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O legado do sistema colonial na América Latina https://journals.openedition.

org/caravelle/7801

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Caravelle
Cahiers du monde hispanique et luso-brésilien

94 | 2010
Les indépendances en Amérique latine
Les indépendances en Amérique latine : des commémorations à l’histoire
Que commémorer ?

O legado do sistema colonial na


América Latina
SARA ALMARZA
p. 121-140
https://doi.org/10.4000/caravelle.7801

Résumés
Português Français English
Este trabalho mostra, com textos do Brasil, México e Peru, como através da
linguagem se manifestou o mal-estar de se viver em colônias, e como termos
fundamentais do léxico histórico-sociológico –pátria, América– são empregados
com um sentido novo ; é a identidade dos povos que começa a se exprimir. Nesse
percurso me detenho nas primeiras revoltas e no surgimento de uma nova
mentalidade. Ao mesmo tempo reviso o pensamento de alguns latinoamericanos
em relação aos vínculos pós independência tentando dar um perfil da realidade
atual de América latina.

Cet article, à partir de documents brésiliens, mexicains et péruviens, illustre


comment, à travers le langage, s'est manifesté le mal-être de la vie coloniale et
comment des termes fondamentaux du lexique historique et sociologique −
patrie, Amérique – furent employés dans une signification nouvelle ; ainsi a
commencé à s'exprimer l'identité des peuples. Cette étude privilégie les
premières révoltes et l'apparition de nouvelles mentalités. En même temps, elle
revisite la pensée de quelques intellectuels latino-américains du siècle des
indépendances et tente de mettre en évidence quelques caractéristiques de la
réalité latino-américaine actuelle.

Based upon Brazilian, Mexican and Peruvian documents, this article illustrates
how, through the language, the uneasiness of colonial life revealed itself and how
the fundamental terms of historical and sociological vocabulary –fatherland,
America– were employed with a different meaning ; that’s how countries’ identity
first started to express itself. This study favours the first rebellions and the arrival
of new mentalities. At the same time, it revisits the ideas of a few Latin Americans
intellectuals belonging to the independence century and tries to display some
characteristics of contemporary Latin America’s reality.

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Entrées d’index
Palavras chaves: Identidade, Insurgência, Movimentos libertários, Sistema
colonial, Herança colonialista

Texte intégral
1 As comemorações pelo bicentenário da independência de vários países
de nosso continente é ocasião para recuar no tempo e lembrar os feitos
que possibilitaram que na primeira década do XIX fossem dados os
primeiros passos na configuração de novos Estados. Como toda mudança
estrutural, esse foi um longo processo que começou a se desenvolver
desde que os europeus pisaram o solo americano, que além de extenso,
tem sido um caminho complexo com heranças presentes até hoje. A
seguir, me detenho nas marcas de identidade na linguagem onde os
habitantes manifestam o desconforto de viver em colônias, as primeiras
críticas e as sérias conseqüências para as sociedades atuais.

Os que da lá vieram e os que cá


nasceram
2 Quando se dá o esgotamento do sistema mercantil e quando o regime
de exclusividade do comércio colapsa, cada uma das regiões submetidas
aos países europeus começa a enfrentar longas lutas para conseguir sua
descentralização econômica e política.
3 No entanto, é pertinente salientar que pesquisas históricas não tão
recentes nas diversas nações latino-americanas têm mudado a
equivocada opinião de que a separação das metrópoles começa apenas no
final do século XVIII. Se os movimentos de libertação tiveram início
naquela época com enfrentamentos bélicos, o processo de gestação de
uma nova mentalidade vinha acontecendo desde muito tempo antes. Os
ares libertários e a luta por um ideário menos absolutista tiveram sua
origem séculos atrás, quando o homem nascido no continente começa a
perceber o que significa «viver em colônias ». Esse sentimento refere-se à
tomada de consciência da injusta situação frente aos privilégios
concedidos, nos postos de trabalho, às pessoas de origem européia, em
contraste com o desprezo pelos nascidos no continente.
4 Essa luta pela igualdade começa a se exprimir com sutis manifestações
na linguagem registrada nos escritos às autoridades, sem, no entanto,
chegar a formar um grupo de opinião. Ao deter-se no significado com que
foi empregado, aqui no continente, o termo pátria desde o século XVII,
observamos que está impregnado de uma carga afetiva e de uma marca
de identidade para as pessoas nascidas na América. A utilização desta
palavra vai revelando diversos matizes : às vezes é restrito –refere-se
apenas ao lugar de nascimento–, em outras ocasiões, indica uma maior
abrangência, como no texto do Inca Garcilaso de la Vega, que afirma
claramente que sua pátria é o império inca1, querendo destacar assim um
sentimento de pertencimento às terras que conformaram o vasto domínio
incaico. Para certas mentes mais lúcidas, a pátria, já no século dezessete,
não é a Espanha ; considerase como pátria o continente americano como
um todo, ou uma América setentrional versus uma meridional2. Nas

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terras luso-americanas também aparecem as primeiras diferenças entre


«os que de lá vieram » e os «que cá nasceram », como manifesta o autor
do Diálogo das grandezas do Brasil (1618)3.
5 Outro aspecto da mentalidade de alguns luso-brasileiros e dos criollos
–os nascidos no continente no mundo hispânico– reflete-se em como eles
percebiam e alertavam sobre a enorme diferença entre a opulência de
que gozavam os homens vindos da Península e a pobreza que devia
enfrentar o povo. Frente a essa situação, começam a aparecer
manifestações contrárias a essa realidade. Surgem brilhantes reflexões
tentando explicar porque as riquezas que saíam do continente não
ficavam nem em Lisboa, nem Sevilha e iam parar imediatamente na
GrãBretanha, em Flandres, ou eram depositadas nos cofres dos
banqueiros alemães.
6 Os centros mineiros de prata e ouro, tanto do México, de Minas Gerais
e de Potosi sofreram conflitos imensos entre os seus donos e os
trabalhadores. A historiografia tradicional ofereceu uma imagem
distorcida das grandes riquezas que elas produziam e o fausto com que
se vivia nessas cidades, porém há testemunhas de que a riqueza passava
«em pó e em moeda para os reinos estranhos » e só a menor parte é que
ficava «em Portugal e nas cidades do Brasil », comentava Antonil em
17114.
7 No vice-reinado do Peru, outro perspicaz cidadão, o escritor Peralta
Barnuevo, com o auxílio de um silogismo, demonstrava, em 1740, que
«Inglaterra é mantida pela opulência, a opulência é mantida pelo
comércio, o comércio é mantido pelo Peru, o Peru é mantido pela cidade
de Lima, logo Lima é quem mantém a Inglaterra »5. Do mesmo modo, no
povoado de Vila Rica, Tiradentes queixava-se de que seu lugar de
nascimento era desgraçado, «porque se tirando dele tanto ouro e
diamantes, nada lhe ficava, e tudo saía e os pobres filhos da América,
sempre famintos, e sem nada de seu »6.
8 O desconforto frente a essa situação injusta não fez mais que aumentar
no decorrer do século dezoito. As palavras de repúdio de dois
esclarecidos americanos, entre muitas outras vozes, um em Ouro Preto o
outro no México, confirmam como foi amadurecendo a consciência sobre
o sistema colonial implantado. Ambos se manifestam indignados frente ao
saque das riquezas de suas regiões : «os europeus estavam sugando toda
a substância da Colônia », diz Alvarenga Peixoto7, senhor de lavras, poeta
do sul de Minas desterrado na África por suas posições durante o
movimento da Inconfidência. Do mesmo teor são as expressões do
mexicano Hipólito Villarroel, que afirma rotundamente que o estrangeiro
é quem «sugou todos os tesouros das Américas »8. Em certa medida,
estas colocações precedem as análises mais complexas de economistas,
historiadores e sociólogos atuais, que explicam que o incremento das
riquezas dos países capitalistas tem como base a exploração das
matérias-primas da periferia menos desenvolvida. Poderíamos falar, quem
sabe, de um estágio primitivo das bem conhecidas teorias da
dependência.
9 Um espírito insurgente foi brotando, e se manifestou numa corrente de
pensamento reformista, iniciada por um grupo de pessoas que vivia
imerso em seu tempo histórico. Quero dizer com isto que eram indivíduos
que formavam uma elite e que tiveram a possibilidade de avaliar a sua
realidade de colônias exploradas e pobres. Tinham lido e julgado as idéias
propostas pelos enciclopedistas e ilustrados europeus. Por isso, antes das
grandes revoluções do século XVIII (o movimento das treze colônias
anglo-saxônicas em 1776 e a Revolução Francesa de 1789), já se sentia

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nas colônias um desconforto que se traduziria nos movimentos libertários


desse fim do século no Caribe, e do começo do seguinte no resto do
continente.
10 As portas de entrada das novas idéias foram várias, desde os indianos
que regressavam de seus estudos em Madri insuflados do ideário
iluminista, ou os estrangeirados, como foram denominados os
divulgadores do pensamento ilustrado nas terras lusitanas, até os
comerciantes que clandestinamente embarcavam caixotes de livros
proibidos para as colônias. Nada mais atraente para se imbuir dos
primórdios dos movimentos libertários e conhecer a mentalidade daquela
época que examinar as obras que eram lidas e que compunham as
bibliotecas privadas e os acervos guardados pelas ordens religiosas,
assim como os conventos e os monastérios que eram depositários dos
mais importantes estoques de livros naquela época9. Conhecer o que se
lia nesse período é um passeio para apreciar os diversos interesses que
circulavam nos centros de maior vida comercial, como foram as grandes
urbes que já contavam com uma intensa efervescência cultural.
11 Nas principais cidades da América lusitana –Bahia, Ouro Preto,
Pernambuco, Rio de Janeiro– circulava o jornal oficial Gazeta de Lisboa 10
e, no mundo hispânico, eram conhecidos vários periódicos –El correo de
los ciegos e o Semanario erudito– ambos de leitura constante, já que
contavam com vários assinantes em diversas cidades coloniais. Outra
publicação esperada ansiosamente nas colônias espanholas era El
espíritu de los mejores diarios, cujo objetivo foi dar a conhecer o
«espírito » da imprensa estrangeira, isto é, resenhar os principais artigos
dos pensadores e filósofos liberais. Nas suas páginas encontram-se
trechos dos textos de Rousseau, Mably, Locke e Bacon11 junto às obras de
Montesquieu, de Voltaire, de Diderot e d´Alembert como também do ex-
jesuíta Guillaume de Raynal.
12 Do Raynal, vou me deter de maneira muito breve na obra Histoire
philosophique et politique des établissements et du commerce des
européens dans les deux Indes (1770), talvez seja o texto da Ilustração
mais comentado na Europa e também no Novo Mundo. Como seu título
indica, a sua reflexão abarca as «duas Índias », e as diatribes que
atingiram a todas as nações européias que subjugavam outros povos.
Suas posições eram radicalmente anti-colonialistas e anti-clericais. Ele
fez uma brilhante análise em relação à mudança de mentalidade que o
surgimento da América, como novo espaço de civilização ocidental,
suscitou no cenário mundial. Foi muito lúcido em nomear explicitamente
nossas regiões como «grandes empórios comerciais » e por isso essa obra
acabou sendo queimada na França e proibida pela Inquisição no
continente americano. No entanto, foi lida clandestinamente nas colônias.
13 Mas se por um lado este ilustrado historiador percebeu o significado
comercial que a América representou para a Europa, por outro lado foi
bastante ortodoxo em seguir as idéias de seus contemporâneos mais
polêmicos, como o naturalista francês Buffon e o holandês Cornelius De
Pauw, que consideravam que o continente americano tinha uma geografia
imatura e que seus habitantes pertenciam a grupos étnicos inferiores12. É
fácil perceber que, por trás das equivocadas colocações destes homens
«das luzes », ocultam-se os interesses das potências européias
preocupadas e desejosas de substituir Espanha e Portugal nos domínios
americanos13. Foi constante a competição que existiu entre as nações
para liderar a hegemonia colonial.
14 Os livros proibidos nas colônias não somente eram lidos quando
publicados, como também circulavam em forma de manuscrito em

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francês ou em versões já traduzidas. O Contrato social (1762) de


Rousseau, por exemplo, foi traduzido para o espanhol pelo advogado
argentino Mariano Moreno em 1810, em Buenos Aires, e o inconfidente
brasileiro Cláudio Manuel da Costa traduziu a Riqueza das nações (1776)
de Adam Smith14. Quando a França revolucionária lança ao mundo a
Declaração dos direitos do homem (1789) e depois a Constituição
francesa (1791), ambos foram rapidamente vertidos ao espanhol e
circularam livremente pelas colônias. O tradutor foi o colombiano Antonio
Nariño, perseguido, acusado e feito prisioneiro pela administração
espanhola. No entanto, em sua defesa, argumenta que aqueles textos
circulavam livremente e já haviam sido discutidos no periódico El espíritu
de los mejores diarios, jornal que andava até «nas mãos de crianças e de
mulheres »15, afirma Nariño.
15 Ambos documentos franceses foram o pilar ideológico das grandes
transformações sócio-políticas no mundo Ocidental, pois marcaram o fim
do Antigo Regime, e, assim, abriram caminho à uma época de
importantes questionamentos. Essas leituras tiveram significativa
influência no pensamento libertário dos homens americanos que, como já
disse anteriormente, vinha sendo construído vagarosamente desde os
primórdios da colonização. Quando nos adentramos nos pormenores de
cada uma das regiões que formam a América Latina e percebemos como
a expansão do tráfico comercial foi gerando centros urbanos e novos
grupos sociais de funcionários e intelectuais, vemos que o nosso
continente não ficou marginalizado com relação às idéias e às polêmicas
surgidas nas grandes metrópoles. Por exemplo, os «alvoroços da
França », como chamaram os vice-reis espanhóis o movimento
revolucionário francês, assustaram de tal forma as autoridades das
colônias, que estas começaram a passar voz de alarme umas às outras,
sem entender muito bem como os «papéis de uma Assembléia da
França » poderiam ter chegado aos mais longínquos povoados do novo
mundo, como foi o caso da mina de Potosi16.
16 Assim, foi se fortalecendo nas colônias uma nova mentalidade que
assinalava a formação de um pensamento independentista, que começou
a brotar muito antes da luta armada. A incubação do germe libertário,
anseio inerente do ser humano em qualquer época, é um tema, a meu ver,
dos mais instigantes e que vem sendo explorado com rigorosa atenção.
Atualmente, os arquivos começam a nos entregar novos materiais sobre
aquele momento histórico que se encontravam à espera de pesquisas
mais exaustivas. Além disso, o novo olhar revisa a perspectiva assumida
sobre as diversas forças políticas e sociais que entraram em jogo para
que as colônias se separassem das metrópoles.
17 Todas as colônias americanas, independentemente de suas metrópoles,
estão vinculadas historicamente –com exceção das 13 colônias inglesas
que cresceram sendo territórios mais de povoamento que de
exploração17–, pois foram concebidas como tais, e se desenvolveram
subjugando sociedades organizadas, passando por processos de
conquista das populações nativas e vivendo uma ruptura com os centros
hegemônicos para com o tempo, desenvolverem uma relação de
dependência econômica com a Grã-Bretanha e com os Estados Unidos.
Por isso ao abordar as independências das colônias, faço alusão apenas
às vastas terras que foram colonizadas pelas monarquias ibéricas.
18 Uma diferença determinante para o futuro das nações a serem
constituídas é o momento em que as colônias de Espanha e a de Portugal
se separam de suas respectivas metrópoles. A primeira pergunta é por
que a possessão de Portugal, com seu imenso território, forma uma só

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nação e as dependentes da Espanha terminam por constituir 19 Estados,


embora em datas diferentes ? Sem dúvida, a conjuntura econômica
européia foi um fator crucial que teve repercussões importantes nas duas
Américas –a espanhola e a lusitana– no que diz respeito à separação das
monarquias. A Revolução industrial estava numa etapa de
amadurecimento e a Grã-Bretanha se viu na necessidade peremptória de
expandir seus produtos manufaturados para ampliar seus mercados, por
isso incentivou o comércio livre e a liberação dos portos.
19 Quando a França imperial de Napoleão Bonaparte ocupa Lisboa, em
1807, e toma Madri no ano seguinte, colocando no poder seu irmão José,
a imediata desestruturação política de ambas nações européias incentiva
as burguesias americanas a continuar os movimentos de separação. Os
grupos da elite refletiam que sem um rei que governe, os súditos não
estarão obrigados a obedecer. Essa premissa terminou se convertendo no
clamor generalizado para levar adiante o «grito » de independência no
povoado de Dolores, no México, o levantamento de Caracas e a criação
das primeiras «juntas » insurgentes, tanto em Buenos Aires como em
Santiago.
20 Em relação ao Brasil, a invasão napoleônica teve como conseqüência a
transferência da monarquia para terras americanas e a colônia viveu uma
original e peculiar mudança, ao passar de um sistema colonial a um
governo monárquico. Talvez a vinda da casa real dos Bragança, com o
apoio dos ingleses, tenha conseguido alcançar a coesão de seu povo, a
despeito das várias tentativas separatistas na Bahia e em Pernambuco,
fazendo com que suas catorze capitanias não chegassem a se
desmembrar.
21 Nas colônias espanholas, os imensos territórios que tinham formado
uma só unidade, organizada em quatro vice-reinos –Nueva España,
Peru18, Nueva Granada e Rio de la Plata– passaram de um sistema
colonial unificado a um republicano, dando origem aos estados nacionais.
Na explicação desse processo, há diversos fatores que se entretecem. As
causas são variadas. No que se refere ao aspecto político, os poderosos
interesses das burguesias locais eram um incentivo para isolar e dominar
suas localidades, sem motivação alguma para a construção de uma
unidade. Em relação ao comércio, havia uma grande diversificação na
produção de matérias-primas que cada localidade negociava. Na região
do Caribe, primava a cana-de-açúcar ; no México, as minas de ouro e
prata ; em Buenos Aires, prosperava um lucrativo comércio de gado,
carne salgada e couro com Inglaterra através do Atlântico e também pelo
interior, seguindo as sinuosas rotas andinas. Junto a esses motivos, outro
fator que levou à desagregação dessas colônias foi o obstáculo exercido
pela própria geografia. As regiões andinas –Equador, Peru, Bolívia,
Chile–, naquela época, eram extremamente longínquas para as
comunidades da região do Prata, por exemplo, e os territórios da
Colômbia e da Venezuela –a partir de uma perspectiva sul-americana–
ficavam distantes demais para advogarem por interesses comuns.
Portanto, o objetivo político, os interesses comerciais locais, a realidade
geográfica e o crescimento cultural desigual das diversas localidades
–Santo Domingo com universidade desde 1538, México e Lima desde
1551, enquanto Santiago e Buenos Aires tiveram universidades só no
século XVIII19–, foram fatores decisivos para a divisão da América
espanhola em diversos países.

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A hora da revolta
22 Os primeiros levantamentos contra os senhores se deram nas colônias
francesas do Caribe, lugar onde o açúcar foi uma das culturas agrícolas
mais expandidas chegando a ser a principal fonte de riqueza daquela
região. Houve manifestações de rebeldia desde agosto de 1789 na
Martinica, em Guyane, Guadalupe e, no Haiti, cenário da insurreição de
Saint Domingue, em 1791, pelo ex-escravo Toussaint L’Ouverture. A
revolta do povo haitiano foi a única que teve êxito dentro da cadeia de
manifestações contra a escravidão que se deu no Caribe20. Esses
movimentos de insurreição foram o germe dos futuros levantes ; assim o
Haiti passou à história como a segunda nação do continente americano,
depois dos Estados Unidos, a conseguir a separação de uma metrópole
européia em 1804.
23 O espírito abolicionista no continente começou a fervilhar quando, em
1807, a super potência da época, a Grã-Bretanha, acabou com a
escravidão e com o tráfico negreiro em suas colônias, abraçando os
princípios liberais daquela época e apostando numa maior eficiência do
trabalho livre na produção de mercadorias. É a necessidade de satisfazer
seus próprios interesses comerciais que leva a maior nação hegemônica a
acabar com a escravidão e pressionar outras a fazê-lo, como aconteceu
com o Brasil.
24 Nos domínios de origem hispânica, a abolição se deu entre 1810 e 1815
como uma reivindicação dos patriotas, grupo que lutou a favor da
independência e contra os espanhóis ou partidários deles –chamados de
realistas. Entretanto, o processo de desestruturação do sistema
escravista, que tinha persistido durante séculos como alicerce da
economia colonial, foi complexo e lento. Uma vez abolido oficialmente,
teve início o mercado clandestino e o contrabando voltou a tornar o
produto lucrativo para as economias locais e nacionais. No Caribe,
especificamente em Porto Rico e Cuba, onde subsistiu uma economia de
monocultura, a escravidão foi fundamental e continuou por décadas (a
abolição só aconteceu em 1873 e 1880, respectivamente). No Brasil, após
a liberdade de ventre (1871), as discussões entre os conservadores e
liberais foram se radicalizando. Na década de 80, José do Patrocínio
funda a Gazeta da tarde e, meses depois, aparece o jornal Abolicionista,
junto ao surgimento de Sociedades contra a escravidão, no Rio de
Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul, o que vai aos poucos transformando a
causa abolicionista numa força plausível21.

Os novos vínculos
25 A maioria das jovens nações viveu, nas primeiras décadas do século
XIX, uma luta bélica constante no interior de suas regiões, tanto com as
populações aborígines, quanto com o remanescente das forças leais ao
monarca22. Ademais, não foi fácil organizar, junto aos interesses das
burguesias locais, uma administração centralizada. Some-se a esse
panorama uma carência de políticas comerciais coerentes para negociar
com uma consolidada e próspera indústria européia após a Revolução
industrial.
26 No que diz respeito ao Brasil, os ingleses foram os principais
beneficiários do decreto ordenado por dom João VI, em 1808, em relação
ao fim do monopólio comercial que se vivia com os portugueses. Assim, os

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portos brasileiros se abriram ainda mais para o comércio internacional.


Também Buenos Aires, pela posição estratégica para o comércio com o
interior, foi alvo dos ingleses desde muito cedo, chegando estes a ocupar
a cidade em 1806, expulsando de lá o vice-rei espanhol. Mas a cidade foi
recuperada no ano seguinte. Pelo oceano Pacífico, o porto de Valparaíso,
no Chile, foi praticamente tomado pelos ingleses, que desenvolveram um
dinâmico comércio, possibilitando a construção de vias férreas, a entrada
da máquina a vapor, o crescimento do transporte urbano, as
telecomunicações e o estabelecimento de frigoríficos para a conservação
da indústria pecuária.
27 Em relação ao capital financeiro, muitas das nações latino-americanas
contraíram neste período seus primeiros empréstimos dos banqueiros
ingleses, mas as jovens economias, vendo-se diante da impossibilidade de
saldar suas dívidas, absorviam novos créditos e juros mais altos. Deste
modo, a amarração de todos os nossos países à economia européia foi se
desenvolvendo como um círculo vicioso de empréstimo-jurodependência.
28 Os estudos econômicos recentes coincidem ao afirmar que a
GrãBretanha foi também o mais relevante investidor estrangeiro na
América Latina desde as primeiras décadas do século XIX até a Primeira
Guerra Mundial. O interesse britânico durante esse período manifesta-se
tanto pelos empréstimos para o fortalecimento da infra-estrutura para os
governos, como já disse, quanto pelos investimentos em companhias de
mineração. O Brasil, por exemplo, recebeu capital britânico para as suas
minas de ouro no início do século e as salitreiras no norte do Chile foram
exploradas não só com o capital inglês, mas também com uma gestão
administrativa dependente totalmente dos britânicos.
29 Fica claro, então, que a grande aliada das independências americanas
foi a Grã-Bretanha, que continuou estendendo seus vínculos com a região
nos diversos estados nacionais. O comércio inglês foi se expandindo por
todos os países latino-americanos, em especial na América Central e nas
ilhas caribenhas, que permaneceram como colônias até o século XX,
como foi o caso da Jamaica, Trinidad e Tobago e Barbados, que romperam
os laços políticos com a metrópole apenas em 1962. Somente vários anos
depois, em 1974, Granada consegue a sua independência. Os pequenos
países continentais do Caribe, a Guiana e Belize também estiveram
marcados pelo domínio inglês até o século XX23.
30 O encrave inglês no continente, como vemos, foi imprescindível para a
entrada de produtos manufaturados para toda a América Latina. Nossos
países foram a salvação da indústria britânica de algodão na primeira
metade do século XIX, e foi nesse processo que o continente acabou se
tornando o maior mercado para as exportações inglesas24. Sobre este
mesmo tema, tendo aos ingleses como foco e refletindo sobre seu poder
imperial nas diversas épocas da história, o estudioso palestino norte-
americano Edward Said, que analisou detidamente os liames entre
império e colônia, tem razão quando conclui que a Inglaterra «é uma
classe imperial por si só, maior, mais grandiosa e mais importante do que
qualquer outra »25. Ao examinar a penetração cultural dos ingleses, Said
mostra dados aterradores da presença imperial no mundo. Em 1800, as
potências ocidentais dominavam 35 % da superfície do planeta ; em 1878
esse número sobe para 67 % e em 1914 a Europa tinha 85 % do mundo
em forma de colônias, protetorados, domínios, territórios e associação de
territórios26.
31 Vale se perguntar como atuam as forças imperialistas ? Como se dá
essa rotatividade ? Por que em nosso caso foram os portugueses e
espanhóis que dominaram num primeiro momento e depois os ingleses ?

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Sabemos que as forças imperialistas não atuam de acordo com uma


linearidade matemática, isto é, entra uma e sai a outra. Ao contrário, são
processos, alianças e interseções paralelas e superpostas e correspondem
a variados fatores como proximidade geográfica, conjunturas
internacionais, ideologias, poder e especialmente interesses comerciais.
É o caso da ingerência norte-americana que interfere, desde o início do
século XIX, na América Latina. E, desde essa época, intelectuais
latinoamericanos começam a se preocupar com o que alguns
denominavam o «colosso do norte ».
32 A política externa dos Estados Unidos inquietou certos grupos de
pensadores que observavam o crescimento dessa nação com cautela e,
dependendo da conjuntura, com apreciações bastante diversas.
Imediatamente após romper com a Inglaterra, as treze colônias
conformaram a grande federação dos Estados Unidos. Nesse momento, a
nova nação foi vista como modelo de liberdade e procurada como
paradigma político, mas com o tempo foi considerada um verdadeiro
perigo imperialista27. Depois que as diversas nações latino-americanas já
estavam relativamente fortalecidas geográfica e politicamente, o
desenvolvimento dos Estados Unidos deixa bastante intranquilo certo
grupo de ideólogos. É interessante perceber, nesse momento de
crescimento das elites intelectuais latino-americanas, como um grupo de
pensadores vincula a idéia de progresso ao conceito de civilização
–oposto à barbárie– que a Europa havia cunhado para distinguir o Velho
do Novo continente. Quando o Brasil proclama a República, o
representante imperial do país em Nova York, Salvador de Mendonça,
explica aos americanos que o movimento republicano «é o resultado
lógico do progresso e da evolução histórica do meu país, no caminho
ascendente da liberdade e da civilização »28.
33 Um dos expoentes máximos do conceito de civilização e que passou à
história como o baluarte de uma elite civilizatória em relação estreita
com o progresso é Domingo Faustino Sarmiento. Este argentino, antes de
apaixonar-se pelos Estados Unidos, foi um fanático admirador da velha
Europa, a qual utilizava como exemplo para confrontar as cidades do
interior da Argentina com a européia Buenos Aires em sua polêmica obra
Civilização e barbárie (1859). Mas, com o tempo, decepciona-se com ela
–«demasiado quieta », disse– e propõe como modelo de república para
nossos países os Estados Unidos. Nas suas viagens pelos diversos
continentes, convence-se de que a América do Norte é «o belo ideal de
grandeza das nações modernas »29. Essa emulação dos americanos do
norte não foi apenas um entusiasmo da juventude de Sarmiento. Em sua
obra mais amadurecida, após uma intensa vida de homem público, ele
corrobora essa idéia, proclamando que a América do Sul ficará atrás e
«perderá sua providencial missão de sucursal da civilização moderna ». É
chocante essa confissão, especialmente pela conotação de subserviência
que Sarmiento atribui, como anseio, aos países do cone sul. Depois de
viajar pela América do norte, não hesitou em declarar «não detenhamos
os Estados Unidos em sua marcha. Alcancemo-los. Sejamos os Estados
Unidos »30. Esse superlativo entusiasmo oitocentista tem produzido
consequências funestas para toda a região.
34 Mas não foi só esse o pensamento vigente na América naquela época.
Ao contrário, o continente vivia uma enorme efervescência intelectual e
crítica, proveniente de grupos liberais que questionavam a situação da
América ibérica versus a América anglo-saxônica. O crescimento
tecnológico e comercial daquela nação serviu, no entanto, de incentivo
para que os latino-americanos estivessem alerta sobre as ameaças que os

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Estados Unidos poderiam representar para as novas repúblicas. Surgem,


a partir de 1862 em algumas cidades latino-americanas e por motivos
similares, embora em conjunturas diversas, várias associações de grupos
liberais –sociedades patrióticas, clubes, juntas, ligas– que tinham como
propósito a defesa da independência geográfica e cultural dos países ao
sul do rio Bravo31. Como exemplo desses ideólogos, destaco Francisco
Bilbao, que com sugestivos textos –La América en peligro (1862) e El
evangelio americano (1864)32– repudia com veemência a missão que os
anglo-americanos se outorgaram, qual titãs, diz, de serem eles os árbitros
da terra. Crítico impetuoso da colonização cultural chamou a atenção,
por exemplo, para o fato de que na América «só se lêem livros
franceses » e se desconhecem nossos próprios escritores. Por outro lado,
os governos latino-americanos mobilizaram-se junto a grupos da
sociedade civil organizada chamando a congressos pan-americanos, que
lamentavelmente terminaram sem resultados práticos, pois as iniciativas
nunca foram levadas adiante33.
35 Nesse momento de análise, sobressai um grande analista político e
jornalista, o escritor cubano José Martí, que se destacara durante quinze
anos na imprensa tanto dos Estados Unidos como da América espanhola.
Em relação à política estadunidense para a América Latina, o alcance do
conhecimento martiano é enorme, pois, morando em Nova York desde
1889, pôde conviver e assistir ao nascente capitalismo monopolista. Ele
não se cansava de repetir em cartas dirigidas aos governos latino-
americanos e em crônicas para a imprensa –Sarmiento as denominou de
«bramidos »–, que os objetivos primeiros, inevitáveis e sem concessões de
tudo o que os Estados Unidos faziam era cuidar de seus próprios
interesses.
36 Nessa época, Martí já usava o termo imperialista para designar aquele
país. Junto com prevenir, preocupou-se com afinco na preparação e no
significado que teria para a América Latina a Conferência Internacional
Americana, realizada em Washington entre os anos 1889-1890,
considerado o primeiro evento pan-americano. Chamou os
latinoamericanos a fazerem um minucioso exame e uma vigilância
extrema a respeito dos propósitos dos Estados Unidos, pois aquele país
–disse Martí em carta a La Nación de Buenos Aires– está repleto de
«produtos invendíveis » e também determinado a «ampliar seus domínios
na América ». Era tal o perigo que via o cubano, tanto econômico quanto
geopolítico, que chega a defender a necessidade de ser declarada uma
segunda independência34. Foi nessa delicada conjuntura que ele escreve
o ensaio Nossa América (1891), documento convocatório que visa a
construir uma cultura americana própria e assim se diferenciar da
anglosaxônica que vê avançar aceleradamente35.
37 No Brasil, o poderio dos Estados Unidos foi avaliado pelo chanceler Rio
Branco. Ao conviver longos anos com a sociedade européia, após haver
morado em Paris, Londres e Berlim, ele sabia da preponderância da
Europa na comunidade internacional. Entretanto, bastante cedo
dimensionou a projeção dos Estados Unidos : «há no Novo Mundo uma
grande e poderosa nação » com a que devemos contar no futuro,
escreveu este diplomata36. É preciso lembrar que os Estados Unidos
eram os maiores importadores de café, de cacau e de borracha desde a
segunda metade do século XIX, e que 36 % de todas as exportações
brasileiras tinham o mesmo destino na segunda década do século.
38 Dentro da visão progressista de Rio Branco, segundo a qual se devia
trabalhar por um Brasil de destaque dentro das nações latino-americanas,
parecia acertada a sugestão de se tecer uma aliança tácita com os

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Estados Unidos. O Barão, entretanto, não chegou a deslumbrar-se com a


nação do Norte. Ao perceber que o Brasil e os demais países
hispanoamericanos estavam sendo injustiçados na II Conferencia de
Haia, em 1907, ao não se pautarem os países europeus no princípio da
igualdade jurídica das nações, dá instruções especiais para a votação ao
enviado Rui Barbosa, e o Brasil, então, vota contrariamente em três das
quatro propostas apoiadas pelos Estados Unidos, não se alinhando
automaticamente, no dizer de Rubens Ricupero37.
39 Pensadores mais ousados também se deixaram ouvir nessa centúria,
assim a sociedade brasileira foi posta sobre aviso em relação a que não
existe «país latino-americano que não tenha sofrido as insolências e às
vezes a rapinagem dos Estados Unidos », como manifestava Eduardo
Prado em A ilusão americana (1893)38. Mesmo Joaquim Nabuco chegou a
propor uma Liga Liberal do Continente, como medida de proteção pelo
temor que produzia a doutrina Monroe – fundada no lema «a América
para os americanos ». Nabuco assinalava que esta aliança liberal poderia
estar a cargo de um grupo de «homens cuja cultura rivaliza com a mais
brilhante cultura européia »39. Já entrado o século XX, as reflexões sobre
a própria América Latina e os nexos inevitáveis entre as metrópoles
européias e o país do Norte aumentam. Manuel Bonfim, por exemplo, em
seu estudo A América Latina (1905), deixa entrever a consciência que
tem do momento histórico em que vive. Como ele mesmo explica, «foram
nove anos de observação e leituras antes de vertê-las nesse livro ». No
seu longo texto, começa apresentando o «passado funesto » desse
parasitismo social que foi a colonização, e o descompasso em que as
nações latino-americanas se encontram40. Bonfim assinala os males de
origem, mas parece-me também visível em seu pensamento que essa
situação, apesar de inevitável, teria soluções possíveis.
40 A ingerência tutelar do governo norte-americano em relação à América
Latina vem desde inícios do século XIX, embora a interferência mais
explícita na região se acentue depois da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Na conjuntura do pós-guerra, dá-se uma mudança radical
nas divisões geopolíticas do hemisfério. Os governos da Inglaterra, dos
Estados Unidos e da União Soviética se reúnem em Yalta (Ucrânia) e
acordam as áreas de domínio de cada uma delas, uma parte controlada
pela União Soviética e outra pelos norte-americanos. Para os nossos
países, deu-se continuidade ao vínculo que se vinha gestando desde anos
atrás em relação aos interesses dos norte-americanos e, como
conseqüência, a América Latina tornou-se uma região sob a sua
influência (o back yard da nação do norte, de acordo com o jargão dos
burocratas).
41 A partir dos anos 50 do século passado, os Estados Unidos e a União
Soviética enfrentam-se numa luta escancarada pelo poderio
armamentista e pelo controle ideológico do mundo. Os meios de
comunicação representam um papel fundamental na sustentação dos
valores destas duas ideologias e nossos países experimentam uma forte
propaganda em favor da mentalidade norte-americana41. O mundo ficou
polarizado não apenas em termos geopolíticos e econômicos, mas
também dividido entre o bem e o mal, entre o capitalismo e o comunismo,
confrontando o Estado à vida familiar. Vivia-se o período da guerra fria42.
42 Naqueles anos, os olhos do governo estadunidense estão postos nas
frágeis democracias latino-americanas e a região passa por uma
constante desestabilização. Os interesses norte-americanos, unidos às
conveniências das burguesias nacionais, possibilitaram a chegada ao
poder de governos ditatoriais, que como verdadeiros fantoches dos

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desejos estadunidenses conduziram diversos países. Na década de


cinqüenta, algumas nações experimentaram governos autoritários, tanto
militares como civis. Darei apenas alguns nomes para ilustrar a endemia
política vivida pela região. Cuba sofreu a presença de Fulgêncio Batista
nos bastidores dos governos desde 1934. Após se eleger presidente na
década de quarenta, toma o poder em 1952, até que é derrotado pela
Revolução Cubana. A Venezuela é governada pelo general Marcos Pérez
Jiménez de 1952 a 1958 ; a Colômbia, pelo general Rojas Pinilla de 1953
a 1957 ; a República Dominicana, governada pelo militar Rafael Leonidas
Trujillo, de 1931 até 1961 ; e a Nicarágua, dominada pela dinastia que
começou com o comandante da Guarda Nacional Anastásio Somoza, ao
qual sucederam seu filho e seu neto. A família Somoza permanece dona
do país entre 1936 e 1979.
43 Levando em conta o panorama descrito, pode-se advertir, então, que a
independência de nossos países significou, na verdade, passar das mãos
das metrópoles que dirigiram a conquista e a colonização –Espanha e
Portugal– às metrópoles que exploraram as matérias-primas –Inglaterra e
Estados Unidos– para, na atualidade, assentar-se sobre uma total
dependência do capital externo mediado pelas empresas transnacionais.
44 Com o processo de declínio dos regimes socialistas na Europa e a
queda do regime na União Soviética, no começo da década de noventa,
surge uma nova ordem mundial liderada por um único país, os Estados
Unidos. A América Latina continua altamente dependente, como
conseqüência do processo histórico descrito, contando com uma pesada
dívida externa com Estados Unidos e alguns países europeus, que foi se
acumulando progressivamente até chegar à década de oitenta, com um
crescimento nulo das economias regionais e uma dívida impagável,
conjuntura que tem sido chamada, para efeitos econômicos, de a «década
perdida ». Frente a essa situação, os países da região são obrigados a se
submeter às ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI), organismo
que pauta, hoje, a agenda social dos governos democráticos latino-
americanos.
45 Nos anos noventa, o fluxo de investimentos estrangeiros na América
Latina foi sem precedentes. Em 1999, por exemplo, a afluência de capital
se quintuplicou em relação aos primeiros anos da década, e os Estados
Unidos continuaram sendo o principal investidor na região até meados
dos noventa, ocasião em que também o capital europeu registra um
grande crescimento, especialmente da Espanha, que se converte no
segundo maior investidor na região, destacando-se nas áreas de
telecomunicações, de energia, no sistema bancário e no comércio
varejista.

A herança que carregamos


46 Como conclusão a este recuo histórico, nos perguntamos quais são as
marcas deixadas, na formação socio-política dos estados nacionais, pelo
sistema colonial que funcionou eficientemente durante tanto tempo ? As
forças sociais alicerçadas na dicotomia existente entre os senhores (os
possuidores) que no projeto de sociedade nacional se agrupam na
aristocracia rural ou mineira, dependendo do tipo de economia, e os
escravos (os possuídos), que continuaram subjugados sem nenhuma
possibilidade de mobilidade entre estes dois grupos. Pesquisas recentes
sugerem que dentro do grupo dominante houve uma grande mobilidade.

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Portanto, o projeto nacional que cada país foi desenvolvendo se


fundamenta nas bases da estratificação social estabelecida na colônia.
Em nível político, a hegemonia de uma autoridade monárquica
absolutista se reverte na formação de um Estado nacional forte e com
uma presença acentuada nos afazeres de cada grupo social43.
47 Na atualidade, em toda a América Latina, contam-se 150 milhões de
pessoas afrodescendentes, das quais 92 % vivem abaixo da linha da
pobreza44. Então, tentando responder à pergunta acima colocada, sobre
que traços sociais coloniais estão reproduzidos na estrutura das
sociedades de hoje, vale se deter na situação socioeconômica da grande
massa da população e observar que ainda existe uma alarmante distância
entre ricos e pobres. Realidade que é apreciada em relação à educação,
em relação à saúde e em relação ao salário. A mobilidade social entre os
dois pólos, desde os tempos coloniais, tem sido mínima e as populações
de maior marginalidade nas sociedades atuais são os indígenas e os
negros. Nesse sentido concordamos com a reflexão de Aníbal Quijano
quando afirma que a divisão social do trabalho nos séculos coloniais foi
«por um bom tempo uma expressão da classificação racial da
população », os «negros » eram escravos e os «índios » eram servos45.
Essa mesma dicotomia social se manifesta nos indicadores sociais da
América Latina. Em relação à educação, por exemplo, entre os cerca de
«15 milhões de analfabetos brasileiros se encontram mais de 10 milhões
de pretos e pardos » e a nível universitário o «porcentual de brancos que
aparecem como estudantes de educação superior é de 56 %, o de pretos
e pardos alcança apenas 22 % ». Números que indicam as pegadas
profundas que a estratificação social deixou estabelecida pelo sistema
colonial46.
48 As cidades latino-americanas são um mosaico de separação social,
reminiscência e reflexo da divisão da sociedade colonial que se formou
dentro dos paradigmas da exclusão entre indígenas, negros e europeus.
Certíssimas as palavras de Joaquim Nabuco, quando dizia, no século XIX,
que a tarefa mais difícil para as futuras gerações seria a de apagar todos
os efeitos do regime escravista, que foi deixando as suas pegadas durante
quatro séculos. A visão de futuro de Nabuco em relação a «que não basta
acabar com a escravidão é preciso destruir a obra da escravidão »47 não
parece ter-se completado na América Latina.
49 Como vemos, o sistema colonial deixou uma marca indelével no nosso
continente, aliás, como aconteceu no continente africano e asiático, pois
as hegemonias, essas complexas relações que gera a sociedade, são
legados que não se extinguem. A mentalidade de dominar e aceitar a
dominação estão infiltradas em toda a estrutura da sociedade latino-
americana, começando pela preponderância das línguas deixadas pelo
conquistador, a divisão sócio racial exibida por nossas sociedades, até as
fronteiras urbanísticas das grandes cidades. A brecha escandalosa
existente entre os ricos e os mais necessitados, entre os que têm acesso
aos estudos e a grande massa de analfabetos é apenas uma amostra e
uma advertência desse legado. No entanto, o que aparece como mais
assustador é a carência de políticas públicas sistemáticas para acabar
com essas ignomínias sociais. Pareceria –mas quero acreditar que não–
que os estados nacionais já se acomodaram nesse panorama que
apresenta a América Latina do século XXI.

Notes

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1 Comentarios reales (1609), caps. IX, XXIV. Ele era filho de um capitão espanhol
e de uma inca.
2 Cf. S. Almarza, «Variaciones en la noción de patria en la época colonial»,
Cuadernos Americanos, México, DF., vol. CCLXII, n. 5 (1985), p. 186-196.
3 Apud, Fernando A. Novais, «Condições da privacidade na colônia»,
Aproximações. Estudos de história e historiografia, Cosac Naify, São Paulo, 2005
p. 214.
4 Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Apud Laura de Mello e
Souza, Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII, Rio de
Janeiro, Graal, 2 ed. 1986, p. 39.
5 S. Almarza, Pensamiento crítico hispanoamericano. arbitristas del siglo XVIII.
Madrid, Pliegos, 1991, p. 88. As traduções ao português de textos em espanhol
são de minha autoria.
6 Apud Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no
século XVIII, op. cit., p. 41.
7 Apud Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, São Paulo, Cultrix,
1986, p. 67.
8 S. Almarza, «Las enfermedades políticas de la Nueva España», Cuadernos
Hispanoamericanos, Madrid, 443 (1987), p. 139.
9 Com o acervo trazido pela família real portuguesa, funda-se a Biblioteca Real
em 1810, no Rio de Janeiro; aberta ao público quatro anos depois. No mundo
hispânico, a primeira biblioteca pública foi criada por José de San Martín em
1821. Cf. S. Almarza, Pensamiento crítico..., op. cit., p. 132-137. Também Helena
Esser dos Reis e Maria Constança P. Pissarra, «Jean-Jacques Rousseau e o
iluminismo brasileiro», Fragmentos de Cultura, Goiânia, vol. 13 (especial), 2003,
p. 223-236.
10 Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do cônego, Belo Horizonte, Itatiaia, 1957,
p. 53.
11 Paul-J.Guinard, La presse espagnole de 1737 à 1791, Paris, Centre de
Recherches Hispaniques, 1973.
12 Antonello Gerbi, Viejas polémicas sobre el Nuevo Mundo, Banco de Crédito del
Perú, 1946, p. 37-66.
13 Uma síntese da extensa literatura sobre este tema encontra-se em Federico
Álvarez Arregui, «El debate del Nuevo Mundo», Ana Pizarro (org.) América
Latina, palavra, literatura e cultura, Campinas, UNICAMP, 1994, vol. 2, p. 35-66.
14 Célia Nunes dos Santos «A Inconfidência Mineira», Anais do Museu Paulista,
tomo XX, (1966). p. 237.
15 S. Almarza, Pensamiento crítico..., op. cit., p. 48.
16 S. Almarza, «La Declaración de los Derechos del Hombre en Chile», Mapocho,
Santiago, vol. 38 (1995), p. 123-133.
17 A economia de povoamento estava orientada para a subsistência interna e não
estava conduzida para enriquecer a metrópole, como era o caso nas colônias de
exploração.
18 Para se ter uma idéia da vastidão dos vice-reinos, o do Peru, no século XVII,
era formado pelo território que hoje ocupam Peru, Colômbia, Equador, Panamá,
Bolívia, Buenos Aires, Chile e parte do Brasil (algumas áreas de Rio Grande do
Sul, Mato Groso do Sul, Mato Groso, Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima).
19 A cidade de Córdoba, na Argentina, no entanto, teve sua primeira universidade
no século XVII. Entre 1631 e 1791, as cidades de Sucre, na Bolívia, San Carlos, na
Guatemala, Caracas, La Habana e Quito já tinham fundado suas universidades.
20 Ver Ives Bénot, « La chaîne des insurrections d’esclaves dans les caraïbes de
1789 à 1791 ». Marcel Dorigny (ed.) Les abolitions de l’esclavage, Saint-Denis,
Presses Universitaires de Vincennes/ Paris, Unesco, 1995, p. 179-186.
21 Francisco Iglesias, «Introdução» ao O abolicionismo, Silviano Santiago (org.),
Intérpretes do Brasil, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2000, vol. 1, p. 12.
22 O Estado argentino dominou sua população nativa em 1880 e o chileno só em
1883 logrou se impor aos mapuche.
23 A Guiana se torna independente em 1966 e Belize obteve a sua autonomia só
em 1981.
24 Eric Hobsbawn, Industry and Empire, Penguin, London, 1968.

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25 Cultura e imperialismo (1993), São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 24.
26 Ibid, p. 38. Na América Latina, Porto Rico é um estado associado dos Estados
Unidos; a Guiana Francesa é um departamento de ultramar da França; Belize,
Jamaica e Trinidad e Tobago formam parte da commonwealth. Paradoxalmente
são territórios autônomos, ainda que o chefe de Estado seja a rainha da
Inglaterra, representada por uma autoridade local.
27 S. Almarza, «As advertências dos pensadores latino-americanos em face do
poderio dos Estados Unidos», Humanidades, Brasília, vol. 10, 1994, 181-191.
28 Citado em Spanish American Commercial Union, «Banquet in Honor of
Delegates of the International American Conference» (N.York, Press of El
Avisador Hispano-Americano, 1890), p. 43.
29 Viajes, F. Friedmann de Golgberg (ed.), México, Kapeluz, 1978, p. 30. A
tradução é minha.
30 Roberto Fernández Retamar, Calibán y otros ensayos, La Habana, Arte y
Literatura, 1979, p. 242.
31 Dentre outras, podemos mencionar o Clube Libertad y Progreso, de Buenos
Aires, a Sociedad Defensores de la Independencia Americana, de Lima, a
Sociedad de Unión Americana, de Potosí e a Junta Patriótica, de México. Cf.
Ricaurte Soler, Idea y cuestión nacional latinoamericana, México, Siglo XXI, 1987,
p. 189-190.
32 La América en peligro, Caracas, Ayacucho, nº 129. 1985. El evangelio
americano, Buenos Aires, América, 1943.
33 Congresso de Panamá em 1826, convocado por Simón Bolívar; o de 1847-1848,
convocado pelo Peru; em 1856, convocado pela Venezuela, e o de Lima, em 1864.
34 Carta de Nova York de 2 de novembro de 1889, Obras completas, La Habana,
Imprenta Nacional de Cuba, 1963 t. 6, p. 46.
35 Nossa América, trad. M. A. Almeida Triber. São Paulo: HUCITEC, 1983. Nesta
mesma época escrevem José Victorino Lastarria, La América (1867), José Enrique
Rodó. Ariel (1900). Cf. Leopoldo Zea, El pensamiento latinoamericano, Barcelona,
Ariel, 1976 e Fuentes de la cultura latinoamericana, México, FCE, 1993, 2 vols.
36 Rubens Ricupero, Rio Branco. O Brasil no mundo, Rio de Janeiro, Contraponto,
Petrobrás, 2000, p. 36.
37 Op. cit., p. 55.
38 São Paulo, Brasiliense, 1958, p. 93-94. Prado foi um monarquista convicto e
grande opositor da República. Na sua análise dos Estados Unidos, critica a
vulgaridade do sistema republicano atual em contraste com os valores puritanos
dos anglo-saxões na época das treze colônias. Ele via no republicanismo uma
degradação.
39 Apud Flora Sussekind, Introdução, Manuel Bonfim, A América Latina,
Intérpretes do Brasil, op. cit., vol. 1, p. 612.
40 Manuel Bonfim, A América Latina, Interpretes do Brasil, op. cit., vol. 1, p.
628-885.
41 A figura do tio Mac Pato, os clichês contra os comunistas cunhando frases tais
como «alimentam-se de crianças»; «tiram os filhos da tutela dos pais».
42 Não há consenso sobre o ano exato do início e o fim da guerra fria, mas, como
em todo acontecer histórico, estamos diante de um processo gradual que pode ser
situado entre o fim da segunda guerra e a queda da União Soviética, em 1991,
quando da criação dos estados nacionais nessa região.
43 Cf. Fernando A. Novais, «A evolução da sociedade brasileira...» op. cit.
44 Jorge Romero Rodríguez, «Entramos negros, salimos afrodescendientes»,
Revista Futuros nº 5, 2004, vol. II, http://www.revistafuturos.info
45 «Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina» Estudos Avançados,
Instituto de Estudos Avançados da USP (São Paulo), vol. 19, nº 55, Set./Dez. 2005.
Dossiê América Latina, p. 20.
46 IBGE. Síntese dos indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da
população brasileira, Rio de Janeiro, 2007, v. 21, p. 182 -183.
47 Joaquim Nabuco, O abolicionismo (1883), Silviano Santiago (org.),
«Introdução», Intérpretes do Brasil, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2000, vol. 1, p.
XIV.

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Pour citer cet article


Référence papier
Sara Almarza, « O legado do sistema colonial na América Latina », Caravelle, 94 | 2010,
121-140.

Référence électronique
Sara Almarza, « O legado do sistema colonial na América Latina », Caravelle [En ligne],
94 | 2010, mis en ligne le 01 avril 2010, consulté le 04 septembre 2023. URL :
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Sara Almarza
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