a s c o r e s ) , a s
c a b a ç a s e o s p r a to s marassas (p r a to s g ê m e o s ), o s canaris (ja r r a s d e te r r a ­
c o t a ) , g a r r a fa s de lic o r e s sem á lcool (x a r o p e s ), x íc a r a s , u m a te r r in a con ­
ten d o u m p eq u en o cu te lo in d ia n o , u m a “p ed ra -d e-ra io ” (fr a g m e n to de aero-
li t o ) , sím b olo de D a m b ella h , e tc .; sob re o solo são colo ca d o s: u m a lâ m p a d a
de a z e ite de o liv e ir a e u m a v e la de g o r d u r a de b a le ia . D a m b e lla h g o s ta
de fr e sc o r . C on stroem p a r a e le , sob re o pé ou d ia n te de s e u a lta r , um
p eq u en o la g o . E s te la g o é ch am ado L ago D a m b ella h :

Papa Dambellah
Moin besoin baignin là-a
D’eau lan bassin moin
O Dambellah Oueddo
M’besoin baignin là-a
D’leau lan loa-yo. 31

Prosseguindo, Milo adianta à curiosidade de quem o leia:


O reposoir (á r v o r e q u e se r v e de r e sid ê n c ia à d iv in d a d e) de D am b ellah
O ueddo, co m u m en te um pé de alg o d o eiro Calatropis procera (A it. R. B r .) ,
e s tá sem p re cercad o d e u m a ca lç a d a red on d a em a r g a m a s sa , b ran q u ead a
com le ite de ca l, q u e s e en ch e d’á g u a no d ia c o n sa g ra d o ao Loa. N a
C a sa -d o s-m isté r io s, c h a m a d a caile-misté, q u e não é, p r o p r ia m e n te fa la n d o ,
u m hounfôr (t e m p lo ), v ê -s e , p or v e z e s, o pé ( a l t a r ) , ao lad o d os couis
(c a b a ç a s v a z ia s e s e c a s ) c o n sa g r a d a s a o s loas crioulos (d e u s e s no H a iti)
e aos loas-Guinin (d e u s e s v in d o s da G u in é ), um p ra to b ran co, u m a pedra-
de-raio, u m co la r maldioc (c o la r de g r ã o s n e g r o s e b ra n co s, a ltern a d o s,
q u e p r o te g e c o n tr a o m a u -o lh a d o ) p a r a D a m b ella h e, sob re a p a red e da
b a rra ca , d esen h o s r e p resen ta n d o flo r e s e u m a cobra. D a m b ella h n ão a c e ita ,
de n en h u m m odo, q u e s e u s se r v id o r e s in voq u em e sp ír ito s que fa z e m o
b em e o m a l, sim u lta n e a m e n te , ex c e to os marasses (g ê m e o s ), q u e ocu p am
u m lu g a r tod o e sp e c ia l no se u hountôr, porq u e e le s são c o n sid era d o s v e r ­
d a d eiro s p ro teto res. O s marasses são se r v id o s d esd e in ú m e r a s g e r a ç õ e s e
n in g u é m o u sa r ia r e je itá -lo s, sob p e n a d a s m a io r e s d e sg r a ç a s.

31. P a p a i D am bellah
ten h o necessidade de ban h a r-m e ali
« água está n o m e u laguinho
ô D am bellah Oueddo
necessito banhar-m e ali
a água está n o lago dos loa-yo

98
Essas longas citações da obra Mythologie Vodun (Rite Rada), da
autoria de Milo Marcellin, foram feitas aqui porque, adiante, noutras
notas, terei de salientar a validade das observações do referido autor,
bem como das nossas, quer na Casa das Minas, de São Luís do Ma­
ranhão, quer noutras localidades do Brasil, principalmente da Amazônia
e de parte do Nordeste.
Ofereci, no desdobrar destas Notas, com particular realce e seguro
propósito, dentro da estrutura de cada família de Voduns, uma relação
dos que, principalmente, fazem parte do autêntico Panteão mina-jeje, e
deles ofereci, também, algumas particularidades genealógicas, mitoló­
gicas e éticas.
Impõe-se reafirm ar, entretanto, que tais Voduns, na atualidade,
não obstante a situação de decadência por que está passando a tradi­
cional Casa das Minas, de Mãe Andresa Maria, ainda baixam nas
gonjai e vodunce, isto é, nas suas filhas, esposas, mulheres.
Mas nem sempre é possível pôr-se à flor da memória das velhas
— Sobreviventes do grupo a que pertenceram minha Mãe e minha Tia
Ida — os nomes de alguns Voduns que subiram definitivamente para
os seus misteriosos e inacessíveis domínios, no Céu ou nas profun­
dezas da Terra, dos Mares, Rios e Fontes, no mundo sublunar ou na
paisagem tropical do Continente Africano, num incontrariável retorno.
Agongone, como registrei acima, não baixa mais; e Zomadone ra­
ramente o faz; e, quando isso acontece, sabe-se, a sua presença se
notabiliza pela violência das manifestações que o tornam temido. Porque
esse patriarcal Vodun se caracteriza pela posse e utilização de forças
extraordinárias, próprias do nível hierárquico que ele desfruta, no
Panteão dos Grandes Deuses cultuados pela gente da Casa das Minas
e da Casa de Nagô.
Adonobrê, igualmente, não baixa mais; e os Egoun ou Eguns (espí­
ritos dos mortos) que ainda baixam, por exemplo, num terreiro da
Ilha de Itaparica, na Bahia, não baixam mais na Casa das Minas,
desde muito antes da direção de Mãe Andresa Maria.
Ocorre, do mesmo modo, que algumas senhoras já baixam ra ra ­
mente e outras já subiram definitivamente. Essas senhoras, como se
sabe, ao baixar, se assemelham a crianças, e aos Toquenos ou Toquens,
perdendo a autoridade de que desfrutam ao lado dos seus esposos, os
Voduns.
Enumeram-se, entre elas, Sandolêbêbe, Omaquibe e Sanlêvive.
E a família de Savalu?
Pesquisando, recentemente, as origens e as ações dessa família,
não obtive uma informação satisfatória do desaparecimento de Savalu
ou Savalou ou Xavalô. E muito menos sua redução ao número de
Voduns indicados por Octávio da Costa Eduardo, na obra The Negro
in Northern Brazil, isto é, Zomadone, Agongone, Zaka e Doçu Agaja.
Não encontrei referências a Savalu, como Vodun, nas obras de Frobe-

99
nius Herskovits (Spieth, citado por este, sempre que se tra ta de etno­
logia religiosa), Métraux, Bastide e Marti.
Pierre Verger, à página 553 de sua obra Notes sur le culte des
Orisa et Vodoun (Dakar Ifan, 1957), se refere a Solavou apenas, dando-o
como companheiro de caçadas de Tohosu Azaka, sem adiantar elementos
esclarecedores da estrutura divina ou mítica por ele chefiada e à qual,
sem dúvida, deve o próprio nome, aliás como aconteceu que outros
Voduns dessem às respectivas famílias aqui relacionadas.
No entanto o mesmo Pierre Verger (no estudo intitulado Le culte
des vodoun d’Abomey aurait-il été apporté à Saint Louis de Maranon
par la mère du Roi Ghezo? — inserto na Mémoire n9 27 (Dakar Ifan,
1953), repito, o mesmo Pierre Verger dá a Savalou o nome de Azaka
que desempenha papel importante ao lado dos Tohosu, ligados a Zo-
madone. E seria um enjeitado, sem dúvida, mas filho de um rei.
Face a essas deficiências, procurei ouvir pessoas da Casa das Minas
e, além dessas, outros estudiosos das religiões africanas no Maranhão.
Zuleide Figueira de Amorim — que o escutou, decerto, da boca
de Amância Evangelista Vianna — me deu esta contribuição.

S a v a lo u a p a receu , m iste r io sa m e n te , e n tr e o s T oq u en s, n a f ig u r a de um
recém -n a scid o , d en tro de u m a ca b a ça ; e n e le v ir a m lo g o u m b a sta r d o e
um en je ita d o . A fe iç o a n d o -se à q u ela c r ia n ç a , o s T oq u en s, tr a ta r a m de criá -
la e in s tr u í-la . E r a u m m en in o. O ra, a ss im q u e e s te se fe z hom em , erg u eu
a v o z n u m c â n tic o , a tr a v é s de c u ja le tr a s e o u v ia o n o m e S a v a lo u . E n tã o ,
o s T oq u en s so u b era m q u e e le er a d as te r r a s de S a v a lo u e lh e d eram por
nom e o to p ôn im o, tã o con h ecid o p e lo s g e ó g r a fo s e etn ó lo g o s, p o is e le s fa z ia m
p a r te do a n tig o R ein o do D aom é.

Em maio de 1970, por fim, na Casa das Minas, Amância Evan­


gelista Vianna me informou que uma antropóloga pesquisadora, de
nacionalidade americana, ali estivera em visita à gente que cultua
os Voduns mina-jejes, porque estava interessada nos estudos de
africanologia.32
Entreteve-se ela com Evangelista e, principalmente, com o runtó
Manuel Nascimento, a respeito da figura de Savalou.
E, assim que os tambores foram vibrados, a antropóloga cantou
um dos pontos que conhecia, no qual estava bem expresso o nome do
companheiro de Zomadone e fora recolhido por ela no Daomé.
32. A pesq u isad o ra a m e ric an a , a que se re fe ria A m â n cia E v a n g e lista V ia n n a , foi id e n tific a d a p o r
m im , g ra ç a s a u m a in d icação do e sc rito r m in e iro J o sé V eiga.
E la se c h am a J u d ith G leazon e é a u to ra de A g o tim e, H e r L e g e n d (G rossm an P ublishers,
N ova Iorque 1970).
A gotim e fo i u m a r a in h a n e g ra , n a sc id a em M ali, o u tro ra im pério, como o D aom é foi reino
e que, p o r m o rte de seu m arid o , fo i vendida, como escrava, pelo re i A dadozã, ta l qual o
fo ra m ta n to s o u tro s filhos d a Á frica, de orig em nobre.
E m vão, subindo ao tro n o , o re i Guezo — e isso c o n firm a a conhecida tese de P ie rr e V e rg e r
— m and o u seus em b aix ad o res p ro c u rá -la no B rasil, p rin c ip a lm e n te no N o rte , sendo in fr u tíf e r a
a busca ali re alizad a. A gotim e, e n tre ta n to , aq u i chegando, p a r a ate n d er, tam bém , u m a ordem
de F a, desde C achoeira e Salvador, n a B ahia, a té São L u ís, no M aran h ã o , fu n d o u o culto do
g ra n d a V odun Zom adone, R ei das Á guas.
E ssa o b ra de J u d ith Gleazon n ã o rev ela a p en a s u m a ficcio n ista, m as, tam bém , u m a diligente
p e squisad o ra d a relig ião d ao m ean a dos V oduns, como, ig u alm en te, d a h is tó ria e do folclore
do a n tig o R eino do D aomé.

100
Segundo ouvimos de Zuleide Figueira de Amorim, a letra daquele
ponto deveria ser, provavelmente, a seguinte:
Agongono dexê Savalou Naê afan elô dexê

Na mesma área geográfica, que apontam como berço de Savalou


e da qual procederam muitos escravos, fiéis ao culto dos Voduns, os
historiadores, geógrafos, etnólogos e viajantes apontam Mali, nestes
termos: «an important center and another name for the northern part
of Dahomey, the Mali country».33
33. É a tra v é s das p á g in a s d a excelente o b ra de B asil D avidson ( T he A fr ic a n P a st, C hronicles fr o m
A n tiq u ity to M o d e m T im e s — L o n g sm an , G reen a n d Co. L td ., L ondres, W .I., 1964) que
e n co n tre i p recio sas in fo rm a çõ e s a re sp eito do que foi, n a an tig u id a d e, o Im p ério de M ali, bem
como o de G an a e o de D aomé, este últim o Im p ério , sobre c u ja h is tó ria re lig io sa e m ític a
escreveu M elville J . H e rsk o v its ( T h e K in g d o n o f D a h o m ey ), riv a l, sem dúvida, de Leo
F ro b en iu s, no estudo do N eg ro do C o n tin e n te A frican o .
N a c ita d a obra, de B asil D avidson, se en co n tra m fra g m e n to s do que nos deixou o v ia jo r
e rra n te Ib n F a d l A llah a l O m ari, re la tiv a m e n te à p e re g rin a ç ã o realizad a, em 1324, pelo
im p e ra d o r de M ali, M an sa K a n k a n M usa, p a rtin d o do A lto N ig e r, onde fic a v a a c a p ita l dos
seus dom ínios, com d estin o a Meca.
É e n c a n ta d o r o episódio, n a rra d o p o r O m ari, d a esq u iv an ça do im p e ra d o r de M ali, a
ajo elh ar-se, em fr e n te do S u ltão do C airo, b e ija n d o o chão, depois de b e ija r-lh e as m ãos, como
o protocolo o exigia, p a r a o fazer, e n tre ta n to , como rev e rê n cia a A lá, “ que o p u s e ra no m undo
e o c r ia r a ” .
O sultão do C airo, erguendo-se, lhe deu a s b o as-vindas, sentando-o ao seu lado e m an ten d o
com o im p e ra d o r de M ali lo n g a conversação.
M ansa K a n k a n M usa, segundo O m ari, e ra conhecido pe la g e n te do E g ito como re i de T e k ru r
(in te rio r do S e n e g al), m as M ansa se in d ig n a v a , ao ouvi-lo assim cognom inado, pois T e k ru r era
a p en a s u m a das regiões do seu im pério. O títu lo que ele p re fe ria e ra de “ S en h o r de M ali” .
O m a ri in fo rm a que “ o re in o de M a n sa K a n k a n M usa co n sistia de te r r a s de G ana, Z agun,
T ira k k a , T e k ru r, B am bugu, Z a rq u a ta b a n a , D a rm u ra , Z aga, K abora, B a ra g u ri, Gao-gao. Os h a b i­
ta n te s de Gao-gao são das trib o s de Y a rte n . A re g iã o de M ali é aquela onde e stá s itu a d a a
resid ên cia do re i, n a cidade de N ia n e (p ró x im a de S eguiri, à m a rg e m d ire ita A lto N iger,
n a fr o n te ira da G uiné com a R ep ú b lica de M ali. “ A sm all village still ex ists th e re ” , a d ia n ta
B asil D avidson, n u m a n o ta de p é de p á g in a ) . T em o nom e oficial de M ali p o r ser c a p ita l do
reino, o q u al tam b ém inclui cidades, ald eias e cen tro s de p opulação em nú m ero de quatorze.
O ilu stre e h onesto Sheikh A b a S a ’id O tm a n ed D ukali (c o n tin u a O m ari, g ra ç a s à tra d u ç ã o
de B asil D a v id so n ), que viveu n a cidade de N ia n e d u ra n te t r i n t a e cinco a nos e viajou
a tra v é s do rein o , contou-m e que o m esm o te m a fo rm a q u a d ra n g u la r, levando-se q u a tro meses
p a r a lhe tra n s p o r a ex ten são e pelo m enos a la rg u ra .
O e sc rito r e v ia ja n te O m a ri faz u m a d escrição de u m a recepção n a corte, p re sid id a pelo
su ltão ; do a lto do balcão do seu palácio, denom inado bem be, onde tem u m a “ p o ltro n a de
ébano, que é como u m tro n o , a d ap ta d o p a r a u m a a lta pessoa; de cad a lado é fla n q u e a d a p o r
p re sa s de ele fa n te ” .
E é im p o rta n te saber-se, a tra v é s d a p a la v ra de O m ari, que cavalos á ra b e s e ra m com prados
p a r a o rei, despendendo ele, n a c o m p ra dos m esm os, considerável soma.
H a v ia u m a c a v a la ria m o n ta d a , com m ilh a re s de cavalos; e, não o b stan te e x istire m a li camelos,
n ão os ap ro v e ita v am , p o rq u e n ão sab iam domá-los.
N ão m enos in te re ssa n te , n a s su as descrições do a n tig o Im p ério de M ali, foi M uham m ad Ibn
A bdullah Ib n B a ttu ta , m ais conhecido, sem dúvida, pelo nom e de Ib n B a ttu ta .
N a o b ra de B asil D avidson, a que estou reco rrendo, com especial satisfa ç ã o , vem um longo
e p ito resco e x tra to d a T u h fa t a l-N u zza r f i G hara ib a l-A m sa r w a ’A d ja -ib a l-A sfa r, o b ra de
Ib n B a ttu ta . N a n o ta de p é de p á g in a (p . 79) B asil D avidson in fo rm a a in d a que os dois
p rim eiro s e x tra to s dessa o b ra se devem a H . A . R. Gibb, in Ib n B a ttu ta , T raveis in A s ia
a n d Á fr ic a (L o n d res 1929), p . 324, 325, 326, 327, 329; o te rc e iro a C. D éfrem ery e B. R.
S a n g u in e tti, L e s voyages d’Ib n B a ttu ta (P a r is 1854), vol. IV , tra d u z id o p o r B asil D avidson.
De u m a fa m ília de T a n g ie r, em 1304, n asceu Ib n B a ttu ta em B erber, dissipando “ g ra n d e p a rte
de su a v id a de adulto em v ag ab u n d ag em ” , desde a s te r r a s de M uslin, no oeste d a Á frica, a té
à ín d ia e à C hina, in fo rm a B asil D avidson. F aleceu no an o 1377 em M arra k esh , m as an te s, aos
60 anos, d ito u su as m e m ó ria s a Ib n Ju za v y , que delas fez trê s livros.
C o n tin u an d o a in fo rm a r-n o s, é a in d a B asil D avidson que assev era te r a o b ra de Ib n J u z a v y
sido “ e n c o n tra d a n a A lg é ria , 130 a n o s depois, e tra d u z id a p a r a o fran c ê s n a m etade do
século, a té q u ando se to rn o u fam o sa p e la ú n ic a descrição do oeste d a Á fric a n o século X IV .
Dou poucos e x tra to s aq u i como engodo p a r a os leitores que a in d a não conhecem Ib n B a ttu ta ,
um m arav ilh o so n a rra d o r de contos c u jo s lan ço s de c a rá te r, — c u ja essência — , c u ja p icad a
e sabor lhe tro u x e ra m v id a m esm o aos 60 anos. S u a excursão ao Im p é rio de M ali começou
em 1352. Tom ou a e stra d a velha, m a s a in d a d ifícil e p erigosa, d a s c a ra v a n a s, a tra v é s do oeste
do S a h a ra , de S ijilm asa, a tra v é s T e g h a z a e W alata , cru zan d o como ele disse, n u m a fam osa
p assag em , u m deserto in fe sta d o p o r dem ônios, e chegando a W a la ta dois m eses depois de h a v er
deixado S ijilm a sa ” .
O re tra to que Ib n B a ttu ta nos faz do S u ltão de M ali, M ansa Sulaym an (m a n sa significando,
em m ande, “ su ltão ” , sendo S u lay m an seu p ró p rio n o m e ), é in te re ssa n te , pe la precisão dos
term o s:
“ E le é u m re i u su rá rio , n ã o um homem de quem a g e n te possa e sp e ra r um rico presente.
A conteceu que eu g a sta sse dois m eses sem o ver, p o r c au sa de m in h a doença. M ais tarde,

101
Míle Valentina, em Salvador (Bahia), me declarou que o seu Bogun
c.slava ligado tradicionalmente a essa localidade e ao povo que nela
vivia. 10 declarara, numa entonação de orgulho: Eu sou Mahi-jeje.
10 isso me foi patenteado através das cerimônias a que ali assisti:
sacrifícios e danças, cânticos e toques de tambores, além dos trajos
das laôs, luxuosos todos eles, em contraste com os das noviches e
gonjais, cultuadoras dos Voduns, da Casa das Minas e da Casa de
Nagô, em São Luís do Maranhão, mas com a mesma interligação so­
cial, ética e religiosa dos trajos tradicionais usados na África.
provável que, continuando minhas pesquisas e estudos sobre o
Negro do Maranhão, recolha mais dados relativos à personalidade de
q uando ele deu u m b an q u ete, em com em oração de nosso M estre (o últim o su ltão de M arrocos,
A bu’I-H a san , p a r a o q u a l os c o m an d an tes, doutores, qadi e p re g a d o re s fo ram co n v id a d o s), eu
o» acom panhei.
U m a e s ta n te foi lev ad a a té lá, e o A lcorão foi lido, e eles re z a ra m pelo nosso M estre
AbuM-IInsnn, e, tam b ém , pelo M ansa Sulaym an. Q uando a c erim ô n ia term in o u , encam inhei-m e
p a ra sau d a r M ansa S u lay m an . O qadi, o p re g a d o r, e Ib n II F a q u ih , lhe p e rg u n ta ra m quem
eu e ra , e ele lhes resp o n d eu em su a lín g u a. E les m e d isseram : O su ltão diz a você: ‘Dei
g ra ç a s a D eus’, a ssim o disse, ‘Louvado s eja D eus e g ra ç a s em todas a s c irc u n stâ n c ia s ’.”
N ão m enos in te re s sa n te e ilu s tra tiv a s são as descrições, sub o rd in ad as ao te m a ‘‘P o m p a e
C irc u n stân c ia ” . “ Sob u m a so m b rin h a de seda, en cim ad a p o r um p á ssa ro de ouro, a passos
lentos e p a ra d a s freq ü e n te s, o su ltão ch eg av a ao p e m p i (p la ta fo rm a , sob u m a árv o re, de onde
o su ltã o d av a a u d iê n c ia s ).
O seu tra jo co stu m eiro e ra u m a tú n ic a de veludo verm elho, de fa b ric a ç ão européia, cham ada
m u ta n fa s ; o sultão e ra precedido p o r m úsicos que p o rta v a m gu im b ris de ouro e p ra ta , duas
g u ita rra s , e a tr á s dele iam trê s c en ten a s de escravos arm ados. C hegado ao p e m p i, o sultão
p a ra v a , o lh av a os c irc u n sta n te s em redor, su b ia e sen tav a-se à m a n e ira de um p re g a d o r subindo
no p ú lp ito de u m a m esq u ita. Ib n B a ttu ta a p re s e n ta os N eg ro s como o povo m a is subm isso e
o m ais a b je to n o seu c o m p o rta m e n to em re la ç ão ao re i, declarando-lhe o nom e M ansa
S ulaym an Ki.
No e n ta n to , re la tiv a m e n te ao te m a S eg u ra n ç a e J u stiç a , Ib n B a ttu ta s a lie n ta que e n tre as
‘adm iráveis qualid ad es desse povo’ e ra m de n o ta r-se :
1. O pequeno n ú m ero de atos de in ju s tiç a e n co n trad o s a li; porque o N egro, d e n tre todos os
povos, são aqueles que ab o m in am in ju s tiç a ; o su ltão não p e rd o a n en h u m acusado de in ju s tiç a .
2. A com p leta e g e ra l liberdade é d e sfru ta d a n a te rra .
li. O s N eg ro s n ão confiscam os bens dos hom ens b ra n c o s (que são do N o rte d a Á frica ) _que
m o rrem em seu p a ís, n em m esm o q u ando estes consistem em g ra n d e s tesouros. Eles os depositam
no p a ís, com um hom em de c o n fia n ç a, e n tre os b ran co s, a té que aquele, que te m d ire ito aos
bens, se a p re se n te e deles tom e posse.
4. E les dizem su as p reces p o n tu a lm e n te ; assid u a m e n te aten d em aos e ncontros dos fié is e castig a m
as c ria n ç a s que a eles faltam .
N a sex ta -feira , quem q u e r que chegue ta rd e à m esq u ita, e n c o n tra onde re z ar, v isto que a m assa
p o p u la r é g ra n d e . E x iste o costum e de m a n d a r u m servo à m esq u ita p a r a e ste n d e r o ta p e te
p ró p rio p a r a re z a r como d ív id a e em lu g a r p ró p rio , e ali p e rm a n e ç a a té que os seus senhores
cheguem . E sses ta p e te s são de folhagem de árv o res, sem elh an tes à p a lm e ira , m a s sem fru to s.
r>. Os N eg ro s exibem fin o s tra jo s n a s sex ta s-fe ira s. Se, p o r acaso, um hom em n ã o possui m ais
do que u m a c am isa ou u m a só tú n ic a , de q u alq u er fo rm a ele a le v a rá a n te s de i r à prece
pública.
6. Ele cu idadosam ente a p re n d e rá o A lcorão de cor. A quelas c ria n ç a s que disso se descuidarem
serão po stas n a co rre n te , a té que te n h a m m em orizado o A lcorão.
N um d ia de fe s ta eu v isite i o qadi e vi c ria n ç a s a co rre n ta d as. E p e rg u n te i: ‘N ão a s podes
d e ix a r em lib e rd a d e ? ’ E ele m e resp o n d eu : ‘Som ente q u ando souberem o A lcorão de c o r’.
N o u tro dia, ao p a ss a r p o r um jovem N eg ro , vi um la ta g ã o m uito bem tra ja d o que tin h a um a
c o rre n te nos pés. E disse ao m eu c o m p an h eiro : ‘Que aconteceu com esse ra p a z ? M atou
alguém ?’ O jovem N e g ro ouviu o que eu d isse ra e com eçou a r ir . ‘E les o a e o rrre n ta ra m , sim ­
plesm ente p a r a que m em orizasse o A lcorão’.
M as Ib n B a ttu ta , en u m eran d o os costum es dep lo ráv eis daquele povo, se m a n ife sto u c o n tra a
nudez d as m ulheres, esc ra v a s e, a té m esm o, d u as filh as do sultão, e isso n a vigésim a noite
do R am adã. N eg ro s cobrem a cabeça com p o e ira e cin za em s in al de boas m a n e ira s e de
respeito. E bufões ap arec e m em fr e n te ao su ltão quando os p o e ta s re c ita m seus cânticos de
louvor. E um g ra n d e n ú m ero de N eg ro s come c a rn e de cães e de ju m e n to s” .
E n ten d i, lendo a o b ra de B asil D avidson, que isso n ão b a sta v a , e não s e ria despropositado o
gesto de to r n a r conhecidos os ex certo s das o b ras d a lg u n s a u to re s d a an tig u id a d e a fric a n a , pois
au to re s como Ib n O m ari e Ib n B a ttu ta , aq u i tra n s c rito s , podem esclarecer c erto s asp ecto s das
p a isa g e n s do Im p ério de M ali, q u a n to o do R eino do D aom é, re v e la r a fisionom ia físic a e a
e s tr u tu ra m o ral do N egro, naqueles velhos cen tro s de c u ltu ra em n a d a in fe rio re s aos do O cidente.
Daí poder-se co m p reen d er e a d m ira r o orgulho dos descendentes de N egros escravos de M inas
(le ra is, B ahia, P ern am b u co , M aran h ã o e m esm o d a A m azô n ia, quando referin d o -n o s à origem
dos seus an tep assad o s p ro clam am : “ M in h a avó e ra de L agos, do D aom é” , como europeus se
dizem do Lisboa, de C ádiz ou de P a ris .
Mãe N ena, N ochê da C asa das M inas, m e d izia: “ M am ãe e r a C abinda; e M ãe V a le n tin a , do
Bogun do Salvador (B a h ia ): M eus a v ó s eram de M ali” !

102
Savalou, porque suas aventuras devem constar de entrecho das que no­
tabilizaram Azaka e Zomadone.34
Jagôrôboçu, que é um Toquen, não aparece na relação de outros,
constantes das famílias Davice, Quêviôçô e Dambirá, mas ele baixa,
freqüentemente, em Enedina de Oliveira, uma informante maranhense,
das relações de Zuleide Figueira de Amorin, em cujo Quêrêbêtan, na
Estrada do Rio Grande, em Jacarepaguá (Rio de Janeiro), tive a
oportunidade de vê-lo manifestar-se.
Ele está ligado a Daco e, tanto no trajo como na maneira de
dançar e de cantar, corresponde integralmente ao que pode ser obser­
vado na figura de outros Toquens e Voduns da Casa das Minas de
São Luís.
Voltando a apreciar o fenômeno de subir, de desligar-se desta ou
daquela filha, que cultua as divindades daomeanas ouiorubanas, cabe-
me informar que grande é a dedicação de todos os fiéis à religião
dos Voduns e, em particular, da que os recebia.
A falta de comparecimento às festas do calendário respeitado ali,
a esquivança ou desleixo no contribuir, com oferendas, velas, azeite,
animais propiciatórios, dinheiro; a não-participação nos trabalhos ou
nos preparativos das festas; o desrespeito às normas litúrgicas, os de­
sentendimentos pessoais, podem concorrer para que um Vodun suba,
não se manifestando mais na filha que o tinha como senhor ou santo
ou pai, a quem se deve veneração e respeito.
É oportuno salientar-se aqui que os Voduns, em suas manifestações,
as mais dasvezes imprevistas, baixam até sobre a cabeça de uma
criança, cuja idade não seja inferior a quatro anos, levando-a a parti­
cipar das danças, na plenitude do transe, como se vê ocorrer com
adultos.
E, desde então, todos sabem a quem aquela criança pertence, a
este ou àquele Vodun, ficando obrigada a cultuá-lo, embora nela bai­
xasse, incorporasse numa idade tão tenra.
Moças e senhoras — e o mesmo ocorre, embora não freqüentemente,
com jovens e senhores — por ocasião das tradicionais festas da Casa
das Minas e da Casa de Nagô, igualmente, recebem um Vodun, inde­
pendentemente da própria vontade, de preparação anterior, de sugestão
de uma gonjai ou noviche, sem conhecida ou manifesta simpatia pela
estrutura religiosa da Casa ou subordinação a uma feita.
E isso denuncia logo a necessidade de uma iniciação regular da
criatura que recebeu ali o Vodun, nela baixou ou nela, melhor diria,
se incorporou.
Mas, enquanto essa iniciação necessária não se realiza, continuará
ela a receber o Vodun que a elegeu para filha ou esposa.
34. A kabá foi o te rc e iro R ei do D aomé, segundo P ie rr e V e rg e r; e, sendo um T ahosu, teve com n
R ain h a K ouende um filho a n o rm a l: Zom adone.
U m o u tro T ahosu, n a tu ra l de S aavalou, e ra c o m p an heiro de Zom adone n a s c aç a d a s e n o u tra s
ativ id ad es e sp o rtiv a s c de subsistência.
O p rim eiro sacerdote de Zom adone foi A bada, em c u ja cabeça ele baixou, à sim ples vlbrnçAo
du um anoí/we.

103
IV
Um dos mais singulares fenômenos, dentre os observados nas alu­
didas solenidades, a que comparecem os Voduns mina-jejes, é, sem
dúvida, este ou aquele baixar, na mesma ocasião, sobre a cabeça de
várias de suas filhas ou esposas, numa igual distribuição das forças
deflagradas pelo transe místico.
Essa particularidade me foi apontada com relação a Póli-Boji, que
baixava, ao mesmo tempo, sobre a cabeça de Mãe Andresa Maria, de
Felicidade Nunes Pereira e das filhas, gonjais e noviches Filomena,
Zaíra e Laura.
E, ainda hoje, o mesmo fenômeno pode repetir-se, naturalmente.
A estampa que representa uma tartaruga adulta (ver Caderno
Iconográfico n. 19), de cujas patas, dir-se-ia, partem feixes de raios
luminosos na direção de pequenas tartarugas, dispostas em semicírculo,
ilustra esse fenômeno a contento, tanto mais quando se sabe que a
tartaruga é, na mitologia e na religião da gente daomeana, possuidora
de densas forças mágicas, idênticas às atribuídas aos feiticeiros, senão
aos Voduns.
Fora da Casa das Minas recolhi a informação de que Mãe Andresa
possuía uma estampa colorida ou carta de baralho, trazida da África,
representando esse fenômeno.
Interpelando ali Amância Evangelista Vianna, a respeito dessa
estampa ou carta de baralho, revalidou ela a informação e descreveu
a figura aqui apresentada, particularizando-lhe o simbolismo.
O baralho, emprestado a um estudioso, freqüentador da Casa das
Minas, nunca foi devolvido à Mãe Andresa Maria.

V
Alguns Voduns, aqui relacionados nas suas respectivas famílias,
têm nomes correspondentes aos dos Orixás dos terreiros da Bahia,
podendo essa particularidade ser apreciada num confronto com o que
se deve a uma pesquisa de Pierre Verger, verificável in Dieux d’Afrique:
V od u n s O rix á s
Legbá 35 Eschou
Gou ou Gu Ogun
Agbé Ochoxxi
Sakpata o u Azoan Omolu
Sobo ou Badé Shangd
Aziri Oiwlwun
Olixua ou L í h h i i Oiwliala
ar». A r th ui* Rum os, no cap itu lo XTÍ, riu I n h â ;\ n fi opoloi/ia liraailcira (edição d a C asa do
Km! 1 1ri:1111«‘ rio ISnuril. Itlo «In Jn n . ín» i'' i • anei-lnçnn rio» deuses iorubanos, focaliza
Kxu (K sh u ), esorevcm loi p a la v ra i|im p a n e » d e riv a r rio *hu, escuridão0.
K, prosseguindo, a firm o quo Itíx u A um OH* A «pio, mesm o a n te s de c h eg a r ao B rasil, já
h avia híiIo assim ilado ........Ilubo pel.m •mImmImiiAi I........... .. •I!• •**». Itenlm onte, é um a poderosa entidade,
dotaria riu poderes molAfloos espoelals, euihm o •>.. N ouros a fric a n o s lhe p re s te m culto, como
aos outro s OrlxAs, i • lininurio iaiuhAio Im**•«. Kleulut, nume rio o rig em d a o m e an a (L é g b a ) .

104
E Melville Herskovits, num estudo comparativo dos deuses africa­
nos e dos santos católicos, resultante das suas pesquisas no Brasil,
Cuba e Haiti, mostra que Obatalá, por exemplo, corresponde à Virgem
das Mercês, em Cuba; Orixalá (Oxalá) corresponde ao Senhor do
Bonfim, no Rio de Janeiro e na Bahia; Xangô corresponde à Santa
Bárbara, na Bahia; Legbá corresponde ora a Santo Antônio, ora a
São Pedro; Ogun corresponde a São Jorge e ao Diabo; Oyá é Tyansan,
e corresponde a Santa Bárbara. E Xangô é Agonjá (o Jovem), ou
Xangô Dadá, e corresponde ao Senhor do Bonfim. Mas mesmo corres­
pondendo a Santo Antônio e a São Pedro, Legbá, ainda hoje, é con­
fundido com o Diabo.
Verifica-se, na aludida relação, que as divindades africanas osten­
tam diversos nomes, acontecendo o mesmo, porém, em não menor pro­
porção, entre os Voduns da Casa das Minas, ou melhor, direi, no
Panteão das divindades africanas, que ali são cultuadas, tais como
Ogun Obira, Ogun Meji, Ogun Medji.
Essa diversidade e abundância de designativos, apontadas com re­
lação a Voduns e Orixás, foram assinaladas por Otávio da Costa
Eduardo em sua obra The Negro in Northern Brazil.
P a r a os seus c re n te s ele n ã o é malévolo. R ep resen tam -n o , e n tre os Iorubas, p o r u m a m assa
cônica de b a rro , onde in c ru sta m conchas e fra g m e n to s de fe rro , que fazem o p a p el de olhos,
boca, etc. Seu culto é g e ra lm e n te sep arad o do dos ou tro s O rixás. S acrificam -se-lhes galos.
E llis descreveu esse O rix á como u m a divindade fá lic a a quem se fa z ia m o u tro ra sacrifícios
hu m an o s, em ocasiões especiais.
E x u é consultado tam b ém no s ato s d a v id a d iá ria , devido aos seus e x tra o rd in á rio s conhecim entos,
ou d ire ta m e n te pelos seus fiéis, ou a tra v é s dos seus sacerdotes. São usados como in stru m e n to s
de c o n su lta dezesseis conchas de cow ries. E x u e stá tam bém em conexão com Ifa , o oráculo dos
Io ru b as, que é objeto de cultos especiais, de fin s divin ató rio s.
M elville J . e F r a n c is S. H ersk o v its, n a o b ra D ahom ean N a rr a tiv e , nos a p o n ta m como p roezas
de L eg b á (E x u , ev id en tem en te) a s que su b o rd in a ra m ao títu lo : “ H ow L eg b á becam e chief of
th e gods” . “ H ow m a g ic becam e a h u m a n skill” . “ M an a g a in s t th e c re a to r” . “ H ow m agic
sp re a d ” (n*> 9, p . 139).
E ali vem a a firm a tiv a ou in fo rm a çã o de que L eg b á (E x u ) e r a um deus.
V eja-se:
“ L o n g ago, L eg b á w as th e la st o f th e gods. O ne day M aw u sa id to th e gods he w ould show
th em so m eth in g . H e w ould show th e m who be th e ir chief. M aw u th e n gave th e m a gong, a bell,
a d ru m , a flu te a n d said w hoever took ali th e in stru m e n ts, a n d played th e fo u r to g e th e r and
danced to th em w ould be th e ir chiefs.
H evioso said, ‘I am v ery s tro n g . I c an do a li’. H e trie d . B u t he failed.
M aw u called on Gu a n d A g e to try . A ge said, ‘I am a h u n te r. I have g r e a t stre n g th . I can do
e v ery th in g ’. H e trie d an d failed. G u carne. H e said h e had fire . H e m ade m a n y th in g s. Ho
w oud do it. H e trie d , a n d he, too, failed.
N ow M aw u called alí th e gods to g e th e r a n d asked L eg b á to tr y a n d did ali. H e stru c k th e
d ru m ; he p layed th e g o n g ; h e r a n g th e bell; h e blew in to th e flute, a n d ( a t sam e tim e)
m ade ali th e g e stu res o f th e dance. M aw u said to him , ‘N ow I w ill give you a w om an whoso
n am e is K o n ik o n i’. A n d M aw u said to th e o th e r gods th a t L eg b á w a s to b e th e f ir s t am ong
them .
N ow L eg b á said h e w ould sing, an d h e san g .
I f th e house is p ea cefu l
I f th e fie ld is fe rtile
1 w ill be v e r y h a p p y .
N ow L e g b á h a d know ledge, an d b e g an to m ak e m agic charm s. H e w a s th e f ir s t to m ak e them .
H e m ade a s e rp en t. T hem he p u t th e s e rp e n t dow n on th e ro a d to th e m a rk e t, a n d he
com m anded th e s e rp e n t to b ite th e sellers a n d th e buyers. O nce th e s e rp e n t b ite them . 'Givo
m e so m eth in g , an d I w ill cu re you*. I f th e y g ave h im som ething, he w e n t a w ay to buy am ua,
an d p a lm oil, a n d d rin k in g w a ter. T h e n h e a te ali a n d d ra n k ali O ne day sem eone ankod
L egbá, ‘w h a t is th a t, p o in tin g to h e s e rp en t, th a t w hich bites people’ ?
L eg b á a n sw e re d h im , ‘I t is m a g ic ’. L eg b á said to th is m an , ‘B rin g m e tw o chlckons and
eig h ty cow ries a n d som e stra w , an d w ill m a k e one fo r you’. So L eg b á began to m ake m agic
ch arm s fo r th is m an . L e g b á led th is m a n dow n th e charm s. W hen L eg b á said to th ro w bm\U
th e lia n a , th e lia n a becam e s e rp en t, a n d b e g an to b ite people. T hen, L eg b á gave him lha
m edicine to c u re th ese people. T h e m a n w as called A w é, a n d w as L eg b á w ho guvc m agic
ch arm s to Awé.
N ow , M aw y w as a n g ry . She called L eg b á a n d said to Legbá, ‘N ow o f som eono doou n o t *«•«'
you, w ill n o t do a g a in ’. N ow L eg b á is fo rev e r a vodun. A w é is a m an . So ha oontlouod to

105
Elas são comuns nas Casas daomeana e iorubana, isto é, das Minas
o de Nagô, nas conversações quotidianas, sendo ali que o autor, ora
citado, registrou que Póli-Boji recebe os nomes seguintes: «Dada-Missu-
Cone-Jeko, Damede, Metonji, Lakaba, Lube, Adonovi, Vipenhon, Sa-
dono, Abrogevi, Toi Hanni, Hae, Hansci. E Agongone é distinguido como
o de Savalou, Hoso, Lise, Ahoso, Hompeze, Tripapa, Duheme. Na Casa
Ioruba (Nagô), Xangô é conhecido pelos nomes de Keviôsô e Badé».
E Otávio da Costa Eduardo se estende aos nomes (muitos deles
honoríficos ou correspondentes à particular ação do Vodun) de Aba-
kuoso e Gunoco, de Ogun-Ogun-Ota, Ogun Ona, Ogun Moço.
Moço e Velho são designações para distinguir Voduns, tal como
entre os romanos: Plínio, o Velho e Plínio, o M oço...
nm ke charm s. A w é becam e ch ief o f m agic. W hen som eone w ished to m ak e a charrn, h e cam e
to him a n d b ro u g h t ali th a t w a s needed a n d A w é took th e p lace of L egba. So A w é w e n t
everyw here an d asked w ho w a n te d to m ak e c h a rm s? T h en h e gave him c h arm s a n d d isappeared.
H e gave th e m ag ic c h a rm s to everyone. H e also g ave c h arm s to those w ho do evil” .
M as L egb a a p arec e n u m a o u tra e s t ó r i a g ra v a d a, como a a n te rio r, pelo casal H e rsk o v its; e de
n? 10, à p á g in a 141 d a o b ra a cim a re fe rid a . É essa estó ria se in titu la : H o w Legba becam e
g u a rdian o f m e n a n d gods. W h y th e god is respected.
Ê a tra v é s dessa e s tó ria que se sabe como se c h am av am os p a is do V odun Legba.
E screve o casal de pesquisadores:
“ T h e re w ere th re e c h ild ren o f A g b an u k w e an d K poli. T h e f ir s t w a s a siste r w hose n a m e w as
Mi nona. T he second w as called A ovi, th e th ir d Legba.
T hese th re e form ed a little fu n e ra l b a n d ” .
N o desenro lar-se dessa e stó ria , e n tre o u tra s revelações, nos é dado sab er que L eg b a e r a um
g ra n d e c a n to r . . . L eg b a w a s a g re a t singer.
A tra d u ç ã o dos trech o s acim a, tom ados à o b ra do casal H erskovits, é a segu in te:
“ I lá m uito tem p o passado, L eg b á foi o ú ltim o deus. C erto dia M aw u disse aos deuses que
tin h a algo a com unicar-lhes. Q u eria m o stra r-lh es quem s e ria o chefe deles. M aw u, então, lhes
deu um gongo, u m a cam p ain h a , u m ta m b o r e u m a fla u ta , dizendo-lhes que o que tocasse esses
in stru m e n to s, os q u a tro , aos m esm o tem po, e d ançasse, s e ria o chefe. H eviosô disse: ‘E u sou
m uito fo rte. P osso fa z e r tu d o ’. E x p e rim en to u . M as fracasso u . M aw u cham ou Gu e A gê p a r a
que experim en tassem . A g ê disse: ‘Sou u m caçad o r. T enho g ra n d e fo rça . Posso fa z e r tu d o isso’.
Ele e x p erim e n to u e fracasso u . V eio Gu. D isse que p o ssu ía o fogo. F a z ia m u ita s coisas. P o d e ria
fa z e r tudo. E x p e rim en to u , e ele, tam bém , fracassou.
E n tã o M aw u re u n iu todos os deuses e disse a L eg b á que ex p erim en tasse. E le b a te u o ta m b o r,
tocou o gongo, ag ito u a c am p ain h a , so p ro u a fla u ta , e (ao m esm o tem p o ) deu todos os passos
de «lança. M aw u lhe disse: ‘A g o ra eu posso d a r a você u m a m u lh er cujo nom e é K onikoni’.
E M aw u disse aos o u tro s deuses que L eg b á e ra o p rim eiro d e n tre eles.
E n tã o Legbá disse que q u e ria c a n ta r , e can to u :
S e o lar é tranqüilo
S e o cam po é fé r til
E u posso ser feliz.
A g o ra L eg b á tin h a conhecim entos e com eçou a fa z e r feitiços. F oi o p rim eiro a fa z e r isso.
Fez urna serp en te. Pôs, então, a serp e n te n a e stra d a e ordenou-lhe que picasse todos os
com pradores e vendedores. Im e d ia ta m e n te a s e rp e n te os picou. ‘D ai-m e alg u m a coisa, e eu
poderei c u ra r-v o s’.
Se lhe dav am alg u m a coisa, ele s a ía p a r a c o m p ra r aca^sá, aze ite de p a lm e ira e á g u a potável.
E n tã o com ia e b ebia tudo.
U m d ia alguém p e rg u n to u a L eg b á: ‘Que é isso ? (a p o n ta n d o p a r a a serp e n te ) que pic a
o povo ?’
Legbá respondeu-lhe: 'tò fe itiç o ’.
E L egbá disse a esse hom em : ‘tra z e d u as g alin h as, oito cauries e alg u m a p a lh a , e eu poderei
fa z er um p a ra você’.
A ssim Legbá com eçou a fa z e r u m fe itiç o p a r a o hom em .
L egbá pôs o homem iwi e stra d a que levava ao m ercado, e contou-lhe tudo o que e m p re g a ra
p a ra fa z e r o feitiço . Q uando L eg b á disse p a r a a lia n a se tra n s fo rm a r, a lian a virou serp en te , e
com eçou a p ic a r o povo. E n tã o Legbá lhe deu o rem édio p a r a c u r a r opovo. O homem se
cham ava A w é, e foi I .egbá quem lhe deu tudo o que e ra feitiço.
E n tã o todo o feitiço mm espalhou p o r to d a p a rte . Legbá com eçou a dar-lho ou tro s feitiços, de
m a n e ira que, se alguém deles necessitava, ia à c asa de A w é e Awé cham ava Legbá á su a casa.
P re p a ra v a o fe itiç o ao lado d a c asa e o tr a n s p o rta v a p a ra o lado oposto, p a ra d a r a outros
que o p rocu rassem .
M awu, então, zangou mm C ham ou Legbá e lhe disse: 'A g o ra ninguém dava p ro c u ra r VOefl e
v o e i n a d a m ais devtná fa z er’. D esde e n tã o L eg b á passou a ser V odun.
Awé é hom em . Ele c u lln u o u , p o r isso, a fa z e r feitiço. Tornou-no o sen h o r do feitiço. Q uando
alguém n ecessita do mu feitiço, ele vai b u scar em su a casa o que for necessário, E Awé
tom ou o lu g a r do • rabrt. Desse modo A w é vai a to d a p a rto o p e rg u n ta i 'A lguém necessita
do fe itiç o ? ’ E n láo , h| s e n tre g a o feitiço o desaparece. D istrib ui o felllço por Ioda p a rle . M
tam bém d istrib u i m alefícios a quem os p ede” .

106
Alguns dos Voduns, pertencentes às famílias aqui descritas, se dis­
tinguem por deformações físicas e por atributos impressionantes.30
Sakpata ou Shapanan ou Xapanan (cujo correspondente no cato­
licismo é São Lázaro), como já anotamos páginas atrás, é apresentado
com as extremidades, pés e mãos, deformadas pela lepra.
Legbá, o velhaco e trampolineiro, e Gu, Deus do Ferro (ligado a
Mawu), se distinguem pela posse de pênis disforme.
E Zomadone, o mais velho dos Voduns e o mais irritável, é descrito
por Pierre Verger, nestes term os:

A k a b a , R ei do D aom é, te v e u m filh o an orm al. A p ren h ez da r a in h a K ouandó


fo r a p e n o sa e a g ita d a , m a n ife sta n d o -se d u a s v e z e s n a s c o sta s, d u as v e z e s
no p eito , d u a s v e z e s n a d a tiv e r a ; d o is ou tr ê s d ia s d ep ois, lá e s ta v a e la
p ren h e de n ovo. A p a r te ir a fu g iu , esp a v o rid a , a ss im que a c r ia n ç a Za-
m ad on e v e io ao m undo, porq u e tin h a s e is olh os, d o is sob re a fr o n te , d ois
a tr á s da ca b eça e d ois so b re o p eito. T in h a d en tes, cab elos e b arb a, e,
d esd e n a scid o , s e p u se r a a a n d a r e a f a la r ; a lém d isso , n a sc e r a com um

36. E n q u a n to m e em p en h av a em novas p esq u isas e n a am p liação das N otas, aqui inseridas, tiv e
a felicidade de e n c o n tra r, n u m a das liv ra ria s do b a irro de C opacabana, do R io de J a n e iro ,
u m a fo n te in im ag in áv el de inform ações, que é o volum e publicado p e la Société A fric a in e de
C u ltu re (P ré se n c e A f ric a in e ), R ue des Écoles, P a ris-V e , sob o títu lo L es religions africaine»
com m e source de valeurs de civilisa tio n , e re la tiv o ao Colloque de Cotonou (16-22 a o ü t 1970).
E n essa fo n te , a c o n trib u iç ã o de H o n o ra t A guessy, in titu la d a R e ligions a fric a in es com m e ef f et
e t source de la c ivilisa tio n de Vorálité (p. 25 a 49) é im p o rta n tíssim a .
A ssim , a in d a sobre Legbá, cabe aqui o que A guessy nos oferece a re sp eito desse personagem ,
que n ã o é u m V odun, m a s um irm ão m a is novo dos V oduns, u m p u in é , segundo a denom inação
fran c e sa .
“ Selon u n e le c tu re généalogique, il e st loisible de re m a rq u e r que L eg b a e st le c ad e t des dieux.
Ce s ta t u t de cad et s ’accom pagne de celui de 1’in d ividu qui n ’a rien. À ce niveau, L egba est
san s dom aine. M ais il ex iste u n a u tre m ode de le c tu re possible: le c ad re linguistique. E n
effe t, d a n s le cad re des lan g u es p a rlé e s p a r les dieux, L egba m a n ife s te ra sa su p ério rité . Dana
ce cadre, chaque dieu possède sa langue, in in tellig ib le au x a u tre s dieux, d it le m ythe. De co
fa it, au cu n e co m m u n icatio n n ’ex iste e n tre eux. Seul L egba p e u t c o m p ren d re to u te s ces langues
e t serv ir, p a r conséquent, de m odeste tra d u c te u r ou linguiste. Ce rôle de tra d u c te u r fa it de lul
1’a g e n t de co m m u n icatio n ind isp en sab le n o n seu lem ent e n tre les d iffé re n ts dieux, ou e n tre les
dieux e t M aw u (1’ê tre su p rêm e) m ais encore e n tre les hom m es e t les dieux.
Or, q u i de n ous ig n o re 1’im p o rtan c e de ce rôle e t s ta tu t d’in te rm é d ia ire ? A ussi, d ans le cas
de Legba, to u t le m onde se v oit-il obligé de p a ss e r p a r sa m é d ia tio n ! II e st p a rto u t. D ’autreH
versio n s de la cosm ogonie F o n qui fo n t v a rie r les nom s e t la place des dieux, c a n to n n e n t
to u jo u rs L eg b a d a n s le m êm e s ta tu t que celui que nous venons d ’a n aly se r s u iv a n t le p a n th é o n
do la te rre " .
E A guessy, c o n tin u an d o , p e rg u n ta : Quelles leçons en tirer?
“ L a p re m iè re re m a rq u e à fa ire e s t le p e rso n n a g e qui re p re sen te , au niv e a u des dieux, 1’imngo
que les D ahom eéns se fo n t de la con d itio n de p u in é de la fam ille, d ans la re la tio n b in a i ro
p u in é-ain é. L e p u in é n ’a p a s p a r t à 1’h é rita g e ; p a r c o n tre on le d it trè s in te llig e n t e t on u
p e u r de lui. L e p u in é e st ch arg é de tra n s m e ttre des m essages à toutes les d e stin atio n s possiblcs.
A insi, il s a it to u t; il p e u t aussi b ien to u t p a ra ly se r, ou to u t a c tiv e r ou ré a c tiv e r. Le pu in é
e st au ssi celui qui, ne p o ssé d a n t des b ien s m atériels, cherche des c o m pensations d ans la
co n n aissan ce a p p ro fo n d ie du d om aine des m a n ip u la tio n s d ’a u tru i e t des stra té g ie s habiles susceptiblaa
de lui fa ire tir e r p a r ti de to u tes les situ a tio n s. II ré su lte de to u s ces fa its que le p u in é n ’e st pau
ra d ic a lm e n t coincé e t b rim é, a u sein de la fam ille: il dispose d’u n e m a rg e considérable do
m an o eu v res que lui seul p e u t e n tre p re n d re e t ex p loiter. II en v a de m êm e p o u r Legba dana
le systèm e re lig ie u x e t la m ythologie F o n . T o u t bien pensé, L eg b a re p ré s e n te le m an q u e radical
e t 1’in s a tisfa c tio n p e rm a n e n te que 1’hom m e en éprouve. C’e st en v a in q u ’on vou d ra sa tisfa lro
ou com bler ce m an q u e avec des a cq u isitio n s c o n tin g e n tes; il se m a n ife s te ra to u jo u rs s o u h iiiio
a u tre form e. A ussi L eg b a est-il 1’in s a tis f a it p a r excellence ou p lu tô t T in sa tisfa ctio n diviniséo.
II est, p lu s c h a n g e a n t; capable de d resser les d iv in ité s les u n e s c o n tre les a u tre s, il e st aunnl
q u alifié p o u r o rg a n is e r 1’e n te n te de celles d’e n tre elles qui n e s ’e n te n d e n t pas. Q u’un tel
p erso n n ag e divin jo u e u n rôle p ré p o n d é ra n t d an s la cu ltu re de 1’o ra lité qui c o n stituo la c u ltu ra
F on n ’a rie n p o u r nous su rp re n d re . S a fo n ctio n de lin g u iste d it éloquém m ent la placo du
la n g a g e e t s u rto u t de la p aro le d an s la c iv ilisation de 1’o ra lité en général. Si Légba, e st la
dieu le plu s p o p u la ire e t le p lu s p ro ch e de 1’hom m e e t F o n e st s u rto u t lin g u iste , c 'e st quo
la p a ro le e st décisive d a n s ce cad re de cu ltu re.
E n b re f, c’est à to r t que L eg b a e st confondu avec le Diable. L egba n e p e u t ô tre diaboliqua
que d a n s la m esu re ou le m an q u e ra d ic a l e t 1’in satisfa c tio n qui en ré su lte so n t identifiabloH au
diabolique. II e st v ra i que to u t c h an g e m e n t sa n s te rm e e t issue e st g u e tté p a r lo m al, ma In il
n e s ’y ré d u it p as. À la suite de ces analyses, que d e v ie n n en t les critiquoH p o r ta t s u r Ira
c a ra c tè re s sacrificiel, im a g in a ire ou diabolique des religions a fric a in e s ? II semble q u ’cllcH Holont,
loin d ’a tte in d re ces religions, ou, du m oins, si elles les a tte ig n e n t, elles a ttc lg n e n t p a r la rnêmo
to u tes les re lig io n s".

107
tum or sob re a s n á d e g a s, um tu m o r de g r a n d e s prop orções, q u e e le a r r a s ­
tava ao c a m in h a r ; no d ia se g u in te e le e n tr a v a n e ss e tu m or, d e sa p a r e c ia
6 1’ola v a pelo ch ão com o u m b a lã o e d e c la r a v a q u e e r a Z om adone; no dia
■seguinte se tr a n s fo r m a v a num g r a n d e p á ss a r o q u e p e sc a v a p e ix e s à b eira
de um p â n ta n o e c a n ta v a , d izen d o -se filh o d e A k a b a ; e, lo g o a se g u ir ,
v o lta v a a se r h om em . A g e n te e s ta v a m u ito su r p r e s a a n te e s s a s m a n i­
festa çõ es. D e sa p a r e c ia , e n tã o , m a s em b r e v e u m ca ça d o r o e n c o n tr a v a à
beira de u m p â n ta n o e e sta v a d izen d o-se filh o de A k ab a, ch am ad o Zo­
m adone; pouco d ep o is a g e n te o o u v ia c a n ta r à m a rg em de u m a r ib eira
e o o u v ia , tam b ém , à m a r g e m de u m a fo n te . A k ab a m a n d a v a p rocu rá-lo
m as, em b ora o o u v isse m , n ão o en co n tra v a m em n en h u m lu g a r . S e ele
c a n ta v a n a r ib e ir a , o s q u e v in h a m p r o c u r a r á g u a lh e o u v ia m a s ca n çõ es,
I10 m esm o tem p o, n ’á g u a e no a r , e a g e n te n ã o sa b ia o q u e fa z e r . A k a b a ,
in u tilm en te, o p ro cu ra v a .

E Pierre Verger descreve os filhos anormais de outros reis, de


Agadja e de Tegressou, que se chamavam Kpelou e Adonou, com os
quais Zomadone organiza um exército de pigmeus retirados de um
pântano e passa a matar, utilizando um caça-mosca, a gente do Daomé,
obrigando-a a refugiar-se em Abomey. Um certo Abada, entretanto,
infestado por vermes da Guiné, ficara na cidade. E, não podendo mover-
se, ocultou-se numa árvore. Descoberto pelos pigmeus, foi, contudo, pou­
pado, em razão de suas relações com um Tohossou de Savalou, cha­
mado Azaka, com o qual tinha o costume de caçar. Após sua liber-
Imh a tra d u ç ã o dos tó p ico s acim a, alg u n s que eu a n te v ira , q u ando do a p arec im e n to d e sta obra
r, agora, n as N o tas que ap arec e m n a su a reedição:
Segundo u m a le itu ra g e n ealó g ica é líc ito a ss in a la r que L eg b á é o irm ão m a is novo dos
deuses. E ssa condição de irm ão m a is novo e stá lig a d a à do invidíduo que não te m n a d a.
INChhu nível L eg b á não te m p a trim ô n io . M as ex iste o u tro modo de le itu ra possível: a m oldura
UngüíRtica. Com efeito, n a m o ld u ra das lín g u a s fa la d a s pelos deuses, L egbá m a n ife s ta rá sua
superioridade. N e ssa m o ld u ra, c ad a deus possui a su a lín g u a , in in te lig ív e l p a r a o u tro s deuses,
diz o m ito. E m conseqüência, n e n h u m a com unicação ex iste e n tre eles. Só L egbá pode e n te n d er
todas essas lín g u a s e se rv ir, co nseqüentem ente, de m odesto tra d u to r ou lin g ü ista . E sse p a p el
d« tra d u to r faz dele o a g e n te de com unicação indispensável, n ã o som ente e n tre os d ife re n te s
deuses ou e n tre os deuses e M aw u (S e r S u p rem o ), m as a in d a e n tre os hom ens e os deuses.
O ra, quem de n ó s ig n o ra a im p o rtâ n c ia desse p a p el e condição de in te rm e d iá rio ?
I o r inmo, no caso de L eg b á, todo m u n d o se vê ob rig ad o a p a s s a r p o r su a m ediação 1 Ele
«v ln em tod a p a rte . O u tra s versões d a cosm ologia Fon, que v a ria m os nom es e o lu g a r dos
deuses, s itu a m sem p re L eg b á como acabam os de a n a lisa r, de acordo com o p a n te ã o d a t e r r a ” .
Am.u'HHV. c o n tin u an d o , p e rg u n ta : Que lições t i r a r d a í?
A p rim e ira o bservação a fa z e r é que o p erso n ag em que re p re s e n ta , no nível dos deuses, a
Imagem qq0 os D aom eanos fazem d a condição do irm ão m ais m oço d a fa m ília e stá n a re la ç ão
b in á ria lim ã o m ais m oço — p rim o g ên ito . O irm ão m ais m oço n ã o to m a p a rte n a h e ra n ç a ; em
com pensação considerado in te lig e n te e tem -se m edo dele. O irm ão m a is m oço é incum bido de
trn n n m itir m en sag en s a todos os d e stin a tá rio s possíveis. Desse modo, tu d o ele sabe; pode tam bém
p a ra lln a r tudo, a tiv a r ou re a tiv a r. O irm ão m ais m oço é tam bém aquele que, n ã o possuindo
Immim ui iI»tíuIh, b u sca com pensações no conhecim ento a p ro fu n d a d o do dom ínio d a s m anipulações
de o u t r o s i» e stra té g ia s hábeis, que lhe podem fa v o recer em to das a s situações. R esu lta desse
uilo uue o Irm ão m ais m oço n ão e stá ra d ic a lm en te im obilizado e m a ltra ta d o no seio d a fa m ília :
He dlH|i<v ,|„ u m a considerável m a rg e m de m an o b ra s que só ele pode e m p re e n d er e ex p lo ra r.
,iM,, w,no oco rre a L eg b á no siste m a religioso e n a m ito lo g ia Fon. L eg b á re p re s e n ta a fin a l a
pilviieiiw in d icai e a in s a tisfa ç ã o p e rm a n e n te que o hom em sofre. É em vão que se q u e re rá
Hiit iMMi/rr «ui p re e n ch e r essa p riv a ç ã o com aquisições c o n tin g e n tes; isso se m a n ife s ta rá sem p re
*Jl . o u tra fo rm a. L eg b á é, pois, o in s a tisfe ito p o r ex celência ou a n te s a in satisfaç ã o
<llv " Elr é, d e n tre to d as as d ivindades do p a n te ã o do D ahom é, a m ais in te lig e n te e a
,n. " •«'oiinlnnte; cap a z de a tir a r a s divindades u m a c o n tra o u tra , tam bém é qualificado p a ra
orgiinlKMi um acordo e n tre a s que se d esen ten d eram . Que ta l p ersonagem re p re s e n te um p a p e l
pr« l"-i"l. i Mi,),, nn c u ltu ra d a oralidade, que a c u ltu ra F o n c o n stitu i, n a d a h á a su rp reen d er-n o s.
•Sun runçfi.i lin g ü ista revela, eloqüentem ente, o lu g a r d a lin g uagem e, sobretudo, d a p a la v ra
im H \llU uçfp i ,|u oralid ad e em g eral. Se Legbá, o m a is p o p u la r dos deuses e o m a is p ró x im o do
Mobretudo lin g ü ista , é p o rq u e a p a la v ra é decisiva no co n ju n to dessa c u ltu ra .
Niiiu.t 1'hImvi m, f) sem ra z ão que se con fu n d e Legbá com o Diabo. L eg b á não pode se r diabólico,
7i i em Que a p riv a ç ã o ra d ic a l e a in s a tisfa ç ã o que d aí re s u lta são id e n tific á v e is ao
iliMiiniM ■> it verdade quo to d a m u d a n ç a sem te rm o e sa íd a é e sp re ita d a pelo m al, m a s não se
" l ">" N a c o n tin u a çã o dessa an álise, que re s u lta d as c rític a s s u ste n ta d a s sobre os
' • IflolAl, in m g ln ário ou diabólico das religiões a fric a n a s ? P a re c e que elas e stão longe
,, ", " 1' •"« mx religiões, ou, pelo m enos, se elas a s atin g em , pelas m esm as razões, as dem ais
rellMm**

108
tação, Abada foi curado de seu mal com o auxílio de uma folha que
lhe deu Zomadone; recebeu um assogwé (maracá) feito de uma cabaça,
com o qual podia chamar os Tohossou e recebeu indicações para trans­
m itir a Tegressou a maneira por que o culto aos Tohossou devia ser
restabelecido. O rei se apressou a fazer tudo o que lhe era pedido;
fez construir os templos e para lá foram os Tohossou levados em
jarras. Abada agitou o seu Assogwé e Zomadone se manifestou sobre
a sua cabeça; e ele se tornou o primeiro sacerdote de Zomadone.
Uma vez terminadas as cerimônias, os Tohossou voltaram para o seu
pântano. Zomadone os convidou, polidamente, a entrar primeiro, mas
os outros, não menos corteses, lhe responderam: «Não, tu és o rei;
entra primeiro»; e acrescentaram sentenciosamente: «Se a cabeça está
lá, o joelho não pode pegar o chapéu». Zomadone entrou, primeiro,
seguido de Kpelou, de Adonou e dos pigmeus». E a paz reina, nova­
mente, no Daomé.
Por esse retrato e façanhas de Zomadone se conclui a importân­
cia dos seus atributos, dos poderes que lhe foram outorgados, num
nível altíssimo e remotíssimo, do Panteão dos Deuses africanos.
Continuando-se a caracterizar as personalidades dos diversos Vo-
duns acima relacionados, temos Zepozina ou Zapazin, que é mãe de
Daco; esta, com Nanin, são as mais velhas da família; Dakodonu foi
o rei da Alada, conforme se lê em Marti, página 117.

D a g b a g r i-C h é n u c o n d u isit s e s g e n s v e r s le p la te a u d’A b o m ey oü p e tit à


p e tit le s n o u v e a u x v e n u s s e su b s titu è r e n t a u x a n c ie n s c h e fs , p a r d e s m oyen s
p a c ifiq u e s ou n on , le s A la d a b o n u n e d é d a ig n a n t n i la fo r c e n i la ru se.
G an h éh ésu su ccéd a à so n p ère D a g b a g ri-C h én u .
É ta n t p a r ti à A la d a p o u r c h erch er d es o b je c ts r itu e ls n é c e s s a ir e s à
1’in tr o n isa tio n , D ak od on u, u n f r è r e p lu s je u n e , s ’em p a ra du tr ô n e e t se
f i t n om m er r o i; lo rsq u e G an h éh ésu a p p r it la c h o se à son r e to u r , il p r é fé r a
s e r e tir e r c a r il n e v o u la it p a s lu t te r c o n tr e s o n c a d e t. D ak od on u r e sta
donc le m a itr e in d isc u té du d om ain q u e so n p ère s ’é ta it ta illé su r le p la te a u
d ’A b o m ey e t il en é te n d a it s a n s c e ss e le s lim ite s a u x d ép en s d es a n c ie n s
se ig n e u r s d e 1’en d r o it; 1’u n d es p lu s lé s é s é ta it u n c h e f D a n , f o r t p a c ific
p a r a ille u r s ; à la fin , d é jà la s d e s e x ig e n c e s de D ak od on u, il lu i d em an d e
s ’il n e p e n s a it p a s c o n str u ir e u n jo u r su r son p ro p re v e n tr e (to u t le
te r r ito ir e de D a n a y a n t é té o ccu p é, il n e r e s te r a it p a s u n e p la c e lib re
q u e son v e n t r e ) . D ak od on u p r it le s m o ts d e D a n a u p ied d e la l e t t r e . . .
D a h o m ey d e v r a it donc s ’é c r ir e “D a n h o m e”, ce q u i v e u t d ir e “v e n tr e de
D a n ”. L e n om de D ak od on u f a i t a llu sio n a u m e u r tr e q u e ce ro i com m it,
lo r sq u i’il é t a it en core à A la d a , en la p e r so n n e du te in tu r ie r D on u , d’o r ig in e
a y z o : Dakodonu, é hu, abe zen bligba, “D ak od on u tu e 1’h om m e, la ja r r e
r o u le ”. D o n u é ta it o ccu p é à m e ttr e en p la c e u n e g r a n d e ja r r e q u i se r v a it
de cu v e p ou r te in d r e d e 1’in d ig n o ; D ak od on u le tu a e t s ’a m u sa à f a ir e rou ler
la ja r r e d a n s la q u e lle il a v a it p la c é le c o r p s d e s a v ic t im e .37

37. E s ta ê a tra d u ç ã o liv re que acho o p o rtu n o to r n a r conhecida, d a d a a su a im p o rtâ n c ia , ta n to


h istó ric a , como m ito ló g ica e religiosa, do fra g m e n to acim a:
“ D ag b ag ri-C h en u conduziu seu povo p a r a o p la tô de A bom é onde, pouco a pouco, os recém -
chegados se s u b stitu íra m aos an tig o s chefes, p o r m eios p acífico s ou não, não desdenhando o»
A lad ah en u n em a fo rç a nem a a stú c ia . G anhéhésu sucedeu a seu p a i D agbagri-C henu. In d o a
A lad a â p ro c u ra de objetos ritu a is , necessário s à en tro n iz a çã o , D akodonu, um irm ã o m a is jovem ,
so ap oderou do tro n o e se fez n o m ear re i; q u an d o G anhéhésu soube do acontecido, ao re g re ssa r,

109
0 nome desse Vodun seria composto de Daco e Donu, nome este
último do tintureiro morto por ele.
Na lista dos reis do Daomé, que Marti nos dá em sua obra, aqui
posta propositadamente em evidência, a partir de Dagbagri-Chenu vem
Ganhéhésu, mas, em primeiro lugar, está Dakodonu.
Dakodonu foi um rei-deus, e a tradição desse nome me foi refe­
rida, pela prim eira vez, entre a gente humilde da Casa das Minas, o
que mostra, de um lado, o nome de Dakodonu ligado à dinastia dos
reis e, de outro, ao Panteão dos Voduns do antigo Reino do Daomé.
Em Sociologia, n’ 1, Boletim LIX, da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1946), o Prof. Bas-
tide publicou um estudo, dos mais completos, dada a área abrangida, e
o método de que se valeu é de incomparável interesse científico, sempre
patente em todas as demais obras que lhe devemos.38
A Macumba Paulista é uma interpretação pioneira dessa institui­
ção religiosa que nos foi proporcionada por um dos mais categorizados
professores, de nacionalidade estrangeira, participando do corpo do­
cente daquela instituição, formando brilhantes equipes de continuado-
res do ensino das disciplinas ali ministradas.
p re fe riu re tira r-s e p o rq u e n ã o q u e ria lu ta r c o n tra o seu irm ão. D akodonu ficou, p o rta n to ,
senh o r in d iscu tív el do pequeno dom ínio que seu p a i p r e p a r a r a no p la tô de A bom é e ele, sem
cessar, esten d ia-lh e os lim ites, a despeito dos an tig o s senhores do lu g a r. U m dos m ais lesados
e ra um chefe cham ado D an, m u ito p acífico, e n tã o ; p o r fim , já cansado das exigências de
D akodonu, ele lhe p e rg u n to u se não p re te n d ia c o n stru ir sobre o seu p ró p rio v e n tre (todo o
te rritó rio de D an tin h a sido ocupado, n ão lhe re s ta v a livre senão o seu v e n tr e ) . D akodonu
tom ou as p a la v ra s de D a n ao pé d a le tra e, quando m ais ta rd e o m atou, n a g u e rra , fez
c o n stru ir um palácio sobre o corpo e sq u a rte ja d o do infeliz re i. D aom é deveria escrever-se,
p o rta n to , “ D an hom e” , o que q u er dizer “ v e n tre de D a n ” . O nom e de D akodonu alude ao
assassín io que esse re i com eteu, q u ando a in d a e sta v a em A lada, n a pessoa do tin tu r e ir o Donu,
de origem ayzo; D akodonu é h u abe zen bligba (D akodonu m a ta o hom em , a j a r r a ro la ). Donu
e sta v a ocupado em p ô r n u m lu g a r c o n v en ien te u m a g ra n d e ja r r a que serv ia de cuba p a r a tin g ir
com a n il; D akodonu o m a to u e se d iv e rtia em fa z e r ro la r a ja r r a n a qual h a v ia colocado o
corpo de sua v ítim a ” .
38. O p ro fesso r R oger B astide, nascido em Lião, F r a n ç a , em 1898,faleceu, aos 76 anos, no d ia
10 de a b ril de 1974, em P a ris , sendo inum ado, a 17 do m esm o mês, em A nduze (G a rd ),
conform e p a rtic ip a ç ã o que m e fiz e ra m o p re sid en te e o e sc ritó rio d a V I Seção da École
P ra tiq u e des H a u te s Études, os d ire to res e colaboradores do C entre de P s y c h ia trie Sociale e o
C en tre C harles R ich et, de P a ris .
O G LO BO , do R io de J a n e iro , no tician d o o fa to , lem brou que R oger B astide foi pro fesso r
da U n iv ersid ad e de São Paulo, d a qual recebeu o títu lo de D outor H onoris Causa, e m ereceu,
pela ob jetiv id ad e e v a lo r excepcional d a su a obra, ta n to como pe la am izade que d edicara ao
B rasil, a O rdem do C ruzeiro do Sul.
E tnó lo g o , sociólogo, p s iq u ia tra , R o g er B astid e focalizou, an aliso u e definiu, com a agudeza
d a su a sensibilidade e a com plexidade de su a c u ltu ra , os m ais diversos e em polgantes problem as
d a h is tó ria , folclore, poesia e religião, p rin c ip a lm e n te n a s suas m a n ife staç õ e s afro -b ra sile iras.
E m 1973 veio ao B rasil, com a in cu m b ên cia de a tu a liz a r e a m p lia r a su a o b ra Brasil, Terra
de C on tra stes, m as, em c a rta , tam b ém m e com unicou o seu in teresse em e stu d a r aspectos
sociais e religiosos d a p a je la n ç a n a A m azônia, v ia ja n d o a té Belém, no E sta d o do P a rá .
D epois de su a v iagem ao n o rte do B rasil — R ecife e S alvador — dem orou alg u n s dias no Rio
de J a n e iro e em São Paulo.
A su a bag ag em c ie n tífic a e lite rá ria é de excepcional e in contestável valor, cabendo-lhe, p o r
isso, m erecid am en te — no to c a n te à sociologia — , o renom e de um dos m aio res sociólogos do
século atu al.
S ua h o n estid ad e c ie n tífic a , salien ta d a p o r todos os seus colegas, discípulos e adm iradores, o
levou a re a liz ar, em nosso p a ís, in ú m e ra s v ia g e n s (a fim de fu n d a m e n ta r as suas pesquisas
e conclusões), estendendo-as, p o r exem plo, ao C o n tin e n te A frica n o e à A m é ric a C entral, com
o especial p ro p ó sito de e stu d a r ali os aspectos m a is im p o rta n te s dos cultos que escravos,
atra v e ssan d o o A tlân tico , tro u x e ra m p a r a a s A m éricas. O resultado das suas pesquisas foi
divulgado n a o b ra L e s A m é riq u es N o ire s (L es c iv ilisatio n s a fric a in e s d a n s le nouveau m o n d e ).
Como o u tro c ie n tista fran c ê s, A lfred M étrau x , R o g er B astide se in teresso u pelo culto dos
V oduns, no_ H a iti, e dos O rix ás, n a B ahia, ten d o v ia ja d o a té São L u ís do M aran h ão , p a ra
conhecer M ãe A n d re sa M aria, no Q uêrêbetan d a R u a São P a n ta le ão .
D e n tre os discípulos, colaboradores e am igos que, no B rasil, se lig a ra m a R oger B astide, cabe
sa lie n ta r o p ro f. F lo re s ta n F e rn a n d e s, que com ele escreveu N eg ro s e B rancos em São Paulo
(C o m p an h ia E d ito ra N a c io n a l). N a B ib lio g ra fia que organizei p a ra e sta o b ra foi relacionado
q u a n to R o g er B astid e legou aos estudiosos dos p ro b lem as do N egro do B rasil.
No referido estudo, além de concepções e conclusões não menos
precisas, vem um quadro (o n9 1), mostrando a correspondência entre
deuses africanos e os santos católicos no Brasil, Cuba e Haiti.
As fontes que permitiram a Roger Bastide organizar o referido
quadro são as seguintes: M. J. Herskovits, «African Gods and Catholic
Saints», in Amer. Anthrop. 29-4-1957, p. 641-2; A rthur Ramos, Acul­
turação Negra no Brasil, p. 242-245.
A este autor, como a E. Ignace e Niria Rodrigues, recorreu ele,
no que se refere ao Brasil; a Fernando Ortiz, autor de Los negros
brujos; Huracán; La africanía de la música folklórica de Cuba; Los
instrumentos de la música afrocubana; Teatro de los negros en el
folklore de Cuba, no referente a seu país; W. B. Seabrook, autor de
La isla mágica y hechicería, bem como às obras de F. Wirkus e T.
Tancy, E. C. Pearson (as que ainda não conheço) para o Haiti.
Examinando o quadro em apreço, os estudiosos de africanologia
ensinam que: Oxalá tem como correspondente, na hagiologia católica,
o Senhor do Bonfim, na Bahia, Santana e Senhor do Bonfim, no Rio
de Janeiro; Batalá tem como correspondente Santa Bárbara, na Bahia;
Xangô é tido como S. Miguel Arcanjo, no Rio, e São Jerônimo, na
B ahia; Exu é o Diabo, no B rasil; Ogum é, ao mesmo tempo, São
Jerônimo e Santo Antônio, na Bahia, e São Jorge, no Rio; Oxum é,
ao mesmo tempo, igualmente, no Brasil (?) a Virgem Maria e N. S.
da Conceição, no Rio; Saponan é o Santo Sacramento, no Rio; Oxóssi
é São Jorge, na Bahia, e São Sebastião, no Rio; Omulu é São Bento;
Ibeji é representado, no Brasil por São Cosme e São Damião; Loco
é São Francisco, no Brasil, Ifá é o Santíssimo Sacramento, no Brasil
(? ); e Iansan é Santa Bárbara, no Brasil (?).
Além desse quadro, ao estudar os problemas do sincretismo reli­
gioso, Roger Bastide organizou um outro para a sua obra Les réligions
africaines au Brésil (Presses Universitaires de France, P aris), apre­
sentando, em notas, às páginas 370-371, os nomes dos autores a que
recorreu.
Os deuses africanos ali relacionados, que baixam na gente filiada
aos terreiros de Salvador, Recife, Maceió, São Luís, Manaus, Rio de
Janeiro, Porto Alegre, Cuba, Haiti, são os seguintes:

Oschalá
Eschou-Legbá
Schangô
Ogoun
Ochossi-Odo
Omalou-Obalouiayé
Ita-Oroumila
Ochoumarê
Iroco-Loco
Kalende
Nanabouroucou
Iansan-Ola
Mas porque, também, é intensíssima e incontrolável a vida erótica
dos ancestrais, deuses, reis e heróis, deste ou daquele povo, as mais
impressionantes dessas aberrações são o incesto e a bestialidade, isto
é, relações sexuais entre mãe e filho, pai e filha, irmão e irmã, o
acasalamento entre uma divindade e um ser humano (hierogam ia),
entre uma divindade e um animal m ítico.40
Numa extensa descrição da família de Quêviôçô (ou Hêviôçô como
Herskovits grafava) vimos Mawu e Lissá ligados incestuosamente no
Panteão do Céu, apresentando-se, a princípio como uma figura de andró­
gino e, logo depois, fundindo-se num casal de esposos divinos, com
filhos e filhas, divindades menores, decerto, daquele Panteão, resultan­
tes de uma união amoral (?).
Agbé e Naété, filhos de Sôbô (naturalmente de uma união inces­
tuosa), constituem um casal de esposos, pertencentes ao Panteão do Céu,
dali descendo, se apoderam do Mar e da Terra, passando a habitá-los.
Levados aos limites do Continente africano, como era necessário
ali, de reinos e impérios e, conseqüentemente, de dinastias, vamos ver
um deus-rei do Daomé ligado a um caso de bestialidade.
E é Montserrat Palau Marti quem o conta assim:

L ’h is to ir e m y th iq u e du D a h o m ey n o u s a p p ren d q u e le lo in ta in a n c ê tr e d es
r o is f u t u n e p a n th è r e -A g a s u ; il e s t v r a i q u e 1’a p p a r itio n cTAgasu se situ e
d a n s la r é g io n d e Sad o q u i n o u s e s t d éjà fa m iliè r e . V o ic i ce q u e d it la
tr a d itio n d a h o m éen n e: u n e f ilie du ro i de Sado é ta it m a r ié e d a n s le clan
d es A lig h o n o n v i W a sa n u , d on t le s d e sc e n d a n ts h a b ite n t en co re le v illa g e
de W a sa , p r è s d ’A b o m ey ; un jo u r q u ’e lle s e tr o u v a it en b ro u sse, u n e
p a n th è r e m â le n om m ée A g a su s u r v in t e t s ’u n it in tim e m e n t à la f ilie du
roi. N e u f m o is a p r è s, la je u n e fe m m e m it au m on d e u n e n fa n t m â le d on t
e lle n ’a v o u a p a s 1’o r ig in e . Q u elq u es a n n é e s p lu s ta r d , le f i l s de la p a n th è r e
a s p ir a a u tr ô n e d e S ad o, m a is sa p r é te n tio n f u t co n sid e r é e in a d m issib le
c a r il fo n d a it s e s d r o its en lig n e m a te m e lle , c o n tr a ir e m e n t à c e qui é ta it
la cou tu m e. P lu s ta r d , le s p e tits f i ls d’A g a s u r e p r ir e n t la lu tte , il s ’e n su iv it
d es b a ta ille s r a n g é e s; e t fin a le m e n t le ro i S ad o f u t tu é ; en con séq u en ce,
le s A g a s u v i, “le s e n fa n ts d’A g a s u ”, d u r e n t s ’e x ile r . P a r tis v e r s l ’e st, le s
A g a s u v i a r r iv è r e n t à A y zo n u to m é, “le p a y s d es A y z o ”, d on t A y d a é ta it la
p r in c ip a le d iv in ité . C’e s t a in s i que p a r la s u ite le c h e f de c e tte m ig r a tio n
r e ç u t le n om d’A ja h u tó , c o n tr a c tio n de la p h r a se A jo to e t h u , c e qui
s ig n ifie “le p ère d’A ja e s t p lu s g r a n d q u e A y d a ”. II e x is te d’a u tr e s v e r sio n s
du m y th e de la re n c o n tr e de la f ilie du ro i de Sado a vec la p a n th è r e ;
to u te s co in c id e n t d a n s 1’e s s e n tie l: l ’a n c ê tr e d e A g a s u v i e s t u n e p a n th ère
v e n u e on n e s a it d ’oü, m a is d isp a r u de la m êm e fa ç o n . 41

40. P a r a u m a busca ilu s tra tiv a dessas ab erraçõ es, recom endo a o b ra (preciosidade b ib lio g ráfica ) de
R. P . S in is tr a r i d ’A m eno, De eodom ia tra cta tu s, B ibliothèque des C urieux, 1833, 1879,
41. T rad u zo o tre c h o acim a:
“ A h is tó ria m ític a do D aom é nos e n sin a q u e o rem oto a n c e s tra l dos re is foi um a p a n te ra ,
A g asu : é verd ad e que a a p a riç ã o de A g asu se s itu a n a re g iã o de Sado que já nos é fa m ilia r.
E is o que diz a tra d iç ã o d ao m ean a: u m a filh a do rei de Sado e ra casa d a no clã dos A lighonouvi
W asan u , cujos descendentes h a b ita m a in d a a aldeia de W asa, p e rto de A bom é: um d ia que ela
se ach av a no m ato , a p a n te r a m acho, c h am ad a A g asu, su rg iu e se u n iu in tim a m e n te à filh a
do rei. N ove m eses depois, a jovem deu à luz um m enino c u ja origem ela não explicou.
A lg u n s anos m a is ta rd e , o filho da p a n te ra a sp iro u ao tro n o de Sado, m as su a p re te n sã o foi
co n sid erad a inadm issível p o rq u e ele fu n d a ra os seus direitos n a lin h a m a te rn a , c o n tra ria m e n te
ao que e ra de costum e. M ais ta rd e os filhinhos de A g asu re to m a ra m a lu ta , b a ta lh a s se
sucederam e, fin alm en te, o rei de Sado foi m orto. E m conseqüência os A gasuvi, "os filhos de

114
Segundo Marti, nos mitos recolhidos junto aos inimigos da família
real de Abomey, «a pantera não aparece mais e não resta senão o
tema constituído por uma criança que se considerará rei malgrado sua
origem desconhecida e estranha».
Mas adiantou o autor citado: « . . . ao contato da cultura ocidental,
o mito de Agasu se moralizou e cristianizou: Agasu não é senão o
filho espiritual da pantera, a esposa do rei de Sado o descobre como
um pequeno Jesus num berço e o adota».
Tais aberrações aparecem, por exemplo, coincidentemente, na mi­
tologia e na história dos povos do império incaico, tanto entre as di­
vindades menores do Panteão do Deus Sol como entre os fiéis que os
cultuavam, visto que ali não eram menos intensas que as das divinda­
des da África as manifestações, desordenadas e requintadíssimas, do
erotismo.
Harold Osborn — em sua obra intitulada Indians of the Andes
(Aymaras and Quechuas), Harvard University Press Cambridge,
Massachusetts, 1932, baseado nos comentários de Garcilaso, apresenta
duas versões, recolhidas por este, da lenda dos filhos do Deus Sol,
chamados Manco Capac e Coya Mama Ocllo Huaco.
Irmãos, esses personagens míticos, descendo das alturas, tiveram
a incumbência de fundar Cuzco e fazer seus habitantes felizes,
ensinando-lhes tudo quanto para isso fosse necessário.
Transcrevo o texto que Harold Osborn dedicou a essas versões:

T o g e th e r th e y fo u n d ed th e c ity . O ur In c a ta u g h t th e m a le In d ia n s th e
o ff ic e p e r ta in in g to th e m a le, a s to b reak an d c u ltiv e th e so il, to d isse m in a te
th e crop s, se e d s, an d v e g e ta b le s, w h ich h e sh ow ed th em good to e a t, fo r w h ic h
he ta u g h t th e m to m ak e p lo u g h s and o th e r n e c e ss a r y to o ls and in str u c te d
th em th e m a n n e r o f m a k in g ir r ig a tio n c a n a is fro m th e s tr e a m s w h ic h flo w
th r o u g h th is v a lle y o f C uzco, even sh o w in g th em h o w th e fo o tw e a r w e u se.
F o r h er p a r t th e Q ueen s e t th e w om en to w o rk on fe m in in e ta s k s, sp in n in g
and w e a v in g co tto n a n d w ool, m a k in g g a r m e n ts fo r th e m se lv e s , th e ir h u sb an d
and ch ild r e n ; an d sh e ta u g h t th em h ow to m a n a g e th e o th e r d om estic
d u ties. In sh o r t, n o th in g w h ic h b elo n g s to th e lif e o f m en did ou r c h ie fs
fa il to te a c h th e ir f i r s t su b je c ts, th e In ca K in g in s tr u c tin g th e m en and
the C oya Q ueen in s tr u c tin g th e w o m e n . . . 42

A g asu ” , tiv e ra m de exilar-se. P a rtin d o p a r a E ste c h eg a ra m a A izonutom é, "o p a ís de A izo” ,


do qual A yda e ra a p rin c ip a l divindade.
1*1 assim que, pelo tem p o a d en tro , o chefe dessa m ig ra ç ã o recebeu o nom e de A ja h u tó , co n tra ç ão
do A ja to e h u A y d a , que sig n ific a : o p a i dos A ja é m a io r que A yda.
E x istem o u tra s versões do m ito do en co n tro d a filh a do re i de Sado com a p a n te ra ; todas
coincidem no essencial: o a n c e s tra l de A g asu v i é u m a p a n te ra , v in d a n ã o se sabe donde, e
d esap arecid a d a m esm a m a n e ira ” .
42. T rad u zo o trech o acim a:
“ Ambos fu n d a ra m a cidade. N osso In c a en sin a v a aos ín d io s os ofícios p ró p rio s do hom em ,
como a rro te a r e c u ltiv a r o solo, sem ear cereais e legum es, que p a re ciam se r bons p a r a com er,
ensinando-os, p o r isso, a fa z e r a rad o s e o u tro s u ten sílio s necessários, e os in s tru iu sobre a
m a n e ira de a b rir c a n a is de irrig a ç ã o , a p ro v e ita n d o os rio s que correm a tra v é s do vale^ de
Cuzco, e m o stran d o -lh es mesm o como fa z e r os calçados que usam os. De sua p a rte a _ ra in h a
en sin a v a a s m ulheres a ocu p arem -se em ativ id ad es fem in in as, fian d o e tecendo o algodão e a
lá, fazendo tra je s p a r a si m esm as, p a r a os m arid o s e filhos; e ela lhes ensinou como re a liz a r
o u tra s o b rigações dom ésticas. R esum indo: n a d a que p e rte n c e à v id a do hom em deixou nosso
chcfo de e n s in a r a seus súditos, o R ei In c a in stru in d o os hom ens e a R a in h a Coya in stru in d o
iwi m u lh e r e s ..."

116
Mas, além dessas atividades dos Filhos do Sol, da dinastia dos
Incas, que construíram um império rico e famoso, não foi menor o seu
concurso para o povoamento dos seus domínios, devendo-se a Garcilaso,
em relação ao Deus Sol e sua descendência, este esclarecimento:

H o w m a n y y e a r s a g o th e S u n O ur F a th e r s e n t fo r th h is f i r s t c h ild ren
I cou ld n o t te ll y o u e x a c tly , fo r th e y a r e so m a n y th a t m em ory h a s been
u n a b le to keep th e cou n t. W e b e lie v e th a t it w a s m ore th a n fo u r h u n d red . 43

Com essa atividade sexual não ficaram atrás, evidentemente, os


reis-deuses da África, formando as suas dinastias. E os seus súditos
os imitavam, tanto nos domínios de Manco Capac e Mama Oclo Huaco
como nos domínios de Mawu-Lissá, Sôbô e Shangô.
A importância de duas divindades, semelhantes à importância mí­
tica e religiosa de Gu e Legbá, donos de pênis disformes, denuncia a
possibilidade de orgias, não só dos deuses, nos seus respectivos pan­
teões, mas, também, a revelação de procissões fálicas, movimentadas
pelos seus cultuadores. E isso quer no velho império incaico, quer
no antigo Reino do Daomé.
A cerâmica deixada pelas oleiras (pois eram as mulheres que,
no império incaico, se dedicavam a esse artesanato), cerâmica repre­
sentativa das culturas Mochica-Somu, por exemplo, se caracterizava
por preciosas peças, de uso doméstico e litúrgico, com motivos tomados
às atividades sexuais, salientadas as aberrações, até mesmo a pederas-
tia, a felação e o cunilingüismo etc., etc.
No Museu Rafael Larco, de Lima, na República do Peru, pude
examinar numerosas e impressionantes peças da opulenta coleção dessa
cerâmica. E autores, como Victor W. Von Hagen, em sua obra The
Desert Kingdom of Peru (Ed. Weidenfeld and Nicolson, Londres 1965),
e Alfred Métraux, em sua obra The History of the Incas (Pantheon
Books, A Division of Random House, Inc., Nova Iorque 1969), com
seus textos e ilustrações, fundamentam o que aqui estou afirmando.
E na África os museus de Ifá e Bénin, especialmente, exibem
uma cerâmica similar, não menos estranha e preciosa, tal o número
de amuletos e estatuetas de terracota, reprodução de divindades, seres
humanos e animais. Ao lado dessa cerâmica, uma arte mais elevada,
para a qual foram utilizados a madeira e o bronze, é revelada por incon­
táveis peças, com idênticos motivos eróticos, já exibidos, em grande
parte, no Rio de Janeiro, graças às atividades das embaixadas do
Senegal e da Nigéria.
Para fundamentar, mais ainda, o que afirmei acima, também aí
estão Leo Frobenius, com o texto do seu Volksdichtungen aus
Oherguinea-Fabeleien von Drei Võlkern (Herausgegeben von Leo
43. T rad u zo :
“ Como nosso P a i, o Sol, h á m u ito s a n o s passados, g e ro u seus p rim e iro s filhos, eu não e sta re i
em condições de vos d izer, e x atam e n te , p o rq u e fo ra m ta n to s que a m e m ó ria s e ria in c a p az de
g u a rd a r o núm ero. A cred itam o s que seja m m ais de q u a tro c en ten a s” .

11G
Frobenius. Verlegt bei Eugen Diederich, Jena 1924) e Boris de
Rachewiltz, com o texto e as ilustrações do Black Eros — The Sexual
Customs of África from Prehistoric Time to the Present Day (George
Allen & Unvvin Ltd., Londres 1964).

VII
Pesquisando esses temas e procurando interpretar a opulência de
símbolos, que resultam da mitologia, história, religião e folclore dos
povos incaicos e africanos, logo me veio à memória que (entre os
gregos e os romanos) os deuses, reis e heróis de cultura também ti­
veram origem hierogâmica, hermafrodítica e bestial, deliciando-se com
aberrações, tais como Mawu e Lissá, Manco Cepac e Mama Coya,
Agasu e a filha do Rei de Sado.
Como não vir à memória, por exemplo, a união incestuosa de
fidipo e Jocasta, ambos, como o próprio Laio, eleitos pelo Destino trá ­
gico que a Esfinge anunciara e Sófocles imortalizaria no teatro grego?
De outro lado, como não lembrar que Júpiter, para possuir Io,
ludibriando Jano, metamorfosearia em novilha a mulher requestada? 44
Irresistivelmente, como pesquisador, também fui levado a indagar
se acaso os povos primitivos, na Grécia ou no Daomé, não encontra­
riam nas uniões incestuosas dos deuses, dos ancestrais e dos heróis de
cultura, fundadores de impérios e de reinos, de religiões e de artes,
uma justificativa para os imitar, desrespeitando o chamado tabu do
incesto, tão diversamente conceituado pelos antropólogos e teólogos,
antigos e modernos.
Mas, mesmo assim, um exame do comportamento ético dos deuses
e reis-deuses, Voduns e Orixás, dos povos africanos, tanto quanto o
comportamento das divindades gregas e romanas, leva o pesquisador
n pasmar, senão maravilhar-se, ante a estrutura, a finalidade, a be­
leza das religiões e das práticas mágicas, a riqueza da simbologia, a
variedade e fascinação da liturgia, a policromia dos trajes e omatos,
a harmonia dos cânticos, a forma e a variedade dos instrumentos sa­
grados, a originalidade da coreografia, de tudo quanto foi inspirado
pelo mito, e pela fé, enfim.
E quem não será levado, assim, a admitir a necessidade de um
estudo mais amplo, mais sistemático, das sobrevivências míticas e his­
tóricas dos povos africanos que, trazidos a certas áreas do nosso país
- - como Minas, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará —, concorreram
pura a nossa formação cultural?
Back to the Greeks!
li. J e a n P ie rre Y e rn a n t, co n sid eran d o o m ito e o p en sam en to dos gregos, n u m a s érie de estudos
do psicologia h is tó ric a , lem b ra u m a ex p ressão im p e ra tiv a de Z. B arb u (a u to r d a o b ra Problema
of U iatorical Paychology, L o n d res 1060).

117 /
Idêntico apelo — voltemo-nos para os gregos — entendo que de­
vemos formular, para melhor compreensão da mitologia, da história,
social e política, da história religiosa, da história da arte e do pensa­
mento, que os filhos da África Eterna nos trouxeram:
Voltemo-nos para a África!
Acaso teria perdido toda a sua substância de entusiasmo e de cré­
dito aquele aforismo de Plínio, o Velho:
E x África aliquid novi?

VIII
Além dessas uniões incestuosas, dessas práticas de bestialidade,
registradas na mitologia e na história dos deuses, reis e heróis afri­
canos (como idênticos personagens humanos ou divinos, tais os cul­
tuados pelos gregos e os romanos) também eram freqüentes as incom-
preensões, os desentendimentos, as competições pela posse de situações
e atributos, de mando e domínio social e político.
E isso, na Casa das Minas, ganhou a designação de mistério, não
podendo ser referido nem descrito a íntimos e muito menos a estra­
nhos, como existem outros mistérios e dogmas na religião católica.
E, além do conhecimento de inquietantes mistérios e de leis aterro-
rizantes, que, se nem todos os fiéis ao culto conhecem e temem, muito
raro é o número dos que não têm notícias das terríveis conseqüências
resultantes do seu desrespeito e violação.
Tais conseqüências podem abater-se sobre grupos (uma família ou
um casal) ou simplesmente sobre um indivíduo; e elas se revestem, já
de surpreendente dramaticidade, já de hilariante grotesco, ganhando
extensão incomensurável, ora sob a forma de um brutal acidente, com
deformação física, ora pela aplicação de uma série de bolos, à palma­
tória, de que se incumbe o próprio Vodun do sacrílego violador.
E não é incomum que, muitas vezes, o violador se atire ao chão,
batendo a cabeça contra ele ou esmurrando-o violentamente, até que lhe
sangrem as mãos.
Desse modo, mais que a Tradição, conseqüentemente, são esses mis­
térios e essas leis que fundamentam e dão resistência ao culto dos
Voduns das Casas das Minas e de Nagô.
Fazendo parte de uma cidade, tal a de São Luís, onde a maledi­
cência é — como numa Florença renascentista — amplamente culti­
vada, alguns indivíduos, assistindo aos atos litúrgicos realizados nas
referidas Casas, talvez por incapacidade de interpretação ou indissi-
mulável espírito de rivalidade, lhes atribuíam práticas idênticas às que
são comumente observadas noutros centros de religiosidade.
Mas o fato é que, na principal daquelas casas, a sua direção pri­
mava (e isso se registrou até a morte de Andresa Maria) pela obser­
vação rigorosa daquelas leis, pois quem a exercia era uma feita, isto é,
1 1K
uma iniciada, numa camarinha (e em lugares solitários) apropriada
e por outras feitas, com absoluto conhecimento daqueles mistérios, leis
e ritual, leis, principalmente — sempre lhes ouvi afirm ar —, de um
código não escrito, mas conservadas na memória e no mais íntimo do
coração.
A figura de alta elevação moral, de impressionante vigor e inco-
mum expressividade, de Mãe Andresa Maria, correspondia ao modelo
da Mulher africana, ainda hoje encontrado na África Negra, em terra
do Senegal, Nigéria, Gana, Gongo, Guiné, Angola e Moçambique.

IX
Nos primeiros dias de vida desses centros tradicionais da religião
dos Voduns, contaram-me, homens viam baixar-lhes sobre a cabeça aque­
le a quem haviam sido dados ou por eles escolhidos: e, então, parti­
cipavam das danças e dos cânticos, possuídos e arrebatados pelas forças,
ainda não de todo definidas, da possessão mística ou do chamado transe
místico.
Na atualidade, segundo Pierre Verger o documentou em duas das
.suas obras, aqui citadas, os bailarinos de Quêviôçô ou Hêviôçô brandem
no ar de Abomey, sob o céu africano, o machado simbólico, e vibram
campainhas, atributos desse Vodun, na alucinante movimentação da co­
reografia ritualística com que o festejam e o reverenciam.
É admissível, portanto, que, na Casa das Minas, um bailarino incor­
porado também lançasse às alturas, com entonação viril, os cânticos
votivos e propiciatórios que, em nossos dias, somente os gonjai, novi-
<lios e vodunce conhecem e elevam, primeiro num solo e, depois, num
coro uníssono, aos imperativos apelos dos instrumentos sagrados: os
Imnbores, ogãs e gôs.
Pode-se admitir, igualmente, que, como mestre de cerimônia, filho
ilii casa, ou melhor, filho de Vodun, aparecesse à frente de especial
solenidade, no abate de aves e caprinos, no interior do pégi, mas
nunca nos lugares de reclusão das mulheres que deveriam ou estavam
;Hndo feitas, isto é, sendo iniciadas plenamente nos mistérios e leis,
;iprendendo cânticos, práticas do preparo de comidas e etiquetas tra ­
dicionais no acolher íntimos e estranhos, que compareciam às festas
umulinente ali celebradas.
Por ocasião da matança de animais propiciatórios, quer fosse ela
realizada fora ou quer no pégi, o sacrificador seria, obrigatoriamente,
um iniciado, um runtó ou tocador de tambor, instrumento que, como
veremos mais adiante, não só é dedicado a um Vodun mas possui indi­
vidualidade sagrada.
Mm Salvador, no Bogum de Mãe Valentina, por ocasião da saída
d ia iaôs e outras figuras — saída que se realizava, festivamente, nos
últimos dias de dezembro de 1969 — vi surgir entre as iaôs, já em

119
/
estado de transe, um rapaz de cor preta, que dançou e cantou, mas
não foi levado ao pégi como são levadas todas as mulheres naquele
estado.
Passaram-lhe uma toalha em redor da cintura, como o fazem com
todas as mulheres em transe. Retiraram-no dali. E foi tudo.
No Bogum de Mãe Valentina que é, segundo me afirmou, mina-
jeje-mali (de Mali, desmembrado do território do Daomé), verifiquei
que existem grandes diferenças entre a sua estrutura e a do Quêrêbetan
da Casa das Minas, de Mãe Andresa Maria.

X
Estendi, páginas atrás, comentários às divindades Voduns, prin­
cipalmente no campo da mitologia e da história, sendo natural que,
ora aqui, ora ali, me referisse ao fenômeno denominado transe ou
possessão.
Há muito, entretanto, tenho evitado definir esse estado, essa disso­
ciação da consciência, na expressão do inolvidável amigo prof. Dr. Bela
Szekeli, ou essa criação da alma coletiva, no conceito de Durkheim, refu­
tado pelo prof. Roger Bastide.
E, já agora, quando sou interpelado, a propósito, por algum inte­
ressado no assunto, de certo nível intelectual, logo lhe indico a obra do
prof. Roger Bastide, intitulada Le rêve, la transe et la folie (Nouvelle
Bibliothèque Scientifique dirigée par Fernand Braudel), Flammarion,
Paris 1972.
Porque, desde o seu primeiro livro, Les problèmes de la vie
mystique, em 1931, esse professor ilustre já se preocupava com o re­
ferido assunto, e, no momento — conhecedor dos aspectos sociais e
religiosos da nossa cultura —, ninguém lhe opôs definições e análises
mais dignas de aceitação ou de recusa.
Na segunda parte de Le rêve etc. (p. 56), volta-se para os estudos
realizados sobre as «crises» por médicos e psiquiatras, que os integra­
ram em seus sistemas conceituais, numa nosologia emprestada à Euro­
pa e que não se aperfeiçoaram senão através de descobertas feitas
sempre no domínio das moléstias mentais e, na Europa, por exemplo,
com o surgimento da psicanálise.
E Roger Bastide assim se manifesta:

O ra, ao c o n tr á r io , eu e n c o n tr a v a n o can d om b lé, em lu g a r d e u m p e r tu r ­


b ad or d esen ca d ea m en to d e g e s to s , u m a litu r g ia co rp o ra l a d m ir a v e lm e n te d i­
r ig id a — em v e z d a v io lê n c ia , u m a v e r d a d e ir a p a r tic ip a ç ã o d a s r e la ç õ e s
in te r in d iv id u a is c u jo s m ito s a n c e s tr a is se r ia m o s r e g e n te s de o r q u e str a s,
con tro la n d o ca d a in str u m e n to p a r a o s fa z e r p a r tic ip a r to d o s d e u m m esm o
c o n ju n to m u sic a l, d iscip lin a d o , o r ie n ta d o — em v e z de u m a a n a r q u ia m o­
to r a , u m a lin g u a g e m sim b ó lica , q u e p e r m itia a c o m u n ica çã o e, p or c o n se ­
q ü ê n c ia , a so lid a ried a d e in te r m e n ta l de to d o s o s f i é is — em v e z d e um

120
tecid o in c o e r e n te d e c r e n ç a s e d e r ito s, u m a v e r d a d e ir a te o lo g ia , sem d ú ­
v id a , d ife r e n te da n o ssa , m a s tam b ém v á lid a in te le c tu a lm e n te . 0 te r r e ir o
a te s ta v a a ss im e s ta so c io lo g ia do tr a n s e , q u e eu e n tr e v ir a p o ss ív e l, de
in íc io , a tr a v é s de sim p le s le itu r a s d e a n tro p ó lo g o s.

Não havendo estado na África — meu sonho constante, mas, até


hoje, não objetivado — como Roger Bastide o conseguiu, tenho de
confessar que muitas das suas observações e conclusões são idênticas
àquelas por mim obtidas, numa área geográfica e num resumo de agru­
pamento humano, com raízes étnicas e éticas indestrutivelmente ligadas
à África Eterna.
Estou perfeitamente de acordo com os termos que constituem o
tópico seguinte:

A a v e n tu r a com eçad a n o B r a s il d e v ia c o n tin u a r n a Á fr ic a on d e eu iria


b u sca r, p elo tem p o a d ia n te , a o r ig e m d os c u lto s de p o ss e ssã o e stu d a d o s
no B r a sil, n e s s a en c r u z ilh a d a de p ovos q u e c o n stitu e m o D a o m é m erid io ­
n a l e a p r o v ín c ia o c id e n ta l d a N ig é r ia : F o n , H o lli, G oun, Y o ru b a. A di­
m en sã o c u ltu r a l do tr a n s e , a li, s e m a n ife s ta v a a in d a m a is n itid a m en te,
ta lv e z , n a n a tu r e z a ou in te n sid a d e p síq u ica do tr a n s e , v a r ia n d o , segu n d o
a s e tn ia s, a d im en sã o so cio ló g ica , a litú r g ic a , o a rreb a ta m en to , ta n to m a is
q u e s e p a s s a v a d e u m a te r r a d e d iá sp o r a à te r r a d a fo n te b orb u lh an te.
E is so a p on to q u e, p or exem p lo, n a s c e r im ô n ia s de X a n g ô , a p o sse ssã o é
tã o p ouco e sp e ta c u la r (u m le v e fr ê m ito dos om bros, d a s p á lp e b r a s q u e se
serra m , e tc .) q u e é n e c e ssá r io e s ta r bem p reven id o p a r a s e p erceb er que
um d eu s a ca b a de d escer so b re o seu c a v a lo , u m c a v a lo q u e, no fu tu r o ,
e le v a i m o n ta r e d ir ig ir , de acord o com um r itu a l fix o , d u r a n te tod a u m a
se m a n a . N ã o o b sta n te , a p ó s h a v e r r ep elid o a in te r p r e ta ç ã o d os p siq u ia tr a s
com o in te r p r e ta ç ã o u n ila te r a l, er a -m e n e c e ss á r io in c o r p o r a r o q u e p od eria
te r de v á lid o n a q u ilo q u e eu c h a m a v a d e so c io lo g ia do tr a n s e . P o rq u e n a
Á fr ic a a p o sse ssã o é, sen ã o sem p re, p elo m en o s fr e q ü e n te m e n te , lig a d a à
te r a p ê u tic a , não so m en te da lo u cu ra , m a s de to d a s a s m o lé stia s de o rig em
ou de n a tu r e z a p sic o sso m á tic a . E r a n e c e ssá r io , p o rta n to , la n ç a r a s b a se s
de um d iscu rso u n ific a d o on d e o p sico ló g ico e o p siq u iá tr ic o n ã o se ja m
m a is id e n tific a d o s, m a s, ao co n trá rio , u m a vez b em se p a r a d o s, com p lem en -
ta r e s , jo g a n d o um e o u tro , um so b re o ou tro ou u m co n tra o o u tro, segu n d o
todo u m co n ju n to de r e g r a s. N u m a p a la v r a , c h e g a r a o m om en to d e elab orar
u m a g r a m á tic a do tr a n se .

XI
Sem uma formação científica de molde a contrapor minha crítica
u certas afirmativas — com a estrutura mesmo, de verdadeiras teorias,
do prof. Roger Bastide — entendi, modestamente, que me cabia incluir
nestas notas, apenas, algumas observações por mim memorizadas, depois
de assistir a desdobramentos desse fenômeno, tanto na Casa das Minas
como noutros centros de religiosidade afro-brasileira, no Rio de Janeiro,
Bahia, Alagoas, Pernambuco, Maranhão, Pará, Amazonas, Rondônia
e Acre.

121
E, cabe-me confessar, francamente, assim procedi em casa de minha
tia Ida e em minha própria casa, desde os meus primeiros anos de
idade, ali e aqui, posteriormente, já na adolescência, já na oitava dé­
cada de minha existência.
Acompanhando o início, evolução e término do fenômeno, ora posto
em pauta nesta nota, deflagrado numa ou mais criaturas, delas jamais
consegui que me descrevessem tudo quanto haviam experimentado, ao
modificar-se-lh.es a personalidade sob a envolvente força da possessão,
do transe místico, da incorporação.
Numa das páginas da 1* edição desta obra A Casa das Minas, des­
crevi a figura de minha Mãe Felicidade Nunes Pereira, que, entrada
em transe, ganhava uma particular fisionomia e se apresentava como
a do próprio Póli-Boji, o Vodun que ela carregava nela baixava e se
incorporava; e tinha um comportamento — gestos, palavras, idéias —
inteiramente diversos de tudo aquilo que nela era de regular estabi­
lidade, de inconfundível personalismo.
E, nestas Notas, já me referi à minha tia Ida, cuja personalidade,
em estado de transe, correspondia, impressionadoramente, à fisionomia
e ao comportamento atribuídos a seu Vodun — Toi Avêrêquête, na sua
existência mítica ou real no Panteão a que pertence.
Mas observações posteriores desse estado noutras pessoas, como
vereis, não são menos dignas de apresentação aqui e de possível análise
por parte de outros pesquisadores desse fenômeno, quotidianamente re­
gistrados em terreiros, tendas e centros dos diversos cultos em ativi­
dade em nosso país.
Que se atente, pois, ao que vou referir aqui:
Uma feita, que fora submetida a certa intervenção cirúrgica, com­
parou o fenômeno aos primeiros efeitos da anestesia geral que lhe
tomara suavemente todo o corpo; e uma outra o comparou à violência
de um torvelinho que, numa beira de praia, a envolvera, quase a jo­
gando ao chão.
Há seis anos passados, encontrando-me em Porto Velho, Terrotório
Federal de Rondônia, certa noite fui visitar um terreiro, de origem
mina-jeje, para ali registrar (por intermédio de um músico profissio­
nal, colaboração de mãe-de-santo e de algumas filhas de Voduns) toques
de tambores, letras e melodias de cânticos litúrgicos, passos de danças
etc., etc.
Não era dia de festividade do calendário mina-jeje, mas pude levar
àquele «terreiro de Chica-Macaxeira», uma companheira de viagem,
interessada mais nos problemas sociais do que nos religiosos da área.
Sentei-me num banco corrido, do amplo barracão destinado às
danças, entre o músico e a mãe-de-santo, tendo a viajante ao lado desta.
Duas a três filhas de Voduns (ainda não em estado de transe, o
que, não obstante se tra ta r de uma simples reunião, poderia ocorrer)
puseram-se a cantar e a dançar, aos apelos dos tambores e dos gôs.
De quando em quando, os tocadores dos instrumentos sagrados e
as bailantes (como ali são chamadas, vulgarmente, as mulheres que
tomam parte nas danças e outras funções dos dias festivos) paravam
para que eu registrasse o texto dos cânticos ou doutrinas, ditas da
ayuasca — um alucinógeno, sobre cujas propriedades, mais adiante,
darei algumas informações sucintas — e o músico anotasse as melodias
e toque e a mãe-de-santo prestasse certos esclarecimentos que eram
de meu interesse.
Pouco a pouco os tocadores dos instrumentos sagrados foram to­
mados de viva excitação, vibrando-os com mais ardor; e as filhas-de-
santo, as bailantes, passaram a dançar com a mesma excitação e a
mesma compenetração.
Nenhuma daquelas bailantes, entretanto, havia atingido o estado
de transe. Mas, depois de uma pausa, quando os tambores voltaram
a ressoar e as mulheres a cantar e a dançar, surpreendentemente,
erguendo-se do meu lado, a viajante soltou em meio das filhas-de-santo,
e, desatando os longos cabelos, tendo os olhos semicerrados e os lábios
crispados, entrou a voltear vertiginosamente sobre o chão batido do
terreiro.
Não estava ali mais a cética viajante, porém uma criatura em
estado de transe, fenômeno patente na máscara, severa, quase espec­
tral, e nos movimentos iguais aos de qualquer noviche ou gonjai da
Casa das Minas ou da Casa de Nagô.
Ora, aquela criatura, de apreciável formação intelectual, ufanando-
se, momentos antes, de absoluta incredulidade, baseada numa filo­
sofia materialista, negara-se a aceitar a validade desses fenômenos
metapsíquicos.45
tr». N a d a h á a e s tr a n h a r a n te o c o m p o rta m e n to de c e rta s pessoas, m esm o de elevada intelectualidade,
com re la ç ão a fenôm enos m e tap síq u ico s que se e x te rio riz a m nos te rre iro s onde são cultuados
V oduns e O rix á s dos p a n te õ es afric a n o s.
E isso p o rq u e a té mesm o os c ie n tista s, em nosso p a ís como os de o u tra s á re a s g e ográficas, não
lhes a trib u e m v alo r algum , n egando validade ao p ro b lem a do tra n s e e d a realidade dos poderes
m ágicos.
D aí os conceitos que E rn e s to de M arino, em L e m onde m agique, p o r exem plo, foi b u sca r à
ob ra T h e P sy ch o m e n ta l C om plex o f th e T a n g u s, L o ndres, 1935 — que m e p a re ce u oportu n o
tra n s c re v e r aq u i — da a u to ria de S. M. Schirokogoroff, re la tiv a m e n te ao poder de tra n sm issã o
du p en sam en to :
"II y a lieu d’a b o rd e r le problèm e d a n s u n dessein p o s itif de recherche, ce qui n ’é ta it encore
possible il y a quelques années. Qu’il nous so it p e rm is de re m a rq u e r que le scepticism e dÜ á
1’ig n o ran ce e t a u p ré ju g é a em pêché la récolte e t la p u b lication des fa its . E n ré a lité , ju s q u ’à
ces d e rn iè re s années, quiconque a u r a it osé d iscu ter de ces questions ou pu b lier les fa its a u r a it
en couru la c ritiq u e des “ hom m es de Science” p o u r qui to u t cela r e n tr e d ans la " s u p e rs titio n ” ,
d an s le “ folklore” , dans le " d é fa u t de c ritiq u e ” e t choses semblables, c ep e n d a n t q u ’eux-m êm cs
Hont p ris o n n ie rs des th éo ries e x ista n te s e t des hypothèses acceptées com m e " v é rité s ” . E n effet,
un tel co m p o rtem en t de la p a r t des hom m es de Science e st to u t aussi eth n o c en triq u e que celui
des Toungouses, e t c o n tie n t a u ta n t de folklore que ce que les hom m es de Science d é signent
de ce nom ” .
Eis a tra d u ç ã o liv re do te x to acim a:
"Pode-se a b o rd a r o p ro b lem a d en tro de um p lan o positivo de pesquisa, o que n ã o e ra a in d a
possível h á a lg u n s a n o s passados. Que nos p e rm ita m a ss in a la r aqui que o ceticism o devido íi
ig n o râ n c ia e ao p reco n ceito im p e d ira m a coleta e a publicação dos fato s. N a realidade, a té
nos últim o s anos, quem q u e r que ousasse d isc u tir essas questões ou p u b lic a r os fa to s in c o rre ria
mi c rític a dos "h om en s de ciên cia” , p a r a os q u a is tudo isso se inclui n a “ su p e rstiç ã o ” , no
"folclore” , n a " f a lta de c rític a ” e coisas sem elhantes, n ã o o b stan te sejam eles m esm os prisio n eiro s
d a s te o ria s e x isten te s e d as h ip ó teses a ce ita s como "v erd ad es” . De fa to , ta l com portam ento,
du p a rte dos hom ens de ciência, é tão e tn o c ên trico como o dos T unguneses, e contém ta n to
folclore como o que os hom ens de ciên cia desig n am com esse nom e” .

123
/
No dia seguinte, ao interpelá-la, pedindo-lhe que me descrevesse
o que sentira naquele estado, respondeu-me que não poderia fazê-lo,
porque não tinha palavras apropriadas à legítima expressão desta ou
daquela emoção; ela fora totalmente dominada pelo transe místico.
Essa incapacidade para descrever o impacto do transe é verificada
tanto entre criaturas possuídas a prim eira vez, iniciadas ou não no
culto dos Voduns, como ao longo de toda a sua participação nas ati­
vidades religiosas e, mesmo à parte, em sítios e horas inconcebíveis.
E quase todas se apresentaram com o cabelo em desalinho, de
olhos desorbitados ou vesgos, de lábios retorcidos grotescamente, de pés
e mãos crispados à feição de garras, de membros abalados por suces­
sivos, brandos ou violentos espasmos, gritando ou assobiando, como um
animal enfurecido, ou como alguém chamando, à distância, pelo
companheiro.
Repetindo o que acima adiantei, confesso-me desautorizado a emi­
tir conclusões à base dos fatos acima descritos, mesmo não ignorando
a fragilidade de outras que foram divulgadas, dentro e fora do Brasil,
por viajantes e cientistas, médicos, psicólogos e psiquiatras, inclinando-
me, entretanto, para as que Roger Bastide opôs, por exemplo, a
Durkheim.
Na intimidade de descendentes de escravos, procedentes do Con­
tinente Africano, filiados à Casa das Minas e à de Nagô, sempre neles
verifiquei natural capacidade de elevar-se, além do animismo e do po-
liteísmo, à concepção de um Deus único.
Já se verificou, por exemplo, tanto através dos lances poéticos da
mitologia do Negro como da sua religião que, além das divindades
enumeradas em seus respectivos panteões, eles, há muito, teriam intuí­
do a existência de um Ser único que os teria criado e ao qual estariam
sujeitos.
E isso, embora Nina Rodrigues (estudando o animismo fetichista
dos Negros baianos) tenha visto na população por eles constituída, em
maioria, pelo monoteísmo cristão, e se referisse à «incapacidade psí­
quica das raças inferiores para as elevadas concepções do monoteísmo».
No entanto, senhor de «ânimo estritamente científico», precursor,
já no seu tempo, de várias teorias e técnicas, imprescindíveis à análise
psicológica, Nina Rodrigues foi encontrar, na Baixa do Sapateiro, em
Salvador, um açougue onde se lia esta inscrição: Ko si oba Kan afi
Olorum, cuja tradução é: Não há um rei como Deus.
Mais adiante, porém, referindo-se a Bowen, o cientista maranhen­
se faria realce à observação do missionário batista, relativamente à
doutrina idólatra de Ioruba da forma e dos costumes do governo civil,
contida, consoante sua tradução, neste tópico: «Antes, como só há um
rei na nação, só há um Deus no universo, Olorum ou Alrung; e assim
como para se aproximar do rei é indispensável a intervenção dos cor­
tesões, assim também o homem, para chegar a Deus, deve recorrer
à intervenção dos Orixás ou das divindades inferiores».
124
Mas o missionário J. T. Bowen, num tópico citado por Pierre
Verger, in Notes sur le culte des Orisa et Vodun se manifesta deste
modo:

T o u t le p eu p le (Y o r u b a ) c r o it en u n D ie u u n iv e r s e l, le c r é a te u r e t g a rd ien
de to u te ch ose, q u ’ils a p p e lle n t en g é n é r a l Olorun (O li orun) le p r o p r ié ta ir e
e t m a ítr e du cie i, e t q u elq u er fo is d’a u tr e s n o m s Olodumare, c e lu i q u e e s t
to u jo u r s d roit, Oga-Ogo, le g lo r ie u x qui e s t élévê, Olwa, se ig n e u r , etc. Ils
o n t la d o ctrin e d e 1’im m o r ta lité e t de reco m p en se e t p u n itio n s fu tu r e s,
m a is su r c e s p o in ts le u r s n o tio n s s o n t o b scu res. T o u s le s m o r ts so n t au
Orun Hadès, Oké-orum, le Hadès su p é r ie u r e s t la résid e n c e du ju s te e t le
Orun-akpadi, le Hadès c r e u se t, e s t le lie u d e p u n it io n .. . L a d octrin e
id o lâ tr e (e s te é, p r e c isa m e n te , o tr e c h o d e a u to r ia de B ow en , cita d o por
N in a R o d r ig u e s) q u i p r é v a u t d a n s le Y o ru b a , sem b le d ériv er , p a r a n a lo g ie ,
de la fo r m e e t d es co u tu m es du g o v e m e m e n t cité . II n ’y a q u ’u n roi
d a n s la n a tio n , il n ’y a q u ’u n D ie u d a n s 1’u n iv e r s. L e s so llic ite u r s n e
p e u v e n t ap ro ch er du roi q u e p a r l ’e n tr e m ise d e s e s se r v ite u r s, de se s
c o u r tisa n s e t de s e s n o b les; en co n séq u en ce, le so llic ite u r c h erch era de
s e c o n c ilie r p a r d e s p a r o le s a im a b le s e t p a r d es p r é s e n ts le co u r tisa n
d on t il ch erch e la p ro tectio n . D e m êm e a u c u n hom m e n e p e u t s ’a p p roch er
de D ie u , m a is to u t le p u is sa n t, d is e n t-ils, a in s titu é lu i-m ê m e d iv e r se s
s o r te s d 'Orisa, q u i s e r v e n t d e m é d ia te u r e t d ’in te r c e sse u r s e n tr e lu i e t
le s h om m es. O n n ’o ff r e a u c u n s a c r ific e à D ieu p a rce q u ’il n a p a s b esoin
de r ie n ; m a is le s O risa q u i r e ss e m b le n t b eau cou p a u x h om m es so n t
h e u r e u x de r e c e v o ir d es o ffr a n d e s de m ou ton , d es p ig e o n s e t d’a u tr e s
ch o ses. O n c h erch e donc à s e c o n c ilie r l ’O r isa a u m é d ia te u r , p ou r q u ’il p u is se
le s ren d re h e u r e u x , n on e n so n p r o p r e p ou voir, m a is p o u r le p ou voir
da D ie u . 46

Posteriormente ao missionário batista J. T. Bowen, surgiu o Re­


verendo Padre Plácido Tempels, que contrariando conceitos e teorias
que negavam a capacidade do Negro de transpor as barreiras do ani­
mismo, de elevar-se até o monoteísmo, aceitando a personalidade de
um Deus único, pôs diante dos meus olhos uma filosofia banto, uma
verdadeira, uma real filosofia, com princípios fundamentais como os
encontrados entre os gregos da antiga Hélade de Platão, de Sócrates
o de Aristóteles.
E portadores dessa filosofia e da religião dos Orixás e dos Voduns
foram os Negros escravos que os europeus introduziram nas Américas,
4(1. T rad u zo o te x to acim a:
"Todo o povo (Io ru b a ) c rê n u m D eus u n iv ersal, o c ria d o r, o g u a rd iã o de todas a s coisas, que
eles c h am am O lorum (O li o r u n ), o p ro p rie tá rio , o senhor do Céu, e, alg u m a s vezes, p o r
outro s nom es como O ludum are, aquele que se m a n té m sem pre direito, Ogo-O go, o glorioso,
que é educado, O luw a, o senhor, etc. E les tê m a d o u trin a d a im o rtalid ad e e d a recom pensa
e p u nições fu tu ra s , m as sobre esses p o n to s a s su as noções são obscuras. Todos os m ortos estão
no O ru n , H ad ès, O ké-orum ; o H ad ès su p e rio r é a re sid ên c ia do ju s to e o O ru n -a k p a d i, o
H adès crisol, é o lu g a r de p u n iç ã o ... A d o u trin a id ó la tra (e este é, p recisam en te, o trech o
de a u to ria de Bow en, c itad o p o r N in a R o d rig u e s), que p revalece no Io ru b a, p a re ce deriv ar,
pop a n alo g ia, d a fo rm a e dos costum es do go v ern o citado. N ão h á senão u m re i n a n a tu re z a ;
não h á senão um D eus n o U n iv erso . Os req u e re n te s não p odiam a p ro x im a r-se do re i senão
por in term éd io dos seus servos, dos seus cortesãos e dos seus n obres; em conseqüência, o
so lic itan te p ro c u ra rá co n ciliar-se p o r m eio de p a la v ra s am áveis e dádivas ao co rtesão de quem
busca p ro teção . D a m esm a m a n e ira n en h u m hom em pode a p ro x im a r-se de D eus; m as, todo-
poderoso, in s titu iu ele, dizem , d iv ersas m a n e ira s de O rixás, que servem de m ediadores e_ in te r-
cessores e n tre ele e os hom ens. N in g u ém o ferece um sac rifíc io a Deus, porq u e _ ele não tem
necessidade de n a d a ; m as os O rixás, que se assem elham m u ito aos hom ens, são felizes em
receber d ád iv as de c arn eiro , pom bos e o u tra s coisas. P ro cu ra-se conciliar o O rixá ao m ediador,
u fim de que ele po ssa to rn á-lo s felizes, n ão em seu p ró p r io poder, m as pelo p o d e r de D eus",

125
/
no Brnsil Colonial, com as suas atividades agrícolas e pastoris e, para­
lelamente, com o extrativismo dos pescados, dos minérios, drogas e
plantas típicas dos trópicos.
Na obra do Padre Plácido Tempels, La philosophie bantoue, tra ­
duzida do neerlandês por A. Rubens, exaltada por Aloune Diope e
editada por Lovaina para a Coleção Présence africaine, entre outras
conceituações atribuídas aos Bantos, se salienta a de que Deus é um
doador da Vida. A Vida é um dom gratuito. O doador não pode ter
obrigação com o donatário.
Tão importante é a obra do Padre Tempels, no esclarecer à men­
talidade européia a concepção que o Negro banto tem um Deus único
e a solidez dos fundamentos por ele utilizados para a defender, que,
recentemente, nela se basearia um outro sacerdote católico, Laénnec
Hurbon, de nacionalidade haitiana, para nos mostrar Deus no Vodun
haitiano (Dieu dans le vaudou haitien, Payot, Paris 1972).
A mim sempre parecera que, no meio de tantos Voduns da Casa
das Minas, numa exclamação, numa reverência, num gesto apenas, ali
estava a presença de um Deus único: D EU S!
Deus cristão ou Deus específico? Pergunta Laénnec Hurbon.
Daí a sua palavra a respeito:

S e se e sta b e le c e a g o r a o esq u em a do u n iv e r s o r e lig io s o do vod u n ism o,


p erceb e-se q u e D e u s a p a r e c e com o a p e d r a a n g u la r q u e su sté m todo o
siste m a dos e s p ír ito s e to d a s a s p r á tic a s v o d u n e sc a s. E le é o cria d o r d os
e s p ír ito s e d os s a n to s c a tó lic o s c o rresp o n d en tes, e pode se r d iferen ça d o do
D e u s do c a to lic ism o , n a m ed id a em q u e e s s e sem p re f o i a p r e se n ta d o n a s
p réd ica s, n o s c a te c ism o s, n o s c â n tic o s e p r e c e s com o C riad or do u n iv e r so ,
o C riad or dos a n jo s e dos sa n to s, p ro p o sto s com o s e u s g u a r d a s e p r o te ­
to r e s. E s s a co n cep ção de D e u s p e r m itiu ao v o d u n iz a n te p r a tic a r , a b so lu ­
ta m e n te tr a n q ü ilo , o cu lto d os Loa, m esm o s e o cle r o s e e m p e n h a sse por
to d o s o s m eios a fa z e r p a s s a r o s Loa por dem ôn ios. E s s a p a ss a g e m de um
m ito tra zid o p or v á r io s e tn ó lo g o s dá ju s ta m e n te c o n ta da e q u iv a lê n c ia e n tr e
o cu lto dos S a n to s e o c u lto dos Loa, n a m ed id a em que e s s e s são c r ia tu r a s
de D eu s.

E, depois (referindo-se a um mito narrado por E. C. Paul, na obra


Le Vaudou est-il une religion polythéiste ou monothéiste?, publicado
no Bulletin du Bureau d’Ethnologie, de Port-au-Prince, abril, 1961),
Laénnec adianta:

H á , c e r ta m e n te , n e ss e m ito um a r e sp o sta à a c u sa çã o q u e o cu lto d os Loa


co rresp o n d e ao cu lto de S a tã , m a s, ao m esm o tem p o, u m a lin h a de d em ar­
c a çã o e n tr e o s s a n to s e o s Loa é bem tr a ç a d a , con q u an to a p osição de
dom ín io do c a to lic ism o , com rela ç ã o a o s V od u n s, se e n co n tre fo r te m e n te
e x p r e ss a aq u i. T erem os o p o rtu n id a d e, um pouco m a is a d ia n te , de v o lta r
a e s s e a sp ecto do reen con tro do V od u n e do ca to licism o . R etem o s, e n tr e ­
ta n to , que a o s o lh o s do v o d u n iz a n te um m esm o D e u s su s te n ta tã o bem o
s e u u n iv e r so com o o do ca to licism o .

126
Refletindo sobre essa passagem, fui levado (estudioso que também
lenho sido da etnografia e da etnologia dos índios da Amazônia Bra­
sileira) a considerar que, missionando em terras de nosso país, os sa­
cerdotes católicos registraram que os seus catecúmenos lhes falavam
em Tupã (um Deus único), mas falavam em divindades menores, que
lhes estariam em redor, em Jurupari, que seria — nada mais, nada
menos — Satã, algo como o demônio, embora, na verdade, essa figura
da mitologia ameríndia não fosse mais que um herói de cultura, ou,
propriamente, um legislador!47
Fraternizados num martirológio comum, caracterizado pela sua
exploração física e sua conceituação de liberdade, tal qual se está
repetindo na sociedade moderna — como teriam os índios e os Negros
chegado a essa concepção de um Deus único?
Numa evolução natural do seu espírito, sem dúvida.
Platão, nas suas indagações filosóficas, divinizando, por exemplo,
u Memória, não chegou até Deus de outra maneira que o Negro, no
sou animismo e no seu politeísmo, sacralizando os astros, as árvores,
os animais, as montanhas, as fontes etc.?
Se Chronos (o Tempo) e Mnemosune (a Memória) foram sacra-
li/.ados pelos gregos, por que os Iorubas e os Daomeanos (Fon, Jeje,
Ketu), sofrendo a influência de povos de alta cultura, e eles, também,
tendo a capacidade de criar divindades, não reconheceram a presença
de um Deus único em meio de tantos Orixás e Voduns, de interme­
diários, cortesões e escravos de um panteão ou de uma corte celestial?
Ora, para que os filhos e filhas desses Orixás e Voduns obtenham
sua interferência junto ao Deus Supremo, forçoso é que entrem em
estado de transe, que se deixem incorporar ou possuir por eles,
iniciando-se no culto que, para isso, foi estabelecido, e quando tam­
bém espontaneamente elegidos.
17. i:: n a o b ra a leggenda dei J u ru p a r y , de E rm a n n o S tradelli, publicação do In s titu to C ultural
fl.alo-B rasileiro, cad ern o no 4, São P a u lo 1964, que essa fig u ra d a m itologia dos índios do
V ale do R io N eg ro , p rin c ip a lm e n te , se a g ig a n ta , im p ressio n an te m e n te , ta l qual a fig u r a h is tó ric a
do A ju ric a b a , am bos h eró is de cultura.
E assim o c o n sid e ra ria o bispo A n tô n io de M acedo Costa.
J u ru p a ri, c o n tra p o n d o à in s titu iç ã o sócio -p o lítica do m a tria rc a d o , a c u ja fr e n te e sta v a su a m ãe,
a in stitu iç ã o do p a tria rc a d o , p a r a a d efender, fu n d o u u m a sociedade secreta.
E m seu V ocabulário P o rtu g u ê s-N h e ê n g a tu — N h eên g a tu -P o rtu g u ês (p á g in a s 497-498) S tradelli
noa e n sin a :
"Q u a n to à o rig em do nom e aceito, a ex p licação que dela m e foi d ada p o r um velho ta p u io a
quem o b je ta v a m e h a v er sido a firm ad o que o nom e “ Iu r u p a r i” q u e ria dizer “ o gerado da
fr u ta ” ouvi o seg u in te: In tim ã a , Iu ru p a ri cêra onheên p u ta re o m u n h a ia n é iu r ú p a ri uá
( “ n ad a disso, o nom e de Iu r u p a r i q u e r dizer que fez o fecho de nossa boca” ) vindo, p o rta n to ,
<lu iu ru : boca, e p a r i: aquela g ra d e de te la s com que se fecham os ig a ra p é s e bocas de lagos
p a r a im p e d ir que o p eixe s aia ou e n tre . E x p lica ç ão que m e satisfa z , porque, de um lado,
c a ra c te riz a a p a rte m ais salien te do e n sin a m e n to de Iu r u p a r i, a in s titu iç ã o do segredo, e,
do o u tro lado, seu esforço se p re s ta à m esm a ex p licação nos v ários dialetos tu p i-g u a ra n is , como
hc pode v e r em M o n to ia as p a la v ra s y u ru e p a ri e das m esm as p a la v ra s em B a p tis ta C aetano” .
E essa fig u r a te ria de fa s c in a r o gênio de V illa Lobos, a quem devemos u m a d as suas m aiores
criações, e a S érgio L ifa r u m a inesquecível, d eslu m b radora in te rp re ta ç ã o co reo g ráfica.
Itclativ am en te à g r a fia do nom e desse h e ró i in d íg e n a se opôs D om ingos M agarinos, no seu
pitoresco A m e riq u a (O ficin a s A lba G ráfica, R io de J a n e iro 1939) n estes term o s:
" J u r u p a r i ou Iu r u p a r i, como é co rreto , p o rq u e n o n h e en -g a tu não existe a le tra i, n u n c a
s ig n ific a D iabo. Y u ru p a ri, n a teo g o n ia a m e ríg e n a, é o filho d a v irg em C hiucy, a M ãe do
P r a n to ..
A n tô n io B ra n d ão de A m orim , e n tre ta n to , q u ando em su a L en d a s em N h ee n -g a tu e em P ortuguês,
no s co n ta os episódios d a G uerra de B u ep é, escreve sem p re Iu r u p a ri, como se vê:
N h a a p y tu n a a p ig a u a etd Y u y tir a k e ty opuse a ra m a Iu ru p a ri.
N essa n o ite os hom ens fo ram p a ra a S e rra do Iu ru p a ri d a n ç a r o Iu ru p ri.

127
/
Esse estado de transe será, talvez, um estado de graça, vinculando
o homem a essas divindades, imprescindível ao contato com o Deus
Supremo, o Deus único.
Não o sentiu, desse modo, um Alfred Métraux, por exemplo, quando
viu na possessão mística, dada a sua fase inicial, «sintomas de um
caráter nitidamente psicopatológico ? Ela representa, nos seus grandes
traços, o quadro clínico do ataque histérico».
E igual atitude teve Durkheim, vendo numa manifestação coletiva
das filhas-de-santo (noviches, vodunces, iaôs) um fenômeno de multidão,
contra a opinião de Roger Bastide que, nesse fenômeno, vê
. . . u m c o n ju n to d ir ig id o d e tr a n s e s in d iv id u a is, ten d o ca d a u m d e le s ca ­
r á te r b em p a r tic u la r , e to d o s s e in se r e m n u m a tr a m a f e it a de rela ç õ e s
in te r p e sso a is. N ã o é o a ju n ta m e n to , o en tu sia sm o , a c o n cen tra çã o de in d i­
v íd u o s n u m p eq ueno e sp a ço sa g r a d o q u e c r ia a o r g ia d io n isía c a . A d escid a
d a s d iv in d a d e s n ã o se f a z ao a c a so , e la se g u e u m a ord em f ix a , q u e é a
o r ig e m d os “L e itm o tiv s ” m u sic a is, e, re sp e ita n d o tod a u m a s é r ie de lim ite s :
a m u lh er g r á v id a em g e r a l, a m u lh e r m e n str u a d a sem p re e a s p e ss o a s de
lu to n ã o podem receb er o s s e u s r e sp e c tiv o s O rix á s. S e o tr a n s e f o s s e o
e fe ito da cr ia ç ã o de u m a a lm a c o le tiv a , o p rod u to da p r e ssã o de in d i­
v íd u o s reu n in d o en tã o o s m em b ros d os o u tro s can d om b lés, v in d o s com o v i­
z in h o s e a m ig o s se r ia m e le s tam b ém en v o lto s n a lo u c u r a g e r a l e ab an ­
d on ariam a m u ltid ã o , o s esp e c ta d o r e s, p a r a ir d an çar, e s tá tic o s , c o n v u lso s,
n a rod a c e n tr a l; ora, n ã o é de b om -tom , p a r a a s e ita , q u e e str a n h o s s e
d eix em p o ssu ir , n e s s e d ia , p e lo s d eu ses, e is to q u er d iz e r q u e o tr a n s e
fic a sem p re con tro la d o p elo g ru p o . M as o im p o r ta n te p a r a n ó s é q u e cad a
tr a n s e é d ife r e n te , sen d o de d e u se s d ife r e n te s. O ê x ta s e n u m filh o de
X a n g ô n ã o pod e id e n tific a r -s e com o d e u m a c r ia n ç a de O m olu, n em de
I a n s ã com a de Ie m a n já . A lém d isso , e s s a s d iv e r sa s d iv in d a d e s c o n stitu e m
fa m ília s , tê m u m a rela ç ã o a o u tr a s lig a ç õ e s d e p a r e n te sc o ou de a lia n ç a
m a tr im o n ia l, r iv a lid a d e s ou a m iza d es. V is to q u e o b a lé n ã o é sen ã o a re ­
p etiçã o dos fa t o s a n c e str a is, é p reciso , en tão, q u e ca d a u m d e sse s ê x ta s e s
p a r tic u la r e s se lig u e m a o s o u tr o s se g u in d o o s m od elos fo r n e c id o s p elo p a n ­
te ã o , io ru b a ou d aom ean o, b a n to o u caboclo.
N a rod a m ís tic a q u e v o lte ia n o cen tro da sa la , a s filh a s , em esta d o de
p o sse ssã o , n ã o podem s itu a r -s e a q u i e a li; ca d a u m a te m o s e u lu g a r
reserv a d o , q u e d ep en d e da situ a ç ã o de su a d iv in d a d e n o p a n teã o , dos la ç o s
d e h ie r a r q u ia ou d e m a trim ô n io ; O xum n ão p od e c o lo c a r -se d ia n te de Ia n sã ,
q u e é m u lh er p r im a c ia l de X a n g ô e, s e O ba d esce, e le b r ig a r á com O xum ,
porq u e e la s são d u a s r iv a is q u e s e d e te sta m p or c a u sa de u m a v e lh a
h is tó r ia de m a g ia am orosa. A q u e le q u e fr e q ü e n ta s e s sõ e s, com o h áb ito,
n ão c o n fu n d ir á o s ê x ta s e s a d o le sc e n te s d os d e u se s jo v e n s (m esm o q u e se ja m
v e lh o s q u e r e p resen tem e ss e s d e u se s) com o s ê x ta s e s c la u d ic a n te s dos d eu ses
m a is v e lh o s ; o s ê x ta s e s fe m in in o s e o s ê x ta s e s m a s c u lin o s ; o tr a n s e de
O r ix á s g u e r r e ir o s e o tr a n s e d e O r ix á s d a v o lú p ia . M as e s s e s tr a n s e s não
são ju s ta p o s to s , e le s s e in te r lig a m , são c o m p le m e n ta r e s; o s h o m en s d e fo r a
podem b em te r a im p r e ssã o de u m a lo u cu ra c o le tiv a p e la r e u n iã o 3 e p e sso a s
com u n gan d o a m esm a fé , a m esm a e x a lta ç ã o a f e t iv a ; n ó s n o s en c o n tr a ­
m os, de fa to , d ia n te de u m b a lé e x tá tic o , se m d ú vid a, m a s u m b a lé cu ja
tr a d iç ã o m ís tic a se r ia de en saio.

Tanto quanto me foi dado observar, entre as criaturas em estado


de transe, nem sempre os Voduns se expressam em linguagem clara,

128
compreensível, seja do grupo-negro-africano, seja mesmo em língua
poil uguesa.
Falam uma língua atrapalhada» (reconhecia Mãe Andresa) e o
reconhecem todos, em determinadas ocasiões, porém algumas velhas
podem esclarecer: «Está falando jeje, está falando nagô».
Fragmentos de frases, repontando aqui e ali, talvez pudessem ser
Identificados por um especialista em paleolingüística, um discípulo de
O Asserelle ou de L. Homburger, e seclareceria: «Não é jeje nem nagô:
á fon...»
A origem dessas frases, de natureza arcaica ou esotérica ou fóssil,
poderá ser reconhecida como da chamada África poliglota, assim cogno-
mimula pelo primeiro desses autores, mas um sacerdote daomeano ou
Ini ubano apontaria, simplesmente, uma linguagem litúrgica ou secreta,
utilizada nos cânticos, nos exorcismos, nas preces, nos esconjuros.
No entanto, do mesmo modo por que, em certas danças, sob o do­
mínio dos Voduns, pela boca das suas filhas, eles dizem pilhérias, so-
prum apelidos, não será de adm irar que, propositadamente, empreguem
ntu a língua, ou um dialeto de sintaxe absurda, e as frases se detur­
pem cm desorientadoras sínquises.
Fxaminando-se, através da estrutura dos cânticos sagrados, as re-
pd ienes de frases, de palavras e, frequentemente, a mutilação das
mesmas, fui informado de que isso acontece, por determinação con­
vencional, de fundo secreto, para evitar que o cântico seja facilmente
aprendido por pessoa estranha ao culto dos Voduns, sobretudo quando
no pode ser elevado em circunstâncias especiais, no pégi ou fora dele,
em sítio de acesso permitido apenas a iniciados e a iniciadas, onde con-
OlIlAbulos e despachos são realizados.
Um estudo da morfologia desses cânticos secretos, possivelmente,
denunciará, em grande parte, uma origem islâmica ou remotíssima
associação com outros povos do Continente Africano ou até mesmo
ilu Ásia.
Não tendo um conhecimento profundo da estrutura das línguas e
<1inícios que os escravos africanos falavam, quando trazidos para o
nirnso País (e ainda hoje podem ser reconhecidos através do folclore
lendas, contos, provérbios, adivinhas — e no que se relaciona com
n religião — cânticos, rezas, invocações, esconjuros), entendi submeter
n apreciação e conseqüente identificação de um especialista parte do
mui criai representado por uma dezena de cânticos litúrgicos, fixados
cm fita magnética, ao longo de minhas pesquisas.48
4M A priglnn 38, d a 1» edição d esta ob ra, como à p á g in a 60, focalizei asp ecto s lingüísticos, que
oarn elerizam povos a fric a n o s, d e n tro de u m a v e rd a d e ira B abel N e g ra . E escrevi: “ Sou dos que
M in.líinm que, n ão ra ro , como re c u rso p a r a d e sp ista r, os o fic ia n te s desse culto — receosos
dn perseguições e c astig o s d a p a r te dos sen h o res de escravos — m a n tin h a m o ra tó rio s com
•mulos católicos e a eles se d irig iam em lín g u a a fric a n a en g ro la d a com la tim ” .
Tnmlióm a c o n v ersa dos V oduns e n tre si n ã o d a v a p a r a que se entendesse, pois, como notou
llonom l; A guessy, n a m o ld u ra das lín g u a s fa la d a s, c ad a deus p o ssu ía su a lín g u a , in in teligível
p a ru os o u tro s deuses. D aí a im possibilidade de en ten d er-se-lhes a conversa. M as M ãe A ndresa,
■ffgundo presen ciei, q u an d o em tra n s e , bem os com preendia.

129
Esse material foi recolhido na Casa das Minas, de São Luís do
Maranhão, e no Quêrêbetan de Zuleide Figueira do Amorim (Jacare-
paguá, Estado do Rio de Janeiro), nisso colaborando Enedina de Oli­
veira, maranhense, filha daquela Casa, cujo Vodun é Jagurubuçô.
Dirigi-me, então, ao prof. Pierre Alexandre, do Institut National
des Langues et Civilisations Orientales, em Paris (2, Rue de Lille, 7e),
dele recebendo carta que se encontra em apêndice nesta obra.

XII
Tratando dos Voduns, que deflagam o estado de transe ou posses­
são, eu me referi a um alucinógeno indígena, da Amazônia Brasileira
e dos países vizinhos, incluído, geograficamente, sob essa denominação:
ayuasca ou ayahuasca. Erradamente chamada yagé, é, também, conhe­
cida (no Rio Negro, Estado do Amazonas) pelo nome de caapi, sendo
esta última denominação tupi, e a prim eira e segunda, possivelmente,
quéchua ou aimara.
Leonard Clark, porém, num pequeno Vocabulário ou Apêndice à
sua obra The Rivers Ran East, diz que é um nome dado pelos Jivaro;
os Chamba, entretanto, que são do Equador, como os Jivaro — redu-
tores de cabeças (tsantsa) — chamam oni a beberagem, feita com pe­
daços da casca do cipó ayuasca. Caapi, em tupi, é um vocábulo com­
posto de dois elementos: caá (planta, mato) e pi (vermelho), de pinima.
O dinâmico professor e folclorista brasileiro, radicado nos Estados
Unidos (Universidade da Califórnia, os Angeles), Paulo de Carvalho
Neto, em seu Diccionario dei folclore ecuatoriano (Editorial Casa de
la Cultura Ecuatoriana, Quito 1964), a respeito desse vegetal, escreve:
Ahá huasca, aya huasca. L ia n a de la s s e lv a s a m a zô n ica s, u tiliz a d a com o
beb id a a lu c in ó g e n a p or lo s b r u jo s de la s tr ib o s a c u ltu r a d a s dei O rien te
e cu a to ria n o .

E o mesmo autor, num longo verbete, refere o uso desse alucinó­


geno, salientando-lhe as particularidades que proporcionam visões de­
liciosas e multicoloridas.
Também, em Achegas ao Folclore Acreano, estudo publicado nas
colunas da Gazeta, de São Paulo (7 de maio, 3 e 10 de junho), tra ­
tando de uma espécie de culto indígena católico, realizado na Cidade
de Rio Branco, capital do Estado do Acre, adianta que ali ela é co­
nhecida pela denominação de huasca ou santo-dá-me. O iniciador do
culto a essa planta, naquela cidade, foi um ex-marinheiro da Armada
O ra, n a atu alid ad e, A n d rija P u h a ric h , in T h e S a cred M ushroom (K ey to th e D oor o f E t e r n ity ) ,
D oubleday & C om pany, In c. N ova Io rq u e 1974, nos a p re s e n ta o caso de H a rry Stone que, sob
os efeitos dos^ alcalóides de u m cogum elo sag rad o , e n tra n d o em tra n s e , disco rria, n a lín g u a
c o n sid erad a egípcio a n tig o , sobre h ie ró g lifo s e os desenhava, o que foi controlado p o r um
m édico, g ra d u a d o em egiptologia.
M ãe A n d resa, em “ a tra n c e co n d itio n ” , como L egbá, p o d ia e n te n d er a conversação dos V oduns
m in a -je je s.

130
Brasileira, de nome Irineu; e um dos continuadores das suas ativida­
des religiosas, posso informar também, é o rio-grandense-do-norte Da­
niel de Matos.
Paulo de Carvalho Neto colheu essas informações, na sua infa­
tigável e brilhante atividade de pesquisador, com o poeta cearense Josc
Eduardo, então comerciário na capital acreana.
Minhas observações a respeito desse alucinógeno foram iniciadas
no Vale do Rio Negro, no Estado do Amazonas, entre indígenas dc
diferentes tribos, que o usam desde tempos imemoriais. E visavam nãc
só a uma experimentação direta, individual, da ação dos alcalóides
que viajantes e cientistas (médicos e químicos) lhe apontam, mas a s u e
utilização nos terreiros do culto mina-jeje, na capital do Território
Federal de Rondônia, que é Porto Velho.
Tanto os pajés das tribos indígenas do Vale do Rio Negro, como
igualmente, os do Vale do Rio Purus, usam ayuasca (em forma d(
bebida, não fermentada, mas sim cozida) nas suas práticas mágicas
de encantamento e cura, de exorcismo e excitante genésico, não aban­
donando, entretanto, outro alucinógeno — o ipadu ou patu, bem assiir
o fum i. . .
Tendo em elaboração um ensaio a respeito desse psicodélico ou alu­
cinógeno, como bem entendam classificá-lo, a ele já fiz largas referên­
cias em duas obras de minha autoria: Moronguetá, Um Decameror
Indígena (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967) e Panorama
da Alimentação Indígena (Comidas & Bebidas e Tóxicos, na Amazônia
Brasileira, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1974).
Nesta Nota, porém, posso adiantar observações ou experiências
pessoais e de outros pesquisadores, que se lhe relacionem.
O ensaio em preparo abrange, ademais, áreas ali referidas; é evi­
dente, porém, que essas observações se interligam ao assunto desdo­
brado na nota anterior e referente ao estado de transe, pois, para esse
fim, estão utilizando a ayahuasca nos terreiros mina-jejes dos limites
da Amazônia com os países hispano-americanos que com ela se limitam
Desde as mudanças do botânico Richard Spruce, pelo Vale do Ric
Negro, o mundo científico conhece a planta que proporciona as sensa­
ções desse alucinógeno, planta pertencente à família Malpighiácea, ors
tendo o nome de banistéria caapi spruce, em homenagem, é claro, ac
seu descobridor, ora o nome de banisteriopsis caapi.
No México, Panamá, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Chile
Bolívia e Argentina — e em nosso país, sobretudo no Vale do Ric
Negro e no Vale do Rio Branco — algumas das 85 espécies, segunde
líecord & Hess, podem ser encontradas em áreas não citadas aqui c
já o foram no planalto goiano, notadamente em Brasília, por elementos
de uma equipe orientada por Graziela Barroso, chefe da Seção de Bio­
logia Vegetal do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Em todos os países, acima referidos, essa planta tem as mais
estranhas denominações; o uso, porém, como estupefaciente, é mais

181
generalizado no Equador, Colômbia, Peru e Bolívia, quer entre os fei­
ticeiros ou pajés, quer entre pessoas de todas as classes sociais.
Meu contato com a literatura, que já lhe foi dedicada, se iniciou
há mais de três décadas com a leitura do n9 100, da Revista da Flora
Medicinal, do Rio de Janeiro, ano II, julho de 1936.49
Ali os professores Luís Faria e Oswaldo de Almeida Costa publica­
ram um trabalho intitulado A Planta que Faz Sonhar: o Yagé, com a
diagnose da autoria de A. Gresebach, uma descrição da morfologia de
seu caule e da estrutura microscópica deste, e um estudo histoquímico
que nela mostra a presença de yageína ou telepatina.
Os dois autores ficaram, assim, credenciados cientificamente para
afirm ar que «os principais alcalóides se acham localizados nas células
das raízes medulares da região cortical».
Estudos dos caracteres morfológicos e histológicos dessa planta
foram realizados e, também, os da folha.
Mas, já naquela época dos seus estudos, os dois autores escreviam:

S e r ia m o tiv o de a le g r ia ou de tr is te z a e s s a rev ela çã o ? (R e fe r e m -se à p la n ta


q u e f a z s o n h a r ) . A c r e d ita m o s n ã o e r r a r dizen d o q u e, dada a situ a ç ã o
su b v e r s iv a do m u n d o, o n o sso se n tim e n to é m isto . A le g r a m o -n o s sab en d o
q u e a q u ím ic a v a i e n tr e g a r à m e d ic in a m a is u m p oderoso a g e n te te r a ­
p êu tico , e e n tr iste c e m o -n o s a n tev en d o a p o ssib ilid a d e d e d etu rp a çã o da su a
v e r d a d e ir a fin a lid a d e . J á n ã o a co n teceu o m esm o com a co ca ín a e a
m o r fin a ?

Referindo-me agora a esse trabalho pioneiro, e meditando sobre


o sentimento misto dos seus autores, logo me veio à lembrança uma
conferência que o gênio de Einstein pronunciou, há muitas décadas,
num Instituto de Altos Estudos, da cidade de Roma.
Depois de definir o verdadeiro tipo do homem de ciência, empe­
nhado na construção de uma verdade, como ele próprio emite (influen­
ciando a cultura moderna, no dizer de Leopold Infeld) de maneira
inquietadora, pergunta:

Q ue lu g a r o c u p a r á o h om em de c iê n c ia n a so cied a d e con tem p o râ n ea ? O


hom em de ciê n c ia v erd a d eiro tem um o rg u lh o r e la tiv o de v e r que o tr a ­
b alh o d e a lg u n s o u tr o s tr a n sfo r m o u p r o fu n d a m e n te a v id a econ ôm ica dos
h o m en s, a p on to d e fa z e r d e sa p a recer, em c e r to s c a so s, o tra b a lh o m an u al.
E m c o n tr a p a r tid a , n ão pode d e ix a r de s e n tir -s e a n g u stia d o ao v e r ific a r
q u e o s r e su lta d o s d e ssa tr a n s fo r m a ç ã o c o n stitu e m u m a to r v a a m ea ça p a ra
a h u m a n id a d e, d esd e q u e o s fr u to s da in v e s tig a ç ã o c ie n tífic a c a ír a m n a s
m ã o s d a q u eles q u e d etêm o p od er p o lítico .

E Einstein parece que abriu o seu coração para que o vissem san­
grando, nos termos que seguem:
49. E m 1976 foi p u b licad a a o b ra H allucinogens a n d S h a m a n ism , p o r M ichael J . H a rn e r, u m a espécie
de a n to lo g ia in te re ssa n tíssim a , n a qual se destacam te m a s sobre a ay ah u asca, yagé e m escalina,
com trê s tra b a lh o s do p ró p rio e d ito r M ichael J . H a rn e r (O x fo rd U n iv e rsity , N ova Iorque 1976).

132
E le p o ssu i a co n sc iê n c ia d e q u e a a p lica çã o d a s su a s in v e s tig a ç õ e s se co n ­
cen tro u n a s m ã o s de u m a p eq u en a m in o r ia , em p rim eiro lu g a r , um poder
econ ôm ico e, em se g u id a , u m p od er p o lític o , de q u e d ep en d e, e str e ita m e n te ,
a so r te da m a io r ia , ca d a v ez m a is a m o r fa , dos se r e s h u m an os. V em os,
a ssim , h o je, d e lin e a r -se p a r a o hom em d e c iê n c ia u m d estin o v e r d a d e ir a ­
m e n te tr á g ic o . Im p elid o p e la s s u a s a sp ir a ç õ e s p a r a a c la r e z a e in d ep en ­
d ên cia , e le fo r jo u , por s u a s m ã o s, com u m a fo r ç a q u a se sob re-h u m an a,
a s a r m a s de s u a su je iç ã o e a n iq u ila m e n to de su a p erso n a lid a d e. E le se
v ê , a ssim , com o se fo s s e u m sold ad o, a su b m e te r -se ao silên cio im p osto
p e lo s d e te n to r e s do p od er p o lític o , a s a c r ific a r a su a p r ó p r ia v id a , e, por
v e z e s, o que é p ior, a d e str u ir a d os o u tr o s, a in d a q u e e s te ja con ven cid o
do ab su rd o de ta l sa c r ifíc io .

E Einstein prosseguiu a sua dramática e aterrorizante alocução


neste tópico:

O hom em de c iê n c ia v ê com c la r e z a q u e a situ a ç ã o — p rovocad a p ela


h is tó r ia , q u e d e ix a a o s E s ta d o s a fa c u ld a d e de d isp orem do p od er econô­
m ico e p o lítico , e, p o r co n seq ü ên cia , do p od er m ilita r — pode le v a r ao
a n iq u ila m e n to to ta l. E le te m a c o n sc iê n c ia d e q u e o h om em só poderá
s a lv a r -se , s e s u b s titu ir o s m étod os d e fo r ç a b r u ta p o r u m o r g a n ism o j u ­
ríd ico su p e r n a c io n a l. D e o u tro m odo, e le é co n str a n g id o a a c e ita r , com o
u m d estin o in e lu tá v e l, a e sc r a v id ã o im p o sta p elo E sta d o n a c io n a lis ta , e
h u m ilh a r -se a p onto de p r e sta r -se , p elo a c a ta m e n to d e o rd en s, ao a p er­
fe iç o a m e n to co n tín u o dos m eio s q u e le v a m à d e str u iç ã o c o m p le ta d os h om en s.
Deverá o h om em d e c iê n c ia d e ix a r -se a r r a s ta r a u m n ív e l tã o d eg ra d a n te?

Impossível me foi não relacionar a angustiante preocupação dos


dois pesquisadores dos alcalóides da ayuasca ou do yagé com a de
Cinstein, face à teoria da relatividade e à teoria quântica, pois, da
«conexão entre a teoria quântica e a relatividade», resultam (segundo
beopold Infeld, a que estamos recorrendo) a energia atômica e o seu
aproveitamento.

A q u i (e s c la r e c e e l e ) , a s id é ia s d e c is iv a s com eçam com a te o r ia q u â n tica ,


q u e r ev ela m a s p ro p ried a d es da m a té r ia e a d e sin te g r a ç ã o q u e to m a r a m
p o ss ív e l a e n e r g ia a tôm ica.

A bomba atômica destruiria Hiroxima e Nagazaki; e a planta


que faz sonhar, como a cocaína e a morfina, a maconha e a datura, o
peyolt e o paricá, o éter e a caoba, estão embrutecendo e aniquilando,
progressiva e incontrolavelmente, as populações indígenas, largadas ou
mal assistidas pelo poder público, que lhes acena com os benefícios
discutíveis da civilização, ombreando, nesse destino, com a mocidade
das escolas e das universidades, nas chamadas cidades tentaculares,
quo Verhaeren definiu em poemas, e nas cidades estranhas que James
Haldwin escalpelou, num romance, e cujos deuses são as bebidas alcoó­
licas, o homossexualismo e os psicodélicos.
Luís Faria e Oswaldo Costa — permito-me voltar às suas pes­
quisas sobre o yagé — anteviram, científica e humanamente, as vir-
tudes positivas e as negativas desse entorpecente indígena, como um
fator de desmoralização física e moral do homem moderno.
A palestra que realizaram na Associação Brasileira de Farmacêu­
ticos, há mais de duas décadas, deve ter deliciado a assistência e exci­
tado os toxicômanos, pela contribuição de dados históricos, técnicos e
científicos, e a transcrição da lenda, coletada na Amazônia pelo escri­
tor maranhense Nonato Pinheiro.
Mas o que merece agora ser louvado, além do que se refere às
suas experiências de laboratório, é a soma de conclusões à luz da so­
ciologia e da ética.
Referi-me a Nonato Pinheiro, geógrafo e escritor, falecido em
Manaus, para salientar que ele estava com a razão ao «contrariar a
idéia, geralmente admitida, de que o yagé e o caapi sejam a mesma
coisa», segundo referência de Luís Faria e Oswaldo Costa.
No entanto, como verifiquei em minhas viagens e pesquisas pela
Amazônia Brasileira pelos países limítrofes, a bebida, sim, é uma só.
No seu preparo, porém, entram folhas de outra planta, que é um
arbusto, de pequeno porte, com caule muito menor que o de um jovem
exemplar de ipadu ou patu — a coca, designada pelos botânicos
Erythrosylum coca Lamk.
A ayahusca ou ayauasca é uma planta escandente, uma trepa­
deira, um cipó, assim batizado pelo índio — como tantos outros ve­
getais — com a mesma morfologia e características biológicas, embora
de diferentes propriedades, utilizadas, quer pelos indígenas, quer pelos
pseudocivilizados.
A coleta dessa planta obedece a um certo ritual, observado pelo
indivíduo ou indivíduos que se aventuram a procurá-la na selva; e o
preparo da bebida é sigiloso como o do curare — o Strychnos
rondeletioides, por exemplo — pois no Vale do Rio Negro, e, também,
no Vale do Purus, quando não é silvestre, é cultivado em sítio inacessí­
vel, por vezes sob cobertura ou sombreamento de outro vegetal, num
procedimento idêntico ao plantio da coca sob a ram aria dos pés de
mandioca.
O botânico e químico Paul Le Cointe foi, com Nonato Pinheiro,
dos primeiros a referir a distinção dos dois indivíduos vegetais caapi
e yagé: Caapi — Banisteria caapi Spruce (Malpighiácea). Local: Alto
Rio Negro. Cultivado em toda a Amazônia (Cip.) — sin-timbó branco
(Rio Tapajós) — ayahuasca ou illuasca (P eru). O nome de yagé,
atribuído, às vezes, ao caapi, parece corresponder a uma outra planta
que entra na composição da beberagem preparada por algumas tribos
de índios com o caapi (C ar.). — Flores róseas em grandes panícuias
piramidais. Fruto: sâmara alada pilosa. Medicamento anestésico local.
— Estimulante da memória e das faculdades intelectuais. Determina
um estado de vigília, curiosas alucionações visuais. O princípio ativo
é um alcalóide, a telepatina (ou yageína), de E. Pervot e R. Hamet, ou

134
Banisteria de Lewin (1928). Encontrou-se no caapi um outro alcalóide,
o harmine, indicado contra a paralisia agitante (parksoniana).
Como o Dr. Theodor Koch Grünberg — com uma experiência
pessoal não tanto movimentada e discutível — o Dr. P. Reinburg, em
estudo comparativo, tóxico-fisiológico, descreveu suas sensações pessoais,
sob os efeitos dos alcalóides da ayahuasca ou caapi.
E o fez num estudo, publicado no Journal de la Société des
Américanistes, de Paris, intitulado: «Contribution à la l’étude des
boissons toxiques de indiens du Nord-ouest de 1’Amazonie — le
ayahuasca, le yagé, le huanto».
Posso dar aqui um resumo da experiência do Dr. P. Reinburg
nestes tópicos:
Um índio záparo, do Equador, recusou-se a procurar para o cien­
tista o material necessário ao preparo da beberagem alucinógena, mas
um jovem peruano (de Iquitos, República do Peru, intelectualizado,
salienta ele) o conseguiu.
N u m a m a r m ita de b a rro — a ss im e sc r e v e u o D r. P . R ein b u r g — o p eru an o
p ôs um litr o d ’á g u a e q u a tro p ed aços, de tr in ta c e n tím e tr o s, d e a y a h u a sc a ,
p ila d o s e m a ch u cad os, e cin co fo lh a s de y a g é .
E m fo g o le n to , e n tr e dez e d ezoito h o r a s, s e p ro cesso u o co zim en to da
b eb eragem , p o sta d ep o is n u m a ca b a ça , de cor p a rd a , p ouco a g r a d á v e l à
v is ta . A p a g a d a a lu z o D r. R e in b u r g tom ou um p ou co do líq u id o, de sab or
acre, a m a r g o , n a u sea b u n d o , d eix a n d o n a b oca u m a n te g o s to v erd a d eira m en -
to d esa g r a d á v e l.

Registrou os sintomas com uma perfeita lucidez de espírito e


assistiu a todos os acontecimentos como se se tratasse de um outro
o esses sintomas notadamente o surpreenderam. O narrador, adiantando,
salientou que teve dores de ouvido, a salivação aumentada (exagerada),
mas não teve náuseas, que, segundo Teófilo (o jovem peruano), são
0 sinal precursor dos sonhos. A ostealgia aumentou e a micção tam ­
bém; o pulso desapareceu, as pupilas se dilataram, sentiu a garganta
seca com disfagia forte, teve a sensação de desaparecimento das extre­
midades do corpo, as mãos se moviam irresistivelmente, procurando
qualquer coisa, o trismo muito forte, e a palavra se tornou difícil e
1rregular.
Essas sensações, registradas pelo Dr. P. Reinburg, foram idênticas
ás que recolhi, em minhas viagens, através de depoimentos de alguns
indígenas e semicivilizados acessíveis e de língua mais solta, e eu
inesmo experimentei um pouco da droga aqui posta em foco.
E essa experiência foi feita, uma vez, entre índios do Rio Tiquié,
no Vale do Rio Negro, Estado do Amazonas, Brasil, com uma porção
de caapi, que é o nome dado pelos índios dali à ayuhasca, e outra na
Vila Ivonete, Cidade do Rio Branco, capital do Estado do Acre, con­
forme depoimento que aqui vai:
Naquela localidade, distante a menos de dez quilômetros da cidade
do Rio Branco, há um centro de religiosidade, com uma capela cujo
orago é São Francisco do Canindé; na realidade, porém, ali é cul­
tuado santo-dá-me, isto é, a ayahuasca sacralizada, como outras plan­
tas o foram pelos gregos, os indianos e os africanos.
A capela foi construída em terras de uma pequena fazenda, de
propriedade de Manuel Antão da Silva, por Elias Nagib Kemer; no
entanto, quem fundou a Casa de Jesus, ou Fonte de Jesus, foi Daniel
Pereira de Matos, maranhense, ex-marinheiro da Armada Brasileira,
ligado à mãe-de-terreiro de nome Joana.
O presidente atual do centro é o norte-rio-grandense Antônio Ge­
raldo da Silva, natural de Mossoró, de 46 anos de idade, com dez
pessoas de família, residindo no mesmo terreno da Vila Ivonete, em
casa à parte, pouco distante do flanco direito da capela.
Uma cerca de madeira-de-lei enquadra a capela e a residência do
presidente do centro acima referido.
E na casa são vistos desenhos geométricos e, principalmente, esti-
lizações de flores exóticas, em cores vivas, desenhos que foram rece­
bidos sob o efeito (segundo me foi particularizado) do estupefaciente
e, depois, transmitidos ao laboratorista Manuel Hipólito de Araújo.
Esses desenhos são de um simbolismo perturbador e fascinante,
que os fiéis interpretam rigorosamente, dentro da filosofia e mitologia
do culto, como um legítimo produto das mirações (fantasias e vidên-
cias) que a droga lhes transm ite.50
50. N a o b ra A S e p a ra te R e a lity ( F u rth e r C o n v ersatio n w ith D on J u a n ) o an tro p ó lo g o colombiano
C arlos C asta n e d a no s c a ra c te riz a a im p o rtâ n c ia dessas m iraçõ es a tra v é s do diálogo que segue:
“ D on J u a n h a d once told m e th a t a m a n o f know ledge h a d p redilection, I asked h im to ex p la in
h is s ta te m e n t.
M y p re d ile c tio n is to see, h e said.
W h a t do you m e a n by th is ?
I like to see, he said, because only by seeing c an a m a n of know ledge know .
W h a t k in d o f th in g s do you see ?
E v e ry th in g .
B u t I also see e v e ry th in g a n d I ’m n o t a m a n o f know ledge.
No. You d o n ’t see.
I th in k I do.
I tel you, you d o n ’t.
W h a t m ak es you say th a t, Don J u a n ?
Y ou only look a t th e su rfa c e o f th in g s.
Do you m ean th a t every m a n o f know ledge a ctu a lly sees th ro u g h e v e ry th in g h e looks a t ?
N o. T h a t’s n o t w h a t I m ean . I said th a t a m a n o f know ledge h a s his ow n p re d ile c tio n ; m in e is
ju s t to see an d to kn o w ; o th e r do o th e r th in g s ” .
P e rm ito -m e o fe re c er ao le ito r do diálogo a cim a a su a tra d u ç ã o liv re: “ Don J u a n u m a fe ita m e
contou que um hom em de conhecim ento te m predileções especiais. E eu pedi-lhe que se
explicasse.
M in h a p red ileção é ver, disse ele.
Que q u e r dizer com isso 7
E u g osto de ver, disse-m e, p o rq u e é vendo que u m hom em de conhecim ento pode conhecer.
Que tip o de coisa você pode ver?
T odas as coisas.
T am b ém eu vejo tudo e n ã o sou um hom em de conhecim ento.
N ão. Yocâ n ão vê. —
V ejo.
D igo que você n ã o vê.
E m que se b aseia p a r a dizer que n ã o v e jo ?
Você só vê a s u p erfíc ie das coisas.
E s tá a firm a n d o que todo hom em de conhecim ento vê, realm en te, a tra v é s de tu d o o que lhe
e stá d ia n te ?
N ão, n ão é o que quero dizer. D isse que o hom em de conhecim ento te m su as predileções; a
m in h a ó som ente v e r e saber. O u tro s fazem coisas d ife re n te s ” .
Os “ cau ch ero s” colom bianos, to m an d o “ a y ay a sca ” — como re fe ri — viam os cam inhos e os
lu g ares, aldeias, cidades donde tin h a m vindo p a r a a selva am azô n ica e p a r a lá desejavam v o ltar.

136
Foi Manuel Hipólito de Araújo (laboratorista da Secretaria de
Saúde do Estado do Acre) quem me levou até a Vila Ivonete, cujo
ambiente era festivo, visto a data ser consagrada à Assunção de
Nossa Senhora.
Ostentando uma farda branca, bem como um capacete da mesma
cor, mas de ornatos em nastro vermelho, ali estavam crianças, homens
e mulheres, estas se distinguindo pelo uso de bombachas sob larga
saia, sendo todo o trajo de fazenda branca.
Predominavam nos desenhos dos ornatos os corações de Jesus e
de Maria, e signos de Salomão.
Tendo por comandante e presidente Antônio Geraldo da Silva,
todos os filiados àquele culto se consideram oficiais e soldados de uma
verdadeira milícia, porém milícia de paz.
Eu os fotografei e filmei, mercê daquele ambiente tranqüilo, sain­
do da casa do presidente — casa cujo interior foi todo decorado com
desenhos idênticos aos da cerca e das paredes externas.
Organizou-se um desfile processional: à frente a esposa do pre­
sidente, levando um recipiente de vidro fosco, à maneira de um hos-
tiário, coberto por um guardanapo rendado, cujo conteúdo era a be-
beragem (chamada ayhuasca ou huasca, simplesmente), mas, para os
l iéis, chamada «santo-dá-me».
Cantava-se um hino apropriado à solenidade comemorativa da
Assunção de Nossa Senhora.
E os fiéis se foram postando, ordenadamente, de roda ao cruzeiro
erguido frente à capela, cruzeiro cercado por colunatas; e todos mur­
muravam uma oração ininteligível.
E erguendo as mãos, ritmicamente, saudavam «santo-dá-me».
A seguir, encaminhando-se na direção da capela, ali se foram dis­
tribuindo por bancos e cadeiras, impelidos, evidentemente, por inaba­
lável fé, mas outros fiéis, naturalmente os mais graduados, se senta­
ram à direita e à esquerda de larga mesa dominando a maior parte
da área central do ambiente.
A cabeceira foi ocupada pelo comandante (sic) daquela milícia
de crentes, ficando-lhe à esquerda uma das suas filhas e à direita
urn dos seus filhos.
O altar, ao fundo, estava iluminado a velas de cera e ornado com
flores silvestres, postando-se-lhe dois fiéis, de um e outro lado.
Ocupei uma cadeira, logo à entrada da capela, do lado direito da
porta principal, de modo a abranger todo o corpo do cenário.
Sobre a mesa, coberta de finíssima toalha, tendo a forma de uma
cruz, foi colocada aquela espécie de hostiário que a esposa do pre-
hídente conduziria à frente da procissão.
Então (depois de uma nova oração coletiva e em alta voz) a espo­
sa do presidente do centro, com a compenetração de uma sacerdo­
tisa, passou a distribuir, primeiramente àqueles que estavam em redor

137
/
da mesa, e, logo, às demais pessoas ali reunidas, pequenas porções da
beberagem feita com a ayahuasca, em cálices de tamanho regular,
cabendo-me um deles com a quantidade que ingeri, sem temor e re­
pugnância, pois já a conhecia, como acima referi, desde minhas via­
gens e pesquisas pelo Vale do Rio Negro, principalmente.
O líquido era menos espesso (e menos castanha a sua cor) que
o bebido entre os índios do Rio Uaupés, por exemplo, sendo o
sabor amargo, com certo travo, tal o do caju e de outras frutas sil­
vestres da Amazônia.
Às crianças foi dada menos da metade da porção que recebi, porção
medindo cerca de 20 gramas ou um pouco mais.
À cabeceira da mesa o presidente começou a entoar um cântico
de abertura de sessão (sessão segundo o expressar dos kardecistas) ;
depois dele um dos seus filhos, o que se lhe sentara à direita, fez um
solo, em tom esgoelado e fanhoso, cuja letra era quase imperceptível,
embora o tema fosse em linguagem corrente.
Decorridos alguns minutos, a filha do presidente, que lhe estava
à esquerda, saiu da capela para voltar imediatamente, sobraçando um
violão que entregou ao pai.
Este, então, com a segurança de um exímio executante, dedilhando
as cordas do instrumento (a meu ver que não estava em desacordo
com o ambiente e embora os boêmios tenham por ele justificada pre­
dileção), passou a fazer a cortina musical do cântico inicial e de todos
os demais, entoados por um coro de vozes que iam do baixo profundo
ao contralto, não sem certa desafinação.
A essa altura comecei a sentir-me inquieto, levantando-me e
sentando-me logo a seguir, desordenadamente, ajeitando as máquinas
de filmar e de fotografar, indo até à porta da capela, voltando a
sentar-me não no primeiro lugar que escolhera, mas noutro vizinho
de uma janela, mirando a fisionomia dos circunstantes, com descon­
fiança e, por fim, certo de que eles, de olhos desorbitados ou langues,
nas pálpebras semicerradas, estavam a espreitar-me inquisidoramente.
Meus movimentos eram acompanhados de um tremor de calafrio e
meu cérebro principiou a ser invadido por uma sombra, entrecortada
de clarões, fugazes como relâmpagos refletidos na água de um poço
estagnado.
Minhas mãos, tomadas de agitação carfológica, mal sustentavam
já as máquinas e eu tinha a sensação de que os meus olhos se de-
sorbitavam como os das crianças principalmente, defronte a mim,
irrequietas também, nos bancos, ao longo das paredes.
Vendo uma senhora que, debruçando-se a uma janela, se pusera
a vomitar, senti ímpetos de o fazer, mas contive-me.
Assim, levantei-me, fui até à porta central da capela, descendo
os degraus da escada de acesso.

138
E pus-me a relancear a paisagem em frente, o açude da Fazenda
do Antão, do outro lado, as árvores floridas do caminho que dali le­
vava à rodoviária municipal, e voltei a sentar-me diante das crianças,
a atar e a desatar as correias das máquinas.
A música arrancada do bojo do violão e os cânticos elevados pelos
circunstantes continuavam, estridentes e fanhosos.
Alguns homens e mulheres, a essa altura (como os dois tipos de
acólitos, postados de um e outro lado do altar), já mostravam estar
sob os efeitos dos alcalóides da ayahuasca.
Tinham os olhos semicerrados, os lábios crispados, a cabeça voltada
para trás, apoiada no espaldar das cadeiras ou a testa apoiada na
mesa sagrada; e outros fiéis, sentados nos bancos, mostravam o tronco
ereto, conquanto as máscaras se lhes assemelhassem às dos dois acólitos.
Um daqueles acólitos (soube depois que era de nacionalidade perua­
na) me pareceu te r afivelado ao rosto a máscara de um pastor aimara,
no altiplano-andino, de um tuxuaua tariano, de um feiticeiro mongol;
e essa máscara se desdobrava noutras várias, à minha vista, espectral-
mente, em expressões e coloridos os mais estranhos e diversos.
Receoso, então, de que o efeito da droga me levasse a imprevistos
desagradáveis, deixei o lugar onde me sentara e dirigi-me para a porta
central da capela, cuidando de safar-me dali.
Na ocasião ia entrando uma das fiéis que perguntou se eu me
sentia bem; pareceu-me que ela, igualmente, já estava sob a ação do
estupefaciente; lembro-me, entretanto, que evitei mirá-la nos olhos.
E lembro-me que (pretextando te r de voltar à cidade, no carro à
ininha espera, no início do caminho), quase correndo, abandonei aquele
ambiente, sem despedir-me dela e sem pensar em fazê-lo, procurando
o laboratorista que até ali me levara.
O pequeno caminho, da capela ao carro, era acidentado, com la­
deiras e duas pontes rústicas, em mau estado; à minha direita se esten­
dia um cercado, campo de pequena lavoura ou de incipiente pastoreio,
com altas árvores, de copas em floração, multicoloridas e trescalantes.
De súbito, parando à pequena distância da cerca, me pareceu que,
de um pedaço do aramado, pendia um corimbo, cujas flores eram duma
estranha coloração verde, todas elas pintalgadas de branco.
Instintivamente, horrorizado, recuei, fitando-as; e vi, sim, eu vi
naquele corimbo, em vez de flores, três cobras enroscadas, imóveis, de
olhos fixos em minha pessoa, como prontas a assaltar-me.
Pareceu-me que aquelas cobras tinham a mesma forma e a mesma
cor da chamada cobra-papagaio, rigorosamente semelhantes a algumas
que eu já encontrara nas minhas viagens através das matas amazônicas,
ali chamadas surucucu-patioba (ver Rodolfo von Ihering, em seu Di­
cionário dos Animais do Brasil) e paranan-bóia (ver Alfredo da Mata,
em seu Vocabulário Amazonense) e mais comumente chamada, pela

139
gente do interior dos Estados da Amazônia e Territórios, cobra-
papagaio.61
Naquele instante, vendo metamorfosear-se em cobras todo o corim-
bo de flores amazônicas, eu já estava francamente sob a ação dos
alcalóides da ayahuasca, tendo a visão desviada da realidade ou, talvez
— mercê de um dos seus mais curiosos alcalóides —, a telepatina,
vendo, precisamente, três cobras onde apenas a minha visão normal
identificaria somente flores. . .
Chegando ao Hotel Chuí caí em sonolência inquieta e, depois, em
sono profundo, com sonhos incoerentes, com figuras de formas incon­
cebíveis, humanas e animais, coloridas e grotescas como os das telas
de Hieronymus Boschou ou de Chirico.
As cobras reapareciam, dentre figuras antropomorfas, plantas e
flores tropicais, corais e anêmonas, de recifes submersos.
Ora, uma constante desses sonhos ou mirações (mirações, como são
chamadas entre os adoradores do santo-dá-me) é uma cobra; e isso
tanto para os indígenas dos Vales do Rio Negro e do Purus, como
para os demais moradores, semicivilizados ou inteiramente analfabetos.
Alucinações tidas por pessoas que — já pela prim eira vez ou já
viciadas — recorrem a essa droga, nos depoimentos que me fizeram,
sempre salientaram a presença de uma cobra só ou de inúmeras, ema­
ranhadas como cordoalhas, coloridas, luminosas ou negras, serenas ou
agressivas.
A música, segundo afirmação de alguns amigos, contribui para que
esses sonhos ou mirações sejam mais belos, irreais, difusos ou de uma
nitidez indescritível.
Confissões intimistas, com mulheres e homens, na área onde está
localizado esse centro salientaram que a droga estimula as forças mais
incontrariáveis do erotismo.
Certas definições do culto dessa planta sacralizada, a ayahuasca
ou caapi, não bastam a uma identificação positiva do culto, em que
se misturam a fitolatria, o espiritismo e o esoterismo, com lábaros nas
demonstrações externas, nas quais aparecem corações estilizados e de
impressionante colorido, com inscrições à entrada principal e da cerca
enquadrando a capela e a casa do presidente, tais como FONTE DE
LUZ, AMOR, PAZ, UNIÃO, e até mesmo nos braços de uma Cruz, à
direita do portão principal.51*
51. C ontam -se v á ria s lendas e acidentes sobre essa c o b ra-p ap ag aio , atribuindo-se-lhe u m veneno sem
igual, segundo uns, e to ta lm e n te inócuo, segundo outros.
Com o nom e c ie n tífic o de B o th ro p s bilin ea tu s, o zoólogo Rodolfo von Ih e rin g e o m édico
A lfredo d a M a ta e x te rn a ra m opiniões d isco rd an tes q u a n to à sua periculosidade, esereyendo o
p rim e iro deles: “ V ive n a s m a ta s do E s p írito S a n to à A m azônia, de p re fe rê n c ia p e rto das ág u as.
T re p a em árv o re s e com o seu colorido se co nfunde com o v erde d a vegetação, é perigosíssim o
e n co n trá -la assim , à a ltu ra d a cab eça; felizm en te é r a r a ” . A lfredo d a M a ta escreve: “ P a ranan-boia:
cob ra verde. V id a a rb ó re a B o th ro p s in lin e a tu s, p e cu liar em m a ta s inun d áv eis do B rasil. C obra-
p a p ag a io . N ão é p eço n h en ta, a p e s a r d a c re n ç a g e ra l em c o n trá rio ” . V on Ih e rin g , descrevendo-a
(v e r o v erbete ja r a r a c a v e rd e ), assev era que, segundo A frâ n io A m aral, ela s e ria a A m a r i m boia,
isto é. Bos ca nina. A m bos os c ie n tista s, porém , são u n â n im e s n a su a id e n tific a ç ão taxonôm ica.
N o que con cern e à su a periculosidade, e n tre ta n to , b a sta considerarm os que ela p e rte n c e à
fa m ília Crotalidae e ao g ênero B o th ro p s que, com o L achesis, nos a p re se n ta m algum as dezenas
de re p re se n ta n te s, reco n h ecid am en te m o rtífe ra s.

140
Num poste colorido, encimado por uma cruz, intriga a figura de
pequeno barco, igualmente colorido, com uma bandeirinha à proa, cujo
campo é dominado por uma estrela.
Utilizando esse barco, os fiéis podem viajar até os invisíveis e
entender-se com eles, ou, do mesmo modo, com os Encantados. . .
Tudo o que se deseja, contudo, sempre há de obter-se através de
santo-dá-me, isto é, da ayahuasca.
Para conseguir pedaços do cipó, os fiéis, disso incumbidos, estão
obrigados a tomar banhos propiciatórios, banhos de descarga, odoríferos
ou mesmo fétidos, defumando-se a si próprio e defumando o terçado
com que se cortarão os necessários ao preparo da beberagem.
No preparo do sagrado estupefaciente empregam vasilhas apro­
priadas (de alumínio, estanho ou barro) e, machucando-se os pedaços
de cipó, de duas a três polegadas, nelas são os mesmos levados a
cozinhar, até que a água em que foram postos ganhe a densidade de
um xarope e uma coloração castanho-clara mais do que escura.
Essa beberagem, ritualisticamente absorvida, segundo me assegu­
rou o laboratorista aqui referido, leva os fiéis do santo-dá-me a concei­
tuar, filosoficamente: «que a carne não vale nada», «que os planos de
todo o Universo são conhecidos» e «que tudo quanto se vê é realidade».
O nome de ayahuasca, ou caapi, soga-da-morte ou liana-da-morte,
está ligado ao de jagubé, arbusto que se associa à decocção de que
resulta a beberagem mística.
Descoberta por Richard Spruce em sua viagem ao Vale do Rio
Negro, em 1853, no sítio Urubuquara (e não Urucu-cora como o Dr.
Ramón Pardal escreve), próximo à cachoeira de Ipanuré (e não Pa-
nuri), essa planta — e agora a beberagem ou bebida que com ela se
prepara e é consumida nas cidades e vilas do interior, bem como nas
capitais do Estado do Amazonas, na do Estado do Acre e na do Terri­
tório Federal de Rondônia —, essa planta polarizou o interesse não só
dos botânicos mas também dos etnólogos, sociólogos, psicólogos, psi­
quiatras, neuropatologistas e toxicólogos.
Um antropólogo, da estatura do Dr. Theodor Koch Grünberg, expe­
rimentou os efeitos da droga, como Spruce o fizera, tendo o seu acom­
panhante, apropriadamente, referido pelo Dr. Ramón Pardal, experi­
mentado «a visão de infinitas luminosidades, de vivas cores, acompa­
nhadas de flores vermelhas, dispostas em imagens geométricas. Seu
companheiro teve sonhos álacres com a aparição de pessoas do sexo
feminino».
Na evocação dos contatos, historicamente consignados, outras per­
sonalidades científicas aparecem (Bonpland, Martius, Weiss, Paul
Itivet), registrando as características morfológicas, a ação inebriante
dos seus alcalóides.
Caucheiros, seringueiros, madeireiros, garimpeiros e outros explo­
radores das riquezas naturais da Amazônia Brasileira (e, igualmente,
da peruana, boliviana, colombiana, equatoriana, venezuelana) conhecem
141
a prodigiosa propriedade de, com o auxílio mágico da telepatina conti­
da nesse vegetal, redescobrir os caminhos e rum ar seguramente para os
lugarejos donde se haviam lançado à Selva Selvagem.
Daí — por força dessa propriedade, principalmente — ser a
ayahuasca chamada, também, Yerba dei Cauchero.
O aproveitamento desse vegetal nos centros de religiosidade da
Amazônia, talvez por se conhecer que os pajés, ou medicine men, dela
se valem no exercício da sua medicina primitiva, não têm apenas na
Vila Ivonette (Cidade do Rio Branco, Estado do Acre) um dos seus
mais importantes e originais pontos de referência, mas foi na cidade
de Porto Velho, capital do Território Federal de Rondônia, que encon­
trei, como inovação no ritual mina-jeje, oriundo da Casa das Minas, o
uso da ayahuasca. E isso, sem dúvida, para estimular, paralelamente,
com os cânticos rituais e com a voz sagrada dos tambores, ogãs e gôs,
o estado de transe, a possessão que ligam os Voduns do panteão dao-
meano ou do ioruba às gonjais e noviches que os cultuam.
Páginas atrás, discorri acerca do chamado estado de transe —
estado tão complexo quanto mal ou incompletamente definido.
O terreiro era da mãe-de-santo, conhecida pela alcunha de Chica
Macaxeira.
Mostraram-me ali pedaços da ayahuasca, conhecida, também, po­
pularmente, como nos Vales dos rios Negro e Purus, pelo vocábulo
tupi cipó.
É claro que não pude identificar aqueles pedaços como de uma
Malpighiácea (à falta de folhas, frutos, raízes ou de outros elementos
indispensáveis a uma classificação científica) ou como fragmentos da
casca do tronco ou haste de acordo com as regras da moderna taxo-
nomia, sugeridas pelo botânico Corner, do Museu de Singapura.
Por essa razão não deixei de manifestar minha desconfiança de
que aqueles pedaços de cipó fossem da legítima ayahuasca.
No entanto — como me foi dado observar, naqueles vales, entre
índios e semicivilizados — logo duas ou três pessoas presentes secun­
daram a palavra da mãe-de-terreiro, afirmando: «É a ayahuasca. É.
E da verdadeira».
Aquele vegetal (ali também considerado sagrado, com extraordi­
nário poder de condutor ou deflagrador do estado de transe, da posses­
são mística) é utilizado no preparo de uma bebida, com as mesmas
características da que ingeri na capela da Vila Ivonette, episódio ci­
tado páginas atrás.
A descrição que me fizeram, naquele terreiro, do preparo dessa
bebida, corresponde, mais ou menos, à do centro de santo-dá-me, mas
fizeram mistério de outros ingredientes, vegetais ou mágicos, que, ne­
cessariamente, lhe associam.
No terreiro de Chica Macaxeira, em Porto Velho, é dado a essa
mistura o nome geral de doutrina da ayahuasca, cada cântico contendo

142
uma doutrina. 0 texto de muitos dos cânticos por mim recolhidos tem
origem no folclore profano e no religioso católico; também são repeti­
dos, porém estropiados, textos de cânticos em língua africana.
Nomes de santos católicos, nalguns desses cânticos, se misturam
com os dos Voduns mina-jejes, tais como Xangô, Badé, Avêrêquête, e
os ditos Barão de Goré, Sultão das Matas, Marangalá, Jatêpequare,
Tindarêrê etc.

XIII
Meditando sobre a utilização dessa droga no terreiro de Chica
Macaxeira, instalado para o culto dos Voduns do Panteão daomeano,
com evidente e constrangedora preocupação, fui levado a lembrar-me
de que, de acordo com as leis e a tradição do culto, na Casa das Minas,
não se encontraram ali notícias da utilização de estupefacientes trazidos
do Continente Africano ou de uso entre os indígenas do Brasil.
Sob o domínio dos Voduns, as noviches e gonjais, freqüentadoras
da Casa, nada bebem antes de entrar em transe; mas, depois das festas
profanas e até mesmo das religiosas, consomem bebidas tais como vinho
tinto, vinho do Porto, vinho Moscatel, conhaque e até cachaça.
Dois tipos de aluá, descritos no texto desta obra, continuam a
ser distribuídos generosamente, mas as bebidas com teor alcoólico o são
discretamente, não só à assistência, mas às gonjais e noviches.
Os tocadores dos huns, gôs e ogã, entretanto, não deixam de, por
vício ou estímulo, «bicorar uma cachacinha», «beber um trago dela»,
«tomar uma lam bada.. fazendo-o, entretanto, furtivamente.
Intriga-me que os escravos, trazidos para o Maranhão, não carre­
gassem consigo a técnica adotada, nos seus lugares de origem, para o
preparo de vinhos de palmeiras e de cervejas, à base de milho, arroz
sorgo, vinhos e cervejas de larga distribuição e mais largo consumo
no Continente Africano.
Os estudos sobre o alcoolismo, nos diferentes territórios da África
Oriental Francesa, realizados por E. Bismuth e C. Ménage, publicados
no Bulletin de 1’Institut Français d’Afrique Noire (vol. XXIII, nn. 1-2,
janeiro-abril de 1961), proporcionam à consideração valiosas informa­
ções a respeito das bebidas alcoólicas autóctones, cujo número contrasta
com a riqueza da alimentação africana.
Duas apenas — os vinhos de palmeiras e as cervejas de cereais
— foram apontadas numa carta ilustrativa, levantada para registrar a
predominância e a importância do consumo.
Os vinhos das palmeiras, no sul do Daomé, por exemplo, eram
extraídos abundantemente e quase consumidos, inteiramente, sob a for­
ma de álcool de palme; as espécies de palmeiras eram a Elaeis grinensis
•lacq., a Raphia P. Beauy e o Ronier Porassus flabellifer Linn., var.
Acthiopicum Warb.

143
/
0 chamado vinho de palmeira a óleo era a bebida por excelência
consumida desde o Golfo de Guiné, do Daomé à Costa do Marfim,
sendo a árvore abatida. Uma palmeira do Daomé fornece cerca de 60
litros e, na Costa do Marfim, 100 litros.
O vinho da pequena palmeira rafia é usado em quantidade menor
do que a produzida pela palmeira a óleo; o seu consumo abrange o
norte da Costa do Marfim e o norte do Daomé; o seu rendimento
é de 1 a 2 litros por dia, durante quinze dias, morrendo a árvore depois.
O vinho de ronier (os autores citados esclarecem) é o menos apre­
ciado dos vinhos de palmeiras.
O método de extração desses vinhos não mata a árvore.
Quanto às cervejas de cereais, feitas de milho miúdo «correspon­
dendo ao termo vernacular de dolo, em bambara, constituem a bebida
principal — e de longe — da savana animista».
As cervejas de cereais são feitas, além da que utiliza o milho pe­
queno, com sorgo; por essa razão, os autores do estudo a que me
estou referindo, em nota de pé de página, esclarecem: «Por comodi­
dade diremos sempre mil (milho pequeno), mas pode também tratar-se
de sorgo ou milho».
Vinhos de frutas (como as que os indígenas da Amazônia e, igual­
mente, os civilizados dessa região, costumam utilizar para o preparo
de algumas bebidas que, pela fermentação demorada, atingem elevado
teor alcoólico) são indicados pelos autores H. Bismuth e C. Ménage.
Não esqueceram eles o hidromel, assim se pronunciando:

O h id ro m el, com o a c e r v e ja de m ilh o, é u m a b eb id a da sa v a n a , m a s, s e


e le tem u m a e x te n s ã o g e o g r á fic a q u a se tão im p o r ta n te (a in d a que, em
c e r to s te r r itó r io s com o o N ig e r e o D a o m é e le te n h a o p a p el de c u r io si­
d a d e ), seu con su m o n ão a p r e se n ta n ad a d e c o m p a rá v el à c e r v e ja de m ilh o.
Com e fe ito , o h id ro m el era , a té b em pouco tem p o, u m a b eb id a r itu a lís tic a
e se u u so o rd in á rio reserv a d o aos c h e fe s.

E, mais adiante, esclarecem ainda:

S u a á 'ea de con su m o o cu p a u m a g r a n d e p a r te da s a v a n a a n im ista , com


u m a co n cen tra çã o n ítid a no o e ste v o lta ic o e no s u l-e ste su d a n ê s. A G uiné
m a r ítim a e a C a sa m a n ce o u sa m . S u a p rep a ra çã o co m p orta n u m ero sa s
r e c e ita s, sen d o o p rin c íp io , e v id e n te m e n te , o m esm o : a fe r m e n ta ç ã o de um a
so lu çã o de m el a p ó s d ilu içã o n ’á g u a q u en te.

Com a finalidade de excitação erótica, como se sabe, no Continente


Africano, inúmeras são as técnicas mágicas de que se servem os re­
presentantes das suas numerosas etnias, mas não sei nada a respeito
da utilização ali de estupefacientes, de drogas psicodélicas que con­
duzam também ao estado de transe, de possessão, como a ayahuasca,
sendo o uso do fumo e do rapé preferência dos feiticeiros.
John Mitchel e Maria Gerardin Breyer Brandwijik, in The
Medicinal and Poisonous Plants of Shouthern África, por exemplo, re-

144
gistram que os Zulus utilizam a Sphendamnocarpus pruriens Planch.,
Malpighian hair, chamada pupuma pelos Chopis; e esse mesmo povo
«usa a planta juntamente com a Securidaca longipedunculata Fresn
como um medicamento para a gente possuída por espíritos diabólicos».
Estudando os Macondes, de Moçambique, Jorge Dias e Margot Dias,
numa obra publicada pelo Centro de Estudos de Antropologia Cultural,
da Junta de Investigações do Ultramar (Lisboa 1964), dedicaram um
capítulo às bebidas fermentadas, dizendo que, «em geral, estas bebidas
são preparadas para determinadas festas rituais», mas no III volume,
onde a religião dos Macondes é estudada particularmente, não verifi­
quei se, com os escravos vindos para o Brasil da terra de Moçambique,
foram introduzidas plantas com as propriedades inebriantes e com o
poder de, como a ayahuasca, servir de condutor e deflagrador do estado
de transe ou de possessão. 52
No capítulo II, do II volume da referida obra, dedicada à alimen­
tação, ao tratar-se ali (p. 48) de estimulantes e narcóticos, os cien­
tistas portugueses escrevem:

A lém d as b eb id a s fe r m e n ta d a s, o M aconde u tiliz a o tab aco, q u er com a


fo r m a de fu m o , q u er com o ra p é p a r a ch eira r . T am b ém con h ecem p la n ta s
q u e, u tiliz a d a s com o ta b a co , prod u zem e sta d o s de e x c ita ç ã o e fa z e m p erd er
a razão. M as pode d iz e r -se que n en h u m M acon d e do p la n a lto fu m a h o je
e s ta s p la n ta s , co n h ecid a s p or chirima ou bangui, ou chamba, e q u e ju lg o
p ela d escrição serem u m a e sp é c ie de cân h am o.
C om p lem en tan d o a s in fo r m a ç õ e s a cim a , h á n u m a n o ta de p é de p á g in a , da
ob ra a q u i p o sta em ev id ên cia , p elo se u a lto v a lo r c ie n tífic o e a ad m iração
que v o to a o s se u s a u to r e s, e ste e sc la r e c im e n to : “N ã o se i se to d o s e ste s
n om es s e r e fe r e m à m esm a p la n ta . O bangui d eve se r o bango, esp écie de
cân h am o donde se e x tr a i o h a x ix e . G am ito, r e fe in d o -se a o s M a r a v e s, diz
que fu m a v a m bangue, a r b u sto se m e lh a n te ao cân h am o.

João Caryolla Tierno, em seu Dicionário Botânico, aponta o vo­


cábulo bango que aparece neste verbete: «Espécie de cânhamo indiano
de que se faz o haschich ou haxixe».
E dá os sinônimos: abnaga, bangue, cangonha, chambo, soruma.
E no verbete liamba, dizendo tratar-se de uma espécie de cânave,
registra os sinônimos: baseado, birra, cânhamo, diambra, erva, haschich,
haxixe, leamba, pango, riamba, soruma.

XIV
Com relação ao tabaco (fumo), há uma observação a registrar-se,
porque, com uma etiqueta especial, para os acender e para os usar, os
Voduns, na sua maioria, empunham um cachimbo, de cabeça de barro
TrÔH V oduns, que b aix am ou se m a n ife stam (como dizem os e sp írita s, e sp e c ia lm en te), n ã o fum am :
Ihtdá, e, do m esm o modo, a g e n te de Sobô e L oco; m as A vêrêq u ête, A b ê , A ja h u tó , fu m am ;
PôU -Boji, S en h o r de m in h a m ãe, f u m a v a .. .
O fum o, como Be vê, n ão d ev erá ser de uso im p e ra tiv o p a r a que eles baixem ou Be m anifestem .

145
/
cozido e longos taquaris, isto é, tubos de uma Euforbiácea — a Mabea
taquery Aubl., segundo Paul Le Cointe, que adianta mais: «os renovos
são ocos e têm nós muito espaçados; são utilizados para fabricar ca­
nudos de cachimbos».
Esses cachimbos não são individuais, quer dizer, não pertencem
particularmente a determinado Vodun, mas há os que preferem os de
tubo mais longo, cuja cabeça possa ser apoiada no chão.
De roda, sentados na sala de espera, da Casa Grande das Minas,
eles, entre uma e outra baforada de fumo, conversam em tom baixo,
discreto, quase ciciado.
Na África longínqua os seus ancestrais e, ainda hoje, os seus irmãos
fumavam assim, no interior ou à porta das suas barracas.
Tanto pelo valor do testemunho como pela abundância de porme­
nores ilustrativos, visando o assunto e a afirmativa acima, vou recorrer
às palavras dos antropólogos Jorge Dias e Margot Dias, quando, no seu
estudo sobre os Macondes de Moçambique, assim se manifestam:
O ta b a co é c u ltiv a d o p or a lg u n s , n a s b a ix a s , e d ep o is v en d id o, em fo lh a s
o u en ro la d o , à q u ele q u e o n ã o tem . F u m a -s e com o c ig a r r o em b ru lh ad o em
c e r ta s fo lh a s c o m b u stív e is, o u em cach im b o.
O cach im b o m a con d e é do tip o n a r g u ilé e c h a m a -se inyungwa. É com p osto
p or u m fo r n ilh o d e p a u -p r e to ou à s v e z e s d e p ed ra ( chiyeu ) , a d a p ta d o à
e x tr e m id a d e de u m bam b u . A o u tr a ex tr e m id a d e e s tá m e tid a n a p a r te
su p e r io r de um coco, on d e p e n e tr a v á r io s c e n tím e tr o s, de m a n e ir a a m er­
g u lh a r n a á g u a . D o o u tro lad o do coco, s a i o u tr o bam b u , p or on d e s e fu m a .
Os d o is b am b u s e stã o lig a d o s e n tr e s i p o r d u a s r ip a s do m esm o m a te r ia l,
q u e se r v e m p a r a d a r so lid ez ao co n ju n to e p a r a p e r m itir q u e o cach im b o
p o ss a m a n te r -se d e p é, ap oiad o no p ro lo n g a m en to d e ss a s d u a s r ip a s. D e n tr o
do coco e s tá a á g u à , e, com o o r e c ip ie n te é fe c h a d o , o fu m o a tr a v e s sa
sem p re a á g u a a n te s de s e r a sp ira d o p elo fu m a d o r. E s t e cach im b o é co­
le tiv o . C ostu m a e s ta r sem p re n a chitala, à d isp o siçã o de q u em q u ise r fu m a r .
Q uando a lg u é m o en ch e e fu m a , tir a u m a ou d u a s fu m a ç a s e p a s s a logo
ao v iz in h o . Só, à s v e z e s, c e r to s v e lh o s se dem oram m a is tem p o a fu m a r ,
q u an d o, d ep o is de o cach im b o te r dado a v o lta u m a ou d u a s v e z e s, n in g u é m
m a is o q u er. C om o c ig a r r o su ced e o m esm o. D e sd e q u e h a ja g e n te , o
q u e a cen d e o c ig a r r o p a ssa -o lo g o ao v iz in h o . Isto e v ita q u e a s p e sso a s
so fr a m a s c o n seq ü ên cia s n e fa s ta s do u so ex a g e r a d o do ta b a co . M u ita s v e z e s
o s M acon d es, q u an d o tê m u m c ig a r r o e e stã o só s, fu m a m u m pouco e
d ep ois e n te r r a m a p o n ta do c ig a r r o n a a r e ia , p a r a q u e se a p a g u e , e v o lta m
a fu m á -lo m a is ta rd e. S ão p o u c a s a s m u lh e r e s q u e fu m a m . S ó a q u e la s que
v iv e m m a is em c o n ta to com a g e n te do lito r a l ou da s e n z a la ; m a s a m a io r
p a r te d os r a p a z ito s j á fu m a , em b ora m u ito pouco, p orq u e a econ om ia r íg id a
d o M aconde n ão c h e g a m u ito p a r a v íc io s. M as n ão e x is te m p ro p ria m en te
r e g r a s m o r a is c o n tr a o u so do tab aco.

Paul Le Cointe, em Árvores e Plantas úteis da Amazônia Bra­


sileira, ocupando-se da liamba, além de dar-lhe a classificação de
Cannabis sativa var., indica liamba (Canabíneas), dizendo-a originária
da índia, e esclarece: «simples variedade do cânhamo europeu», regis­
trando os seus sinônimos: aliamba, diamba, birra, pango, fumo-de-
angola, stohi, maconha (Pernambuco).

146
Tratando de suas propriedades medicinais, escreve:
A s su m id a d es flo r id a s em p r e g a m -se p a r a d iv e r s a s p r e p a r a ç õ e s q u e p ro­
d u zem e fe ito n a rcó tico e p rovocam u m a c e r ta e m b ria g u ez v o lu p tu o sa , s e ­
g u id a , à s v e z e s, de v io le n ta e x c ita ç ã o e m esm o lo u cu ra fu r io sa . O ex tr a to
é con h ecid o p elo nom e de h a sch ich . N a A m a z ô n ia n ão é raro o u so d e sta
p la n ta m istu r a d a com o fu m o . C u ltu r a e com ércio sã o p r im itiv o s, m a s
fa z e m -se c la n d e stin a m e n te sem n e n h u m a r e p ressã o .

O médico Alfredo da Matta, apontando a liamba no campo botânico


regional, oferece mais esta contribuição, que não me parece excessiva,
nesta Nota.
E i-la :
C a n a b iá cea h e r b á c e a in d ia n a c u ltiv a d a . Cannabis sativa... P ro p ried a d e
h ip n ó tic a , e d a í seu fr e q ü e n te u so , tã o p e r ig o so a liá s , p e lo s p a jé s da A m a ­
z ô n ia , q u e, p a r a is to , m istu r a m -n a ao ta b a co (fu m o ) em c ig a r r ilh a s . E m ­
b r ia g u e z v o lu p tu o sa . N a r c ó tic o . Aliamba, birra, diamba, dirijo, fumo-de-
angola, maricaua-pango.

Apoiando-me nos autores, citados logo depois de Jorge Dias, posso


concluir que ao Negro escravo, procedente da África, não era estranha
a planta que identificam tão precisamente e, provavelmente, nela bus­
cavam lenitivo para os seus sofrimentos físicos e fácil evasão psíquica,
dentro da paisagem onírica, com matizações de vitrais e a presença
do personagens exibindo formas sedutoras de mulheres ou episódios
do ações heróicas e incruentas.
O agrônomo Francisco Iglesias, em sua obra Caatingas e Chapadões
( Hrasiliense, São Paulo 1912, 1919), dedicou um excelente capítulo ao
vício da diamba nos sertões nordestinos, com clubes de diambistas até,
cujos efeitos se patenteiam, justamente, no comportamento dos traba­
lhadores rurais e nas estatísticas de criminalidade.
Dele é a descrição do cachimbo que ali viu às mãos dos diambistas,
<(ue difere, tanto no material nele empregado como na forma, do ca­
chimbo dos Macondes (o inyungwa) a que me referirei mais adiante,
estudado por Jorge Dias e M argaret Dias.
Eis a descrição de Assis Iglesias:
O cach im b o : o m odo p r e d ile to é fu m a r a d iam b a no cach im b o, com o os
a fr ic a n o s o fa z ia m . O cach im b o n ã o é ig u a l ao em p regad o p elo s fu m a n te s
de tab aco. H á u m a ca b eça q u e rep rod u z u m a p eq u en a c a b a ça de c a p a c i­
d ad e, m a is ou m en os, de u m litr o , c u ja fo r m a s e p r e s ta ta n to p a r a
tr a n s fo r m á -lo n u m cach im b o. E is u m d os m a is u sa d o s: te m corpo q u a se
e sfé r ic o , h aven d o um e str a n g u la m e n to p a r a o lado a q u e se f i x a o p ed ú n cu lo
q u e co rresp o n d e ao can u d o do cach im b o. N o pólo de fo r m a e s fé r ic a ab re-se
um buraco de d iâm etro de a lg u n s c e n tím e tr o s on d e s e a d a p ta u m a p a ­
n e lin h a d e b arro em fo r m a de con e tru n ca d o com a b oca p a r a cim a , por
on d o se in tro d u z a d iam b a, no fu n d o h á u m b u raco. N a ex tr e m id a d e , onde
há o s in a l do p ed ú n cu lo, a b re-se um p equeno o r ifíc io . A cab eça é ch e ia
do á g u a a e n c o n tr a r o c a n o e c h u p a -se p elo o r ifíc io . A fu m a ç a a tr a v e s s a
a á g u a e v a i à boca do fu m a n te .

147
0 Dr. Alfredo Brandão, no seu livro Viçosa de Alagoas descreve
assim o cachimbo: «o cachimbo é de argila com cabaça cheia de água
onde o jato do fumo se resfria, antes de penetrar na boca do fumante».
O Estado do Pará recebeu Negros escravos através do Maranhão
e também diretamente.
A diamba, que lá tem sinônimos pitorescos, entre os quais o de
rêve d’or — um produto da perfum aria francesa, denunciando suas
relações com Caiena (Guiana Francesa) —, é usada pelos pescadores
de guri juba que, em suas típicas vigilengas, se aventuram em águas
da chamada Costa Negra do Amapá, domínio de ciclones e pororocas.
E esses mesmos sinônimos são comuns ao linguajar dos viradores-
de-terras, personagens de uma tragédia social, que se desenrola entre
homens simples e abúlicos, empregados na lavoura do tabaco e no
pastoreio, sobre a ribalta verde dos campos de Bragança, limítrofes com
terras do Maranhão.
Daí poder-se afirm ar que a origem das plantas da diamba, naqueles
Estados e naquele Território, está historicamente ligada à introdução
de Negros escravos que os seus colonizadores empregaram na lavoura,
no pastoreio e na pesca, em pleno regime colonial.
No entanto — voltando-me, após tão ampla digressão, ao tema do
emprego de um estupefaciente no ritual do culto mina-jeje dos Voduns
— posso afirm ar que, na Casa das Minas, de São Luís do Maranhão,
que freqüento desde os primeiros dias de minha infância, nunca me
constou sequer fossem as suas noviches levadas ao estado de transe
sob a ação excitante e alucinante, da diamba.
Minha mãe e minha tia Ida, pondo-me ao correr de fatos e prá­
ticas, relacionados com a tradição da Casa de Mãe Andresa Maria
e com as normas de proceder de suas filhas e filhos, não me ocultariam,
evidentemente, essa utilização e suas conseqüências, com vistas a atin­
girem o estado de transe, que a diamba poderia deflagrar.
Essa prática era corrente entre certos povos da África N eg ra.63
Acontece, porém, que noutros terreiros onde os Voduns mina-jejes
são cultuados já essa droga é utilizada com inocultável propósito de
atingir-se o estado de transe místico.53

53. E m sua o b ra B la ck E ro s (T he sexual custom s o f Á fric a fro m p re h isto ric tim es to th e p re s e n t


d a y ), edited by G eorge A llen a n d U n w in L td , G rap h ic Scoot, M ilão 1964 — B oris de
R achew iltz, seu a u to r, nos revela o seg u in te:
“A n o th e r society w hich uses E ro s in its in ic ia tio n cerem onies is th a t of th e Busw ezi of
T a n g a n y ik a . T he c an d id ate is d ru g g ed w ith a secret po tio n c o n ta in in g th e d ried an d pulverized
ro o t o f th e m u k a k a m a tre e ( G ym nosporia sp .) a n d m uteyu (Securidaka lo n g ip e d u n c u la ta ). The
p u rp o se o f such d ru g s is to p roduce a State o f tra n c e , so th a t th e c an d id ate c an be possessed
by one o f th e M asw esi sp irits. T he ritu a l place is f ir s t p u rifie d by a n o th e r m a g ic concoction
c o n ta in in g th e sex p a r ts o f a dead w itch (ish in o lye m ulozi)*’.
T rad u zo :
“ O u tra sociedade que u sa E ro s n a s cerim ô n ias de in ic ia çã o é a dos B usw esi de T a n g a n ic a.
O can d id ato é e n to rp ecid o com u m a sec re ta po ção d a ra iz seca e pu lv e riz a d a d a á rv o re k a k ak a m a
(G ym n o sp eria sp .) e m u te y u (S e cu rid a ka lo n g ip e d u n c u la ta ). A fin alid ad e de ta l d ro g a é p ro d u z ir
um estad o de tra n s e , de ta l m a n e ira que o c an d id ato possa ser possuído p o r um dos e sp írito s
M asw ezi. O local do r itu a l é p u rific ad o p rim e ira m e n te p o r o u tra m is tu ra contendo p a r te do
sexo do um fe itic e iro m o rto (ishino lye m u lo zi)**.

148
XV

Através do capítulo III da monografia A Casa das Minas, sob o


título «O gume e as festas», verifica-se que as datas «maiores» ou
«de deveres» coincidem, em estação e data mesmo, com as do calen­
dário da Igreja Católica e com o calendário civil.
Quer me parecer que, desde o período colonial, assim que os Negros
escravos puderam reunir-se e entender-se em assuntos de ordem social e
religiosa, convencionaram essa coincidência, para continuidade, conser­
vação e defesa dos seus legítimos sentimentos.
Festas dedicadas a um Vodun como Badé bem poderiam ser reali­
zadas no dia consagrado a São P e d ro ... e a dos Ibeji ou Meninos, na
data consagrada a Cosme e Damião, isto é, respectivamente, a 29 de
junho e a 28 de setembro.
Não obstante a sua significação religiosa, uma festa, tal a das
Meninas ou Sinhazinhas, na realidade, era consagrada às Tôbôssis ou
Tohossu, coincidindo com o Carnaval, dados os movimentos de alta
expressividade lúdica — de generosidade e de liberdade — que deveriam
ser os da tribo, como homens e mulheres, na faina dos campos, no
trabalho livre, e crianças nos seus jogos e estripulias inocentes, re­
partindo entre si doces e brinquedos, cantando e bailando.
Ora, no regime escravocrata, qualquer que seja a sociedade, sobre­
tudo nos moldes da que impuseram ao Negro no Brasil, e a que ca­
racterizava a senzala, manifestações de alegria e comunicabilidade,
entre classes diversificadas, jamais poderiam ser permitidas, a não ser
visando fins utilitários.
Imagine-se o cuidado, tanto quanto a habilidade, exigidos então
para ocultar, dissimular, distorcer as mais legítimas manifestações do
indivíduo e da coletividade, num ambiente cuja agressividade natural,
do meio em que viviam, era menor que a dos senhores e senhoras de
escravos, feitores e capitães-do-mato.
Em terras da África essas festas deveriam te r sido antecipadas por
aquelas ligadas ao nascimento, à imposição do nome, à circuncisão de
indivíduos, de ambos os sexos, entrados na puberdade ou antes desta.
E nenhuma estação se iniciaria, nos campos de atividade agrícola,
sem que a festejassem coletivamente, de acordo com a estrutura da
Iribo ou nação, com a sua mitologia e a sua história, a sua vinculação
nos ancestrais, aos deuses ou Voduns.
No Haiti, por exemplo, quer se leia Jacques Roumain, um ro­
mancista, Alfred Métraux, um etnólogo, e uma coreógrafa, Katherine
Duncan, fácil é verificar-se o vigor das sobrevivências negro-africanas
nli expressas pelo povo nas suas festas profanas e religiosas.
Parece que a pressão deformadora e desmoralizante, no que res­
peita à cultura, que caracteriza o colonialismo universal, se abateu ali
menos brutalmente do que no Brasil, ou os Negros escravos aplicaram

149 /
formas de reação, político-econômica, mais positivas do que entre nós,
para conservação dos elementos típicos do contexto cultural, trazidos
consigo no porão ou no tombadilho dos tumbeiros.
O fato é que, festejando o Vodun Azacá, que é para os haitianos
uma divindade das montanhas e dos campos — segundo o culto Radá-
Daomé — há oportunidade para se ver «os devotos possuídos por ele»,
enquanto dançam, curvam-se fazendo menção de plantar e mondar e
algumas vezes beijar o chão, em movimentos desengonçados e rudes
para melhor simbolizar a gente da montanha trabalhando nos campos.
E, na plenitude de sua vida livre, já hoje, nenhuma festa profana
haverá mais propícia à explosão da sua sensualidade que o Carnaval,
na qual, também, encontram oportunidade para homenagear os seus
Voduns ou Loas.
Quando as mulheres da Casa das Minas, antigamente, com jarras
e potes à cabeça ou aos ombros, iam apanhar água na Fonte do Apicum,
eram obrigatórios os passos de dança e os cânticos de texto africano,
alegres e comunicativos.54
O progresso urbanístico de São Luís transformou aquele local num
bairro residencial e instalou canos do Serviço d’Água no Bairro de São
Pantaleão, o que anulou a tradição a que obedeciam as mulheres na
apanha de água — esse elemento natural, de grande importância no
Culto dos Voduns mina-jejes.
Uma festa, com o mesmo simbolismo da que Negras baianas rea­
lizam na lavagem dos degraus e pavimento da Igreja do Bonfim, deve­
ria ser realizada quando as da Casa das Minas lavavam as jarras que,
no pégi, conservam a água e estão agrupadas ali segundo as famílias
dos Voduns.
Dela não ficou, entretanto, nem a tradição.
E lá mesmo muitas das festas, por exemplo, ao findar a iniciação
das filhas dos Voduns, pouco a pouco foram perdendo o esplendor e
simbolismo, sumarizando-se o período da reclusão das iniciadas para
a aprendizagem das leis e as normas requeridas na organização das
solenidades que, obrigatoriamente, se lhes seguia.
A chamada Festa de Pagamento, de incontestável originalidade e
munificência — quando os Voduns baixam, com o expresso fim de
recompensar os runtó, os tocadores de agogô e da gã — também teria
de sofrer limitações impostas pelas condições financeiras da Casa
Grande, mas, igualmente, dada a pressão das autoridades policiais,
pois em São Luís, como em Salvador, Recife e Belém, não deixaram
54. N a o b ra de A lfred M é tra u x L e H a iti, la terre, les h om m es e t les d ie u x , à p á g in a 70, eis a
que nos diz ele a re s p e ito d a d a n ça :
“ L a dan se e st in tim e m e n t associée au cu lte e t y occupe u n e place si essentielle q u ’on p o ü rr a it
p re sq u e d é fin ir le voudou com m e u n e “ relig io n d an sée” . Le ta m b o u r s u r lequel on b a t le ry th m e
des denses e st devenu e n quelque so rte le symbole m êm e du voudou, si b ie n que “ b a ttr e ta m b o u r’*
a p ris , d a n s le la n g a g e c o u ra n t, le sens de ‘céléb rer le culte des Zoa’” .
A tra d u ç ã o do te x to a c im a é a seg u in te:
“ A d a n ç a e stá in tim a m e n te associada ao culto e nele o cupa um lu g a r tã o essencial que se
p o d e ria quase d e fin ir o V odum como u m a “ relig ião d a n ç a d a ” . O ta m b o r, sobre o qual é
b a tid o o ritm o das d a n ç a s , se to rn o u , de q u alq u er modo, o sím bolo m esm o do V odum , de ta l
m a n e ira que “ b a te r ta m b o r” , n a lin g u ag em c o rre n te , s ig n ific a v a “ c eleb rar o culto dos Zoa” .

150
elas de exorbitar, truculenta e nefastamente, obedecendo estas a uma
técnica demagógica e, ao mesmo tempo, tirânica: não dando ao povo
pão e circo, mas deles o privando, ostensivamente, no que se ligava
ao culto dos Voduns.
Tema interessante para ser estudado comparativamente é o do
Negro e seus descendentes, no Brasil e nos Estados Unidos da Amé­
rica do Norte, recorrerem à Igreja Católica com finalidades tão di­
versas: os Negros escravos, em nosso País, fundando-lhe à sombra
as suas irmandades, hábil e astuta maneira de realizar o culto dos
Voduns e Orixás como se fizessem para os Santos da hagiologia ca­
tólica; e os Negros escravos do United e os seus descendentes, desde
que dominaram a estranha língua que lhes foi imposta, encontrarem
na Bíblia da Christianity inspiração para os textos dos seus cânticos,
dos seus spirituals e bines, mas com música, ritmo e melodia trans­
portados da África Eterna, herança dos antepassados e de sua
religiosidade.
James Weldon Johnson, em The History of the Spirituals, escreveu:

T h e m u s ic a l g e n iu s o f th e A fr ic a n h a s n o t becom e so g e n e r a lly reco g n ized


a s h is g e n iu s in sc u lp tu r e an d d e sig n , an d y e t h a s h a d a w id e in flu e n c e
on th e m u sic o f th e w o rld . 56

Em idênticas e trágicas situações em que se encontraram, os Negros


escravos dos Estados Unidos, como os que foram mandados para o
Hrasil Colônia, refugiaram-se no cristianismo.
E o resultado, ainda segundo James Weldon Johnson, foi:

. . . a body o f s o n g s v o ic in g a li th e ca r d in a l v ir tu e s o f C h r istia n ity —


p a tie n c e , to le r a n c e , love, f a it h an d h op e — th r o u g h a n e c e s s a r ily fo rm
o f p r im itiv e A fr ic a n m u sic. T h e N e g r o ta k e s co m p lete r e fu g e in C h r istia n ity ,
an d th e S p ir itu a ls w e r e lite r a lly fo r g e d o f so rro w in th e h e a t o f th e
r e lig io u s fe r v o r . 56

O Negro brasileiro (o escravo e seus descendentes), inteligente e


observador, viu que, sob a mesma sombra da Igreja Católica, se reu­
niam — embora com uma fé e sentimentos nem sempre bem definidos
— os seus senhores com os seus familiares.
Os escravos, acompanhando-os nos ofícios religiosos, desfilando
nas procissões e romarias, poderiam ser por eles considerados mais hu­
manamente, no que se enganaram não raras vezes, pois, como eles
próprios, careciam de uma fé verdadeiramente cristã, à falta de pre­
paro para a compreender.
M. "O gênio m u sical do a fric a n o n ão se to rn o u tã o g e ra lm e n te conhecido como o seu gênio em
«•Mcultura e desenho, e, contudo, ele tev e u m a la rg a in flu ên c ia sobre a m ú sica do m undo” .
Mi. " . . . um co n ju n to de c ân tico s vocalizou to d a s a s v irtu d e s c a rd ia is do c ristia n ism o : paciência,
to le râ n c ia, am o r, fó e e sp e ra n ç a, a tra v é s de u m a fo rm a n e ce ssa ria m e n te p rim itiv a d a m úsica
a fric a n a . O N e g ro en co n tro u um re fú g io com pleto n a c rista n d ad e , e os S p iritu a ls fo ra m lite ra l-
m cnto fo rjad o s de triste z a , ao calo r d a veem ência relig io sa” .

151
Aproveitaram, então, as exteriorizações da religião católica para
sobreviver com o próprio culto: o culto dos Voduns.67
Daí as suas Confrarias de São Benedito e N. Senhora do Rosário
dos Pretos, por exemplo, e os nomes desses santos escolhidos para os
filhos na pia batismal, de preferência aos que os seus antepassados
usavam.
Eis um tema que hei de reexaminar e analisar col tempo. . .

XVI

A importância e o número de festas, religiosas e profanas, realiza­


das na Casa das Minas, segundo o tradicional calendário ali obedecido,
exigiram, sem dúvida, o preparo de comidas e bebidas rituais, a ma­
tança de aves e quadrúpedes preferidos pelos Voduns.
Nunca me saíram da lembrança algumas dessas festas, quando eu
teria, mais ou menos, quatro anos de idade, principalmente dos qui­
tutes variados e apetitosos, dourados pelos condimentos, como o azeite
de dendê, ou avermelhados pela massa oleaginosa do urucu.
Não tenho (à parte as pipocas) recordação muito nítida das formas
dos doces, mas ainda não esqueci o sabor do aluá de milho torrado
e da gingibirra.
No texto desta obra enumerei as comidas-de-santo e descrevi o
preparo das mesmas.
Certas proibições, naturalmente ligadas a totens tribais ou a re­
ligiões arcaicas, são evidentes através da repulsa ou predileção, tanto
de aves e quadrúpedes, como de cereais e legumes, peixes e crustáceos,
quelônios e outros répteis.
Gilbert Charles-Picard, em sua obra Les religions de l’Afrique
antique (Collection fondée par M. René Grousset, de l’Académie
Française, Paris, Plon, 1954), obra composta, na opinião do seu pre-
faciador, Jérome Carcopino, «avee tan t de savoir et de pénétration», re­
vela que, entre as tradições romanas, ligadas a práticas religiosas da re­
mota gente da África, certos condenados, revestidos com o traje dos
sacerdotes ou das sacratae, eram substituídos por certos animais da
predileção desta ou daquela divindade.
O n p e u t a jo u te r (e s c r e v e G ilb ert C h a rles P ic a r d ) q u e le s a n im a u x q u i
se r v e n t à l ’e x é c u tio n so n t s o u v e n t le lio n e t le ta u r e a u , c ’e st-à -d ir e ,
p r écisém en t, le s a n im a u x a ttr ib u ts d e S a tu m e , e t q u e, d ’a p r è s L a cta n ce,
le s venationes é ta ie n t co n sa c r é e s à S a t u r n e .6857

57. P a u lo F re ire , em su a o b ra Pedagogia do O p rim id o (edição P a z e T e rra , 1974), p. 55, focalizou


u m dos m ais expressivos asp ecto s desse co m p o rtam ento, nos te rm o s seg u in tes: “ A té o m om ento
em que os “ opressos” n ão to m am conhecim ento d as razoes de seu estado de opressão, “ a ce ita m ” ,
fa ta listic a m e n te , a su a ex p lo ração . M ais a in d a , p ro v av elm en te assum em posições p assivas, alheados,
em re la ç ão à necessidade de su a p r ó p r ia lu ta p e la c o n q u ista d a liberdade e de su a afirm ação-
no m undo. N isto resid e a su a “ conivência” com o o p re sso r” .
68. “ Pode-se a c re s c e n ta r (escreve G ilbert C h arle s-P ic ard ) que os a n im a is u tilizados n a execução-
são, m u ita s vezes, o leão e o to u ro , isto é, p re c isa m e n te , os a n im a is a trib u íd o s a S a tu rn o , e-
que, de acordo com L actân cio , a s v en a tio n es e ra m c o n sa g ra d a s a S a tu rn o ” .

152
Não creio que essa substituição prevalecesse no culto que a gente
do Daomé votava aos seus Voduns.
E isto porque sacrifícios humanos — que por ocasião da morte de
um rei, quer por outra circunstância qualquer — ainda foram presen­
ciadas por inúmeros viajantes, missionários e aventureiros que circu­
lavam pelo Continente Africano ao tempo do comércio de escravos
para a Europa e para as Américas.
Quanto a proibições de consumo de animais e de vegetais, pode-se
referir o seguinte:
O carneiro não pode ser comido pelos que são fiéis ao culto dos
Voduns; a tartaruga também não pode ser consumida e o caranguejo,
igualmente; mas o camarão, que é proibido aos iogues, é consumido
em fritadas, arroz-de-cuxá, carurus, vatapás etc., etc.
A vinagreira, conhecida noutras áreas pela denominação popular
de azedinha, é bastante apreciada e consumida, quer — após cozimen­
to — misturada ao arroz, quer isoladamente; sua determinação cien­
tífica é Hibiscus sardarifera L., pertencendo à família das Malváceas.
Paul Le Cointe aponta essa planta com o nome também de azeda-
da-guiné.
No entanto, tão apreciada como é, não pode ser consumida em certa
fase do ano. E, anote-se, ela entra no preparo do famoso prato cha­
mado ARROZ-DE-CUXÁ, orgulho da culinária maranhense.
O gergelim ou zerzelim é uma planta da família das Pedaliáceas,
cientiíicamente chamada Sésamo indicum L., segundo os botânicos.
Das suas sementes, torradas e piladas, de sabor apreciadíssimo, é
que o referido prato maranhense ganha justo renome, proveniente do
seu já salientado sabor e inesquecível aroma.
Porções de sementes dessa planta, isoladamente ou associadas a
camarões secos e farinha, dita sum i, são levados a cozinhar, com boa
Itorção de folhas de vinagreira, cozidas à parte, antecipadamente.
Também é justo reconhecer-se que, dessa combinação requintadís-
sima, resultou o mérito de aludido prato regional, sempre acrescido se
0 consomem com a carne do peixe-pedra, peixe da família Hemulidae,
estudada pelo ictiólogo brasileiro Alípio de Miranda Ribeiro.
A carne do peixe-pedra é delicada e saborosa como a da
pescadinha.
O preto «que acontece», conforme expressão do acadêmico Odylo
Costa Filho, não pode ser comido, entretanto, pela gente da Casa das
Minas, durante o mês de maio, por motivos seguramente ligados ao
culto dos Voduns mina-jejes.
O óleo que se extrai das sementes da planta gergelim dá ao peixe
1rito um sabor que não se pode obter mesmo com os melhores azeites
do Portugal e Espanha.
Produto da indústria doméstica da gente maranhense, já não é,
porém, encontrado facilmente nos mercados de São Luís.

158
A João Cariolla Tierno devo a revelação de que, além de quatro
ou cinco nomes mais que lhe dão, o gergelim tem o de «alegria» e o
de «sésamo».
Eu disse que o caranguejo é um indesejável, por ser considerado
um tabu pela gente que cultua os Voduns, na Casa das Minas, o que
me foi confirmado, de maneira inesquecível.
A velha Philomena (Mãe Nena), Negra de origem cabinda —
quando, certa vez, eu lhe falei em comer esse crustáceo —, me reco­
mendou, num movimento impressionante, de verdadeiro terro r pânico:
«Não come, meu filho! Não come!»
Seu rosto ganhou uma expressão, tanto de terro r como de nojo,
que jamais esquecerei.
Cabritos eram sacrificados, antigamente, em número que atendesse
às homenagens aos Voduns e, igualmente, ao consumo dos filhos e das
filhas reunidos na Casa Grande.
O sangue desses caprinos regava o chão do pégi, numa especial
oferenda aos Voduns; estes, como os seus cultuadores, tinham prefe­
rência por determinados pedaços (morceaux du ro i).
As aves eram sacrificadas no pégi, torcendo-se-lhes o pescoço len­
tamente, de maneira a separar a cabeça e desarticular-se-lhes as pernas,
sendo os gestos acompanhados de um cântico de circunstância, profun­
damente triste em língua africana, e seguidos de passos de dança,
ficando o ambiente enevoado pela fumaça de defumadores.
Não vi na Casa das Minas, que, antes de ser abatido, o cabrito
fosse passeado pela sala contígua ao pégi, sendo do ritual que as
pessoas presentes lhe beijassem o lombo, como é de praxe no Bogã
de Mãe Valentina, na cidade de Salvador (Bahia).
Os runtós (tocadores de tambor, principalmente), banhados e de­
fumados, que não teriam tido contato sexual com mulher, conhecedores
de expressões propiciatórias e mágicas, em língua africana, eram incum­
bidos de sacrificar os quadrúpedes num ângulo do pégi, do terreiro, ou
gume.

XVII

Com o nome de «joio» (numa espécie de cerimônia propiciatória,


de grande importância no culto dos Voduns) se realizava a matança
de cabritos e de aves, pombos, galinhas, capotes ou galinhas-da-guiné,
também sendo disso incumbidas as mulheres, preferentemente as feitas,
isto é, as iniciadas, noviches e voduncis, conhecedoras do ritual dos
Voduns, que eram respeitados nessas circunstâncias.
Os tambores, durante o joio, eram vibrados, cerca de três dias.
Uma particularidade típica do joio era as mulheres, acocoradas
numa esteira, baterem na boca, fazendo menção de estar comendo.
Depois da matança, obrigatória nessa festa, vinha outra chamada
«nadopê».

154
As jarras (agôgé) só eram cheias de água, decorridos alguns dias.
A nadopê, festa que ocorre depois da joio, pode ser considerada
uma festa de encerramento; consiste nestas práticas:
I — Banho das jarras (agôgé) : na composição desse banho se
empregam folhas de pataqüera, da família das Escrofulariáceas, cien-
tificamente denominada Cenobea acoparioides Benth; manjerona, da
família das Labiadas, denominada Origanum majerona L.; catinga-de-
mulata, da família das Compostas, denominadas (pois são duas espé­
cies), respectivamente, Tanacetum vulgaris L. e Tanacetum balsamita L.
A prim eira dessas plantas, segundo Paul Le Cointe, é «emenagoga,
antelmíntica, abortiva, de uso perigoso».
A essas plantas associam-se sete folhas. Note-se a importância
(dentro do que já escrevi, páginas atrás) da numerologia no culto
dos Voduns.
II — Durante o preparo desse amassi algumas voduncis — de 2 a
6 — se conservam deitadas em esteiras; e as que, no interior do pégi,
foram encarregadas de banhar as jarras com esse amassi, se desin-
cumbem de tal tarefa elevando cânticos em língua africana (?), pe­
dindo desculpas aos Voduns por haver terminado a festa.
III — Surge, então, uma vodunci com uma garrafa de cachaça e
uma canequinha de barro, dando a cada uma das suas companheiras
um pouco dessa bebida, que é absorvida aos goles, pedindo-se, antes,
licença aos Voduns para o fazer. A distribuição da cachaça se faz
da direita para a esquerda, estando as voduncis ajoelhadas.
As canequinhas e a garrafa, depois, são postas diante dos Voduns
presentes.
IV — A seguir, vem uma feita que, munida de uma palmatória,
aplica leves bolos em cada uma das companheiras.
V — Deixando as esteiras — na sala-de-estar dos Voduns — saem
as voduncis, de colo nu, envoltas nas toalhas sagradas, e rumam para
o gume. Uma delas leva o alguidar com o amassi.
Já no gume, em frente à cajazeira sagrada, por tempo de idade,
isto é, contando o tempo desde que foram feitas, põem um pouco do
banho na cabeça, braços e seios.
VI — Nenhuma vodunci menstruada pode participar dessa
cerimônia.
Compreende-se que o nadojê como o joio são elementos prepa­
ratórios ou de festas maiores, festas de grande projeção litúrgica.
Uma descrição, mais rica de elementos, vai ser escrita para o
capítulo sobre religião, caso volte a concluir as pesquisas que iniciei
com vistas a um estudo do Negro maranhense.
Uma das voduncis da Casa das Minas me informou que, outrora,
nossas cerimônias, as voduncis, com o colo à mostra, tomando os seios
nas mãos em concha, faziam o gesto de os oferecer aos Voduns.

155
Particularidades de expressões, gestos, posições das feitas (vodun-
ci, tobôssi, gonjai) e mesmo das não-iniciadas, obedecem a um ritual
de origem secular, senão milenária.
Eis uma dessas particularidades:
Quando os Voduns nelas estavam incorporados, as vodunci se dei­
tavam nas esteiras, forradas, antigamente, com panos da Costa (d’Áfri­
ca) ; e o faziam ora sobre o flanco direito, ora sobre o flanco esquer­
do, conservando-se, nessa movimentação, rigorosamente 15 minutos,
sem pronunciar uma palavra.
Decorrido o tempo do ritual, uma das feitas se dirigia a cada
uma das mulheres, ali estendidas nas esteiras, cobertas da cabeça aos
pés, sem que nenhuma parte do corpo aparecesse, com esta imperativa
expressão: Cider! E isso até a arrancar do estado de transe. Em
seguida todas elas podiam levantar-se.
Durante essa fase do ritual mantinham ao pescoço os seus ro­
sários e guias. Então, uma outra feita aparecia com uma cuité (pe­
quena cuia) e uma outra maior, contendo água das jarras (agôgé),
dando um gole a cada uma.
Por ocasião da matança de cabritos e de outros animais, que,
depois de condimentados, deveriam ser oferecidos aos Voduns e às
pessoas presentes, na sala em que os mesmos se reuniam, ficavam
eles sentados, de maneira imponente ou à vontade, em cadeiras sagradas.
E, de vez em quando, entoavam cânticos, através de cujo texto,
patente, estariam solicitando autorização para que as feitas e os runtós
realizassem o abate dos animais propiciatórios.
Essas feitas, saindo, do pégi, com os cadáveres dos animais sa­
crificados, nas mãos sangrentas, os agitavam na direção dos Voduns
que, sacudindo a cabeça, demonstravam estar de acordo com o que
se realizara dentro das exigências das tradicionais leis do culto mina-
jeje.
Logo a seguir toda a carne dos animais sacrificados era levada
à cozinha, sendo condimentada e cozida em panelas de barro.

XVIII
Na tese de minha autoria, apresentada ao X Congresso de Geo­
grafia e História, sob o título Negros Escravos na Ilha de Marajó,
há uma referência a sacrifícios humanos que uma descendente de afri­
canos me fez.
Lê-se naquele trabalho:
P ro cu ra n d o con h ecer o q u e fic a r a d a s c r e n ç a s e p r á tic a s r e lig io s a s dos
N e g r o s e sc r a v o s só en c o n tr e i r a r a s, v a g a s e d e fo r m a d a s lem b ra n ça s. C erta
n o ite u m a d escen d en te de N e g r o s d e A n g o la m e con tou q u e, sen d o m oça,
su a a v ó , a fr ic a n a p u ra , lh e d escrev eu s a c r ifíc io s h u m a n o s r e a liza d o s n a
te r r a lo n g í n q u a ... S u sp en d ia m a v ítim a p e lo s p és e a sa n g r a v a m , pondo-

156
lh e sob a ca b eça u m a v a s ilh a . A a s s is tê n c ia d a n ç a v a -lh e em red or e ia
bebendo do sa n g u e q u e jo r r a v a . O s ta m b o res b a tia m so tu r n a m e n te pela
n o ite ad en tro.

Amância Evangelista Vianna, da Casa das Minas de São Luís,


•■m maio de 1970, me transmitiu uma tradição de sacrifícios humanos,
recolhida de uma Negra trazida, ainda meninota, como escrava, para
o Maranhão.
Mas os sacrifícios em oferenda aos Voduns não eram negros,
eram brancos; e o meio usado era o estrangulamento.
Torciam o pescoço da vítima, lentamente, e o mesmo faziam com
os braços e as pernas, não sabendo se assim procediam por piedade
ou requinte.
Os Negros, sacrificados pelos brancos, não sentiam dores porque
os Voduns neles se incorporavam, atenuando-lhes assim os sofrimentos.
Havia gente especializada nesses sacrifícios humanos.
Zomadone era o grande sacrificador dos animais que entravam
antigamente na alimentação dos Voduns.
Na Festa de Pagamento, em Casa das Minas, para agradecer aos
nintós, os Voduns, curvando-se para o chão, com as mãos espalma­
das sobre as têmporas, cantavam:

Ajautoi Agongone
Ajautoi ê siriã
Um lenço um lenço
para Gazé
Ajautoi ê siriã
Um lenço um lenço
para Gazé
Ajautoi ê siriã

Toi Açossi era festejado com a matança de um pombo branco à


Mombra da ginjeira que se eleva ao fundo do gume, ali na Casa
Crande das Minas.
E essa cerimônia era realizada, a portas fechadas, pois nenhum
estranho podia assistir a ela.
Não se batia tambor.
Nota-se no texto do cântico acima a palavra portuguesa lenço;
essa palavra em língua Mina é décio (ver: Obra Nova da Língua
<U ral de Mina, do Padre Antônio da Costa Peixoto, 1945).
Também, relativamente à preposição para, noutros cânticos que
recolhi, o mesmo se verifica.
É natural que se pergunte:
Como se fazia a distribuição das diversas peças dos animais aba-
lidos, das aves, principalmente?
Posso dar uma resposta parcial a essa pergunta; antes, porém,
vale a pena explicar-se o seguinte:

157
As aves devem ser de sexo oposto, por exemplo, um galo e uma
galinha.
Morta a ave, tiram-lhe as penas, cuidadosamente, e a levam para
a cozinha, onde a partem em duas bandas e em cruz; e cada banda
em quatro pedaços, daí resultando oito pedaços de cada banda.
À ave não se lhe retiram as unhas, cabeça e pele.
Em panela de barro, com bastante água, sem sal, mas, também,
com bastante pimenta-do-reino e alho, cozinha-se uma p arte; noutra
vasilha, depois de lavar-se uma vez apenas, juntam-se a essa segunda
parte pimenta-do-reino, em grãos inteiros, e uns pedaços do coração
do galo e da galinha, tendo-se feito o mesmo, anteriormente, com as
partes das aves postas na primeira vasilha.
Sente-se que, nessa técnica, de uma estranha culinária, há um
rito de purificação e outro de magia, atendendo-se às recomendações
impostas pelos Voduns.
Na distribuição desses pedaços do coração e do fígado, é de rigor
observar-se que só podem cair no prato das feitas e nunca no de uma
voduceri.
Note-se que os números 2, 4 e 8 aparecem na técnica de partir-se
o galo e a galinha.

XIX
Leio em Montserrat Palau Marti, a quem já citei, anteriormente,
com relação à importância da numerologia no culto dos Voduns, sobre
o número quatro, o seguinte:

II n e s ’a g it p a s ic i d ’u n n om b re p r o p r e m e n t sy m b o liq u e en c e se n s q u ’il
sem b le c o rresp o n d re o u f a ir e a llu sio n à d es m od es d’o r g a n is a tio n s te r r ito -
r ia le ou a d m in istr a tiv e . A u D a h o m ey , n o u s a v o n s c o n sta te u n e o r g a n is a tio n
q u a tr e p a r tite de l ’a r m é e ; i l en e s t d e m êm e a u B é n in o ü c e m ode
d ’o r g a n is a tio n e s t e x p lic ite d a n s la r e p r é se n ta tio n d e s “q u a tr e p ilie r s de
B é n in ” (q u i f ig u r e n t q u a tr e g r a n d s c h e f s ) . L e n om b re q u a tr e e s t a u s s i
en r a p p o r t a v ec 1’o r ie n ta tio n d a n s 1’e sp a c e e t le s p o in ts c a r d in a u x . S o u s
c e t a s p e c t n o u s le tr o u v o n s a ss o c ié a u R oi d e K e tu q u i f a i t d e s s ta tio n s
a u x q u a tr e p o in ts c a r d in a u x a u c o u r s de so n in itia tio n (s é jo u r d a n s le s
m a iso n s s p é c ia le s a u n ord , à l ’o u e st, à l ’e s t e t a u su d d e la v il le ) . L ors
de so n in tr o n isa tio n , le R oi d e D a h o m ey e s t c o if f é d’u n c h a p ea u à q u a tr e
p o in te s ( l e s c h a p e a u x m in is tr e s o n t tr o is p o in te s s e u le m e n t). 59

59. “ N ã o se t r a t a aq u i de u m n ú m ero p ro p ria m e n te sim bólico, no sentido que p a re c e co rresp o n d er


ou fa z e r alusão a m a n e ira s de o rg a n iz a çã o te rrito ria l ou a d m in is tra tiv a . N o D aom é verificam os
que ex iste u m a o rg a n iz a ç ã o q u a d rip a rtid a do ex ército ; o m esm o ocorrendo no B énin onde e sta
m a n e ira de o rg a n iz a çã o e s tá e x p líc ita n a ex p ressão “ os q u a tro p ila re s de B énin” (que re p re s e n ta
q u a tro g ra n d e s c h e fe s ). O n ú m e ro q u a tro está, ig u alm ente, relacionado com a o rie n ta ç ã o no
espaço e os q u a tro p o n to s card eais. Sob este a sp ecto n ó s o en co n tram o s associado ao re i de
K e tu que p a ssa a s e staçõ es n a s q u a tro p a rte s c ard ea is no curso de su a in ic ia çã o (descanso
n a s casas e sp eciais s itu a d a s ao n o rte , a este, a leste e ao sul d a c id a d e ). P o r ocasião d a sua
en tro n iz a çã o , o re i do D aom é o s te n ta um ch ap éu de q u a tro p o n ta s (os c h ap éu s dos m in istro s
tê m trê s p o n ta s som ente)

158
Quanto ao número oito, Palau Marti não o inclui na sua inter­
pretação da numerologia social ou religiosa da gente africana; não
6, certamente, um número válido como o seu múltiplo — dezesseis —
pelo menos no que respeita à organização militar na corte de Oyo
e ao sistema de Ifá, não tendo nenhuma relação com o rei.
O oito também não é um número válido como símbolo de caráter
religioso, mas é absolutamente impossível que, na técnica de espostejar
aves e quadrúpedes, esses números não tenham valimento, tal é o rigor
das leis, a profundeza dos mistérios que assim o determinam.
No entanto, a respeito do conteúdo esotérico ou mágico desses
números, nada, absolutamente nada, as filhas e filhos da Casa das
Minas me puderam esclarecer.
Ao conjunto de comidas e, igualmente, a uma festa do culto dos
Voduns, naquela Casa, é dado o nome de arruwmã, nome de origem
africana, informaram-me; porém ao meu ouvido pareceu de origem
árabe, pela sonoridade da sua estrutura lexicológica.
Entre os pratos típicos desse conjunto, em que são utilizados os
cereais, sobressaem os preparados com o milho e o feijão.
Com o milho branco fazem quilos e quilos de pipoca, segundo a
técnica seguinte: põe-se num caldeirão boa porção de areia do mar,
l»em lavada, alvinha e, nessa areia, são misturados grãos de milho.
Sob a ação do fogo, a areia é aquecida de tal maneira que, ao seu
intenso calor, possa to rrar os grãos de milho e transformá-los em
pipoca.
Uma colher de pau é usada para mexer e remexer a areia e os
grãos de milho.
Obtidas as pipocas, o conteúdo do caldeirão é derramado numa
peneira para as libertar da areia. As pipocas grandes são postas numa
lata e os grãos de milho, que não ficaram bem torrados, são levados
para um pilão e socados até que fiquem transformados em farinha,
que é passada num crivo. Põe-se, então, açúcar e mistura-se tudo
cuidadosamente.
Amância Evangelista Vianna, da Casa Grande das Minas — que
me deu essa descrição —, afirmou sentenciosamente: «É a melhor
comida que temos».
Com o feijão branco, de olho preto, é preparada outra comida.
Depois de ferventado e tendo-se posto sal, toda a quantidade de feijão,
destinada a essa comida, é darram ada num caldeirão para torrar, até
ficar tudo bem amarelinho, sinal de que está pronto para comer.
Com o chamado coco-da-praia ou como-manso, é preparada uma
outra comida, da seguinte maneira:
Quebra-se o coco em pedaços de uma polegada, ficando a carne
grudada à pele castanho-escura que reveste toda a carnadura (polpa)
do fruto. Os pedaços devem ser cortados, «bem fininho». Lava-se tudo,
cuidadosamente, e, a seguir, são os pedaços postos em água a que se

159
juntou um pouco de sal. Esses pedaços de coco, decorridos poucos
minutos, devem ser postos a escorrer uma hora, sendo derramados num
alguidar.
À proporção que — levado o alguidar ao fogo — os pedaços de
coco vão cozinhando, ganham uma cor preta e vão ficando torrados,
reduzido o volume de água, concorrendo para isso o óleo que é exudado
dos pedaços de coco.
Com as sementes do coco babaçu (Attalea speciosa, Orbignia
m artiniana), e classificação que vi pela prim eira vez no possivel­
mente esquecido Lebensbilder aus der Flora Brasiliens, do velho
Siegfried Decker, de São Leopoldo (Rio Grande do Sul), com as se­
mentes do coco babaçu, repito, também preparam um outro prato,
preferindo-se os filhos bem grandinhos (minuciou a minha informante).
Bem lavados, são eles postos na água, com pitadas de sal, ali fican­
do por algum tempo.
Em regular porção, os filhos das amêndoas do babaçu são, depois,
postos no fogo, em vasilha de barro, até que, torrados, fiquem bem
amarelinhos. Essas amêndoas de coco-babaçu, mais ricas de óleo do
que o chamado coco-da-praia ou coco-manso, assim torradas, ganham
um sabor e cheiro bastante agradáveis.
Nesse conjunto de pratos, à base de frutos, não entra carne de
animais, e tem o mesmo nome da festa arruãbã, para a qual eles
são preparados.
Também com o nome de azóori, na Casa das Minas, fazem um
outro prato, utilizando grão de milho, «companheiro» (numa expressão
da informante) das pipocas.
Todas essas comidas são depositadas no pégi, em mesa grande,
com as frutas seguintes: Bacuri, Platonia insignis M art.; Pitomna,
Talisia esculenta Rad.; e outras frutas duras, particularizou a
informante.
Ao conjunto aqui descrito também dão o nome de carga.

XX

No estudo do culto dos Voduns mina-jejes requer atenção espe­


cial um assunto inquietante, um tema de inevitável fascinação: a
magia. 60
60. J á tiv e a o p o rtu n id ad e de c ita r n e s ta o b ra o eru d ito e sc rito r m in e iro W ald em a r de A lm eida
B arbosa. Ao t r a t a r do te m a m a g ia , o fa ç o com especial satisfa ç ã o .
O h isto ria d o r inglês C. R. B oxer s a lie n ta ra em su a o b ra A Idade do Ouro*- n o B rasil a cau sa
fu n d a m e n ta l d a p re p o n d e râ n c ia dos M in as e n tre os dem ais escravos a fric a n o s em pregados em
ativ id ad es de m in e ra ç ão , sobretudo d a do ouro.
D a í escrev er W ald em a r de A lm eida B arb o sa:
“ Segundo o m esm o h is to ria d o r inglês, essa p re fe rê n c ia pelos M in as se dev ia não só ao fa to de
serem m a is fo rtes, m a is vigorosos, como p o rq u e a cred itav a m te re m eles u m poder quase m ágico
p a ra desco b rir ouro.
E ssa o p in ião de Boxer se deve àq u ela conhecida c a r ta do G overnador do R io de J a n e iro , Lufg
V a ia M onteiro, de 5 de ju lh o de 1726, n a q ual in fo rm a v a a S. M. que os N egros m in a s são
“ os de m a io r re p u ta ç ã o p a r a aquele tra b a lh o , dizendo os m in e iro s que são m ais fo rtes e m ais
vigorosos, m as eu en ten d o que a d q u irira m aquela re p u ta ç ã o p o r serem tidos como feiticeiro s

160
Lidando com índios e Negros (que Lévi-Bruhl logo incluiria ontn
tipos humanos de mentalidade primitiva e Claude Lévi-Strauss, em lan
dos caracteres excepcionais do seu pensamento selvagem, também log<
neles apoiaria a sua teoria estruturalista) sempre procurei surpreende
u capacidade que lhes pode ser atribuida de utilizar, como bem o enten
dam, as chamadas leis de similaridade e de contágio: Law of similariti
Law of Contact or Contagiou.
Mas, lendo Bronislaw Malinowski, que interligou a magia, a ciênci;
o n religião num mesmo campo — a antropologia —, compreendi que
como ele — daí a grandeza da sua obra —, eu teria de entrar en
contato mais afetivo, e, portanto, mais íntimo, com o ser humano, pas
M.indo deste para o livro e, em seguida, volvendo a ele, na mesm;
atitude de análise e de admiração.
Já por intermédio de minha mãe, já por intermédio de minha ti;
Ida, já por intermédio de filiadas à Casa das Minas, apurei que al
não se exercia a magia, identificada, vulgarmente, por magia branci
c magia negra, ou, simplesmente e arbitrariamente, pela denominaçã<
do feitiçaria.
N arrativas de episódios ali sucedidos, nos primeiros dias de exis
lòucia daquela Casa, me levaram a concluir que certas curas e favo
res cabiam mais aos próprios Voduns do que às faculdades excepcio
nais das velhas mães ou nochês, herdadas ou adquiridas dos inicia
dores do culto mina-jeje.
Eles, só eles tinham poderes sobrenaturais, forças criptopsíquicas
duma excepcional dinâmica, capazes de objetivar benefícios suplica
dos e anular malefícios tidos como incontroláveis ou deflagrá-lo:
fulminantemente.
Processos mágicos, de encantamento ou de transmissão de dote:
rxlcaordinários de fascinação sexual; uso de amuletos (gris-gris), ora
ções e esconjuros não me parece que fossem ignorados das mães-de
mm to da Casa das Minas.
E seriam oriundos, a meu ver, mais da Península Ibérica, de Por
tugal e de Espanha, e não apenas do Continente Africano, do sei
litoral e da sua hinterlândia.
Viajando pela Bolívia e pelo Peru, observei idêntico fenômem
cultural, transmissão de práticas de magia (de uso de amuletos i
orações, naqueles países), mas, naturalmente, já associados às que eran
do domínio da indiada do altiplano andino.
Em São Luís, é claro, bem menores são os aspectos do comércii
c do uso de plantas mágicas e outros produtos naturais que vi flores
rendo nas feiras de La Paz e de Huancayo, onde era inigualável i
«I têm in tro d u zid o o diabo, que só eles descobrem ou ro e, pe la m esm a cau sa, não h á m inelr
*|u«f possa v iv e r sem u m a N e g ra m in a, dizendo que só com elas têm fo r tu n a ” .
irtlOt a essa tra d iç ã o , possivelm ente, tam bém em São L uís se a trib u ir ia às m in e ira s d a C hh
d« M ãe A n d re sa M aria, e a ela m esm a, o em prego de p rá tic a s m ágicas, benévolas e malóvolai
tra d iç ã o quo a té hoje ali p e rd u ra ” .16

16
/
ostentação de cascas, frutos, sementes, raízes, folhas secas ao sol ou
de infusão no álcool. Ali apareciam excrementos, dentes, chifres, peles,
vértebras de aves, de quadrúpedes e répteis. E fetos, secos ao calor
de braseiros, tinham elementos mágicos na sua contextura, tal a da
lhama, que «deve ser enterrada nos fundamentos de uma barraca ou
casa em construção, para que ali se viva feliz».
Ligados, naturalmente, ao culto dos Voduns, na Casa das Minas,
de São Luís, se faziam despachos, antes para benefícios dos seus filhos
e filhas, para afastar influências nefastas ou enfermidades em pers­
pectiva, do que para causar mal a este ou àquele indivíduo.
O uso de rosário, ou de guia, — o primeiro nada se parecendo
com o rosário de uso entre os fiéis católicos e o segundo mais se
parecendo com um gris-gris, tipicamente africano —, mantido inalte-
ravelmente, tem contas de cor ou de cores, alternadas, da predileção
dos Voduns, ou contem substâncias de extraordinária irradiação mágica.
E: só por si bastam para defender quem o usa, visto haver sido
banhado (o rosário) num amassi, defumado (o segundo) ao calor e
perfume de certas resinas e fragmentos de cascas de árvores, odorí-
feras e inebriantes, delas ganhando as propriedades, os valores má­
gicos ou sagrados.
Perseguições policiais e imputações infundadas, partindo de gente
ingorante e estranha à finalidade do culto dos Voduns, deveriam dar
origem à desconfiança e delações mesmo contra as Negras minas da
Casa de Mãe Andresa Maria, imputando-se-lhes a prática de feitiçaria.
Foi, possivelmente, por lhe haver chegado aos ouvidos notícias da­
queles atos das autoridades locais e da maledicência tradicional dos mo­
radores de São Luís, que o escritor espanhol Álvaro de Las Casas
sofreu ali uma confrangedora decepção.
Em sua obra Na Labareda dos Trópicos (Editora A Noite S/A,
Rio de Janeiro) se encontra a página seguinte (65-66) :

N u m d os b a ir r o s p ob res, v is ite i u m a c a sa de M in a s; em M aran h ão h á


a lg u m a s f a m ília s de cor e sã o ch a m a d a s M in a s, lem b ran d o a su a o r ig e m
a fr ic a n a . B om é sa b e r q u e n a r a ç a n e g r a h á ta m b ém c la s s e s so c ia is e
lin h a g e n s q u e s e ju lg a m de a sc e n d ê n c ia n obre. A s g e n e a lo g ia s ch am am -se
linhas, e a ss im o u v im o s d izer com o r g u lh o :
— N ó s som os de lin h a E cu m , e n ão n o s m istu r a m o s; n o sso filh o João
ca so u n a lin h a E b o im e m u ito s rem o rso s o a f l ig e m . . .
P o is b em : a s lin h a s m a is a r is to c r á tic a s q u e e stã o no B r a s il v iv e m no
M aran h ão.
A c a sa q u e eu v is ite i, g r a n d e , a b a sta d a , m u ito lim p a e a r r a n ja d a é d as
m a is d is tin ta s . H a b ita -a a se n h o r a A n d r é ia com q u a tro filh o s e v á r io s
n eto s. A se n h o r a A n d r é ia p a rece q u e n ã o g o s ta d e e str a n h o s, m a s é h o s­
p ita le ir a q u an d o s e lh e e n tr a p e la s p o r ta s a d en tro. V is ite i-a em com p a­
n h ia do D r. T a r q u ín io F ilh o , q u e f r u i n a cid a d e de g r a n d e p r e stíg io , e
e la d e sfe z -se em a te n ç õ e s p a r a con osco. P a ssa m o s ao te r r e ir o , on d e s e c e ­
leb ram a s d a n ç a s n a s n o ite s c o n sa g r a d a s, d a n ç a s litú r g ic a s q u e duram
tr ê s a q u a tr o d ia s. A q u i e s tá o ru m , o g r a n d e tam b or r itu a l, e o a rq u id iv i
com q u e s e b a te o ogã, o sin o de fe r r o q u e dá so n s a p a v o r a n te s : Ebó-

162
Bodúm é o d eu s, e Eban c h a m a -se o g u ia q u e in ic ia o s n e ó fito s. À aom hra
de um cróton , d ocem en te v erm elh o e tr is te , p a le str a m o s a m ig a v e lm e n te r
sa b o rea m o s u n s d elicio so s sa p o tis, tã o g o sto so s com o n u n c a com i ou tros.
— A sen h o ra a d iv in h a o fu tu r o ? , p e r g u n te i-lh e com a lg o de im p ertin ên cia .
— E s ta n ão é c a s a d e fe itiç a r ia , resp on d eu -m e a v e lh a com d ign id ad e.
V iv e m o s de acordo com o s n o sso s h á b ito s e c o n tin u a m o s o c u lto dos n o sso s
a n te p a s sa d o s. N ã o fa z e m o s m a l a n in g u é m , n em to m a m o s c o n ta d a s v id a s
a lh e ia s.
F iq u e i en v erg o n h a d o . A liç ã o p r o v a v a , d em a sia d a m e n te , ta n to a su a g e n ­
tile z a com o a m in h a irr e v e r ê n c ia .

No texto acima Álvaro de Las Casas comete vários erros, a co­


meçar pelo nome da Senhora Dona da Casa das Minas, chamando-a
Andréia.
Mas, mesmo assim, reconheçamos que nessa página, além da lição
que ele recebeu, fica patente que na Casa dos Voduns mina-jejes, não
se cuidava de feitiçaria.

XXI
Mãe Andresa Maria, numa das conversações que com ele mantive,
nos seus últimos dias de vida, se referia a um jogo, com sementes de
dendezeiro, que Legbá ensinara a um feiticeiro (Fa) 61, limitando-se a
dizer que a história. .. era muito longa.
Em 1943, nas colunas da revista O Mundo Português (m 99,
março de 1942, vol. IX, p. 139-144), li um trabalho, de Edmundo Corrêa
Lopes, intitulado «O Kpóli de Mãe Andresa». Só, então, pude com­
preender por que Póli-Boji aparecia nessa história.
Transcrevo quanto me foi dado aprender através do que escreveu
aquele amigo:

C ada h om em , fa m ília , a ld e ia , n a çã o , e stã o , por to d a a v id a , n a d ep en d ên cia


de um e sp ír ito . S ã o e s s e s e s p ír ito s tu te la r e s q u e p resid em a o s d e stin o s dos
h om en s, que se ch am am Kpólis (J a c q u e s B e r th o ). A n oção de Kpóli é
in é d ita n a lite r a tu r a b r a sile ir a , p elo m en o s n a ob ra r e p r e se n ta tiv a dos
e stu d io so s d a raça a fr ic a n a . C onheço a p e n a s u m a c a sa , q u e p o d ia re p u ta r
ú n ic a , em q u e h á in v o c a ç õ e s a Kpóli, c a p a z de s e reco n h ecer d ireta m en te.
N o te r r e ir o je je da cid a d e de S ã o L u ís do M a ra n h ã o a s filhas serv em a
f ig u r a s do p a n te ã o daom ean o com in te ir a c a n d u ra p a n te ís ta , e só a M ão
c u ltu a , n ão s e i de q u e m odo, n em com q u e co n sciên cia , P óli-B ajd. O p a n teã o
je j e é p a r a o s in v e s tig a d o r e s d e c u lto s a fr ic a n o s u m a c o isa o b scu ra e
co m p lica d a , m a s u m a f ig u r a com se m e lh a n te n om e lo g o s e d e n u n c ia com o
u m in tr u so e n tr e o s d em a is V o d u n s (B a d é e S ô b ô ). P ó li-B o ji é o K p ó li-B o ji *

*11. N o L éxico Que R o g er B astid e ju n to u ao fim de sua o b ra L e s religions a fric a in es a u Brésil,


a p arec e F a como “ dieu de ia d iv in a tio n ” . D eus d a ad iv in h ação . E só.
M as H ersk o v its, n a s N a rr a tiv a s D aom eanas, aq u i j á re fe rid a s, escreve: “ F á , c u lt o f divin atio n ,
p erso n ified a s p rin c ip ie o f fo rtu n e, destiny, m a ste r o f L egbá” .
Q uanto a Kpoii, o p rim e iro a u to r escreve: “ P e tit sac d ’é to ffe b lanche oü se tro u v e contenuo,
nveo des feuilles sacréc», ia po u ssière oü a été tra c é le nom du dieu révélé p a r ia devination,
Vodou p e rso n n el du c o n su lta n t” .
E H e rsk o v its diz do K poii: "M o th er o f M in o n a an d A ovi, p rin c ip ie o f d iv in a tio n com plex” .

1611
e e s t á tu d o ex p lic a d o , ex c e to a id en tid a d e do nom e q u e eu n ão co n sig o
s a b e r s e e stá estro p ia d o ou n ão. T am b ém Kpóli sã o filh o s “do m esm o
p a i e d a m e sm a m ã e ” (J a c q u e s B e r th o ) inferiores ao Deus Criador. M aw u
O lis s a , o S e n h o r do B o n fim , n a B a h ia , d u vid oso no M a ra n h ã o , n ã o será
u m a sim p le s c o rru p çã o de “O r ix á ”, ta n to m a is q u e o d ia le to je je su b s titu i
o l p elo r?

Graças à leitura do trabalho de Edmundo Correia Lopes, pesquisa­


dor português de indiscutíveis méritos, no que se refere à etnologia, à
história, à geografia de certas áreas da África e, mui especialmente,
à técnica de coletar na Bahia e no Maranhão cânticos e músicas dos
cultos dos Orixás e dos Voduns, graças a essa leitura, reafirmo, pude
compreender o significado e função do jogo, em que se empregam se­
mentes da palmeira dendezeiro, na sua relação com os espíritos tute-
lares chamados Kpóli.
O número das sementes (32), duplo de dezesseis, de importância
na numerologia (14) e (4), bem como as colunas (4) e as linhas (4),
além de a mostrarem numa iniciação, também revelam a finalidade
do jogo, cujo movimento, de apanha rápida, é com a mão direita e
de um golpe só, conseguindo-se, desse modo, prever e adivinhar su­
cessos benéficos ou maléficos.
Na Amazônia a meninada pratica um jogo (idêntico em seus mo­
vimentos, embora sem nenhum sentido cabalístico) chamado bole-bole,
no qual empregam pedrinhas e sementes, igualmente, numa competi­
ção que consiste em atirar punhados delas ao ar, recebê-las na costa
da mão, e, com essas, ir comendo (isto é, apanhando, como no jogo
de damas) as pedras propositadamente espalhadas no chão, nisso emu-
lando com os parceiros.
De onde se originaria essa criação lúdica do gênio das crianças
daquela região e de outras, talvez, do Brasil?
Que lexicógrafo registrará essa denominação (bole-bole) de um
jogo tão interessante?
E que folclorista?
M as. . . continuando, impõe-se registrar aqui, na opinião de Edmun­
do Correia Lopes, o que ele nos adianta mais a respeito dos Kpólis:

N in a R o d r ig u e s p r e ss e n tiu q u a lq u er c o is a da g e n e a lo g ia d os K p ó lis sem


o s con h ecer. O que e le v iu n a B a h ia f o i o Legbá id e n tific a d o com o Exu
n a g ô : h a v ia a fir m a d o , n o Animismo, que a r e lig iã o io ru b a n a e s ta v a em
v é sp e r a d e se c o n s titu ir no d u a lism o do b em ( Obatalá) e do m a l ( Elegbá
o u Exu). Elegbá e Elegbara sã o Ioru b a, N a g ô com o d izem o s b a ia n o s, e
o s fr a n c e s e s c h a m a m a o s q u e c o n stitu e m g r a n d e p a r te da p o p u lação do
D a o m é (B a r th o ) . A c iê n c ia do Ifá é r e a lm e n te io ru b a n a . A p resen ça
d e la n o D aom é é o caso de u m a a d a p ta ç ã o r e s u lta n te do sin c r e tism o que
te r ia a im a g e m n a lín g u a li t ú r g ic a : c a d a K p óli m a io r e m en or te m a
se n te n ç a , o r á c u lo s in s tá v e is donde o v a tic ín io su r g e ; a s s e n te n ç a s são u m a
m is tu r a de je j e (n a g ô p a r te de r e in c id ê n c ia ) e fô (u m a e o u tr a são
E w é ) com a lg u m a s p a la v r a s d e n a g ô (B a r th o ) . A fu s ã o d a c r e n ç a je je -
n a g ô já s e h a v ia dado n a Á fr ic a a n te s de se v e r if ic a r no B r a sil. M as o

164
le g b á é “fé tic h e ” (B a r th o ) dum K p óli, m on tad o — com o dizem niiqii<'li<
a ss e n to on d e receb e o s a c r i f í c i o . . . Q uando u m hom em m an d a e r ig ir o
le g b á do seu K p óli, q u a se sem p re m an d a e r ig ir tam b ém , p a r a ca d a unia
d a s s u a s m u lh e r e s e filh o s , u m le g b á fe m in in o , o m esm o K p óli. Só a fo rm a
da e s tá tu a é q u e v a r ia (B a r th o ) . T o d a s e s ta s in fo r m a ç õ e s d arão m u ito
q u e p e n sa r a o s in v e s tig a d o r e s b r a sile ir o s e fa r -lh e s-ã o tir a r cu r io sa s con ­
seq ü ên cia s. Q u eria fa z e r -lh e s u m a a p r e se n ta ç ã o m a is co m p leta do K póli da
S ra . A n d r e sa , se c o n se g u isse v islu m b r a r -lh e o n om e. Q u an to à S ra . A n d rcsa
M a ria , lá tiv e a h on ra d e a a p r e se n ta r n a Revista do Brasil e aqui em
O Mundo Português a p ro p ó sito da fito la t r ia q u e ta m b ém no seu te r r e ir o
da R u a S ão P a n ta le ã o com o v iz in h o te r r e ir o de N a g ô (R u a dos N a g ô s )
e o s te r r e ir o s da B a h ia , de v á r ia s s e ita s . A p eq u en a c iê n c ia do I fá tem
rela ç ã o com com u n s c u lto s fito lá tr ic o s . N in a R o d r ig u e s diz a té q u e lhe
p a r e c e “p r io r ita r ia m e n te não te r sid o I f á m a is q u e o fe tic h e (p a sso o
te r m o ) do d en d ezeiro ” (op. cit., p. 3 3 7 ). M ãe A n d r e sa M aria, a p r e se n te i-a
no a r tig o de P o r t u g a l. . .
F a le i, sim , de E u g ê n ia A n a S a n to s, flo r da c iv iliz a ç ã o b a ia n a que, por
u m a c a r ta , acabo d e sa b er q u e e s ta v a n a ylu ylu (te r r a da v id a ) — Á fr ic a
— , n e ss a Á fr ic a unde nefas redire quemquam, a p obre A n in h a . S ob re a
M u sa da F a c u ld a d e de M ed icin a da B a h ia — n ã o in s p ir a d o r a d a c iên cia
m éd ica , m a s de a çõ es c a r ita tiv a s — recom endo ao le ito r a s p á g in a s em o­
tiv a s do rom an ce de J o r g e A m ad o Capitães de Areia. N ã o m en o s q u e a
A n in h a d e S ã o G onçalo, com o p r e stíg io dos s e u s d o tes de coração e, o
q u e m a is p o sso c e r tific a r , são d ig n a s de h o m en a g em e tn o g r á fic a o s ca ­
b elo s b ra n co s de M ãe A n d r e sa n a c h e fia do te r r e ir o se c u la r do M aran h ão.
T am b ém p e sso a lm e n te lh e sou d eved or de a fe iç ã o e r e sp e ito , m a s o que
a v u lta é o seu p a p el j á sim b ólico de d e p o sitá r ia do leg a d o m a is com ­
p r e e n siv o , a in d a q u e ta lv e z m a is d esm a n tela d o , da c u ltu r a a fr ic a n a no
B r a sil. P e la riq u eza e p u reza d a s tr a d iç õ e s r e lig io s a s, p e la e le v a ç ã o in com ­
p a r á v e l d a s m elo d ia s e e x u b e r â n c ia r ítm ic a , e a té p e la p esso a da v e lh a , o
m a is com p osto e d ign o elem en to m in a , o te r r e ir o da R u a S ã o P a n ta le ã o
é um te r r e ir o bem d istin to . M as n ã o s e ju lg u e q u e isto é fa la r .

Não poderia deixar de transcrever esta página de Edmundo Cor­


reia Lopes, visto que só ele e Roger Bastide, visitando a Casa das Minas,
emitiram, com autoridade, opiniões tão indestrutíveis sobre a pessoa,
simples, digna e incomparável de Mãe Andresa Maria, a Bem-Bem, da
intimidade e do carinho que suas filhas e filhos lhe tributavam.
O citado escritor português, quando adianta que Mãe Andresa era
dona de um Kpóli, logo dá a entender que esse espírito só podia ser
Póli-Boji, da Família Dambirá, mas, vivendo entre a gente iorubana
ou ioruba. A esse espírito estavam ligadas, além de Mãe Andresa Maria,
minha mãe, Felicidade Nunes Pereira, Philomena, Zaire e Laura —
Iodas feitas, isto é, iniciadas segundo as leis da Casa mina-jeje.
Como se viu, Edmundo Corrêa Lopes salientou a importância do
culto dendrolátrico (fitolatria?) que a gente dali tributava aos espíritos
das árvores.
A presença da Cajazeira (o vegetal de porte mais elevado que se
encontra) no gume da Casa das Minas e o que escrevi, páginas atrás,
dão base inabalável à afirmativa do autor da obra A Escravatura, obra
que nenhum estudioso dos cultos afro-brasileiros pode ignorar, tal a
riqueza de informações colhidas em África e Portugal.

16Õ
Escrevendo a respeito da prim eira edição da presente obra, na
revista luso-brasileira Atlântico, Edmundo Correia Lopes ainda focali­
zou o problema mítico-religioso dos Kpóli, nestes parágrafos:

A lig a ç ã o da m ito lo g ia do Qeregbetã com os K p óli n u n c a se r á im p ertin en te.


Q ue A n d r e sa M a r ia te n h a em P ó li-B o ji um nom e in d iv id u a l (o u de te r r e i­
r o ) , co rresp o n d e ao con ceito de K p óli q u e a r e lig iã o do Q ere g b e tã p e r te n ç a
à m e sm a zo n a de sin c r e tism o ew e-ioru b an o, são a fir m a tiv a s in a ta c á v e is,
p e r fe ita s . M as é de n o ta r : 1 ') que, com o M ãe A n d r e sa m e a fir m o u e
N u n e s P e r e ir a c o n fir m a ( “n en h u m a im a g em a li n o s lem b ra e s ta ou aq u ela
d iv in d a d e ” ) , a vod u n o só p reten d eu e n g a n a r -m e d izen d o q u e no p é g i não
h a v ia n a d a ; 2") que, p a r a q u e K p óli fo s s e o K p óli do te r r e ir o , s e e sp e r a v a
que f o s s e tam b ém con h ecid o com o vodu d as nosyes a n te r io r e s, o que não
se v e r if ic a ; 39) q u e P ó li, em b ora p a recen d o sem p re d ev er le r -se K póli,
só a p a r e c e no n om e d e sse v o d u . . . P o r q u e n ã o K p ó li-B o ji? ; 49) que, a p e sa r
de tu d o, n ão m e a tr e v i a id e n tific a r K p ó li-B o ji com n en h u m d os K p óli de
I f á , com o n a s p a la v r a s do se u c â n tic o Se legbá Jóbô — d e q u e m e ocu p ei
em O Mundo Português (I X , 1 4 2 -1 4 3 ), on d e rep ro d u zi a m elod ia, q u e é de
in co m p a r á v e l b e le z a — m e a tr e v i a dar com o c e r ta a p a la v r a legbá.
E m b ora recon h ecen d o q u e a s ja r r a s do p é g i podem s u b s titu ir o legbá, d is­
p en sa d o p a r a n ã o a tr a ir sob re a c a s a a g r a v e a c u sa ç ã o de id o la tr ia ,
v e r ific a -s e q u e o t a l K p óli n ão pod e se r m a is q u e u m a re m in isc ê n c ia
s in g u la r , ta lv e z p r e te n s io sa re m in isc ê n c ia . N ã o é p r o p r ia m e n te o fim da
m ea d a do Q ere g b e tã , m a s u m a r e sso n â n c ia do c u lto d os b a b a la ô s d en tro
de u m cu lto e sp e c ia l d e sa c e r d o tisa s v o d u s su p ed ita d o àq u ele.

XXII
Confirmando a relação fitolátrica entre a Casa das Minas e a Casa
de Nagô, referida por Edmundo Corrêa Lopes, páginas atrás, basta
analisar-se a composição de um banho-de-natal, tão recomendado quanto
apreciado pelos fiéis ao culto dos Voduns:

a) Estoraque, que é uma árvore e lhe deu nome a resina odorífera,


de variada sinonímia em todos os países tropicais. Utilizam as
folhas.
b) Oriza, planta de pequeno porte. Utilizam as folhas.
c) Pião, arbusto, o roxo e o branco. Utilizam as folhas.
d) Manjerona, arbusto. Utilizam as folhas.
e) Trevo comum, arbusto. Utilizam as folhas.
f) Alfavaca, planta chamada Quiê-ô, em língua africana. Utilizam
as folhas.
g) Alfavaca, dita de galinha e, também, do campo. Utilizam as
folhas.
h) Erva-santa, também chamada japana. Utilizam as folhas.
i) Tipi ou tipuana, planta silvestre. Utilizam as folhas.
j) Pau-d’angola. Utilizam pedaços do cerne.

166
As propriedades desse banho podem beneficiar a quem, com um
pouco dele, apenas, lave a cabeça, as têmporas e a nuca, pois é um estra
nho complexo de plantas aromáticas e mágicas, em sua maior parte da
região, cujas definições taxonômicas não são fáceis de encontrar nas
páginas de obras dedicadas à nossa flora; as que, porém, são aqui cita­
das, interessarão, certamente, aos leitores.
Há um banho, também de grande eficiência, chamado banho da
rasa ou Jipió, indicado para pessoas que se encontram em dificuldades
de vida.
Na composição dele entra a casca de certa madeira que associam
a cascas de mandioca, bem lavadas, para as libertar da terra. A ma­
deira tem o nome de jipió, mas não me foi possível identificá-la taxo-
uomicamente.
Algumas dessas plantas são comuns ao Continente Africano e à
América Tropical, segundo o afirmam botânicos como Record & Hess,
llichards, Le Cointe e A. de J. Sampaio.
Em São Luís, não é impressionante (como em Belém e Manaus,
Amazonas) o comércio dessas plantas; e o uso das mesmas macera-
das, na água ou postas de infusão em álcool ou cachaça, não atinge todas
as camadas sociais.
Quem desce, entretanto, a Rua Magalhães de Almeida, rumo ao
Mercado Público, a partir da Rua de Sant’Ana, de um lado e de outro,
ao longo das calçadas, depara com tabuleiros e armações precárias,
de fácil remoção, não de autênticos herbanários, tais os do Rio de
Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco, mas simples vendedores de
sementes, espinhos, drupas, amêndoas, cascas, raízes secas, dentro de
tudo isso sobressaindo o afamado afrodisíaco moleque-seco, proveniente
de Caxias; peles de répteis, dentes de felinos, penas de aves, excremen­
tos daqueles e destas, enfim, ali podem ser encontrados.
Ali, também, encontrei óleos aromáticos, defumadores, uns locais
e outros importados do Rio de Janeiro, Belém e Salvador.
Ninhos de aves — gaviões, beija-flores, uirapurus — vergas de
peixe-boi, unhas de tamanduá e de onças, etc., etc., fazem parte dessas
especialidades mágicas.
A esses produtos, ligados à fitolatria e à zoolatria, recorrem indi­
vidualmente — mas não por imposição do culto dos Voduns — tanto a
gente da Casa das Minas e da Casa de Nagô como os senhores e senho­
ras do melhor status da população de São Luís e de outras cidades do
interior do Estado do Maranhão.

XXIII
Entre as sobrevivências do culto daomeano dos Voduns mina-jejes,
na Casa das Minas, de São Luís do Maranhão, merece especial regis­
tro a que está ligada aos mortos, embora ali já se não fale mais nos
Eguns, como reunidos numa confraria, à semelhança de Cuba.
Roger Bastide, como Pierre V erger62 e Otávio da Costa Eduardo
dispensaram ao tema da morte apreciações que salientam a importância
das cerimônias fúnebres realizadas nos terreiros da Bahia e do Mara­
nhão, respectivamente.
O axêxê, para Roger Bastide, designa em geral le candomblé funé-
raire, mas para Otávio da Costa Eduardo shun e zeli designam dois
tempos, por assim dizer, de uma cerimônia imposta pela morte de uma
vodunci ou de uma simples filha ou filho e demais pessoas pertencen­
tes à Casa Grande das Minas. Uma parte da referida cerimônia é rea­
lizada logo depois que o óbito ocorra, como na religião católica, uma
simples ou pomposa missa, dita de «corpo presente».
Tendo assistido, em 1970, na Casa das Minas, à segunda parte
dessa cerimônia, em homenagem a quatro pessoas mortas, a elas liga­
das através de uma iniciação ou espiritualmente apenas, vou tentar des­
crevê-la, pois, realmente, é uma sobrevivência das mais importantes
já ali registradas por mim, dentro do plano de pesquisa que entendi
efetuar como complemento às divulgadas na primeira edição desta obra.
Mais conhecida, popularmente, pela denominação de tambor-de-
choro, a cerimônia do zeli ou zelim (estas duas palavras são pronun­
ciadas diferentemente por pessoas da Casa das Minas) ocorreu com
certo atraso, visto que a morte arrebatara, em datas diferentes, no
princípio do ano, as pessoas seguintes: Mãe Leocádia dos Santos, subs­
tituta de Mãe Andresa Maria, Manuel Nascimento (runtó), Mundica e
Bilu Maria de Lourdes da Silva.
Realizou-se numa parte da varanda, à esquerda de quem nela entra,
vindo da rua, a mesma varanda onde os Voduns dançam, nas festas do
culto (ver Caderno Iconográfico, n. 25-28).
A um canto (direito) dessa varanda se conservam comumente os
tambores ou atabaques, cobertos por um largo pedaço de chitão e do­
minados por aquele que pertence a Zomadone.
A única janela que nessa varanda se abre sobre o chamado Beco
das Crioulas ou das Minas permite que a luz diretamente inunde toda
a cena, mas no gume penetra também a luz, mediando entre a manhã
e a tarde. Do lado esquerdo, num banco corrido, já com três tambores
em posição, estavam postados os tocadores, em traje comum; ao lado
direito, da mesma janela, também num banco corrido, sentaram-se três
tocadoras de cabaças (gôs) e de ferrinhos (ogãs) ; sendo uma delas
filha do runtó Manuel Nascimento — um dos mortos, com direito
àquele zelim.
Na vizinhança das tocadoras, do lado esquerdo destas, numa mesa
ampla, se viam garrafas de vinho e de cachaça, um monte de-varinhas
de goiabeira, de cinco a sete palmos de comprimento. Entre as tocado­
ras e a mesa, arrumados sobre esta, estavam seis potes de barro, novos,
mais quatro metades de cabaças, novas também, de palmo e meio de
62. V er P ie rre V e rg e r, N o te s su r le culte des O risas e t V oduns à B ahia de Tous les S a in ts, au
B résil, e t à Vancienne C ôte des E sclaves, en A friq u e . D a k ar, IF A N , 1957 (p. 154 a 158).

168
circunferência, sem pintura ou gravação. Frente aos tocadores dc runs
e as tocadoras de cabaças, (gôs) e ferrinhos (ogãs), ajeitada sobre um
cofo, se destacava uma bacia, de cinco a seis palmos de circunferência;
punhados de fina e alva areia, aqui e ali, tinham sido postos em roda
da bacia, sobre o chão da varanda.
Circundando aquela bacia, foram dispostos, eqüidistantes, dezesseis
banquinhos, uns rústicos e outros trabalhados por hábil e talentoso
entalhador.
Todas de branco, empunhando as delgadas varinhas de goiabeira,
dezesseis filhas-de-santo (gonjais, voduncis) ocuparam os banquinhos.
Atrás desse grupo de mulheres, isto é, das que defrontavam a jane­
la ou lhe ficavam de costas, puseram uma pequena mesa, encimada por
um castiçal, que logo foi aceso; e, vizinho a este, foi posto um prato,
à falta de bandeja, que deveria receber espórtulas, preferentemente
moedas de níquel.
Ora uma senhora, ora uma mocinha ocupavam uma cadeira para
receber as espórtulas, trocar cédulas e facilitar o troco. Entre as
tôbôssis, Cecília Vilela Moura e Philomena Maria de Jesus, foram
ajeitados dois potes sobre um pequeno cofo fechado.
O pote, de pequeno porte, era, como os outros, inteiramente novo.
Assim que a cerimônia foi iniciada — em homenagem a Mãe Leo-
cádia — logo uma das tocadoras de ogã e uma outra de gô trouxeram
para a tôbôssi Cecília uma garrafa de vinho tinto e outra de cachaça,
cujo conteúdo foi derramado na bacia, que continha amassi, no centro
da qual puseram a metade de uma cabaça, de borco.
Num gesto ritualístico, Cecília deitou um pouco de vinho no ogã
que uma tocadora lhe apresentou, como quem estende uma taça, vol­
tando esta imediatamente a ocupar o seu lugar ao lado das outras
tocadoras de cabaças.
Uma voz, então, se elevou num solo que teve logo o acompanha­
mento de dois tambores'menores, mas que acabou dominado pelas vozes
das demais mulheres participantes dessa cerimônia.
Philomena — que, por morte de Mãe Leocádia, era a dirigente
da Casa das Minas —, entre Cecília e Amância Evangelista, vibrava
um chinelo, sobre a boca do pote, rítmica e vigorosamente, com evi­
dente esforço de o quebrar.
Bocados de vinho e de cachaça haviam sido derramados naquele
pote.
E as dezesseis mulheres, também, rítmica e vigorosamente, batiam
com as varinhas de goiabeira, ora nos rebordos da bacia, ora sobre a
metade da cabaça, que Cecília procurava manter de bordo à superfí­
cie do amassi, de modo a que oferecesse um alvo imóvel para ser que­
brado sob as pancadas que acompanhavam os toques dos tam bores.63
63. V ia ja n te s e m issio n ário s, etnólogos e e tn ó g ra fo s, e n tra n d o em co n ta to com trib o s p rim itiv a s,
nas A m éricas ou no C o n tin en te A frica n o , p o r exem plo, delas nos a p o n ta ra m ou descreveram
os m ais e stran h o s usos e costum es, no que diz re sp eito à c a ç a de crân io s dos seus inim igos,
como tro fé u s do g u e rra ou como lem b ran ça de p a re n te s e am igos.

169

Nessa cerimônia, com decidido empenho, visavam libertar a cabeça
do morto (simbolizada naquela meia cabaça) da influência dominadora
do Vodum que sobre ela costumava baixar, incorporando-se-lhe, por
fim, através do estado de transe ou de possessão mística.
Mas essa libertação só seria conseguida quando se quebrasse total­
mente o pequeno pote e a metade da cabaça, que ali estavam sendo
golpeados, ao ritmo dos tambores sagrados e da melodia dos cânticos
que se elevavam.
Consoante o ritual mina-jeje, conservado na Casa das Minas, ao
iniciar-se a cerimônia, o primeiro cântico é elevado ao morto e os de­
mais ao Vodum dele.
Alguns desses cânticos foram gravados por mim, anteriormente,
graças à informante Enedina Oliveira, em casa de Zuleide Figueira de
Amorim, no subúrbio de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, Estado do Rio
de Janeiro, e a esta última.
Ali, entretanto, eles não poderiam ser gravados, «porque a lei proí­
b e...» e eu me resignei a ouvi-los e a comparar, mentalmente, as vozes
das cantoras presentes na ocasião com as da informante Enedina
Oliveira.
Anotei que nem todos os cânticos são lúgubres, densos de tris­
teza e de desespero, mesmo numa cerimônia daquela natureza e com
aquela finalidade.
Talvez o empenho, posto nesse movimento, para libertar o morto
do domínio do seu Vodum, exija mais toques e cânticos alegres, toques
de tambores, de ogãs e gôs, um coro harmonioso daquelas dezesseis mu­
lheres, do que outros que traduzissem sentimentos e atitudes de incon­
formidade, de revolta e desilusão.
Entre um cântico e outro, as dezesseis mulheres e as pessoas que
assistiam ao desdobramento daquela cerimônia depositavam moedas na
bacia ou cédulas no prato para isso destinado: punhados de areia tam­
bém eram lançados na bacia.
No decorrer dessa cerimônia fúnebre as máscaras das dezesseis
mulheres não lembravam as de carpideiras das aldeias peninsulares
N a o b ra de F ra z e r, T h e Golden B ough, e n a s c o n tribuições dos c ie n tista s e pesquisadores, que
o S m ith so n ian In s titu tio n , p elas p á g in a s do H andbook o f E thn o lo g y, g e nerosam ente divulgou,
fo ra m conhecidos in co n táv eis, p ito resco s ou m acab ro s aspectos desses costum es e usos.
E o mesm o aco n teceria, n a A m azô n ia B ra sileira, e n tre os indivíduos d a s trib o s dos M undurucu,
P a r in tin tin o M aué.
A queles, localizados no V ale do T a p a jó s, m u m ificav am o c râ n io dos inim igos, como pode ser
visto no M useu N a cio n al do Rio de J a n e iro , g a n h an d o a denom inação de p ariuá-a e a de
p a riu á -ren a p e a la n ç a n a p o n ta d a q u al o ex p u n h am , em fr e n te de suas m alocas. E o mesmo
fa z ia m com o crâ n io dos seus p a re n te s e am igos queridos.
Os P a rin tin tin , do V ale do M adeira, m u m ificav am o c râ n io do inim igo, e, n u m a solenidade
especial, realizav am a D a n ç a d a V itó ria , d u ra n te v á rio s dias de libações de vinhos ferm entados,
de com edorias e d e sreg ram e n to s sexuais.
Os M aué, m ais p a cífic o s do que g u e rre iro s, tra n s fo rm a v a m os crâ n io s dos iniihigos e dos
am igos em ta ç a s , en treg an d o -se, ig u alm en te, aos m esm os desregram entos.
N o C o n tin en te A frica n o , povos p rim itiv o s, como os da A m azônia, tam b ém tin h a m os mesm os
usos e costum es.
N o e n ta n to fo i dali que os N eg ro s escravos, d as n ações m in a -je je e io ru b a — d e n tro das suas
concepções m ític a s e p ro fa n a s , ou, p re fe re n te m e n te, religiosas — , foi dali que tro u x e ra m a soleni­
dade fu n e rá ria do zelim , com u m a fin a lid a d e su p e rio r e in q u ie ta n te : lib e rta r o crâ n io do m orto,
am ig o ou p a re n te , fiel a u m culto m ilen ário , d a in flu ên c ia do seu V odum e do resp eito aos
E g u n s.
E esse é um asp ecto c u ltu ra l que m erece a p reciação , senão resp eito especialíssim o.

170
nem das malocas indígenas: só os familiares dos mortos mostravam,
discretamente, a dor que a irreparável perda lhes causava.
No entanto uma participante, gonjai ou noviche, deu mostras de
entrar em transe, mas foi retirada de redor da bacia, voltando, pou
cos minutos depois, a ocupar o banquinho onde estava sentada.
Obedecendo à tradição, nessa cerimônia, forçoso é considerar-se a
posição do morto dentro da estrutura sócio-religiosa da Casa Grande
das Minas.
Veja-se, por exemplo:
Dois são os tambores que soam nesse empenho de libertar-se o
morto do domínio de seu Vodum, quando se tra ta de um filho ou de
uma filha da Casa; um pote apenas deverá ser quebrado, a golpes,
ritmados e enérgicos, de chinelo.
No caso, entretanto, de um runtó, como Manuel Nascimento (Ma-
neco), e de uma mãe-de-santo ou mãe-de-terreiro, como Leocádia San­
tos, um tambor só — o de maior porte, o de Zomadone — é vibrado;
e dois potes são quebrados.
Na cerimônia do zelim, a que assisti, duas filhas falecidas, Dilu
(Maria de Lourdes Silva) e Mundica foram distinguidas do primeiro
modo; Leocádia e Maneco do segundo modo.
A cerimônia decorreu em dois tempos: num primeiro, os mortos
homenageados foram Mundica e Maneco; no segundo tempo, Dilu e
Leocádia.
Entre os dois tempos houve um pequeno almoço, à base de carne
bovina e de peixe-pedra, café. . .
Os tocadores de atabaque, as tocadoras de cabaças e ferrinhos e
boa parte das pessoas que ali foram assistir à cerimônia participaram
desse almoço sóbrio, sem bebidas típicas de outras cerimônias e sole-
nidades profanas ou religiosas.
Após uma sucessão de cânticos, toque de tambores, vibrações de
ogãs e gôs, bem como de pancadas nos rebordos da bacia, quatro mu­
lheres saem carregando esta, e, acomodados num pequeno cofo, os peda­
ços do pote e da metade da cabaça, rumo aos fundos do gume, disso
se encarregando, também, a velha Nena (Philomena, que, então, como
já foi referido, era a Mãe da Casa Grande das Minas).
Trata-se, evidentemente, de um despacho.
Já chegadas sob a copa das árvores e arbustos, num ângulo (o
direito) da cerca que enquadra o gume e próximo ao pé-de-pião-roxo
— que abriga o local destinado a Acossi, onde lhe mantém a comida
ritual — as moedas são retiradas do fundo da bacia; e os pedaços de
pote e os da metade da cabaça, com água de amassi, levemente arro-
xeada e rescendendo a vinho e a cachaça, são lançados numa depressão
do terreno.
Palavras convencionais, fragmentos de orações, em língua africana,
são engroladas pelas mulheres incumbidas desse despacho.

171
De volta à varanda, nova quantidade de amassi foi posta na ba^
cia e trataram de libertar outro morto (isto é, a sua cabeça) do poder
impositivo do seu Vodun.
Novo solo elevou o cântico inicial, de saudação ao morto, e de
homenagem ao seu Vodum, sendo seguido dos toques dos tambores e
das vibrações dos ogãs e gôs.
As dezesseis mulheres, novamente, de roda à bacia, vibraram as
varinhas de goiabeira no rebordo da bacia e na metade da cabaça, en­
quanto a mãe-do-terreiro vibrou chineladas, rítmicas e enérgicas, no
pote que lhe foi posto ao lado.
Todos os movimentos, acima descritos, são repetidos, de acordo
com o número de mortos que é necessário libertar do Vodum.
Com relação à particularidade do cântico predileto do Vodum, des­
te ou daquele morto, ser elevado nessa cerimônia, é preciso esclarecer-
se a sua obrigatoriedade:
A p artir do momento em que um indivíduo recebe em sua cabeça
um Vodum ou — com maior fundamento — passou a ser por ele incor­
porado, no estado de transe, nunca mais se libertará daquela divindade.
Toda a sua vida material e espiritual a ela estará imutavelmente
acorrentada.
Daí a necessidade da cerimônia libertadora do zelim.
Os nomes dos mortos e dos Voduns, a eles ligados, que, porém, ali
foram libertos do seu domínio, conforme a cerimônia acima descrita,
são os seguintes:
Mortos Vodun
D ilu (M a r ia de L ou rd es S ilv a ) Toçá
M u n d ica (R a im u n d a ? ) Ajahutoi
M aneco (M a n u e l N a sc im e n to ) Póli-Boji
L eocád ia d os S a n to s Toçá

Uma determinação severa, dentre outras do zelim, é que nenhuma


pessoa estranha ao culto nele poderá integrar-se.
A assistência, porém, é a mais heterogênea que se possa imagi­
nar, dela participando crianças, que se comportam irrepreensivelmente,
ao lado dos pais ou dos parentes.
Para as pessoas que a compõem não há obrigatoriedade de traje,
nem de posição social.
Verifica-se — não sem certa estranheza e admiração mesmo — que
as pessoas ali presentes como que se integram, pela concentração de
todos os sentidos, nessa cerimônia.
Todas as dezesseis mulheres, que tomaram parte no zelim, aqui
descrito, podem ser relacionadas com os seus respectivos Voduns:

172
M u lh e r e s V oduns

Philomena Póli-Boji
Cecília Doçu
Amância Doçu
Bá Daco
Amélia Doçu
Deni Lepon
Edwiges Bôrôtoi
Maria Alôgue
Rita Dedegá
Maria Roxinha Jotirn
Celeste Avêrêquête
Joana Badé
Justina Abê
Beatriz Ajautó
Rosa Ajautó
Elza Boçucó
Estavam ali reunidas as filhas (voduncis e tôbôssis) que carregam
Voduns, sendo nelas representados os que fazem parte das famílias
de Davice, Queviôçô e Dambirá, isto é, todas as divindades do panteão
mina-jeje.
A tôbôssi Philomena (mais conhecida no Bairro de São Pantaleão
e noutros de São Luís do Maranhão por Nena) com a morte de
Leocádia, segundo as leis do culto, passou a substituí-la, sendo a nôchê,
que, como tal, podia estar à frente do zelim.
De pequena estatura e dizendo-se de origem cabinda, Philomena
deveria ter mais de um século de idade; e, embora derreada sobre o
flanco direito, ainda se mostrava lúcida, enxergando bem e ouvindo
sem esforço.
Ela era, indiscutivelmente, no momento, a depositária do legado
mina-jeje que lhe deixou Mãe Andresa Maria.
Tendo assistido à iniciação no culto, tanto de minha mãe Felici­
dade Nunes Pereira como de minha tia Ida Alves Barradas, a ela devo
certos esclarecimentos a respeito não só da história, da tradição da
Casa das Minas, como de determinadas cerimônias do culto dos Voduns.
Nessa cerimônia do tambor-de-choro, a sua presença era indispen­
sável, dada a autoridade que ganhou ao ser feita, isto é, iniciada nas
leis impostas pela organização, nitidamente daomeana, como se verifica
do culto dos Voduns.
Na cerimônia aqui descrita, de maneira quase esquemática, os tam ­
bores soaram mais fortemente e mais numerosos cânticos foram ele­
vados, já por se tra ta r de Mãe Leocádia, uma nôchê morta, quando
ainda estava à frente da Casa Grande, já porque o seu senhor, o seu
santo, é um dos maiores do panteão das divindades do culto daomeano
dos Voduns.

173
A personalidade mítica e mística de Póli-Boji levou o Prof. Dr.
A rthur Ramos a indagar, através deste período: «outras aproximações
poderão ser aventuradas, como a do Vodun Alogue, da família do Póli-
Boji, e que talvez seja o mesmo Alogbwe, do panteão de Sagbatá. E
esse misterioso Póli-Boji ou Pódi-Boji, a que com tanto carinho se
refere Nunes Pereira, como sendo o Vodun de sua mãe, Felicidade
Nunes Pereira, não era o mesmo Agbogbodji do grupo de Sagbatá?»
(ver Introdução, nesta obra, da autoria do Prof. Dr. A rthur Ramos).
Sabe-se, através da lenda de Fá a quem os Kpóli ensinaram as
artes mágicas, valendo-se de um jogo com sementes de dendezeiros,
que Póli-Boji está ligado a Legbá — o grande trapaceiro, o intro-
dutor diplomático, o public relation, conhecedor de todas as línguas
que os Voduns falam entre si e por meio das suas filhas e filhos.
Resposta à indagação do espírito científico de A rthur Ramos quem
a dá, a meu ver, precisamente, é Edmundo Correia Lopes, na longa
citação que fiz da sua crítica, absolutamente lúcida e inabalavelmente
fundamentada, a esta obra que agora se reedita.
Como estátua ou imagem, desenho ou amuleto, nunca vi na Casa
das Minas uma representação de Legbá, com aqueles aspectos múl­
tiplos e contraditórios, referidos por Pierre Verger, falando-se ali mais
em Exu, sem especificar tratar-se de Legbá.
Eu estava em São Luís, em 1969, quando esse personagem, segun­
do me foi narrado, baixou na Casa das Minas, ao fim de uma das
suas festas, achando-se reunidas, na sala-de-estar dos Voduns, várias
das suas filhas ou esposas. Incorporando-se na velha Nena (Philomena,
cujo Vodun é Póli-Boji), esta quase morreu, deformada a máscara,
retorcidos os braços e as pernas. As mulheres presentes na ocasião,
procurando ampará-la, por pouco não ficaram no mesmo estado, e, até
no dia seguinte, todas se sentiam sob a pressão maléfica desse
personagem.
Essa presença de Exu-Legbá na Casa das Minas, seguramente,
deveria manter-se em segredo, para que fatos, como o que estou refe­
rindo agora, não tivessem divulgação além do ambiente onde ele bai­
xava de maneira tão insólita.
Nenhuma estatueta de terracota pode ser vista no pégi da Casa
Grande, representando Exu-Legbá, mas acredito que, enterrada sob o
chão dessa importante dependência da mesma, ali se encontra, em
forma de fetiche, um pequeno vaso de barro, como outros que repre­
sentam as afirmações indispensáveis num terreiro onde os Voduns dan­
çarão ou se reunirão apenas.
O tradicional costume de abater-se no pégi, aves ou outros ani­
mais embebendo-se-lhe o chão com o mesmo, deve estar relacionado
com a presença desse fetiche representando Exu-Legbá, cuja predile­
ção, neste ou naqueles sacrifícios, que lhe sejam dedicados, se par-
ticulariza pelo sangue das vítimas, de m istura com óleo de dendê.

174
A coincidência de ele se m anifestar a Nena, cujo Vodun é Póli
Boji, durante aquela ocorrência, evidencia a ligação dela com oshc
Vodun ou Kpóli de Mãe Andresa Maria, que a ele estaria ligada, por
força do seu encargo de nôchê, quando na direção da Casa Grande.
Uma das minhas informantes — que o ouvira de algumas feitas
ou o imaginara simplesmente — contou que outrora, em solenidades
realizadas no pégi, aparecia um negro, bem apessoado e robusto, senhor
«Io disforme pênis.
E esse é um dos atributos (sic) de tão estranho personagem.
Sua predileção, dizem, seria pelas iniciantes no culto mina-jeje dos
Voduns.
A técnica de sacrificar uma ave, desarticulando-lhe a cabeça, num
ritmo de dança e elevando um cântico especial, de oferenda, mostra
que só Exu a emprega na sua função de estabelecer ligação entre o
<>Cortante e os Voduns.
Como Exu, Zomadone é um grande sacrificador.
Mãe Andresa Maria, naturalmente, respeitava e homenageava Exu-
I iegbá porque nele via singular importância nas suas relações com
1’óli-Boji e outros Voduns nas suas atividades diplomáticas.
Assim, na cerimônia do Zelim ou Zeli, à velha Nena (Philomena
Maria de Jesus), cujo Vodun era Póli-Boji e em quem, do mesmo
modo, Exu se manifestava, caberia dirigir a cerimônia de libertação
dos mortos do poder dos seus respectivos Voduns.
Do mesmo modo, sim, porque nenhuma outra cerimônia do culto
pode prescindir da presença de Exu — lembrem-se! — Guardião dos
Cemitérios, bem assim mediador nas relações públicas com as divin­
dades do panteão daom eano...
Ele é o insubstituível Vigia dos Mortos.
0 desconhecimento desse papel, o descuido em homenageá-lo antes
de qualquer cerimônia, podem determinar graves ocorrências, por exem­
plo, no ato de libertar-se os mortos do poder dos Voduns.

XXIV

Cabem, aqui, antes de findar estas Notas, algumas palavras a


respeito da atual situação da tradicional Casa das Minas.
Com o desaparecimento da Nôchê Andresa Maria, a sua natural
substituta deveria ser Anéris Santos, já porque era uma feita (isto é,
iniciada, rigorosamente, no culto dos Voduns m ina-jejes), já porque,
para melhor desempenho da direção da Casa Grande, forçoso era ela
manter-se ainda solteira.
No entanto, a filha-de-santo, Romana Costa Santos, que vinha
colaborando com Mãe Andresa Maria, entendeu chamar a si aquela
função material e espiritual.

175
/
Havendo residido muitos anos no Rio de Janeiro, sem, entretanto,
deixar de vir, freqüentemente, a São Luís, cumprir suas obrigações,
relativas ao culto, muito inteligente e objetiva, se assenhoreou total­
mente da direção da Casa, modificando-lhe o estilo de vida, como mo­
dificaria a feição dos aposentos para seu cômodo pessoal e modificaria
uma particularidade do pégi, a que se refere a figura 4 do Caderno
Iconográfico aqui incluído.
Anéris Santos viria a morrer pouco depois e, então, a substituta
legal (que deveria ser) de Mãe Andresa Maria, chamada Leocádia
Santos, casada, morando em casa própria, no Bairro Madre Deus, con­
fiou a Romana as funções que lhe cabiam.
O conhecimento do que poderia chamar vida particular daquela
casa e das personagens divinas do panteão mina-jeje e dos seus cultua-
dores me permitiu notar logo que Romana estava usurpando os direitos
e deveres que cabiam a Leocádia Santos, por morte de Mãe Andresa
Maria e de Anéris Santos, mutatis mutandis (é impressionante!), como
os deuses-reis do Daomé fizeram entre si.
Os costumes tradicionais da Casa, baseados em leis, cujas raízes
mergulhavam profundamente na moral do culto dos Voduns mina-jejes,
foram adulterados, deturpados, substituídos por outros, de importação
de um centro de incontáveis terreiros de macumba, de tendas espíritas,
de giras umbandistas. . .
Sob a direção de Mãe Andresa Maria a vida econômico-financeira
da Casa Grande não dependia de extorsões, de vendas de amuletos, de
banhos propiciatórios, de benzições e garrafadas de mezinhas etc.
Em centros como o Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belém,
Manaus, essas extorsões, facilitadas pela credulidade do povo, e pressão
de condições econômico-sociais, conflitos íntimos na estrutura doméstica,
criam a necessidade (sic) de recorrer-se ao sobrenatural para a solução
dos mais complexos e absurdos problemas de caráter individual.
Então neles aparecem os charlatães e os mistificadores, e, já agora,
com a expansão do turismo, os deturpadores das mais puras, das mais
legítimas manifestações dos cultos africanos, trazidos pelos escravos,
naturais das conhecidas áreas que a história e a tradição registram.
E todos esses indivíduos desdobram solertemente os mais audacio­
sos argumentos para justificar suas atividades.
Um deles assim me pronunciou:

S e p a d r e s e f r e ir a s trocam sa n to s, b a tiz a m , c a sa m , dão a ex trem a -u n çã o ,


en com en d am d e fu n to s, d izem m is s a s , reza m la d a in h a s, o m esm o d ir e ito têm
de o fa z e r a s mães-de-santo, o s pajés, o s pais-de-terreiro, p o is in te r fe r e m ,
ju n to a d iv in d a d es, p a r a a te n d e r à s n e c e ssid a d e s do e sp ír ito , do coração
e do e stô m a g o , d os q u e a e le s recorrem , c r e n te s n a m ed iu n id a d e, n a s fo r ç a s
q u e lh e s cou b eram ou q u e s e lh e s a trib u em . E é ju s to q u e con trib u am
p a r a is so com a lg u m d in h eiro.

176
Bem diversos desses usos e abusos se distinguiu a vida da Casa das
Minas sob a direção de Mãe Andresa Maria.
Ainda alcancei, quando era menino, a chegada à Casa das Minas,
de lavradores, vaqueiros, pescadores e artesãos, carregando gêneros
para o consumo dos seus moradores.
E eram cofos e cofos de arroz, feijão, milho, farinha, frutos diver­
sos; e capoeiras de aves; amarrados de peixe seco e cofos de camarões;
cabritos e porcos.
E tudo aquilo era distribuído por Mãe Andresa Maria e depen­
dentes, filhos e filhas da Casa, ali morando ou passando tempo, vindos
muitos deles para participar ou para assistir às festas do culto.
Havia uma dependência da Casa destinada ao armazenamento de
certos gêneros — dispensa do tipo de uma verdadeira Casa Grande —
que deles regurgitavam, garantindo-se, dessa maneira, a vida material
da gente ali morando.
E velas, óleos propiciatórios, óleos comestíveis, de dendê e de ger­
gelim, nunca ali faltavam para iluminação do pégi e do aparatoso san­
tuário existente, é claro, na sala que lhe estava contígua.
Ora, modificadas as condições econômicas e sociais daqueles con-
Iribuintes, generosos e espontâneos, desaparecida a figura digna e inte­
ligente de Mãe Andresa Maria, cujas virtudes se impunham para além
do seu ambiente tradicional, que era aquela Casa, a manutenção da
mesma se tornou difícil, mas não me consta que fosse obrigada, senão
depois que Romana lhe ficou à frente, a recorrer a certos processos
<iin desacordo com a sua finalidade, com a sua vinculação ao culto que
os Negros escravos haviam ali fundado.
Forçoso foi alugar-se a um relojoeiro um aposento e instalar em
dois outros uma tipografia, propriedade de uma amiga de Romana, de
nome Maria de Lourdes Pinheiro.
Na ala esquerda da Casa se instalaram, logo depois da morte de
Mãe Andresa, algumas filhas de Voduns, Negras velhas, cuja vida se
arrastava inexpressivamente da porta da rua para a cozinha, sem ne­
nhuma participação nas festas e práticas do culto.
Maria de Lourdes Pinheiro passou a ocupar três aposentos, en­
quanto funcionava a sua tipografia.
E, morta a sua amiga Romana Santos, dizendo-se vodunci sem
toalha, isto é, não tendo sido iniciada, assumiu a direção da Casa.
A presença de Maria de Lourdes pode-se considerar benéfica,
nesse período em que a nôchê Leocádia Santos, morando, como já
referi, em sua casa na Madre Deus, raras vezes aparecia na Casa
Grande e pouca atuação tinha na vida da mesma.
Maria de Lourdes Pinheiro se incumbiu de angariar recursos para
o pagamento de impostos, acrescidos pela administração municipal, e
despesas com a carneira em que Mãe Andresa Maria está sepultada,
cujo número é 365 e fica localizada na quadra ou sexta seção do
Cemitério do bairro de São Pantaleão.

177
Em janeiro de 1970, regressando a São Luís, em visita à Casa das
Minas, já não ali estava Maria de Lourdes Pinheiro.
E em maio, do mesmo ano, Amância Evangelista Vianna, contem­
porânea de Mãe Andresa Maria e de minha mãe, se mudou da casa, que
possui no bairro do João Paulo, para um quarto, na ala direita da Casa
Grande, domínio sagrado da Família Dambirá, com uma única mora­
dora: Philomena Maria de Jesus Ferreira (Mãe Nena), substituta de
Mãe Leocádia Santos, que, substituta de Mãe Andresa, como já regis­
trei, confiara a Romana a direção da Casa Grande.
Orçando a sua idade em perto de um século, não podendo, com
os seus achaques, dirigir a Casa, o jeito foi — embora a contragosto,
por se não entender muito bem com Amância Evangelista Vianna — a
velha Nena repetir, não em tudo (e é justo que o saliente), o procedimen­
to de Leocádia Santos. Mesmo nas condições físicas ora referidas, ela
tomava parte ativa no ritual das danças e não se descuidava dos seus
deveres com o seu senhor, Póli-Boji, e os demais Voduns da Família
Dambirá a que pertencia como nôchê.
E cantava e dançava, derreada sobre o flanco esquerdo, com uma
vitalidade verdadeiramente invulgar, no seu tipo franzino, com o seu
passado de lutas domésticas, de grandes vicissitudes.
A Amância Evangelista Vianna, de fato, moveram as condições de
Mãe Nena e, por outro lado, a necessidade de opor-se a pretensões
de estranhos e mesmo filiados à Casa, que intentavam assenhorear-se
do seu patrimônio material e espiritual.
E esse perigo ganhou tais proporções que forçoso foi recorrer-se
aos préstimos do Desembargador Benedito Salazar, amigo de Mãe
Andresa Maria, que, com uma interferência, de eficiente base jurídica,
pôs termos a manobras de pretendentes cúpidos e inescrupulosos.
No momento, com a presença de Amância Evangelista Vianna,
embora a nôchê da Casa Grande das Minas, fosse Philomena Maria
de Jesus Ferreira, posso afirm ar que ela está na realidade zelando
por aquele imóvel e o defendendo das manobras de pessoas estranhas
ao culto dos Voduns ou a ele filiadas, visando assenhorear-se do amplo
terreno, onde foi assentada.
Porque, fundada — vale a pena reafirm ar — por Negros africa­
nos, apelidados contrabandos, e transm itida de nôchê a nôchê, oralmen­
te, ali se encontra um documento de caráter jurídico indiscutível e
sua validade assegurada pela tradição.
Um exame dessa situação do imóvel preciosíssimo, que é a Casa
das Minas, pela Diretoria do Patrimônio Histórico, possivelmente de­
term inará o seu tombamento, evitando-se desse modo que o arrebatem
das mãos dos herdeiros espirituais dos contrabandos e das nôchês a quem
foi confiada.

178
XXV

Com a morte de Philomena Maria de Jesus Ferreira, de idade


bastante avançada, posso afirm ar, e de Cecília Vilela Moura, sua na
tural substituta, só os Voduns poderão apontar uma filha à altura de
as substituir.
Porque ocorreu um fato de grande complexidade e importância,
para continuação desse culto, fato que é o seguinte:
Com sua inteligência e critério, consciente da responsabilidade de
que lhe cabia como nôchê, Andresa Maria chamou as feitas (isto é,
as regularmente iniciadas no culto mina-jeje) e, reunidas no maior
número possível, as concitou a tra ta r da iniciação de moças, filhas ou
não de vodunci e gonjai, para que, à proporção que o quadro das
velhas feitas fosse sendo desfalcado, se pudesse contar com substitutas
à altura das atividades litúrgicas e sociais exigidas pelas chamadas
Leis de M in a ...
De protelação em protelação, o resultado foi que, morta Mãe
Andresa Maria, e morrendo, também, as feitas que conheciam as leis
(o ritual, as tradições, enfim, do culto), dia a dia se tornou inevitável
a marcha para a decadência, para a situação atual daquele centro de
religiosidade legitimamente doameana.
Velhas e doentes, as criaturas que se vão substituindo, dentro de
convencional ordem hierárquica, não têm condições físicas para o de­
sempenho do cargo que requer, além de energia e saúde, conhecimen­
tos que abrangem a linguagem litúrgica e certos postulados, cuja invio­
labilidade lhes impõe reservas, que se diriam impostas pela estrutura
secreta do próprio culto.
Interpelei a velha nôchê Nena a respeito dessa situação e ela me
respondeu não se lembrar mais de particularidades do rito de iniciação,
das palavras de ordem que, como é sabido dizer-se em linguagem ma-
çônica, circulam entre os membros de inúmeras associações de estru­
tura social e mística do Continente Africano.
Confesso que essa declaração me encheu de tristeza e desesperança,
que não pude deixar de revelar à velha Nena.
A nôchê, entretanto, com uma impressionante expressão de fé e
confiança, e num tom de voz claro e enérgico me disse:
— Não, meu filho, não! Os nossos Voduns não deixarão que a
nossa crença desapareça e que esta casa caia. Não! Eles podem
impedir que isso aconteça!

XXVI
Vale a pena conhecer-se o quadro das Tôbôssi e Voduns (filhas
ou esposas) das divindades que ainda baixam na Casa das Minas, de
São Luís do Maranhão.

179
/
Voduns T ôbôs si

Doçu Cecília Vilela Pinto


Vodunci
Adjáhutó Maria de Lourdes Silva
Doçu Amélia Vieira Pinto
Bidigá Rita Prata
Adjáhutó Rosa Martins
Sôbô Neusa da Mata Pinheiro
Baçalabê Amância Evangelista Vianna
Badé Joana Miranda
Daco Marcolina de Oliveira
Alôbê (?) Severa de Jesus
Roju Flora Ribeiro
Nôviçává Zobeida Vieira Pinto
Bôrtoi Claudionor Ribeiro
Jôgorôbuçu Enedina Oliveira
Lepôn Conceição Pinheiro de Oliveira
Acoêvi Sirene Aranha
Abrêjó Doninha
Boçucó Brasilina de Oliveira
Lepôn Dinin Jardim Prata
Boçalabê Alba Rosa Madeira

OBSERVAÇÕES:

Algumas das tôbôssis e voduncis (filhas e esposas) dos Voduns não


moram em São Luís, mas noutras cidades como o Rio de Janeiro. No
entanto, de acordo com as suas posses, de vez em quando vão àquela
capital, pagar obrigações, ou, então, mandam contribuições para o culto.
O quadro dos runtó, isto é, dos tocadores de atabaques (tambores
sagrados), é pequeno, composto de João do Nascimento e Benedito do
Nascimento, sendo desfalcado de um deles, o velho Raul, falecido
recentemente.
O grande runtó da Casa das Minas foi o falecido Manuel Nasci­
mento. A ele recorreu, entre outros informantes, Carlos da Costa
Eduardo, na sua pesquisa sobre os aspectos sociais e religiosos e tipos
de fiéis ao culto daomeano e iorubano dos Voduns da Casa das Minas
e da Casa de Nagô.
Manuel Nascimento foi iniciado nas suas atividades de runtó, mas
não deixou substituto à altura da sua competência e dedicação ao culto
dos Voduns mina-jejes.

180
XXVII
Face às pesquisas por mim realizadas na Casa das Minas, de
*'iio Luís do Maranhão e, para além do seu ambiente social e religioso,
luto é, nos terreiros fundados por muitos dos seus filhos e filhas,
noutras áreas urbanas como Belém, Manaus, Porto Velho e Rio Branco
( Kstado do Acre), como já referi, páginas atrás, não me senti autori­
zado a definir o fenômeno, de efeito individual ou coletivo, dito estado
(Io transe ou possessão.
E tampouco ousei imputar um poder condutor e deflagrador desse
fenômeno ao uso de drogas psicodélicas, inebriantes e alucinantes, ao
consumo de bebidas alcoólicas e mágicas, à aspiração do rapé.
Ora, em relação ao cântico, irmão gêmeo da música, tal como a poesia
<» é, outra não será minha atitude de pesquisador, em relação à dança,
l.imbém.
A essas três artes, desde a sua mais remota primitividade, sempre
coube e caberá a faculdade de integrar a alma ou o coração (como o
intendiam os gregos, por exemplo) de todos os homens e de todas as
mulheres com a Divindade, quer como o Deus dos cristãos, quer como
ou Voduns e Orixás dos Negros daomeanos e iorubanos.
Na Casa das Minas, ou na Casa de Nagô, bem como num sim­
ples terreiro delas oriundo, é que pude verificar a força transcendental
<1essas três artes a serviço da religião, por exemplo, ou da magia.
Com relação à música, ali, naquela Casa — temos de considerar
- ela começa por ser produzida através de instrumentos sacralizados,
quatro a cinco tambores, os huns, três cabaças, os gôs, e um ferro ou
(>í)d, este de metal, de forma semelhante a uma campânula, sendo os
gôs agitados ritmicamente, e aqueles vibrados por intermédio de uma
vareta.
Os tocadores dos principais instrumentos de percussão — os tam ­
bores — são chamados runtó; os tocadores de cabaças ou gôs são cha­
mados gatos.
Nenhum instrumento de sopro ou de corda aparece nesse con­
junto de músicos.
Mas os toques de tambores, ora discretos, ora violentos, segundo é
necessário aos apelos dos fiéis para que, no pégi ou no gume, os Voduns
baixem ou se incorporem em suas filhas, àquele toque é que pudemos
atribuir a força condutora e deflagradora, em sua maioria, do estado
do transe ou de possessão.
Porque os tambores têm personalidade divina, como os Voduns, e
uh suas vozes expressam uma linguagem de verdadeiros deuses, irmãos,
nem dúvida, não só das árvores sagradas, de cujo cerne foram feitos,
mas dos próprios Voduns.
Que eu não exagero, assim me manifestando a respeito desses ins-
Irumentos, aí estão os conceitos desse incomparável ensaísta que é
Francisco Elias de Tejada, pois atribui ao Negro su musiccdidad
innatamente intuitiva e mais:
181
L o s n e g r o s h a n d ivin izad o a lo s ta m b o res p orque, en su a fá n d e d a r tr a sla d o
m a te r ia l y p a lp a b le a la s id e a s a b str a c ta s, é se era e l ú n ico p roced im ien to
p a r a d iv in iz a r la m ú sica . M ejo r d ich o: su m ú sic a , la a rm o n ía to ta l que le s
em b a rg a a l co n ju ro d e la s n o ta s de la e sc a la . N a d a su p o n e ta n to p a r a la
in te le c c ió n ca b a l dei a lm a n e g r a com o e sta su p la sm a c ió n en p ie i reseca ,
q u e su e n a a l se r g o lp ea d a , de su e n te r a con cep ción dei ord en u n iv erso .
L a r e lig ió n dei d io s-ta m b o r e s la v e r sió n ló g ic a d e la p ercep ció n dei m undo
com o a r m o n ía in tu id a , no p en sa d a . P o r lo s o jo s e n tr a la c a d e n a de la s
c o m p a r a c io n e s ló g ic a s; p or e l oído, la su g e s tió n v o lc á n ic a dei sen tim ien to .
M ie n tr a s lo s b la n co s com p ren d en el m u n d o, lo s n e g r o s se lim ita n a se n tir lo .
Y la m ú sic a dei tam b or d iv in iza d o e s el lib ro m á g ico d onde se in scrib e
in tu itiv a m e n te tod a la co m p lica d a tr a m a de la e sp ecu la ció n q u e, a n o so tro s,
n o s em b a rg a . P o r eso, ta m b ién , p o rq u e el ta m b o r e s la to ta lid a d arm ón ica
d ei m u n d o . . . e l se n ã la , a l p a r dei ritm o de lo s se r e s, su tr a n sm u ta c ió n
en lo s m u e r to s ven era d o s.

E Elias Tejada emite ainda — tão ricas de precisão quanto pa­


radoxais — mais estas expressões de estranha análise etnográfica e
psicológica:
Es que e l ta m b o r, sen o r dei cu rso d e la v id a , d e fin e ta m b ié n el cu rso de
la v id a se c r e ta de lo s e s p ír itu s m iste r io so s. Y no so la m e n te a l n eg ro perd id o
en lo s m isté r io s a fr ic a n o s, sin o a lo s n e g r o s m á s u ltr a c iv iliz a d o s. L a lle v a n
en la m a s a d e la sa n g r e .

Encontram-se, desse modo, numa encruzilhada de conceituações,


sobre dois tipos humanos, o genial psicólogo C. G. Jung e o fasci-
nador ensaísta F. E. Tejada. Segundo a tradução espanhola, o p ri­
meiro diz do negro;
P a r a e l n eg ro e s in ú til p r o c u r a r u n a in te r p r e ta c ió n in te le c tu a l dei cosm os.
E l ed én d iv in o d e la s c o sa s no s e e n tie n d e , s e c a p ta . E l sen d ero de la
v e r d a d no s e r p e n te a e n tr e fa t ig o s a s m o n ta n a s de la in d a g a c ió n m e n ta l,
sin o q u e su b e v e r tic a lm e n te p o r la s a la d a s im á g e n e s de la a d iv in a c ió n q u e
no d iscu rre. E l n e g r o en tie n d e e l m u n d o co n la s in tu ic io n e s dei corazón .
S u o rd en e s u n a ta b la de a rm o n ía s m á s q u e u n quad ro de v erd a d es. L a
v id a de la s tr ib u s n e g r a s s e a c o m p a sa a e s ta s a r m o n ía s c o le c tiv a s porq u e
c o le c tiv a e s la lla m a d a dei tam b or, in str u m e n to r itu a l p a r a m over m a sa s,
so n so n e te a p to p a r a en h eb ra r m u ch ed u m b res. Lo q u e la fla u ta y el v io lín
tie n e n d e in d iv id u a l tie n e el tam b or de c o lec tiv o . Con la fla u ta y con el
a r p a cab e a r r e b a ta r u n g r u p o m in o r itá r io . U n ic a m e n te con el tam b or e s
p o sib le lle v a r a la c a lle n u m e r o sa s m u ch ed u m b res.

E C. G. Jung, sobre o hindu, diz:


U m h in d u , en q u a n to h in d u , n ã o pensa; p elo m en o s n ão p e n sa n a fo r m a
q u e e n ten d em o s o ato de p e n sa r . O h in d u em v e z d isso percebe o p en sa m en to .
O h in d u a sse m e lh a -se a o s p r im itiv o s n e s te sen tid o .

Assim, às «intuições» do coração do Negro está ligada a sua fé


naquele complexo simbolismo, nas múltiplas funções mágicas inerentes
ao tambor, como o reconheceu Mircea Eliade, estudando as técnicas
arcaicas do êxtase.

182
Do ponto de vista místico e mítico, essa fé resulta, no Negro, mh
Mtiu concepção de que o material, utilizado no preparo de um tambor
procedente de uma árvore sacralizada, já trouxe consigo as suas ca
racterísticas sagradas, e, desse modo, cabe a ele transm itir, através da
magia das suas vibrações, os apelos necessários para que os Voduns ou
Onxás baixem sobre a cabeça das noviches e gonjais, e, depois, nestas
ao incorporem, predominantemente.
Com referência à construção dos tambores, para fins litúrgicos, de
lato, predominam exigências que Boris de Rachewiltz pormenoriza, de
modo bastante curioso:

T h e c o n str u c tio n o f dru m s, ca p a b le o f p a r tic ip a tin g in th is w a y in th e


cosm ic econ om y w a s n o t le f t to a r tis a n s , fo r i t w a s a sa c r e d a r t in v o lv in g
th e u s e o f a se x u a l sy m b o lism p ro p er to r itu a l ev o ca tio n . L eo F r o b e n iu s
w a s ab le to c o lle c t d e ta ile d in fo r m a tio n on t h is su b je c t a m o n g th e W a te v e
in P o r tu g u e s e M oçam bique. T h e d ru m s w e r e d ivid ed in to tw o d is tin c t g r o u p s :
“m a le ” an d “fe m a le ”. T h e fe m a le d rum h a d to b e n a ile d w ith p a r tic u la r
ca re, b e c a u se on i t d epended th e f e r t ilit y o f a li th e w o m en d a n c in g to
it s ry th m e. T h e m a in n a ils , w h ic h w e r e o f iron , h a d to b e c a s t o u t o f
old a g r ic u ltu r a l in s tr u m e n ts th a t h a d b een u se d fo r a lo n g tim e in t h e
c u ltiv a tio n o f fie ld s . H e r e th e r e m a in in g n a ils w e r e o f w o o d an d , b e c a u se
th e y p e n e tr a te d an d p e r fo r a te d th e d rum , w e r e eq u a ted w ith th e m a le
m em b er. T h e se h a d to be fa s h io n e d fr o m a m a le tr e e . T h e d ru m -m a k ers
h a d to a b sta in fr o m se x u a l in te r c o u r se fo r a fe w d a y s b e fo r e b e g in n in g
th e ir w ork . A n im a is w e r e sa c r ific e d d u r in g th e n a ilin g o f th e d ru m s,
w h ic h w a s c a r r ie d o u t b y a m a n w h o m a d e th e h o le s fo r th e n a ils a n d
h a m m ered th e m in , w h ile th e w o m en h eld th e fr a m e . T h e ir a c tio n c le a r ly
sym b olized th e r o le s o f th e ir r e sp e c tiv e s e x e s . 64

Fernando Ortiz, em sua obra a africcmía de la música folklórica


tlc Cuba (Ediciones Cardenas y Cia., Havana 1950), dedicou o capítulo
IV à apreciação de «Los ritmos y las melodias en la música africana».
E isso em mais de 70 páginas!
De modo que é impossível fugir-se à citação, aqui e ali, de certos
períodos, ricos de conceitos, que nos lembram os de Francisco Elias de
Tejada, muito embora Fernando Ortiz, na opinião de Alfonso Reyes,
«es sabio en el concepto humanístico y también en el concepto humano».
De início ele assim se pronuncia:
1 i Kiq a tra d u ç ã o do te x to acim a:
"A c o n stru çã o de tam b o res, capazes de p a rtic ip a r, deste modo, n a cósm ica econom ia, não fo i
a b an d o n ad a a a rte sã o s, p o rq u e tra ta -s e de u m a a r te s a g ra d a envolvendo o uso de u m sim bolism o
sexual p ró p rio do r itu a l de evocação. Leo F ro b en iu s se revelou hábil ao co letar in fo rm a çõ e s
po rm en o rizad as sobre o a ssu n to e n tre W atew e do M oçam bique p o rtu g u ê s. Os tam bores e ra m
divididos em dois d istin to s g ru p o s: “ m ach o " e “ fêm ea” . O ta m b o r fêm ea tin h a de ser p re p a ra d o
com p a rtic u la r cuidado, p o rq u e disso d ep en d ia a fe rtilid ad e de to d a s a s m ulheres d an çan d o do
acordo com o seu ritm o . Os p reg o s p rin c ip a is , que deviam s e r de fe rro , deviam se r fe ito s
do pedaços de velhos in stru m e n to s ag ríc o la s usados, d u ra n te longo tem po, n o cultivo dos cam pos.
Aqui h á o u tro exem plo d a lig ação e n tre a fe rtilid a d e do hom em e d a te r r a . Os p regos re s ta n te »
eram de m a d e ira e, p o rq u e p e n e tra v a m e p e rfu ra v a m o tam b o r, e ra m com parados ao m e m b ro
viril. E ste s te ria m de se r feito s de u m a á rv o re m asculina. Os co n stru to re s do ta m b o r deviam
alm ter-se de relaçõ es sexuais p o r a lg u n s d ias a n te s de com eçar a obra. S a c rificav am -se anlrnalis
d u ra n te o tra b a lh o de p re g a r os tam b o res. E sse serviço e ra realizado p o r um homem que fa z ia
os b u raco s p a r a os p reg o s e os b a tia , e n q u an to a m u lh er s u ste n ta v a a e s tru tu ra . E ssas nçõcis
sim bolizavam c la ra m e n te o p ap el dos resp ectiv o s sexos” .

183
Y a d esd e s u s f a s e s em b r io n á r ia s la m ú sic a su e le e s ta r in te g r a d a p or el
ritm o y la m elod ia, en fo r m a s m á s o m en os r e le v a n te s. E n su s m a n ife sta -
c io n e s m á s s e n c illa s, la e x p r e sió n m u sic a l no e s m á s que u n acen to p róxim o
a la p a la b r a ( e l ad-cantus, com o si d ijé r a m o s el ton o p róxim o a l to n illo
de la p r o s o d ia ) : e l “g ir o m elód ico”. O b ien e s la e sta tiz a c ió n de un
m o v im ien to de “g ir o r ítm ic o ”. Y por a m b a s v ia s s e h a ido d esarrollan d o
ta m b ié n la m ú s ic a de lo s p u eb los de Á fr ic a .

Contrariando a opinião, por exemplo, de Eduardo Sánchez de Fuen-


tes, para quem a música africana «sólo tenía ritmo, y más que música
era sólo ruido», Fernando Ortiz — embora aceite que o aspecto me­
lódico «proviene de la blanca» — conceitua, com indiscutível acerto:

. . . no h a y d u d a de q u e la m ú sic a a fr o c u b a n a h a recib id o la m a y o r p a r te
de su r iq u eza m eló d ica de la m ú sic a b la n c a ; p ero n a d ie p u ed e d em o stra r
q u e lo s n e g r o s ab an d o n a ro n en C uba su s m e lo d ia s a n c e str a le s, p u es é s ta s
a ú n r e su e n a n c a d a d ia e n e s te p a ís p a r a fe r v o r iz a r lo s d ev o to s de lo s
d io s e s a fr ic a n o s y m u c h a s de s u s c a d ê n c ia s in te g r a n h o y la m ú sic a b a ila b le
p op u lar.
S e e n c u e n tr a n la s m e lo d ia s n e g r a s y m u la ta s en e l ca n to , donde la m ú sic a
se h a m a rid a d o con la p o e sia , y a s í m ism o lo s in s tr u m e n to s m u sic a le s.
N o sólo p o see e l n e g r o la ritmopea en la s tr e s m a n e r a s g r ie g a s (esicástica
o ca lm a , s istáltica o s u a v e y distáltica o e x c it a n t e ) , sin o ta m b ién la
metopea.
In d u d a b lem en te, e l elem en to p red o m in a n te en la m ú s ic a a fr ic a n a e s el
r ítm ic o . T o d a s la s e x p r e sio n e s d e lo s n e g r o s a fr ic a n o s, la p a la b r a , el
r ecita d o , e l v e r so , e l ca n to , el coro, el in str u m e n to , la o r q u e str a y la
d an za, e sta n u n id a s p o r u n fo r tísim o e in e sc a p a b le e n c a d en a m ien to de ritm os.
N o p or “r a z a ” sin o p or c u ltu r a , p u es, el ritm ism o e s c a r a c te r ístic o d e los
p u eb los ile tr a d o s.
E l ritm o e s e l e stím u lo de lo p r im itiv o , en v e z de r a cio c ín io . S u s em ocion es
resp o n d en m á s a la s c a d ê n c ia s q u e a lo s ju ic io s.

Mais adiante Fernando Ortiz continua:

L o s p s ic o a n a lis ta s in te r p r e ta n e s e ritm ism o dei h om b re p r im itiv o com o lig a d o


a l in s tin to se x u a l, com o u n a u to m a tism o y te n d e n c ia in co n tro la b le a la
re p e tic ió n , que s e dá ig u a lm e n te en lo s n in o s, en lo s lo co s y en lo s p o eta s,
sob retod o en lo s m o d e r n ista s.
S e tr a ta , se g ú n F r e u d y s u s d iscíp u lo s, d e u n S u p e r e g o débil q u e se
a b a n d on a a la s e x p r e sio n e s de tip o in fa n til, p r e g e n ita le s. N o c o n stitu y e
u n a ir r e v e r e n c ia , d ice, A r th u r R am os, co m p a ra r e s a p o e sia a la a c tiv id a d
lin g ü ís tic a dei n in o y dei a lie n a d o ; sólo e s d e sta c a r la id en tid a d de
m eca n ism o p sico ló g ico , a l se r v ic io de a c tiv id a d e s h u m a n a s m u y re m o ta s o
e le m e n ta le s.

Como Lucie Couturier, Fernando Ortiz vê no Negro aquela árvore


que aprofunda, as suas raízes nas fontes do ritmo.
E o autor de Los negros brujos — a prim eira das suas obras que
me foi dada ler, oferecendo-a a Mário de Andrade, para assinalar o
nosso encontro em Natal, na Vila de Dom Luís da Câmara Cascudo
— ainda nos proporciona mais estes trechos:

184
El n e g r o p u ed e d ecir, como el a n d a lu z, q u e “no c a n ta porque lo oHoiiehrii",
en la fr a s e d e R o d ríg u ez M a rín , y “n i b a ila porq u e lo v e a n , ni ta íio porque
lo p a g u e n ; sin o porq u e to d a su v ita lid a d tie n d e a p la sm a r se en ritm e".
El n e g r o s e a d orn a con ritm o s m á s q u e con c o lla r e s, p ie le s y plum a*. No
es p o r sim p le p la c e r q u e c a n ta , sin o p or e l p od eroso e fe c to e x c ita n te que
el ritm o p rod u ce e n s u s e n e r g ia s m e n ta le s y m u sc u la r e s.

E ainda me sinto impulsionado a citar, finalmente, mais este mag­


nífico trecho devido ao gênio de Fernando Ortiz:
L os n e g r o s lle v a n e s e se n tid o r ítm ic o a to d o s lo s m o v im ien to s de su v id a ,
e sp e c ia lm e n te a lo s de la co le c tiv a . L os ritm o s aco m p a n a n to d o s su s e sfu e r z o s;
lo s im p u lsa n , lo s e stim u la n , lo s con d u cen y lo s so fr e n a n . Y sob re tod os los
r itm o s c o le c tiv iz a n s u s a c tiv id a d e s, h a cien d o p o sib le la v id a fu e r te m e n te
so c ia liz a d a de n eg ro , tod a tr ib a l, c o n y u g a d a y co o p e r a tiv a . L a m a rch a, el
tr a b a jo , la cerim o n ia , la r e lig ió n , la e sc u e la , la ca za , la g u e r r a , el gob iern o,
la ju s tic ia , la h i s t o r i a . . . tod o s e tr a d u c e en r itm o s; sob retod o la e fu sió n
d e la s g r a n d e s em ocion es. E s m a r a v illo sa la p ro p en sió n de lo s n e g r o s por
lo s r itm o s y la fa c ilid a d con q u e lo s a sim ila n y lo s in co rp o ra n a su s
e x p r e sio n e s c o le c tiv a s.

Para Mircea Eliade um tambor, preparado de acordo com certas


exigências rituais, é claro, perm itirá ao xamã (feiticeiro ou sacerdote),
graças a suas vibrações, ser projetado magicamente ao Centro do
!\lundo, à sede da Árvore Cósmica e do Senhor Universal, pondo-o em
contato com ela.
É que esse tambor, dada a sua origem, captou em seu bojo a magia
musical.
Xamãs, feiticeiros ou sacerdotes, também, para uma viagem está-
I ica até aquela Árvore Cósmica — imagem suprema da que lhe deu
o material exigido para a sua estrutura e lhe transmitiu característi­
cas divinas — consideram o tambor (como no culto dos Voduns e dos
Orixás, em Salvador ou em São Luís consideram as criaturas que os
recebem) uma sagrada montaria, um cavalo.
Já dei uma interpretação a essa atitude, mas aí está uma outra
m ais:
O costume de alguns tocadores desse instrumento o cavalgarem
seria, provavelmente, a representação simbólica do papel que ele desem­
penha no levar o xamã, o feiticeiro ou sacerdote, à viagem estática.
Sobrevivência do culto das árvores sagradas — latente nos textos
búdicos em língua poli, segundo O. Viennot, em plena índia, e entre
as populações indígenas da África — ali está a figueira acvatha, «cuja
folhagem enche o mundo», e aqui, segundo Palau Marti, está uma
coíba Egi arabanla, ante a qual o Chefe dos Ilari, chamado Olori,
mleiramente nu, dada a circunstância, vinha depositar as suas oferen­
das. E essa árvore da flora africana, como a da índia, nunca fora
cortada, pois assim o entendiam os seus adoradores.
E, para um santuário, dedicado a este ou àquele Vodun, nada
mais propício que uma árvore oca, onde se reunirá tudo quanto re-

185
presente a sua fig u ra : as oferendas rituais, as propiciatórias e as
de pagamento.
Talvez ligada a esse culto das divindades vegetais ou das plantas
sagradas, uma conarácea da Amazônia (Sul) e de Goiás, também co­
nhecidas pelo nome de árvore-dos-feiticeiros, é a Connarus Patrisü
Planch.
É, para Paul Le Cointe, planta inofensiva, do domínio das su­
perstições, sendo as suas sementes «úteis contra a fraqueza geral, o
abatimento».
Na Casa das Minas, de São Luís, no gumé, isto é, no amplo terreiro
aberto frente à varanda, onde se realizam as danças, e, no Natal, se
arm a um presépio, existe uma cajazeira, de grande porte e idade cal­
culada em cerca de um século, que é venerada como uma divindade, a
ela estando ligados alguns fatos ilustrativos da predileção que lhe a tri­
buem os Voduns mina-jejes e das forças mágicas presentes no seu
tronco e na sua ramaria. À base deste foram espalhadas algumas
pedras-de-raio e búzios marinhos, mas no chão em que mergulham
as suas raízes foram enterrados elementos indispensáveis à firmação
das suas forças cósmicas e mágicas.
Essa árvore não representa, propriamente, um santuário de Vodun
mas, entre a sua ramaria, já foram visto toquens e a ela se dirigem
especiais vibrações dos toques musicais dos tambores.
Em volta do seu tronco, nos dias festivos, passam uma toalha de
fino tecido, com bordos simbólicos e rendas delicadas, como se faz
nas danças litúrgicas, envolvendo o tronco das noviches e gonjais, que
dançam em estado de transe.
Mas tristes recordações estão ligadas à vida dessa árvore, pois
lhe atribuem a morte fulminante de um indivíduo, a quem Maria Ro­
mana, substituta de Mãe Andresa, incumbira de aparar uns galhos, e
a conseqüente morte desta e de sua filha, residente no Rio de Janeiro.
Como a árvore sagrada acvatha dos indianos, a figueira, aquela
cajazeira da Casa das Minas não podia ser mutilada, sem que isso
importasse numa desgraça.
Quando a sua galharia se cobre de frutos acidulados só os pássa­
ros os comem impunemente; as crianças não lhe jogam pedras nem
sobem nela, limitando-se a apanhar aqueles frutos que caem ao chão,
naturalmente, da vetusta galharia.
Pode-se imaginar daí que respeito merecem as árvores de cujos
troncos são feitos os tambores.
Ouvindo o toque desses tambores, vibrados nos dias de festa e,
igualmente, nos dias de luto (pois estes não se denominam tambor es-
de-choro?) pode-se, ao fim de continuada atenção, saber a que Vodun
se dirigem as suas vozes, já pela regularidad de la repetición, que
é o ritmo, na definição de Adolfo Salazar, já pelas primeiras frases
de um cântico, elevado, primeiro, por um solista, já pelo desenvolvi-

186
mento que se lhe segue, a cargo de um coro de gonjais e noviches, a
que se associam os tocadores desse instrumento, principalmente.
Referindo-me aqui a essas particularidades de função religiosa dos
lambores da Casa das Minas, impossível foi esquecer o que, a respeito
dos instrumentos de percussão, de origem francamente negro-africana,
escreveu o incomparável Mário de Andrade em sua Pequena História
(Ia Música (em nada inferior à do eminente musicólogo Adolfo Salazar,
La música), na precisão deste tópico:

D o d ilú vio de in s tr u m e n to s q u e o s e sc r a v o s tr o u x e r a m p a r a cá, v á r io s se


to r n a r a m d e u so b r a sile ir o co rren te, q u e n em o g a n z á , a p u ita o u cu íc a
e o ta b a q u e ou a tab aq u e. In str u m e n to s q u a se to d o s de p ercu ssã o e x c lu s iv a ­
m e n te r ítm ic a , e le s se p r e sta m a o r g ia s r ítm ic a s tã o d in â m ica s, tã o in c is i­
v a s , co n tu n d e n te s m esm o, q u e fa r ia m in v e ja a S tr a w in s k i e V illa -L o b o s.

Esses aspectos de orgias rítmicas são característicos da festa das


Tôbôssis «que são espíritos», e, baixando à terra, «vivem como as pes­
soas», isto é, humanizam-se, explica Andresa Maria. Sentadas no chão,
como acima referi, brincam com bonecas e conversam entre si, numa
lingua especial, difícil de ser compreendida (Andresa Maria dizia que
falam «bem aborrecido e atrapalhado»). Aquelas meninas mantêm uma
alegria constante no decorrer das danças dessa festa do Carnaval, sem
que, mesmo humanizadas, desçam a exageros, a excessos, ridículos e
inconveniências que caracterizam, lá fora, o Carnaval. . . e certas ma­
cumbas do Rio de Janeiro.
Daí, conseqüentemente, por que se não aceitar que as vibrações
de um instrumento, expressas em arroubos de profunda religiosidade,
não levem as noviches e tôbôssis e um simples filiado ao culto dos
Voduns até a Árvore Cósmica, ao Centro do Mundo, ao Senhor Uni­
versal, enfim, até Deus?
Até Deus, sim, porque o conceito sobre a incapacidade do Negro,
no que se refere à concepção de um Deus Uno, debilmente resistirá
ao que, numa conferência pronunciada no Cairo em 1967, expressou
o notável poeta e insigne homem público Léopold Sédar Senghor, cuja
personalidade, dada a sua origem étnica e formação cultural, ostenta
um surpreendente equilíbrio entre o Mundo Africano e o Mundo
Ocidental.
À página 96 da plaqueta intitulada Les fondements de l’africanité
ou negritude et arabité eis em que termos ele conceitua:

L es a p p a r e n c e s se n s ib le s s e p r é se n te n t so u s d es fo r m e s d iv e r g e n te s d an s
le s r è g n e s v é g é ta l, a n im a l e t m in éra l. M a is ce n e so n t là q u e le s m a n ife s ta -
tio n s d ’u n e se u le réalité fondamentale : 1’u n iv e r s, r é se a u d e fo r c e s d iffé r e n tc s ,
m a is c o m p lém en ta ires, q u i so n t com m e n o u s l ’a v o n s v u , 1’e x p r e ssio n d es
v ir tu a lité s r e n fe r m é e s en D ie u , se u l ê tr e v r a i. C ar Dieu est, en core uno
fo is , la Force des Forces. D ’oü le m o n ism e de 1’o n to lo g ie n é g r o -a fr ic a in e .
L ’u n ité de 1’U n iv c r s se r é a lise en Dieu p a r la co n v e r g e n c e d es fo r c e s
c o r r e sp o n d a n te s e t co m p lá m en ta ires, is s u e s d e D ie u e t ord o n n ées v e r s D ieu .

187
Comme on le c o n sta te , l ’o n to lo g ie n é g r o -a fr ic a in e p roced e p a r dialectique
polymorphe, p a r indu ction , p a r in v o lu tio n e t e x te n sio n . P a r intégration au
sens étymologique du mot. 65

XXVIII
O comportamento, por assim dizer, jogralesco, de Legbá, mas, so­
bretudo, sua capacidade de parlamentar, de desempenhar embaixadas,
de resolver os casos mais delicados e complexos das atividades dos
Voduns e das preces e súplicas dos fiéis que o buscam, em pleno
desespero ou em plena euforia, lhe perm itiria utilizar a dança como
uma das soluções mais objetivas impostas pelas circunstâncias.
Nas áreas das pesquisas por mim desenvolvidas, entre os Minas
jejes e os Nagôs, de São Luís do Maranhão, não encontrei nenhum
elemento para informar se Legbá ali executa dança especial de sua
predileção, com cânticos para a excitar.
Fernando Ortiz, entretanto, em sua obra, Los bailes y el teatro
de los negros en el folklore de Cuba (ver Caderno Iconográfico, n.
20 e 21) (Ediciones Cardenas y Cia., Havana 1961) — às páginas
202-209 — descreve os bailes de Eléggua.
Ofereço aos leitores desta obra, na frescura e precisão do seu
texto, quanto Fernando Ortiz, o inolvidável Mestre, amigo de A rthur
Ramos, nos legou, ao longo dos parágrafos que seguem:

E l Oru “ de a fu e r a ” com ien za, com o lo s o tro s, h oran d o a l tr a v ie so Eléggua,


ta m b ié n conocido por Elégbara y Echu. E s te e s e l d ios que “a b re y cier ra
e l c a m in o ” ; n o p u ed e se r olvid ad o. E n Á fr ic a com o en C uba, s u s fie le s
lo co lo ca n siem p re d e tr á s de la p u e r ta de la c a sa p a r a que, a l e n tr a r y
s a lir d e e llo s, lo s lib re de todo m al. E s u n d io s in q u ie to q u e s e com p lace
en m o le sta r de m a n era im p r e v ista a q u ien n o lo r e sp e ta . S u a c titu d p u ed e
f a c ilit a r o en to rp ecer c u a lq u ier p rop ósito, a u n quando é s te fu e r a fa v o r e c id o
p or o tr o orichá. E s la m e ta fís ic a p e r so n ific a c ió n dei a z a r y de la su erte.
S e le co n sid era como un m u ch ach o dado a b rom as, a v e c e s p e sa d a s, y a
c a p r ic h o s a s tr a v e s u r a s. L os c r is tia n o s d icen e r ro n ea m en te q u e Eléggua e s
e l d ia b lo ; pero lo s n e g r o s y o r u b a s n o tie n e n en su m ito lo g ia u n p e r so n a g e
sie m p r e m a lv a d o com o S a ta n á s . E n Á fr ic a Eléggua e s u n dios erótico,
p ero e n C uba p a rece h a b er o lv id a d o e se c a r á c te r . A c a so p orq u e a q u i y a
su r itu a lism o de fe r tiliz a c ió n h a perd id o su fu n c ió n so c ia l, dado el rég im en
d e v id a econ ôm ica a q u e tu v o de a ju s ta r s e el n eg ro a fr ic a n o , ta n d is tin ta
d e a q u e lla de allen d e. Q u izá ta m b ié n porque la p r e sió n n o r m a tiv a dei
a m b ie n te so c ia l cub an o h a llev a d o a p r e sc in d ir de todo e se sim b olism o que
a q u i s e to m a r ia com o de r e p u g n a n te ob scen id ad , p rovocan d o sa n c c io n e s

65. E is a tra d u ç ã o do trech o acim a:


“ A s a p a r ê n c ia s sensíveis se a p re se n ta m sob fo rm as divergentes nos re in o s v egetal, a n im a l e
m in e ra l. M as n ão são m ais que m a n ife staç õ e s de u m a ú n ica realidade fu n d a m e n ta l: o U niverso,
e n tre la ç a m e n to de fo rç a s d iferen tes, m as com p lem en tares, que são, como n ó s o vim os, a expressão
d a s v irtu a lid a d e s en ce rrad a s em Deus, o ú n ico se r verdadeiro.
P o rq u e é Deus, a in d a u m a vez, a F o rça das F orças. D aí o m onism o d a ontologia n e g ro -a fric a n a .
A U n id a d e do U niverso se re a liz a em D eus p e la convergência d as fo rç a s corresp o n d en tes e
c o m p le m en tares, saídas de D eus e o rd e n a d as p o r Deus. Como se^ v e rifica , a ontologia negro-
a fric a n a pro ced e pela d ialética p o lim o rfa, p o r indução, p o r involução e extensão. P o r in te g ra ç ão
no s e n tid o etim ológico d a p a la v ra ’*.

188
r e s tr ic tiv a s . E n Cuba hubo q u e p r e sc in d ir d e la p a n to m in a co p u la r , como
de lo s r ito s ju d ic iá r io s, la c ir c u n c isió n , el sa c r ifíc io h u m an o y otron
e le m e n to s de la r itu a lid a d r e lig io s a y so c ia l q u e no s e p od ia am algum iu-
con e l siste m a de la socied ad cu b a n a . P ro ceso n e c e sa r io y sim u ltâ n e o de
desculturación, o aban d on o de c ie r to s e lem en to s de la s c u ltu r a s a fr o c c id e n -
ta le s y n e g r a s, y d e acidturación o acom od am ien to a c ie r ta s e x ig ê n c ia s do
la s c u ltu r a s e u r o c c id e n ta le s y b la n c a s, p a r a lo g r a r s ín c r e s is d e transcultura-
ción, o p roceso de tr a n s ic ió n , la re a d a p ta c ió n y r e a ju s te en o tr a c u ltu r a ,
la cu b a n a y m u la ta , que e s u n a n u e v a creación .
C uando e se o r ic h a “s e su b e ”, o se a cu an d o uno d e su s c r e y e n te s se sie n te
p oseíd o p or él, v a en se g u id a o c u lta r se tr á s de la p u e r ta q u e e s su lu g a r
de r itu a l. N o c e sa de sa lta r s e y m o v erse se g ú n su ca p rich o y de h acer
g e s to s in s ó lito s com o un m u ch ach o in q u ieto y rev o lto so . Eléggua m u eq u ea
de m a n e r a risib le , ju e g a e l trom p eo y a la s b o la s, em p in a el p a p a lo te,
g o lp e a a lo s c ir c u n s ta n te s , h a ce e l trom p eo q u e s e v a y r e to m a b ru sca -
m en te, se a p od era d ei som b rero de u n esp ecta d o r y s e cu b re con él, o
de u n ta b a co y lo fu m a , etc. C on la m an o d erech a a b ie r ta y su p u lg a r
en la p u n ta de la n a r iz , m u ev e lo s o tr o s d ed os en serial d e b u r la , como
en e l fo lk lo r e de c ie r to s p u eb los d e E u r o p a ; o b ién , cru za n d o lo s dos
b ra zo s p or la s m u n e c a s y con la s m a n o s c e r r a d a s en p uno, m u e v e e sta s
ra p id a m e n te , a rrib a y a b a jo , con a d em á n q u e en e l fo lk lo r e de C uba, lo
sa b em o s se r p o r in flu jo a fr ic a n o , e s u n a a le g o r ia p ic a r e s c a d ei a c to s e x u a l;
y ta m b ié n , con u n a m an o en e l b a jo v ie n tr e y o tr a en la n a lg a se con ton ea
con a ir e de la s c ív ia . E s to s a d em a n es d eb en de s e r r e m a n e n te s de m im ica
e r ó tic a en Á fr ic a . T am b ién p a r e c e q u e h a de serio e l u so d e un p aio
com o de m ed io m etro , te r m in a d o en fo r m a de g a n ch o , q u e s e d ice
“g a r a b a to ”. E s e “g a r a b a to ” e s m ovid o de u n lad o a otro com o si con él
fu s e a p a r ta d o la m a le z a o s e a b r ie r a sen d a en la se lv a , p or lo q u e se
ve, sim b o liza su fu n c c ió n de “a b r ir ca m in o ”. P ero o tr o s d icen q u e e s p a r a
“a tr a e r ” com o h a c e n el hom b re y la m u je r cu an d o “tie n e n g a n ch o o
g a r a b a to ”. A ca so e s te p a io se a su p e r v iv e n c ia em b lem á tica dei fa lo q u e
en G u in ea c a r a c te r iz a a e se d io s “m a ch o ” y g u errero . Eléggua v is te u n a
ja q u e tilla , u n p a n ta ló n cefiido en la s r o d illa s y u n g r a n g o r r o com o el
típ ic o de lo s co cin er o s, tod o ello d e dos co lo re s: n e g r o y rojo. A veces
ca d a p ie m a dei p a n ta ló n e s de color d istin to o de am b os en li s t a s a lte r n a d a s.
A s í la c h a q u e ta com o e l p a n ta ló n , y so b re todo el g o rro , su elen e s ta r
a d orn ad os con cauris, c u e n ta s y c a sc a b e le s. L a f ig u r a r ecu erd a la d e c ie r to s
a n tig u o s b u fo n e s y la de a q u ello s b a ila d o r e s de la d an za Morisca o Morria
dance de lo s sig lo s X V y X V I. Eléggua b a ila con fr e c u e n c ia en u n solo
p ie, a la c o r c o jita , y dando v u e lta s , por lo q u e p a rece se r a le g o r ia dei
rem olin o de v ie n to . S u s m o v im ie n to s im p r e v isto s y c a p rich o so s d eja n un
g r a n cam po a la im p r o v isa c ió n q u e el b a ila d o r e n tu s ia s ta , a u n q u e “su b id o ”,
a p ro v ech a p a r a lu c ir su v ir tu a lism o y so rp ren d er y d e le ita r a lo s e sp e c ta d o ­
r e s; com o si é sto s v ie r a n en ello el co n ten to dei d ios que de ta l m a n era
lo s com p lace. L os b a ila d o res, uno tr á s otro, su e lto s y en ru ed a sin ie str o -
v e r sa , lo im ita n en su s p a so s y m o v im ien to s m á s co r r ie n te s. A Eléggua
se d ed ica n tr e s toq u es.

O admirável retrato que Ortiz nos dá de Legbá ou Eléggbá não


poderia te r maior e mais competente executante.
Os traços são de uma autenticidade indiscutível e as cores fixam
perfeitamente os trajos dessa divindade, sendo-lhe os movimentos (pois
esse retrato se move!) de comicidade bufonesca, que só um Goya po­
deria enquadrar numa tela imortal.
À página 51 desta obra, eu me refiro a um Nijinski negro «bai­
lando com tal expressão e tal movimento que hei de, sempre, lhe re­
cordar a figura, principalmente porque, numa das suas danças, com
um punhado de cinza à palma das mãos, a ia soprando às portas
e às janelas, para ‘fechar os caminhos’ contra inimigos, a polícia,
sobretudo.. . »
E, por vezes, dançava numa perna só, como o Saci-Pererê do len­
dário indígena, e o Eléggbá dos Negros cubanos.
Quanto à posse de monstruoso pênis e agressividade erótica, só
comparável à dos faunos da mitologia grega, acontece já haver per­
dido, no Brasil, como em Cuba, no dizer de Ortiz, «ese carácter».
E a essa particularidade se refere Roger Bastide, na carta que me
mandou em resposta, como se lê à página 207 desta obra, era em
reedição.
E, quanto à sua representação em estatueta ou imagem, posta
atrás de portas, nada me foi dado verificar nas casas das gonjais
e noviches, ligadas aos Voduns cultuados no Quêrêbetan de Mãe
Andresa Maria, em São Luís do Maranhão.
Ortiz afirm a que Eléggbá é um deus; Bastide nele viu apenas a
figura de uma espécie de embaixador ou de public relation dos Voduns.
Na mitologia dos índios Tucuna, do Vale do Solimões, uma figura
me lembrou a de Eléggbá: o endemoninhado Toé, dono de disforme
pênis, de incontrolável agressividade erótica, quando se apresenta na
Festa da Moça Nova, ou Vorequi.

XXIX
Quando os Voduns baixam, por ocasião das tradicionais festas,
realizadas na Casa das Minas, segundo os termos de particular ca­
lendário, é que se tem oportunidade de ouvir as expressões mais nume­
rosas, variadas e belas do cântico que a voz do Negro africano trouxe
para a terra maranhense.
Esse cântico é denominado ponto, doutrina, porém, aqui, sempre
me referirei a cânticos, mais apropriado este vocábulo à riqueza de
melodias que ele encerra.
Há, também, além daquelas designações, a de cantiga, que não me
parece corresponder integralmente aos matizes da voz humana elevando-
se, com finalidade litúrgica, num templo ou mesmo ao ar livre.
O cântico, sem dúvida, contém em sua estrutura uma força de
comunicabilidade apropriada ao contato com a divindade.
Quem admitiria chamar-se cantiga a uma peça gregoriana, mesmo,
como diria Mário de Andrade, «prodigiosamente deformada»?
Cântico é tudo aquilo, pois, que ouvimos da boca das gonjais e
noviches, paralelamente, à voz dos atabaques ou tambores.
O início dessas festas é feito pela voz de uma das filhas ou
mulheres dos Voduns, num solo e anunciando, da sala onde estão reu-

190
ilidas, que os seus senhores, os seus santos, os seus Voduns, já se llies
incorporam e vão passar para a sala destinada às danças rituais.
Três tambores são vibrados, num toque característico, chamando
ns Voduns ou, então, as gonjais e noviches, e estas ainda em trajo
caseiro, com as toalhas de espera sob o braço, deixam a sala em que
hc encontravam e seguem para a sala das danças.
O cântico é entoado em homenagem aos Voduns.
Sentadas em bancos corridos, as gonjais e noviches esperam que
os Voduns nelas se incorporem, e, logo que isso ocorre, saem para
vestir os trajos apropriados a cada Vodun, entreajudando-se numa de­
pendência da Casa destinada a esse fim.
No pégi já foram iluminadas as lâmpadas elétricas e acesas as
velas, frente às ja rra s sagradas, que representam, como já foi dito,
as entidades correspondentes às três famílias sagradas: Quêviôçô,
Davice e Dambirá.
Voltando à sala de reuniões dos Voduns (Randechê) ali se cum­
primentam, conversam, fumam cachimbo, com grande dignidade senão
majestade. A assistência, na varanda ou sala das danças, que é a
mesma onde estão os tambores ou atabaques, em bancos corridos e
cadeiras, se compõe de filiados e de simpatizantes do culto, e, já agora,
de alguns turistas para lá encaminhados pelo órgão competente, ou
at raídos pelos toques dos instrumentos, toques ouvidos a grande
distância.
Ao iniciar-se a entrada (em duas alas, na sala das danças) dos
Voduns, ouve-se este cântico, que também soa ao fim da festa, no
remate dos tambores:
É para Vodun ê Dô
acundêrê viô Dá
É para é para
Vodun Dô
Dadá missó.

Outrora, dado o comércio entre Salvador e São Luís e mesmo


entre essa cidade e Lagos, por exemplo, as chamadas fazendas da
Costa (Costa d’África), as panarias, de impressionantes desenhos e ma­
tizes típicas dali, e não menos coloridas as que (reduzido aquele co­
mercio, eram fabricadas em Salvador e tinham o nome de panos de
balaio) davam aos trajes dos Voduns cortes e cores de grande efeito
decorativo e particular simbolismo.
As estampas polícromas dos Dieux d’Afrique, de Pierre Verger,
eram, sem dúvida, as que mais seguramente corresponderiam às que
meus olhos ainda puderam ver nos trajes das Negras minas, «Mi­
neiras», como ainda as chamam em São Luís.
Mas o cântico, de «começar a rematar» a festa dos Voduns, nesta
ou naquela data do ano, tinha, mais ou menos, este texto:

191
É içá êê içá
a g ô m a ie n o venê iç á (b is).

Cada Vodun, no desenvolvimento da festa, ouvia o cântico que lhe


era consagrado.
Há particularidades nesses cânticos que revelam a personalidade
do Vodun a quem é dedicado ou devido. E, aos toques dos tambores,
além da entonação, que uma solista ou o coro emite, os passos da
dança, de um descritivo impressionante, concorrem para uma singular
complementação deste ou daquele episódio mítico ou histórico.
Badé, Sôbô e Loco, através de um desses cânticos, nos são apon­
tados como pertencentes à nação nagô e não jeje.
Há um cântico que merece registro especial: é o que se ouve
quando os Voduns se retiram da sala das danças e voltam em seguida,
porque ali haviam permanecido os Toquens, que são os «donos da Casa».
E os Voduns que se haviam retirado eram das famílias Davice,
Quêviôçô e Dambirá.
Nesse gesto conjunto, de volta à festa, está compreendida uma
etiqueta que a presença dos Toquens exigia.
O Cântico é entoado nove vezes e os Voduns se movem na sala
como num desfile de especial reverência.
Referindo-se à figura de Boçucó, quando apresentei a estrutura
de cada família de Voduns, descrevi a dança que sua irm ã Abê, acom­
panhada dos Voduns amigos, executa à sua procura, cantando todos,
num coro de extraordinária força dramática. O deus-boêmio dormia
sob uma pedra e sua irmã e amigos o foram encontrar metamorfoseado
em cobra!
Antes de term inar a festa desses Voduns um cântico tem de ser
ouvido pela assistência, de pé, pondo cada pessoa as mãos sobre a
cabeça, mãos de dedos entrelaçados. Este gesto e esta posição signifi­
cam que, no momento, os Voduns já não estão de todo incorporados,
mas apenas na cabeça das noviches.
Cânticos, em número de sete, não podem ser elevados fora do
pégi; e cânticos, relativos a atos fúnebres, não podem ser entoados
noutra ocasião, nem gravados.
Em sua quase totalidade, os cânticos que gravei em fita magnética
devem ser repetidos três vezes, já no empenho de o coro atingir o ethos
propício à deflagração do estado de transe, já porque esses números
têm valor simbólico: estão ligados à mitologia, à história dos Voduns,
dos antepassados e dos reis.
Montserrat Palau Marti, em sua obra Le roi dieu, que abrange
Togo, Daomé e a Nigéria Ocidental, esclarece que esses números são
simbólicos, ou, pelo menos, convencionais.
N ã o é p o s sív e l (c o n tin u a ) f a la r em n u m er o lo g ia a fr ic a n a no se n tid o de
s is te m a de n ú m e r o s; bem ao c o n tr á rio , a m a io r p a r te d os n ú m eros que
v ã o se r tem a aqu i te m u m a e x te n sã o q u a se u n iv e r sa l. M as d isso não n o s

192
o cu p a rem o s; o q u e n o s im p o r ta rá é sa b er o que e s s e s n ú m eros r ep re se n ta m
no dom ínio da n o ssa p esq u isa . É in c r ív e l que c e r to s v a lo r e s n u m éricos
fo r a m ob jeto de u m a se leç ã o so b re a q u al o acordo é g e r a l; p o d e-se d izer
que h á n ú m er o s m á g ic o s; é o sen tid o qu e s e dá a e sse s n ú m ero s; se a
esc o lh a dos s in a is concord a, o s ig n ific a d o pode d ife r ir . B u sq u em os, p or­
ta n to , o sig n ific a d o dos n o sso s “n ú m ero s m á g ic o s”.
O n ú m ero t r ê s (se g u n d o o a u to r c ita d o ) em K etu e s tá lig a d o à lin h a
r e a l o r ig in a l e d iv id e -se em d u a s s u c e ss iv a s r e p e tiç õ e s: a p r im eira d iv isã o
se p rod u z ao tem p o de S h e I p a s h a n , c u ja d e scen d ên cia s e se p a r a em tr ê s
g r u p o s. A n a lisa n d o -s e os d ois a c o n te cim en to s, a p a recem como u m a r e p e ti­
ção u m a da o u tr a e resp on d en d o ao m esm o m odelo m ític o . D o pon to de
v is t a d os n ú m ero s, p o d e-se r e te r q u e o s a n c e s tr a is fu n d a d o re s e stã o aqui
a sso cia d o s ao n ú m ero tr ê s. A a sso c ia ç ã o tr ê s + a n c e str a l s e e n c o n tr a con ­
fir m a d a em O yo on d e o A la d in (r e i) te m p r e cisa m e n te tr ê s “p a is ”. Q uero
f a la r dos B a b a O ba, o s tr ê s p e r so n a g e n s que v im o s u san d o o s t ítu lo s de
O n a-Ish ok u n , O n a -A k a e O no-O na.

Em relação ao número sete Palau Marti esclarece:

O sim b olism o d e sse nú m ero é p o liv a le n te , m a s o s d iv e rso s sím b olos n ão


fa z e m p a r te o b r ig a to r ia m e n te de u m ú n ico siste m a . D e modo esq u em ático
e s s e nú m ero r e p r e se n ta : a fe m in ilid a d e (s e u co m p lem en ta r sob re o p lan o
s e x u a l é o nú m ero n o v e ) ; a m a sc u lin id a d e ; o s a n c e s tr a is ; a fu n d a ç ã o da
a ld e ia ; o rei.
N o c a p ítu lo sob re a s o r ig e n s da r ea lez a , o sím bolo do nú m ero se te já
fo i co n sid era d o em r ela çã o com O ra n iy a n e X a n g ô , fu n d a d o r e s de rein os.
A n c e str a is , fu n d a d o r e s de a ld e ia s, r e is, c o n stitu e m u m a sé r ie h om ogên ea
ond e a e sp e c ia liza ç ã o p o lític a a p a r e ce em ordem c r e sc e n te ; o d enom inad or
com um dos te m p o s d e ssa sé r ie é a v id a , a rep rod u ção, a p e r en id a d e da
e x istê n c ia . Os a n c e s tr a is n ã o são o s m o r to s: o s a n c e s tr a is sã o p e ss o a s que
v iv e r a m n a te r r a a n te s de n ó s e qu e s e r e p a tr ia r a m , n ão e sta n d o n e g a d o s
do m esm o m odo; a m orte (o s m o r to s são o u tr a c o isa d iv e r sa dos a n c e s tr a is )
n ão é sen ã o u m a p a ssa g e m e n tr e a m a n e ir a de v iv e r n a te r r a e além dela.

Podemos avaliar, face a esses esclarecimentos que Palau Marti nos


presta a respeito do valor simbólico dos números, como a tradição lhe
guardou a importância da simbologia, através das repetições dos cân-
licos entoados nas festas da Casa das Minas.
Continuando a referir-me aos cânticos que gravei em cerca de
três mil e quinhentos metros de fita magnética, posso adiantar mais
o seguinte:
Não será descabido atribuir-se, também, a escravos, vindos para
o Maranhão, uma certa participação no transplante, feito pelos missio­
nários da (entre outras) Festa do Divino Espírito Santo.
Sabe-se que, no século XVI, os militares portugueses abandonaram
a fortaleza de Mazagão, na Costa Africana, com destino a Macapá, e
aqueles missionários os seguiram, fixando-se na terra amapense, com
a escravaria que possuíam.
E ra natural que os elementos desta, além dos hábitos e costumes,
trouxessem consigo a dança típica do marabaixo, bem como compe­
tições ginásticas e guerreiras (a representação dramática da luta entre

193
/
cristãos e mouros), participando dos festejos populares e das cerimô­
nias litúrgicas que eram obrigatórias, então.
Por toda a Amazônia colonial se alastrou a Folia do Divino (ver
Caderno Iconográfico n. 22-24) e o mesmo se verificaria no Mara­
nhão, ligado administrativamente ao Pará, sofrendo-lhe as influências
sociais e políticas ou recebendo-as, como Alcântara, diretamente da
metrópole lusitana.
Em minha obra o Sairé e o Marabaixo, com diversas conclusões
referendadas pelo historiador luso Jaime Cortesão, assinalei o fato de,
na dança rotulada pela designação africana, acontecer que bailantes
(homens, mulheres e crianças) se revelassem em estado de transe,
para isso influindo não as vibrações dos tambores mas das caixas e,
um pouco embora, às libações da bebida pitorescamente apelidada
mucura.
Sem nenhuma vinculação com o culto dos Voduns, a festa do Di­
vino, realizada, até bem pouco tempo, com certa pompa, na área urbana
de São Pantaleão, dentro da capital maranhense, emprestava particular
movimento à gente da Casa das Minas, a cuja frente ora uma, ora
outra das suas filhas tinha papel saliente de organizadora, de cole­
tora de espórtulas, distribuidora de atividades, visando à confecção de
doces, comidas e bebidas, além de contratadora de músicos e de tirado-
ras de ladainha. Depois da procissão era indispensável a ladainha,
diante de um altar erguido na sala onde os Voduns faziam as suas
reuniões.
Waldemiro Emiliano dos Reis, presidente do Centro Espírita S.
José do Ribamar, dando notícias das festas profanas e mesmo reli­
giosas, tal a do Espírito Santo, numa informação escrita, registrou
que «nas festas ali realizadas (na Casa das Minas) até champanha
em taças de cristal era oferecida aos visitantes».
Hoje em dia já não se registram particularidades relativas à Festa
do Divino Espírito Santo, cujas caixas, bandeiras, etc., desapareceram
da vista de quem, como eu, ainda as fotografou há menos de duas
décadas passadas.
Não obstante o esforço em reconstituir essa tradição católica, num
centro dedicado ao culto dos Voduns daomeanos, continuo a afirmar,
não se processou ainda ali, na Casa das Minas, um autêntico sincre-
tismo: Santo Negro é Santo Negro, afirmava Mãe Andresa Maria.
E o mesmo, agora, eu a posso secundar em idêntica afirmação.

XXX
Na folia do Divino havia danças sociais mas não se comparavam,
de nenhum modo, com as religiosas da Casa Grande das Minas, por­
que a esta inspirava a fé que Negros escravos haviam transmitido aos
seus descendentes, revigorada aqui nos eitos, nos engenhos e currais,

194
senão nas mansões de senhores impiedosos e desumanos, em sua
generalidade.
Porque — já o salientei noutra obra, O Sairé e o Mardbaixo —
valendo-se do depoimento de um viajante estrangeiro, in Africans
Dance:

T h e y d an ce fo r jo y , an d th e y d an ce fo r g r i e f ; th e y d an ce fo r lo v e a n d th e y
d an ce fo r h a te ; th e y d an ce fo r b r in g p r o sp e r ity a n d th e y d an ce fo r a d v e r t
c a la m ity ; th e y d an ce fo r r e lig io n . 66

Luís da Câmara Cascudo, sem dúvida o maior folclorista do Brasil,


ocupando-se em seu monumental Dicionário do Folclore do Brasileiro
(1954), esclareceu:

F o lia do D iv in o e r a a p r o c issã o o u o s b a n d o s p r e c a tó r io s, c a n ta n d o , to ­
can d o in str u m e n to s, p ed in d o e recolh en d o o s a u x ílio s , de to d o s o s g ê n e r o s
e v a lo r e s , p a r a a fe s tiv id a d e . F o lia é v elh o sin ô n im o d e b a ile e d ança.

A posse dessa fé, na complexidade do culto dos Voduns, com um


ritual dos mais estranhos e ricos de evocações míticas e históricas, se
exterioriza, mais impressionantemente, através das danças.
Criações do gênio da gente negro-africana, desde os seus mais
remotos dias de existência, elas estão ligadas, na sua evolução, ao de­
senvolvimento da música e do canto, ao longo dos diferentes planos
da cultura por que passaram os seus coreógrafos e bailarinos.
Já se afirmou que o Negro é inigualável nas suas manifestações
mais primitivas e mais cultas da dança.
É nesta que se observa uma originalidade, surpreendente, tanto na
pantomina infantil das Tôbôssis como na busca simbólica de Boçucó,
naquele entrevero de Badé (Xangô) e nos volteios espectrais dos Eguns
como assim os apresentavam outrora.
Quando os Voduns saem da sala-de-estar para a varanda, onde
se realizam as danças, repetem três vezes o cântico cuja letra é:

a) Para Vodun — gongo lê viôbô.

E na mesma circunstância, elevam mais dois cânticos:


b) É mixôa jabajara tôjona boá;
c) Tacuê bonjai gondolê viôbô.

O primeiro desses cânticos, dos quais só citei o primeiro verso, é


em homenagem ao Vodun Zomadone, considerado Dono da Casa; o
segundo é para os demais Voduns; o terceiro é para os Toquens.
66. Eia a c ita çã o em p o rtu g u ê s:
“ Os a fric a n o s d a n ça m . Eles d an çam de a le g ria , d a n ça m de p e sa r, d a n ça m de am or, dançnm
de ódio; d a n ça m p a ra a tr a ir p ro sp e rid a d e; d a n ça m p a r a a f a s ta r u m â calam idade; d an çam
estim ulados p e la relig ião ".

195
Quando Badé chega, o cântico, que se eleva, começa por estes
versos: A comê vin e penha êcain janá na dubê Badê vodunce; mas não
é ele quem canta e sim os outros Voduns, pois ele não fala. E, quando
os Voduns estão passando o dia, isto é, estão reunidos em mútua
distração, cantam: Arraruma irré bô ôbôbôlômé do tó, repetindo-lhe
a letra três vezes. E três vezes é entoado o cântico que relata quando
Agongone foi encontrado numa cabaça. Ao ir amanhecendo, os Voduns
cantam Acomá nicé gongô lê viô obô jatuá acoma nicé Daco Daco
donun lêá. Um cântico de Póli-Boji, que era o Vodun de Andresa
Maria, de minha mãe e de Zuleide Figueira de Amorim, de quem o
recolhi num gravador, começa assim : Idô guache mandô rin fon ê coma
ná Vodunce l ô. . .
Esses cânticos representam um material de extraordinária beleza
litúrgica, manifesta, quer pela voz apenas de uma solista, mesmo sem
acompanhamento de instrumentos como o tambor, quer por um coro
dirigido apenas, também, pela força dos sentimentos religiosos, pró­
prios da alma dos descendentes de escravos negro-africanos, que vivem
na terra maranhense.
Além desses tipos de cânticos, em cujos textos se verifica, ora a
intenção de dar mais vigor a este ou àquele vocábulo, para secundar
a ação dos toques dos tambores e demais instrumentos, ora com vistas
à deflagração de estado de transe ou possessão, e ora para desorientar
quem quer que queira aprendê-los sem nenhuma fé nas divindades a
quem são dirigidos.
Vale a pena conhecer-se o seguinte: existem outros cânticos, de
um tipo que contrasta com os citados, embora de maneira incompleta,
quando os Voduns viram para a mata.
A estrutura desses cânticos revela palavras e expressões em língua
portuguesa e num dialeto positivamente africano, de pueril alacridade,
duma frescura de ambiente florestal, com fontes e pássaros cantando.
Os movimentos e passos da dança, a que estão ligados esses cân­
ticos, se assemelham mais aos da festa da «sinhazinhas» (expressão
afetuosa, para designar as Tôbôssis, por ocasião do Carnaval).
Se se apresentam em duas filas, obedientes à hierarquia de cada
família, a fim de saudar a personalidade divina dos tambores, os Voduns
— portando as bengalas ao ombro direito, à feição de espadas —
têm a fisionomia e a gesticulação de militares, como num desfile de
parada.
Mas aquelas mulheres, possuídas por eles, não perdem a graça e
a sedução de sua feminilidade, no requebro do corpo, do busto aos
quadris, no agitar as mãos com lenços multicores, de um lado e de
outro, na firmeza dos passos sobre o piso irregular da varanda.
Na roda em que se movem, quer lenta, quer agitadamente, os ca­
beções de finas rendas e alvíssimo tecido, envoltas nas toalhas sagra­
das, também de finas rendas e finíssimo tecido, as saias amplas, de

196
cores vistosas ou simples, ganham um conjunto de formas e matizes
que deliciam a vista como um meio disco de arco-íris.
Ora uma, ora outra gonjai, noviche, toquen e tôbôssi se projeta
dessa roda, dançando e cantando, para saltitar e piruetar, como os
pássaros, num desafio de luta ou numa provocação nupcial. . .
Não raro, entretanto, há uma solista que emite um daqueles cân­
ticos, alguns tão densos de contagiante alegria como outros de não
menos acabrunhadora tristeza, lembrando os que os escravos erguiam
do fundo dos tumbeiros, recordando paisagens e episódios quotidianos
do trabalho livre na terra distante, para lá do litoral atlântico. E essa
voz, dir-se-ia, imprimia aos passos de dança um ritmo de abandono
e de desespero.
O Dr. Ecroide Claxton, citado por Daniel P. Mannix, em The
Black Cargoes, numa impressão de viagem a bordo do «Young Hero»,
salienta:

T h e y s in g b u t n o t fo r th e ir a m u se m e n ts. T h e c a p ta in ord ered th e m to sin g ,


an d th e y s a n g so n g s o f sorrow . T h e ir sic k n e ss, fe a r o f b e in g b e a te n , th e ir
h u n g e r , and th e m em ory o f th e ir c o u n tr y , etc. a r e th e u su a l s u b j e c t s .67

O Dr. Thomas Trotter, cirurgião do navio Brookes, em 1783, tendo


assistido a uma triste cerimônia — fazendo dançar os escravos —,
relatou que, embora carregados de ferro, os escravos eram obrigados
a dançar no tombadilho sob golpes dos terríveis chicotes — os
cat-o’-nine-tails — empunhados por vigorosos marinheiros.
Esse tipo de dança era prescrito como medida terapêutica, «um
específico contra o suicídio», inspirado pela melancolia, deflagrado pelo
banzo.
Reis divinizados e envolvidos nalguns episódios dramáticos e mis­
teriosos, tais os que estão ligados à vida mítica e aos estranhos su­
cessos de um governo em trono usurpado, como no caso de Xangô; as
transformações de Zomadone numa ave irrequieta e fantástica, can­
tando aqui para surgir mais adiante, mostrando-se e esquivando-se,
em provocações e negaças; Dacodonu assassinando Dan e divertindo-
se depois em rolar a ja rra que lhe continha o cadáver; todos estes
personagens e outros mais podem ser invocados num movimento de
dança, num simples texto de cântico.
Katherine Duncan, analisando as danças do Haiti, numa quadra
do ano, viu, por detrás de certa dança, a «idéia de algum culto da
fertilidade» sobretudo na primavera «e a importância dada à forma
sexual dessas danças».
Observei numa dança, na Casa das Minas, que os movimentos dos
bailantes, de mãos espalmadas para o chão, pareciam revolver sulcos
67. E ia a tra d u ç ã o do te x to acim a:
“ E les c a n ta m m as n ã o p a r a seu p a ssa tem p o . O c a p itã o o rd e n a que can tem , e eles entoam
c&nticos de triste z a . A s m oléstias, o medo de s e r açoitado, a fom e, e a le m b ra n ç a do seu
p a ís, etc. e ra m os te m a s u su ais".

197/
de leiras, neles plantar punhados de sementes; mas esses gestos tam ­
bém lembravam afagos e carícias, de uma função afogada dans celle
de la catharsis sexuelle.
Voduns bailam como velhos que necessitassem apoiar-se em suas
bengalas e sentindo o passo inseguro; outros, porém, explodem em
gestos e vozes de um vigor envolvente e irresistível, de indissimulável
sensualidade.
Como em África, ali na Casa das Minas, quando, outrora — se­
gundo informações que não me pareceram bem memorizadas —, homens
eram admitidos nessas danças, tal catarse sexual poderia ser registrada.
Nos dias de hoje, entretanto, nada pude observar, em nenhum
homem com relação à forma sexual dessas danças, segundo expressão
da bailarina e coreógrafa Katherine Duncan.
Relendo agora Les danses d’Haiti (Vaudou) de Katherine Duncan,
encontro, na análise das diferentes danças do culto Rada Daomé (p.
120), a descrição da principal dança dos cultos ditos Rada-Daomé:
Yanvalou.
Yanvalou é provavelmente uma deturpação gráfica de Savanlou,
o Vodun companheiro de Zomadone, cuja família mítica e histórica
ainda não pude recompor em minhas pesquisas da Casa das Minas.
Katherine Duncan assim descreve essa dança:

U n d es m e s a m is h a itie n s a p p e la it a v ec à -p rop os le Y a n v a lo u : la prière


du vau d o u . L ’e x é c u tio n d e c e tte d a n se p ro d u it u n é ta t d’e x ta s e rem arq u ab le-
m e n t v o is in de c e lu i aü q u el a ccéd a ie n t p ou r a u ta n t q u ’on le sa c h e , le s s a in ts
c h r é tie n s du m o y e n -â g e , la p r iè r e e t la m éd ita tio n . II se m b le r a it q u e le
b u t fo n d a m e n ta l de la p r iè r e s o it l ’é p a n c h e m e n t d’u n c o n flit ém otion n el
p a r 1’é ta b liss e m e n t d ’u n c o n ta c t a vec q u alq u e ê tr e su p é r ie u r , ou u n e
e x té r io r is a tio n c o m p lète e t la p e r te de 1’in d iv id u a lité d a n s c e lle q u i e st
l ’esse n c e de l ’ê tr e a v ec qui on d é sir e la com m u n ion . L e m o u v em en t de
Y a n v a lo u e s t flu id e , il in té r e sse l ’é p in e d o rsa le, la b a se p e lv ie n n e , a y a n t
com m e e f f e t u n e r e la x a tio n co m p lète. II n ’y a a u cu n e te n s io n , n i a u cu n e
r ig id ité d es m u sc le s, m a is u n f lu x c ir c u la ir e c o n sta n t qui a g it com m e un
n a rco tiq u e m e n ta l e t u n e c a th a r s is n e r v e u se . L a d a n se e s t r é so lu m e n t
a m o llisa n te , p lu tô t q u ’e x c ita n te , e t la is s e le d a n se u r d a n s un é ta t p a r fa it de
r é c e p tiv ité le p lu s so u v e n t p ro p ice a u c o n ta c t a v ec l o a . 68

68. T rad u zo :
“ U m dos m eus am igos h a itia n o s ch am av a com ace rto o yanvalou a prece do V odum . A execução
dessa d a n ç a p ro d u z u m estad o de êx tase n o tav elm en te p ró x im o , ta n to quanjio se sabe, daquele
que a tin g ia m os sa n to s c ristã o s d a Id ad e M édia p a r a a p rece e a m editação. P a re c e ria que o
fim fu n d a m e n ta l d a p re c e s e ja a e x p an sã o de um co nflito em ocional pelo estabelecim ento de
um c o n ta to com alg u m s e r su p erio r, ou u m a e x te rio riz a çã o com pleta e a p e rd a d a individualidade
n a que é a essência do ser com quem se d eseja a com unhão. O m ovim ento do yanvalou é
fluido, envolve a e sp in h a dorsal, a base d a cabeça, o peito, o plexus sacro e a c in tu ra p e lviana,
ten d o como efe ito u m a re la x a çã o com pleta. N ão h á n e n h u m a ten são , n e n h u m a rigidez dos
m úsculos, m as um flu x o c irc u la r co n sta n te , como um n a rc ó tic o m e n ta l e u m a c a ta rse nervosa.
A d a n ç a é d eb ilitan te, m a is que ex citan te , e d eix a o d a n ç a rin o num estado p e rfe ito de re c ep ti­
vidade e, m ais das vezes, p ro p íc io ao c o n ta to com o loa” .

198
XXXI

Uma das interferências de Romana Santos, quer nos aspectos extci


nos, quer nos internos, da Casa das Minas, foi, sem dúvida, a mod
ficação da estrutura do pégi, no seu ambiente secreto.
À direita de quem lhe entra no recinto, iluminado por uma cb
rabóia e pela luz de velas, postas em castiçais rústicos — aproveitad
a inserção e os lanços das paredes, bem ao fundo — os contrabandc
haviam levantado uma espécie de eirado, com a forma de um triângul
isósceles, isto é, com os lados iguais e a base de maior largura.
E ali, na simbologia da sua forma e do seu conteúdo, forai
agrupadas várias jarras e recipientes menores — cheias de água lustn
— umas esgalgadas e elegantes, outras bojudas e atarracadas, prodi
tos, na sua maioria, da cerâmica local, e três ou quatro vindas d
Lagos, na África longínqua.
Não tenho ainda elementos para afirm ar que, dada a influêncil
objetiva e gloriosa, da maçonaria maranhense, ao tempo do regim
escravocrata, o assentamento do referido santuário representaria s
linhas geométricas do triângulo adotado por essa Ordem.69
Ora, a plataforma inovada, tal como a figura n. 4 no-lo apresent;
patenteia uma violação, ou, pior, um possível rompimento com os liam<
que os Negros escravos mantinham com os membros da maçonari
maranhense, de então, empenhada em livrá-los daquele regime ant
democrático e desmoralizante como todas as formas de restrição c
de privação total de liberdade humana.
Mãe Andresa Maria, numa das conversas que com ela mantiv
sempre que eu passava por São Luís, me revelou que lá se respeitav
uma tradicional e impressionante norma:
Por ocasião do falecimento de um mação, quando o cortejo fún<
bre se dirigia para o Cemitério Municipal, sito numa praça à esquerd
das últimas casas da Rua São Pantaleão, era obrigatório estacá-
diante da porta central da Casa das Minas.
Então, lá dentro se movimentavam as filhas e filhos dos Vodun
tendo à frente a velha Nôchê, e, por todo o bairro, ressoavam (
toques dos tambores-de-choro. . .

69. G. W . L ocher, em su a o b ra T h e S e rp e n t i n K w a k iu tl R eligion. A S to r y in P r im itiv e C ultu


1932, m e levou a a d m itir que o episódio d a d a n ç a dos V oduns, tendo à fr e n te Boçá, à proci:
de seu irm ão Boçucó, se p re n d e a um ritu a l de sociedade sec re ta , como n a re lig iã o dos n a th
da Ilh a V an co u v er.
A li a serp en te , p o r “ d e te rm in a tio n o f th e m y th ical p o sition a n d sig n ific a n ce ” in d ic a ria a chr
que p e rm itir ia co m preender-se o r itu a l “ o f th e sec re t societies” .
A ilha c ita d a, segundo A . M eillet e M areei Cohen (L e s L anguea du M onde, vol. I I ) , tin h a ui
po p u lação , em 1780, de cerca de 4.000 h a b ita n te s, falando u m a lín g u a do g ru p o K w akitl.
Os mesm os a u to re s no s dão in fo rm a çõ e s sobre o u tra s ilhas onde, igualm ente, essa lín g u a i
o <5 a in d a falad a.
N o L a n d e r L e x ik o n W éltatlaa a situ a çã o d a Ilh a V ancouver é, e x atam e n te , a que M eillet
Cohen lhe dão n a C olúm bia B ritâ n ic a .

ll
í
A pêndice

Dedicado à cidade de São Luís do Maranhão, sob o título de «São


João Batista de Ajudá», Edmundo Correia Lopes escreveu um tra ­
balho, de caráter histórico, sumamente precioso, a respeito de um forte
mandado construir pelo rei de Portugal no século XVII.
Entendo que vale a pena reter-se na memória dos estudiosos o frag­
mento seguinte:

O FORTE PORTUGUÊS

A g r a n d e a ld e ia do G regu é, h o je u m b a irro da cid a d e d e U id á , e s tá a b rig a d a


u m a lé g u a p a r a o in te r io r dum a c o sta d eso la d a , a q u e o m a r, p u lan d o u m banco,
a rr e m e te em c o n sta n te fú r ia . F ic a à m a r g e m de um e ste ir o p or on d e a n a v eg a çã o
d a s ca n o a s, b u sca n d o o u tro s e ste ir o s e la g o s, p õe em co m u n icação todo o p a ís,
com p en san d o a d ific u ld a d e de a cesso m a r ítim o . A li tr e m u la a b a n d e ir a p o r tu g u e sa
no fo r te de S ã o J o ã o d e A ju d á , d om inando um p eq u en o côm oro a p a isa g em
su a v iz a d a , a u m a b an d a, p e la c o r tin a v e r d e d a s á r v o r e s de su m b u n g i, corrid a
sob re o s m éd ã o s co ste ir o s.
,É n a C osta d os E sc r a v o s, r e g iã o on d e a s la g u n a s d om in am com o im a g e n s
d e e sta g n a ç ã o . A o n o r te , o rein o de A r d r a (A la d a ) era , d esd e o a lv o rec er do
sécu lo X V I I I , m u ito con h ecid o d os n e g r e ir o s 1, que co m u n ica v a m com ele a p oen te
de P o r to N o v o , h o je c a p ita l d a co lô n ia fr a n c e s a do D aom é, ou p e la s sa íd a s
o r ie n ta is do la g o N o c u é , cam in h o e s te q u e m a is ta r d e se ren ovou q uando A ju d á
f o i b a se d os c r u z e ir o s in g le s e s c o n tr a o s n a v io s co n d u to res d e e scra v o s.
O fo r te q u e a in d a h o je dá s in a l de n o ssa p r e se n ç a no D aom é, p r e se n ç a que
n u n ca fo i o cu p a çã o m a s so fr im e n to , a çã o , colab oração, n u m a ob ra in ju sta , se
q u ise r e m , m a s humana, e ss e fo r te rem o n ta à fu n d a ç ã o de B ern a rd in o F r e ir e de
A n d ra d e e J a c in to de F ig u e ir e d o d e A b reu , g o v ern a d o r c e s s a n te e gov ern a d o r
e le ito d a s ilh a s de S ão T om é e P r ín c ip e .
A m a is a tiv a n a v e g a ç ã o q u e p a r a a q u ela c o sta se fa z ia era do B r a sil
(B a h ia e P e r n a m b u c o ), à som b ra da P r o v isã o de 12 de novem b ro de 1644. N o
A rq u iv o P ú b lico da B a h ia e x is te m liv r o s d e r e g is tr o de lic e n ç a s p a r a a s v ia g e n s
d a C o sta da M in a (d e s ig n a ç ã o in c lu siv e d a v iz in h a C osta do O u r o ), a b ran gen d o
o liv r o 2° — o p rim eiro d os q u e r e sta m — o p eríod o d e 1678 a 1707. A p a r tir
d e 1681 é q u e a s lic e n ç a s s e m u ltip lic a m e x tr a o r d in a r ia m e n te , n o ta o g r a n d e
m e str e N in a R o d r ig u e s (O s Africanos no Brasil, p. 4 7 -4 8 ).
N e s te com ércio de Á fr ic a tin h a m -s e h a b itu a d o m u ito o s do B r a s il com os
h o la n d e se s, p e la fa c ilid a d e de d esd ob rarem com a C om p an h ia d a s Ín d ia s O cid en ­
t a is um com ércio in te r n a c io n a l e so b retu d o con tra b a n d o de ou ro. P o r isso a
fe ito r ia de A ju d á n ão d ev e te r con h ecid o n o s p rim eiro s tem p o s o s d ia s de gra n d e
m o vim en to q u e con h eceu d ep ois, por in te r v e n ç ã o de m ú ltip la s c a u sa s , sen d o uniu

1. “ de A rd a m e dice m ill vienes y que con 46rs de em pleo de ay se h a ce u n a p .a ” (p e ç a lm,7B


—• e s ta tu r a — d e . . . e sc ra v o s). T rech o de c a r ta de um negrreiro de Angrola de 1609.

201
us h o stilid a d e s e n tr e a m a rin h a p o r tu g u e s a d a m etróp ole e a da C om p an h ia d as
Ín d ia s. E m ja n e ir o d e 1724 v iu A ju d á e n tr a r , sain d o a 21 p a ra a B a h ia , a
n au de g u e r r a N o s s a S en h o ra da A ta la ia do ca p itã o J o sé de Sem edo M a ia , v e n ­
ced ora d um a f r a g a t a h o la n d e sa p erto do C astelo de S. J o r g e da M in a, in íc io da
e x ecu çã o dum p la n o de r e p r e sá lia s san cion ad o em P o r tu g a l, ta lv e z no m esm o d ia
do com b ate, p e la O rdem de 12 de ja n e ir o . O fo r te de h o je já não é o m e s m o 2,
por m u ita s v ic is s itu d e s p a s s o u .3
O v ia ja n te que p a ss a p or G regu é a p r o x im a -se do fo r te p a r a v e r com certo
e sp a n to irôn ico iç a r -se a li a b a n d e ir a p o r tu g u e sa , o seu esp a n to cr e sc e quando
sab e que a E u r o p a n o s d a v a g e n tilm e n te u m a in d en ização p or la r g a r m o s aq u ilo.
R i-se. N a v e r d a d e , som os se n tim e n ta is.
D e p e n d e n te o u tr o r a do go v ern o da B a h ia e in tim a m e n te lig a d o a o s in te r e s s e s
c o m ercia is d e ssa p r a ç a , h á m a is d e cem a n o s, d esd e a se p a r a ç ã o do B r a s il, que
fo r ta le z a , c a p e la , a lf a ia s — sob a g u a r d a dum a lm o x a r ife ou dum g o v ern a d o r,
com c a p e lã o 4 o u símile — tu d o, pelo aban d on o do tr á fic o , caíd o em in a lte r á v e l
q u ietu d e, dá a im p r e ssã o de p e n ite n c ia r -se a li. Q uando d a a ção fr a n c e s a co n tra
o d ésp o ta do A b om é, a in d a o cerco d a s tr o p a s do g e n e r a l D od d s esp a lh o u a lg u m a
a n im a çã o em to m o d a q u eles b a lu a r te s. A o la r g o , a c a n h o n e ir a Mindelo, com o
p a v ilh ã o p o r tu g u ê s, e sp e r a v a dançando a d an ça d a s c a le m a s, a té que b reve
a trech o a tir a n ia do N e g r o d a v a a a lm a à h is tó r ia e lá se ia o Mindelo, d eixan d o
a fo r ta le z a e n tr a r n a h is tó r ia “com o a u m a iso la d a ilh a b a tid a p e la v e n ta n ia
te m p e stu o sa q u e so p r a v a do lad o d a s c h a n c e la r ia s, a d isc u tir e m a p o sse e fe tiv a
de P o r tu g a l” — diz u m g u a r d a -m a r in h a .5
H a b ita d a p o r um r e sid e n te p o r tu g u ês, c a p itã o , ú n ico pad rão a r e v iv e r a
n o ssa a tiv id a d e iso la d a em ta n to s p o n to s da c o sta a fr ic a n a — e de o u tr a s c o sta s,
de o u tr o s m a r e s — a fo r ta le z a de A ju d á é h o je a p e n a s um livro.

V ►
II
Outro trecho do trabalho de Edmundo Correia Lopes, digno de ser
conhecido, é o seguinte, intitulando-se

O R E IN O DA SERPENTE

O p o ten ta d o D aom é, cau d ilh o dos J e je s e dos F o n s, d ep ois que se v iu sen h o r


de A l a d a 6, fu n d o u lo g o n e s s e cen tro a tiv íss im o d e e sc r a v a tu r a o s m a is v a s to s
p la n o s d e riq u eza , pod erio e e x p a n sã o . O com ércio do rein o de A ju d á flo r e sc ia
c o n sid e r a v e lm e n te com a s v a n ta g e n s de se u p orto. P en so u A d o n d o sá n em p a r­
tic ip a r d e ss a s v a n ta g e n s , o fe r e c e n d o -se a p a g a r im p o sto dos e sc r a v o s q u e por
a li c o n se n tisse m ex p ed ir. R e je ita d a com e scá rn io im p ru d en te a p ro p o sta do b e­
lico so v izin h o , e ste , a in d a q u e d eb aten d o-se n u m a te ia d e co lig a ç õ e s c o n tr a o
se u c r e sc e n te p od erio, a rm o u -se c o n tr a o e fem in a d o rein o c o ste ir o e, em m arço
de 1727, e sta v a m a s s u a s tr o p a s em fr e n te de S a v ê.

2. A pro v isão do Conselho U ltra m a rin o de 14 de m aio de 1723, que c o n fe ria ao vice-rei do B rasil
a nom eação de d ire to r de oficiais d a fo rta le z a de A ju d á , d e te rm in a v a que essa fosse c o n stru íd a
ò ú ltim a perfeiçã o .
3. A té 1803, no d ia 31 de m arço , lhe pôs fogo um ra io ta n g id o p o r o b ra de fe itiç a ria do su p erio r
d a m issão fra n c e sa , P e. F ran c isco B erghero, d iziam os N egros, que p o r isso o p re n d e ra m e
m a ltra ta ra m , o brigando-o a d a r de re sg a te 110 pesos de búzios (1.540f000 rs.)» 24 p e ça s de fazen d a
e 13 g a rra fa s de a g u a rd e n te (C o rreia d a Silva, op. c it.t p . 8 6 ).
4. C apelão, n ão o tev e o fo rte desde 1788 a té 1844, d a ta em que Jo sé M a ria M arques, G overnador
d as Ilh a s de S. Tom é e P rín c ip e , p a r a ali m an d o u u m p a d re e o te n e n te de in f a n ta r ia L íbano,
su b stitu íd o ao fim de 5 anos.
5. E m ílio de S a n B runo, A V elh a M agra da Ilh a de Luanda.
6. N ão p a re ce que fosse o re in o todo conquistado. V am os v e r que no fim do século X V III ain d a
h a v ia um re i de A rd a.

202
A c a p ita l de A ju d á ren d eu -se. Os s e u s h a b ita n te s, d ep ois de g a s ta s a s rm<n
n u m a p r im e ir a so r tid a fe liz , en com en d aram -se à p roteção de D a n g b i, a scip i
s a g r a d a , com o m eio m a is côm odo e ta lv e z m a is e fic a z de s e sa lv a r e m . Ma
p ob re d iv in d a d e n a d a p od ia co n tra a fo r ç a in c o n tr a stá v e l da v itó r ia m
a d iv in h á -la e se g u i-la .
Q uando, nu m recon tro d a s a r d r e n se s, a tím id a D a n g b i d esertou d a s i
file ir a s , p a r a s e v ir a co lh er e n tr e o s sold ad os de A ju d á , q u e a receberam
jú b ilo e v en era çã o , d ir -se -ia p red izer a r u ín a d a n ação que a ssim in g ra ta m
ab a n d o n a v a . O m ísero rein o de A la d á fo i d en tro d e pouco u m a v ítim a
g r e n ta em p od er daom é. D e s ta v e z a s p r ó p r ia s se r p e n te s fo r a m su rp reen d i
E n v o lv id a s p e lo s fe itiç o s d e S a v ê, n ão s e p u d eram p a ss a r a tem p o p a ra o ca
in im ig o . O s in v a s o r e s de A ju d á , quando ch egou a h o ra de sa c ia r o ódio
a p e tite , v e n d o -a s e n tr e o s c o n tr á r io s — e ta lv e z n u n ca a s tiv e s s e v isto
co m era m -n a s. P a r a tr iu n fo d um a r e lig iã o é p reciso q u e a lg u n s c r e n te s se
reçam ao m a r tír io ; p a ra o tr iu n fo dum a r e lig iã o fo i p reciso tam b ém o si
f íc io de u m a d ivin d ad e. A s tím id a s D a n g b is fo r a m im o la d a s à g ló r ia fu
du m cu lto q u e, a tr a v e ssa n d o o s m a r e s com a s le v a s de e sc r a v o s v en d id os
tir a n o daom é, se e x p a n d iu no H a iti, n o s m isté r io s VoduSj, sob a p u p ila n egi
p r o fu n d a d a s n o ite s do M ara n h ã o , ab rin d o a s m ís tic a s so le n id a d e s, en trava,
som do g ã e dos ta m b o res, o o fe r e c im e n to da fe s ta .

Danjibê ê ma vi ohunwedo. ..

III
Rio de Janeiro, 27/3/1

Ao Prof. Roger Bastide, cumprimentando-o:


Seguindo a indicação que se dignou dar-me, consegui, enfim, 1
cópia do artigo dedicado ao meu estudo sobre a religião da Casa
Minas, de São Luís do Maranhão. E isso porque minha filha, radie
agora em São Paulo, foi localizá-lo na Biblioteca Municipal.
Pretendo incluí-lo na reedição daquele estudo, como o farei
as apreciações feitas por outros amigos — tal a do Edmundo Cor
Lopes, estampada na Revista Atlântica, de Lisboa — mas achei
minha filha cochilou ao copiá-lo.
Daí a lembrança de solicitar ao caro amigo o obséquio de r
a cópia inclusa e remetê-la ao meu endereço aqui no Rio de Janei
Muito me desvaneceram as referências à minha monografia e
problemas que, coincidentemente, foram estudados ou postos em
por M. J. Herskovits e por A rthur Ramos.
Seu artigo, além de desvanecer-me, me levará a examinar ce
aspectos do culto dos Voduns entre a gente da Casa de Nagô,
aflorados ou incompletos nas páginas do meu estudo sobre os M
jejes da Casa de Mãe Andresa Maria.
Daqui a razão por que, embora tardiamente, lhe estou expres
do, Prof. Roger Bastide, meus sinceros agradecimentos.
Em fins de dezembro de 1972 adquiri um volume do Le rêvt
transe et la folie e nele vi, desde logo, quanto me será útil, ao 1<
do minhas novas pesquisas sobre o Negro, especialmente destinadas
a Universidade Federal do Maranhão, incluir nelas novos aspectos do
transe (em sua obra está escrito deux espèces d’extase) que apontei
nas páginas da minha monografia.
Antes de deixar São Luís, por motivo de grave enfermidade,
inquiri algumas das filhas da Casa das Minas, sendo informado de que
um Vodun — Zomadone (ou Póli-Boji) — pode deflagrar o estado
de transe não apenas na cabeça da de sua predileção mas na de várias,
ao mesmo tempo.
Por isso, certamente, FaLke Ronne, autor da obra Zum Amazonas
e que esteve no Haiti, descrevendo a personalidade de EXU LEGBÁ,
assim o fa z : « . . . unangenehmer Herr; er ist auch Wachter der
Friedhõfe, doch vor aliem ist er fü r junge Madchen gefáhrlich, da
er, gelinde gesagt, ein unersdttlicher Erotik ist, der in 2U Studen mit
d.300 Frauen fertig wird».
Não se trata, evidentemente, do erotismo de um Sátiro místico ou
do tipo de erotismo atribuído a Goethe por Mareei Brion.
Na linguagem religiosa da gente mina-jeje, da casa de Mãe
Andresa, possuir não é sinônimo de copular, mas de integrar-se, física
e espiritualmente, numa filha-de-santo ou vodunci.
Passando a outro assunto, pergunto se o meu caro Mestre teve
o ensejo de ler a obra Agotime, Her Legend, da autoria de Judith
Gleazon (Ph. D. in comparative literature) pela Columbia University.
Por causa dessa obra — caso retome minhas pesquisas no Ma­
ranhão — irei à cidade baiana de Cachoeira, pois lá, segundo J. G.,
foi que a Rainha Agotime, Mãe do Rei Guezo, do Daomé, fundou o
culto de Zomadone e, com o de outros Voduns, o estendeu a Salvador,
Recife e São Luís.
O livro de J. G., embora com o sabor de novela, é rico de infor­
mações e sugestões, pois ele viajou as mais importantes áreas da geo­
grafia religiosa do Continente Africano e das Américas.
Encontrei em São Luís, na Casa das Minas, notícias da passagem
de J. G., onde cantou pontos litúrgicos e de louvação a Savalou ou
Xavalou — um Vodun que já subiu, isto é, que não baixa mais na
cabeça das voduncis.
Já vai longa esta carta, por isso, renovando meus agradecimentos
e pedindo desculpas por lhe tomar algum tempo, eu a subscrevo como
velho amigo e admirador.
Nunes Pereira

P /S : Poderia informar-me se o meu jovem conterrâneo Pedro


Braga o tem procurado e continua estudando em Paris?
Souza Barros, que é meu vizinho, no Bairro de Santa Teresa, lhe
manda cumprimentos. Ele adquiriu o Le rêve, la transe et la folie e diz
que o está lendo com muito proveito, no que ali concerne à Sociologia.
N.P.
204
Le Président de la Republique

D a k a r , le 6 ja n v ie r 1977

C her M on sieu r,

J ’a i b ien reçu v o tr e le ttr e , a in s i q u e la cop ie de 1’in tro d u ctio n que le p r o fe sse u r


D o cteu r A r th u r R a m o s a é c r ite à v o tr e é tu d e : “A c a s a d a s M in a s”, q u e j ’a tte n d s
a v ec 1’im p a tie n c e q u e v o u s d ev in ez, e t j e v o u s en rem ercie.

J ’a i é g a le m e n t lu avec b eau cou p d’in té r ê t v o tr e liv r e in titu lé “P a n o ra m a da


A lim e n ta ç ã o In d íg e n a ” : il e s t r ig o u r e u x , rem a rq u a b lem en t d ocu m en te, e t illu s tr é
a v ec d iscern em en t. D e s é tu d e s eth n o lo g iq u e s com m e c e lle -c i, e t com m e la
co n tr ib u tio n à l ’é tu d e des v e s t ig e s de la c u ltu r e du D a h o m ey a u B r é s il q u e v o u s
m ’a n n o n cez n e p e u v e n t q u e f a ir e h o n n eu r à le u r a u te u r , e t à la Science
b résilien n e.

Je vous p r ie de c ro ir e, ch er M on sieu r, à 1’a ssu r a n c e de m es se n tim e n ts


co rd ia u x .

Léopold Sédar SENGHOR

M on sieu r N u n e s P e r e ir a
A lm ir a n te A le x a n d r in o , 2015 - ap to. 101
S a n ta T e r e sa
R io de J a n e ir o - R J
B r a sil

205
P a r is , le 2 2 octo b re 1973

P r o fe s s e u r N u n e s P e r e ir a
R u a A lm ir a n te A le x a n d r in o , 2015 - a p to . 101
B a ir r o de S a n ta T e r e sa
R io de J a n e ir o
G B - B r é s il

M on c h er c o llè g u e ,
J ’a i é tu d ié le s t e x t e s v o d ü q u e v o u s m ’a v e z e n v o y é s a v e c m o n a m i G ilb ert
R o u g e t, le m u sic o lo g u e du M u sée d e 1’H om m e, q u i e s t le g r á n d s p é c ia lis te d e la
q u estio n .
II e s t a b so lu m e n t c e r ta in q u e la d o m in a n te d es e m p r u n ts e s t f ã , e n s u ite g s
(m in a ) e t g ü . II y a a u s s i d es é lé m e n ts p lu tô t y o r u b a . (e .g . X X X I X ) , m a is i l
r e s te d if f ic ile de f a i r e d es a ttr ib u tio n s p r é c is e s, e íi -raisop .d es d é fo r m a tio n s e t
d es c o n v e r g e n c e s e n tr e d es la n g u e s a p p a r e n te e s .d e p r è s.
C e r ta in s ite m s so n t p a r fa ite m e n t r e c o n n a is s a b le s :
Z om adone = Z om adonu, u n to x o s u ( “r o i d ’e a u ”) d’A b o m ey ;
D a co D o n u n = D a k ó D o n u , u n a n c ie n r o i d ’A la d a ;
N a n a ■= te r m e d e r e sp e c t p o u r la r e in e ;
D a d a = term e d e r e sp e c t p o u r le r o i;
D a m b a ra coêdô = D ã b a la H w ed o , l ’a r c -e n -c ie l;
X X . m in a god o to m õ nõ je “c e lu i q u i e s t p r è s d ’A lm in a a r m e ’';
X X I I . iá le v á = iy e lee w a “le s m è r e s v ie n n e n t” ;
D a d a h o = d ad a ho “v ie u x r o i” (t e im e d e r e s p e c t ) ;
D em = d ã, le se r p e n t sa c r é ;
L X II. A ja c to i =s ajahutoD “le tu e u r d ’A j a ”, u n r o i d ’A la d a ;
vod u n ce = v o d ü c e “m on v o d o u n ”.
L e te r m e “m in a ” • d e sig n e a u jo u r d ’h u i le s h a b ita n ts de la C ôte, du G h an a
à la fr o n tiè r e du N ig é r ia , et, a u p o in t de v u e lin g u is tiq u e , la la n g u e v é h ic iila ir e
d es m a rch és, à b a se e ss e n tie lle m e n t g ê. L e s m o ts id e n tifié s c i- d e s s u s ' s o n t p lu tô t
fõ o u gü .
À p r e m iè r e v u e , je n e r e le v e a u c ü n te r m e h a u s a on b a n tu (k ik o n g o ou
k im b u n d u ).
J ’a i e n v o y é le s t e x t e s a u D r. N s u g a n Á g b le m a g n o n (C e n tr e d ’E tu d e s
S o cio lo g iq u es, 8 2 r u e C a rd in et, 7 5017 P a r i s ) , , q u i c o n n a ít b ie n l a q u e stio n , m a is
j e n ’a i p a s en co re eu s a rép o n se.
J e v o u s p r ie d e cro ir e, m on c h er c o llè g u e , a u x a ss u r a n c e s d e m a co n sid é r a tio n
d istin g u é e .

P ie r r e A le x a n d r e

206
Paris, le 1" juin 1973

M on sieu r N u n e s P e r e ir a
R u a A lm ir a n te A le x a n d r in o , 2500 - ap to. 101
B a ir r o de S a n ta T e r e sa
R io de J a n e ir o - GB
B r a s il

C her M on sieu r,
O ui, v o tr e a m i B r a g a a e s s a y é de m e jo in d re. M a is la v ie à P a r is e s t te lle
q u e n o u s n ’a v o n s pu tr o u v e r u n m om en t p ou r n o u s ren c o n tr e r . J e lu i a i d it p ar
télé p h o n e — 1’ ) q u e je n ’a v a is p a s c e v ie il a r tic le — 2?) e t q u ’o n m e T envoie
p ou r q u e j e p u is se le r e lir e e t é v e n tu e lle m e n t le co rrig er.
N o n , v o tr e f ilie n ’a c e r ta in e m e n t p a s com m is d’e r r e u r s en tr a n s c r iv a n t m on
a r tic le ; m a is j ’é c r iv a is m e s a r tic le s en fr a n ç a is , on le s tr a d u is a is en p o r tu g a is
e t ces tr a d u c tio n s é ta ie n t le p lu s so u v e n t tr è s m a u v a ise s. J e v o u s en v o ie q u elq u es
co rrectio n s p o ssib le s:
p. 1 — lig n e s 13 -14: a g io g o ? ? M e ttr e A fr ic a n is ta
p. 2 — lig n e 5 : a p r è s Patrimônio a jo u te r Historico
lig n e 9 : pageismo: E c r ir e : pagelança
lig n e s 1 3 -1 4 : id em : pagelança
lig n e 1 7 : é a in flu ê n c ia n a g ô m esm o n a c a s a g ê g e de Amazônia que
domina, e n q u a n to . . .
lig n e 26: a p ro fu n d eza da influência da r e lig iã o
p. 3 — lig n e 1 0 : R em p la cer A o s p a r Apos
lig n e 1 2 : m istic ism o p r im itiv o J . É porq u e c r e i o . . .
lig n e 15: r em p la cer Praça p o r lugar e t e n le v e r la v ir g u le a p r è s (m in h a s
o b serv a çõ es no lu g a r dos X a n g ó s no C a rn a v a l do R e c ife ) .
J ’a i lu a v ec b eau cou p d’in té r ê t v o tr e le ttr e . II e s t é v id e n t q u e possuir n ’e s t
p a s copular. M a is à B a h ia , Exú n e p o ssèd e p a s de f i li e s n on p lu s, E x ü n e s ’in ca rn e
ja m a is, ca r il n ’e s t p a s u n O rish a m a is u n q u a si-d ie u , u n In te r m é d ia ir e . II ne
p eu t p o sséd er u n e f ilie q u ’en e n v o y a n t Ogun à sa p lace.
N o n , j e n ’a i p a s lu le liv r e de J u d ith G leazon. M a is p e u t-ê tr e au ron s-n ou s
la p o ssib ilité d e n o u s ren c o n tr e r e t d e d is c u te r p lu s lo n g u e m e n t d e to u t cela , ca r
j e com p te ê tr e à R io du 8 a u 14 ju ille t p ro c h a in p ou r le C on grès d e 1’A sso c ia ç ã o
B r a s ile ir a p a r a o P r o g r e sso d a C iên cia. J e tâ c h e r a i d e v o u s v o ir à ce m om en t-là
pour v o u s p a r le r d e m on p r o je t de rec h e r c h e s à M an aos su r la p a g e la n c e a fr ic a in e
d ’o r ig in e M a ra n h en se. A b ie n tô t donc s a n s doute.
E n a tte n d a n t, c ro y ez à m e s m e ille u r s so u v en irs.

R. Bastido

207
IV

A CASA DAS M INAS7


Roger Bastide
Há alguns anos A rthur Ramos fundava no Rio de Janeiro a «So­
ciedade Brasileira de Antropologia e Etnologia». Hoje faz nova con­
tribuição à cultura brasileira ao inaugurar uma nova coleção de ensaios
e de estudos: As «Publicações da Sociedade». Desejamos que essas
publicações obtenham, junto ao público esclarecido, o êxito que mere­
cem e que a coleção se enriqueça e continue numa carreira longa e
fecunda. Estamos certos de que a Sociedade encontrará apoio de todos
aqueles que se interessam pela cultura do Brasil.
O primeiro volume, que acaba de sair, encerra um trabalho de
Nunes Pereira sobre a sobrevivência religiosa do Negro do Maranhão.
O autor conhece bem a questão, pois sua mãe era uma filha da Casa
das Minas sobre a qual nos dá preciosa monografia. O volume traz
um prefácio de A rthur Ramos, o qual constitui lúcido comentário à
monografia de Nunes Pereira, e cujo interesse é tanto maior quanto
Ramos, utilizando-se do seu vasto conhecimento de «hagiologia», com­
para os dados obtidos no Maranhão com os do resto do Brasil e com
os livros mais recentes sobre o Daomé.
Há muito tempo se sabe que os Negros do Maranhão haviam
mantido seus cultos sob o nome de Tambor de Minas, mas, até os
últimos anos, esta parte da religião afro-brasileira não havia sido estu­
dada. Um aluno de Herskovits, atualmente professor na Escola de
Sociologia, o Sr. Otávio C. Eduardo, esteve, durante dois anos, no
Maranhão, em estudos sobre o assunto, mas não foi publicado o livro
que escreveu a respeito de suas pesquisas8, além disso o Sr. Eduardo
não tratou propriamente de religião, e sim de todos os aspectos de acul­
turação. Podemos, pois, dizer que Nunes Pereira é o primeiro a apre­
ciar o Negro maranhense, motivo por que será para muitos leitores
— disso temos a certeza — uma revelação. É aqui que se percebe
o valor da nova tentativa de A rthur Ramos, destinada a proporcionar
à antropologia brasileira um órgão de divulgação e de pesquisa. Porque,
se o Negro no Maranhão era pouco conhecido, havia, no entanto, sido
estudado e em particular as seitas «feiticeiras» de São Luís que foram
minuciosamente pesquisadas por Antônio Lopes. Porém esses manus­
critos dormem nos arquivos desta cidade, ao que sabemos, à espera
de um editor que, certamente, faria a obra útil a todos, divulgando-a.
7. A rtig o estam p ad o em O E sta d o de S ã o Paulo, 1? de ju lh o de 1947.
8. O resultad o das pesquisas de O távio d a C osta E d u ard o ap arec e u n u m a publicação m o n o g ráfica
que teve a su a p rim e ira edição logo esgotada, d a d a a su a im p o rtâ n c ia , sendo re e d ita d a, p o sterio r-
inente, pe la A m erican E th n o lo g ical Society, In c., sob a resp o n sab ilid ad e de M arian W . Sm ith
(U n iv e rsity o f W ash in g to n P ress, S e a ttle e L ondres, 1966). N as ob ras de su a a u to ria , p o sterio r-
m ente â publicação do p re se n te a rtig o , R o g er B astid e c ita a m o n o g ra fia de O távio d a C osta
E d u a rd o e salien ta o v alo r d a co n trib u iç ã o que lhe devem os estudiosos dos a ssu n to s a fro-brasileiros.

208
(A propósito ver: «Uma religião tropical», Raimundo Lopes, no lio-
letim do Ministério do Trabalho, III, 30, p. 305, nota 5.)
Luís Saia recolheu, igualmente, em todo o Nordeste e Norte do
Brasil, rica documentação: tudo o que sabia de Tambor de Minas eu
o conhecia por meio de conversação com o amável diretor do Patrimô­
nio em São Paulo. Parte dessas informações, ainda não publicadas, foi
divulgada em dois artigos de Mário de Andrade («Geografia religiosa
do Brasil» e «Música e feitiçaria no Brasil», Publicações Médicas,
1941). Os artigos assinalam a semelhança entre estas seitas de «pa-
jeísmo» do P ará e do Tambor de Minas em São Luís, e caráter «dao-
meano» de um e de outras. O cântico de Iemanjá, citado por Mário
de Andrade e recolhido em Belém por Gastão Vieira, é significativo
a esse respeito, Dêrecê Vodun, Dêrecê Amanjá, Mário de Andrade pen­
sava, porém, que se devia procurar a origem do «pajeísmo» na vinda
dos pretos das Antilhas. Graças ao trabalho de Nunes Pereira e ao
Apêndice (Comunicação de Geraldo Pinheiro), vemos que as seitas do
Pará foram fundadas por Negros das Casas religiosas de São Luís.
Em todo caso, como no resto do Brasil, é a influência «nagô», mesmo
na Casa jeje, enquanto a influência daomeana é predominante e quase
pura no Maranhão. Isso não quer dizer que o culto «jeje» não apre­
sente, na Bahia e alhures, diferenças no modo de tocar o tambor, nos
cânticos, na importância dada às pedras (pois, pessoalmente, penso que
o culto da cobra não é um sinal muito importante; mais importante, em
minha opinião, é a cobra marinha Oxumaré), mas a mitologia daomea­
na apagou-se diante dos Orixás dos Ioruba. Herskovits, no entanto,
encontrou Aido Hwedo em Porto Alegre. Pela primeira vez Nunes Pe­
reira, ao dar-nos a lista dos deuses da Casa das Minas e ao classificá-
los em famílias, nos revela a profundeza da religião dos daomeanos em
terras do Brasil.
Esperemos agora a coleção de cânticos religiosos que este autor pro­
meteu. Gostaríamos também que nos revelasse, alguns dos mitos dos
Negros de São Luís, a fim de podermos fazer uma comparação, mais
fundamentada, com o que sabemos da religião do Daomé. Sinto-me
particularmente feliz por ter encontrado nesta publicação a afirmação
de que os deuses negros não se confundem com os seus correspondentes
católicos.
Tentei ainda, recentemente, propor uma explicação do sincretismo
católico-fetichista a qual tende a ligá-la à mentalidade classificadora
dos Negros e não a um processo de identificação. As justas observa­
ções de Nunes Pereira parecem confirmar a minha hipótese.
Nunes Pereira apresenta, também, sobre o transe místico das filhas-
de-santo, observações muito judiciosas, que têm o sentido das observa­
ções de Herskovits na Bahia, sendo o caráter desse transe mais socio­
lógico que patológico.

209
Após uma estada na Bahia cheguei às mesmas conclusões que
Ilerskovits (e isto antes de lê-lo), tendo proposto, aí por 1930, em um
artigo contra Durkheim, uma teoria sociológica do misticismo prim i­
tivo, porque creio que Nunes Pereira tem absoluta razão. Poder-se-ia
comparar o que ele diz do transe dos Tôbôssis, durante o Carnaval, como
minhas observações na praça dos Xangós, no Carnaval do Recife, e o
papel do controle social sobre as danças sagradas nesta época do ano
(cf. Imagem do Nordeste Místico).
Estou também inteiramente de acordo com o autor acerca do ca­
ráter moral dessas religiões africanas: imoralidade não se introduz
senão com os brancos, e isto no momento em que eles as desagregaram.
É-me impossível insistir em tudo o que tem de interessante no p ri­
meiro trabalho publicado pela Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnologia, e A rthur Ramos tem muito cuidado em anotar e explicar esses
elementos novos.

OS TAMBORES DE SÃO LUÍS


(F r a g m e n to )
Josué Montello
Uma das mais precisas e legítimas descrições da Casa Grande das
Minas é, sem dúvida, a que devemos a Josué Montello, em seu romance
histórico-social Os Tambores de São Luís (Livraria José Olympio Edi­
tora, MEC, Rio 1975), que me permito transcrever aqui.
A C a sa é b a ix a , r e n te à c a lça d a da ru a , e j á d ev e ir a cam in h o de d ois
sécu lo s. N ã o se sab e d izer ao ce r to q u an d o fo i c o n str u íd a . N a d a e x is te sob re a s
s u a s o r ig e n s n o s p a p é is da m u n icip a lid a d e. O D r. C ésar M arq u es no se u p r e sti-
m oso Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão, p u b licad o em
1870, s ile n c ia sob re ela . Q uem d esce a r u a sin u o sa , n a d ireção do cen tro da
cid a d e, d ep o is de p a ss a r p e la Ig r e ja de S ão P a n ta le ã o , v ê um bando d e co n s­
tr u ç õ e s p r im itiv a s, to d a s a c a c h a p a d a s, com b e ir a is s a lie n te s e b a te n te s de c a n ta r ia .
P a r a id e n tific a r a C a sa G ran d e d a s M in as, n ão é p r e c iso q u eb rar a cab eça. D e
d ia , a li p or p erto, q u a lq u er p esso a d ir á on d e e la fic a ; d e n o ite , b a sta r á g u ia r -se
p elo b a te r dos tam b ores. L ê-se em J o ã o F r a n c isc o L isb o a que, ao lad o da ig r e ja
p r im itiv a , q u e d om in a a c id a d e com a s s u a s to r r e s c a ia d a s, a g r e g a r a m -se u m a s
c a s in h a s a g a c h a d a s e b a ix a s . E s ta s , p elo v is to , se r v ir a m de m odelo à s que se
fo r a m erg u en d o n o s a rred o res, p elo tem p o a d ia n te , com a s m e sm a s lin h a s to sca s.
A d e sp e ito d e ssa sim p lic id a d e d e sa ta v ia d a , to d a s e la s c o n serv a m ce r to a r d e po­
b reza d ecen te. E m c o n tr a s te com o c a sa r io e a z u le jo s d e p a tr ic ia d o m a ra n h en se,
na K ua do S o l, n a R u a dos R em éd ios, n a R u a da P a lm a , n a R u a de N a z a r é , ou
n a R u a F o r m o sa , a s m o ra d ia s de S ão P a n ta le ã o tê m a sin g e le z a d a s r e sid ê n c ia s
de a rr a b a ld e . E m v erd a d e, situ a m -se no p erím etro u rb an o de S ã o L u ís, u m a s
ju n to d a s o u tr a s com o s e a p r o te g e r e m m u tu a m e n te co n tra a s tr a n s fo r m a ç õ e s
por que v e m p a ssa n d o a cid ad e.
A Casa Grande das Minas, ou, simplesmente, Casa das Minas, tem outra
peculiaridade, que ajuda a reconhecê-la: fica de esquina, parecendo descer ladeira
abaixo, no pedaço de rua a que deu nome: Beco das Minas.

210
A n tig a m e n te en co n trá v a m o s ju n to à su a p o rta em leq u e, do lado do Sim
P a n ta le ã o , u m a p r e ta de ca b eça b ra n ca , com u m sortid o ta b u le ir o do fruliiH
m a r a n h e n se s: b a cu ris, g u a b ir a v a s , m u r ic i, c a ja z in h a s, in g á s , m a n gas-d e-ch oiro,
p ito m b a s, sa p o tis, g r a v io la s e m esm o m a r ia -p r e tin h a e cam ap u , q u e o s m en in os
de h o je n ão c h e g a r a m a con h ecer. P e la m a n h ã , n os d ia s com u n s, e à n oite, nos
d ia s de f e s ta , h a v ia ao lado do ta b u le ir o u m a p a n e la de b arro com a ju ç a r a
fr e s c a ou o m in g a u de m ilh o, q u e o p róp rio v e n to da ru a a n u n c ia v a e o ferecia .
N o rod ar do tem p o, a c a sa não m udou. O que era on tem , no tem p o do
c a tiv e ir o , c o n tin u a a se r h oje, n a ép oca d a lib erd ad e — com o m esm o corred or
com p rid o, a s m e sm a s sa la s e q u a rto s, o m esm o sa n tu á r io , o m esm o te r r e ir o de
ch ão b atid o, q u e s e p o n tilh a de v e la s v o tiv a s d u r a n te a n o ite , e a que dão
som b ra, d u r a n te o d ia, o s ra m o s to r c id o s de u m a c a ja z e ir a sa g r a d a . E n tr a -s e
a li p e la p o r ta da R u a de São P a n ta le ã o . E o q u e logo s e v ê ao c h e g a r à v a ra n d a ,
d ep ois d e a tr a v e s s a r o corred or a tijo la d o , sã o o s ta m b o r e s r itu a is , de pé, em
n ú m ero d e tr ê s , com pondo o fu n d o , à esq u erd a , e com pondo a b a se de um tr iâ n ­
g u lo cu jo v é r tic e é o en con tro d a s p a r e d e s. U m lon g o b an co de m a d eira sem
reco sto a co m p a n h a a p a red e q u e o lh a o q u in ta l. E n tr e ta n to , ao s e n ta r a li, o
q u e o v is ita n t e d e sc o r tin a são o s ra m o s da c a ja z e ir a , p orq u e u m m u ro s e a lte ia ,
de pouco m a is de m etro e m eio, n a d iv isó r ia da v a r a n d a . M a s e s s e m esm o m uro
s e ab re, m a is a d ia n te , p a r a d ar p a ss a g e m ao te r r e ir o , p erm itin d o o lh a r d e p erto
a v e lh a árv o re, to d a v e s tid a d e fo lh a s m iú d a s, d e u m v e r d e q u eim ad o, m u ito
escu ro , e que a lu z do so l tr o p ic a l c u sta am a d u recer. P o r tr á s do b anco, e stá
a sa la fe c h a d a on d e s e escon d e o sa n tu á r io , e a que o s N e g r o s só p en etra m em
esta d o d e p u reza , n a c o m p a n h ia d a n och ê ou don a da c a sa , e d a s n o v ich es, ou
ir m ã s, e s ta s ú ltim a s tra zen d o n o s b ra ço s a s p u ls e ir a s de b ú zio s, e no pescoço
o s c o la r e s co lo rid o s que a n och ê lh e s p rep a ro u . D e n o ite, q uando b a ix a m os
V od u n s, e stro n d a m o s ta m b o res, to ca d o s r itu a lm e n te p e lo s r u n tó s, en q u an to sa -
co leja m a s c a b a ç a s e r e tin e m o s o g ã s, e s te s ú ltim o s v ib ra d o s p o r m ã o s d e m u lh er.
A o r ig e m da C a sa d a s M in a s h á d e se r sem p re um m isté r io .

VI

Um dos mais ilustres nomes da cultura brasileira foi Dunshee


d’Abranches, a quem se deve, entre outras obras, de caráter político
e histórico, a intitulada O Cativeiro (Rio de Janeiro 1941).
Trata-se de um volume de memórias, através de cujo desdobra­
mento apreciamos não só a clareza e a fascinação do estilo, como
também o registro de fatos sociais, usos e costumes da velha capital
da então Província do M aranhão: São Luís.
O autor dessa obra, que está pedindo reedição, como já foram
feitas as de outros maranhenses, que viveram naquele período, teve por
avô Garcia de Abranches, o Censor.
Uma das fontes, a que recorreu Dunshee d’Abranches foi a Pa-
peleira, velho armário, onde estavam guardados papéis e coisas pre­
ciosas, de tão nobre família.
Guardava-lhe a chave a Tia M artinha; e das mãos dessa ante­
passada o jovem sobrinho as recebera com a permissão de entrar no
conhecimento do seu conteúdo, com a recomendação seguinte:
C uidado, m u ito cu id ad o, d isse-m e e la : A li te n s m u ito que a p ren d er. C om eça
a tu a le itu r a p e la s c a r ta s e n tr e o te u a v ô e se u p rim o g ên ito F r ed erico
M a g n o : v ê com o é c r u e l a reb eliã o de um filh o , dom inado p e la p a ix ã o
p o lític a . N a s p á g in a s do C en sor a c h a r á s a in d a rev e la ç õ e s c u r io sa s sob re
o s p rim eiro s d ia s da In d ep en d ên cia no M aran h ão. J á que te m e te s a se r
em tã o te n r a id a d e um p r o p a g a n d is ta da ab olição da e sc r a v a tu r a , d eix a
p a r a o fim d a s tu a s p e sq u isa s a le itu r a do Espelho Crítico e Político da
Província do Maranhão. E sc r ito por teu avô, a in d a n os tem p os co lo n ia is,
v e r á s q u e, m u ito a n te s d e ti, h o u v e quem se a p ie d a s se sin c e r a m e n te da
so r te dos esc r a v o s.

A le itu r a d e ssa m em ó ria em p olgou -m e d esd e os p rim eiro s p eríod os. C om ­


p reen d i fa c ilm e n te com o s e p ov o a ra o solo m a r a n h e n se e, n a tu r a lm e n te , o B r a sil
in te ir o . O s ín d io s ca ça d o s com o fe r a s , tr a íd o s, lu d ib ria d o s, e x te r m in a d o s a fe r r o e
fo g o . Os colon os b ra n co s, c o n stitu íd o s, em su a g r a n d e p a r te , da e sc ó r ia so cia l da
m etró p le e de o u tr o s p a ís e s eu ro p eu s, debald e te n ta n d o e sc r a v iz á -lo s sob o nom e
de administrados. Os j e s u íta s em p reen d en d o lib e r tá -lo s e sendo e x p u ls o s p elo s m a g ­
n a ta s . O g o v ern o de D . J o sé , no in te n to de co r r e r em socorro d e ss e s in fe liz e s ,
crian d o a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. E s ta em p resa , com u m
fu n d o de u m m ilh ã o e q u a tr o c e n to s m il cru za d o s, com eçando a fo r n e c e r g ê n e r o s
e fe r r a m e n ta s a o s la v r a d o r e s e acab an d o p or v e n d e r -lh e s tam b ém e sc r a v o s com
a im p o rta çã o dos N e g r o s da C o sta da Á fr ic a . O a u to r do Espelho Crítico m o stra n d o
en tã o o a ssom b roso p r o g r e sso q u e tiv e r a m a s r iq u eza s n a tu r a is da p r o v ín c ia e,
ao m esm o tem p o, d escrev en d o o q u e fo i em tod a a su a h ed ion d ez o tr á fic o da
c a r n e h u m a n a p e la s te r r a s m a r a n h e n se s! É p a ra c o n fu n d ir o e n ten d im en to , e sc r e v ia
n e ss a m em ó ria G a rcia d e A b ra n ch es, in c o n te sta v e lm e n te o p r e c u r so r da ca m p a n h a
a b o lic io n ista em te r r a s m a r a n h e n se s e q u içá em tod o o B r a s il, v e r a m a io r p a r te
dos h a b ita n te s, ou p or u m a c e g a am b ição ou p or fa lta de se n tim e n to s de h u m a ­
n id a d e ou por f a lt a de m oral ou p or e fe ito ta lv e z de u m a ed u cação o r d in á r ia ,
não fa z e r e m d istin ç ã o e n tr e e s te s filh o s de D e u s e u m reb an h o de g ad o, ou
m esm o d as p r ó p r ia s fe r a s , to rn a n d o -se tã o n o tá v e l a su a e str a n h a in s e n s ib ili­
dad e que s a c r ific a m m esm o sem r e fle x ã o o s s e u s in te r e s s e s n a e x tr a v a g a n te m a ­
n e ir a com q u e tr a ta m u n ifo r m e m e n te os p ró p rio s e sc r a v o s. A lg u n s o s e n tr e g a m
e stu p id a m e n te ao v e r d u g o de u m fe ito r q u e m u ita s v e z e s é um fa s c in o r o so v a g a ­
bundo, sem m a is e x a m in a r e m su a c o n d u ta n em c a p a cid a d e. E s te b ru to n ão fa z
m a is q u e a p a r e lh a r v e r g a lh o s e a ç o ite s d u ros com que a tod a a h o ra r e ta lh a o
couro dos m ise r a n d o s N e g r o s, fa zen d o -o s a n d a r em u m a p o eira d ia n te de si no
tra b a lh o da roça, e, com e s te zelo a p a r e n te , m a is p or n u tr ir o s h u m ores de seu
g ê n io fe r in o do q u e p elo a d ia n ta m e n to do serv iço da fa z e n d a , m u ito liso n je ia
o a g ra d o e v e n e r a ç ã o de seu am o ou, p a ra m elh or d izer, a su a lou cu ra. O
m esm o a n im a l in d ôm ito n u n c a e x a m in a a s fo r ç a s f ís ic a s e m o r a is dos in fe liz e s
q u e d om ina, p a r a p r o p o rcio n a r-lh es o tra b a lh o que p o ssa m v e n c e r ; r e p a r te sem p re
ta r e f a s ig u a is , e, e s t a s m u ito g r a n d e s, p a ra h om en s e m u lh e r e s; e u n s e o u tro s
que n ão d erem c o n ta in fa lív e l à h o ra c e r ta são ra ch a d o s com d ú zia s e d ú zia s
de p a lm a s, a ç o ite s, n ã o d eix a n d o , no fim do d ia , de se r de novo a to rm en ta d o s
com u m e x c e ssiv o se r ã o q u e d u ra se m p r e a té a lt a n o ite. O m esm o m on stro é
tam b ém u m m on stro de la s c ív ia ; p ois, com a m a is d e se n fr e a d a in c o n tin ê n c ia , s e
c o n sid era , no m eio d a s N e g r a s d a fa z e n d a , com o o su ltã o a b so lu to , fa zen d o a s
m a is a tr o z e s in ju s tiç a s a o s p ob res N e g r o s a quem , p or q u a lq u er le v e f a lt a ou
r e sp o sta , a su a voz, sem p re te r r ív e l, p ro n u n cia de le v a n ta d o s; e sem rem issã o
os m ete a r r e b a ta d a m e n te no tron co, e lh e s dá c r u d e líssim a s su r r a s , p a r a m a is
liv r e e im p u n em en te a b u sa r d as s u a s m u lh e r e s com e sc a n d a lo sa to rp eza e v ila n ia .
A lg u n s d e ste s m a lv a d o s a b o m in á v e is têm recebido o prêm io de s e u s d e lito s e x ecra n -
d os, sen d o e s p a tifa d o s p e lo s N e g r o s n a e fe r v e s c ê n c ia de su a c e g a d esesp era çã o .
C a u sa a ssom b ro e p a v o r, e x c la m a r a ele (o C e n so r ), v e r no B r a s il o s N e g r o s
e n tr a r e m no m ato, a p a r e lh a d o s d e g r a n d e s fo ic e s com q u e p r in c ip ia m a roçar

212
e x p o sto s a m il p e r ig o s. A lg u n s são m ord id os de cob ras e s e lh e s se g u e q u ase
sem p re a m orte. O u tros são r a sg a d o s com fre q ü ê n c ia por in fin id a d e de e sp in h o s
e am iu d a d a m en te c o b erto s e fe r id o s p or u m a m u ltid ã o de d iv e r so s v erm ícu lo s
p eço n h en to s, q u e in u n d am a s c o n fu s a s r a m a s d a s á r v o r e s; e m a l lh e s tocam no
corpo le v a n ta m -s e -lh e s p o stem a s, p r in c ip a lm e n te u m ab o m in á v el fo r m ig u e ir o que
ch am am poró, sendo im p roviso o seu e fe ito le tífe r o . N ã o m en os cr e sc e o te r r o r
q u ando, d ep ois, com eçam a d erru b a r d e m ach ad o os m o n stru o so s e e lev a d o s tron cos
q u e, m u ita s v e z e s, ao c a ir , r e v e r te m com o v en to e esm a g a m a lg u n s d esses
d e sg r a ç a d o s len h a d o res.

Mas Dunshee d’Abranches apresenta em sua obra, para contrastar


com as figuras dos escravos, outras personagens da época em São Luís
escrevendo:
V iera m -m e logo à m e n te c e r ta s f ig u r a s c o n h ecid a s de c r io u la s e m e stiç a s que,
lig a d a s a rica ç o s da te r r a , p a ssa v a m v id a fa r t a e tin h a m b a sta e sc r a v a r ia . E n tr e
e sta s, d u a s s e to r n a r a m m u ito p o p u la r e s — a Catharina Mina, p r e ta r e tin ta , que
só sa ía à r u a com o se u séq u ito d e m u ca m a s, e a Evarinta, sem p re co b erta de
jó ia s , h e r d e ir a do c a p ita lis ta M a la q u ia s G on çalves. A m b a s eram tid a s com o g e ­
n e r o sa s e c a r ita tiv a s , m a s n u n c a a b ria m m ã o s dos se u s c a tiv o s. O u tra s m e stiç a s,
to d a v ia , q u eria m à v iv a fo r ç a p a s s a r p or b r a n c a s. E r a m de u m a c ru eld a d e sem
ig u a l com o s se r v o s de su a ra ça . E tu d o fa z ia m e sa c r ific a v a m tu d o p a r a se
in tr o d u z ir n a s fa m ília s de s a n g u e p u ro. E s ta s , e n tr e ta n to , era m d e u m rig o rism o
tr a d ic io n a l; e, q u an d o tin h a m de c o n so r c ia r o s filh o s , ia m n a s s u a s p esq u isa s
a té a o s tetravós dos p re te n d e n te s. C a sa r com u m bode (e r a a e x p r e ssã o ch u la
com q u e se e stig m a tiz a v a m o s m u la to s) ou com um pardo, n om e m a is polido
com que eram tam b ém e s te s d e sig n a d o s, c o n s titu ía u m a d eso n ra ir r e p a r á v e l e
p erp étu a . A g e r a ç ã o fic a v a tisnada.

Com relação à desumanidade dos senhores de escravos nas fa­


zendas maranhenses, levada, com uma tradição, a outras áreas do
Brasil, onde havia escravos, para amedrontar este ou aquele insubmisso,
ouvia-se não raro: Vou te mandar para o Maranhão! Vou te mandar
para o Maranhão!
T. A. Araripe Júnior, em seu ensaio sobre a figura rabelaisiana
de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ao estudar a formação do
povo brasileiro, com os elementos étnicos, locais, miscigenados com por­
tugueses e Negros, posteriormente, nos legou umas páginas dignas de
transcrição aqui, logo após os fragmentos tomados à obra de Dunshee
d’Abrantes, visto que focalizou a gente mina levada à Bahia.
O papel dos jesuítas, no pretender imprimir a essa formação um
caráter diverso do que se vinha processando acolá, extrapolou graças
à personalidade de Padre Manuel da Nóbrega, pois

e n co n tra ra m d ific u ld a d e s q u ase in v e n c ív e is , porq u e o R ecôn cavo h a v ia sid o v i­


ciad o p elo céle b r e C aram u ru , o q u al, fa z e n d o la r g a p ro le g e e n tr e os in d íg e n a s
e tr a n sig in d o com a s su a s p é ss im a s in c lin a ç õ e s, d ese n c a d e a r a n e ss e s b árb aros
a cobiça e e n sin a r a -lh e s o cam in h o de ob terem dos b ra n co s a s v a n ta g e n s sem
o troco do serv iço . À v is t a d isso , o s p ró p rio s j e s u íta s con cord aram q u e se to ­
m a ssem a s p r im e ir a s m ed id a s de r ig o r. M as isto era o m en os, porque o s b ran cos
que se tin h a m a clim a ta d o n a q u e la s r e g iõ e s, d e p a r c e r ia com o s Ín d ios, e com p le-

213
tamente à
e n tr e g u e s m a is b r u ta l r e la x a ç ã o , se m e x c e tu a r o s m esm os sa cerd o tes,
o fe r e c ia m o m a is r e p u g n a n te exem p lo de q u an to pode a lu x ú r ia em te r r a s tr o ­
p ica is. O P a d r e N ó b r e g a , m a l en cetou su a m issã o , tr a to u logo de e x tir p a r da
fr a c a colôn ia p o r tu g u e s a e s s e pecad o n e fa n d o e h orroroso. (R e fe r e -s e à p e d e r a stia .)
S erv o de D eu s, q u e p o d eria e le a le g a r sen ão q u e p or a li a n d a v a m a r tim a n h a s
do diabo? Ig n o ra n d o , com c e r te z a , a in flu ê n c ia d as le is m e so ló g ic a s e o u tr a s in te r ­
fe r ê n c ia s, de c u ja d esco b erta se o r g u lh a a c iê n c ia m od ern a, o h eróico j e s u íta a ta ­
c a v a o fa to com o e s te s e lh e m o str a v a , e, d e cru z a lç a d a , ia p reg a n d o co n tra
o s v íc io s p eca m in o so s, ao m esm o tem po e sc r e v ia p a r a P o r tu g a l, so lic ita n d o in s ta n ­
te m e n te a r e m e ssa de m u lh e r e s b r a n c a s, a in d a m esm o a s p r o stitu ta s, que se con ­
v e r te r ia m ca sa n d o -se com os d egred ad os. T u d o isto , p orém , tin h a seu d estin o .
E r a in d isp e n sá v e l p a r a a c o n stitu iç ã o do tip o b a ia n o , que s e fiz e s s e u m a c a l-
d eação de r a ç a s, de se n tim e n to s e de in s tin to s, que a B a h ia c o n q u ista sse a su a
a u ton om ia. F o r a m o s T u p in a m b á s o s p rim eiro s a d a r seu c o n tin g e n te . O que
era m e ste s in d íg e n a s, em m a té r ia de a m o res e a r te s c o r r e la tiv a s , r e fe r e -o , com
tin ta s de r e a lism o a d m ir á v e l, G ab riel S o a r e s, no seu Tratado Descritivo, de m odo
a n ão se p ôr à p a r te q u e tiv e r a m no en sin a m en to d e ssa s a r te s ao colono b oçal,
d esp ed id o da m etró p o le e ávid o de se n sa ç õ e s. O c a p ítu lo C L V I d aq u ela in e s tim á v e l
ob ra in d ica a s lo u c u r a s d e que se r ia m c a p a z e s e s s e s pob res colon os d ia n te d as
T u p in a m b á s, v e r g a s ta d o s p e la solid ão, p elo clim a , p or um a lim en to a cre e p e la s
su g e s tõ e s de u m a v e g e ta ç ã o sem p re v e r d e e en o rm em en te c a r r e g a d a d e r e s in a s
a fr o d isía c a s . N ã o ta r d a r á a u n ir -se a e s s e elem en to eró tico o fo r te se n su a lism o
d os a fr ic a n o s. E s te im p o r ta n tíssim o elem en to da n o ss a co lon ização im p regn ou a
B a h ia , m a is do q u e a q u a lq u er o u tr a r e g iã o do B r a s il, de u m a s ton alid ad esi
o r ig in a is de m e stiç a g e m , d ig n a s de se r e m a n a lisa d a s ao cla r ã o da c r ític a de u m
T a in e ou de u m H a n n eq u in . A N e g r a mina,, c a r in h o sa , in te lig e n te e b ela , sed u ­
zin d o com a fo r m o sa c a r n a d u r a e p elo lu s tr o so e e sc u ltu r a l da V ê n u s a fr ic a n a
o p o r tu g u ê s lib id in o so , n ã o cu sto u a v e n c e r a in d íg e n a n e ss e con cu rso d e p ro-
c ria ç ã o . É v erd a d e q u e a m u lh er tu p in a m b á tin h a a in d o lê n c ia d as o r ie n ta is, o
abandono d a s n a tu r e z a s m órb id as, a m oleza, a in d ecisã o , o a m b alar etern o da
r ed e e o gozo v a g o , in te r m ite n te , q u a se in d e fin ív e l d os b a trá q u io s. E n e r v a n te s,
dep ravad oras, é b em certo que, s e n ã o co n c o r r e sse a o u tr a m e stiç a g e m , o colono
p o r tu g u ê s n u n ca m a is s a ir ia do te ju p a r , n em a b a n d o n a ria a red e p a r a b r a n d ir a
en x a d a ou o m ach ad o e d e sb r a v a r a flo r e s ta . M as e ss a en erv a çã o n ão p od ia d e ix a r
de c a u sa r -lh e m edo. O s in s tin to s sab em b u sc a r o s se u s ca m in h os. A c r e sc e que
a Ín d ia d e sc o n fia d a n ã o era ca p a z de c o n stitu ir foyer. A o co n tr á r io de tu d o
is to a N e g r a m in a a p r e se n ta v a -se com to d a s a s q u a lid a d es p a r a se r u m a e x ce­
le n te c o m p a n h eira e u m a cr ia d a ú til e fie l. E sc r a v a , r e s is te n te a to d o s os tr a ­
b alh os, sa d ia , e n g e n h o sa , fin a , s a g a z , c a u te lo sa , ao m esm o tem p o que n u tr ia um
fo g o in e x tin g u ív e l, e la sa b ia d ir ig i-lo e a p r o v e itá -lo em b e n e fíc io da p ró p ria
p role. Com se m e lh a n te s p red ica d o s e n a s con d ições p r e c á r ia s em q u e no p rim eiro
e seg u n d o sé c u lo s se a c h a v a o B r a s il em m a té r ia de belo sex o , e r a im p o ssív e l
q u e a M in a n ã o d o m in a sse a situ a ç ã o . E , de fe ito , em tod a p a r te do p a ís on d e
h ou ve e sc r a v a tu r a e la in flu iu p o d ero sa m en te e n tr e o g a le g o e vacinou a fa m ília
b r a sile ir a . P o d ia , p o rta n to , o P a d r e N ó b r e g a b ra d a r q u an to q u is e sse co n tra o
q u e r e p u ta v a “g r a n d e m a l”, escrev en d o ao P a d r e M estre S im ã o R o d r ig u e s que
“a g e n te da te r r a v iv ia em pecad o m o rta l e n en h u m h a v ia q u e d e ix a s se de te r
m u ita s N e g r a s d a s q u a is s e en ch iam de filh o s ” ; a p r e ta m in a n ão r e c u a r ia , e,
v ito r io sa , d a ria to m a e s s a m esm a lib e r tin a g e m , a e ss a d e se n fr e a d a p o lig a m ia
de q u e tã o incom odado s e m o str a v a o m issio n á r io je s u íta . C ada v e z m a is e n tr a -
n h a d a no seio da fa m ília c o lo n ia l, a a fr ic a n a , q uando não se n h o r a do la r , era
a m ed ia n e ir a da co zin h a e a p r o v id ên cia d os q u a r to s b a ix o s. N ã o p o ssu in d o fo r ç a
in te le c tiv a p a r a e le v a r -se sobre a fa ta lid a d e da su a r a ç a , e la e m p r e g a v a to d a a
su a sa g a c id a d e a fe t iv a em p ren d er o bran co e a su a g e n te n a tep id ez do colo
m acio. F o i n e ss e colo q u e a B a h ia m ed rou e s e d esen v o lv eu . A í fo r m o u -se a
ia ia zin h a e, em b alad a n a co x a a v elu d a d a , ap ren d eu a se r d e n g o sa e a nada

214
fa z e r . N e s s e colo m acio lh e e n sin a r a m a se r su p e r s tic io sa , ao som de can tigim
a fr ic a n a s e r e m in isc ê n c ia s fe t ic h is ta s . F o i n e ss a e sc o la tam b ém q u e a m en in a
b r a sile ir a ap ren d eu a se r d issim u la d a e a e n fe itiç a r os o u tr o s com a su a in d o­
lê n c ia tro p ic a l. À N e g r a a fr ic a n a ig u a lm e n te d ev e-se a cria ç ã o do p e tu la n te e
v a le n te ioiô. Com e la e n sa io u -se o a d o le sc e n te n a s su a s p r im e ir a s b a ta lh a s do
am or. A té o p róp rio sinhô velho d eix o u -se sed u zir p e la s s u a s c a u te lo sa s e d iscre-
tís s im a s c a r íc ia s q u e a sin h á da s a la d e ix a v a d e e n x e r g a r , ta lv e z p reocu p ad a com
o s m ú ltip lo s se r v iç o s q u e a p r e ta lh e p r e sta v a , con d im en ta n d o o s a c e p ip e s e
in str u in d o -a com a riq u eza da c u lin á r ia da c o n tr a c o sta . N e s s e acon ch ego lúbrico,
a p im en ta d o p e lo s v a ta p á s , p elo d endê, fo r ta le c id o , in te n sific a d o p elo coco e p ela s
d e líc ia s da m oq u eca; e n la n g u e sc id o p e la s c a n tig a s e lu n d u s e p or m il o u tr a s co isa s
m iú d a s que a im a g in a ç ã o da a fr ic a n a le v a n ta v a a fim de to r n a r a v id a tão
a cre com o e la a s e n tia n o s a d u sto s d e se r to s do C o n tin en te N e g r o ; n e ss e ninho
de v o lú p ia g e r o u -s e u m a ra ça de m e stiç o s, elo q ü en te, r e sso n a n te , a p a ix o n a d a e
u m ta n to ch e ia de p a ra d o x o s n o s co stu m es, a q u a l, m e s tiç a no sa n g u e , p or su a
v e z , e n c a r r e g o u -se de m e s tiç a r a s id é ia s, o s se n tim e n to s e a té a p o lític a dos
b ra n co s d o m in ad ores da te r r a .

VII
Atos de crueldade, atribuídos a senhores de escravos, feitores e
capitães-do-mato, a serviço deles, ou, ao longo da travessia, nos tum-
beiros da Costa da África, para as Américas, principalmente para o
Brasil, se foram apontados no Maranhão, também o foram, no sul do
nosso País, em Minas Gerais.
No seu magnífico Fabulário Infantil (Imprensa Publicações, Belo
Horizonte), Euryalo Canabrava, escritor e filósofo, nos apresenta um
quadro dos mais estranhos e originais, que a sua memória fixou em
terras de Minas Gerais. Tratava-se de um método pedagógico dos
mestres de então. Ei-lo:
N a esco la p r im á r ia , o p r o fe s so r su b m e tia o s a lu n o s in e r m e s a to r tu r a n te s
q u e stõ e s sob re ta b u ad a. A a v e r sã o de E lp íd io (q u e v ir ia a s e r p a i de E u r y a lo )
p e la m a te m á tic a le v a v a -o a co m eter fr e q ü e n te s erro s n a s r e sp o sta s. E m ta l c ir ­
c u n stâ n c ia , o m e s tr e reco r r ia à p a lm a tó r ia p a r a c o r r ig ir a n e g lig ê n c ia dos m e­
n in o s a p a v o ra d o s. P o is bem , m eu a v ô T eotôn io, la tin is ta con su m ad o, e sp ír ito sa g a z
e g e n e r o so , n ã o h e sito u em reco m en d a r ao p r o fe s so r que, caso m eu p a i se e n g a ­
n a ss e n a ta b u a d a , o s c a s tig o s , com a p a lm a tó r ia , d ev e r ia m s e r a p lica d o s no
p retin h o B en ed ito .
E r a d e v e r , e n tã o , o m oleque, a tr á s d e m eu p a i, o lh o s la c r im e ja n te s, gem en d o
com v o z m on ocórd ia: “E stu d a , seu E lp íd io , e stu d a , seu E lp íd io !” (p . 111 e 1 1 2 ).

VIII
A PROPÓSITO DE «A CASA DAS MINAS»
Edmundo Correia Lopes
A Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia iniciou as suas
publicações com a comunicação de Nunes Pereira A Casa das Minas,

215
sobre um terreiro de tradição voda de S. Luís do Maranhão. Apesar
dessa valiosa comunicação, do que tenho escrito sobre o mesmo tema
e do muito que colhi naquela casa e, ouso até dizê-lo, da promessa
de novos estudos prometidos pelo etnógrafo maranhense que oxalá se
realizem brevemente, alinho estas considerações no receio de que o
Quêrêgbetã de Mãe Andresa Maria nunca venha a ter o estudo que
merece. É certo que uma douta instituição dos E.U.A. tomou sob os
seus auspícios investigações sobre o Negro maranhense, envolvendo,
como não podia deixar de ser, o mais puro dos seus terreiros, mas para
o Brasil é um imperativo nacional a recolha do vasto patrimônio mu­
sical, coreográfico e multiplicemente folclórico, psicológico e histórico
do grande terreiro jeje. Ainda hoje me parecem pouco o meu caloroso
entusiasmo e êxito inesperado das minhas tentativas — coroadas pelo
encontro nos arquivos portugueses das obras de língua mina de Costa
Peixoto — para avaliar com certeza a importância do tesouro guar­
dado pelos «Minas» maranhenses e pelas noviches do Begum da Cidade
do Salvador. A guerra e as minhas atribulações na pátria impediram-
me de fazer como devia e tencionava a propaganda em torno desse
manancial de riqueza estética e psíquica da nação brasileira.
Empenho fácil e já conseguido é o de classificar o Quêrêgbetã na
ordem religiosa. Em introdução ao trabalho de Nunes Pereira, A rthur
Ramos apresenta a minha conclusão, publicada em trabalho posterior
do etnógrafo maranhense, de que o culto guno de S. Luís se inclui
no «sincretismo ioruba-daomeano». Isso seria apenas a confirmação
de um lugar-comum desde Nina Rodrigues. Outra afirmação do mestre
baiano (aliás maranhense) mais precisava ser confirmada: a de que
o tal sincretismo vinha determinado da África. Do fato encontrei eu
confirmação plena, quando identifiquei, provavelmente bem, o senhor
Póli-Boji com o «Kpoli» de Mãe Andresa. Se não está bem patente
no comentário da Obra de Língua Mina, de Peixoto, volto a escla­
recer que me refiro a um sincretismo jeje-nagô produzido em África.
Sincretismo religioso com demonstração lingüística.9 Nos estudos afro-
brasileiros tanto da religião como da língua tem dominado uma con­
fusão geográfica, pelo motivo de haver várias tribos nagôs no território
do Daomé. A essa confusão se refere já A rthur Ramos. Por causa dela
publiquei um artigo na Revista do Brasil, intitulado «O pessoal jeje»,
contendo acusações ao fundador dos estudos afro-brasileiros, de que
mais reíletidamente o ilibei em artigo publicado na mesma revista
com o título de «Justiça a Nina Rodrigues». Com esta explanação
ficam reparadas as faltas em que o trabalho de Nunes Pereira não
podia deixar de te r incorrido, principalmente ao versar a questão da
língua.
9. São exem plos de lin g u ag em relig io sa contendo dois dialetos do E v e em d ife re n te s proporções
com um pouco de Soruba, os p rovérbios dos K polis, que podem v er-se no a rtig o de J ac q u e s B ertho,
"L u Science du d estin au D ahom ey” , in A jr ic a (L o n d res 1936), e m ais e x au stiv a m e n te em J .
H pleth, Die Itclig io n der E w e r in Süd -T o g o , L eip zig 1911, p. 189-223.

216
Pensar que o sincretismo ioruba-daomé do terreiro de Andremi
é de origem afra tem muita importância quando se lê um livro que,
como A Casa das Minas, tanto insiste sobre a pureza da crença dos
fiéis do Quêrêgbetã. Este é o fundo da questão, embora não falto
depois onde procurar, quer em pontos de crença, quer nas múltiplas
manifestações de cultura, evidências de poliédrica aculturação.
O depoimento de Nunes Pereira convida-me a dar o meu pequeno
depoimento, porque tudo me parece pouco para decidir os músicos bra­
sileiros a recolher e venerar os «pontos», de que tenho publicado umas
duas dezenas, quando possuo mais de um cento, os coreógrafos a fixar
as danças, os psicólogos a esgotar a psicologia e outros estudiosos a
estudar o resto — e isto enquanto é tempo, porque já Andresa Maria
se me queixava, e na Bahia a Emiliana, da dificuldade que vai haven­
do em conservar o velho patrimônio em gente moça. E a minha dúvida
é que, perdido ele, perdidos não fiquem valores que nem em África
seja tempo de recuperar.
O autor de A Casa das Minas alude à minha freqüência ao te r­
reiro em 1937. Não importa retificar o que diz a meu respeito. É
pena que não seja verdade. Basta agradecer-lhe com a simpatia que a
recordação do seu nome me desperta, ligada, não me recordo bem se
a algum encontro pela Amazônia se a boas referências que lhe ouvi
fazer, a maneira amável por que reproduziu a lenda que a meu res­
peito se formou entre a gente da seita no Maranhão sem que, como
poderia vir a suspeitar algum crítico, eu a tivesse originado mentindo
para mais facilmente ganhar confiança. De qualquer maneira, não con­
segui por completo realizar o meu intento. Andresa declarou não me
ter confiado tudo o que sabia e os pesquisadores devem reparar bem
no caso que exponho para governo deles. Em primeiro lugar, a con­
fiança não dependia exclusivamente da vontade da voduno, porque esta
entregou a decisão aos Voduns, segundo os trâm ites que as coisas
seguiram. Pelo que tocava à boa vontade da dona do Quêrêgbetã, devo
dizer que fui recebido com a maior franqueza desde que ali entrei.
Contando apenas com 20 dias de trabalho naquela casa e em S. Luís,
trabalhando desde o jantar (às 18 horas) até depois da meia-noite,
tempo insuficiente para coligir todos os textos musicais, exclusivamente
cantados por Andresa — as noviches não o podiam fazer e passavam
o tempo comigo em conversa fiada nos impedimentos e descansos da
voduno — com essa limitação me conformei desde o princípio. Evitei
assim qualquer motivo de reserva que comprometesse o nosso mútuo
e tão necessário à-vontade, até final, só então pedindo para ser admi­
tido no pégi, menos pelo desejo de lá entrar que para saber se me
era permitido. Mas importa mais pormenorizado o meu depoimento.
No primeiro dia, pelas 18 horas, bati à porta da casa da rua de S.
Pantaleão, 857, perguntando por Mãe Andresa. O nome fora-me indi­
cado em Belém pela Luzia da «Floresta de Santa Joana d’Arc», à
cremação, mulata maranhense. A casa reconhecera-a na véspera em

217
um;i ronda pelos terreiros na companhia do amabilíssimo delegado de
polícia. Só o chofer me pôde dar a indicação daquela porta misteriosa,
fechada quando depois da meia-noite passamos pela rua. Mãe Andresa
não estava no momento em que a procurei, mas, voltando uma hora
depois, fui introduzido na varanda para dizer à voduno: «Sei cantigas
jejes da Bahia. (Sabia pouco, ainda não estava reconstituído, ao tempo,
o Bogum do Engenho Velho.) Quero aprender cantigas jejes do seu
terreiro». Receou que se tratasse de uma vontade incerta, de uma
curiosidade vã, mas foi am ável: «Oh! a nossa língua é muito difícil. . . »
— e começou a cantar, em nagô, um «ponto» bonito que diligente-
mente transcrevi e reproduzi logo. Vendo que o amigo não era muito
estúpido, Andresa começou logo a cantar jeje, mas não o fez ao acaso
o primeiro cântico que escrevi, Ê m asêtô10, é um exconjuro. Ignoro
se alguma ordem conservaram daí por diante os textos que foram
aparecendo, embora me falasse do nome, sexo e idade doVodun a
que pertenciam. O essencial é que em muito raras ocasiões, por can­
saço, indisposição ou afazeres, a mestra se escusava de cumprir a
pesada tarefa que aceitara, correspondendo à minha avidez de me-
lômano, cansando-se, repousando apenas a intervalos para conversar
sobre as explicações que a propósito dos textos lhe pedira. Por vezes
eu instava, sem força — que me parecia necessário empregá-la —
para que me revelasse tudo o que me pudesse revelar sem prejuízo
do mistério que lhe convinha preservar na casa. Nessa reserva, seria
eu o primeiro a ampará-la, usando da plenitude do meu espírito crí­
tico a ponto de a fazer recear ser indiscreta. Por excessode escrú
pulo? Não. Por um sentimento de solidariedade a que senão pode
esquivar quem convive naquele terreiro, eu não perdi de vista que o
momento em que todos os mistérios do Quêrêgbetã fossem devassados,
seria o início da desagregação; e é necessário que quem tomar essa
responsabilidade, tome também a de recolher integralmente para a ciên­
cia e para a arte o legado das Negras minas. Eu não podia tomar
nem uma nem outra. Nunes Pereira, no presente estudo, obedece ao
mesmo instinto. Declara com certa humildade que nunca entrou nas
casas da direita do terreiro (são habitações particulares) ou na co­
zinha, e das outras divisões dispensa-se de alardear em quais entrou
ou não entrou. Lisura com lisura correspondia, a minha, penso eu.
A anciã viu-se algumas vezes apertada a ponto de confessar que a
significação dos textos não a tinham deixado os antigos. A Anéris
repetia-me as palavras misteriosas gritando-mas ao ouvido, para que
eu as traduzisse, isto é: as apreendesse na sua integridade sonora.
(Nunca me gritou assim o seu nome, razão por que até agora sempre
lhe chamei Amélia). Nada mais me podiam fazer.
10. A z è tó : o que possui um mocho — feiticeiro . V a ria n te s d e sta to a d a são, como o seu uso (n a s
com petições de te rre iro s, e tc .), m u ito d ifu n d id as. A té o O x u m aré d a M a ta E s c u ra (C idade do
S alvador) tem a sua. N o despacho d a alm a de u m a m ãe-d e-san to je je , invoca-se o m ocho: “ A ze, a z e !”
A E m ilia n a do B ogum do E n g e n h o de D en tro (S alv ad o r) tin h a m u ito re sp eito p e la to a d a do mocho.
Se lhes p a r e c e .. .
(N .B .: O s acen to s n ã o indicam os to n s d a lín g u a ewe, m a s o tim b re d as vogais segundo o p o rtu g u ê s ).

218
Em breve me demonstraram afeição a nochê e as noviches assíduas.
Estas, com a mãe-pequena (Anéris) à frente, lembraram-me a reall
zação de um tambor-mina, visto a minha permanência em S. Luís
não coincidir com nenhuma das festas da casa. E ra uma oferta de­
sinteressada. Bastava-me pagar o jan tar para as pessoas convidadas.
Se eu pudesse dispor de vinte mil ré is. . . Aceitei entusiasmado,
propondo-me até dar trinta mil réis para que a comida fosse melhor
e mais abundante. No dia aprazado, avisaram-me para comparecer
às 15 horas. Tinha o direito de ver tudo. O tempo passou-se à espera
até o jantar, que partilhei só com o runtó em uma das salas da ala
esquerda. Em seguida, o runtó, oficial de diligências que já me havia
sido apresentado e que eu procurava, às vezes, no tribunal, convidou-
me para sua casa, uma das tais do lado direito. Saindo, ao fim de
algum tempo para o terreiro, a gozar a amenidade da tarde, ali estive
com as meninas, Bosu, Desê etc., a exercitar-me, sem resultado, na
arte de tocar gô (cabaça). Aproximava-se a hora, com o crepúsculo.
Anéris veio buscar-me e conduziu-me à sala da frente, entre o corre­
dor e a antecâmara do pégi, onde me penetraram de cânticos — Dada-
Ho, o Vodun mais velho, e outros preferidos da casa. Quando o gã
começou a acertar o ritmo, mandaram-me assistir ao começo do tambor
na varanda, onde não tardavam a dar entrada vestidas as noviches, e
Anéris me fez sentar em um estrado para presidir à dança. O tambor-
mina é uma cerimônia dividida, como o candomblé nagô, em duas
partes. Supõe-se que também na prim eira se chamam os Voduns e
na segunda eles se dignam visitar o terreiro. O intervalo é aprovei­
tado para a caracterização das figuras que têm, assim, de representar
dois papéis, aparentemente distintos. A caracterização das noviches é
mais sumária que a das yawôs. A simbologia quase se reduz às cores
e os Voduns usam bengalas. Pouca liberdade tive para observar o
movimento no intervalo, as entradas aos quartos e ao pégi, porque
fui instado a conservar-me no lugar de presidência, carregando a ben­
gala de Anéris, que não cessava de me prodigalizar agrados e honras,
atrevendo-me apenas a permanecer algum tempo de pé, ao lado do
estrado, para desentorpecer as pernas. Demais, o que eu pudesse des­
cobrir não era oculto ao público que assistia à festa. No meu des­
lumbramento, provocado pelo vigor e a variedade da percussão, a pu­
reza das melodias, a sobriedade hierática das danças, reparei nos cân­
ticos que nunca ouvira — a despedida de Keibiosô (Ma para vodun
i dô) e outros que depois transcrevi — Anéris fez-me sinal para me
levantar, quando cantavam Ja sin je dô, que também transcrevi e
procurei avidamente fixar os ritmos dos tambores, absolutamente ori­
ginais. Pelas 23 horas, a festa acabou, despediram-me e só notei, da
rua, que procuraram ficar sós para cantar outro cântico. N otara tam ­
bém que o tambor não começara pelo Dangibé yen ma yi oxeunwhé dô.
Pedi explicação ao outro dia e deram-ma. A festa era distinta das de

219
<>l>rinação. Naquelas a invocação primeira é sempre a Dangibé que
Andresa, no entanto, não identifica com a cobra de Ajudá.
Tinha conseguido o máximo a que em tão pouco tempo me era
dado aspirar. Não era um grau de iniciação. Pelo que o trabalho de
Nunes Pereira me confirma, ali só havia uma posição que me con­
viesse: a de runtó e, se eu vivesse longo tempo em S. Luís, decerto
me sujeitaria à longa aprendizagem dos toques de tambor, como na
Exposição do Mundo Português. Mesmo sabendo que me não chegaria
o tempo para nada, quis aprender os toques dos Mandigas. Tanto,
porém, não é necessário. Assistindo a todas as festas, mantendo com
o Quêrêgbetã contacto diário durante vários anos, é possível aprender
todas as atitudes e surpreender todos os atos do único modo plena­
mente satisfatório. Receio bastante que Andresa Maria se decida a
divulgar tudo o que sabe. Enganar-se-ia lamentavelmente. Nunca o
poderá conseguir. A maior parte das coisas que faz estão em um
plano da consciência inacessível à sua análise intencionada. Conheço
muitas mães-de-santo brasileiras. Sei o muito que algumas valem e o
pouco que conseguiram dizer. Faço justiça à inteligência e à pureza
de intenções de Andresa Maria, mas não é ela, certamente, que poderá
dar a última palavra sobre a origem misteriosa e o misterioso destino
do culto vodun em terras do Maranhão. Requer-se um inventário de
tudo e de tudo uma interpretação objetiva, tanto mais que isso é fácil |
a um estudioso residente na pouco agitada cidade de S. Luís. Não
se encontrará? Pensem os maranhenses no assunto. Não será, em todo
o caso, perdido o valioso depoimento de Nunes Pereira e os mais que
venham de tão competente pesquisador, infelizmente afastado, ao que
parece, da terra natal.
Uma observação para terminar. A ligação da mitologia do Quê­
rêgbetã com os Kpolis nunca será impertinente. Que Andresa Maria
tenha em Póli-Boji um nome individual (ou de terreiro) correspondente
ao conceito de «Kpoli», que a religião do Quêrêgbetã pertença à mesma
zona de sincretismo ewe-iorubano são afirmativas inatacáveis, per­
feitas. Mas é de notar: l ç) que, como Andresa me afirmou e Nunes
Pereira confirma («nenhuma imagem ali nos lembra esta ou aquela
divindade», p. 29) — a voduno só pretendeu enganar-me dizendo
que no pégi não havia «nada» — faltam os costumes legbas (está­
tuas) ; 29) que, para que Póli-Boji fosse o «Kpoli» do terreiro, se
esperava que fosse também conhecido como «Vodun» das nochês ante­
riores, o que se não verifica (v. a lista dos Voduns delas, na p. 26) ;
3’) que Póli, embora parecendo sempre dever ler-se Kpoli, só aparece
no nome deste Vodun — e por que razão me havia de dar a mim e
depois a Nunes Pereira para decompor o nome? por que não
Kpoliboji?; 4?) que, apesar de tudo, não me atrevi a identificar
Kopoliboji com nenhum dos «Kpolis» de Ifá, como nas palavras do
seu cântico Se lè gba jòbó — de que me ocupei em O Mundo Por­
tuguês (IX, 142-3), onde reproduzi a melodia, que é de incomparável
220
beleza — me atrevi a dar como certa a palavra legbá. Embora rei
nhecendo que as jarras do pégi podem substituir o legbá, dispcns;
na forma habitual para não a tra ir sobre a casa a grave acusação
idolatria, verifica-se que o tal «Kpoli» não pode ser mais que U!
reminiscência singular, talvez pretensiosa reminiscência. Não é propr
mente o fio da meada do Quêrêgbetã, mas uma ressonância do cu
dos babalaôs dentro de um culto especial de sacerdotisas voduns i
peditado àquele.
Lisboa, julho de lí

IX
(E x c e r to de Três Séculos de Modas, de J o ã o A fo n so do
N a sc im e n to , B elém , p. 1 2 4 -1 2 8 : A p ro p ó sito do tr ic e n te ­
n á r io da fu n d a ç ã o d a cid a d e de S a n ta M a r ia cfe B elém ,
c a p ita l do E sta d o do G r ã o -P a r á ).

Chegados ao Maranhão, se aí já não for habitual cruzar nas ri


a «preta mina», pelo menos haverá quem se recorde de a ter vis
há menos de cinqüenta anos, pomposamente adereçada nos dias <
grandes festas. A «preta mina» vestia camisa e saia; camisa decota
de mangas curtas, toda guarnecida de belíssima renda de almofa
quando não era de labirinto, ou de «cacundê»; saia de finíssimo e alv
simo linho, tendo na beira largo folho, também de renda, como
renda é o lencinho que ela cuidadosamente segura na mão direi
e se a saloia portuguesa exibe, no dia do oráculo da sua paróqi
o melhor de seus haveres, representados em dixes e tetéias de ou
o «ouro» da «preta mina» (ver Caderno Iconográfico n. 18) é mu
mais abundante, e mesmo muito mais sólido: na cabeça um par
pentes, e um par de «travessas» de tartaruga, chapeados de ouro c
zelado: nas orelhas, enormes brincos de ouro, obra do Porto; a
meçar do pescoço, até ao decote da camisa, não se vê a pele do c(
oculta sob uma sucessão de enfiadas de contas de ouro em gros
bagos, a última das quais tem dependurado, no centro, um grai
crucifixo de ouro maciço, e, por último, em separado, um cordão
fortes elos de ouro, de que pendem, à frente e nas costas, os «bi
tinhos», ou escapulários, de N. S. do Carmo, ou de N. S. das Merc
segundo a confraria a que a preta pertencia, e que, enquanto a ge
de poucos recursos se contentava em forrar com oleado, para pres
var do contato da transpiração do corpo, ela queria que fossem r
tidos entre duas chapas de ouro; nos braços, dois ou três pares
braceletes, de pulseiras de ouro, de alentada grossura e esquisitos i
tios; em cada dedo das duas mãos, dois, três, quatro anelões de ou
de variados lavores. E com toda esta ostentação de estofos finos, ren<
caras e adornos de ouro, a «preta mina» vai descalça. Há de hav
provavelmente, em São Luís, quem reconheça no tipo que assim f
descrito, a abastada capitalista Catarina Mina, negociante de farinha,
com armazém à rua do trapiche, que teve o capricho de casar com
um cafuz, para quem arranjou uma patente de alferes da Guarda
Nacional.
A descendente da «preta mina», nascida e criada no Maranhão,
«xerimbabo» da «senhora moça», «cria de casa», alforriada na pia ou
já livre de nascença, uma vez atingida a puberdade, e em conseqüên­
cia de certas liberdades, ou pela natureza de certos serviços externos,
como o de vender doces e flores, levar recados às pessoas de amizade,
ir buscar amostras e fazer compras às lojas e tavernas, logo ganhava
a rua e entrava para o grêmio das chamadas «negrinhas de baralho».
Essas também convencionaram o seu modo peculiar de trajar, em
nada sujeito à instabilidade das modas correntes, se bem que em tudo
diferente da «preta mina». Vestido de chita, afogado, mangas largas
e compridas, de canhão, cintura curtíssima, logo abaixo dos seios, saia
muito curta na frente, e arrastando atrás uma extensa cauda, com
folho largo da mesma fazenda, anágua farfalhante, dura de goma.
Na cabeça, a carapinha baixa era entretecida de pequeninas tranças,
tendo espetada à banda uma grande rosa de todo o ano. Nas orelhas,
argolões de ouro; ao pescoço, simples cordão de ouro com uma figa.
Calçava chinelinhas de pelica branca, ou de polimento, em que mal
introduzia os dedos do pé sem meia, apoiando-lhe o meio da sola
sobre o salto, o que lhe comunicava um andar «gingado» e cadenciado,
crepitando nas pedras da calçada estalidos secos, num tique-taque rit­
mado, que a denunciava à distância. Podia o vestido da negrinha ser
de melhor ou pior qualidade, de maior ou menor luxo, consoante seus
«teres», provocando de uma para outra chalaças e pilhérias: «Quebra,
jereba, quando tu acabá de quebrar com esse, quero vê com que tu
quebra!» Mas o feitio, o talho, o molde, era sempre e invariavel­
mente o mesmo. Acaso uma ou outra cedia à tentação de «fazer de
moça branca», trajando à última moda, era logo alvo dos apodos das
malungas, e da surriada dos moleques (o moleque maranhense, irre­
verente e revoltoso, foi uma vez intitulado «quinto poder do Estado»),
que a perseguiam com remoques e cantiguinhas:
Ginga, ginga, ginga, tia C araça!
Negra de polonesa,
Tia Teresa,
Coisa que nunca se viu!

Com o lh o s de v e r — e p or isso tr a n sm itin d o tam b ém p r e c io sa s in fo r m a ç õ e s


so b re os tip o s p o p u la res, s e u s u so s e c o stu m es, su a im p o r tâ n c ia no quad ro so cia l
etc., J o ã o A fo n so do N a sc im e n to d escrev e a se g u ir a “m u la ta p a r a e n se ” :

Contou o Pará de outros tempos, entre as suas figuras regionais


inconfundíveis, a «mulata». Cozinheira ou costureira, «amassadeira de
açaí» ou «vendedeira de tacaçá», ama-seca ou criada de servir, a mu-
099
lata paraense era sempre original no seu vestir, de que jamais se
afastava. Em geral, bonita, de feições de mestiça, robusta, elegante,
amando o asseio e os perfumes fortes, feitos de raízes e ervas na
cionais, a peperioca, o cipó-catinga, a mucura-caá, ela usava corpete
decotado, de mangas curtas e tufadas, saia pelos tornozelos, toda em
roda da mesma altura, de folho na beira; as mesmas chinelinhas do
luxo que já vimos calçando, «pro formula», a negrinha do Maranhão.
O cabelo, ondulado e fofo, repartia-se em duas fartas trunfas, e de
cada lado, encaixados no alto de cada orelha, dois grandes ramalhetes
de rescendentes jasm ins; colar de ouro com medalha na frente, e, nas
costas, sobre o cangote, para afugentar feitiços e maus-olhados, enorme
figa de azeviche. Posto negligentemente sobre os ombros, à guisa de
chale, um lenço de seda, de cores vivas; nos braços roliços, pulseiras
de contas de coral; anéis em quase todos os dedos. O braço esquerdo
enfia na asa da cestinha das compras; a mão direita empunha a
infalível sombrinha, que tanto serve para o sol como para a chuva,
de dia como de noite, forrada de tafetá furta-cores com barras de
flores estampadas.
Quem quiser conhecer bem o que foi a mulata paraense, consulte
a coleção de A Província do Pará ilustrada (edição dos domingos) de
1895, em que o lápis esplêndido de Widheppff (sic) a imortalizou em
ligeiros bosquej os palpitantes de espírito, de arte e de flagrantq ver­
dade. É o que a salva do total olvido. Hoje, esse tipo desapareceu
inteiramente do movimento da vida contemporânea de Belém, de sorte
que o presente estudo da indumentária de três séculos, ao invés de
acabar na atualidade, encerra-se com uma recordação do passado.

X
CÂNTICOS LITÚRGICOS OU «DOUTRINA DA AYAHUASCA»

(C o le ta d o s n u m te r r e ir o m in a -je je de P o rto V elh o , no


T e r r itó r io F e d e r a l de R on d ôn ia)

Ao referir-me à ayahuasca, na nota n9 XII desta obra, também o


fiz a cânticos litúrgicos que, num terreiro, da cidade de Porto Velho,
Território Federal de Rondônia, ouvi entoados por adeptos do Culto
dos Voduns mina-jejes, que ali se reúnem sob a direção da popular
Macaxeira.
Dão-lhe ao conjunto a denominação de «doutrina da Ayahuasca».
Eu os ouvi, entoados por vozes femininas e, igualmente, pelas
vozes dos runtós que, com os toques variados dos seus tambores, os
estimulavam, ora em solo, ora coletivamente.
Os toques, inegavelmente, tinham a rítmica que me eram familia­
res não só da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão, como do
Bogum de Mãe Valentina, em Salvador, Estado da Bahia.
A análise do texto dessas «doutrinas» logo me revelou que haviam
sido compostas, evidentemente, com o propósito de levar à possessão
ou estado místico as «filhas-de-santo», que tomavam parte nas suas
festas; e as palavras correspondem, de modo característico, à fonte
popular de versejadores semi-analfabetos.
Nomes de Voduns do Panteão mina-jeje nelas aparecem, grafados
erradamente ou incompletos; também os de personagens folclóricos sa-
cralizados, como Dom João, Barão de Goré. Salientam-se dentre esses
os dos Voduns Avêrêquête, Iemanjá, Badé, Xangô, Ogum, Adôhun, Naná
e os de santos da hagiologia cristã — Santa Bárbara, São Cosme, São
Damião, Jesus e M a ria ...
Nas doutrinas n. 60 e 61 aparecem caboclos (sic) :
Marangalé, éh! marangalé
nós vamos querer quem
me mande.
Olha os caboclos de Angola
marangalé, éh marangalé.

/, desorientando o pesquisador, uma cantiga de ninar:


Estava a Senhora
na beira do rio
lavando os paninhos
do seu bento filho.
Lavava os paninhos
José estendia
Menino chorava
do frio que sentia. . .

Para que os cultuadores dos Voduns fossem levados ao estado de


transe ou posse mística, era evidente que qualquer cântico serviria
naquele terreiro, cuja organização só possuía o rótulo de Mina-jeje,
mas na realidade não todas as características da Casa das Minas,
de São Luís, ou do Bogã de Mãe Valentina, de Salvador.
No entanto, talvez ali pudesse ocorrer um procedimento, com a
intenção de despistar, como Fernando Ortiz salienta:
«Algunos pueblos en ocasiones rituales han usado disfazer también
el lenguaje de sus mimos con «máscaras y voces», como dice Sachs».
Em verdade todo o texto dessas «doutrinas» nada contém de ori­
ginal e especificamente ligado à ayahuasca.
Bem diverso do que aqui entendi registrar é o conjunto de cân­
ticos litúrgicos recolhidos com Mãe Angélica, nos idos de junho e julho
de 1943 e 1944, no bairro da Cachoeirinha, Manaus, Estado do
Amazonas.

224
As anotações musicais foram feitas pelo compositor paraense
Joaquim Wolfango Teixeira, como se vê a seguir.

XI

ALGUNS CÂNTICOS LITÚRGICOS DA NAÇÃO QUÊ TO


DE LAGOS (NIGÉRIA)

Os setenta cânticos aqui apresentados foram recolhidos no terreiro


de Mãe Angélica, em Manaus, Estado do Amazonas, mas as anota­
ções musicais são devidas ao músico popular paraense Joaquim
Wolfango Teixeira, natural de Belém (Estado do Pará) (ver Caderno
Iconográfico). Mãe Angélica era natural de Maceió, mas fora iniciada
no culto das divindades africanas, em terreiros de Salvador (Estado
da Bahia). Ela estivera, antes de fixar-se em Manaus, na cidade de
São Luís (Estado do Maranhão), e dizia-se do culto dos Orixás, cujo
panteão estava em Ibadã, ao norte de Lagos (N igéria).
O manuscrito que se inclui nesta obra como homenagem à memória
de Mãe Angélica é de Joaquim Wolfango Teixeira. Foi examinado por
Pierre Verger que me forneceu algumas anotações.
Referem-se à denominação de alguns Orixás dos Iorubanos que têm
o seu correspondente entre os Daomeanos, sendo cultuados na Casa
das Minas e na Casa de Nagô, em São Luís do Maranhão.
Há trinta anos passados, em Manaus, só nós dois, Geraldo Pinhei­
ro e eu, freqüentávamos os diversos terreiros — alguns famosos —
com a preocupação de estudar aspectos das religiões africanas.
Foi lamentável que então não nos dedicássemos ao estudo das
línguas africanas, o que nos perm itiria identificar o texto, evidente­
mente litúrgico, desses cânticos.
Minha intenção, ao incluí-los nesta reedição da obra A Casa das
Minas, é oferecer a especialistas em estudos das religiões e das línguas
africanas um material que me parece de uma incontestável preciosidade.

X II

ALGUNS CÂNTICOS LITÚRGICOS


PRÓPRIOS DO CULTO DOS VODUNS M INA-JEJES

Os cânticos aqui apresentados, na sua totalidade, não tiveram cor­


tina musical, com toques de tambores e vibrações rítmicas de gôs
e ogãs.
É que, na coleta dos mesmos, só pude recorrer à voz de Zuleide
Figueira de Amorim, dona de um Quêrêbêtan (situado no subúrbio de

225
Jacarepaguá, Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro), e à voz, ora
de Enedina Oliveira, ora de sua irmã, de nome Basica, tanto aquela
como esta, filiadas à Casa das Minas de São Luís do Maranhão.
Para identificação do texto desses cânticos, em língua ou dialeto
africano, recorri ao Prof. Pierre Alexandre, com Laboratório de Lin­
güística, do Institut National des Langues et Civilisations Orientales,
de Paris, conforme carta anexa, à página 206 desta obra.
Após essa providência, mandei ao Prof. Pierre Alexandre um tape
com gravação de trechos dalguns daqueles cânticos, para que os sub­
metesse à apreciação — numa análise que me pareceu de complementar
importância — do Prof. Gilbert Bouget, musicólogo do Musée de
1’Homme, e ao Dr. Naugan Agblemagnon, do Centre d’Études Socio-
logiques, 82, Rue Cardinet 75017, em Paris.
Até a presente data essa análise, entretanto, não me chegou às
mãos.

1. Para Vodun
gongôlê vôbô
na geoá
eiá Zomadone dêvó
Vodun nun naboá.
Nota: Este cântico é entoado quando os Voduns saem da sala de estar
para a varanda, onde se realizam, comumente, as danças e outros
atos litúrgicos. Entoa-se 3 vezes.
I*
2. Ê mixoá
Jabajara
tojona boá
Vodun loqué vió
auê mixoá boá.
Nota: Este cântico é para a mesma circunstância. Entoa-se 3 vezes.

3. Tacuê iló
tacuê bonjai
gongolê viôbô
tacuê ilô
tacuê bonjai
Da co Daco Donun
tacuê bonjai
Tocêe Toça
tacuê bonjai
tacuê iló
Jagorôbuçu
tacuê bonjai
tacuê iló

226

tacuê bonjai
Ageoti e Doçu
tacuê bonjai
tacuê iló
bomiçê bomiçê
tacuê bonjai.
Nota: Este cântico é para a mesma circunstância. Entoa-se 3 vezes.
Há uma particularidade a considerar-se, relativamente aos cân­
ticos acima, que é a seguinte: o primeiro cântico é em home­
nagem ao «Dono da Casa», isto é, Zomadone; o segundo é para
os demais Voduns; o terceiro é para os Toquens.
4. A comê vin
ê penha ê camin
janá ná dubê
Badé vodunce
boiê Naiá na Euá
na na dubê
a comê vin
ê penhá ô camin
jana na dubê
ozoveluvê ô ê Naná
na eá
na dubê.
Nota: Este cântico é entoado quando Badé chega, não por ele, que
não fala, mas por outros Voduns. A p artir deste sinal, o texto
é repetido.

5. Dá gô guê chê
dô cuê chi
da gô guê chê
da guê chi
da gô guê chê
da papai Naê
da go guê
da gô guê chê
da guê chi
itrutru
i compará
na truchera
do papai nauê.
Nota: Este cântico é de Naê. Entoa-se 3 vezes.
6. Dadá é pau
é da candeia

227
bagolodôle lovi
Vodun é pau
é da candeia
bagôlodôlo lovi.
Nota: Este cântico é de Dádá. Entoasse 3 vezes.

7. Naquino gôdê
papai dalô
papai melô
êligôdei
êligôdei
naquino gôdei
êligôdei.
Nota: Este cântico é de Jôgôrôbuçu. Entoa-se 3 vezes.

8. Bôçô Jôgôrô
Bôço gigana naná
iêi
Bôço dê nundê oragi
naná iêi.
Nota: Este cântico é de Jôgôrôbuçu. Entoa-se 3 vezes.

9. ô di chelomin
•a •
iêi
êduá dôné
di chelomin
nun quê çó
ê di chelomin
lêl.
Nota: Este cântico é dos Voduns.

10. Ê ataibê Vodun


taibê Vodun
da colé Vodun taibê
De li mondô fá fá hô.
Nota: Este cântico é entoado 3 vezes.

11. ô Mina vá
ê Boçu-Hô
ê Boçu-Ha
êduá
ô Mina vá
cara cara caiá

228
Boçu-Ha
êduá.
N o t a : E ste cântico é de Boçu. E n toa-se 3 vezes.

12. ô viva nun Donun


abiritá
ê Naê pôdô
pôdô Naê
para para já ô
ô viva gô zemiri
ô viva gô zemiri
ô viva gô zemiri.
Donun para para para jaô
ô viva gô zemiri.
Nota: Este cântico é de Doçu. Entoa-se 3 vezes.

13. A rrarum a irrê lê


obôbôbôlômé do tó
Dada-Hô zuma a ibô
ibôbô lomé do tó
arrarum a irrê lê
ibôbôbôlomé do tó
ê ruma a rra iô
ê ruma arra iô.
Nota: Este cântico é entoado quando Dada-Hô chega e quando os
Voduns estão passando o dia. Entoa-se 3 vezes.

14. ôtô tim ôtô ôtô


bocaçua ajá
ôtô tim ôtô
bêrê bêrê bêrê
ôtô tim ôtô ôtô
abacaçuá
ajá
ôtô tim ôtô bêrê.
Nota: Este cântico é dos Voduns dançando. Entoa-se 3 vezes.

15. Dádá mén mén


iêzô i Eua
erazô noquê
singelo
mén mén
Iêzô i Euá
erazô

229
Dádá mén raén iêzô Euá
erazô noquê singelo
mén mén iêzô
i Euá erazô
mén mén ién
mén mén Ienzô I Euá
noquê singelo.
Nota: Este cântico é de Dádá. Entoa-se 3 vezes.

16. ômica cá cá omicá


baê
ê dô celomé
bomicá cá ô rin cá
baê dô bêrôbôrôroágé
ô bomica cá cá omicá
baê
ê dô calomé
bômocá cá cá ô rin cá
baê abomin avon.
Nota: Este cântico é dos Voduns, quando dançam. Entoa-se 3 vezes.

17. Penha ce penha vêzun


no cabê do manuê
penha ce penha vêzun
no cabê do manuê
atira Nôchê Sôbô
na cabê do manuê
penha ce penha vêzun
no cabê do manuê.
Nota: Este cântico registra quando Póli-Boji convida Sôbô para visitar
Avêrêquête. Entoa-se 3 vezes.

18. Caxi po nun


papai gibera
bócotó conuná
doê
alo nunoiá a como é
Vodun nun papai gibera
arrôicê ê avonun côcô miê
run comaná ê como é
vonun vonun
cá cá iê
run comaná ê como é

230
Vodun nun
papai gibera.
N o t a : E ste cântico é de D adá-H ô. E n toa-se 3 vezes.

19. Mina javá lulum gongô


run golê viôbô rararé
o que tonala
un gô ô ô
Mina javá lulum gôngô
arrum a gôle vi ôbô rararé
oqué tonala
un gô ô ô
êbô ô ê baloquê rararé
oqué tonala
un gô ô ô
Mina javá lulumgôngô
Daco Daco Donun rararé.
Nota: Este cântico é de Daco-Donun. Entoa-se 3 vezes.

20. ô Mina matô iôdê


abôjêgó bogeiô
oriató no lessetan
bará ocêdô quê inhã
orriató no iê
ô Mina mató iétó
abôjêgó bogoió
oriato no le setan
Dambirá Uedo que inhá
orriato no lé
ô Mina matô létó
abôjêgó bogoió
orriató no lé setan
Dambirá Uédo que inhã
orriato no lé.
Nota: Este cântico é de Bambirá. Entoa-se 3 vezes.

21. Boço rã ê ô Mina dó tá


baba matô ê rã ê
ô Mina gôdó tó monojê
Boço rã ê ê Mina jotá
obabê matô rã ê
ê Mina gôdó tó monojé
Boço rã ê

231
ô ruá aja rã ê
ô Mina gôdó tó monojê.
N o t a : E ste cântico é de Boço. E n toa-se 3 vezes.

22. Dadá miçurêlô


ô Minz jetó azê
era rã niê
ô Mina jetó azê
ê cepanha é çotanhá
refoma azê
cajá maçuandô
ê Mina jetó azê
erarrun niê ô Mina jetó azê
ê cepanháé çotanhá
refoma azê.
Nota: Cântico de Dadá. Entoa-se 3 vezes.

23. Dadá morê ôdé leuá


arrômôrê ôdé leuá
ô Mina pantono iá leuá
adôno pôdô bênuê
Zomadono pô nu pó
arrômôlê ôdé leuá
Mina pantono de leuá
Dadá morê ôdé leuá
Mina pantono da leuá
arrômôrê ôdé leuá
Mina pantono iá leuá.
Nota: Este cântico é de Dadá. Entoa-se 3 vezes.

24. Naê ôrrã çubê


Badé Sôbô ê
ja rra ja rra ja rra jô
ja rra ja rra ja rra jô
ôrrã çu rã.
Nota: Este cântico é de Naê, sendo entoado 3 vezes, especialmente na
sua festa (dezembro), mas pode ser entoado quando ocorre
qualquer fato com uma das suas filhas.

25. ô chavá Naê


ô chavá Naê
ô chavá Naê
daqui dacô
daliquila locuê

232
vundunci nunci
da sési
ô chavá Naê.
N o t a : E ste cântico é entoado 3 vezes na chegada de N aê.

26. Dadá, êrê arrum été


ça ido
a rrã été toi ê çupérutô
Dadá mêrê arrunê bê
toi idô
arrun êbê toi ê çupérutô.
Nota: Este cântico é entoado por ocasião da chegada de Doi Bôrôtô.
Entoa-se 3 vezes.

27. Boço lá nundeiá


Pôjêvó Doçu lôdê
Boço la nundeiá
ô maná Doçu lôdê.
Nota: Este cântico é de Doçu. Entoa-se 3 vezes.

28. Êrêzô Dambellah


êrêzô sauêzôrrô
avodun ma é de ruma
êrêzô sauêzô
êrêzô Naê êrêzô
sauê zorrô
avodun ma é da ruma
êrêzô sauêzô
aêrê êrêzô Dambellah.
Nota: Este cântico é de Dambirá. Entoa-se 3 vezes.

29. ô auê é bonjevan


é omá môreá Zomadone
é nani toá arêá
ô auê bonjevan
omá rêá Zomadone
é no mitoá arêá.
Nota: É cântico dos Voduns. Entoa-se 3 vezes.

30. Zuê bê
Dadá itoló dié
Doco maná ibreno

233
avaca maná
da cá Boconuná.
N o t a : É cântico dos Voduns. E n toa-se 3 vezes.

31. Acomá nicé


gongô lê viô
obô jatuá
acomá nicé
Daco Daco Donun lêá
acoma nicé ôbé jatuá
gongô lê viô.
Nota: É cântico dos Voduns. É entoado 3 vezes ao amanhecer.

32. ô cá cá dé
mana dá
Dadahô
cá cá dé
mana rô ri
cá cá rô
caracó
Bejigá
mana di cá baê
ô cá cá dé
mana hô
cá cá hô i.
caracó
Bejiga
mana dicá baê
ojorê ô m anjá ô
cajá ô cajá
poveçá
boê jôgô
mana di cá baê.
Nota: Este cântico é dos Voduns. Entoa-se 3 vezes.

33. Ô boê nadê nadê


ô boê nadê nadê
da titicó
loê dô quê letó toló do quê
ô ê nadê nadê
ô bôe nadê nadê
tiricó lôê ê detó
toló quê.
N o t a : E ste cântico é dos Voduns. E n toa-se 3 vezes.

234
34. ôdan ôdan bêrê
Vodun é manobê taiano
ôdan bêrê ô tan bêrê
ô ôdan
ô ôdan bêrê ô tin bêrê
ô ôdan
ô ôdan bêrê ô tin bêrê
ô dan.
Nota: É cântico da chegada de Póli-Boji. Entoa-se 3 vezes.

35. Gongon dôchê


dicava nonuê
afá
alominó dochê
dicava nonuê
afã.
Nota: É cântico de Agongone, cantando quando foi encontrado na
cabaça. Entoa-se 3 vezes.

36. Papai mandô quê


papai jibera mandô crêá
comé si dá ôchê deçó só para ê
papai mandô quê
papai j ibera mandô crêá
comé si dá chê
deço só para ê.
Nota: É cântico para remate dos toques de tambores. Entoa-se 3 vezes.

37. Já ci jêdô
Vodunci té
dá lémé
ô já jêdô
já ci jêdô
Vodunci té
delamé
ô já jêdô.
Nota: Este cântico esclarece que, quando os Voduns, de pé, cruzam os
dedos das mãos sobre a cabeça, não estão inteiramente incor­
porados nas suas filhas ou esposas (voduncis, gonjais).

38. Conjêlê coimã


ê coimã
conjêlê coimã
ê coimã

235
conjêló coimã
ê coimã
conjêlê coimã
ê coimã.
Nota: Este cântico descreve a luta entre Badé e Sôbô, empunhando
espadas. Os dois saltando e os outros Voduns, em redor, dançando.

39. Babá olumé Iêmanjá


Babá olumé Iêmanjá
Babá olumé Iêmanjá.
Nota: Este cântico é sobre idêntico motivo.

40. Para Vodun Naê


Naê
Agongone chegou na toquê
Para Vodun Naê
P ara Vodun Naê
Agongone chegou na toquê.
Nota: Este cântico é dos Toquens, quando vão buscar os Voduns na
Casa de Nagô. Entoa-se 3 vezes.

41. Chô a ipong


gongone na toquê
chô a ipong
gongone Mina toquê
chô a ipong
gongone Mina toquê
chô a ipong
gongone cô cocoroá
chô a ipong
retolice retolice.
Nota: Cântico, dito de «remate», dos toques-de-tambor. Entoa-se 3
vezes.

42. Mérê jaboá nubê


mérê jabon dá nubê
deria toqueno
mérê jabon dá nubê
derin a toqueno.
Nota: Cântico, também dito de «remate», dos toques-de-tambor. Entoa-
se 3 vezes.

236
43. Badé sorogama
gama ô
Badé sorogama
gama ô.
Nota: Este cântico é de Badé. Entoa-se 3 vezes na Casa de Nagô.
44. Badé gerôgunço
mandô umbô
alé será gerôgunço
mandô umbô
alé azê
Sôbô gerôgunço
mandô umbô
alé será
gerôgunço
mandô umbô
alé azê
Abê gerôgunço
Nicô micô
gerôgunço gerôtei
alé azê.
Nota: Este cântico é de Badé. Entoa-se 3 vezes.
45. Baiquin chê ê
Odan
rê êrô um afã
jôrô baiquin
chô ê
Sôbô çu có
um afã
jôrô baiquin
baiquin chê ê
Chô ê
Sôbô otá
jôrô baiquin
baiquin chô ê
Sôbô Liçá
um afã
baiquin chô ê
odan.
46. Chavé no mé maiô berô
chavé no toló diné
no chavé no chavé noé
chaloré diné.
N o t a : E ste cântico é dos Voduns. E n toa-se 3 vezes.

237
47. Êi tombeno aguadolé jôndeló
êi tombono aguadilé jondelô
maquino no ma idô
aguadolô jôndolô.
Nota: Este cântico é dos Toquenos. Entoa-se 3 vezes.

48. Quêrê ozá ozá querê


ozazá querê querê ozá ozá
bocreno mandô Vodun belisá
ozá ozá oquê
cain no doná dô ruá
bocreno mandô Vodun vaiá
querê ozá ozá querê
ozazá querê querê querê ozazá
bocreno mandô Vodun eizá
eizá ozá oquê
cain na dá na doá
bocreno mandô Vodun êizá
querê ozá querê.
Nota: Este cântico é dos Toquenos. Entoa-se 3 vezes.

49. Toçá no malaplá


run gongolê vi ôbô
Toçá no malaplá
gongolê vi ôbô
Toçá no malaplá
aiô aiô
passô ma bolô
velece malaplana
passô ma bolô
me passô me passô
passô me bolô
velece malaplana
passô me bolô.
Nota: Este cântico é de Toçá. Entoa-se 3 vezes.

50. Selecé suma leganha Boçi leganha


selecé suma leganha leganha malê ganha
selecé suma leganha Toça leganha
selecé suma leganha malê ganha
selecé suma leganha Daco leganha
selecé leganha malê ganha.
N o t a : E ste cântico é dos Toquenos. E n toa-se 3 vezes.

238
51. Dadá machiô Euá agrimaé
Dadá machiô Euá agrimaé
Dadá machiô Euá agrimaé.
Nota: Este cântico é dos Toquenos. Entoa-se 3 vezes.

52. Inadô
gongolê vi obô
nomaiá
Vodun Naná
icabazê
nadó dó meá
renadô renadô
renadô numeá
Vodun Naná i
icabazê
nadô mariá
i nadô
gongolê vi ôbô
nomeá
Vodun Naná
icabazê
dadô numeá
renadô renadô.
Nota: Este cântico é dos Voduns. Entoa-se 3 vezes.

53. Acaibê
maiá candelô
gongô leviobô
maná condê
boné larrô
miçurrô
arrajá roê
boné leá

arroê cinjá
bené
aigoê Naiá
conguêlô
gongô leviobô
omaná condê
boné larrô
miçurrô
arrajá roê.
54. Boça run rê
erá zundarô
Ajâotoi e Alabana
mintetere mirinó
rui têtêre
rui têtêre
mintetêre mirinó
mintetêre mirinó
Boça rui rê
zundarô.
Nota: Este cântico é de Ajaotoi. Entoa-se 3 vezes.

55. Idô guache


mando rin fon
ê com areá
uá bonmin
ê coma ná
Vodunce ló
rin çulá quê
toma areá
uá bonmin
ê coma ná
Vodun lá
rin culá quê
ôi dô guache
mandô rin fon
com arêá
ô rabami
Vodunce ló
rin çulá quê.
Nota: Este cântico é de Póli-Boji. Entoa-se 3 vezes, quando ele está
entregando os trabalhos a seu pai Acossi.
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de la diaspora aux Amériques. Col. Esprit. Paris, Editions du Sei;
1973.
CADERNO
ICONOGRÁFICO *

* Por não podermos dispor de melhores originais fotográficos, incluímos


algumas fotos que não são de boa qualidade, mas aí estão por seu valor de
documento (N.E.).
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0 5 Í c tc w í avitl t9 (rà lo Vo
MVU
0 lr c r Z te. ko j c t o Si-

^crvítÓs.)
^ TEMAS LUSÍADAS

OBRA NOVA
DE

L Í N G U A G E R A L D E M I N A

De ANTÔNIO DA COSTA PEIXOTO

Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora e da


Biblioteca Nacional de Lisboa

Publicado e apresentado por

LUÍS SILVEIRA

e acompanhado de comentário filológico de

EDMUNDO CORREI A LOPES

A G Ê N C IA GERAL D A S C O L Ô N IA S

MCMXLV
OBro. nova de Lingoa, g.al de mina,
traduzida, ao nosso Igdioma por
Antonio da Costa Peixoto Na- ,
ciognal do fín.° de Portu­
gal, da Província de E n­
tre Douro e Minho,
do comcelho de
F i lg r .as

Que com curuzidS trabalho, e des-


vello, se expoz, em aprendella,
p.‘ tembem a emsignar, a q.m for curió
zo, e tiver von.de de a saber & *

Nas Minas Gerais, e Frg.* de Barm


Anno de 1741
Fig. 3. Croquis, mostrando a situação da Casa das M in a s , no Bair­
ro de São Pantaleão, o C a m i n h o da B o iad a e a F o n te de
A p icu m .
Fig. 4. Planta da Casa das M in a s .
Fig. 5. Pontos Mina — jeje e nagô.

Fig. 6. A Casa das Minas. Aspecto Fig. 7. Andresa Maria de Souza. Uma
do lado da rua Senador Cos­ atitude da NOCHÊ entre tam­
ta Rodrigues (antiga rua São bores, no segundo plano.
Pantaleão), em São Luís.

Fig. 8. Tambores. Tipos de r u n s ou Fig. 9. Tambores e seu ru n -tó.


tambores, de uma só peça, da
C a sa das M in a s .
Fig. 10. Outros tipos de tambores, em cujos flancos, como nos grandes runs.
podem ser lidos os nomes dos V o d u n s .

Fig. 11. M ãe P r e t a . Uma setuagenária, de


origem mma.
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Fig. 12. C a j a z e i r a S a g r a d a . É árvore do cul­


Fig. 13. A n im a l P ro p ic ia tó rio .

to mina-gêge de maior vulto, no É um chibarro destinado a sacrifício


terreiro de A n d r e s a M a r i a , em São
Luís.
•(seuozem v) oq|a/\ ojjod ap anbrueq o "91 ' B!d

Fig. 17. Outro aspecto do batuque de Porto Velho.


P r e r a mU|a| 0 o u l a d t > K |a r a n ^ o

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f*íotlrtTufrtí
l i — tH$o)

Fig. 18. Fenótipos negros do Maranhão (São Luís), segundo dese­


nhos de João do Nascimento. (Três Séculos de Modas, Be­
lém, 1923).
pequenas tartarugas. Entre os daomeanos a tartaruga tem forças má-
Toque y canto lucumi a ELEGGUA.—III.
A n d a n te ^ ®ru E yà A ran la.
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Fig. 20. Da obra de Fernando Ortiz Los b aile s y el te a ­


tro de Los N egros en el fo lk lo re de Cuba.
C a n io lu c u m í funeral.
O fertorio d e com ida a EGUN.
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Fig. 21. Da obra de Fernando Ortiz Los b aile s y el tea­


t r o d e lo s N egros en e l fo lk lo re d e Cuba.
F esta do D ivin o
em São Luís do M aranhão

Fig. 22. Imperador e Imperatriz.


Fig. 24. Porta-bandeira.
C erim ônias da libertação
do m orto da influência de seu V odum

Fig. 25. Detalhes: meia cuia, garrafas, pote, bacia.


Fig. 26. Cena em que se deposita moeda na bacia.
-so6 0 sanbeqeje ap sajopeooj. gg Bj-)

Fig. 29. Conjunto de run-tó (tocadores de atabaques) e de tocadores de gôs


e oaãs.
Fig. 30.
Fig. 32. Oratório ofertado por um fiel ao culto dos Voduns mina-jejes.

Fig. 33. Grupo de noviches, contemporâneas de Mãe Andresa Maria, que ain­
da hoje mantém a tradição religiosa e profana da Casa das Minas.
Fig. 34. Casa de Nagô. Dia de lanã. Trajes característicos.
Fig. 37. Escrava no suplício.

Fig. 36. Festa folclórica no Bairro de Sacramento em Belém do Pará. Da es­


querda para direita: Poeta Bruno de Menezes; o Autor; Geógrafo Pier-
re Garou; Geógrafo Lúcio de Castro Soares.
Fig. 38. Forte de Ermina, Costa da África, Nigéria, Daomé.
Fig. 39. Zuleide Figueira de Amorim, cujo Vodum é P ó li-B o ji, ao lado de uma
noviche, cujo Vodum é B a d é .
Fig. 40. Zuleide Figueira de Amorim, ao lado de Amância Evangelina Vianna
e Philomena Maria de Jesus, falecida, que foi uma das substitutas
de mãe Andresa Maria, no culto dos Voduns mina-jejes, e cujo senhor
era, como o de Felicidade Nunes Pereira, Póli-Boji (ver referência de
Arthur Ramos na Introdução).
Fig. 41. Foto de Leopoldina Santos, a substituta legal, no culto dos Voduns
da Casa das Minas, de Mãe Andresa Maria, após sua morte.
Fig. 42. O último retrato da “Dona da Casa” (Andresa Maria)
que também tem dois nomes africanos: o de R o to p a m e -
r a ç u lè m e , que lhe coube depois de ser f e i t a , e o de R o io n -
ç a m a , que os Voduns lhe davam anteriormente a essa
iniciação.
sermos gu. Para exemplo, o canto, transcrito como
o ouvi:

IMinaVaSa. faru> Lo-ko Lò-kWa-£í1<L & Lj - kwd ytfina

u,~noLp*.ko
*|* &<x &v-no — |x
£p~ko e — td-rea
- /e a to jo-
1A íüM V «.ía curvo

b-ko c —

e outro canto ainda ao mesmo Loko:

P th r m —is~„ i .P
"T—r — rrfrrkf —j— ^r-i» r r i" r r -
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i r '«''K-r
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r* r u * [. / 1(
/I j i na êa fã nuxite no, fu no t i t í U Lo-Ko,
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Fig. 45. Fragmento de partitura tomado à obra de Edmundo Correia Lopes.

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