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81 | 2022 (Numéro ouvert)


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Magna Opera

Revisitando a formação do Brasil


no Atlântico Sul
Revisiting the Formation of Brazil in the South Atlantic

En revisitant la formation du Brésil dans l’Atlantique Sud

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO


https://doi.org/10.4000/lerhistoria.10659

Résumés
Português English Français
Este ensaio revisita os propósitos, o argumento e o contexto de produção de meu livro sobre a
formação do Brasil no Atlântico Sul, e faz um balanço do seu impacto e recepção ao longo dos
últimos 20 anos. A historiografia brasileira está geralmente vinculada a um paradigma territorial
resumido por um falso axioma: a história colonial do Brasil desenrola-se no território colonial do
Brasil. Os meus estudos na França, quando os Annales ainda propugnavam a historia global de
Braudel e seus discípulos, ajudaram-me a escapar deste viés na altura em que se aprofundavam os
estudos sobre o comércio atlântico de africanos.

This essay revisits the argument, purposes, and steps that led to the publication of my book on the
formation of Brazil in the South Atlantic, also taking stock of its impact and reception over the
last 20 years. Brazilian historiography is generally linked to a territorial paradigm that could be
summarized in a false axiom: the colonial history of Brazil unfolds only in the colonial territory of
Brazil. My studies in France, when the Annales were still promoting the global history of Braudel
and his disciples, helped me to escape this bias at a time when more comprehensive studies on the
transatlantic slave trade were published.

Cet essai revient sur l'argumentaire, les finalités et les démarches qui ont conduit à la publication
de mon livre sur la formation du Brésil dans l'Atlantique Sud, faisant également le point sur son
impact et sa réception au cours des 20 dernières années. L'historiographie brésilienne est
généralement liée à un paradigme territorial, résumé par un faux axiome: l'histoire coloniale du
Brésil se déroule dans le territoire colonial du Brésil. Des études en France, alors que les Annales
défendaient encore l'histoire globale de Braudel et de ses disciples, m'ont aidé à échapper à ce
biais, à une époque où apparaissaient des études plus complètes sur la traite transatlantique de
Noirs.

Entrées d’index
Mots-clés : histoire atlantique, Atlantique Sud, christianisme et esclavage, traite d’esclavisés,
esclavisation d’Africains, esclavisation d´Amérindiens
Keywords: Atlantic history, Christianism and slavery, slave trade, Africans enslavement, Native
Americans enslavement, South Atlantic
Palavras-chave: História atlântica, Atlântico Sul, cristianismo e escravidão, comércio de
escravizados, escravização de africanos, escravização de ameríndios

Texte intégral
1 A ideia central de O Trato dos Viventes concerne a junção, mediante o comércio de
escravizados africanos e a navegação bilateral, dos portos portugueses em ambas as
margens do Atlântico Sul, numa matriz espacial colonial que formou o Brasil. O livro –
inicialmente publicado em 2000, com várias reimpressões em São Paulo e uma edição
atualizada americana (Alencastro 2018) – tem origem no doutorado sobre as
repercussões do final do tráfico de africanos para o Brasil que comecei a preparar em
1970 na Universidade de Paris X-Nanterre, sob a direção de Frédéric Mauro, um dos
primeiros discípulos de Braudel e autor de um livro fundamental sobre Portugal e o
Atlântico no século XVII (Mauro 1960) que merecia ser mais lido pelos historiadores
atlanticistas.1 Principalmente nas universidades do Brasil, que possui a maior costa
nacional atlântica e parece não saber disso. Sem entrar numa polémica vã sobre
precedências historiográficas, lembro esta filiação de minhas pesquisas porque muitos
historiadores jovens e menos jovens pensam que a Atlantic History nasceu em Harvard
e Johns Hopkins. Na mesma ordem de ideias, o saudoso historiador A.J.R. Russell-
Wood, mencionando favoravelmente meu livro, escreveu que eu havia me inscrito,
“inconscientemente ou não”, nas perspectivas da Atlantic History (Russell-Wood 2009,
52).
2 Com uma bolsa do governo francês, depois renovada no doutorado, obtive o diploma
do Institut d’Études Politiques (IEP) de Aix-en-Provence, onde também cursei parte da
graduação em História e redigi uma monografia sobre o Império do Brasil. Fiquei
intrigado com a forte resistência brasileira, da Independência até 1850, à supressão do
tráfico transatlântico de africanos imposta pela Inglaterra. Aix-en-Provence possuía,
provavelmente, a melhor Faculdade de História da França. Lá, havia também
estudantes do mundo inteiro e, em particular, da África. Entre eles, um grupo de
republicanos etíopes liderados pelo historiador Aleme Eshete, que impressionava a nós
todos por sua seriedade intelectual. Na mesma época, como auxiliar de pesquisa no
Centre d’Études des Pays de l’Océan Indien, tive meu primeiro contato com a
documentação luso-africana redigindo sínteses sobre Moçambique. Cursos sobre o
asiento de negros e a guerra de sucessão da Espanha me deram luzes sobre a disputa
das potências marítimas pelo controle do comércio de africanos. Mais tarde, em Paris,
Vitorino Magalhães Godinho, que veio muitas vezes de Clermont-Ferrand para
participar do seminário de Mauro, me instruiu sobre o tema do asiento antes e depois
da Restauração.
3 Em Paris, o meio de exilados brasileiros era denso e aumentou a partir de 1973
quando chegaram estudantes e militantes até então refugiados no Chile de Allende.
Nesta época, a ditadura brasileira acentuava a repressão e as perspectivas de volta ao
país pareciam cada vez mais distantes. Paralelamente, a leitura da imprensa brasileira
dos anos 1850 disponível na Bibliothèque Nationale e na British Library, e da
correspondência diplomática em Paris e Londres, deixou claro que a supressão do
comércio atlântico de africanos era o topo de uma problemática atravessando toda a
história brasileira. Retomei então a pesquisa “à rebours” até o século XVI, sem me
preocupar com os prazos fixados às teses, graças ao apoio de Frédéric Mauro.
4 Houve dois momentos decisivos na elaboração do livro, ambos provocados por
eventos externos. O primeiro foi o 25 Abril de 1974 em Portugal. Como muitos outros
exilados portugueses e brasileiros residindo na França, fui para Lisboa em plena
exaltação. Retomar o dia-a-dia da língua portuguesa depois de oito anos na França,
pesquisar sobre as colônias africanas e o Brasil no AHU, no ANTT e na BNL, na altura
em que o império desmoronava e Portugal redefinia seu destino europeu, suscitou-me
reflexões contrastadas. Na sala do AHU na Junqueira chegavam retornados aflitos,
desesperados, em busca do Diário Oficial de Angola, Moçambique ou Guiné com o
registro de seu prévio estatuto de funcionários coloniais que os habilitava a receber um
subsídio governamental. Ler manuscritos seiscentistas neste ambiente me levou a
pensar na “Singularidade do Brasil” no âmbito do processo colonial português e
europeu. Com este mesmo título, o assunto foi tratado na conclusão do livro e, na
sequência de conversas com Alfredo Margarido, meu colega na Université de Vincennes,
num estudo comparativo dos mulatos no Brasil e em Angola. Nesta altura, graças em
boa parte a conversas com Claude Meillassoux, que fez parte de minha banca de tese, e
Roberto Schwarz, meu principal interlocutor intelectual desde então, eu já havia
definido o plano da tese apresentada em Nanterre em 1986, “Le Commerce des Vivants:
traite negrière et ‘Pax Lusitana’ dans l’Atlantique Sud – XVIe siècle-XIXe siècle”. Jean
Devisse, presidente da minha banca, que dirigia a Société Française d’Histoire d’Outre-
Mer, propôs-me rever o manuscrito da tese para posterior publicação. Tinha este
trabalho em perspectiva quando, algumas semanas depois, mudei-me com minha
família para o Brasil, de onde havia partido 20 anos antes.
5 Ocorreu então o segundo momento decisivo na redação do livro. A volta para meu
país em 1986, a residência em São Paulo, as discussões com estudantes e colegas no
Instituto de Economia da Unicamp e, sobretudo, no Cebrap modificaram a minha
percepção da história brasileira.2 A ditadura terminara no ano anterior e a Assembleia
Constituinte começava seus trabalhos em Brasília. No grande corredor subterrâneo
ligando o Congresso ao Anexo do Senado, circulavam delegações de sindicalistas,
indígenas, quilombolas, professores, policiais, com símbolos e roupas distintivas que
davam a descrição visual de uma nova nação em movimento. O ministro da Cultura,
Celso Furtado, com quem eu havia convivido em Paris e que foi praticamente meu
codiretor da tese de doutorado, e depois esteve na banca de minha Livre-Docência,
convidou-me para participar de reuniões preparatórias das comemorações do
centenário da Abolição, em 1988, e da criação da Fundação Palmares. Tudo isso me
ajudou a entender o significado histórico do Movimento Negro que se afirmava como
um componente da redemocratização e se impunha na contemporaneidade brasileira.
6 Mais diretamente em relação com o livro, continuei a discussão sobre o século XVII
com Evaldo Cabral de Mello, que já havia conhecido em Paris, e passei a trabalhar com
John Monteiro no Cebrap. Estava claro que devia reescrever as partes da tese relativas à
invasão holandesa no Atlântico Sul, especialidade de Evaldo, e ao bandeirantismo, tema
que John dominava. Decidi então transformar o doutorado em dois livros. O primeiro,
até o fim do século XVII, altura em que o Brasil não era o Brasil. O segundo do começo
do século XVIII até 1850-1860, quando, premido pela supressão do tráfico de
escravizados africanos, o governo brasileiro estimula a imigração para a frente agrícola
cafeeira. Nesta época, com a cessação das rotas entre a América do Sul e a África,
rompe-se a matriz espacial colonial sul-atlântica. Neste contexto, redigi uma tese de
Livre-Docência em História Econômica na Unicamp focando a conjuntura dos séculos
XVI e XVII no Atlântico Sul. Daí saiu O Trato dos Viventes, que finalizei na Sorbonne
Université, acolhido pela saudosa Katia Mattoso, com uma bolsa da FAPESP (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Trabalho ainda no segundo volume cujo
subtítulo continua o do primeiro: O Fardo dos Bacharéis – Formação do Brasil no
Atlântico Sul, séculos XVIII e XIX.
7 O recorte dado à periodização não era uma novidade. Em 1928, o grande intelectual
paulista Mário de Andrade, formulou uma interpretação mais tarde explicitada por
Antônio Candido e incorporada por Celso Furtado: os eventos marcantes da América
Portuguesa nos séculos XVI e XVII são “fruto das condições de determinadas capitanias
(...), não resultam da coletividade colonial”. Para Mário de Andrade (1935, 7), somente
na segunda metade do século XVIII se estabelece a “coletividade colonial”. Ou seja, só
há um “Brasil colonial”, e eventualmente protonacional, no século XVIII quando
surgem em volta da economia mineira redes de trocas continentais unindo as capitanias
entre si. Como coordenador do volume sobre o Império do Brasil, na coletânea de
quatro volumes dirigida por Fernando Novais, sobre história da vida privada no Brasil
(1997), participei de reuniões regulares com os colegas que dirigiam os outros volumes,
discutindo muitos outros temas da historiografia brasileira, entre os quais a questão da
periodização.
8 Desse modo, equivoquei-me na edição original do livro ao ceder ao hábito
generalizado no Brasil de grafar “Colônia”, para designar a América portuguesa desde
1500. O “C” maiúsculo entifica num mesmo território a abstração de um espaço
presumidamente colonial, omite a perenidade das feitorias, das economias de enclave,
do capitalismo comercial na África e na Ásia, gerando uma narrativa teleológica que
conduz o vice-reino à independência e à unidade nacional brasileira. Insisti no primeiro
capítulo do livro, e mais ainda na edição americana, na diferença abissal que existe
entre o destino de São Paulo, fundada em 1554, e Macau, ocupada em 1557, e
“desocupada” em 1999, sem sair de seu estatuto de enclave, com uma porcentagem
mínima de lusófonos. Além da documentação do século XVI, tive grande prazer em ler,
e depois citar no livro, João de Barros, Fernão Mendes Pinto e Diogo do Couto, entre
outros autores quinhentistas e seiscentistas. Procurei mostrar que um fator decisivo
desta diferença se situa no Atlântico Sul, na deportação maciça de africanos para o
Brasil durante três séculos. Notei ainda que o fluxo regular de deportados de Angola,
depois da reconquista de 1648, estimula as expedições de extermínio de comunidades
indígenas anteriormente cativadas por proprietários rurais incapacitados de adquirir
escravizados. Noutras palavras, os ameríndios também são vítimas da intensificação do
tráfico atlântico. A longue durée do comércio atlântico de escravizados, macrociclo da
construção do Brasil, decompõe os chamados “ciclos” do açúcar, do ouro, do café em
subciclos econômicos. Foi a migração forçada de africanos que permitiu o
desenvolvimento simultâneo da economia do açúcar e do ouro, como também, na
primeira metade do século de XIX, a emergência da economia do café no Sudeste. Um
artigo que publiquei nos Annales resume esta interpretação (Alencastro 2006).
9 À luz dos comentários que li e ouvi sobre o livro, há um tema da primeira edição que
merecia mais destaque e desdobramentos: a importância de Buenos Aires e da rede
comercial rio-platense. Acentuei este ponto na edição americana e na nova edição
brasileira, que será publicada junto com o segundo volume. Deveria ter ficado bem
evidente que a geo-história do Atlântico Sul inclui, desde o século XVII, a África, o
Brasil e o Rio da Prata. Como indicou Charles Boxer (1952) no seu livro pioneiro sobre
Salvador de Sá, e como demonstra a documentação, a expedição de reconquista de
Angola, lançada em 1648 do Rio de Janeiro, tinha dois objetivos distintos. O primeiro
consistia na retomada do fluxo de escravizados para as plantações de cana de açúcar da
Guanabara, o segundo, e talvez o mais importante, visava a reexportação de
escravizados angolanos para Buenos Aires em troca da prata de Potosí. Como é sabido,
boa parte da prata obtida em Buenos Aires pelo comércio peruleiro (em referência ao
Alto Perú onde estava Potosí), passava por Lisboa, Sevilha, Manila e Macau e ia parar na
China. Assim analisado, o Atlântico Sul aparece como um dos eixos da economia-
mundo.
10 Examinei, no capítulo quinto, os escritos dos tratadistas ibéricos e as reflexões dos
jesuítas portugueses e, em particular, os textos do padre Antônio Vieira sobre a
escravização dos ameríndios e dos africanos. Pensei que o tema merecia um capítulo
inteiro por uma razão precisa. Ativos nas duas pontas da rede escravista sul-atlântica,
em Angola e no Brasil, grandes proprietários de terras e cativos, partícipes do comércio
atlântico e continental de escravizados, os jesuítas portugueses, mais do que os jesuítas
espanhóis ou que qualquer outra ordem missionária europeia, não podiam
desincumbir-se de justificar o tráfico de africanos. Daí as páginas percucientes de Vieira
sobre a legitimidade da deportação de angolanos para o Brasil, ao mesmo tempo em que
propugnava a liberdade dos ameríndios. Na linha dos ensaios pioneiros de Antônio José
Saraiva (1963 e 1967), procurei demonstrar que não havia incoerência na doutrina
vieirista: a deportação de africanos para o Brasil garantia a liberdade das comunidades
ameríndias, na medida em que respondia à demanda de trabalho compulsório dos
colonos e das autoridades coloniais. Achei que a subseção desse capítulo intitulada “A
teoria negreira jesuítica” iria suscitar críticas de historiadores e autores adeptos de uma
leitura irênica da obra de Vieira. Não foi o caso. Na verdade, o tema que levantou mais
reticências foi a tese central do livro, a desterritorialização da história colonial brasileira
e a ideia subjacente de que Angola era a parte mais importante da América portuguesa.
Na sua vasta maioria, a historiografia sobre o Brasil, escrita por brasileiros ou não
brasileiros, permanece irremediavelmente ancorada no território da América
Portuguesa. Desde 1948, Braudel sublinhava o viés territorialista que levava os
estudiosos brasileiros a interpretar a história do país “de dentro para fora”, e notava a
ausência do Atlântico Sul na obra de Caio Prado Júnior.3 Por isso, escrevi vários artigos
sobre a geo-história do Atlântico Sul (v.g. Alencastro 2015) e espero ser mais
convincente no meu próximo livro.
11 Efetivamente, creio que a perspectiva sul-atlântica rompe a barreira disciplinar que
separa os historiadores americanistas dos historiadores africanistas e ajuda a entender
os eventos que transcorrem nas duas margens do oceano. No capítulo 6 analisei o teatro
sul-atlântico da guerra dos Trinta Anos e os desdobramentos das batalhas coloniais,
indicando o fio condutor que liga múltiplos conflitos: as expedições escravistas paulistas
no Paraguai; a guerra hispano-luso-holandesa no Brasil, em Angola e na Costa da Mina;
as expedições saídas do Brasil com armas e soldados em destino a Angola que
participaram da batalha de Ambuíla (1665), submetendo o reino do Congo aos
portugueses; a batalha de Pungo-Andongo (1671), destruindo o reino do Dongo; a
“guerra dos Bárbaros” (1650-1720), longo conflito no Nordeste brasileiro configurando,
pela primeira vez nesta escala, uma politica de extermínio das nações indígenas; e,
enfim, a ofensiva final contra Palmares, a qual, parafraseando Cadornega, se apresenta
como um dos episódios da história geral das guerras sul-atlânticas. Simultaneamente,
desenha-se o isolamento do Pará-Maranhão, assim como o contraste seiscentista entre
o espaço continental e o espaço marítimo do Brasil, a oposição entre a rede continental
dos paulistas-bandeirantes escravizadores de indígenas e a rede marítima dos
fluminenses-peruleiros traficantes de africanos, superada no século XVIII com a
conexão dos enclaves da América portuguesa, de Angola, da baía de Benim, da Alta
Guiné, às minas de ouro do polígono Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
12 Como muitos outros trabalhos similares, meu livro se baseou nas pesquisas e estudos
sistêmicos de duas gerações de especialistas que levaram à criação da Trans-Atlantic
Slave Trade Database (TSTD), lançada em 2006. Tive a chance de participar do
congresso de Nantes sobre o tráfico atlântico de africanos, em 1985, organizado por
Serge Daget, onde foi discutida, em torno de Barbara Solow, David Richardson e David
Eltis, a ideia do TSTD, e segui a evolução do projeto ao longo das décadas seguintes.
Desde o livro de Philipp D. Curtin (1969), que consolidava as estatísticas éditas sobre o
tráfico atlântico de escravizados, ficou evidente que o Brasil tinha sido o destino da
maior parte dos africanos deportados para o Novo Mundo. Herbert Klein e Joseph
Miller, que encontrei várias vezes, me ensinaram bastante sobre o tráfico e Angola, e
David Eltis me enviou as estatísticas então disponíveis do futuro TSTD. Mais tarde,
incorporei os dados do TSTD atualizados em 2012 e outros estudos mais específicos
produzidos pela nova geração de pesquisadores, entre os quais Roquinaldo Ferreira,
Mariana Candido e Daniel Gonçalves, na edição americana do livro, publicada graças à
dedicação e à generosidade de Dale Tomich.
13 A recepção da primeira edição do livro foi boa, num contexto em se comemorava o
quinto centenário do Descobrimento, com muitas reedições e publicações de obras
sobre o Brasil colonial. No desdobramento destas comemorações foi editada a Lei de
2003, tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas
escolas brasileiras, completada pela Lei de 2008, incluindo a história das nações
indígenas na mesma obrigatoriedade. Creio que boa parte das 2350 citações da primeira
edição do livro, registadas no Google Acadêmico, decorrem dos estudos africanos e afro-
brasileiros incentivados por essa legislação, assim como pelo maior conhecimento que
se tem no Brasil dos PALOP, e particularmente de Angola. Acessoriamente, o programa
de cotas étnicas e sociais nas universidades brasileiras – uma das mais amplas e bem-
sucedidas políticas afirmativas do mundo, em cujo debate participei – pode também ter
atraído a atenção para o meu livro.
14 Quando saiu a edição brasileira, Milton Ohata (2001), Fernanda Bicalho (2001),
Ângela Domingues (2004) redigiram resenhas generosas apontando partes em que não
fui claro. Uma questão levantada na resenha de João Pedro Marques (2002), na revista
Africana Studia, sugerindo uma organização menos sincrônica dos assuntos, surgiu
também num parecer anônimo de uma editora universitária americana. António
Manuel Hespanha (2001) publicou um ensaio sobre Luis de Molina e a escravização dos
negros que me proporcionou uma boa discussão com ele e me levou a ler as partes de De
Justitia et Jure (1593-1597) sobre o tráfico de escravizados. No final das contas, pude
estabelecer a diferença entre os autores que escreviam antes e, como Molina, depois da
União Ibérica, marcando o impacto da institucionalização dos asientos de negros pela
coroa espanhola na Escola de Salamanca. Em Paris e em Lisboa, as conversas com
Francisco Bethencourt, Serge Gruzinski e Diogo Ramada Curto me ajudaram bastante a
situar o livro no debate historiográfico. Com o apoio de Norman Fiering, fui duas vezes
Andrew W. Mellon Senior Research Fellow na John Carter Brown Library, em
Providence (Rhode Island), quando pude incorporar a maior parte das sugestões e
críticas dirigidas à edição brasileira na edição americana.
15 Richard Candida Smith, da University of California, Berkeley, publicou comentário
extenso e aprofundado sobre The Trade in the Living, associando o livro a Braudel e à
historiografia americana sobre o escravismo e a economia-mundo (Smith 2020).
Christopher Ebert (2020) fez uma resenha igualmente interessante, lamentando,
entretanto, que o livro se dirigisse somente a especialistas. Ele se referia aos eventuais
leitores da edição americana. Porém, minha impressão é que no Brasil o livro circula
entre especialistas e não especialistas. Stuart B. Schwartz (2020) comentou o livro
favoravelmente, embora tenha observado que, na narrativa, deixo por vezes de
distinguir o necessário do secundário. Considero a crítica benevolente, na medida em
que contém a subjetividade relacionada ao leitor imaginário que cada historiador tem
em mente quando escreve seu livro. Sua resenha me foi particularmente gratificante ao
concordar com a pertinência de situar eventos já conhecidos na perspectiva sul-
atlântica, melhorando sua compreensão e, sobretudo, ao considerar que o livro pode
mudar a interpretação da história do Brasil e de Angola.
16 Schwartz estima ainda que minha argumentação sobre a complementaridade entre o
Brasil e Angola é mais convincente para o período 1640-1700. Outros comentadores
expressaram a mesma opinião. Discordo, e trabalho atualmente nos capítulos que
mostram a continuidade e a intensidade desta complementaridade até meados do
século XIX, quando se inicia a imigração europeia, levantina e asiática. Numa
perspectiva mais longa, redigi um texto propondo uma periodização para história do
Atlântico Sul do século XVI até o século XXI (Alencastro 2019). Noutro texto mais
recente, abordei o contexto de outra mudança estrutural do mercado de trabalho,
marcada pelo declínio da imigracão e o deslanche das migrações internas do Nordeste
do Brasil para São Paulo (Alencastro 2021). Este enfoque global sobre as metamorfoses
da questão do trabalho na América portuguesa e no Brasil do século XIX e XX, com
impacto direto no debate econômico, político e cultural, ficará mais explicito com a
publicação do segundo volume.
17 Devo ainda lembrar que a concepção de um espaço sul-atlântico unindo as áreas de
produção de escravos na América portuguesa e as áreas de reprodução mercantil de
escravizados nas feitorias e colônias da África portuguesa estava longe de ser uma
novidade quando meu livro foi publicado. Sem falar nas reflexões que pontuam os
textos do padre Antônio Vieira, já Charles Boxer (1952), Pierre Verger (1968) e
sobretudo Joseph Miller (1988), cujo livro lamentavelmente ainda não foi traduzido em
português, haviam escrito obras marcantes sobre este tema. Minha contribuição tenha
talvez consistido em articular mais sistematicamente, na escala da América portuguesa,
os eventos transcorridos nas duas margens do Atlântico Sul nos séculos XVI e XVII,
como assinalei acima. Embora a leitura do livro possa ter influenciado autores da nova
geração de especialistas do tráfico de escravizados e da história atlântica, filio-me a uma
visão de história mais abrangente, e eventualmente global, que predominou na Franca
no pós-guerra. Tal interpretação se tornou minoritária e foi substituída, no que
concerne o escravismo e as relações sul-atlânticas, por estudos de microhistória,
continuidades culturais, etnicidade, e por análises centradas nas comunidades
subsaarianas impactadas pela pilhagem euroamericana.
18 Entretanto, continuo persuadido que não há oposição entre macrohistória e
microhistória e que é mais pertinente estudar no Brasil a história sul-atlântica do que a
história latino-americana. Assim, o conceito de latino-americanidade só se concretiza
no Brasil após a proclamação da Republica (1889) e é hoje evanescente, subsistindo
apenas no âmbito do Mercosul. Mas o Mercosul é o Rio da Prata, interligado ao Rio de
Janeiro e à Bahia desde o final do século XVI no espaço sul-atlântico. Do outro lado do
mar, as novas nações lusófonas da África intensificam as relações com o Brasil na altura
em que a maioria da população brasileira se declara afrodescendente, conforme
registrou o Censo Nacional de 2010. No horizonte do século XXI surgem os primeiros
fluxos migratórios da África para o Brasil, onde há uma acentuada queda da taxa de
fecundidade. No fim do século XXI, segundo as projeções demográficas da ONU, haverá
mais lusófonos em Angola e Moçambique do que na soma da população de Portugal e
do Brasil. O Brasil era e voltou a ser, cada vez mais, uma nação majoritariamente
afrodescendente.

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Notes
1 De fato, o livro dedica um terço de suas páginas à história marítima (“L’Océan et ses
contraintes”). Suas numerosas tabelas e seus mapas isocrônicos das rotas atlânticas, elaborados
com grande trabalho na era pré-informática, podem inspirar associações com os dados do TSTD
para dar um quadro mais preciso do tráfico atlântico de escravizados. Ver também a resenha que
Pierre Chaunu (1961) faz deste livro e do de Boxer (1952) à luz de suas próprias pesquisas
publicadas em Séville et l’Atlantique (Chaunu 1955-1960).
2 Fundado em torno de Fernando Henrique Cardoso por um grupo de professores que, como ele,
haviam sido expulsos da Universidade de São Paulo pela ditadura, o Centro Brasileiro de Análise
de Planejamento reuniu intelectuais que marcaram o debate nacional dos anos 1970-1980 e,
depois da anistia de 1979, se tornaram dirigentes do PT e do PSDB.
3 “Por mais atento que Caio Prado esteja à vida desse vasto conjunto... limita-se muitas vezes ao
horizonte brasileiro. Esse, de tão amplo, torna-se uma prisão para o historiador. Como é possível
que Caio Prado não tenha sido mais atento à história do Atlântico Sul?”, perguntava Braudel
(1948).
Pour citer cet article
Référence électronique
Luiz Felipe de Alencastro, « Revisitando a formação do Brasil no Atlântico Sul », Ler História [En
ligne], 81 | 2022, mis en ligne le 21 septembre 2022, consulté le 05 décembre 2022. URL :
http://journals.openedition.org/lerhistoria/10659 ; DOI : https://doi.org/10.4000/lerhistoria.10659

Auteur
Luiz Felipe de Alencastro
Sorbonne Université, França; Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas,
Brasil

Luiz.alencastro@fgv.br

Droits d’auteur

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