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UBUNTU: NOVO MODELO DE JUSTIÇA GLOCAL?

By Severino Elias Ngoenha

L'ultra-libéralisme et la globalisation sont portés par les grands organisations


économiques internationales. Depuis la seconde moitié du XXe, ils sont les vecteurs
d'une injustice croissante et creusent le fossé des inégalités entre les pays riches et les
pays pauvres, le Nord et le Sud.

Ces trois méta-discours – l'ultra-libéralisme, la globalisation et l' (in)justice - mobilisent


un nombre croissant d'intellectuels. La question principale est : "le libéralisme peut-il
fondamentalement accomplir une justice sociale planétaire et, si la réponse est non, quel
modèle alternatif peut-on penser?

Avec le concept d'Ubuntu (restorative justice), l'Afrique du Sud et la Philosophie


africaine contribuent, par leur apport spécifique en terme de pratiques et de théorie, au
débat de la philosophie politique où la justice est centrale. En théorisant le concept
d'Ubuntu, la philosophie africaine pourrait apporter la première contribution importante
du contient africain au débat philosophique - ou pluridisciplinaire - qui dépasse
largement la dimension africaine.

En retraçant l'histoire et les liens entre les renaissances afro-américaines et sud-


africaines, le texte développe comment le concept d'Ubuntu permet de (re)tisser les
relations au niveau planétaire plutôt que d'approfondir les plaies, et comment peut-être,
en dépassant le concept de justice punitive, nous pouvons imaginer une globalisation
non comme un apartheid économique, mais comme un monde fait de reconnaissance
d'une même humanité égale en dignité.
Ubuntu : novo modelo de justíça glocal ?

UBUNTU: NOVO MODELO DE JUSTICA GLOCAL?

Introdução
Justiça e globalização: a contribuição da Filosofia Africana contra o apartheid
economico
A centralidade da questão da justiça é hoje sobejamente reconhecida pelos
diferentes círculos de pensamento, não só filosóficos, mas também sociológicos,
jurídicos e sobretudo económicos.
Deveria surpreender que o século vinte com o seu processo colonial, e com tudo o
que isso significa em termos de descriminação, de violação dos direitos mais
elementares da pessoa e dos povos, de mortes, não tenha feito da questão da justiça um
dos temas principais do seu debate de ideias. Digo deveria porque, na realidade, a
identificação dos temas centrais do debate de ideias é intrinsecamente ligada a história,
e esta é um campo aberto, multiforme e destituída de uniformidades. Porém a apreensão
conceptual das prioridades históricas, no sentido hegeliano, depende de hermeneutas
cujas prioridades interpretativas não são dissociáveis dos interesses e das relações de
poder que marcam os seus lugares de observação. É assim que na primeira metade do
século XX o debate de ideias foi dominado pelo estadual-centrismo intra-europeu e na
segunda metade pelo conflito ideológico entre os blocos da esquerda e da direita.
O fim desta disputa viu a emergência do que Francis Fukuyama, com uma falácia
hermenêutica da filosofia da historia (Ngoenha: 1992) hegeliana chamou “O fim da
historia”, entendo a emergência de um pensamento único pós-dialéctico, que
paradoxalmente ganha forma na hodierna meta-narrativa ultra-liberal, com os seus
corolários da globalização, sob égide de uma economia individualista.
Entre os vários questionamentos filosóficos que o processo da mundialização
suscita, ressaltam a uniformização axiológica e cultural do mundo; o paradoxo
ecológico, entre o imperativo de uma solidariedade diacrónica para com as gerações
futuras e o esquecimento - no sentido heideggeriano - de uma solidariedade sincrónica
para com os países pobres do planeta. Mas a questão crucial é a assimetria sempre maior

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entre a globalização de riscos e a localização de riquezas, o que levanta imediatamente a


questão da justiça planetária. De facto, para o grande público, a mundialização
apresenta-se como uma questão de justiça ou injustiça global, configurado
simbolicamente pelo movimento não global e pelos alter-mundialistas, ou se quisermos,
pela oposição simbólica entre Davos e Porto Alegre.
No seu início, o movimento de Porto Alegre apresentou-se como anti-
globalização. O facto mesmo que este movimento se tenha metamorfoseado e se tenha
tornado num movimento por uma outra globalização, mostra de um lado, que a hodierna
mundialização pode ser compreendida através de categorias agostinianas da teologia da
historia (mundus) (Dumouchel: 2001), na qual a humanidade passa gradualmente da
cidade terrestre a “Civitatis Dei”. Mas a esta “modernidade” pro-cristã, se deve
acrescentar - o que Agostinho não previu - a modernidade pós-cristã, que comportou o
gradual esvaziamento das categorias da teologia da historia e a emergência de uma nova
volteriana civis terrestre - filosofia da historia - baseada sobre uma iura humana
contratualista, como ele emerge nos alvores da modernidade com os trabalhos de
Hobbes, Rousseau, Locke, Montesquieu.
Mas por outro lado, um dos principais problemas desta nova politeia baseada
sobre o contracto - quer nas suas vestes liberais, como demonstra o surgimento dos
socialismos utópicos (Fourier, Jean-Giresse, Robet Ower) e depois do marxismo - como
nas suas vestes neo-liberais é a justiça: como fazer com que o “Príncipe” (Maquiavel), o
“Leviathan” (Hobbes), ou os detentores dos poderes democraticamente instituídos
(Rousseau, Locke, Montesquieu) sejam o menos injustos possíveis? O pensamento
utópico (Gioacchino di Fiore, Campanella, Thomas More) que acompanha
suspeitosamente toda a modernidade, funciona como revelador da discrepância entre os
ideais modernos e a sua efectiva realização. Aliás, este é o sentido da critica pós-
moderna (Lyotard, Vattimo, Derrida e Rorty), na realidade começada pelos filósofos da
suspeita Nietzsche, Freud e Marx.
A solução liberal-económica parece ser incapaz de dar a eudemonia para o maior
número preconizada pelo utilitarismo de Bentham e Stuart Mill. Se Adam Smith parecia
convencido que a solução do problema moral não estava no proibicionismo clássico das
doutrinas morais, hoje podemos constatar que o livre jogo dos interesses egoístas,
racionalmente calculados, não trouxe a eudemonia para todos que se procurava. Dos

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dois correctores postulados - Providência e Estado - o primeiro foi abandonado e o


segundo é um artefacto em crise. Alias, a globalização axiológica e de crenças
levanta(ria) um problema de uma organização mundial do político e do económico
subordinado a substratos teológicos, num mundo de disparidades de panteões, mas
também de munus axiológicos não ancorados a nenhum credo transcendental.

O liberalismo pode incorporar os aspectos fundamentais da justiça


planetária?

O Estado, principal regulador das relações sócio-económicas da modernidade, é


hoje um artefacto em crise. A sua saída da cena política remete(ria) as relações sociais
aos simples ditames da razão económica, o que é de natureza a aumentar as
discrepâncias sociais e a repropor o postulado hobbesiano bellum omnia contra omnes.
É sintomático que a chamada revolução de ‘68 tenha sido feita em nome de valores da
esquerda, contra um Estado que era tido por opressor e fazedor de guerras e que hoje,
volvidos quarenta anos, a esquerda anti-estadual de ontem, se tenha transformado no
maior defensor do Estado, contra o privadicionismo do liberalismo global. Para os
herdeiros da esquerda hegeliana, o Estado já não funciona como lugar da realização da
liberdade, mas como último baluarte de uma justiça social em perigo.
De facto, não se vislumbram no horizonte instituições susceptíveis de substituir o
Estado na sua função de regulação e de equilíbrio social, o que Rousseau considerava a
correcção do estado da natureza. Apesar do século XX ter visto a emergência de
instituições globais, elas não parecem a altura de se substituir ao Estado na regulação do
social. A ONU, instituição não democrática e sem nenhum poder de coerção sobre os
seus membros, serve de caução às relações assimétricas entre países no nome do Direito
Internacional, como alias já fizera a “Ius Inventionis” de Cristóvão Colombo que serve
de substrato do direito internacional moderno desde a escola de Salamanca até Kelsen.
As outras instituições globais importantes FMI, BM, OMC inscrevem as suas
acções no interior de um paradigma económico-centrista que levam a extremos
problemáticos as desigualdades e injustiças entre países.

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Mas de uma maneira mais preocupante, assiste-se a emergência de máfias


globais, empresas de drogas; mais paradoxalmente e na esteira do Estado moderno,
trata-se de organizações com duas caras, pretensão de ser politicamente correctas no
Ocidente, mas com atitudes e funcionamentos selvagens no terceiro mundo. Ainda mais
paradoxal, é o facto destas organizações funcionarem com o assentimento implícito ou
mesmo com a conivência e cumplicidade de Estados democráticos.
Em definitiva, os alter-mundialistas levantam a questão da justiça no mundo
global. Se a globalização não parece uma questão discutível, o que põe problema é saber
se esta globalização pilotada por grandes grupos económicos, por doutrinas neo-liberais,
de Davos, do FMI, BM, das bolsas de valores, não é um mecanismo orientado a
exacerbar ulteriormente a fractura entre ricos e pobres. Isto evidência todo o mecanismo
de violência que acompanha a questão da globalização económica. Mas esta questão,
justamente por causa da sua dimensão global, ultrapassa as fronteiras regionais, apesar
de algumas tentativas de filósofos pós-modernos de teorizarem o fim de um discurso
meta-narrativo a favor de uma espécie de tribalização epistemológica.
Dois argumentos podem demonstrar a fragilidade deste discurso, primeiro, a
dimensão meta-narrativa do discurso neo-liberal e da globalização, com os seus
assertores teóricos que são o G8, Davos, BM, FMI, OMC etc. Segundo, a existência de
um enunciador epistémico comum transversal a todas as sociedades, isto é, a questão da
justiça. São prova disso, o ressurgimento da filosofia politica nos EUA envolta dos
trabalhos de Rawls, a teologia da libertação latino americana ou ainda as teorias pós-
coloniais; todos centrados sobre a questão da justiça.
Com efeito, o ultra-liberalismo e a globalização, como discurso único e como
novo discurso meta-narrativo tem mobilizado um número sempre crescente de
intelectuais e pensadores, pela aversão filosófica de uma sotereologia imanente que o
liberalismo é suposto representar na “teologia” da historia fukuyamana; pelos limites
objectivos de um sistema antropocêntrico e de depredação da natureza; pela
insustentabilidade antropológica e social da uniformização axiológica do mundo e das
culturas; mas sobretudo pela injustiça planetária que ela provoca, globalizando os riscos
humanos e sociais dos seus empreendimentos mas privatizando as suas benesses.
Se o grande problema da filosofia desde Karl Marx, consiste em não contentar-se
em interpretar o mundo mas em militar para a sua transformação, então a questão é

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saber se o liberalismo pode incorporar preocupações fundamentais de justiça social e


planetária, e se não, questionar-se quanto a possibilidade de pensar a um modelo
alternativo.
Se a correlação ontológica necessária entre as categorias heideggerianas de Sein e
mit-Sein não surtiram efeitos nas doutrinas morais e políticas da segunda metade do
século XX, podia se ter esperado que a categoria existencial do Sein-In-der-Welt,
levasse através do reconhecimento dos limites ontológicos intrínsecos ao homem, a
reconhecer através de uma ecologia primeiro filosófica e depois política, a necessidade
de repensar os modelos políticos, de desenvolvimento - a famosa questão de
decrescimento económico avançado por Serge Latouche (2003) - o relacionamento com
a natureza - os contractos naturais de Michel Serre e Luc Ferry (Ngoenha: 1994) - mas
sobretudo a necessidade de associar a necessária solidariedade diacrónica com as
gerações futuras com a solidariedade sincrónica com todos os povos, corrigindo assim a
contradição histórica de uma modernidade que tornou-se possível graças ao encontro
com os outros, mas realizou-se contra esses mesmos outros (Dussel: 1998).

Ubuntu e Filosofia Africana: justiça além da quadro Afro-Africana

Infelizmente a “Real Politik” presidida pelo postulado egoísta da “não


negociabilidade do nível de vida dos ricos”, matou ao nascer a possibilidade de um
compromisso histórico global, em favor, uma vez mais, de estratégias de dominação.
A verdadeira questão glocal de hoje - no sentido que interpela as relações entre
grupos no interior de todas as sociedades, mas também a relação entre as diferentes
partes do mundo - é a justiça. Trata-se então de estender a questão posta a África do Sul,
pelo graffiti que ornamentava a casa de Desmond Tutu na Cidade do Cabo, ao mundo
inteiro: How to turn human wrongs into human rights?
Esta questão esteve na base do movimento, primeiro, da teologia de libertação
latino americana - basta consultar os trabalhos de Leonardo Boff - depois do movimento
de filosofia de libertação - cf. a centralidade da questão da justiça no pensamento de
Dussel - e hoje nos trabalhos da filosofia de interculturalidade (Raul Bentacourt).

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Mas como se sabe, o movimento da teologia de libertação latino americano foi


precedido pelo movimento de “black theologie of liberation” dos EUA com os trabalhos
de James Cone, que por sua vez depende de todo um movimento político-cultural de
revindicação de igualdade de direitos, quer dizer de justiça, que ganhou forma nos EUA
já durante o período da escravatura e cujo ápice foi atingido em Harlem da “Black
Rennaisance” com os trabalhos sócio-filosóficos de Dubois, literários de Langston
Hugues, políticos de Marcus Garvey. Todavia, os eventos dos anos sessenta com Martin
Luther King e Malcom X - definidos por James Cone como partes complementares de
um mesmo processo, ou ainda a emergência de movimentos como o “Black Power”,
estão a demonstrar que os problemas da justiça não tiveram um êxito positivo.
A filosofia africana, por seu lado, reclamou a justiça, primeiro como
reconhecimento da dignidade humana dos africanos, depois como direito a soberania
política. Hoje a questão de fundo é a possibilidade de utilizar os recursos africanos para
o desenvolvimento do continente, o acesso aos mercados internacionais contra as
barreiras proteccionistas dos potentes, uma soberania alimentar, direito a não ser
sufocado pelo sistema da dívida, etc.
Nos últimos anos o Ocidente aproximou-se da questões dos danados da terra.
Alter-mundialistas, sociólogos, economistas, filósofos reabilitam a filosofia política
com a questão da necessidade de um novo contracto social. É obvio que não se pode
dizer que o terceiro mundo tenha inventado a justiça como questão maior da filosofia
politica. Alias, a justiça está presente sob forma de Filia em Aristóteles, Eros em Platão,
Ágape em Agostinho, distributiva em Thomas de Aquino, equidade em Kant, etc. Isso
não obstante, a particular contribuição sul africana da justiça através do conceito
operatório Ubuntu (justiça restaurativa) merece uma menção especial, e isto por duas
razões.
Primeiro, a filosofia africana ocupou-se essencialmente de problemas particulares
do mundo negro: luta contra a escravatura, integração social das diásporas, emancipação
política, luta contra a pobreza absoluta. Esta é a razão pela qual não teve eco fora do
mundo negro, e mesmo aqui de uma maneira diferenciada. As questões postas pela
filosofia africana nunca interessaram os asiáticos. A teologia da libertação interessou os
latino americanos, mas muito rapidamente trilharam caminhos diferentes dos nossos. As
questões da filosofia Bantu, da etnofilosofia, da Negritude, da autenticidade, são

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questões de uma filosofia que corre o risco de ser etnocêntrica, racial ou quando muito
afrocêntrico. Interessar-se pelas questões da justiça significa debruçar-se sobre questões
que ultrapassam o âmbito afro-africano, e por conseguinte, a qualidade e a pertinência
da resposta podem constituir uma contribuição africana no âmbito da filosofia em geral,
mas também, dada a natureza polissémica da justiça, ao direito, a moral e a política.
Neste sentido a RSA com o seu conceito de “justiça restaurativa”, como foi
praticada e como pode ser teorizada, pode constituir uma das primeiras contribuições
importantes do continente africano para um debate de ideias que ultrapassa a dimensão
africana. Não é por acaso que o processo da reconciliação interessou filósofos como J.
Derrida, P. Ricoeur entre outros.
A segunda razão tem a ver com a especificidade e a pertinência teórica do
conceito Ubuntu na reflexão sobre a justiça.
Em relação ao resto do continente negro, a RSA tem a particularidade de não ser
uma colónia mas uma República independente com um sistema politico baseado sobre a
segregação racial. Por isso, enquanto os nacionalismos que traversaram o continente
sobretudo na segunda metade do século XX eram de natureza emancipadora, o
nacionalismo -ou os nacionalismo sul africanos - é, como os movimentos pós-
escravatura nos EUA, anti-segregação. Isto explica alias, alguns empréstimos teóricos
que contribuem a dar um respiro histórico amplo a reflexão sul africana.
No seu livro auto-biográfico “Africa, The time has come” Thabo Mbeki (1998)
mostra-se um fino conhecedor da história dos movimentos panafricanos e das filosofias
politicas que subentenderam os seus diferentes movimentos. Por isso, quando fala de
“African Renaissance” conecta deliberadamente o substrato filosófico-político da nova
África do Sul, com o espírito do movimento de Harlem entre dos anos ‘20-‘40, que
mereceu da parte do filósofo afro-americano Alain Locke, o nome de “Black
Rennaisance”.
O pai imputativo do movimento americano, William Dubois, desde os seus
primeiros trabalhos “The Philadelfia Negro”, passando pelo “Black Folks” até as
controversas com Booker Washington, tinha claramente demonstrado que a questão
negra era fundamentalmente política, e era a esse nível que tinha que ser resolvida. O
objectivo de Dubois era fazer com que os negros gozassem, como os outros cidadãos, de
todas as prerrogativas previstas pela constituição americana. Mas esta passagem tinha

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que ser acompanhada por uma série de medidas de “descriminação positiva”,


susceptíveis de levar os então negativamente descriminados a integrar a sociedade
global. A posição deboista recorda de perto a política pós-apartheid da África do Sul.
Langston Hugues, na tentativa de colmatar o maior deficit histórico-identitário dos
negros nos EUA como aparece no “Black Folks” de Dubois (1999), isto é, “a
necessidade de uma autónoma definição de si” lança-se a procura da sua blackness.
Porém, nesta sua busca existencial ele descobre a sua twoness. A busca de uma auto
definição de si, leva-o a cair na conta que para faze-lo, como os intelectuais do
“Renascimento Irlandês”, tinha necessariamente que passar pelo outro, pelas suas
categorias linguísticas e culturais. Ele caí então na conta que o pluralismo cultural lhe é
interior. Ele podia ter dito como Rambow “eu sou um outro”. Este é o sentido profundo
da sua afirmação “eu também sou a América”.
O espírito que atravessas os renascimentos afro-americano e sul africano, é de
uma busca identitária que por razões históricas e sociológicas não pode ser exclusiva
mas inclusiva, não é de separação mas de integração no respeito da dignidade e das
particularidades de cada pessoa e grupo. Este é o significado mais profundo do conceito
de Ubuntu, cuja expressão iconográfica é “Rainbow Nation”. Contudo, o espírito de
Ubuntu como orientação performativa da RSA pós-apartheid encontra-se já no discurso
de Albert Luthuli na recepção do prémio Nobel para a Paz em 1961: A futura África do
Sul será africana, mas não será necessariamente negra. Estavam lançadas as bases que
se tivessem sido cuidadosamente analisadas, poderiam ter orientado diferentemente a
filosofia africana e sobretudo evitado debates estéreis envolta de questões
etnofilosóficas, negritude ou ainda de autenticidades.

Ubuntu: novo modelo de justica?

Mas se o objectivo não era expulsar os estrangeiros ou invasores, porque não


havia estrangeiros nem invasores; se a luta não era racial mas anti-racial, se não se
tratava de dividir mas unir, quais eram os apetrechos intelectuais capazes de servir de
fundamento a uma tal empresa? Em outras palavras, se a questão era mudar as relações

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de poder e de sociedade, qual era a concepção operacional da justiça que podia


favorecer a emergência de uma vida comum entre as diferentes raças - o que supunha
prealavelmente uma reconciliação entre as partes - mas desta feita, no respeito do
espírito de igualdade que toda e qualquer democracia supõe?
As tradicionais concepções operacionais de justiça eram evidentemente
inadequados. Tratava-se de encontrar um conceito operacional de justiça, que não se
configura-se como o Maat egípcio ou como a Minerva grega, cujos corolários das suas
visões do que é justo, acabam quase sempre leviatanamente cortando, separando,
dividindo; mas quase nunca recriando, recompondo, recosendo o tecido social. Paul
Ricoeur (2004) fala da “produção da violência pela justiça”, e considera que o direito
penal é um escândalo intelectual, na medida em que acrescenta um sofrimento a um
sofrimento, o sofrimento da pena ao sofrimento do mal feito a uma outra pessoa.
A isto pode se acrescentar a preocupação manifestada por Karl Jaspers (2004), em
resposta aos crimes da segunda mundial, em encontrar uma justiça que não de limite a
estabelecer os factos, mas que compreenda uma dimensão catártica; ou como diz
Derrida (2004), que liberte o opressor.
Onde ir buscar uma justiça que compreenda os imperativos da catarsis através do
reconhecimento do outro e da reconstrução da relação social? A justiça que se
procurava, era a justiça de uma costureira que com o trabalho tenaz e de muita paciência
cose a diferentes partes afim de construir um uma peça única. Onde ir buscar um tal
conceito?
Aqui reside a segunda fonte especifica da busca sul africana: a dimensão
teológica. A escolha de uma comissão de reconciliação e não a instauração de um
tribunal especial para punir os crimes contra a humanidade, mostrava claramente que o
caminho a percorrer para passar do human wrongs ao human rights subordinava a
tradicional justiça punitiva à reconciliação. Isto é, o reconhecimento público do mal
cometido, o arrependimento, a vontade de reintegrar a comunidade com uma nova
atitude relacional (é o que se chama Ubuntu).
Ora Desmond Tutu não foi só o executor material desse processo, mas de certa
maneira também seu conceptualizador. É na mediação teológica, trabalhando de uma
maneira particular São Paulo (metanóia) mas também a tradição vetero-testamentária do
retorno dos malfeitores a justiça e ao bem comum, que Tutu construí durante as suas

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pregações de combate que ele livra ao Apartheid a partir de 1976, o pensamento de


reconciliação.
Todavia, Tutu inspirava-se teologicamente na “Black Theologie of Liberation”
dos USA iniciada por personalidades como James Cone. Esta teologia com um processo
que os pós-modernistas chamariam de “dekostrution”, chama em causa a instância
ultima da garantia moral da sociedade americana, aquele Deus bíblico que serve de
garante da constituição.
Fazendo uma exegese histórica das manifestações de Deus, os teólogos da
libertação negra americana evidenciam que o Deus bíblico inscreve a sua acção num
quadro histórico dominado pela hegeliana contraposição dialéctica mestre-escravo. Mas
a particularidade do Deus vetero-testamentário era estar sempre ao lado dos oprimidos,
e os oprimidos nos EUA eram os negros, como vão também ser os negros na RSA. Esta
conclusão exegética vai constituir o leit motiv de toda a teologia negra nos USA, o que
alias vai ser retomada primeiro pela teologia de libertação latino americana e depois
pela sul africana.
Todavia, apesar de estar ao lado dos oprimidos, o Deus vetero-testametário não
quer a morte dos opressores mas a sua conversão, o que a teologia Paulina chama de
metanoia. A premissa deste “restorative justice” encontrar-se-ia, segundo Gustavo
Zagrebelsky (Garapon: 2004), na oposição que o direito hebraico faz entre nispat e ryb,
isto é entre a justiça concebida como intervenção de uma terceira pessoa e a justiça
entendida como encontro entre o culpado e a vítima “cujo objectivo não é a punição do
culpado mas a composição da controversa graças ao reconhecimento do mal feito, o
perdão e de consequência a reconciliação e a paz”. A finalidade desta forma de justiça é
a inclusão, é recozer as relações sociais.
Contudo, mesmo que se reconheça o seu fundamento hebraico, não se pode
ignorar a novidade sul africana em ter estendido esta forma de justiça ao plano colectivo
e nacional, em suma ao plano político. Pode-se então deduzir que a RSA promoveu um
novo modelo de Justiça? Trata-se de um imbróglio jurídico-político-ético-religioso
como parece sugerir Barbara Cassin ou de um abandono positivo das limitações
disciplinares?
Quid da reparação? Pode a nova justiça negligenciar a questão da redistribuição?
A “restorative justice” na argumentação de Tutu, implica a reparação. Só que o

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prelado introduz uma diferença entre o conceito de reparação e o conceito de


compensação. O reconhecimento público dos males subidos é uma reparação, mas
compensar implicaria a possibilidade de quantificar os sofrimentos, restituir alguém
pela perda de um ser querido. Esta argumentação é considerada por Jacques Derrida não
convincente sob plano intelectual (2004), e é contestada no plano prático, por exemplo,
pelos companheiros sobreviventes de Steve Biko, fundador do movimento da
consciência negra (Charland: 2004).

Conclusão
Ubuntu e globalização: como transformar o apartheid económico em
reconhecimento igual dignidade humana
Esta justiça como reconhecimento (recognition) que implica a restauração da
dignidade humana das vítimas, pode fazer a economia da justiça penal e retributiva e
ainda mais da justiça social distributiva?
O objectivo final (Ubuntu) da justiça restaurativa não era simplesmente a
identificação do outro, nem mesmo perceber o outro como semelhante, mas também
dar-lhe o respeito, admitir que a minha vida é igual a sua. Trata-se do reconhecimento
do seu ser, da sua existência, da sua identidade, do seu lugar numa cidade comum. Fazer
comunidade é tornar-se uma sociedade de com-munia, isto é de dádivas (munia)
partilhadas.
A mutua construção de uma comum comunidade de destino não implica então
uma redistribuição social dos bens oriundos da segregação que se quer ultrapassar, não
necessariamente como reparação dos “tortos subidos”, mas tradução para o terreno
existencial dos postulados ético-jurídicos? Se essa justiça não se faz ágape / dilectio não
se corre o risco de se transitar de racialização política-jurídica do apartheid a uma
racialização económico-social pós-apartheid?
O tecido social que a costureira começou a coser com coragem e abnegação,
necessita de muito fio e muita bordado para que não se rasgue ao primeiro movimento
desajeitado. Este processo de solidificação, pode prescindir de uma redistribuição
económica?

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A RSA, mundo em miniatura, onde uma minoria detém os meios de produção, o


saber, os meios económicos e a maioria é miserável, pode ser um laboratório onde se
experimentam as soluções de justiça susceptíveis de ser globalizaveis (rainbow world);
como pode ser uma simples extensão do sistema mundial baseado sobre a desigualdade,
onde os negros como nos EUA, na Jamaica no Brasil, para dar alguns exemplos,
passaram pura e simplesmente de escravatura a semi-cidadãos, tributários unicamente
de deveres servis. Em suma, “rainbow world” ou apartheid económica?

References
Charland, M. (2004).Prudence plurielle. In, Cassin, B., Cayla, O., Salazar, P.H., (dir.),
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Salazar, P.H. (dir.), Vérité, reconciliation, réparation, pp. 111-156. Paris: Ed. Seuil.

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Mondialisation: perspectives philosophiques, pp. 345-361. Laval: Les Presses de
l’Université.

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l’exclusion. Paris: L’Harmattan.

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l’absurde. Paris: Parangon.

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Ngoenha, S.E. (1992). Duas interpretações filosóficas da história do século XVII.


Porto: Ed. Salesianas.

Ngoenha, S.E. (1994). O retorno do bom selvagem. Uma perspectiva filosófica-


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Ricoeur, P. (2004). Avant la justice non violente, la justice violente. In Cassin, Cayla,
Salazar (dir.), Vérité, reconciliation, réparation, pp. 159-171. Paris: Ed. Seuil.

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Caro colega, eis o tema que penso tratar.

Contribuição cenceptual "Ubuntu" ao dialogo Nort-sul: a questão da justiça.

Mostrarei na minha intervensão o que é o Ubuntu como tradição de saber na


Africa aAustral, ilustrada por muitos estudos envolta da questao dos saberes
locais. em seguida mostrarei como esta conceito foi trabalhado e mobilizado
para os processos de reconcociliação em moçambique e sobretudo na Africa
do Sul. Mas a pertinência deste conceito operatorio reside na sua capacidade
de interrogar os conceitos classicos de justica como s foram historicamente
eleborados pelo pensamento ocidental classico (Aristoteles, Platao, Agostinho,
Thomas de Aquino, Kant Hegel, Rawls) trazendo uma resposta que é uma
contribuiçnao clara ao direito, a politica e sobretudo a filosofia (como revelaram
os trabalhos de Derrida e Ricoeur sobre a questão).
Nos vivemos numa época é que a justica tornou uma das questoes maiores
das sociedades e de consegunecia do pensamento. A nivel das sosiedades, as
descrepancias sociais aumentam no ocidente, como no Sul. Mas as diferencas
também aumentam entre o sul e o norte. Isso é ilustrado pelo ranascimento da
filosofa politica com os trabalhos de Rawls e o debate entre os utilitaristas,
liberais e comunutaristas nos Estados unidos. Mas também a teologia de
libertacao latino americano e mesmo a filosofia meteram muito acento sobre a
questao da justica: é ainda a justica a preocupacao dos diferentes
movimentos alter mundilaistas e a nova teoria social ligada a questao dos post-
colonialismo. A questao que quero solevar, é ver em que medida a contribuicao
sobre a nocao de jusica como ela foi concebita na tradicao filosofica ubuntu e
mobilizada (contra o direito punitivo e separatista das cortes internacioanis)
pode ser uma contribuicao especifica, de uma tradição de saber a um dialofgo
que interessa todas as partes do mundo

Espero uma sua reação sobre esta proposta

Abraco

Severino Ngoenha

«LinhaDeSaudação» 14

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