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Amanda Braga
Resumo: Este artigo tem como ponto de partida as inquietações que embaraçam o
quadro teórico e metodológico da Análise do Discurso francesa a partir da década
de 80. Em nosso pano de fundo está a transmutação das línguas de madeira em
línguas de vento e o modo como isso, atrelado às rupturas políticas e teóricas da
época, provoca uma série de descontinuidades no interior da disciplina, exigindo
que a Análise do Discurso se volte às novas materialidades discursivas e apure
caminhos de analisá-las. É a fim de demonstrar um dos caminhos possíveis que
este artigo se apresenta. Para tanto, estaremos detidos à análise de um enunciado
recentemente publicado: interessa-nos empreender sua análise a partir do roteiro
oferecido por uma ordem do olhar, fazendo trabalhar uma abordagem discursiva
que aceita o aparato semiológico na discussão sobre imagem. Nesse sentido, este é
um artigo que faz trabalhar a teoria mediante sua aplicação analítica, recorrendo às
atuais discussões de Jean-Jacques Courtine sobre discurso, imagem e memória,
bem como às leituras que daí decorrem.
Como podem signos, veiculados pela seus efeitos no interior de uma cultura de
imagem, pela fala ou pela escrita, massa. O extensivo funcionamento das mídias
pôr multidões em movimento? Eis o
que ainda constitui um mistério para
audiovisuais inaugurava uma modalidade de
as ciências humanas. transmissão de informação que já não se
restringia à voz, mas se estendia às imagens.
Régis Debray Não por acaso, é nesse momento que Roland
Barthes, investido do método linguístico e do
caráter científico então oferecido por ele,
Já não é novidade que estamos, todos nós, estará preocupado em abordar o
analistas do discurso, num momento que funcionamento das imagens da imprensa no
resgata o espírito dos anos 80: momento de interior de uma sociedade de consumo, numa
deslocamentos, rupturas e desafios. Há, talvez cultura de massa. Para Courtine (2009), a
uma motivação, talvez um desconforto, que criação da revista Communications – que
parte não apenas do caráter sincrético que os nasceu, em 1961, com o propósito de fazer a
discursos assumem em sua produção, mas crítica da comunicação de massa – bem como
também dos caminhos que, possivelmente, os textos que Barthes oferece, nesse período,
nos levariam à sua análise. Os discursos que à análise de imagens – A mensagem
se expõem, hoje, aos nossos olhos, não fotográfica, de 1961 e A retórica das
trazem, no entanto, tamanho ineditismo. Em imagens, de 1964 –, nada mais era do que um
68, ano que antecede a concepção de uma reflexo da incursão das mídias audiovisuais
Análise do Discurso enquanto disciplina, o de comunicação nas esferas pública e privada.
Maio de 68 já anunciava os últimos suspiros Anos depois, durante a década de 80, a
de uma língua de madeira. O movimento revolução audiovisual, potencializada pela
configurava-se como um momento de grande mídia, colocaria em xeque o objeto
transição, a partir do qual as esferas da mídia, privilegiado da Análise do Discurso, isto é, o
da política e do capitalismo fariam funcionar, discurso político verbalmente materializado.
de modo cada vez mais acelerado, uma A incorporação da linguagem publicitária na
midiatização do discurso político, ou, ainda, linguagem política e uma composição
uma espetacularização, segundo a fórmula de discursiva cada vez mais heterogênea
Guy Debord (1997), do discurso político. A instauravam outra discursividade, na qual a
revolta estudantil já não era uma revolução grande mídia tinha papel central: instalava-se
midiatizada? Courtine bem o dirá que sim: o reinado das imagens, de modo que os textos
tratava-se, segundo ele, “das núpcias entre recebiam um tratamento sincrético, fazendo
Marx e a Coca-Cola [...], de um recobrimento com que o discurso verbal desse lugar a
das discursividades políticas tradicionais materialidades de natureza diversas. Assim,
pelas formas breves, vivas e efêmeras do era chegado o tempo de diminuir o abismo
discurso publicitário” (2011, p. 147). entre a vida e a ciência, atentando, nas
Do mesmo modo, é nesse momento que o análises, para a produção e o funcionamento
Estruturalismo francês, imbuído de todo o das línguas de vento que já se apresentavam
poder científico depositado na Linguística, no mundo: “as novas materialidades do
resgatava o projeto saussureano de uma mundo pós-moderno que se concretizavam no
Semiologia cuja missão seria, como diz a tão discurso” (GREGOLIN, 2008, p. 27). Os
repetida passagem do Curso de Linguística últimos textos de Pêcheux refletiam essa
Geral, “estudar o funcionamento dos signos preocupação: afinal, “em que pé estamos em
no seio da vida social” ([1916] 2006, p. 24). relação a Barthes?” ([1983] 2007).
Segundo Courtine (2009), tal projeto deve ser É nesse momento, ao final da década de
pensando mediante as transformações 80, que Courtine, atento à mutação das
tecnológicas que se assistia à época, mais materialidades discursivas, retomará o termo
precisamente no que diz respeito às semiologia a fim de abrir caminhos para a
transformações sofridas pelo campo das análise dos discursos compostos por sistemas
telecomunicações num contexto pós-guerra e semióticos verbais e não verbais levando em
conta sua dimensão histórica. Para tanto, Antes de colocá-lo, no entanto, como
Courtine partia de uma crítica à tradição elemento capaz de ratificar discussões
saussureana, “que derivou para uma semiótica teóricas postas anteriormente, faremos o
a-histórica e formal, preocupada unicamente caminho inverso: apresentaremos o texto e
com a dimensão textual dos signos” seguiremos sua análise a partir do roteiro
(COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 15, nota oferecido por uma ordem do olhar,
23). Assim, o projeto de uma Semiologia discutindo a teoria em paralelo, a depender
Histórica, antes de resgatar uma tradição das solicitações colocadas pela própria
saussureana, como o fez Barthes, parte de análise. Para tanto, partiremos de uma
uma tradição semiológica médica e da abordagem discursiva que aceita o aparato
emergência do paradigma indiciário de que semiológico na discussão sobre imagem.
fala Ginzburg (1989), a fim de estender o Nesse sentido, recorreremos não apenas às
alcance da visada discursiva na medida em discussões de Courtine sobre discurso,
que renegocia seus limites e seus alcances. imagem e memória – uma vez que elas já se
Atento a esse trajeto, este artigo se assentam sob as atuais materialidades
apresenta com o intuito de ampliar algumas discursivas –, mas também a algumas
dessas discussões mediante sua aplicação discussões traçadas por Roland Barthes,
analítica. Empreenderemos a análise de um deixando em suspenso um certo excesso
texto publicitário atual, sincrético, composto estruturalista e tomando suas discussões
por mais de um sistema semiótico. enquanto hipóteses, medindo sua possível
aplicabilidade aos textos atuais.
ORIGEM É RIQUEZA?
Supondo ser feito artesanalmente, de modo uma reportagem sobre essas comunidades,
rústico, a modelo traz, ao pescoço, um denominou-as de zoológico de mulheres3.
pingente que sugere tanto o formato do Investigando, então, os detalhes que se
continente africano, quanto o formato do dão a ver na extensão do texto, chegamos ao
Brasil. O formato do pingente flutua nessa desenho de uma subjetividade: o modo
ambiguidade e parece funcionar como uma artesanal e rústico com que foram produzidos
espécie de etiqueta, sugerindo uma produção os acessórios, o ouro usado na confecção do
feita além-mar, entre África e Brasil. Assim, a pingente, as argolas envoltas ao pescoço e a
Melissa recorre ao formato do continente própria denominação que recebem as
africano para indicar a busca de uma origem mulheres que lançam mão de seu uso são
e, assim, fazer frente a um processo de indícios que produzem uma identidade
globalização que procede numa tentativa de africana rural, animalizada, incivilizada, rude.
homogeneização cultural. Ao mesmo tempo, Identidade atemporal, que se manifesta e
recorre ao formato do mapa brasileiro para emerge sempre que se fala de África. Assim,
indicar uma resignificação dessa origem aos partindo dessa subjetividade, é possível fazer
moldes atuais. o caminho inverso para perceber que é no
Além disso, há peças em metal dourado paradigma indiciário que estamos nos
que recobrem o pingente em madeira. Seria detendo quando ressaltamos sua produção,
ouro? Seria, quiçá, o ouro produzido na mais precisamente ao modo como Courtine o
África do Sul, um dos maiores exportadores retoma no empreendimento de uma
desse mineral do mundo? Assim como a Semiologia Histórica.
apresentação da peça em madeira, o acessório
em ouro também não parece ter recebido O trabalho de Ginzburg privilegia uma
nenhum trabalho delicado de lapidação, perspectiva de identificação, a do médico,
configura-se como um elemento bruto. Essa do fisiognomonista, do conhecedor de
rusticidade na configuração dos acessórios quadros, do detective. Queremos insistir
aqui também na dimensão da expressão;
nos remete, facilmente, à construção midiática
tentar agarrar, para além dos traços
que temos do continente africano. A imóveis, o movimento de uma
identidade cultural africana criada (e exposta) subjectividade; e colocar assim, a partir
pela grande mídia nada mais é do que a dos signos que se manifestam à superfície
identidade de um povo assolado pela pobreza, do corpo, a questão da
pela incivilidade, pelo animalesco. identidade individual que os exprimiu e
Do mesmo modo, as argolas que envolvem não apenas a da identificação que eles
seu pescoço trazem à tona uma tradição podem permitir [...]. O trabalho de
milenar, conhecida não só entre as mulheres Ginzburg abre por outro lado a
africanas, mas também entre as mulheres perspectiva de uma semiologia histórica.
asiáticas. Tais argolas se configuram como Comporta elementos e sugestões que
permitem voltar às próprias origens dos
um traço que delineia uma subjetividade,
signos [...]. E de tornar a dar assim vida
como proporá o olhar de Courtine a um projeto semiológico que derivou
(COURTINE; HAROCHE, 1988), ao retomar para uma semiótica a-histórica e
Ginzburg (1989). Às mulheres que fazem uso formal, preocupada unicamente com a
dessa prática – que não se sabe ao certo onde, dimensão textual dos signos
quando ou por quais motivos nasceu – (COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 15,
convencionou-se atribuir o nome de nota 23, grifo nosso).
mulheres-girafas, construindo uma espécie de
zooide que busca associar, diretamente, a
aparência dessas mulheres à aparência animal,
não apenas pelo longo pescoço, mas também
pelo andar altivo que as argolas exigem. Não 3
por acaso, a revista Marie Claire, ao fazer Mianmá: zoológico de mulheres. Reportagem
publicada em julho de 1996. Disponível em:
<http://marieclaire.globo.com/edic/ed114/rep_mulhergi
rafa.htm>. Acesso em: 05 jul. 2010.
memória das imagens, bem como de que mãos ao chão, animais no corpo. Assim, a
modo essa memória atravessa, organiza e imagem da África enquanto ambiente
atribui sentidos a uma imagem vista, selvagem estende-se, aqui, aos africanos, que,
reconhecida e compartilhada pelos sujeitos de também animalizados, passa-nos a imagem de
uma dada cultural visual. É dessa um verdadeiro safári humano. Todas essas
preocupação que decorre o conceito de imagens, que nos surgem no exato momento
intericonicidade, que parte do pressuposto de em que nos deparamos com o texto em
que “toda imagem se inscreve em uma cultura questão, mantém estreita relação umas com as
visual, e essa cultura visual supõe a outras: uma relação de memória, memória das
existência, para o indivíduo, de uma memória imagens: intericonicidade.
visual, de uma memória das imagens, toda Desse modo, percebemos que as imagens
imagem tem um eco” (COURTINE, 2005)4. trazidas pela publicidade se confundem ao
Assim, se partimos dessa discussão, é mesmo tempo em que alimentam o estoque de
possível perceber que a imagem trazida pelo imagens que carregamos na memória,
texto faz surgir outras imagens, numa cadeia imagens que, corriqueiramente, são
enunciativa sem início nem fim. Incide, sobre construídas pelos sujeitos de nossa cultura
o texto, uma intericonicidade que nos remete visual sobre a África. Para atentar a essa
à existência histórica do enunciado, articulação, entretanto, não é preciso que
deixando-nos saber que toda imagem tem um tenhamos estado num safári real, uma vez que
eco, que toda imagem está inscrita numa estamos falando de uma história das imagens
cultura visual e que retém uma memória construída no encontro entre a história das
discursiva na sua produção, seja ela individual imagens vistas e a história das imagens
ou coletiva. Ao apresentar-se numa certa sugeridas:
configuração, a imagem trazida pelo texto nos
faz surgir a imagem de um africano selvagem, A noção de intericonicidade é assim uma
animalizado pelo meio, intimamente noção complexa, porque ela supõe a
relacionado à ideia do safári. Imagens com as relação entre imagens externas, mas
quais nos deparamos em filmes que se passam também entre imagens internas, as
imagens da lembrança, as imagens de
no continente africano, em matérias
rememoração, as imagens das impressões
televisivas que falam sobre a fome na África, visuais armazenadas pelo indivíduo. Não
em documentários destinados a expor a há imagens que não faça ressurgir em nós
cultura do continente. outras imagens, quer essas imagens
A modelo não apenas porta ao corpo a pele tenham sido já vistas ou simplesmente
de felinos selvagens (as listas dos tigres, as imaginadas (COURTINE, 2011, p. 160,
pintas escuras das onças), como também 161, grifo nosso).
parece posicionar-se como um deles: sentada
ao chão de um ambiente rural, onde também Assim, o conceito de intericonicidade não
apoia suas mãos. Surge-nos, daqui, a imagem está posto no modo como as imagens são
de animais ferinos: leões, tigres, zebras, produzidas no mundo, mas sim no modo
leopardos, onças. Surge-nos a imagem de uma como nos relacionamos como elas, no modo
África bruta, ruralizada pelo barro do cenário, como abastecemos nossa memória imagética
pela terra em que se expõe a modelo, pelas de imagens produzidas externamente, ao
peles animais que assume como sua, pelos mesmo tempo em que acionamos a relação
cabelos ao vento, pelos acessórios que porta dessas imagens com aquelas que nós mesmos
sem qualquer trabalho de lapidação. É no produzimos, imaginamos ou apenas
próprio safári que se apresenta a modelo: sonhamos. É nesse jogo que se constitui a
relação de que fala Courtine. Tal relação tem
4
Registro audiovisual, ausência de página. raízes nos trabalhos sobre iconologia de Hans
COURTINE, Jean-Jacques; MILANEZ, Nilton. Belting (2006), que, numa abordagem
Intericonicidade: entre(vista) com Jean-Jacques antropológica, propõe que as “representações
Courtine. Registro audiovisual, 2005. Disponível em:
<http://www.grudiocorpo.blogspot.com/>. Acesso em: internas e externas, ou imagens mentais e
06 jun. 2009. físicas, devem ser consideradas como dois
lados de uma mesma moeda”5, uma vez que a experiências pessoais e significado
interação entre imagens endógenas e (BELTING, 2006).
exógenas seria uma atividade intrínseca ao
homem. Tomando o corpo enquanto mídia viva,
Belting (2006) ressalta sua capacidade em
Sabemos que todos temos ou que ilustrar ou preencher de significados
possuímos imagens, que elas vivem em imagéticos uma palavra, colocando-as como
nossos corpos ou em nossos sonhos e estruturas propulsoras de imagens, depósitos
esperam para serem convocadas por nossos da imaginação, alocações vazias que esperam
corpos a aparecer. [...] ao mesmo tempo por significados. A linguagem seria, dessa
possuímos e produzimos imagens. Em cada forma, um meio condutor para que o corpo
caso, corpos (isto é, cérebro) servem como
possa ativar, produzir ou despertar imagens,
uma mídia viva que nos faz perceber,
projetar ou lembrar imagens, o que também
que, por sua vez, não contam com
permite a nossa imaginação censurá-las ou formatações pré-concebidas, mas colocam em
transformá-las (BELTING, 2006). jogo a relação do sujeito com a significação e
suas inúmeras possibilidades de sentido,
Percebemos, pois, que tanto na perspectiva fazendo-as sempre singulares. Estamos
discursiva proposta por Courtine, quanto na falando, portanto, de uma mudança de terreno
perspectiva antropológica de Belting, é com o proporcionada pelo corpo, que condensa em
corpo que estamos lindando: o corpo que carne o verbo. Se pensamos em nosso texto,
interpreta, produz e serve de suporte às poderíamos nos questionar sobre as imagens
imagens, diria Courtine (2005); ou o corpo que nos surgem quando escutamos,
que possui, convoca, produz, projeta, lembra, escrevemos ou simplesmente nos deparamos
imagina, censura e transforma imagens, diria com a palavra África. Em que tipo de imagem
Belting (2006). Enquanto sujeitos de uma nossos corpos transmutam essa palavra? De
cultura visual, somos constantemente que modo preenchemos com carne a fome do
atravessados por imagens que alimentam verbo?
nossa memória, na mesma medida em que
somos produtores e críticos, segundo Belting
(2006), dessas imagens, já que cabe, ao O que nos diz sua plenitude semiológica?
sujeito, a possibilidade de censurá-las ou
transformá-las a partir da memória individual Diante da análise empreendida pelos
ou coletiva, num sempre enlace entre tópicos anteriores – nos quais nos referíamos
esquecimento e lembrança. não apenas às subjetividades traçadas pelos
Do mesmo modo, é a partir do corpo que indícios encontrados no texto, mas também às
podemos pensar a relação estabelecida entre imagens com as quais esses indícios se
palavras e imagens. Segundo Belting: relacionam – percebemos que toda a
configuração textual – o cenário rústico, as
As palavras estimulam nossa imaginação, peles de animais, os acessórios brutos, as
enquanto a imaginação, por sua vez, argolas ao pescoço, o cabelo armado – nos
transforma as palavras nas imagens que elas remete à ideia de uma África animalizada.
significam. Neste caso, é a linguagem que Somos tomados pela memória de um
serve como um meio para transmitir continente pobre, selvagem, bestial, faminto.
imagens. Mas aqui também ela necessita do Todos esses sinais são, no entanto,
nosso corpo para preenchê-las com resignificados por um segundo sistema
semiótico que constitui, igualmente, o texto
em questão: ORIGEM É RIQUEZA: uma
5
Referência eletrônica, ausência de página. BELTING, verdadeira princesa afro-brasileira vivencia
Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à aqui uma realidade lúdica cuja origem e
Iconologia. Revista Ghrebh, n. 8, jul. 2006. identidade provém do plástico. Luxo pop, os
Disponível em: novos modelos da coleção de inverno 2009
<http://revista.cisc.org.br/ghrebh8/artigo.php?dir=artig
os&id=belting_1>. Acesso em 15 jul. 2010. extraem sua nobreza da sofisticação
tecnológica, e a busca por sua essência passa sentido almejada pela publicidade e não
pelo que há de mais fashion e moderno no totalmente concretizada pela imagem. Trata-
design hoje. Acessórios em madeira, palha e se de uma fixação que não sanciona o dado –
metal ajudam a desenhar o look tribal-chic, já que este dado carrega uma cadeia flutuante
feito de muitas estampas e cores quentes, de significados – mas controla uma
quebrando os tons naturais. Nos pés, cobre, polissemia constitutiva, na tentativa de que
prata e vermelho esquentam ainda mais a apenas um sentido seja legível ao sujeito
moda da estação. leitor: aquele que estabelece sofisticação e
Desse modo, na conjunção com um riqueza na memória de uma África selvagem.
segundo sistema semiótico, o texto abre Desse modo, tomado agora em sua
cortinas para outra possibilidade de sentido, plenitude semiológica, o texto seria um
que se apresenta na tentativa de minar acontecimento discursivo que procura um
qualquer significação que não seja aquela pré- outro lugar para a recorrente animalização
estabelecida pelo roteiro publicitário. Os midiática do africano. Nessa tentativa, no
índices trazidos pelo texto assumem, no entanto, o texto retorna ao discurso do
encontro com a linguagem verbal, outros africano enquanto selvagem e produz um
papéis. A origem já não se assenta sob a batimento no interior de sua significação. Isto
memória ocidental de uma mama-África porque, ao partir de uma memória a fim de
pobre e selvagem, mas numa riqueza cultural, resignificá-la, o texto acaba por trabalhar na
que, resgatada pela mídia e pela moda, recebe manutenção dos índices que funcionam na
um lugar de nobreza, embalada por uma sustentação desse discurso: as peles de
essência que passa pelo que há de mais animais selvagens, o penteado da modelo, os
fashion e moderno no design hoje. Os acessórios que porta, o ambiente criado.
acessórios em madeira, palha e metal, dos Afinal, como trazer à tona um discurso sobre
quais apontávamos a ausência do trabalho de origem, sem exaltar a imagem da mama-
lapidação, ajudam a desenhar o look tribal- África?6 E, por conseguinte, como falar dessa
chic, de modo que já não reconhecemos, ali, mãe África sem remeter ao selvagem? Assim,
uma rusticidade na confecção, mas uma ainda que a linguagem verbal atue na tentativa
estilização cultural ao sabor do mercado. de controle dos sentidos, o caráter
Converte-se, pois, a tradição em riqueza: a polissêmico da imagem deixa possibilidades
nobreza está na essência, a cultural tribal é o em aberto. O resultado desse batimento, que
que há de mais sofisticado. Resgata-se a faz chocar as significações que compõem o
memória de uma África primitiva para fazer texto, vai concretizar-se de forma múltipla, a
emergir uma nova discursividade. depender dos modos de recepção que o texto
Sofisticação, origem, riqueza e identidade são terá.
esferas que se coadunam, aqui, mediante o
trânsito de símbolos culturais, que, absolvidos
pelo mercado, desterritorializam-se e
assumem outros sentidos. Conclusão
Assim, é possível afirmar que a linguagem
verbal é posta, aqui, numa tentativa de fixar É na soma do seu olhar
que eu vou me conhecer inteiro
determinados sentidos para uma imagem que
é, por natureza, polissêmica. Mais Chico Buarque
precisamente, numa tentativa de subverter os
sentidos que possivelmente seriam Assim, é apenas quando nossos olhos
construídos num primeiro olhar sobre o texto. finalmente chegam à apreensão do texto
Talvez tenhamos, então, uma espécie de enquanto tal que se pode entrever uma análise
fixação à esteira do que propõe Barthes global do objeto. No emaranhado de
([1964] 1990, p. 32), já que essa linguagem linguagens que o compõe, o texto não apanha
verbal aparece “de modo a combater o terror
dos signos incertos”. O verbo retém, aqui, a 6
Referência à música Mama África, de Chico César,
função de inaugurar uma possibilidade de gravada em 1996.
século XVI ao início do século XIX). Tradução de Federico Carotti. São Paulo:
Tradução de Ana Moura. Lisboa: Teorema, Companhia das Letras, 1989.
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